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FRCISCO BRED Fragmento de um diário IO SUASSA mescla gêneros literários em sua obra A “Florença dos trópicos” e a história de um texto (quase) perdido ALBERT ÊS Um poema inédito de IAGO Þ LO Programação FLIPTO 2014

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  • FRANCISCO BRENNAND Fragmento de um dirio

    ARIANO SUASSUNA

    mescla gneros literrios em

    sua obra

    A Florena dos trpicos e a histria de um texto

    (quase) perdido

    ALBERT CAMUS

    Um poema indito de

    THIAGO DE

    MELO

    Programao

    FLIPORTO 2014

  • # 4

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    DireoAntnio CamposEdioMarcus PradoAssistenteCludia CordeiroArte e DiagramaoRoberto PortellaRevisoHaide Fonseca

    Editora Carpe DiemDireoAntnio CamposDireo ExecutivaVeronika Zydowicz

    A Revista ArtFliporto, em nova fase, uma publicao trimestral da Editora Carpe Diem.

    ExpedienteEdio: Digital Novembro | 2014

    CapaFRANCISCO BRENNANDfoto: Marcus Prado

    Endereo para Correspondncia (Address for correspondence):Carpe Diem Edies e ProduesRua do Chacon, 346Casa Forte 52061400 RecifePernambucoBrasilwww.fliporto.nethttps://editoracarpediem.com.br/https://twitter.com/editcarpediem

  • 3APRESENTAO

    Publicase, neste novembro de 2014, este quarto nmero da ArtFliporto, quando, pela quarta vez, Olinda, a cidade Patrimnio Histrico e Cultural da Humanidade, se prepara para o grande encontro da cultura e das artes na 10 edio da Festa Literria Internacional de Pernambuco, Fliporto, de 13 a 16 de novembro, na Praa do Carmo e no Colgio

    de So Bento. Nesta nova edio da revista, respirase o ar democrtico dos mares da Web, porque passa a ser uma revista de formato exclusiva-mente digital, seguindo a tendncia de toda a linha editorial do gnero no mundo. Celebrando a Arte, aqui nos esmeramos em somar, ao edifcio da beleza, o contnuo dilogo do homem com ele mesmo e com os outros, seja pelas anotaes dos ensastas, seja pelo fazer o Conto, o Poema, a Fotografia, a Arquitetura. Quase todo grande movimento literrio como a Fliporto sustentase numa revista, que lhe serve no apenas de portavoz, mas tambm de meio pelo qual se articulam manifestos, poemas, contos, ensaios crticos, etc. Neste nmero, acolhemos uma diversidade de temas que estabelecem a dimenso do esprito da nossa Festa literria e desta publicao. Os colaboradores que participam pela primeira vez da Revista do a medida da multiplicidade do nosso projeto, pela qual se pode avaliar a diversidade dos nossos propsitos.

    Este ano, aufere data a vrios eventos importantes, um deles, vinculado ao cenrio literrio pernambucanoos 90 anos de nascimento de Osman Linsest contemplado nesta edio. Novas edificaes da poesia surgem, merecendo uma obra inteira encartada. A crtica de Arquitetura surge como meta a se expandir e ganhar espao na revista. Um corpo de inditos, seja na poesia, na prosa, no ensaio ou nas artes visuais, faz da quarta edio da ArtFliporto um exemplar da arte e da cultura deste e de outros tempos no nosso hoje.Aos colaboradores, nosso muito obrigado. Aos leitores, nossos votos de tima viagem nesta jornada cultural. O DIRETOR

  • 4SUMRIO03 APRESENTAO 05 O NOME DO LIVRO

    Fragmentos do dirio de 1986Francisco Brennand

    20 FLIPORTO 2014 22 PROGRAMAO DO 10 CONGRESSO LITERRIO INTERNACIONAL PERNAMBUCO FLIPORTO 2014. 23 CINE FLIPORTO FLIPORTO GALERA E FLIPORTO GALERINHA. 26 ALBERT CAMUS, A FLORENA DOS TRPICOS E A HISTRIA DE UM TEXTO (QUASE) PERDIDO.

    Anco Mrcio Tenrio Vieira

    34 O ESCRITOR E A NOSSA POCA, ALBERT CAMUS 40 A NOVA LITERATURA IMAGINATIVA EM PERNAMBUCO

    Andr de Sena

    46 UMA ORDEM SINUOSA: O BARROCO NO ROMANCE AVALOVARA

    Fbio Cavalcante de Andrade

    54 THIAGO DE MELO (Poesia)Com o silncio molhado das funduras do meu rio.

    58 AS PALAVRAS E OS DIAS PGINAS DIARSTICAS (ALGUMAS LEITURAS)

    Jos Rodrigues de Paiva

    67 AS CONSTRUES DE ABELARDO DA HORAFotos: Isolda do Valle Wanderley

    68 DEUS FURIOSO (Conto)Ccero Belmar

    76 UM FERRO DE ARREIOIsolda Walderley

    78 HOLOGRAMAS DE GRACILIANOSylvio Back Escritor e cineasta

    84 REENCONTRO COM GEORGIA O'KEEFFEEduardo de Aguiar

    86 DEBORAH BRENNAND: CONFISSO E DESLUMBRAMENTO

    Luzil Gonalves Ferreira

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  • 588 A LTIMA VIAGEM (Poesia) Rodrigo Garcia Lopes

    92 O ENCANTO DO ENCANTO E POESIA Haide Camelo Fonseca.

    94 NUDEZ (Poesia)Mrio Hlio

    95 O TROVADOR ROMANCE POLICIAL DE RODRIGO GARCIA LOPES

    Joca Rainers Terror

    96 ARIANO SUASSUNA MESCLA GNEROS LITERRIOS EM SUA OBRA

    Paloma Rodrigues Jornalista (So Paulo)

    98 AGOSTO (Conto)Jamilsa Melo Jornalista e escritora (Manaus).

    100 O VULTO VAGO DAS PESSOAS NAS RUAS.Fotos: Isolda do Valle WanderleyRede Jornal Fliporto.

    102 A POESIA DE PEDRO XISTO: ILUMINAO DA PALAVRA 104 O SEMPRE MODERNO

    Jos Luiz Mota Menezes (Arquiteto e Historiador)

    108 LYGIA CLARK ADMIRADA NOS EUA.110 DOIS FRAGMENTOS DO NOVO LIVRO (INDITO) DE ANDREA NUNES: ALQUIMIA.114 PICASSO E SUA PAIXO PELA FOTOGRAFIA. 116 UM NOVO LIVRO, UMA EXPERINCIA EDITORIAL.118 ENCONTRO DOS RIOS (Poesia)

    Jadson Nobre (Manaus)

    119 O MAL NA FILOSOFIA EXISTENCIAL DE KIERKEGAARD.

    Ignacio Strieder

    130 MAM APRESENTA MOSTRA PANORMICA DO ARTISTA MULTIMDIA PAULO BRUSCKY 132 LIVRO DE SONETOS

    Titio Livio Lisboa (Recife)

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  • O NOME DO LIVROFRAGMENTOS DO DIRIO DE 1986

    FRANCISCO BRENNAND

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  • 76 de julho de 1986Uma tarde inteira com o poeta Toms Seixas. Continua a trabalhar no seu livro Casa dos sonmbulos. Textos e textos reelaborados durante anos a fio. Sempre recomeados, mas sempre os mesmos. Palavras testadas arduamente luz da memria vigilante, de toda sua memria, visual e auditiva, numa procura desesperada e categrica, que o faz retornar ao mesmo lugar, a um ponto fixo, a um nico e inaltervel lugar, ou seja, o derradeiro ato de interpretar o primordial: No princpio foi o Verbo.... Borges, no seu ensaio sobre A Cabala, comenta que a noo do livro sagrado completamente diferente do livro clssico. Num livro sagrado, so sagradas no apenas suas palavras, mas tambm as letras com que elas foram escritas.O poeta Toms, na sua ortodoxia pessoal, no parece pensar de outra maneira, e assim prossegue lentamente, em direo a essa quase inacessvel Porta Estreita. A noite se aproximava quando condescendeu em fazer a leitura de um artigo escrito h mais de vinte anos sobre Amedeo Modigliani. Depois, j sem o texto nas mos, com a voz entrecortada pela emoo, como quem recorda antigas amantes, falou dos retratos de Beatrice Hastings, de Jeanne Hbuterne, esta, na sua opinio, muito seme-lhante a uma virgem gtica. E recordouse tambm da Grande Femme Nue talvez um dos mais belos nus da pintura contempornea, pintado em 1919, um ano antes de o artista falecer num hospcio em Paris.

    7 de julhoA simpatia de Gauguin pela barbrie fez nascer a pintura moderna. Mas, afinal de contas, o que um brbaro, ou o que um selvagem? Cesare Pavese, neste domnio, tambm comea perguntando: Ser possvel ir mais alm do que Jack London em O apelo da Selva?. A arte do sculo XX tende para o selvagem. Primeiro, nos temas (Kipling, DAnnunzio); depois, na forma (Joyce, Picasso etc.). Leopardi, com suas iluses poticas juvenis, procurou o selvagem como forma psicolgica. At Nietzsche tinha este sabor (com o seu Dionisos).Ao prprio Pavese, o selvagem parecia interessar, mais como mistrio do que como brutalidade histrica. Selvagem quer dizer mistrio, possibilidade aberta.Vejamos ento o que dizem os gregos, esses mesmos gregos e seus parentes afins os romanos dos quais Gauguin recomendava fugir como o diabo da cruz: Jamais os gregos.Gauguin, dando as costas em definitivo Europa e se instalando em Fatu Hiva, Ilha das Marquesas, quase ainda antropofgica, procura do que ele declarava ser indispensvel para a plena realizao de sua arte: Creio que ali, este elemento selvagem, esta solido completa, me dar, antes de morrer, um ltimo fogo de entusiasmo que rejuvenescer minha imaginao.Voltando aos gregos os inventores da palavra brbaro, o que pensavam eles a respeito de outros povos fora dos seus deuses, dos seus templos e dos reluzentes muros de calcrio branco?Nos dias cinco e sete de setembro de 1944, no seu Ofcio de viver, Cesare Pavese, no sem uma certa ironia, comenta exemplarmente: Dos sete trechos em que Herdoto na descrio do Egito diz que tem escrpulos em tocar nos mistrios, tratase, em trs casos, dos deusesanimais, em dois do rito flico, nos outros de autoflagelao e de iluminao sagrada. Por que que Pan representado com cabea e pernas de bode? (XLVI). Por que que o porco imundo durante o resto do ano sacrificado e comido durante a festa de Baco? (XLVII). Por que que os animais so em geral sagrados? (LXV). Aqui, Herdoto sente um horror totmico e no ousa falar. Por que que as imagens flicas na festa de Baco tm o Phallus nu e movido por fios? (XLVII). Por que que os atenienses fazem as esttuas de Hermes flicas? (LI) Aqui, Herdoto sabe que Phallus e Deus coincidem e no ousa dizlo. Em honra de quem se batem os crentes durante a festa de sis? (LXI). Por que se celebra em SAIS a festa das lmpadas? (LXII). Existe aqui provavelmente qualquer um outro horror que a respeitosa curiosidade mundana de Herdoto no teve a coragem de enfrentar. Eis um exemplo da maneira grega de tratar o selvagem: reconhecido com respeito tolerante, como sagrado, e acabouse. Os gregos tm a conscincia racionalista de que o mundo do sagrado e do divino esconde abis-mos e que preciso correr um vu sobre ele. (Outrora, faziamse sacrifcios aos deuses, mas sem os nomear (LII). Foi ainda h pouco tempo que Homero e Hesodo descreveram e narraram os deuses (LIII). O tom de Herdoto quase de censura ).

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  • 99 de julhos 6h45 Pouco a pouco, como numa cidade sitiada, nos habituamos (ou nos abandonamos) desgraa. A revolta o ladrar do co louco, diz Camus, citando Antnio e Clepatra, de Shakespeare. Meu Deus! Uma minscula notcia de jornal, como se fora uma charge de humor negro, e, no entanto, deve ser verdadeira na sua apa-rente frieza estatstica. Fala da fome no mundo. Da fome que atinge, sobretudo, as crianas e, ainda assim, sem levar em conta todos aqueles que, ainda no nascidos, estariam de antemo condenados ao mesmo suplcio.Ivan Karamzov afirmou que suportaria tudo, menos o sofrimento de uma criana. Presumo que ele tenha falado por toda a humanidade, mas parece que as coisas no tm se modificado, e acredito que continuaro assim at o fim dos tempos.

    14 de julhoEnto eles se agarraram, se enlaaram e combateram, at que a mo dele chegasse sua cintura fina e a ponta dos dedos tocasse o seu corpo flexvel. E ento os seus membros amoleceram e ele tremeu suspirando como um junco da Prsia no rugir da tempestade. (Histria do combate entre o lutador Charkan e a jovem rainha Abrise).

    31 de julhoNo tendo para onde fugir ontem noite, se entregou nos braos de Gertrudes que, a seu pedido, toda vestida de seda negra, o aguardava impacientemente. Ela cumprira risca as suas inslitas recomendaes e, talvez, ainda muito mais do que esperava, pois, como notou, nenhum detalhe do seu traje fora descuidado. A massa rebelde dos seus cabelos negros, com franja sobre a testa, acentuava o branco intenso do rosto, proposi-tadamente embranquecido pela maquiagem, como uma mscara trgica de teatro Kabuki. Os olhos, igualmente acentuados de negro, assim como as sobrancelhas muito finas e arqueadas, completavam com o vermelho intenso dos lbios toda essa sofisticada caracterizao. Difcil para ele foi to somente fazer com que essa improvisada atriz cumprisse o seu papel. J nas primeiras horas da manh, compreendeu afinal que todos os esforos nesse sentido seriam vos, e que o aprendizado necessitaria, como era de se esperar, de tempo, de muito tempo. Acontece que ele no tinha mais como ainda aguardar. E foi apenas para encorajla que a brindou com o ttulo solene de Princesa da Armnia, rainha pelo menos naquele instante, no seu insuspeitvel e inspito deserto. Entretanto M.G. uma figura noturna digna do maior respeito, cuja sensualidade inesgotvel e amedrontadora.

    1 de agosto20h48 Mais uma vez, quase como se fosse uma rotina, volto fbrica procura de uma pousada mais segura para dormir. No confio em Dalila. Poderia cortar os meus cabelos e, ento, eu perderia as minhas foras.

    2 de agostoO catre, como dormida, foi pssimo, mas pior ainda , na madrugada solitria, aperceberse de que a ningum interessa o nosso ingnuo abandono. Compreendese ento, muitssimo bem, o desespero dos velhos e dos fracos.

    Como um mestre da amargura (na qual finalmente soobrou), Pavese comenta: Deixase de ser jovem quando se descobre que de nada serve contar uma dor. A minha sorte em neutralizar to nefasta lembrana nasceu de um outro comentrio, esse sim, totalmente enigmtico, mas que, em todo caso, tem ajudado a reanimarme, podendo mesmo ser utilizado como escudo ou at como uma lana para defesa daqueles que, j no sendo jovens, ainda da vida esperam alguma coisa. Quem assim promete o pintor JeanAuguste Dominique Ingres, figura, alis, bastante controvertida na vida e na arte, mas que, como ningum, soube defender com unhas e dentes o seu obstinado beauideal: A minha velhice me vingar, foi o que ele disse, e no precisava dizer mais. hora de dizermos como na pea de Shakespeare, Alls Well that End Well, Tudo est bem quando acaba bem.Andra Monti: E no consola saber que de histria de loucura que est pavimentado todo o caminho seguido, desde o Prometeu at a corrida do tomo.

    4 de agosto 7hComeo o dia entorpecido. O catre no funciona como um leito ideal. Antes fosse duro e inspito como

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    todos os catres que se prezam, mas este estofado de almofadas de couro, que me fazem afundar como um nufrago.Continuo preso s recentes discusses polticas de que participei na casa de Toms, junto a outros amigos, quando, com veemncia, lembrei um estranho comentrio de Pavese sobre a Revoluo Francesa: A verdadeira Revoluo Francesa ainda no aconteceu, mas quando de fato acontecer, tenho a vaga impresso de que com ela no estarei de acordo. A enorme coragem e lucidez desse escritor em emitir um comentrio to original pode parecer, aos menos avisados, apenas uma mera brincadeira. Acontece que no brincadeira alguma. Como citei de memria, logo noite corri clere aos textos do Ofcio de viver, no pressuposto, inclusive, de que l encontraria esta observao. Nada descobri. Agora pela manh, retorno aos mesmos textos e nada... Isso me confunde a ponto de supor que Pavese nunca afirmou uma tal heresia. Mas se no foi ele, quem foi ento? Quanto a mim, no sei se concluiria com tama-nho acerto, humor e igual originalidade semelhante juzo, embora, com ele, estivesse de completo e irrestrito acordo.Algum me diz que a famigerada Carta ao Pai, de Franz Kafka, jamais chegou ao seu destinatrio. A sorte foi de ambos. Seria terrvel, difcil e mesmo espantoso que um pai pudesse ler tais acusaes e que o filho ainda sobrevivesse a tamanha maldio.No possvel que Franz Kafka, como homem e escritor, no se apercebesse dos misteriosos limites da verdade, daquilo que, supondo verdadeiro, no ainda toda a verdade. H um vazio a considerar e nessa lacuna que os fatos se desen-volvem, concentramse e tambm se expandem perigosamente. O prprio Kafka, num aforismo, refora o que digo:

    Na luta entre ti e o mundo, apoia o mundo; no se deve lesar a ningum, nem sequer frustrar o mundo da sua vitria.

    5 de agosto21h50Mandei comprar na cidade a mais simples cama de ferro (tipo solteiro). O motorista junto com o vigia da fbrica trazem uma cama pintada de azul celeste, o que me deixou encolerizado. Fizlhes ver o absurdo dessa cor com a qual terei de conviver dentro do meu prprio atelier ao lado de outros mveis, na sua maior parte sombrios. Para a minha crescente irritao, demoraram em montar as ferragens e eu, aqui com os meus botes, s pensando em mandar repintla de outra cor. De repente, olho no fundo da sala. A pequena cama estava

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    ali armada, resplendendo no seu azul cerleo profundamente belo e primaveril. Era a pincelada de gnio necessria para vivificar esse ambiente sobrecarregado de ocres pardacentos, sienas, brancos sujos e pretos desbotados.Saiu o velho catre, que h tantos anos me serviu, e entra uma cama jovial com a sua nova harmonia, aparentemente extravagante maneira do Blue Boy de Gainsborough, este tambm, de to celestial presena entre tantos pardos, terrosos e aborrecidos.A cama celeste, ou a celestial morada, funcionou a contento, e posso asseverar que dormi bem melhor essa noite. Apenas tenho de reconhecer que uma cama frgil e casta, que no permitir a presena de mulheres toa.

    7 de agosto 3h20 Os insetos e, possivelmente, uma conversa telefnica que mantive com Fencia, ontem, no comeo da noite, no me deixaram dormir. Irritoume acordar apenas s trs horas da manh, uma hora pesada, propcia ao desenlace dos moribundos, Hora do lobo (ttulo de um filme de Bergman, no verdade?). Mas, o que enlouquece os escandinavos, ainda mais que a ns outros, que j somos todos mais ou menos ensandecidos?Fencia tambm louca. Toda loucura irresistvel e insistente. E ela insiste como ningum. Que dificuldade em convencer um louco para que ele deixe de ser louco! De volta para a cama celeste, vejo o grosso volume laranja, o inconfundvel Journal de Kafka, traduzido para o francs. Abroo ao acaso. Tout se refuse tre crite. Abaixo da frase, h um grifo canhestro, trmulo, incompleto, marca registrada de quem no ama os livros, mas que, assim mesmo, pode ainda amar os textos. Mas como que se pode amar os textos sem amar os livros? Ento, no se ama nenhum dos dois? O grifo abaixo da frase genial de Kafka meu. Logo, no amando os livros, igualmente no devo amar os textos.Voltando ao elogio da loucura, escuto A.C. confidenciarme, sorrindo, que quem tirou a sua virgindade foi uma mulher. Tu a conheces, ela louca! Sabias?, diz A.C., olhando para mim procura de aprovao. Sim, ela louca, repetiu. Logo acrescentei: E quem no louco?. Desta feita, silenciou, no respondendo nada.Meu Deus, como as mulheres se escravizam ao sexo! Neste captulo, nada a fazer, nada a declarar. Insistir j loucura.Na tarde de ontem, John Richardson, bigrafo de Picasso, do alto de sua prosopopeia, declarou que Olga

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    Picasso era louca; que MarieThrse Walter era belssima, mas primria e que acabou se enforcando cinquenta anos depois de ter conhecido o artista; que Dora Maar era inteligente, mas inconveniente, neurtica e excessiva em tudo. E, como se no faltasse mais nada, um tanto kafkiana. Enfim, um azaro; Franoise Gillot era... Engraado, sobre esta jovem, Richardson no diz nada, apenas cita trechos do seu livro, escrito a quatro mos contra Picasso. Se Richardson no diz nada relativo a Franoise, porque certamente esto mancomunados. Richardson insinua que o poeta luard oferecia abertamente a sua bela esposa Nush ao amigo Picasso e quanto a Jacqueline Roque, com quem o pintor se casou em segundas npcias, Richardson no diz muito, mas deixa subentendido, claramente, que ela fisgou o velho polgamo com unhas e dentes, apressando assim o desespero e a morte de MarieThrse, que tambm, por sua vez, tinha l as suas pretenses matrimoniais. Enfim, um amontoado de escndalos no seu paroxismo. Se enfoquei to somente esses aspectos negativos amorosos, foi motivado pela insistncia do prprio Richardson em darlhe um amplo significado. Em geral, a viso restante das anlises cronolgicas dos velhos ritos picassianos excelente e justa, perseguindo sempre a pista de boas e dilatadas elucidaes. Vse que o crtico admirava Picasso sem reservas, conhecendo bem seus amigos, as influncias temperamentais recprocas e, sobre-tudo, a gnese de suas principais obras. Contudo, o mesmo no acontece com as intrujices a propsito do louco amor de Picasso. Ter sido o pintor to louco assim? H qualquer coisa no cerne deste estudo que no me cheira bem, e, no fundo, quem sai chamuscado Picasso. Na minha opinio, o que foi escrito permanece terrvel, mas igualmente belo nas suas indiferenciadas digresses e nas suas encantatrias e definitivas descobertas.O artigo foi lido e medonho como histria e suas inevitveis consequncias. A vida em si j um horror, mas na sua multiplicidade de aspectos acaba por purificar o mal, mantendoo disfarado sob um manto de fantasia, o que no acontece quando se codifica cronologicamente todos os eventos, e se verifica com frieza aquilo que, ainda no tendo nome, poderia cair no esquecimento e jamais ser denominado. luz dessas trs ou quatro pginas de jornal, Pablo Picasso poderia ser tomado isoladamente como monstro, e sua relao ntima ou casual com as mulheres que conheceu, uma verdadeira monstruosidade.Todas essas linhas ou anzis colocados em torno do artista acabaram por fisglo. E, assim, analisado, como um peixe fora dgua, fora do seu meio ambiente e de suas circunstncias vitais, portanto, j sufocado e morto.H poucos meses, nesses mesmos cadernos culturais, li algo semelhante, escrito por James Snyder, outro norteamericano, discorrendo sobre aquilo que chama uma nova imagem de Rembrandt. Na realidade, uma

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    apreciao despropositada, abordando um ensaio de Gary Schwartz sobre o mesmo artista, Rembrandt, His Life, His Painting. Diferentemente do alto conceito de Eugne Fromentin sobre Rembrandt, esse Sr. Schwartz, entre outras preciosidades, comea a nos dizer que o pintor at carecia de talento... De sada, diz ele: Partindo de um estudo exaustivo e acurado de documentos (ser que a vida se resume a uma prova documental?), em sua maioria, relativos aos clientes, o autor fornece um vvido retrato de Rembrandt, caracterizandoo como uma pessoa repugnante e indigna de confiana: vido, ftil, insocivel, grosseiro e arrogante....Certamente, o Sr. Schwartz estava escrevendo uma autobiografia e no um suposto retrato do artista, esquecido de que o sensato Montaigne sabiamente comentara que todo homem carrega em si a forma inteira da humana condio. Afinal de contas, esses enlouquecidos norteamericanos esto nos saindo melhor do que a encomenda. J dizia Durrell, com muito mais propriedade do que John Richardson ou Gary Schwartz et caterva, que tudo o que se disser de um homem (de qualquer pessoa) poder ser verdade. O Santo e o Canalha partilham a realidade. E tem toda a razo Durrell quando completa: Se as coisas fossem sempre o que parecem ser, como se encontraria empobrecida a imaginao dos homens!.

    9 de agosto sbado

    May her foot speaks. Shakespeare Por motivos pessoais, ainda no muito esclarecidos, ininterruptamente, desde o dia 9 de julho at a data de hoje, relendo O Idiota, de Dostoievski, resolvi realizar uma proeza que nada tem a ver com a fico de Borges, Pierre

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    Menard, autor do Quixote, isto , no reproduzi linha por linha as atrozes aventuras do Cavaleiro da triste figura e sim, no dia a dia, entre os momentos da leitura e os vagos acontecimentos dos meus prprios cadernos, misturei os diferentes textos numa desregrada pantomima. Na cena final, tudo sombrio e recende a morte. Nastssia deve permanecer invisvel, sofre daquilo que Santa Tereza de vila, com uma propriedade singular de linguagem, apelidava de o mal da morte. Cumpriu assim o seu destino: O que tem de acontecer acontea.Mesmo no escuro, o prncipe Mchkin acaba ento por discernir o leito todo: Algum nele dormia numa imobili-dade rgida. No se percebia o menor rudo, nem a mais leve respirao. Um lenol branco cobria o dormente da cabea aos ps e mal desenhava a forma dos seus membros; o relevo dos contornos mostrava apenas a presena de um corpo humano. Na extremidade do leito, um monto de rendas brancas deixava passar a ponta de um p nu que parecia esculpido em mrmore e mantinha uma imobilidade aterrorizante....

    10 de agostoPego um antigo caderno comeado em abril de 1974 para uma ligeira reviso. O pouco que vi o bastante para deixarme intranquilo, a comear pela enxurrada de nomes de mulheres que (com honrosas excees) no chego nem a recordar de quem se trata, nem como tais personagens passaram pelas minhas mos. Possivelmente, a partir do prximo dia quinze deste ms, terei a meu servio uma secretria que, entre outras atribuies, me ajudar a datilografar este dirio, cujo incio data de quase quarenta anos e, na verdade, merece correes inadiveis. Por enquanto, posso deixlo de lado. o mais sensato. No compreendo por que M.G. falhou. Que pode ter sucedido a essa criatura dotada de to grande majestade? Que terrvel surpresa iria revelar desde que prometera me deixar atnito com certas coisas que descobrira? Uma longa silhueta vestida de negro, suntuosamente oriental, bailarina at nos dentes e nos cabelos desenvoltos, ventre de catstrofes, ancas de metal. Como diria o poeta, sempre atento a esses monstros sagrados: Seios que avanam mais terrveis do que os anjos do mal.

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    Disseramme que ela me aguardou parte da noite, toda vestida da cor azul profundo e no de negro como supunha. Rodeados de azul, tambm estavam pintados seus pequenos olhos negros e diamantinos. Cabelos escuros, envoltos por prolas cinzentas. Um longo pescoo, adornado de um metal frio e despolido. As costas nuas at a altura das ancas. Meias violetas da cor de certos peixes abissais, que jamais pressentiram a luz do sol; sapatos e bolsa coralinos... Vinda de outros mares, derame o endereo errado. Esperei sfrego diante de um hotel e ela, igualmente agitada, media os passos inquietos, no muito longe de onde me encontrava, mas prxima de um cruel e definitivo desencontro. Antes tivesse faltado. Sabla minha espera foi atroz e, pior ainda, sabla agora perdida para sempre.Perturboume o fato assombroso de verificar o nmero de mulheres que aparecem e desaparecem vertigi-nosamente nos meus cadernos mais antigos, isto , h um pouco mais de dez anos. Figuras sem nome e sem substncia, portanto, verdadeiros fantasmas. Procurar eliminar essas referncias seria o mesmo que anular o prprio passado. E o passado no se apaga sob pena de destruio de todo o presente. o nosso inferno possvel, exaltado pelas prprias iluses erticas, quando se anuncia o inevitvel castigo, pressentido numa infinita continuao, haja vista as pginas de ontem e de antes de ontem. Falase de M.G. e na cor azul. No se faz necessrio ler Sneca para intuir que tudo o que ocorreu e tudo o quanto ocorre um sinal do que vai ocorrer.Retorno indagao: Por que mulheres sem nome? medida que releio os cadernos, tenho sistematicamente cortado cada nome feminino, deixando apenas as letras iniciais. Se cada um deles j dizia pouco, o que falar ento, agora, desses despojos de uma letra s? Acontece que verifico em outros dirios que nem sempre certos nomes podem ser revelados toa, principalmente em se tratando de mulheres alheias, que so levadas por ofcio ou por amor de cama em cama. Alm de tudo, as dificuldades se acentuam na medida em que h uma legio delas (e no algumas poucas) que conseguem entrar em cena... Todas esto l no palco, confusamente embaralhadas e cruel ironia no devem representar papel algum e nem sequer ter um nome. Chamlas apenas pelas iniciais no seria pattico, porquanto cada letra poderia indicar os nomes mais diversos? Criar cdigos ou nomes de guerra tambm no resolve. Enfim, a dificuldade permanece e mesmo insanvel. Eis a uma proposta infernal, evidenciada naquilo que os religiosos chamam abertamente de pecado (um estado de imperfeio que atinge a si prprio e aos outros) e que infantilmente teimamos em no levar a srio.Suponhamos um estranho castigo ou um pesadelo, no qual todas essas conhecidas antigas ou recentes se dispusessem, de uma s vez, a participar de minha vida, cobrandome isso ou aquilo por menos que fosse; uma legio delas porta do meu atelier ou de minha casa, exigindo abertamente reciprocidade ou ento reivindicando aquilo que a imprensa moderna enfatiza como os sagrados direitos da mulher. Um inferno, no verdade? Admitamos uma fbula: Morre um Dom Juan qualquer, que, para o seu prprio espanto, encontrase no Paraso, caminhando entre nuvens de uma arrebatadora claridade. No fundo dessas nuvens, um esboo de tribunal o espera.V os seus juzes, mas no os reconhece. E pior, no h como perguntar quem eles so. Aturdido, imobilizase espera do supremo julgamento. Todos parecem muito afveis e mandamno inclusive sentar, embora ele no visse nenhuma cadeira por perto. Foi quando escutou uma voz suave ressoar, enchendo todo o firmamento: Bem vindo Morada do Senhor, tu que tanto amaste na Terra! No momento, s nosso convidado de honra, e te rogamos que entres, embora necessites de ainda passar por uma pequena formalidade. Explicamlhe que no necessrio perder tempo com detalhes; que seja breve, brevssimo, limitandose a nomear cada um dos seus amores terrenos, fossem eles fortuitos ou durveis. No seria necessrio citar as datas. Apenas nomes. Apavorado, com tamanha exigncia, quer retrucar, mas se apercebe em tempo que no tem mais o dom da fala. Limitase a pensar (ele ainda pensa) numa nica palavra, e esse pensamento atroz seria o equivalente a um grito: Todas?. Ele no se lembrava de nenhuma, nem sequer daquele corpo de puro marfim, tpido e sinuoso, sobre o qual h poucos minutos ele exalara seu ltimo suspiro... Foi quando tombou na escurido para sempre. Tanto quanto Pavese, espanteime de que fosse assim. Tambm como ele, jamais tinha reparado que a

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    maior parte das mulheres com as quais convivi e convivo nestes ltimos trinta anos so prostitutas. Algum lhe chamou a ateno para este fato. Contam que Pavese admirouse disso. Penso agora que j no estremeo em face do segredo, como dizia Mrio de SCarneiro. Que culpa ento posso aceitar se s de ouro falso os meus olhos se douram?.15 de agostoCassimiro Xavier de Mendona intitulou sua reportagem sobre a Oficina Cermica de uma maneira surpreendentemente potica: No reino das mil e uma obras. O fotgrafo Orlando Azevedo, por sua vez, descobriu e demonstrou o inslito, o assombroso e o desmedido de todo esse cenrio, com rara maestria.

    17 de agosto domingo 20h35Na casa do poeta Toms, folheando uma nova edio (traduzida) dos contos de Dostoievski, encontro o famoso Bbok, para mim ainda totalmente desconhecido. Toms confessa no ter nenhuma lembrana da leitura desse conto e logo fica interessado em tomar conhecimento do seu contedo. O notvel crtico russo Mikhail Bakhtin declarou que Bbok , por sua profundidade e ousadia, uma das mais grandiosas menipias em toda a literatura universal. Bakhtin, muito humildemente (quem grande no se humilha), explica, em nota de rodap, o porqu da utilizao do termo genrico menipia. Diz ele: Termos genricos como Epopia, Tragdia e Idlio, aplicados literatura moderna, tornaramse universalmente aceitos e habituais e no nos causam qualquer transtorno quando chamam a Guerra e Paz, epopia; Boris Godunov, tragdia e a Fazendeiros de antanho, idlio.Tenho notcias sobre o caso do pintor norteamericano Andrew Wyeth. Comentase, quase de forma escanda-losa, que este artista, casado durante longos anos com uma avestruz chamada Betsy, veio a se apaixonar por uma seriema chamada Helga e ningum sabe mesmo explicar como esse fato inusitado aconteceu, desde que Helga era guardada na sua quinta por ferozes lees da Jamaica. E fato ainda mais extraordinrio foi o do cavalo texano, que acode pelo nome de Leonardo, ter comprado todas as telas, desenhos e aquarelas do pintor Wyeth, referentes a esse perodo de paixo desenfreada pela seriema Helga Testorf, que entre outras singularidades assim afirma a reportagem nasceu na Finlndia. Esse escndalo foi desencadeado na provinciana cidade de Washington e, sobretudo, chamoume a ateno para a discreta e ao mesmo tempo brbara insolncia desse modelo finlands to longamente contemplado ou mesmo amorosamente detestado, como costuma acontecer nas infindveis lides da libido e do amor. Wyeth soubera, como um perfeito dissimulado misantropo, esconder sua paixo por longos invernos, no fundo de um tico de uma casa de fazenda, compartilhando apenas com camundongos e teias de aranhas o seu inacreditvel segredo. Mas eis que, num dia de fraqueza, achando que a morte estava prxima... Dizem as ms lnguas que o beneficirio de toda essa revelao ser Leonardo, o esperto cavalo texano, visto que, alm dos quadros, ele tambm comprou os direitos para suas reprodues. Graas a isso, ele receber comisses na venda dos posters em museus americanos. 20 de agosto6h30Que este ms nefando acabe. Inovaes nunca so inofensivas.

    21 de agostoEmbora no esteja propenso a enfrentar Bbok depois da demorada convivncia com O Idiota, de Dostoievski, peo auxlio aos fascinantes comentrios de Mikhail Bakhtin, abordando o conto famoso:

    Seu tom vacilante, ambguo, com ambivalncia abafada e elementos de bufonaria satnica (como nos diabos dos mistrios).

    Entre outras observaes, insiste o crtico na anlise das frases truncadas, curtas e categricas, como se o narrador ocultasse propositadamente a sua ltima palavra, esquivandose dela. Ele (o personagem) cita a carac-terizao do seu estilo feita por um amigo: Teu estilo mudo truncado. Truncas, truncas a orao intercalada, depois a intercalada da intercalada, depois intercalas mais alguma coisa entre parnteses e, depois, tornas a truncar, a truncar....

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    Toms Seixas avisoume que tambm, depois da leitura de Bbok, desejava escrever sobre o conto, admi-tindo, contudo, que s um escritor de gnio poderia abordar um assunto to prodigioso.Desesperado, mandei pedirlhe apenas algumas camisas que ainda estavam na sua casa. Mandoume de volta, numa maleta espalhafatosa, todas as roupas de meu uso e outras que nem sequer suspeitava que existissem. preciso ter a firme pacincia de um imperador Marco Aurlio para no ordenar a esta mulher que, em definitivo, v para o inferno! Se no executo esse propsito, na certeza de que Fencia, tanto quanto eu, j vive no inferno. Diante deste fato consumado, no teria nenhuma valia convidla para entrar num recinto onde de h muito ela se encontra. Eis aqui exposto o absurdo da questo, e no h mesmo como evitla ou mudarlhe o rumo. De resto, como explicarlhe a minha incurvel misantropia? De uma maneira geral, o misantropo no um solitrio; ele apenas evita os outros, o que no o meu caso. Tenho a conscincia de que fugir dos outros , em definitivo, ficar cada vez mais s. Enfim, estou mais propenso a aborrecerme com a histria dos outros, incluindo a histria universal. Tudo me fatiga. No apenas uma pequena histria, mas todas as histrias conhecidas. E isso grave, excessivamente grave. Exemplifico: detestei Bbok tanto quanto detestei Antnio e Clepatra, no impor-tando que sejam duas obrasprimas ou no... No momento, o mais prudente calarme e no continuar a dizer sandices. Hoje compreendo muito bem por que Joseph Conrad odiava Dostoievski. E foi lendo Bbok... Eu gostaria de ver... No, no propriamente isto o que me preocupa, e que agora se faz necessrio confessar: dormia eu essa tarde, por volta das quatro horas, quando fui acordado pelo telefone. E, ao levantarme, ainda estremunhado, pensei comigo: detestei Bbok. Logo em seguida, recordei uma outra histria que me fizera rir, com a vaga impresso de que s podia ser algo sado da cabea de Ionesco (ou de um sujeito como ele). Qual era essa histria? Bem, a histria curta, mas bastante significativa e se resume na briga entre dois irmos. O irmo ofendido narra a desfeita do outro, a sua inominvel ousadia e o seu abuso de confiana, quando esse, ao chegar sua casa, na frente de sua mulher e de outros amigos, expressandose num outro idioma, disse... Bem, ele disse o seguinte: Mes amis, Jai une puce. Je vous rends visite dans lespoir de laisser la puce chez vous.

    22h25Demonstrando interesse, Cassimiro Xavier de Mendona telefona, procurando saber se tomei conhe-cimento da reportagem No reino das mil e uma obras. Como descobriu que a esta hora da noite eu estaria na Oficina? Ser que desconfia do segredo ainda no revelado a no ser a pouqussimas pessoas? Ou ele j sabia de tudo quando afirmou no seu texto: Brennand quase um minotauro encurralado pelo seu prprio labirinto.? 23h11A fim de amenizar a desagradvel impresso deixada aps a leitura de Bbok, peguei um conto conhecido, O sonho de um homem ridculo, alis tambm considerado por Bakhtin como uma obraprima no gnero por ele denominado de menipias. O lado terrvel, a meu ver, de Bbok aquele em que o narrador se apercebe de que o elemento corrompido perdura aps a morte: A depravao em semelhante lugar, a depravao das supremas esperanas... e que no poupa sequer os ltimos momentos da conscincia.

    Acontece que este lado assustador ainda moral e perfeitamente de acordo com o esprito de Dostoievski. Quanto ao aspecto monstruoso do conto (ou to somente desagradvel), est todo situado na irreverncia para com os mortos, de resto, quem sabe, necessria para afinar o tom desejado pelo escritor que, regendo to dissoluta orquestrao, contribui, assim, para abrir definitivamente os olhos dos vivos, aguando os seus ouvidos e sentidos diante da absurda e ridcula precariedade de suas existncias.Essa promscua convivncia com os mortos prpria da Idade Mdia, dos seus mistrios, de suas farsas etc.

    22 de agosto 6h da manh Eurpedes: No adianta agastarse com as coisas; elas no fazem caso nenhum.

  • Inicia sua formao em 1942, aprendendo a mode-lar com Abelardo da Hora (1924). Posteriormente, recebe orientao em pintura de lvaro Amorim (19?) e Murilo Lagreca (18991985). No fim dos anos 1940, pinta principalmente naturezasmortasflores e frutos que parecem flutuar no espao pictrico, com linhas simplificadas e cores puras. Em 1949, viaja para a Frana, incentivado por Ccero Dias (19072003). Frequenta cursos com Andr Lhote (18851962) e Fernand Lger (18811955) em Paris, em 1951. Nessa cidade, conhece Jon Mir (18931983) e Pablo Picasso (18811973), cujas obras o incentivaram a fazer da cermica seu principal meio de expresso artstica. Entre 1958 e 1999, realiza diversos painis e murais cermicos em vrias cidades do Brasil e dos Estados Unidos. Em 1971, inicia a restaurao de uma velha olaria de propriedade paterna, quase abandonada, prxima ao Recife, transformandoa em um ateli, que povoa de seres fantsticos, representados em relevos, painis, objetos cermicos e esculturas. Em 1993, realizada grande retrospectiva de sua produo na Staatliche Kunsthalle, em Berlim. publicado o livro Brennand, pela editora Mtron, com texto de Olvio Tavares de Arajo, em 1997. Em 1998, realizada a retrospectiva Brennand: Esculturas 19741998, na Pinacoteca do EstadoPesp, em So Paulo. Desde os anos 1990, so lanados vrios vdeos sobre sua obra, entre eles, Francisco Brennand: Oficina de Mitos, pela Rede Sesc/Senac de Televiso, em 2000.O artista trabalha a cermica no s com a forma, mas tambm com a cor. Obtm uma grande quantidade de tonalidades por meio das variaes de temperatura que atuam sobre os pigmentos durante a queima das peas.As esculturas de Brennand apresentam o carter de ttens, ou se relacionam a signos da tradio popu-lar. Em muitas obras, apresenta criaturas aterradoras, monstros, seres deformados ou que revelam um car-ter trgico. Algumas esculturas esto ligadas a rituais de fertilidade, de culturas arcaicas, apresentando um carter fortemente sexual. Produz figuras que fre-quentemente tm um aspecto trgico, cuja estranheza acentuada pelo acabamento rude.

    FRANCISCO BRENNANDCeramista, escultor,

    desenhista, pintor, tapeceiro, ilustrador, gravador

    24 de agostoNa madrugada de domingo, vinte e quatro de agosto de mil novecentos e oitenta e seis, como uma princesa dos Scubos, ela acor-doume (com todo o seu peso), sentada em cima de mim, laboriosamente empenhada em recons-truir o mundo sua maneira. Nesta extravagante posio, mantevese absorta por muito tempo, como se realizasse um trabalho domstico qual-quer, com trejeitos solitrios de um pndulo que oscila. s vezes, os seus braos livres se uniam s de um lado do meu corpo e as mos, igualmente unidas, riscavam algo no lenol, como se procurasse, num ponto predeterminado, um objeto perdido e curioso, sempre parecendo encontrlo e, logo, clere, levantava as mos de pssaro, ainda unidas, acima da cabea, numa atitude ao mesmo tempo de dana e de prece, como se fosse uma bailarina de Java em pleno ritual. No demorei a compreender que a minha obrigao era a de no fazer perguntas e, assim, abstiveme de interrogla, deixando o tempo fluir no seu ilusrio e obscuro desgnio de eternidade. Ento o nosso Kafka confessa, no sem um certo orgulho, que, no dia sete de janeiro de mil nove-centos e doze, deveria posar nu para um So Sebastio, a pedido do pintor Ascher!

    1 de setembroMorre Henry Moore. Estamos todos morrendo um pouco a cada dia. Ontem, abateuse o fatal sobre Moore, aos oitenta e oito anos. Mas, neste caso, no importa a idade. Importa o sal da terra que pouco a pouco se esgota, e no voltar.

    2 de setembro O meu permanente espanto diante da incrvel engenhosidade animal das mulheres, por vezes, levame a indagar como Robert Louis Stevenson, no seu ltimo livro Weir Of Kermiston: Se h uma alma em Cristina, ou se no mais que um animal da cor das flores. Nas duas vezes em que peguei nos pincis, por duas vezes, fui derrotado, o que quer dizer: por duas vezes, nada consegui expressar nesses dois ltimos dias, como, por exemplo, o anel braso-nado que no possuo.

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    Uma das marcas da Festa Literria Internacional de Pernambuco Fliporto a constante renovao que transparece com muito fervor em todas as suas edies. Neste ano

    em que comemora os seus dez anos de existncia ininterrupta, a Fliporto reinventase, permane-cendo uniforme na sua essncia e no seu hbito de diferenciar. Amplia o seu pertencimento cidade que a acolhe com a qualidade que seu pblico exige e merece. Transformarse para melhor uma caracterstica permanente da Fliporto. Chegamos juntos aos dez anos e queremos manter esta parceria por muitas dcadas ainda.Em 2014, uma das mais belas igrejas barrocas do Brasil, a do Mosteiro de So Bento, em Olinda, (remonta aos primeiros anos da colonizao portuguesa neste pas), ser parte integrante da Fliporto, quando se dar a abertura e o encer-ramento do Congresso Literrio, que homena-geia o escritor, acadmico da ABL e dramaturgo, Ariano Suassuna. O congresso literrio, um dos pontos de relevo da Festa, funcionar no tradi-cional Colgio de So Bento. O Colgio est profundamente inserido no Mosteiro. Ele est na linha de continuidade cultural para a qual o Mosteiro sempre se abriu. A Igreja e o Mosteiro de So Bento perfazem um famoso complexo arquitetnico, tombado como Patrimnio Histrico e Cultural da Humanidade, pela UNESCO. Foi sombra desse Mosteiro e de sua Igreja, que se iniciaram os cursos Jurdicos do Pas e onde viveu como leigo, Bento Teixeira, autor da Prosopopeia. No mesmo local, em 1912, foi fundada pelos monges a 1 Escola de Agronomia e Veterinria da regio. No bastasse a grandeza histrica desse patrimnio cultural, nossos visitan-tes tero a oportunidade de conhecer o altarmor da Igreja, um dos mais belos exemplos de arte barroca de inspirao religiosa, que esteve em exposio durante oito meses em Nova York, levado pela Fundao Solomon R. Guggenheim.O tema de 2014, Literatura coisa de Cinema, pe em evidncia um dos dilogos mais frequen-tes e de imenso alcance da literatura: o Cinema.

    Da primeira histria contada ao primeiro filme rodado, a imagem e o movimento escancaram um casamento nada suspeitoso do cinema com a literatura, quadro a quadro, palavra a palavra. Relao to ntima e to natural que fez o mestre Ariano Suassuna tambm escrever um roteiro para filme, O Sedutor do Serto, e a dizer a um dos maiores cineastas brasileiros, Glauber Rocha:

    Os espetculos populares do Nordesteo bumbameuboi, o auto dos guerreiros, a nau catarineta, etc.poderiam fornecer ao teatro e ao cinema nordestinos as roupagens imaginosas, a msica, a dana, as lutas de espada, as mscaras, as histrias, os heris e os mitos que lhes dariam esprito realmente brasileiro, como acontecera com o Teatro Nacional e Popular Japons, em relao ao cinema pico de samurai.A literatura e o teatro de Ariano em forma de filme e diversos outros autores, diretores, roteiristas mostraro em novembro na Fliporto que no s a literatura coisa de cinema e para cinema, mas que o cinema seduz e seduzido pelas grandes histriasestrias, com e sem cmera, a luz, a ao, a imaginao.A Feira Internacional do Livro/Fliporto 2014 se amplia. A procura, iniciada em 2013, de novos espaos, obrigou a sua coordenao a criar novos ambientes de acesso, exposio e conforto, com o dobro de expositores e de lanamentos. Pela primeira vez, este ano, sero concedidos bnus para uso exclusivo dos estudantes da rede pblica de ensino. Por tais razes, a Feira permanecer na rea de eventos do stio histrico do ptio do Carmo. Ali, escritores, editores, livreiros nacionais e estrangeiros vo discutir, trocar ideias com anima-dos batepapos, com o pblico de todas as idades.A identidade cultural da Fliporto, apontada pela revista Isto como uma das trs mais importantes do Brasil, ser mantida com uma programao que vai ser primorosa a partir do seu grande tema e com a presena de convida-dos nacionais e estrangeiros.

    ANTNIO CAMPOSPresidente do Conselho Cultural da Fliporto

  • DIA 13 DE NOVEMBRO19h30ABERTURA:Lya Luft e Vicente de Britto Pereira: O valor da vidaDIA 14 DE NOVEMBRO15hCludio Assis, Xico S e Hilton Lacerda:Cinema e literatura: casamento suspeitoso, unio estvel ou de convenincia?17hHwang Sun Mi, Brulio Tavares e Adriana Falco:Escrever com alegria: a imaginao e a fantasia na literatura19hHomero Fonseca, Rodrigo Garcia Lopes e Antnio Cabrita:Suspense, mistrio e enigma na arte de contar histriasDIA 15 DE NOVEMBRO15h Samarone Lima, Geneton Moraes Neto:Prefiro Tolstoi: Ariano Suassuna e os leitores 17hCarina Rissi e Valrio Romo:Mais que bemmequer: felicidade e malestar em famlia na literatura18h30Mesa especial em homenagem a Raimundo Carrero:Coordenao de Marcelo Pereira. Palestrantes: Eliene Medeiros da Costa, Priscila Varjal e Rafael Monteiro20hMartin Sixsmith conversa com Silio Boccanera:A incrvel e triste histria de Philomena e as freiras desalmadas

    PROGRAMAO DO 10 CONGRESSO LITERRIO INTERNACIONAL DE PERNAMBUCOFLIPORTO 2014

  • DIA 16 DE NOVEMBRO16hCarlos Newton Jr., Adriana Falco e Brulio Tavares:Ariano Suassuna: do teatro ao romance e do romance ao cinema18hLoureno Mutarelli, Ondjaki e Joo Paulo Cotrim:Roteiro, narrativas e imagens: as tcnicas do cinema e da literatura: aproximaes e distanciamentos20hENCERRAMENTO: Palestra de Raimundo Carrero em homenagem a Ariano Suassuna e concerto de Antnio Jos Madureira

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    Texto ANCO MRCIO TENRIO VIEIRA**

    No dia 21 de julho de 1949, muitos recifensesa exemplo de Ariano Suassuna, Tales Ramalho, Duarte Neto, Jos Laurnio de Melo, Guerra de Holanda, Antnio Pinto de Medeiros, Genivaldo Wanderley, Carlos Frederico Maciel e Gasto de Holandaacorreram ao Salo Nobre da Faculdade de Direito do Recife. O que os movia naquela noite era a anunciada palestra

    Roman et rvolte (Romance e revolta) que o escritor argelino Albert Camus (19131960) iria proferir. O filsofo chegara ao Recife no comeo da tarde daquele mesmo dia e fora recebido no Aeroporto por uma delegao composta, entre outros, por trs representantes do Consulado Francs no Recife (Os trs franceses que esto ali tm todos mais de um metro e oitenta. Estamos bem representados, escreveria um irnico Camus em seu Dirio de viagem).1 Instalado

    * Agradeo ao Professor e amigo Saulo Neiva, da lUniversit BlaisePascal (ClermontFerrand 2), pela disponibilidade em digitalizar e enviar o material bibliogrfico solicitado por ns para a confeco deste artigo. Sem a sua ajuda, muitas das dvidas que vinha alimentando sobre a autenticidade e o ineditismo da palestra perdida de Albert Camus no teriam sido dissipadas. De alguma forma, este artigo tambm de Saulo Neiva.

    ** Anco Mrcio Tenrio Vieira professor do Programa de PsGraduao em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).1 CAMUS, Albert. S.d. Dirio de viagem. 2a ed. Traduo de Valerie Rumjanek Chaves. Rio de Janeiro: Record, p. 102.

    A Florena dos trpicos e a histria de um texto (quase) perdido*

    ALBERT CAMUS,

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    no Grande Hotel, em quarto onde as janelas davam para o velho bairro do Recife e o Cais de Santa Rita, tenta dormir: em vo.2 O cansao e a excitao no o deixam descansar. No final da tarde, por volta das quatro horas, sai, a convite do jornalista Anbal Fernandes, do Diario de Pernambuco, para fazer um passeio pelos bairros da Boa Vista, Santo Antnio e So Jos. Visita os seus monumentos histricos, particularmente as igrejas barrocasigrejas coloniais admirveis3, como a Capela Dourada e o Ptio de So Pedro. Mas no apenas as igrejas so objetos da sua admirao: a cidade antiga, as casinhas vermelhas, azuis e ocres, as ruas caladas com grandes pedras pontiagudas4 encantam tambm os seus olhos.Albert Camus chegara ao Recife, vindo do Rio de Janeiro, onde aportara seis dias antes, em 15 de julho. O Recife era a segunda etapa de um priplo de quarenta e cinco dias, entre palestras

    2 CAMUS (S.d., p. 102).3 CAMUS (S.d., p. 102).4 CAMUS (S.d., p. 102).

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    e contatos intelectuais, por algumas cidades da Amrica do Sul. Depois do Recife, Camus per-maneceria dois dias em Salvador: 23 e 24 de julho. Da capital baiana, retornaria novamente ao Rio de Janeiro, l permanecendo entre 25 de julho e 2 de agosto. Da seguiria para So Paulo (2 a 9) e Porto Alegre (9 e 10). As prximas etapas seriam as capitais da Argentina (12 a 14), Chile (14 a 19) e Uruguai (10 e 11). De Montevideo, voltaria novamente ao Rio de Janeiro (de 21 a 31), onde embarcaria para a Frana, no dia 31 de agosto. Na primeira passagem pela ento capital do Brasil, conheceu uma parte significativa da inte-lectualidade brasileira, assistiu a uma cerimnia de macumba, ao lado de Abdias Nascimento, e pronunciou no dia 20 de julho, na sede do Ministrio da Educao, a sua primeira con-ferncia em terras brasileiras: Le temps des meurtriers (O tempo dos assassinos). Esta mesma palestra seria lida tambm em Salvador, So Paulo e Santiago (respectivamente nos dias 23 de julho, 8 e 15 de agosto). Com o ttulo modificadoNous somes des meurtriers (Ns somos os assassinos)voltaria a tratar do mesmo tema na cidade de Montevideo, em 20 de agosto.5 Na sua segunda passagem pelo Rio de Janeiro, leu, em 1 de agosto, no Ministrio das Relaes Exteriores, o ensaio Un moraliste de la rvolte: Chamfort (Um moralista da revolta: Chamfort). Volta a esse mesmo ensaio nas conferncias do Museu de Arte Moderna, de So Paulo, do Instituto Francs, de Santiago, e do Local dos Amigos das Artes, em Montevideo (respectivamente nos dias 8, 17 e 20 de agosto). Na capital paulista,

    Un moraliste de la rvolte: Chamfort apresentado com o ttulo levemente alterado: Un moraliste franais: Chamfort (Um moralista francs: Chamfort). Mas de todas as palestras (seis, ao todo) lidas e debatidas por Camus ao longo da sua viagem, a que mais suscitou, e vem suscitando, a ateno dos que se debruaram e se debruam sobre a sua obra foi a conferncia lida na Faculdade de Direito do Recife. O motivo de tanta ateno que, depois de ser saudado pelo dramaturgo Hermilo Borba Filho (o texto de saudao seria publicado no Jornal do Commercio trs dias depoisCamus, nosso irmo),6 o autor de O Estrangeiro, contrariando as expectativas daqueles que foram vlo e ouvilo discorrer sobre Roman et rvolte, deixou de lado o tema em pauta e falou sobre um assunto comple-tamente diverso do que fora noticiado pelos organizadores do evento. Segundo o Diario de Pernambuco, em matria publicada no dia seguinte ao acontecimento (22 de julho), apesar de Camus no ter abordado o tema que fora anunciado, ele fez uma anlise profunda e lcida sobre a crise da Europa, pesquisandolhe as causas e apontando os remdios. Terminou fazendo consideraes sobre a posio dos artistas e escritores no mundo atual.Da palestra que Camus no proferiu para os pernambucanosRoman et rvolte seus leitores s tero conhecimento dois anos depois, em 1951, quando ele publicou Lhomme rvolt (O homem revoltado). Neste livro, encontramos no IV CaptuloRvolte et arttrs subcaptulos:

    Rvolte et style, Cration et rvolution e a conferncia que fora noticiada no Recife: Roman et rvolte.7 Por que Camus no leu esse ensaio? No sabemos. Nada nos informam os jornais pernambucanos da poca sobre as causas que o levaram a mudar de tema na ltima hora, muito menos encontramos alguma pista em seu citado Dirio de viagem. Da sua parte, tudo que nos dado conhecer sobre o evento na Faculdade de Direito est registrado em uma frase lacnica:

    Depois do jantar, conferncia diante de uma centena de pessoas, que, ao sarem, tm um ar de muito cansadas. Frase que seguida por uma declarao sobre a cidade: Positivamente, gosto

    5 A conferncia em Salvador se deu na Secretaria de Educao; em So Paulo, na Escola Caetano de Campos; em Santiago, na Universidade do Chile; em Montevideo, na Universidade da Repblica do Uruguai.6 BORBA FILHO, Hermilo. Camus, nosso irmo, Jornal do Commercio, Recife, 24 de julho de 1949, Caderno 2, pp. 2 e 5.7 CAMUS, Albert. 1951. Roman et rvolte. In:. Lhomme rvolt. Paris: ditions Gallimard, pp. 319336 (Collection NRF).

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    do Recife. Florena dos trpicos, entre as suas florestas de coqueiros, suas montanhas vermelhas, suas praias brancas.8 Apesar de Camus nada registrar sobre os motivos que o levaram a falar sobre assunto distinto daquele que fora anunciado, podemos levantar duas hipteses: Primeira: quando confirmou aos organizadores da sua viagem os ttulos das palestras que iria proferir no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, Camus podia ainda estar escrevendo Roman et rvolte. Como no o concluiu a tempo, ele o substituiu por outro texto. Segundo: como em 1949 Camus j vinha gestando o livro Lhomme rvolt, ele teria optado por deixar de lado o seu textonaquela altura, concludo, mas ainda inditoe, em sua substituio, trazido na bagagem outro ensaio j acabado.Mas se tais hipteses so ou no so plausveis, elas, no entanto, no respondem a pergunta que conti-nua a perseguir todos que se debruaram e se debruam sobre a sua viagem Amrica Latina: qual foi o texto, afinal, que Camus leu no Recife na noite do dia 21 de julho de 1949? Fernande Bartfeld, da Universidade Hebraica de Jerusalm, empreendeu nos anos de 1990 uma longa pesquisa sobre esse priplo de Camus Amrica do Sul, resultando no livro Albert Camus: voyageur et conferencier: le voyage en Amerique du Sud.9 Nesta obra, ela levanta no s as reportagens que foram publicadas nos jornais e revistas das cidades visitadas pelo escritor argelino, como tambm resgata e publica algumas das palestras que at ento permaneciam inditas ou quase inditas em livro. No entanto, para a nossa decepo, ela nada acrescenta ao que j sabamos sobre a conferncia de Camus no Recife: o texto por desgraa [est] perdido, assinala enfa-ticamente a pesquisadora.10 O fato que, ao perquirir as palestras que Camus proferiu na Amrica do Sul, notase que a substituio de uma conferncia por outra no foi a nica dor de cabea que ele legou aos que estudaram ou vm estudando essa sua viagem; muitas outras questes surgem quando

    8 CAMUS, Albert (S.d., p. 103).9 BARTFELD, Fernande. Albert Camus: voyageur et conferencier: le voyage en Amerique du Sud. Paris: Archives des lettres modernes (n 263).10 BARTFELD, Fernande (op. cit., p. 38).

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    investigamos em verticalidade os ttulos, os contedos e o ineditismo dos textos apresentados aos sulamericanos naqueles meses de julho e agosto de 1949. Vamos a essas questes.1. Duas das conferncias de Camusas que foram lidas em 8 e 22 de agosto, respectivamente, em So Paulo e no Rio de Janeiro (neste caso, a penltima que ele pronunciou antes de retornar Frana)so objetos de controvrsias. No caso da conferncia de So Paulo, Fernande Bartfeld no sabe se na ocasio ele leu Un moraliste franais: Chamfort ou Roman et rvolte; no caso do Rio de Janeiro, o ttulo da palestra desconhecido e Bartfeld aposta na leitura de Roman et rvolte.11 Caminhando por uma linha de interpretao oposta de Fernande Bartfeld, acreditamos que Roman et rvolte est totalmente descartvel como hiptese, pois se Camus declinou da sua leitura no Recife, qual motivo o levaria a ler esse ensaio em So Paulo e no Rio de Janeiro? Porm, como estamos no campo da hiptese, prefiro apostar em outro ttulo. Como Le temps des meurtriers e Un moraliste de la rvolte: Chamfort j eram palestras conhecidas do pblico carioca (a primeira, lida em 20 de julho; a

    segunda, em 1 de agosto), pro-vvel que Camus tenha optado por ler o nico dos textos que ainda permanecia indito para o leitorouvinte da ento Capital Federal: LEurope et le crime (A Europa e o crime)ensaio que lera no Instituto de Belas Artes, de Porto Alegre, em 9 de agosto. Outra hiptese que ele teria lido o mesmo texto que pronunciara no Recife em substi-tuio a Roman et rvolte.2. Camus, como j assinala-mos, no s voltava aos mesmos ensaios nas diversas conferncias pelas capitais da Amrica do Sul, como os reapresentava com ttulos levemente modificados. Assim, Le temps des meurtriers

    e Un moraliste de la rvolte: Chamfort foram, respectivamente, reapresentados como Nous somes des maurtriers, em Montevideo, e Un moraliste franais: Chamfort, em So Paulo. Nessa troca de nomes, fica uma indagao: at que ponto as mudanas nos ttulos dos ensaios tambm vinham acompanhadas de alteraes nos seus contedos? Temos algumas pistas. Continuemos.3. No caso de Le temps des meurtriers, que permaneceu indito em livro at o ano de 1995, Fernande Bartfeld descobriu nos arqui-vos de Camus que existiam duas verses datilografadas do mesmo ensaio. Uma, com 23 pginas, trazia correes feitas pelo prprio autor; outra, com 20 pginas, fora mais uma vez rebatizada, agora com o ttulo de Les embarras de la violence (Os embaraos da

    11 BARTFELD, Fernande (op. cit., p. 4243).

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    violncia). Bartfeld optou por publicar a verso que trazia o ttulo Le temps des meurtriers e inseriu no corpo do texto as correes assinaladas em lpis por Camus.12 O mesmo procedi-mento ocorreu com Un Moraliste de la rvolte: Chamfort, que foi traduzido por Maria da Saudade Corteso e publicado, em 14 de agosto daquele mesmo ano de 1949, em Letras e Artes (isto , treze dias depois de ser lida por Camus no Rio de Janeiro, e antes de ser relida em Santiago e Montevideo, respectivamente, nos dias 17 e 20 de agosto). Outra variante desse texto, com passagens diversas da verso que fora publicada em Letras e Artes, foi encontrada por Fernande Bartfeld no esplio de Camus, trazendo anotaes do prprio autor. Foi esta verso que Bartfeld escolheu para publicar em seu citado livro.134. Por fime este o ponto que mais nos interessa aqui, alguns dos ensaios lidos por Camus no eram inditos: ou tinham sido editados anteriormente ou eram desdobramentos ou ampliaes de temas j tratados e publicados por ele. o caso das palestras Un moraliste de la rvolte: Chamfort e Un moraliste franais: Chamfort, ambas retomavam um texto que Camus publicara em 1944: Introduction aux maximes de Chamfort.14 Outro exemplo podemos colher da sua passagem por Buenos Aires, em 13 de agosto. Apesar do anncio da conferncia, Camus declinou da palestra. O motivo foi que a ditadura peronista exigia que o seu texto fosse subme-tido a uma censura prvia. Camus se negou a compartilhar com tal arbitrariedade. No entanto, em encontro fechado com a imprensa, ele entregou aos jornalistas o ensaio que trouxera para ler em Buenos Aires: Nous autres meurtriers. Talvez os jornalistas argentinos no soubessem, mas o texto que fora depositado em suas mos no era indito, tinha sido publicado trs anos antes, em 1946, no terceiro nmero (nov/dez) da revista Franchise, que trazia como tema o

    Temps des assassins (Tempo dos assassinos), e encerrava, alm da colaborao de Camus, ensaios de JeanPaul Sartre, Aldous Huxley, Albert Einstein, Emmanuel Mounier, Teilhard de Chardin e Brice Parain. No entanto, a questo do ineditismo ou no do texto que ia ser lido no se restringia a Nous autres meurtriers, ele se estendia tambm s citadas palestras Le temps des meurtriers e Nous somes des maurtriers. Com os ttulos levemente alterados, esses dois textos retomavam e ampliavam as ideias centrais de Nous autres meurtriers.

    IILer uma palestra publicada, ler a mesma palestra, alterando apenas os ttulos, ou mesmo desen-volver um tema j editado em revista foi uma constante na passagem de Camus pela Amrica do Sul. E foi se valendo desse expediente que Camus substituiu, no Recife, Roman et rvolte por um outro texto. Mas por qual texto? esta pergunta que vamos elucidar agora. Apesar do livro de Fernande Bartfeld ser a obra mais bem documentada sobre a viagem de Albert Camus Amrica do Sul, o fato que a sua pesquisa no encerrou todos os jornais e revistas publicados nas cidades que foram visitadas por Camus, o que resultou em prejuzos nos resultados obtidos na pesquisa. No caso especfico do Recife, entre os vrios jornais que circulavam nos Anos de 1950, o nico peridico que foi objeto da sua ateno foi o Diario de Pernambuco. Como este matutino s cobriu a viagem de Camus durante os trs dias em que ele permaneceu na cidade21, 22 e 23 de julho, muitas informaes referentes sua estadia no Recife esto ausentes do seu estudo. Informaes essas que foram registradas por

    12 CAMUS, Albert. 1995. Le temps des meurtriers. In.: BARTFELD, Fernande. Op. cit., pp. 7489.13 CAMUS, Albert. 1995. Un Moraliste de la rvolte: Chamfort. In.: BARTFELD, Fernande. Op. cit., pp. 5073.14 CAMUS, Albert. 1944. Introduction aux maximes de Chamfort. In.: CHAMFORT, SbastienRoch Nicolas de. Maximes et anedoctes. Mnaco: ditions Dac.

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    outros rgos da imprensa local, a exemplo do Jornal do Commercio. Neste, responsvel pela melhor e mais abrangente cobertura da sua passagem em terras pernambucanas, o primeiro artigo sobre Camus datado de 21 de julho e registra a sua palestra no Ministrio da Educao, no Rio de Janeiro, no dia anterior sua chegada ao Recife. No dia seguinte (22), lemos um artigo de Jos Lins do Rego, intitulado Albert Camus,15 em que o autor de Menino de engenho comenta as agradveis impresses que teve do escritor argelino durante o jantar que Lcia Miguel Pereira e Octvio Tarqunio de Sousa ofereceramlhe em sua casa, no Rio de Janeiro. No dia 24, sai a citada apresentao de Hermilo Borba Filho na Faculdade de Direito do Recife e, no dia 28, o jornal publica artigo de Guilherme de Figueiredo: Camus encontra o absurdo.16 Assim, enquanto o Jornal do Commercio continuava publicando artigos sobre Camus, os demais jornais do Recife encerravam os registros sobre a sua viagem no dia 23 de julho. Foi assim com o Diario de Pernambuco, que ps termo cobertura com a publicao do artigo de Slvio MacedoA conscincia lcida de Albert Camus,17 e com o Jornal Pequeno, que se limitou a registrar a visita apenas nos dias 21 e 22. O Jornal do Commercio foi o nico jornal que continuou, at o dia 28 daquele ms de julho, a tornar pblicos artigos sobre o escritor argelino, assim como tambm foi responsvel por imprimir em suas pginas tanto a apresentao de Hermilo Borba Filho na Faculdade de Direito quanto, no dia 31 de julho, a palestra lida por Camus no Recife. A famosa palestra dada como perdida por todos os que pesquisaram a sua viagem tinha sido publicada no Jornal do Commercio, em seu suplemento literrio de domingo. Seu resguardo e esquecimento nas pginas do peridico recifense se explicam pelo fato de que os raros pesquisadores que se voltaram para os jornais e revistas da poca, buscando encontrar os registros da passagem de Camus pela Amrica do Sul (registros que complementariam o seu Dirio de viagem), como exemplo Fernande Bartfeld, ou se ativeram apenas a perquirir um nico rgo de imprensa (no caso de Bartfeld, o Diario de Pernambuco), ou, quando buscavam diversificar as publicaes, paravam a pesquisa no dia 23 de julho, data em que Camus partira para Salvador. S a pura e simples curiosidade em continuar lendo o Jornal do Commercio, particularmente o seu suplemento literrio de domingo, levaria o pesquisador a descobrir o ensaio LArtiste et son temps (O artista e o seu tempo). Texto que o tradutor brasileiro batizou de O Escritor e a nossa poca.18 Com a publicao de O Escritor e a nossa poca, o Jornal do Commercio fizera, com o ensaio de Camus, o que o jornal Letras e Artes faria quatorze dias depois com Un Moraliste de la rvolte: Chamfort: atraa para as suas pginas, aproveitando o calor da hora, os leitores de Camus, tanto os que ouviram a conferncia quanto os que no puderam estar l. No caso do artigo lido no Rio de Janeiro, a traduo, como vimos, ficara a cargo de Maria da Saudade Corteso (esposa do poeta Murilo Mendes); o texto lido no Recife teve a traduo assinada por Jos Sanz, pseudnimo de Srgio Barreto de Leite, crtico de literatura e de cinema, tradutor e livreiro, e futuro diretor da cinemateca do Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro.No entanto, assim como ocorreu com a palestra que seria lida em Buenos AiresNous autres meurtriers, a conferncia do Recife tambm no era indita, tinha sido lida por Camus em novembro de 1948, na Salle Pleyel, em Paris, em um encontro internacional de escritores, e publicada em 20 de dezembro do ms seguinte na La Gauche, com o ttulo de Le tmoin de la libert (A testemunha da liberdade). Em 1950, esse texto seria recolhido ao seu livro Actuelles I.19 Por que, ento, o texto publicado no Recife saiu com um ttulo distinto daquele que foi editado em La Gauche? Talvez pelos mesmos motivos que levavam Camus a renomear todas as demais palestras (inditas ou no) que proferiu na Amrica do Sul: aproximar melhor o ttulo tanto do contedo manifesto quanto do pblico que ia ouvilo ou llo; ou mesmo, como vimos, reescrever, ampliar, redimensionar as suas ideias e reflexes, porque os seus ensaios eram um constante work in progress. Do mesmo modo que

    15 REGO, Jos Lins do. Albert Camus, Jornal do Commercio, Recife, 22 de julho de 1949, pp. 2 e 5.16 FIGUEIREDO, Guilherme de. Camus encontra o absurdo, Jornal do Commercio, Recife, 28 de julho de 1949, Caderno 2, p. 2.17 MACEDO, Slvio de. A Conscincia lcida de Albert Camus, Diario de Pernambuco, 23 de julho, p. 2.18 CAMUS, Albert. O Escritor e a nossa poca. Jornal do Commercio, Recife, 31 de julho de 1949, C. Segunda Seco, pp. 2 e 4, traduzido do francs por Jos Sanz.19 CAMUS, Albert. 1950. Le tmoin de la libert. In.: Actuelles Icrits politiques (croniques 19441948). Paris: ditions Gallimard, p. 205216.

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    ele determinou que o seu texto publicado na Letras e Artes trouxesse o ttulo Un Moraliste de la rvolte: Chamfort em vez de Un Moraliste franais: Chamfort, por achar que o primeiro ttulo traduzia melhor as ideias desenvolvidas no seu ensaio, ele tambm preferiu que a sua palestra do Recife fosse publicada como

    LArtiste et son temps, e no como Le tmoin de la libert, como sara publicado no ano anterior na Frana. Por fim, mais do que relevante registrar que o ttulo LArtiste et son temps tornouse to caro a Camus que ser retomado por ele em duas outras ocasies. Uma, em uma autoentrevista publicada em 1953 no seu livro Actuelles II.20 Ele batizou essa autoentrevista de LArtiste et son temps. Outra, em 14 de dezembro de 1957, quando da sua passagem pela Sucia para receber o Prmio Nobel de literatura. A palestra que far no anfiteatro da Universidade de Uppsala tambm se chamou: LArtiste et son temps.21 Lendo os dois textos (o do Recife e o de Uppsala) e, apesar de breve, a sua autoentrevista, vemos que esses textos no s versam sobre o mesmo assunto, como retomam passagens e se intertextualizam. A palestra lida na Salle Pleyel, em Paris, depois relida e republicada em Recife e, por fim, retomada em suas ideias centrais em uma autoentrevista e em uma conferncia na Universidade de Uppsala, revelam no apenas uma das obsesses de Camuso papel do escritor e do intelectual com as questes polticas e sociais do seu tempo, mas tambm explicitam a angstia de um escritor e filsofo que tinha nas questes do seu tempo a matriaprima da sua obra, o verdadeiro sentido da sua existncia e convivncia entre os homens.

    20 CAMUS, Albert. 1953. LArtiste et son temps. In:. Actuelles IIchroniques 19481953. Paris: ditions Gallimard, pp. 173182 (Collection NRF).21 CAMUS, Albert. 1958. LArtiste et son temps. In:. Discours de Sude. Paris: ditions Gallimard, pp. 2470 (Collection NRF).

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    Vivemos numa poca em que os homens, compe-lidos por ideologias ferozes e medocres, acostu-mamse a ter vergonha de tudo. Vergonha deles prprios, vergonha de ser felizes, de amar, de criar. Uma poca na qual Racine coraria por causa de Brnices, e Rembrandt se penitenciaria por ter

    pintado A Ronda Noturna. Os escritores e os artistas de hoje tm, portanto, a conscincia inquieta e moda entre ns fazer com que seja desculpada a nossa profisso. Na verdade, somos ajudados nisso com um certo empenho. De todos os lados da nossa sociedade poltica, um grande grito se eleva em nossa direo, que nos impele a essa desculpa. preciso que nos desculpemos de sermos inteis, e de servir, pela nossa mesma inutilidade, a

    ESCRITOR E A NOSSA POCA

    OTexto ALBERT CAMUS

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    causa indignas. E quando respondemos que bem difcil nos livrarmos de acusaes to contraditrias, no falta quem nos diga que no possvel justificarmonos aos olhos de todos, mas que podemos obter o generoso perdo de alguns, tomando o seu partido, que, para quem acredita neles, o nico verdadeiro. Se essa espcie de argumento cria razes, ainda se diz ao artista: V a misria do mundo. Que fazes contra isso?. O artista poderia responder a essa cnica chantagem: A misria do mundo? Em nada contribuo para ela. Qual de vs poder dizer o mesmo?. Mas no menos verdadeiro que nenhum de ns, por menos exigente, pode ficar alheio ao apelo que parte de uma humanidade desesperada. preciso ento sentirse culpado fora. Eisnos conduzidos ao confessionrio laico, o pior de todos.E, no entanto, isso no to simples. A escolha que nos pedem para fazer no se resolve por si mesma; determinada por outras escolhas, feitas anteriormente. E a primeira atitude que toma um artista , precisamente, ser um artista. E se ele escolheu ser um artista, foi em considerao ao seu prprio eu e em virtude de um certo conceito que ele tem da arte. Se esses motivos lhe pareceram bastante bons para justificar sua escolha, h probabilidade de elas continuarem sendo bastante boas para ajudlo a definir sua posio diante da histria. Pelo menos isso o que eu penso e gostaria de me deter mais um pouco, no sobre uma conscincia m, da qual no tenho experincia, mas sobre os dois senti-mentos que, diante e por causa mesmo da misria do mundo, alimento com relao nossa profisso, isto , a gratido e o orgulho. J que preciso justificarnos, eu gostaria de dizer por que h uma justificao em exercer, nos limites das nossas foras e dos nossos talentos, uma profisso que, no meio de um mundo esgotado pelo dio, permite a cada um de ns dizer tranquilamente que no inimigo mortal de nin-gum. Mas isso precisa ser explicado e eu no posso fazlo a no ser falando um pouco do mundo em que vivemos, e do que ns, artistas e escritores, estamos dispostos a fazer dele.O mundo em torno de ns est mergulhado na desgraa e nos pedem para fazer alguma coisa capaz de modificlo. Mas qual essa desgraa? primeira vista, sua definio parece simples: mataram demais no mundo nestes ltimos anos e alguns preveem que ainda se matar. Um grande nmero de mortos acaba por tornar a atmosfera pesada. Naturalmente isso no novidade. A histria oficial foi sempre a histria dos grandes assassinos. No de hoje que Caim matou Abel. Mas de hoje que Caim mata Abel em nome da lgica e reclama em seguida a Legio de Honra. Darei um exemplo para me fazer compreender melhor.Durante as grandes greves de 1947, os jornais anunciaram que o carrasco de Paris cessaria tambm o seu trabalho. No foi devidamente ressaltada, a meu ver, esta deciso do nosso compatriota. Suas reivindicaes eram claras. Pedia, naturalmente, uma gratificao para cada execuo, o que faz parte das normas de qualquer negcio. Mas, sobretudo, reclamava com violncia o cargo de chefe de seco. Queria, realmente, receber do

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    Estado, ao qual tinha conscincia de bem servir, a nica honra tangvel que uma nao moderna pode oferecer aos seus bons servidores, quer dizer, uma posio administrativa. Extinguiase, assim, sob o peso da histria, uma das nossas ltimas profisses liberais. Nos tempos brbaros, uma aurola terrvel mantinha o carrasco escondido do mundo. Era ele que, por profisso, atentava contra o mistrio da vida e da carne. Era, e sabia que era, um objeto de horror. E este horror consagrava ao mesmo tempo o preo da vida humana. Hoje ele apenas um objeto de vergo-nha. Nessas condies acho que ele tem razo de no mais desejar ser o parente pobre que escondido na cozinha porque no tem as unhas limpas. Numa civilizao em que o assassino e a violncia j so doutrinas e esto em via de se tornar instituies, os carrascos tm o direito de entrar nos quadros administrativos. Na verdade, ns, franceses, estamos um pouco atrasados. Em vrios lugares do mundo os executores j se instalaram nas poltronas ministeriais. Apenas substituram o machado pelo carimbo.Quando a morte se torna objeto de estatstica e de administrao, uma prova de que as coisas do mundo no andam bem. Mas se a morte se torna abstrata, porque a vida tambm o . E a vida de cada um no pode ser seno abstrata a partir do momento em que se atrevem a submetla a uma ideologia. O mal que ns estamos no tempo de ideologias, e de ideologias totalitrias, isto , demasiadamente seguras de si prprias, de sua razo imbecil ou de sua limitada verdade, para no ver a salvao do mundo seno atravs do seu prprio domnio. E querer dominar algum ou alguma coisa, desejar a esterilidade, o silncio ou a morte desse algum. Para constatlo, basta olhar em torno de ns. No h vida sem dilogo. E na maior parte do mundo, o dilogo substitudo atualmente pela polmica. O sculo XX o sculo da polmica e do insulto. A polmica se mantm, entre as naes e os indivduos e no prprio nvel das discipli-nas outrora desinteressadas, no lugar tradicionalmente conservado pelo dilogo refletido. Milhares de vozes, dia e noite, prosseguindo cada uma, de seu lado, um tumultuoso monlogo, derramam sobre os povos uma torrente de palavras mistificadoras, ataques, defesas, exaltaes. Mas qual o mecanismo da polmica? Consiste em considerar o adversrio como inimigo, simplificlo por consequncia, e recusar vlo. No conheo mais a cor dos olhos nem a maneira de sorrir, se chega a sorrir, daquele a quem insulto. Quase cegos em virtude da polmica, no vivemos mais entre homens, mas num mundo de sombras.No h vida sem persuaso. E a histria de hoje s conhece a intimidao. Os homens vivem e s podem viver com a ideia de que tm qualquer coisa em comum na qual podem sempre se reencontrar. Mas ns descobrimos isto: h homens a quem no se pode persuadir. Era e impossvel a uma vtima de campo de concentrao explicar queles que a aviltavam que no deveriam fazer isso. que estes ltimos no representam mais os homens, mas sim uma ideia elevada temperatura da mais inflexvel das vontades. Aquele que quer dominar surdo. Diante dele preciso baterse ou morrer. Isso porque os homens de hoje vivem mergulhados no terror.

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    No Livro dos Mortos lse que o justo egpcio para merecer perdo deveria poder dizer: No fiz medo a ningum. Nessas condies, nossos grandes contemporneos sero procurados em vo, no dia do julgamento final, na fila dos bemaventurados.Como surpreendente que essas sombras, quase surdas e cegas, aterrori-zadas, alimentadas com tickets, e cuja vida inteira se resume em uma ficha de polcia, possam ser em seguida tratadas como abstraes annimas. interessante constatar, que os regimes que so consequncias dessas ideolo-gias, so precisamente aqueles que, por sistema, procedem ao deslocamento das populaes, fazendoas errar pela superfcie da Europa como smbolos exangues que s tm uma vida irrisria na cifra das estatsticas. Depois que essas belas filosofias entraram na histria, enormes massas de homens que, antigamente, tinham sua maneira particular de apertar a mo, esto definitivamente sepultados sob duas meras iniciais de pessoas deslocadas que um mundo muito lgico inventou para elas.Sim, tudo isso lgico. Quando se quer unificar o mundo inteiro em nome de uma teoria, no h outro caminho seno tornar esse mundo to descar-nado, cego e surdo, como a prpria teoria. No h outro caminho seno cortar as prprias razes que prendem o homem vida e natureza. E no por acaso que no se encontram paisagens na grande literatura europeia depois de Dostoievski. No por acaso que os livros mais significativos de hoje, em lugar de se interessarem pelas nuances do corao e pelas verdades do amor, se apaixonam apenas pelos juzes, processos e mecnica das acusaes, que em lugar de abrir as janelas sobre a beleza do mundo, fechamnas com cuidado sobre a angstia dos solitrios. No por acaso que o filsofo que inspira hoje todo o pensamento europeu o mesmo que escreveu que s a cidade moderna permite ao esprito adquirir conscincia de si prprio e que chegou a dizer que a natureza abstrata e que s a razo concreta. o ponto de vista de Hegel, com efeito, e o ponto de partida de uma imensa aventura da inteligncia, aquele que acabou de matar todas as coisas. No grande espetculo da natureza, esses espritos embriagados s veem eles prprios. a ltima cegueira.Para que ir mais longe? Aqueles que conhecem as cidades destrudas da Europa sabem de que estou falando. Eles oferecem a imagem desse mundo descarnado, seco de orgulho, onde, no decorrer de um montono apocalipse, os fantasmas erram procura de uma amizade perdida, com a natureza e com os seres. O grande drama do homem do Ocidente que, entre ele e seu futuro histrico, no se interpem mais nem as foras da natureza, nem as da amizade. Com suas razes cortadas e seus braos dissecados, ele se confunde com as foras que lhe so prometidas. Mas pelo menos, chegado a esse cmulo de delrio, nada nos deve impedir de denunciar a burla deste sculo, que faz meno de correr atrs do imprio da razo, agora que ele s procura as razes de amar que ele perdeu. E nossos escritores bem sabem que acabam todos reclamando contra esse sucedneo infeliz e descarnado dos anos, que se chama moral. Os homens de hoje podem talvez dominar tudo neles prprios, e essa sua

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    grandeza. Mas h uma coisa que a maior parte deles no poder jamais reencontrar, a fora do amor que lhe foi roubada. Eis a porque eles tm vergonha, na realidade. E bem justo que os artistas participem dessa vergonha, pois contriburam para ela. Mas que ao menos saibam dizer que tm vergonha deles mesmos e no de sua profisso.Porque tudo o que faz a dignidade da arte opese a um tal mundo, repe-lindoo. A obra de arte, pelo simples fato de existir, nega as conquistas da ideologia. Um dos sentidos da histria de amanh a luta, j comeada, entre os conquistadores e os artistas. Ambos se propem, portanto, o mesmo fim. A ao poltica e a criao so as duas faces de uma mesma revolta contra as desordens do mundo. Nos dois casos, tratase de dar ao mundo sua unidade. E durante muito tempo as causas do artista e do inovador poltico foram confundidas. A ambio de Bonaparte idntica de Goethe. Mas Bonaparte deixounos o tambor nos liceus e Goethe as Elegias Romanas. Depois que as ideologias da eficcia apoiadas na tcnica intervieram, depois que por um sutil movimento o revolucionrio tornouse conquistador, as duas correntes de pensamento divergiram. Porque o que o conquistador de direita ou de esquerda procura no a unidade, que antes de tudo a harmonia dos contrrios, mas a tota-lidade, que o esmagamento das diferenas. O artista separa onde o conquistador nivela. O artista que viveu e crivou no nvel da carne e da paixo sabe que nada simples e que o outro existe. O conquistador, que o outro no exista; seu mundo um mundo de amos e escravos, esse mesmo em que vivemos. O mundo do artista o da controvrsia viva e o da compreenso. No conheo uma nica obra que tenha sido construda apenas sobre o dio, muito embora conheamos o imprio do dio. Numa poca em que o conquistador, pela prpria lgica de sua atitude, se torna executor e policial, o artista forado a ser refratrio. Diante da sociedade poltica contempornea, a nica atitude coerente do artista a recusa sem concesso. Ou ento deve renunciar arte. Ele no pode ser, ainda que o queira, cmplice dos que empregam a linguagem ou os mtodos das ideologias contemporneas.Eis porque vo e irrisrio que nos peam justificao e compromisso. Por sua funo mesmo, o artista a testemunha da liberdade. E esta uma justificao pela qual ele chega a pagar caro. Por sua funo mesmo, ele est comprometido no mais inextrincvel emaranhado da histria, aquele que sufoca a prpria carne do homem. Quem quer que sejamos, estamos comprometidos com o mundo, tal como , somos por natureza os inimigos dos dolos abstratos que neles triunfam hoje, quer sejam nacionais ou partidrios. No em nome da moral e da virtude, como se tenta fazer crer por uma trapaa suplementar. No somos virtuosos, e vendose o ar antropomtrico que toma a virtude em nossos reformadores, no h porque lamentlas. em nome da paixo do homem pelo que h de singular no homem que recusaremos sempre esses cometimentos, os quais se cobrem do que h de mais miservel na razo.Mas isso define ao mesmo tempo nossa solidariedade com todos. porque

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    ns temos a defender o direito solido de cada um que jamais seremos solitrios. Temos pressa, no podemos trabalhar sozinhos. Tolsti pode escrever, sobre uma guerra que ele no fez, o maior romance de todas as literaturas. Nossas guerras no nos permitiram escrever sobre outra coisa a no ser sobre elas, enquanto que, simultaneamente, matavam Pguy e milhares de jovens poetas. Esta a razo por que acho, apesar de nossas diferenas que podem ser grandes, que a reunio desses homens tem um sentido. Alm das fronteiras, muitas vezes sem o saber, eles executam juntos as mil faces de uma mesma obra que se projetar diante da criao totalitria. Todos juntos e, com eles, esses milhares de homens que tentam erguer as formas silenciosas de suas criaes no tumulto da cidade. E, com eles, os que no esto aqui e que pela fora das coisas juntarseo a ns um dia. E esses outros tambm, que acreditam poder trabalhar para a ideologia totalitria atravs de sua arte, enquanto no prprio seio de sua obra o poder da arte faz ruir a propaganda, reivindica a unidade da qual eles so os verdadeiros servidores. E os apontam, nossa fraternidade forada, ao mesmo tempo que desconfiana dos que os empregam provisoriamente.Os verdadeiros artistas no constituem bons vencedores polticos, porque so incapazes de aceitar superficialmente a morte do adversrio. Esto do lado da vida, no do lado da morte. So as testemunhas da carne, no as da lei. Por sua vocao, esto condenados compreenso mesmo daquilo que lhes contrrio. Isso no quer dizer que eles sejam incapazes de julgar o bem e o mal. Mas, no pior criminoso, sua aptido de viver a vida de outro permitelhe reconhecer a constante justificao dos homens, que a dor. Eis o que nos impedir sempre de emitir um julgamento absoluto e, por consequncia, ratifica o castigo absoluto. No mundo da condenao morte que o nosso, o artista o testemunho daquilo que dentro do homem se recusa a morrer. Inimigo de ningum, apenas do carrasco! E isso o que os apontar sempre, eternos girondinos, s ameaas e aos golpes dos Montanheses de punhos de renda. Afinal de contas, essa m posio, por sua prpria dificuldade, faz sua grandeza. Dia vir em que todos o reconhecero e, respeitosos de nossas divergncias, os mais capazes dentre ns cessaro de se menosprezar, como fazem agora. Reconhecero que sua vocao mais profunda a de defender at o fim o direito de serem adversrios, de ter uma opinio contrria.Proclamaro que mais vale se enganar, sem assassinar ningum, deixando que os outros falem, do que ter razo em meio ao silncio e aos tmulos. Tentaro demonstrar que, se as revolues podem ser bem sucedidas pela violncia, s se podem manter pelo dilogo. Sabero, assim, que esta singular vocao lhes cria a mais perturbadora das fraternidades, a dos combates duvidosos e das grandezas ameaadas, aquela que, atravs de todas as idades da inteligncia, jamais cessou de lutar para sustentar contra as abstraes da histria aquilo que supera toda a histria, que a carne, quer seja sofredora ou feliz. Toda a Europa de hoje, plantada na sua arrogncia, gritalhe que esta empresa ridcula e v. Mas ns estamos no mundo para provar o contrrio.

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    A nova literatura etc. Orley Mesquita

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    VA LITERATURA

    IMAGINATIVA EM PERNAMBUCO

    AATexto ANDR DE SENA

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    Quando, nos bons tempos romnticos, o poeta ingls Samuel Taylor Coleridge (17721834) redefiniu o termo imagination (ima-ginao),posto em rela-o a outro conceito caro

    s perquiries crticas do perodo oitocentista, suspension of disbelief (suspenso da descrena), conseguiu apreender a essncia de uma nova literatura que j h algum tempo propunha outros nortes ao horizonte da ficcionalidade ocidental: literatura imaginativa, no mais com-pleto sentido da palavra. s convenes ret-ricas, ncleos temticos, metforas e imagens classicistas que se haviam congelado pelo uso de sculos, Coleridge defendia um novo imaginrio alicerado num outro modus operandi literrio, em que somente imaginao caberia o ato de criao de novos contextos e mundos, des-ligados ou no da tradio, j que cada obra artstica deveria ser nica, original. A suspenso da descrena estimulava o novo jogo ficcional, que tambm exigia a participao do leitor na fruio e decodificao de poemas, contos, novelas e romances que passavam a trabalhar temas e enredos cada vez mais inverossmeis, nomimticos, em suma, desvinculados de toda a moral e do realvnculo, por sinal, exi-gido pelas poticas normativas do classicismo e pelo romantismo tradicional e mimtico. O que importava a partir de agora era at onde podia chegar a imaginao de um autor.

    O conceito de imaginao coleridgeana se conjugou ao Fragmento 116 do crtico alemo Friedrich Schlegel (17721829), que tambm defendia o Romantismo como est-tica universal e progressiva, ou seja, jamais fechada num cnone ou cerceada por regras composicionais, operando a criatividade o des-limite, a plasmao infinita da obra de arte.

    Conceitos como estes ajudavam a com-preender teoricamente toda uma literatura des-vinculada do real, ou melhor, que o recriava a cada nova obra, expandindo sua prpria percepo. Exemplos como os do romance

    gtico, da novela de horror, do conto fants-tico, da fico cientfica, revelavam que uma nova literaturae uma nova forma de se pensar a Literaturaganhava a luz do dia, em obras que no tinham outro compromisso que o da prpria capacidade imaginativa de seus autores.

    Contudo, muitos crticos do passado julgaram ver no fantstico uma impostura mimtica, um desvario da ficcionalidade ou at mesmo escapismo, no momento em que as coisas mais absurdas comearam a ser narradas, implodindo de vez o conceito ideologizado de mmese exigido pelas poticas normativas do Neoclassicismo e, tambm, pelo chamado Romantismo tradicional, ligado expres-so de uma subjetividade que nada tinha de assustadora ou excntrica. Exemplo disso o prefcio escrito pelo romancista (romntico) ingls Walter Scott (17711832) para a edi-o posterior de uma obra do contista alemo E.T.A. Hoffmann (17761822), este ltimo, justamente considerado um dos avatares da literatura fantstica. Em seu prefcio ao livro hoffmanniano O pequeno Zacarias, chamado Cinabre, diz Scott: o gosto dos alemes pelo misterioso levouos a inventar um gnero de composio que talvez s pudesse existir no seu pas e na sua lngua. aquele a que se poderia chamar o gnero FANTSTICO [sic], em que a imaginao se abandona a toda a irregularidade dos seus caprichos e a todas as combinaes das cenas mais estranhas e mais burlescas. Scott, tido como um dos criadores do romance hist-rico, censura Hoffmann por no ter trabalhado este subgnero, e completa: s vezes podemos deter nosso olhar com prazer num arabesco executado por um artista dotado de rica ima-ginao; mas penoso ver o gnio se exaurir em objetos que o gosto reprova. No gostaramos de lhe permitir uma excurso nessas regies fantsticas a no ser sob a condio de que ele trouxesse de l ideias doces e agradveis. Scott iconiza aqui a crtica de verniz mimtico. Mas, apesar desta evidente incompreenso relativa s obras de cunho imaginativo, Hoffmann era avi-damente lido em toda a Europa, gerando, com

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    o passar dos anos, um culto que haveria de tor-nar seu nome imortal. Contos como O vaso de Ouro (cujo tema principal, num resumo muito breve, a histria de um estudante desastrado que se apaixona por uma serpente encantada, de fulgurantes olhos azuis); O pequeno Zacarias (no qual um anozinho grotesco passa a controlar o talento arts-tico alheio aps ter o seu cabelo penteado por uma fada); O Homem da areia (em que o mundo das convenes burguesas posto de ponta cabea aps a chegada de um estranho vendedor de barmetros e lunetas); ou O violino de Cr