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Revista de Política e Cultura da ADUFF Ano V - nº 4 Cidades brasileiras sofrem processo de intensificação da exclusão social Cidades brasileiras sofrem processo de intensificação da exclusão social Mega-eventos

#REVISTA CLASSE n°04 - Mega Eventos

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Publicação da Associação dos Docentes da UFF | Seção Sindical do ANDES-SN

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Revista de Política e Cultura da ADUFF Ano V - nº 4

Cidades brasileiras sofrem processo de intensificação da exclusão social

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Essa edição é dedicada a Carlos Marighella, um lutador incansável do povo brasileiro

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ADUFFSSind

Associação dos Docentes da UFF

Seção sindical do AndesFiliado à CSP/CONLUTAS

SUM

ÁRIO

SUM

ÁRIO

“Cantamos porque chove sobre os sulcos... e somos militantes desta vida. E porque não podemos e nem queremos deixar que a canção se

torne cinzas.”

(Mário Benedetti)

Revista da Associação dos Docentes da UFF. Rua professor Lara Vilela, 110. São Domingos, Niterói-RJ. CEP: 24.210-590.Tels: (21) 2622-2649 e 2620-1811. Correio eletrônico: [email protected]

EDIÇÃO GERAL e REDAÇÃO: Alvaro Neiva. PROJETO GRÁFICO: Cláudio Camillo e Stela Guedes Caputo. DIAGRAMAÇÃO: Luiz Fernando Nabuco. ESTAGIÁRIO DE JORNALISMO: Andrew Costa.

CONSELhO EDITORIAL: Gelta Terezinha Ramos Xavier, Juarez Torres Duayer, Armando Cypriano Pires, Larissa Dahmer Pereira, Eblin Joseph Farage, José Raphael Bokehi, Sonia Maria da Silva, Dora henrique da Costa, José Luiz Cordeiro Antunes, Júlio Carlos Figueiredo, Marcos Pinheiro Barreto, Teresinha Josefa Monteiro, Elza Dely Veloso Macedo, Catharina Marinho Meirelles, Vania Lúcia Rodrigues Dutra.GESTÃO: “Lutar na Voz Ativa - Compromisso com a Universidade Pública, os Direitos dos Professores e a Unidade dos Trabalhadores”

ISSN: 2176-9605

IMPRESSÃO: Gráfica EDG. Tiragem: 4000 exemplares

Editorial A Classe está de volta ...................................................................................... pág. 2

Contra CorrenteIstván MészárosCrise estrutural necessita de mudança estrutural ......................................................... pág. 4

Miguel VeddaNotas sobre a atualidade de Lukács ................................................................................. pág. 18

Vozes da resistência contra Belo Monte .............................................................. pág. 24

Marina PitaA saga de um grupo de teatro classista ............................................................... pág. 32

Cecilia Maria Bouças CoimbraComissão da Verdade: mais uma farsa, mais um engodo .................................. pág. 38Edson Teixeira da Silva JuniorMarighella: presente! ........................................................................................... pág. 42

De CapaMegaeventos para quem? .................................................................................. pág. 44Vila Autódromo: uma comunidade que teima em resistir ..................................... pág. 52

ComunicaçãoBráulio Araújo, João Brant e Veridiana AlimontiOs caminhos para a universalização da banda larga ........................................... pág. 56

FilmesJoão Leonardo MedeirosVerdade por trás da crise - resenha do filme “Trabalho interno”................................... pág. 62

Nossa resenhaMaurício Vieira MartinsO laboratório de Marx - Grundisse ...................................................................... pág. 66

Diálogos com a cidadeDesabrigados das chuvas sofrem com descaso .................................................. pág. 70

HiperfocalAF Rodrigues - fotógrafo de dois mundos ......................................................... pág. 74

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Ed i t o r i a l

Após um intervalo de exatos dois anos des-de a publicação da última edição, é com satisfação que a ADUFF anuncia a retomada da Classe. A revista foi lançada em maio de 2008, durante a gestão da então presidente Marina Barbosa Pinto – atualmente presidente do ANDES-SN – e com projeto e edição geral sob responsabilidade da jor-nalista Stela Guedes Caputo. A idéia era ousada, mas muito importante.

“Um jornal sindical é espaço para fazer cir-cular as informações numa perspectiva de classe distinta daquela que encontramos nos veículos dos grandes monopólios da comunicação. Mas nem sempre garante espaço para a reflexão mais cuidadosa, para a divulgação das formas alterna-tivas de entendimento do mundo em seus produ-tos estética ou culturalmente mais elaborados”, afirmava o editorial da primeira edição. Por isso surge Classe – para ser o espaço da reflexão mais cuidadosa, da divulgação de formas alternativas de entendimentos do mundo.

Por diversos problemas, tivemos um longo hiato na publicação de Classe, mas agora retomamos

o projeto, com as mesmas motivações que levaram o sindicato a criá-la naquele momento. Se em 2008 vivíamos o início de uma crise econômica global, essa crise se acentuou de maneira importante nos últimos anos, e tomou conta do mundo.

A última edição da revista, lançada no iní-cio de 2010, trazia na seção Contra Corrente arti-go do professor da UFF Marcelo Carcanholo, so-bre “a crise atual do capitalismo e seus impactos para o Brasil”. Nesta nova edição, a mesma seção traz um artigo fundamental de István Mészàros, mostrando que o sistema capitalista vive uma crise estrutural e que por esta razão a sociedade necessita de uma “mudança estrutural”.

Ainda tênue é possível identificar uma movi-mentação da classe neste cenário de crise mundial. Depois de um período de imensa supremacia ideoló-gica do neoliberalismo e dos anúncios sobre o fim da história e da luta de classes, o capitalismo mostra mais uma vez sua alternativa para a superação das crises. Por elas pagam os trabalhadores. Ao longo dos anos recentes, vimos milhões e milhões de in-vestimentos públicos destinados a salvar grandes

A Classe está de volta

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eventos desempenham no reposicionamento da inserção subordinada do Brasil ao capital inter-nacional, ao mesmo tempo em que abrem um grande espaço para profundas transformações nos espaços urbanos do país.

Trazemos também uma reportagem especial sobre o grupo “Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes”. Embora pouco conhecido nacionalmente, este grupo de teatro popular da periferia de São Paulo tem conquistado espaço e respeito não apenas pelo seu trabalho artístico, mas por suas posições acerca do papel da cultura em nossa sociedade.

Além disso, publicamos um artigo escrito es-pecialmente para nossa revista pelo professor argen-tino Miguel Vedda, que esteve na UFF em dezembro, para participar de um simpósio, sobre a atualidade do pensamento do filósofo húngaro Gyorgy Lukacs.

Apresentamos ainda um artigo sobre a pro-mulgação da “Comissão da Verdade”, seus significa-dos e o quanto ela atende – ou não – as reivindicações daqueles militantes que enfrentaram a ditadura e daqueles tantos que seguem lutando pela memória deste capítulo da história do Brasil.

Mais recentemente, com a mudança de ru-mos do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores, a classe viu-se privada de instrumentos de luta que custou a construir. Embora fundamental o processo de reconstrução não será breve, nem fácil. Precisamos seguir reu-nindo esforços para aglutinar as lutas dos traba-lhadores. De nossa parte, seguimos tentando. Em nosso sindicato. Em nossos boletins e nossos jor-nais. Em nossa Classe. De modo a contribuir para que a categoria aqui se reconheça e se mobilize para enfrentar os ataques a seus direitos e lutar por novas conquistas e transformações em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.

empresas privadas, ao mesmo tempo em que cres-cem os ataques aos direitos dos trabalhadores, as demissões massivas. Contra essas medidas, o novo fica por conta da extraordinária movimentação de indignação e resistência popular que desde 2010 ocupa o cenário político e as ruas e praças na Ingla-terra, França, Espanha, Itália, Grécia, e em vários outros países europeus. E, neste ano, no epicentro da crise, destaca-se o “Occupy Wall Street”.

Na seção “Nosso filme”, trazemos uma rese-nha sobre “Trabalho interno”, ganhador do Oscar de Melhor Documentário em 2011. O filme traz impor-tantes relatos que ajudam a compreender a verdade por trás da crise de 2008 nos Estados Unidos.

No Brasil, talvez se possa identificar ao final de 2011, pela primeira vez ao longo dos últimos anos um certo ascenso dos movimentos de massa e algum acirramento nas lutas. Houve importan-tes greves de trabalhadores da construção civil, correios, mas ainda muito voltadas a reivindica-ções específicas e distantes de uma percepção de classe mais clara. Os trabalhadores da educação também foram protagonistas de lutas por todo o Brasil, reivindicando direitos, ao mesmo tempo em que defenderam a educação pública, gratuita e de qualidade. Na tentativa de responder à crise internacional, o governo Dilma Rousseff aumen-ta seus ataques aos trabalhadores.

Para dialogar com essa conjuntura, traze-mos uma reportagem especial, feita diretamente do Pará, sobre os conflitos em torno da constru-ção da usina hidrelétrica de Belo Monte. O proje-to, que faz parte do modelo de desenvolvimento praticado pelo governo federal, tem enfrentado resistência em todo o país, mas especialmente na região. A matéria de capa também está di-retamente relacionada ao papel que os mega-

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Con t ra Co r r en t e

CRISE ESTRUTURAL NECESSITA DE MUDANÇA

ESTRUTURAL*

István Mészáros

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Alvaro Neiva

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Quando se enfatiza a necessidade de uma mudança estrutural radical deve-se tornar cla-ro desde o início que isso não é um apelo a uma Utopia não realizável. Ao contrário, a caracte-rística definidora primária das teorias utópicas modernas era precisamente a projeção de que a melhoria pretendida nas condições de vida dos trabalhadores poderia ser alcançada no âmbito da base estrutural existente das sociedades cri-ticadas. Assim, Robert Owen de New Lanark, por exemplo, que tinha uma parceria comercial basicamente insustentável com o filósofo liberal utilitarista Jeremy Bentham, tentou com esse espírito a realização geral de suas esclarecidas reformas sociais e educacionais. Ele pedia o im-possível. Como também sabemos, o altissonante princípio moral “utilitarista” de “o maior bem para o maior número” reduziu-se a nada desde sua defesa por Bentham. O problema para nós é que, sem uma avaliação adequada da natureza da crise econômica e social de nossos dias – que já não pode ser negada pelos defensores da ordem capitalista, ainda que eles rejeitem a necessida-de de uma mudança maior –, a probabilidade de sucesso a esse respeito é insignificante. O fim do “Welfare State”, mesmo no pequeno número de países privilegiados onde foi uma vez instituído, oferece uma lição que faz refletir sobre isso.

Vou começar citando um artigo recente dos editores do mais completo jornal da burguesia internacional, The Financial Times (“US bud-get impasse”, The Financial Times, 2 de Junho de 2011). Falando da perigosa crise financeira, reconhecida pelos próprios editores como perigo-sa, eles terminam o artigo com estas palavras: “Ambos os lados [Democratas e Republicanos]

são culpados por um vácuo de liderança e delibe-ração responsável. É uma grave falta de governo e mais perigosa do que Washington acredita ser”. Isso é tudo o que temos como sensatez editorial sobre a pertinente questão do “débito Sobera-no” e dos crescentes déficits econômicos. O que torna o editorial do Financial Times ainda mais vazio do que o vácuo de liderança deplorado pelo jornal é o sonoro subtítulo desse mesmo artigo: “Washington deve parar de fazer pose e começar a governar”. Como se editoriais como esse pudes-sem significar mais do que assumir determina-da atitude em nome de “governar”; pois a grave questão em jogo é o débito catastrófico da “casa todo-poderosa” do capitalismo global, os Esta-dos Unidos da América, onde tão só o débito do governo (ou seja, sem adicionar débito privado individual e Corporativo) já se conta bem acima de 14 trilhões de dólares, conforme projetado em grandes números iluminados na fachada de um prédio público de Nova Iorque, indicando a irre-sistível tendência de débito crescente.

O ponto que eu desejo enfatizar é que a cri-se que temos de enfrentar é uma crise estrutural profunda e cada vez mais grave, que necessita da adoção de remédios estruturais abrangentes, a fim de alcançar uma solução sustentável. Deve-se também enfatizar que a crise estrutural de nosso tempo não se originou em 2007 com a “ex-plosão da bolha habitacional dos Estados Uni-dos”, mas sim, pelo menos, quatro décadas an-tes. Eu falei sobre isso, nesses mesmos termos, nos idos de 1967 (em “As tarefas à nossa frente”), antes da explosão do maio de 1968 na França; e escrevi em 1971, no Prefácio da Terceira Edição da “Teoria da Alienação de Marx”, que os acon-

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“tecimentos que então se desenrolavam “salien-tavam dramaticamente a intensificação da crise estrutural global do capital”.

A esse respeito, é necessário esclarecer as diferenças relevantes entre tipos ou modalidades de crise. Não é indiferente se uma crise na esfera social pode ser considerada uma crise periódica/conjuntural ou algo muito mais fundamental do que isso. Pois, obviamente, a maneira de lidar com uma crise estrutural fundamental não pode ser conceitualizada em termos das categorias de crise periódica ou conjuntural. A diferença crucial entre esses dois tipos de crise, acentua-damente contrastantes, é que a crise periódica ou conjuntural desdobra-se e é mais ou menos solucionada com sucesso dentro da estrutura es-tabelecida, enquanto a crise fundamental afeta a própria estrutura em sua totalidade.

Em termos gerais, essa distinção não é

simplesmente uma questão acerca da aparente gravidade desses tipos contrastantes de crises. Uma crise periódica ou conjuntural pode ser dra-maticamente severa, como o foi a “Grande Crise Econômica Mundial de 1929-1933”, sendo, con-tudo, capaz de uma solução dentro dos parâme-tros do sistema dado. E, do mesmo modo, mas no sentido oposto, o caráter “não-explosivo” de uma crise estrutural prolongada, em contraste com as “grandes tempestades” (nas palavras de Marx) através das quais crises conjunturais periódicas podem elas mesmas se liberar e solucionar, pode conduzir a estratégias fundamentalmente mal concebidas, como resultado da interpretação er-rônea da ausência de “tempestades”, como se tal ausência fosse uma evidência impressionante da estabilidade indefinida do “capitalismo organi-zado” e da “integração da classe operária”.

Deve-se enfatizar bem: a crise em nossos dias não é compreensível sem que seja referida à ampla estrutura social global. Isso significa que, a fim de esclarecer a natureza da persistente e cada vez mais grave crise em todo o mundo hoje, devemos focar a atenção na crise do sistema do capital em sua inteireza, pois a crise do capital que ora estamos experimentando é uma crise es-trutural que tudo abrange.

Vejamos, pois, resumindo tanto quanto possível, as características que definem a crise estrutural que nos preocupa.

“A novidade histórica da crise de hoje tor-na-se manifesta em quatro aspectos principais:

1 – seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplican-

A crise periódica ou conjuntural desdobra-se e é mais ou menos solucionada com sucesso dentro da estrutura estabelecida, enquanto a crise fundamental afeta a própria estrutura em sua totalidade”

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do-se a este e não àquele tipo de trabalho, com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade, etc.);

2 – seu escopo é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do ter-mo), em lugar de limitado a um conjunto par-ticular de países (como foram todas as princi-pais crises do passado);

3 – sua escala de tempo é extensa, con-tínua – se preferir, permanente – em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital;

4 – em contraste com as erupções e co-lapsos mais espetaculares e dramáticos do pas-sado, seu modo de desdobramento poderia ser chamado de gradual, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro; isto é, quando a com-plexa maquinaria agora ativamente engajada na “administração da crise” e no “deslocamento” mais ou menos temporário das crescentes con-tradições perder sua força...

[Neste ponto], faz-se necessário tecer al-gumas considerações gerais sobre os critérios de uma crise estrutural, bem como sobre as formas em que sua solução pode ser prevista.

Em termos mais simples e gerais, uma crise estrutural afeta a totalidade de um com-plexo social, em todas as suas relações com suas partes constituintes ou subcomplexas, as-sim como com outros complexos aos quais está vinculada. Ao contrário, uma crise não-estru-tural afeta apenas algumas partes do comple-xo em questão e, assim, não importando o quão grave ela possa ser no que se refere às partes

afetadas, não pode pôr em risco a sobrevivên-cia contínua da estrutura global.

Consequentemente, o deslocamento das contradições só é possível enquanto a crise for parcial, relativa e internamente gerenciável pelo sistema, requerendo não mais do que alterações – ainda que importantes – dentro do próprio sis-tema relativamente autônomo. Justamente por isso, uma crise estrutural coloca em questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando sua transcendência e substituição por algum complexo alternativo.

O mesmo contraste pode se manifestar em termos dos limites que qualquer complexo social específico possa ter em sua imediatici-dade, em qualquer época, quando comparados àqueles para além dos quais não pode ir. Des-se modo, “uma crise estrutural não diz res-peito aos limites imediatos, e sim aos limites últimos de uma estrutura global...” (citação de “Para além do Capital”)

Desse modo, em um sentido bastante ób-vio, nada poderia ser mais sério do que a crise estrutural do modo de reprodução sociometa-bólica do capital, que define os limites últimos da ordem estabelecida. Mas, embora profun-damente séria em seus parâmetros gerais de grande importância, a julgar pela aparência, a crise estrutural pode não parecer de impor-tância tão decisiva quando comparada às vicis-situdes dramáticas de uma crise conjuntural maior. As “tempestades” através das quais as crises conjunturais se liberam são bastante pa-radoxais, no sentido de que, em seu modo de desdobramento, elas não apenas se liberam (e se impõem), mas também se solucionam, dadas

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as circunstâncias, até onde seja viável. Elas podem fazer isso precisamente por causa do seu caráter parcial, que não coloca em dúvida os limites máximos da estrutura global esta-belecida. Ao mesmo tempo, entretanto, e pelo mesmo motivo, elas só podem solucionar os enraizados problemas estruturais subjacentes – que necessariamente se reafirmam repetidas vezes na forma de crise conjuntural específica – de um modo estritamente parcial e, tempo-rariamente, de uma maneira mais limitada. E até que a próxima crise conjuntural apareça no horizonte da sociedade.

Em comparação, em vista da natureza ine-vitavelmente complexa e prolongada da crise es-trutural, que se estende em tempo histórico no sentido de uma época e não de forma episódica, é a interrelação cumulativa do todo que decide a questão, mesmo sob a falsa aparência de “nor-malidade”. Isso ocorre porque, na crise estru-tural, tudo está em jogo, envolvendo os abran-gentes limites últimos da determinada ordem, da qual não pode haver um exemplo específico simbólico/paradigmático. Sem compreender as conexões e implicações sistêmicas globais dos acontecimentos e desenvolvimentos específicos, perdemos de vista as mudanças realmente sig-nificativas e as correspondentes alavancas de potencial intervenção estratégica para afetá-las positivamente, no interesse da transformação sistêmica necessária. Nossa responsabilidade social, portanto, requer uma consciência crítica determinada da interrelação cumulativa emer-gente, em vez de procurar garantias consolado-ras no mundo de normalidade ilusória, até que a casa desabe sobre nossas cabeças.

É necessário enfatizar aqui que, por quase três décadas depois da Segunda Guerra Mun-dial, a expansão econômica bem sucedida nos países capitalistas dominantes gerou a ilusão, até mesmo entre alguns intelectuais importan-tes de esquerda, de que a fase histórica de “ca-pitalismo em crise” tinha sido superada, dando lugar ao que eles chamaram de “capitalismo organizado avançado”. Quero ilustrar este pro-blema citando algumas passagens do trabalho de um dos maiores intelectuais militantes do sé-culo XX, Jean-Paul Sartre, por quem, pelo que vocês bem sabem pelo meu livro sobre Sartre, tenho a mais elevada consideração. Entretanto, o fato é que a adoção da noção de que, superan-do o “capitalismo em crise” e convertendo-se em “capitalismo avançado”, a ordem estabelecida criou grandes dilemas para Sartre. Isso é ainda mais significativo porque ninguém pode negar a busca inteiramente comprometida de Sartre por uma solução emancipatória viável, nem sua grande integridade pessoal. Em relação ao nosso problema, temos que recordar que, na importan-te entrevista dada ao grupo Manifesto Italiano – depois de esboçar sua concepção das implica-ções insuperavelmente negativas de sua própria categoria explicativa da institucionalização ine-vitavelmente prejudicial do que ele chamava o “grupo em fusão”, em sua Crítica da Razão Dia-lética –, ele teve de chegar à penosa conclusão de que: “Enquanto reconheço a necessidade de uma organização, devo confessar que não vejo como os problemas que confrontam qualquer estrutura estabilizada possam ser resolvidos” (Entrevista publicada em The Socialist Register, 1970, p. 245).

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Aqui a dificuldade reside em os termos da análise social de Sartre serem estabelecidos de tal modo que os vários fatores e correlações que na realidade fazem parte de um todo, constituin-do diferentes facetas fundamentalmente do mes-mo complexo societário, são descritos por ele na forma de dicotomias e oposições as mais proble-máticas, gerando então dilemas insolúveis e uma derrota inevitável para as forças sociais emanci-patórias. Isso está claramente demonstrado no diálogo entre o grupo Manifesto e Sartre.

“Manifesto: em que bases precisas pode-se preparar uma alternativa revolucionária? Sartre: Repito, mais na base de “alienação” do que de “necessidades”. Em resumo, na recons-trução do individual e da liberdade – a necessi-dade dela é tão premente que até as técnicas de integração mais refinadas não podem permitir-se não levá-la em conta”.

Assim, Sartre, em sua avaliação estratégi-ca de como superar o caráter opressor da realida-de capitalista, levanta uma oposição totalmente insustentável entre a “alienação” dos trabalha-dores e suas “necessidades” supostamente satis-feitas, tornando, então, mais difícil de prever um desfecho positivo praticamente viável. E aqui o problema não reside simplesmente em ele dar credibilidade em excesso à explicação sociológica extremamente superficial, mas então em voga, das chamadas “técnicas refinadas de integração”, no que se refere aos trabalhadores. Infelizmente, é muito mais grave do que isso.

Na verdade, o problema realmente pertur-bador em jogo é a avaliação da viabilidade do próprio “capitalismo avançado” e o postulado as-sociado de “integração” da classe trabalhadora,

que Sartre compartilha na ocasião, em grande medida, com Herbert Marcuse. Na atualidade, a verdade da questão é que, ao contrário da in-tegração indubitavelmente viável de alguns trabalhadores específicos na ordem capitalis-ta, a classe operária – a antagonista estrutural do capital – representando a única alternativa hegemônica historicamente sustentável ao sis-tema do capital – não pode ser integrada à es-trutura exploradora e alienante de reprodução societária do capital. O que torna isso impossí-vel é o antagonismo estrutural subjacente entre capital e trabalho, que emana, com uma neces-sidade incontornável, da realidade de classe de dominação e subordinação antagônicas.

Nesse discurso, mesmo a plausibilidade mínima do tipo de alternativa falsa, à maneira

“Ao contrário da integração indubitavelmente viável de alguns trabalhadores específicos na ordem capitalista, a classe operária – a antagonista estrutural do capital – (...) não pode ser integrada à estrutura exploradora e alienante de reprodução societária do capital”

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de Marcuse/Sartre, entre alienação continuada e “necessidade satisfeita” é “estabelecida” com base na compartimentalização descarrilhante de interdeterminações estruturais globalmente arraigadas e suicidamente insustentáveis do ca-pital – sobre a qual se baseia necessariamente a viabilidade sistêmica elementar da única ordem sociometabólica reinante do capital – na forma da separação extremamente problemática do “ca-

pitalismo avançado” das chamadas “zonas mar-ginais” e do “terceiro mundo”. Como se a ordem reprodutiva do postulado “capitalismo avança-do” pudesse se sustentar por qualquer período de tempo, e mesmo no futuro indefinidamente, sem a exploração existente das mal compreen-didas “zonas marginais” e do “terceiro mundo” dominado pelo imperialismo.

Faz-se necessário citar aqui na íntegra a passagem relevante em que esses problemas são explicados detalhadamente por Sartre. O trecho em questão dessa esclarecedora entre-vista é o seguinte:

“O capitalismo avançado, no que se refere à consciência de sua própria condição, e a despeito das enormes disparidades na distribuição de ren-da, consegue satisfazer as necessidades elemen-tares da maioria da classe trabalhadora – per-manecem, naturalmente, as zonas marginais, 15 por cento de trabalhadores nos Estados Unidos, os negros e os imigrantes; permanecem os idosos; permanece, em escala global, o terceiro mundo. Mas o capitalismo satisfaz a certas necessidades primárias e também satisfaz a certas necessida-des que ele criou artificialmente: por exemplo, a necessidade de um carro. Foi essa situação que me levou a revisar minha ‘teoria das necessida-des’, uma vez que essas necessidades não mais estão, em uma situação de capitalismo avançado, em oposição sistemática ao sistema. Ao contrário, tornam-se, parcialmente, sob o controle do sis-tema, um instrumento de integração do proleta-riado em certos processos produzidos e dirigidos pelo lucro. O trabalhador esgota-se para produzir um carro e para ganhar o suficiente para comprar um; essa aquisição lhe dá a impressão de ter sa-

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tisfeito uma necessidade. O sistema que o explora lhe estabelece ao mesmo tempo uma meta e a pos-sibilidade de alcançá-la. A consciência do caráter intolerável do sistema não deve mais, portanto, ser buscada na impossibilidade de satisfazer ne-cessidades elementares, mas, acima de tudo, na consciência da alienação – em outras palavras, no fato de que esta vida não vale a pena ser vivi-da e não tem sentido, que esse mecanismo é um mecanismo enganoso, que essas necessidades são artificialmente criadas, que elas são falsas, que elas são extenuantes e só servem ao lucro. Mas unir a classe com base nisto é ainda mais difícil”. Se aceitarmos essa caracterização da ordem “ca-pitalista avançada” ao pé da letra, nesse caso, a tarefa de produzir uma consciência emancipató-ria não é apenas “mais difícil”, mas quase impos-sível. Mas o fundamento duvidoso através do qual podemos chegar a uma conclusão apriorística, im-perativa e tão pessimista – prescrevendo do alto dessa “nova teoria das necessidades” o abandono pelos trabalhadores de suas “necessidades artifi-ciais aquisitivas”, exemplificadas pelo automóvel, e sua substituição pelo postulado completamente abstrato que coloca para eles que “esta vida não vale a pena ser vivida e não tem sentido” (um pos-tulado nobre, mas antes abstrato e imperativo, e efetivamente negado, na realidade, pela evidente necessidade dos membros da classe trabalhadora de assegurar as condições de sua existência eco-nomicamente sustentável) – é tanto a aceitação de um conjunto de afirmações totalmente insus-tentáveis quanto a omissão igualmente insusten-tável de alguns traços vitais determinantes do sistema do capital realmente existente em sua crise estrutural historicamente irreversível.

Para começar, é extremamente problemá-tico falar sobre “capitalismo avançado” – quando o sistema do capital como modo de reprodução sociometabólica encontra-se em sua fase decli-nante de desenvolvimento histórico e, portanto, é apenas capitalisticamente avançado, mas não em nenhum outro sentido, sendo, então, capaz de sustentar-se apenas de um modo ainda mais destrutivo e, portanto, em última análise, au-todestrutivo. Outra afirmação: a caracterização da esmagadora maioria da humanidade – na categoria da pobreza, incluindo os “negros e os imigrantes”, os “idosos” e, em “escala global, o terceiro mundo” – como pertencentes às “zonas marginais” (em afinidade com os “excluídos” de Marcuse), não é menos insustentável. Na rea-lidade, é o “mundo capitalista avançado” que constitui a margem privilegiada totalmente in-sustentável do sistema global de há muito tem-po, com sua desumana “negativa elementar da necessidade” para a maior parte do mundo, e não o que é descrito por Sartre em sua entrevista ao Manifesto como as “zonas marginais”. Mesmo no que diz respeito aos Estados Unidos da Amé-rica, a margem de pobreza é muito diminuída, como se fosse de meros 15 por cento. Além dis-so, a caracterização dos automóveis dos traba-lhadores como nada mais do que simplesmente “necessidades artificiais”, que “apenas servem ao lucro”, não poderia ser mais unilateral. Ao contrário de muitos intelectuais, nem mesmo aqueles trabalhadores relativamente ricos, sem falar nos membros da classe trabalhadora como um todo, têm o luxo de encontrar seu local de trabalho ao lado do seu quarto.

Ao mesmo tempo, ao lado das omissões

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espantosas, algumas das contradições e falhas estruturais mais graves estão faltando na des-crição sartreana do “capitalismo avançado”, virtualmente esvaziando o significado de todo o conceito. Nesse sentido, uma das necessidades mais importantes sem a qual nenhuma socieda-de – passada, presente ou futura – poderia so-breviver, é a necessidade de trabalho. Tanto pe-los indivíduos produtivamente ativos – incluindo todos eles em uma ordem social completamente emancipada –, quanto pela sociedade em geral, em sua relação historicamente sustentável com a natureza. A necessária falha em solucionar esse problema estrutural fundamental, que afe-

ta todas as categorias de trabalho, não apenas no “terceiro mundo”, mas até mesmo nos países mais privilegiados de “capitalismo avançado”, com seu desemprego perigosamente crescente, constitui um dos limites absolutos do sistema do capital em sua inteireza. Outro grave problema que enfatiza a inviabilidade histórica presente e futura do capital é sua mudança calamitosa em direção aos setores parasíticos da economia – como a especulação aventureira produtora de crise que incomoda (como uma questão de neces-sidade objetiva, frequentemente deturpada como irrelevante fracasso pessoal) o setor financeiro e a fraudulência institucionalizada, intimamente associada a ele – em contraposição aos ramos produtivos da vida socioeconômica requeridos para a satisfação da genuína necessidade huma-na. Essa é uma mudança que se ergue em ní-tido contraste ameaçador com a fase crescente de desenvolvimento histórico do capital, quando o prodigioso dinamismo expansionista sistêmico (inclusive a revolução industrial) devia-se pre-dominantemente às realizações produtivas so-cialmente viáveis e mais intensificáveis. Temos de acrescentar a tudo isso cargas econômicas maciçamente desperdiçadoras impostas à socie-dade de maneira autoritária pelo estado e pelo complexo militar/industrial – com a indústria de armas permanente e as guerras correspondentes –, como parte integral do perverso “crescimen-to econômico” do “capitalismo organizado avan-çado”. E para mencionar apenas mais uma das implicações catastróficas do desenvolvimento sistêmico do capital “avançado”, devemos ter em mente a transgressão ecológica global proibitiva-mente devastadora do nosso modo de reprodução

“É extremamente problemático falar sobre “capitalismo avançado” – quando o sistema do capital como modo de reprodução sociometabólica encontra-se em sua fase declinante de desenvolvimento histórico e, portanto, é apenas capitalisticamente avançado, mas não em nenhum outro sentido”

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sociometabólica não mais sustentável no mundo planetário finito, com a exploração voraz dos re-cursos materiais não renováveis e a destruição cada vez mais perigosa da natureza. Dizer isso não é “ser prudente depois do acontecimento”. Na mesma ocasião em que Sartre deu a entre-vista ao Manifesto, eu escrevi que “Outra contra-dição básica do sistema capitalista de controle é que ele não pode separar avanço de destruição, nem progresso de desperdício – por mais catas-tróficos que sejam os resultados. Quanto mais destrava a força de produtividade, mais ele de-sencadeia o poder de destruição; e quanto mais amplia o volume de produção, mais deve enter-rar tudo sob montanhas de lixo sufocante. O con-ceito de economia é radicalmente incompatível com a economia de produção de capital, que, por necessidade, piora ainda mais as coisas, primei-ro esgotando com desperdício voraz os recursos limitados de nosso planeta, e então agrava ainda mais o resultado poluindo e envenenando o meio-ambiente humano com seus resíduos e efluentes produzidos em massa” (Isaac Deutscher Memo-rial Lecture, The Necessity of Social Control, London School of Economics, 1971).

Desse modo, as afirmações problemáticas e as omissões de importância seminal da carac-terização de Sartre do “capitalismo avançado” muito enfraquecem o poder de negação do seu discurso libertário. Seu princípio dicotômico que repetidamente defende a “irredutibilidade da ordem cultural à ordem natural” está sem-pre à procura de soluções em termos da “ordem cultural”, no nível da consciência dos indivídu-os, através do trabalho de “consciência sobre consciência” do intelectual comprometido. Ele

recorre à idéia de que a solução exigida estaria em aumentar a “consciência de alienação” – isto é, em termos de sua “ordem cultural” –, ao mes-mo tempo descartando a viabilidade de basear a estratégia revolucionária em necessidade per-tencente à “ordem natural”. Necessidade mate-rial, isto é, a que se diz já atender à maioria dos trabalhadores, e de qualquer forma constituin-do um “mecanismo falso e enganoso” e um “ins-trumento de integração do proletariado”.

Para estar seguro, Sartre envolve-se pro-fundamente com o desafio de voltar-se para a questão de como aumentar “a consciência do ca-ráter intolerável do sistema”. Mas, como assunto de consideração inevitável, a própria influência indicada como condição vital de sucesso – o po-der da “consciência da alienação” enfatizado por Sartre – precisaria ela mesma de algum ampa-ro objetivo. Caso contrário, além da fraqueza de circularidade autoreferencial da influência in-dicada, a natureza imperativa de suas palavras “pode prevalecer contra o caráter intolerável do sistema” permanece predominante como uma advocacia cultural nobre, mas ineficaz. Isso é deveras problemático até mesmo nos próprios termos de referência de Sartre, quando, em suas palavras bastante pessimistas, a necessidade é de derrotar a realidade tanto material e cultu-ralmente destrutiva, quanto estruturalmente entrincheirada “deste miserável conjunto que é nosso planeta”, com suas “determinações horrí-veis, feias e ruins, sem esperança”.

Assim, a questão primária diz respeito à demonstrabilidade ou não do caráter objetiva-mente intolerável do próprio sistema. Pois, se a intolerabilidade demonstrável do sistema falta

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em termos substantivos, como proclamado pela noção de habilidade do “capitalismo avançado” para satisfazer as necessidades materiais exceto nas “zonas marginais”, o “longo e paciente tra-balho na construção da consciência” advogado por Sartre permanece quase impossível. É esse conhecimento básico objetivo que precisa ser (e, na verdade, pode ser) estabelecido em seus próprios termos abrangentes de referência, re-querendo a desmistificação radical da crescente destrutividade do “capitalismo avançado”. De modo a ser capaz de superar a dicotomia postu-lada entre a ordem cultural e a ordem natural, a “consciência do caráter intolerável do siste-ma” só pode ser construída nessa base objetiva – que inclui o sofrimento causado pelo fracasso do capital “avançado” em satisfazer até mesmo as necessidades elementares de alimentação, não nas “zonas marginais”, mas para incontá-veis milhões, como claramente evidenciado nos motins por comida em muitos países.

Em sua fase ascendente, o sistema do ca-pital afirmava com êxito suas realizações pro-dutivas com base em seu dinamismo expansio-nista interno, até agora sem o imperativo de um esforço monopolista/imperialista dos países capitalisticamente mais avançados para a do-minação mundial militarmente assegurada. Contudo, pela circunstância historicamente irreversível de entrar na fase produtivamente descendente, o sistema do capital tornara-se inseparável de uma necessidade de aumento constante de expansão militarista/monopolista e ampliação de sua base estrutural, cuidando no tempo devido do plano produtivo interno para o estabelecimento e a operação criminosamente

destrutiva/devastadora de uma “indústria de armas permanente”, juntamente com as guer-ras necessariamente a ela associadas.

De fato, bem antes da deflagração da primeira guerra mundial, Rosa Luxemburgo claramente identificou a natureza deste desen-volvimento monopolista/imperialista no plano destrutivamente produtivo, escrevendo em seu livro “A Acumulação do Capital” sobre o papel da produção militarista massiva que:

“O próprio capital, no fundo, controla este movimento automático e rítmico de produção militarista através da legislatura e da imprensa, cuja função é moldar a chamada ‘opinião públi-ca’. É por isso que esse ramo específico de acu-mulação capitalista parece, a princípio, capaz de expansão infinita.”

A outro respeito, o crescente esbanjamen-to de energia e recursos estratégicos de material vital trouxe consigo não apenas a sempre mais destrutiva articulação das autoassertivas deter-minações estruturais do capital no plano militar (pela “opinião pública” legislativamente manipu-lada e nunca sequer indagada, quanto mais pro-priamente regulada), mas também no que se re-fere à crescente invasão destrutiva na natureza pela expansão do capital. Ironicamente, mas de modo algum surpreendentemente, essa volta do desenvolvimento histórico regressivo do sistema do capital enquanto tal também trouxe algumas consequências amargamente negativas para a organização internacional do trabalho.

Na verdade, essa nova articulação do siste-ma do capital no último terço do século XIX, com sua fase imperialista monopolista inseparável de sua ascendência global plenamente amplia-

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da, abriu uma nova modalidade de dinamismo expansionsta (muito antagônico e fundamental-mente insustentável) com o esmagador benefício a apenas alguns países imperialistas privilegia-dos, adiando desse modo o “momento da verdade” que acompanha a crise estrutural irreprimível de nosso próprio tempo. Esse tipo de desenvolvi-mento imperialista monopolista deu um impulso importante para a possibilidade de expansão do capital e acumulação militaristas, qualquer que fosse o preço a ser pago em seu devido tempo pela destrutividade cada vez mais intensa des-se novo dinamismo expansionista. Na verdade, o dinamismo monopolista militarmente embasado teve até mesmo de assumir a forma de duas de-vastadoras guerras mundiais, bem como da ani-quilação total da humanidade implícita em uma potencial terceira guerra mundial, além da peri-gosa destruição atual da natureza que se tornou evidente na segunda metade do século XX.

Em nossos dias, estamos experimentando a aprofundada crise estrutural do sistema de capi-tal. Sua destrutividade é visível em toda parte, e não dá sinais de diminuição. Em relação ao fu-turo, é crucial saber como conceituar a natureza da crise a fim de prever sua solução. Pelo mesmo motivo, faz-se também necessário reexaminar al-gumas das principais soluções pensadas no pas-sado. Aqui não é possível fazer mais do que men-cionar, com concisão estenográfica, as abordagens contrastantes que foram oferecidas, indicando ao mesmo tempo o que de fato lhes aconteceu.

Primeiro, temos de lembrar que foi mérito do filósofo liberal John Stuart Mill tecer considera-ções sobre quanto seria problemático o interminá-vel crescimento capitalista, sugerindo como solu-

ção para esse problema “o estado estacionário da economia”. Naturalmente, tal estado estacionário, sob a égide do sistema de capital, não passaria de uma ilusão, porque é inteiramente incompatível com o imperativo de expansão do capital e acumu-lação. Até mesmo hoje, quando tamanha destrui-ção é causada pelo crescimento inadequado e pela mais esbanjadora distribuição de nossa energia vital e recursos materiais estratégicos, a mitologia do crescimento é constantemente reafirmada, sen-do associada ao plano especioso de “reduzir nossa marca de carbono” até o ano 2050, quando na rea-lidade está se movendo na direção oposta. Assim, a realidade do liberalismo veio a ser a agressiva destrutividade do neoliberalismo.

Até mesmo hoje, quando tamanha destruição é causada pelo crescimento inadequado e pela mais esbanjadora distribuição de nossa energia vital e recursos materiais estratégicos, a mitologia do crescimento é constantemente reafirmada”

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Sorte semelhante afetou a perspectiva social-democrata. Marx formulou claramente suas advertências sobre este perigo em sua Crítica do Programa de Gotha, mas elas foram totalmente ignoradas. Aqui, também, a contradição entre o prometido “socialismo evolutivo” bernsteiniano e a sua re-alização em toda parte tornou-se flagrante. Não apenas em virtude da capitulação dos partidos sociais-democratas e dos governos ao engodo das guerras imperialistas, mas também pela trans-formação da social-democracia em geral – inclu-sive o “New Labour” britânico – em versões mais ou menos abertas do neoliberalismo, abandonan-do não apenas a “estrada do socialismo evoluti-vo”, mas, até mesmo, a outrora prometida imple-mentação de reforma social significativa.

Além disso, uma solução muito alardea-da para as repulsivas desigualdades do siste-

ma do capital foi a prometida difusão no mun-do inteiro do “Welfare State”, após a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, a realidade prosaica dessa pretensa conquista histórica tornou-se não apenas fracasso absoluto na instituição do Welfare State em qualquer par-te do chamado “Terceiro Mundo”, mas ainda liquidação atual das relativas conquistas do Welfare State – na esfera da segurança social, serviço de saúde e educação –, mesmo no pe-queno rol de países capitalistas privilegiados em que elas foram instituídas.

E, é claro, não podemos desconsiderar a promessa de realizar a fase mais elevada do socialismo (por Stalin e outros) através da derrota e abolição do capitalismo. Tragi-camente, sete décadas depois da Revolução de Outubro, a realidade converteu-se na res-tauração do capitalismo de uma forma neoli-beral regressiva nos países da antiga União

Soviética e do leste europeu.O denominador comum de todas essas

tentativas fracassadas – a despeito de suas diferenças principais – é que todas elas tenta-ram atingir seus objetivos dentro da base es-trutural da ordem sociometabólica estabele-cida. Entretanto, como penosas experiências históricas nos ensinam, nosso problema não é simplesmente “a derrota do capitalismo”. Mesmo à medida que esse objetivo possa ser atingido, com certeza será apenas uma rea-lização instável, porque tudo o que pode ser destruído pode também ser restaurado. A ver-dadeira – e muito mais difícil – questão é a necessidade de mudança estrutural radical.

O sentido palpável de tal mudança es-

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modo, eliminado, embora ninguém saiba dizer como, a verdadeira pergunta permaneceria: como foi gerado, em primeiro lugar, e como se pode assegurar que não será novamente gerado no futuro? É por isso que a dimensão produtiva do sistema – a saber, a própria relação do capi-tal – é que deve ser fundamentalmente mudada a fim de superar a crise estrutural através da mudança estrutural adequada.

A dramática crise financeira que expe-rimentamos nos últimos três anos é apenas um aspecto da trifurcada destrutibilidade do sistema de capital.

(1) na esfera militar, com as intermináveis guerras do capital desde o começo do imperia-lismo monopolista nas décadas finais do século XIX, e suas mais devastadoras armas de destrui-ção em massa nos últimos sessenta anos;

(2) a intensificação, através do óbvio impacto destrutivo do capital na ecologia, afetando diretamente e já colocando em risco o fundamento natural elementar da própria existência humana, e

(3) no domínio da produção material e do desperdício cada vez maior, devido ao avanço da “produção destrutiva”, em lugar da outrora lou-vada “destruição criativa” ou “produtiva”.

Esses são os graves problemas sistêmicos de nossa crise estrutural que só podem ser soluciona-dos por uma completa mudança estrutural.

* Texto-base da conferência homônima proferida por István Mészáros em várias cidades brasileiras, em junho de 2011. Tradução feita pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

trutural é a completa erradicação do próprio capital do processo sociometabólico. Em ou-tras palavras, a erradicação do capital do pro-cesso metabólico da reprodução societária.

O capital em si mesmo é um modo geral de controle; o que significa que ele ou controla tudo ou implode como um sistema de controle reprodutivo da sociedade. Conseqüentemente, o capital enquanto tal não pode ser controlado em alguns de seus aspectos enquanto deixa os de-mais no lugar. Todas as tentativas de medidas e modalidades para “controlar” as várias funções do capital em uma base duradoura falharam no passado. Tendo em vista sua incontrolabilidade estruturalmente arraigada – o que significa que não há poder concebível dentro da base estru-tural do próprio sistema do capital por meio do qual o próprio sistema possa ser submetido a um controle duradouro. O capital deve ser com-pletamente erradicado. Este é o significado cen-tral do trabalho de toda a vida de Marx.

Em nossos dias, a questão do controle – por meio da instituição de mudança estrutural em resposta ao aprofundamento de nossa crise estrutural – está se tornando urgente não ape-nas no setor financeiro, devido ao desperdício de trilhões de dólares, mas em todo lugar. As prin-cipais revistas financeiras capitalistas queixam-se de que a “China está sentada em três trilhões de dinheiro em caixa”, idealizando mais uma vez soluções para “o melhor uso daquele dinheiro”. Mas a verdade que faz pensar seriamente é que o agravante débito total do capitalismo chega a dez vezes mais do que o montante dos dóla-res não utilizados da China. Além disso, ainda que o imenso débito atual pudesse ser, de algum

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Somente a ideia de considerar um filósofo como Lukács já encerra por si mesma uma provocação e um risco. Não tanto porque ele pertence, como se costuma dizer, à vasta sociedade dos pensadores esquecidos e “superados” pelas vicissitudes históricas e mudanças nas modas filosóficas, pois a contínua e profusa apa-rição de livros e artigos sobre sua obra basta para re-lativizar este mito, mesmo se cada novo estudo inicia com uma advertência a respeito da “inatualidade” do tema escolhido. O principal obstáculo enfrentado ao nos depararmos com a teoria lukacsiana é, talvez, o denso emaranhado de mal-entendidos2 tecido em tor-no da obra e da pessoa do filósofo; testemunho disso oferecem as incontáveis tentativas de vincular suas teorias a um marxismo economicista, para cuja teoria a consciência se constitui somente a “tabula rasa” em que se inscrevem os dados fornecidos pela realidade

Notas sobre a atualidade de

Miguel Vedda1

Tradução: Juliana Caetano

LukácsNo início de dezembro, o professor Miguel

Vedda, da Universidade de Buenos Aires, esteve na UFF para ministrar um mini-cur-so sobre “A estética de Lukács”, durante o “Colóquio Nacional Marx e o marxismo”, realizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Mar-xismo (Niep-Marx). O Colóquio comemo-rou os 140 anos da Comuna de Paris e homenageou o filósofo húngaro Gyorgy Lukács por ocasião dos 40 anos de sua morte. Vedda é uma referência mundial na pesquisa da obra do pensador húngaro Gyorgy Lukács e a pedido da Classe es-creveu esse belo artigo, inédito no Brasil.

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externa. Esta acusação foi acompanhada de outra não menos errônea, segundo a qual a estética lukacsiana representaria uma tentativa de restringir a literatu-ra e a arte à função de reproduções “fotográficas” da realidade externa. Num e noutro caso, se atribuem ao filósofo justamente as afirmações que, durante anos, o marxismo dogmático esgrimiu contra ele, sobretudo o da União Soviética. Dito em outras palavras: vincu-la-se Lukács, por um lado, à teoria do conhecimento objetivista e, portanto, adialética que, desde Tática e Ética até a Ontologia do Ser Social, ele procurou demolir; por outro, a um realismo obstinado em re-duzir o papel da subjetividade e em converter a obra artística em imperfeito sucedâneo do conhecimento científico. Até mesmo um leitor ocasional dos textos de Lukács pode recordar que a hostilidade do autor de Balzac e o Realismo francês em relação à estética naturalista se relaciona, precisamente, com o empe-nho desta em liquidar a subjetividade e subordinar a criação imaginativa à análise científica. A defesa da figuração literária (Gestaltung) contra a reportagem e frente a certas aplicações da técnica de montagem revela uma similar oposição ao objetivismo; mas essa tendência tendência, que se nota tão bem nos escritos menores, mostra-se ainda mais ostensiva nas obras mais importantes: cabe recordar que, entre os princí-pios fundamentais de Estética, encontra-se a convic-ção de que só na criação artística é plenamente válida a tese de que não há objeto sem sujeito. O pensador que, desde Filosofia da arte (1912-1914) até a Estéti-ca da velhice, jamais deixou de afirmar que o objeto da atividade estética é a criação de um mundo sob a forma de sujeito considerava que, nessa capacidade de emancipar o sujeito dos limites impostos pela ex-periência cotidiana, residisse talvez a função utópica primordial da arte dentro de um mundo coisificado.

A inconsistência das imputações é tão patente

que talvez seja supérfluo seguir acumulando contra-argumentos; mais interessante seria interrogar-se sobre as causas que motivaram semelhante dissocia-ção entre o Lukács falsificado pelos críticos e o ver-dadeiro. Os leitores dos artigos que integram Goethe e sua época recordarão seguramente a veemência com que neles se insiste na necessidade de explorar e revelar o conteúdo ideológico das lendas históricas construídas pelos críticos. O “caso” Lukács oferece um material apropriado para este gênero de exploração, sobretudo na medida em que uma análise atenta das tentativas de falsificação permite entrever que, na loucura, houve um certo método. Frederic Jameson já havia notado há várias décadas que, para os leitores ocidentais, uma certa ideia sobre Lukács frequente-mente pareceu mais interessante do que a realidade: “É como se, em algum mundo de formas platônicas e arquétipos metodológicos, se encontrasse vago, para o crítico literário marxista, um lugar que (depois de Plejanov) só Lukács tratou de ocupar seriamente”.3

Talvez seja oportuno conceder a esta afirmação um sentido mais concreto e diverso do que lhe imprimiu Jameson, entendendo por ela que boa parte da crítica ocidental pretendeu encontrar no filósofo húngaro o bode expiatório para suas próprias estratégias esté-ticas e ideológicas. Um enfrentamento direto com os críticos do estalinismo pouco efeito teria, seguramen-te, em promover a grandeur dos críticos europeus e norte-americanos; uma manobra mais conveniente foi a de colocar na boca de Lukács toda uma série de afirmações que, na realidade, procedem do arsenal de filosofemas e declarações pertencentes aos pensado-res e poetas laureados pelo Diamat.

Contudo, não é nossa intenção incorporar Lukács ao panteão das personalidades irrepreen-síveis e das almas belas. Acima de tudo, porque um dos resultados mais habituais das biografias

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intelectuais edificantes costuma ser a anulação de todo exame e aproveitamento reais do pensador em questão. As obras do apóstolo correm o risco de uma abordagem nos mesmos termos em que foram consideradas, muitas vezes, as próprias obras de Marx: como Escrituras Sagradas dotadas de legitimidade absoluta, e cuja análise séria de-veria ser vedada, porque disso poderia se derivar a invalidação da teológica autoridade de tais Es-crituras. Daí que nos pareça válido o convite de Werner Jung a evitar, a propósito de Lukács, toda a apologia simplista, pois quem ensaia essa estra-tégia “converte Lukács […] em cachorro morto; se limita a inventariar seu legado no museu ou bi-blioteca dos pensamentos mortos. Levar Lukács a sério significa, também, assinalar claramente suas falhas, seus juízos equivocados, suas deformações e distorções, suas debilidades metodológicas”.4

Em consonância com tais propósitos, o que aqui procuramos é explorar e, se possível, separar – se podemos parafrasear Croce – o que está vivo do que está morto na filosofia lukacsiana.

Depois do descrédito que não pôde deixar de sofrer o marxismo durante os anos dourados do ne-oliberalismo, nos últimos anos parece ter-se aberto para o pensamento crítico um espaço pequeno, mas continuamente crescente para pensamento crítico, tanto em nosso âmbito, como em nível internacio-nal. A obra lukacsiana participa hoje deste cresci-mento, na mesma medida em que no passado fora em particular vítima do descrédito; e pode-se dizer que a América Latina exerceu uma função direti-va nessa reivindicação. O papel de vanguarda foi cumprido pelo Brasil, onde a influência de Lukács faz-se sentir com certa intensidade já há décadas; intelectuais como Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, José Chasin – que inclusive mantiveram

um contato epistolar com o próprio Lukács – e José Paulo Netto, ajudaram a favorecer uma recepção que, todavia, não parece ter-se estancado. Disso servem de testemunho, por exemplo, as contri-buições de Ester Vaisman, Celso Frederico, Ricardo Antunes, Maria Orlanda Pinassi, Carlos Eduardo Machado, Mario Duayer ou Juarez Duayer, para mencionar ape-nas alguns intelectuais empenhados na difusão da obra de Lukács, correndo o risco de esquecer outros também sig-nificativos. Na Argentina, o interesse e a dedicação dispensados a Lukács se intensificaram particularmente nos últimos anos; além de cursos de graduação e pós-graduação sobre o filósofo húngaro, organizaram-se em Buenos Aires grandes congres-sos internacionais centrados total ou parcialmente em Lukács, dos quais participaram não só alguns dos intelectuais brasileiros antes mencionados, mas também estudiosos estrangeiros, como Werner Jung e Ja-nos Keleman. Em especial, é promissor o fato de que a obra lukacsiana tenha conse-guido despertar interesse em estudantes ou graduados muito jovens. Também participamos dessa difusão editando textos inéditos de Lukács em espanhol; assim, em colaboração com Antonio Infranca, aparece-ram vários livros pelas Ediciones Herramienta, como o Testamento político (2003) e Ontologia do ser social: o trabalho (2004), além da antologia de ensaios György

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Lukács y la literatura alemana (2005). A isto se deve somar a aparição mais recente de obras como Lenin-Marx (2005), Tática e Ética: escritos políticos(1919-1929) (2005), a compilação György Lukács: Ética, Estética y Ontología (coeditada por Antonino Infranca e Miguel Vedda, 2007), e ainda Escritos de Moscou (2011). Entre os estudos mais extensos e abrangentes sobre sua obra, caberia mencionar o livro, de Antonio Infranca, Trabajo, individuo, historia: el concepto de trabajo en Lukács (2005); modestamente, poder-se-ia agregar também meu próprio livro La sugestión de lo concreto (2006), que contém vários estudos sobre a teoria estética lukacsiana.

Poderíamos agregar ainda algumas palavras sobre a importância e as perspectivas de uma recep-ção argentina da obra de Lukács. Tendo em vista que corresponde a um campo intelectual parcialmente fascinado pelas efêmeras ondas que atravessam a superfície do capitalismo tardio, um setor significa-tivo da intelligentsia argentina se deixou atrair pelo enganoso canto de sereias dos filósofos da moda, sobretudo os vinculados ao pós-estruturalismo. Os acontecimentos que tiveram lugar na Argentina no fi-nal de 2001, e que, além da crise financeira e política, implicaram o surgimento de novas formas de oposi-ção e de uma ávida busca de alternativas, ajudaram também a quebrar a aparente solidez de toda uma série de propostas filosóficas, que bruscamente mos-traram o que nelas havia de frívolo e entretenimento passageiro. Nessas circunstâncias, como dissemos, começamos a nos ocupar em difundir seriamente a obra de um pensador especialmente cético quanto às modas transitórias e empenhado em rastrear os verdadeiros fundamentos da realidade. É conhecido o modo em que, em Pensamento vivido: autobiografia em diálogo, Lukács se refere à fascinante influência

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que, em um primeiro momento, Ernst Bloch exerceu sobre ele. Nas palavras do próprio Lukács:

Bloch teve sobre mim uma influência poderosa, já que, através de seu exemplo, me convenceu de que é possível filosofar à maneira tradicional. Até então, havia me perdido entre o neokantis-mo de minha época, e agora encontrava em Blo-ch o fenômeno de que alguém filosofava como se toda a filosofia atual não existisse, o fenômeno de que era possível filosofar como tinha feito Aristóteles ou Hegel.5

O pensador húngaro costuma produzir um efeito similar no leitor que hoje se enfrenta com suas obras livre dos antolhos impostos pelas teorias filosó-ficas da moda. À primeira vista, essas obras resultam “intempestivas”, “inatuais”, precisamente na medida em que o autor procede “como se toda a filosofia atual não existisse”, como se fosse preciso discutir no mes-mo plano que o fizeram Aristóteles, Hegel ou Marx. Claro que esta atitude aparentemente distanciada e

“olímpica” é, na verdade, o produto de uma compreen-são mais profunda do mundo contemporâneo; é fruto de um pensamento que postula como única posição genuinamente válida uma atenção aos deslocamentos lentos e significativos, às “ramificações capilares” que ocorrem debaixo da agitada superfície do presente. Lukács estava convencido de que a “inatualidade” de sua filosofia não haveria de impedir que no final fosse admitido o seu conteúdo de verdade, em consonância com seu motto predileto, inspirado em uma conhecida frase de Zola: “A verdade está lentamente em marcha e no final dos finais nada a deterá”. Em uma carta a Frank Benseler, Lukács escreveu, referindo-se à influência de seu pensamento:

Creio que hoje o ponto de vista filosófico de Spi-noza sub specie aeternitatis se mantém vigente, mas com uma modificação qualitativa decisiva, a saber: a eternidade significa hoje a continuidade da evolução humana, que com isso se distingue, certamente, das oscilações próprias à agitação da vida empírica, mas persiste, no essencial, um componente do processo sócio-histórico. Natu-ralmente seria desumano, e inclusive hipócrita, declarar-se insensível com respeito à influência ou à falta de influência. Mas quando se tem a firme convicção de que o que se pensa e crê avança no sentido da continuidade da evolução humana, estas diferenças adquirem um acento essencialmente diverso.6

Cético frente às ligeiras esperanças, mas tam-bém ao temor, Lukács sabia que o êxito superficial e imediato não é nunca garantia da legitimidade de um pensamento ou práxis determinados. Em sua infân-cia, havia aprendido, lendo Homero e Fenimore Coo-per, que normalmente aqueles que sofrem a derrota são os consumados portadores da verdade e da virtu-de ética, e essa leitura se converteu em determinante para toda sua evolução posterior. Em sua velhice, ci-

“Cético frente às ligeiras esperanças, mas também ao temor, Lukács sabia que o êxito superficial e imediato não é nunca garantia da legitimidade de um pensamento ou práxis determinados”

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Notas:1 Professor. Titular da Cátedra de Literatura Alemã da Faculdade

de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires – UBA, pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina – CONICET. Membro do Conselho Editorial da revista Herramienta.

2 Acaba por ser irônico que uma das categorias centrais no pensamen-to do jovem Lukács – a de mal-entendido (Mißverständnis) – seja tão adequada para caracterizar a recepção de sua filosofia.

3 Jameson, Fredric, Marxism and Form. Towards a Dialectical Criticism. Princeton: Princeton U.P., 1971, p. 160. Em português, Marxismo e forma, São Paulo: Hucitec, 1985. (N. do E.)

4 Jung, Werner, Georg Lukács. Stuttgart: Metzler, 1989, p. 145.5 Gelebtes Denken. Autobiographieim Dialog. Red.: István Eörsi. Frank-

furt a/M: Suhrkamp, 1980, p. 59. Publicado em português com o título “Pensamento vivido: autobiografia em diálogo: entrevista a István Eörsi e Erzsébet Vézer / Georg Lukács”. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem; Viçosa, MG: Editora da UFV, 1999. (N. do E.).

6 “Briefwechsel zur Ontologie zwischen Georg Lukács und Frank Benseler”. En: Dannemann, Rüdiger; Jung, Werner (eds.), Objektive Möglichkeit. Beiträge zu Georg Lukács’ Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins. Opladen: Westdeutscher Verlag, 1995, pp. 67-105; aqui, pp. 73-74.

7 A causa vencedora agradou aos deuses, mas a vencida [agradou] a Catão. (N. do T.).

8 “Democratización hoy y mañana” foi publicado em português com o título “O processo de democratização” na coletânea “Socialismo e democratização: escritos políticos 1956-1971/ György Lukács”; organização, introdução e tradução Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. (N. do E.)

tava com aprovação o verso de Lucano: Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni.7

A esses motivos do pensamento do velho Lukács – tão de acordo com sua simpatia pelos “humilhados e ofendidos” – caberia agregar outro. Sabe-se que ele insistiu na necessidade de se ter como ponto de par-tida da análise filosófica o “homem inteiro” da vida cotidiana: esse homem que trabalha, que produz uma objetividade e que, ao fazê-lo, produz-se a si mesmo. Semelhante ênfase sobre a cotidianidade compreen-sivelmente vincula-se à reivindicação de alguns dos princípios mais autenticamente revolucionários do marxismo, que o “socialismo realmente existente” havia se encarregado de postergar: referimo-nos em primeiro lugar ao modelo dos conselhos operários e às propostas de descentralização. Em Democratización hoy y mañana 8, Lukács insiste sobre a atividade autô-noma das massas e propõe uma maior dimensão para a espontaneidade subjetiva; o velho filósofo crê que a autogestão democrática deve estender-se ao nível mais elementar da vida cotidiana, e, dali, expandir-se para cima, de modo que finalmente o povo decida, realmente, acerca das questões mais importantes. Seria legítimo afirmar que esse mesmo espírito é o que encoraja boa parte dos movimentos de resistência que – como o das organizações piqueteiras, as assem-bleias de bairros ou as “fábricas recuperadas” – flores-cem hoje na Argentina, e que, fazendo sua conhecida “palavra de ordem” de “que se vayan todos”, reagem energicamente contra uma democracia burguesa fa-laciosa e desprovida de representatividade.

Nesse sentido, é lamentável, talvez, que o diá-logo entre a obra do velho Lukács e estes movimentos revolucionários se encontre ainda num estado em-brionário. Não estou em condições de assegurar que o pensamento e a figura de Lukács cheguem a ter efetivamente um ascendente forte e sustentado nas

lutas em busca de uma democracia socialista conce-bida como “sociedade do amor” (Lukács) e como fun-dação de uma comunidade autenticamente humana; mas estou convencido de que a possibilidade de por o autor de Ontologia do ser social ou Democratización hoy y mañana em contato com os movimentos popula-res representa um dos desafios mais importantes que temos pela frente, nós que assumimos, na América Latina, a tarefa de repensar entusiasta, mas também criticamente, a obra de György Lukács.

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Vozes da resistência contra Belo MonteVozes da resistência contra Belo Monte

Max CostaJornalista e assessor de comunicação da ADUFPA

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Aos 14 anos de idade, a menina Sheila Yakarepi Juruna assistiu a índia Tuíra encostar um facão no rosto do então diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, durante o Encontro dos Povos Indígenas, em 1989, na cidade de Alta-mira, no Estado do Pará. A cena repercutiu inter-nacionalmente e fez aumentar as pressões para que a Usina Hidrelétrica de Kararaô – prevista para o rio Xingu – não fosse construída na época.

O gesto de Tuíra marcou a vida da adoles-cente e despertou na menina uma inquietação e um sentimento de luta contra as violações dos di-reitos indígenas historicamente negados no Bra-sil. Mais de vinte anos depois, já com o projeto da Usina de Kararaô renomeado para Hidrelétrica de Belo Monte, Sheila Juruna se transformaria em uma das principais lideranças contrárias à barragem do rio Xingu e uma das vozes de resis-tência em defesa da Amazônia.

Liderança da Aldeia Boa Vista e per-tencente ao povo Juruna, um dos cinco que sofrerá impactos com a construção da Usina de Belo Monte, no Pará, Sheila, em conjun-to com lideranças do Movimento Xingu Vivo para Sempre, sobe e desce constantemente o rio Xingu, mobilizando comunidades e expli-cando os motivos para resistirem à construção do empreendimento na região.

Até a Europa Sheila já visitou, a convite de organizações não governamentais, para di-vulgar a luta contra a construção de hidrelé-tricas. “Quando fui denunciar Belo Monte na Europa, olhava para cima e, meu Deus, via aquele monte de concreto. É um monstro. Não dá para aceitar que um monte de concreto tome lugar da vida”, relata Sheila, preocupa-

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Renata Pinheiro

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da com o futuro do rio Xingu, caso Belo Monte seja construída.

A atuação em defesa da Amazônia lhe rendeu, recentemente, uma medalha de honra ao mérito concedida pela Assembleia Legisla-tiva do Pará a pedido do deputado estadual

Edmilson Rodrigues (PSOL). Mas o principal reconhecimento que Sheila gostaria de obter era ser ouvida pelo governo federal. “Nós ten-tamos o diálogo a todo tempo, mas o governo não quis nos escutar. A Dilma nunca nos rece-beu. Nós mandamos uma carta para ela, fa-lando o porquê de não construir Belo Monte e quais as alternativas, mas o governo não está se atentando para isso”, afirma.

Segundo ela, ao tentar construir a Hi-drelétrica de Belo Monte, o governo federal está desrespeitando não apenas a Constitui-ção Federal, mas acordos internacionais dos quais é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “O governo Lula se dizia do povo, mas foi esse governo que se diz popular que tem tentado destruir a vida do próprio povo. Quando o Lula voltou a ressuscitar esse belo monstro que é Belo Monte, para nós, foi uma violên-cia muito grande, uma injustiça que ele fez. Grandes coisas que ele prometeu como a de-marcação de nosso território, por exemplo, não foram cumpridas. E agora vem a Dilma para dar continuidade a esse processo de grandes empreendimentos”, aponta.

Nas mobilizações e manifestações que participa, Sheila Juruna é firme ao denunciar as irregularidades contidas no projeto de cons-trução da Usina. “Tudo em Belo Monte é grave, pois todo o processo é irregular. Eles estão vio-lando as leis do país, pois não consideraram as populações locais, os indígenas, ribeirinhos e agricultores. São nossos direitos humanos que estão sendo violados”, afirma Sheila.

Sheila Juruna, em ato contra a construção de Belo Monte.

Otávio Rodrigues

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Apesar dos impactos, não há diálogo com as comunidades

A previsão é que a obra expulse mais de 40 mil pessoas de suas casas e terras, sendo que cerca de 15 mil indígenas sofrerão as con-seqüências das barragens direta ou indireta-mente. Mas até hoje, essas famílias sequer fo-ram informadas para onde serão deslocadas.

Nenhuma oitiva indígena – assegura-da pela Constituição Federal – foi realizada e as audiências públicas foram promovidas em apenas 3 dos 11 municípios atingidos, sob forte aparato militar e sem que a comunida-de e os posicionamentos contrários à hidrelé-trica pudessem ter assento à mesa. “Foi uma grande farsa, um teatro que as empreiteiras e o governo federal fizeram para enganar a população de que houve participação popular e justificar a realização do leilão”, conta Mar-quinho Mota, do Fórum da Amazônia Oriental (Faor), e membro do Movimento Xingu Vivo para Sempre, que reúne mais de 250 organi-zações na luta contra a Usina de Belo Monte.

As audiências chegaram a ser contesta-das pelo Ministério Público Federal (MPF), que move mais de dez Ações Civis Públicas contra o empreendimento, questionando des-de a forma como foi feito o Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima) até o processo de licen-ciamento da obra.

A construção de Belo Monte vai secar uma área de cem quilômetros da Volta Grande do rio Xingu, acabando com a biodiversidade local. Do outro lado, o represamento trará dificuldades de tráfego e navegabilidade, além do pescado não

resistir ao forte calor das águas baixas do rio. É nessa área que fica uma das aldeias do povo de Sheila, os Juruna. “Nós estamos sentindo na pele toda essa decisão que vem de cima para baixo, sem nos consultar e nos ouvir de fato. Belo Monte é um processo que vem mascarado, porque não é explicada a verdade aos parentes”, garante a líder indígena.

Segundo o MPF, a estagnação das águas aumentará o número de pragas, gerando sérios riscos sanitários e a proliferação de doenças como a malária na região. A qualidade da água dos re-servatórios foi questionada, inclusive, por técni-cos do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) antes da concessão da licença ambiental. Porém, tal ques-tionamento, assim como outros apontados por especialistas, foi ignorado pelo governo.

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Antonio Cruz/ABr

Audiência pública no Senado discute as violações de direitos humanos na região onde será construída a usina de Belo Monte.

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Para construir Belo Monte, o governo federal propaga a informação de que a Usina irá gerar uma capacidade de energia superior a 11 mil kW. No entanto, de acordo com o Mo-vimento Xingu Vivo para Sempre, a hidrelé-trica vai gerar, em média, apenas 39% de sua capacidade máxima de produção de energia, o que aponta a inviabilidade econômica do empreendimento, em função das caracterís-ticas sazonais do rio Xingu, cujo período de estiagem vai de junho a novembro. Daí, o fato de diversas empreiteiras terem desistido, na última hora, de entrar no consórcio que vai construir a Usina.

Apesar do risco econômico, o governo fe-deral vai financiar, via Banco Nacional de De-senvolvimento Econômico e Social (BNDES), 80% do empreendimento, cobrando juros de 4% ao ano, com um prazo para pagamento de

três décadas. Todo esse investimento público sequer vai diminuir a tarifa de energia elétrica paga pelos moradores ou atender a população amazônica. Cerca de 80% vão para o mercado industrial do centro-sul do país e os 20% que ficarão no Pará, serão destinados a empresas mineradoras como a Vale e a Alcoa. “Não há essa história de geração de energia. Isso tudo é mentira. O grande interesse em tudo isso é a mineração nas terras indígenas. Em Al-tamira, nossas terras são ricas em minérios, principalmente ouro e outros tipos, que nem nós temos a dimensão do que tem ali, mas que eles já pesquisaram”, revela Sheila Juruna.

Especialistas também ignorados

Não foram apenas as comunidades locais que o governo federal ignorou em seu projeto de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Cientistas, pesquisadores e professo-res universitários que se dedicam, há anos, a estudar a bacia do rio Xingu e a Floresta Amazônica sequer foram ouvidos pelos execu-tivos do governo.

Em um documento lançado em 2009, o Painel de Especialistas, formado voluntaria-mente por estudiosos de diversas instituições de ensino e pesquisa do Brasil, identificou e analisou graves problemas e lacunas no Estu-do de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Mon-te. No documento, eles colocam em xeque a confiabilidade e qualidade dos dados apresen-tados pelo governo.

Os especialistas afirmam que o governo

Lideranças indígenas debatem impactos gerados por grandes obras, entre elas, as da construção da hidrelétrica de Belo Monte.

Foto: Valter Campanato/ABr

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subdimensiona a área diretamente afetada, a população atingida, a perda da biodiversidade e o deslocamento compulsório dos povos do campo e da cidade. Para isso, eles apontam inconsis-tência metodológica nos relatórios do governo, além de classificação equivocada das espécies nativas da região, correlações que induzem a erro e utilização de retórica para ocultar os re-ais impactos. De acordo com o Painel, o governo nega os impactos à jusante da barragem princi-pal e da casa de força da usina e negligencia os riscos à saúde e a segurança hídrica.

Apesar da relevância dos estudos apresen-tados, o governo federal nunca se manifestou em relação às análises do Painel de Especialis-tas. “Depois disso, nós, do Painel, encabeçamos uma carta à presidente Dilma com mais de 500 assinaturas de cientistas do Brasil inteiro, das mais diversas áreas. Essa carta jamais foi res-pondida pela presidente e é um silêncio absolu-to. É como se nós não falássemos”, aponta a an-tropóloga e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Sônia Magalhães, que integra o Painel de Especialistas.

Enquanto o governo propagava que a ca-pacidade de geração energética de Belo Monte superaria os 11 mil kW, os estudos do Painel de Especialistas indicaram a perda de mais de 60% entre a potência instalada e a geração de energia da Hidrelétrica. Esse dado comprovou a inviabilidade econômica do empreendimen-to, uma vez que é necessário uma usina ter a capacidade de, no mínimo, 55%, para ser viá-vel economicamente. O Painel chamou a aten-ção, também, para a emissão de gás metano pelas hidrelétricas, que contribui para o efeito

estufa, causando um impacto no aquecimento global 25 vezes maior que o gás carbônico.

Ao criticarem a construção da Hidrelé-trica de Belo Monte, os pesquisadores ligados ao Painel têm se preocupado em apontar alter-nativas. Por exemplo, há o estudo do professor da Universidade de São Paulo (USP), Célio Bermann, que indica que se houvesse comba-te ao desperdício nas linhas de transmissão de energia e se as 157 hidrelétricas brasilei-

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ras fossem repotencializadas e tivessem seu parque tecnológico renovado, não seria pre-ciso construir novas hidrelétricas no país, evitando novos impactos ambientais.

Para a professora Sônia Magalhães, o silêncio do governo diante das críticas e alter-nativas apontadas pelo Painel de Especialis-tas é preocupante. “Eu fico muito preocupada, porque a energia de Belo Monte é para abrir o processo de ocupação da Amazônia, cujos con-tornos não estão muito claros. As hipóteses são de uma ocupação que não leva em conta o respeito à diversidade social e cultural e a preservação da biodiversidade”, indica.

Um futuro de incerteza no rio Xingu

A possibilidade da construção da Usi-na Hidrelétrica de Belo Monte se concre-tizar tem aumentado a incerteza entre os indígenas e povos da floresta e acirrado os conflitos na região de Altamira, no Pará. “Nossa luta não vai ser mais de caneta e papel, como nós tentamos fazer. O gover-no está pedindo, nos incitando à guerra e o povo de toda a bacia do Xingu está unido contra esse empreendimento. E nós vamos lutar até o final”, adianta Sheila.

Ela responsabiliza o governo federal, caso haja enfrentamentos físicos na região, para impedir a barragem do rio Xingu. “A culpa de tudo que acontecer de agora em diante é do governo federal, porque ele está fechando os olhos e os ouvidos diante de nos-

A possibilidade de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte representa um risco para o rio Xingu, que já enfrenta uma situação precária, e para animais e povoados que dependem dele para sobreviver.

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sa causa. Nós estamos gritando e mostrando a verdade para o governo, de que há outra forma de desenvolver a região, que não seja destruidora, como é a hidrelétrica de Belo Monte”, afirma Sheila.

Diante da possibilidade da Hidrelétrica ser construída, Sheila Juruna fica inquieta com tantas incertezas. “O rio Xingu é a nossa casa, é como se alguém chegasse e jogasse uma bomba na sua casa. Será que o gover-no não pensa? Será que não está enxergando isso? E as nossas crianças? E os mais velhos que estão nas aldeias e nem falam português? E os isolados que vivem na Volta Grande do Xingu. Isso não está sendo considerado. Esse processo é muito desumano”, questiona.

Conhecida como a “guerreira do Xin-gu”, a líder indígena não consegue conter a emoção ao imaginar o futuro da região. “O povo sobrevive daquele rio, do peixe, da na-vegação, de tudo. Tem muitas praias lindas, natureza viva em nossa região. Se destruí-rem o rio Xingu, a nossa história vai estar só nos livros. Infelizmente, eu tenho medo de, no futuro, a nossa história ser contada só nos livros e os meus filhos não vão con-seguir ver o que presenciei e estou vivendo agora”, lamenta a indígena.

À medida que os canteiros de obras ga-nham os primeiros contornos e as máquinas chegam às margens do rio Xingu, os confli-tos aumentam e o futuro é de incerteza na região. Porém, entre as vozes que se levan-tam contra Belo Monte, há uma certeza: só com resistência e luta, será possível barrar as barragens dos rios da Amazônia.

Renata Pinheiro

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Marina Pita

A saga de um grupo de teatro classista

A saga de um grupo de teatro classista

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Jornalista

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O nome Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes ganhou projeção nacional depois do gru-po vencer a categoria Especial pela pesquisa e criação de “A Saga do Menino Diamante – Uma Ópera Periférica” na 23ª edição do Prêmio Shell de Teatro. No palco, no momento de receber a es-tatueta, ao invés dos agradecimentos tradicionais, os artistas fizeram uma performance irônica, cri-ticando a empresa petrolífera patrocinadora desse que é um dos mais prestigiadas prêmios da área.

Na noite de 15 de março, a atriz Nica Ma-ria jogou óleo queimado, simulando petróleo, sobre a cabeça do ator Tita Reis que discursava: “nosso coração artista palpita com mais força do que qualquer golpe de Estado patrocinado por empresas petroleiras.”

À época, o coletivo divulgou nota pública lamentando que uma das premiações mais con-ceituadas no meio artístico seja patrocinada por “uma empresa que participa ativamente da lógi-ca de produção de ditaduras perenes, guerras e golpes de Estado”. Ainda, criticou a lógica de pre-miações, por entender que, além de naturalizar hierarquias e competições, delega a grupos econô-micos o poder de decidir o que é ou não é arte.

Mas não é apenas por se posicionarem de forma crítica em relação a processos seletivos dos melhores espetáculos do ano, ou por apontarem o dedo para os interesses escusos da Shell que o Coletivo é tão diferente. Nem mesmo por cau-sarem grande desconforto a um público que se considera “descolado” no momento de seu êxtase. Não por isso, tampouco.

Talvez a grande diferença do grupo para os demais é o fato de se definir como classista, ao lado dos trabalhadores e em luta por uma trans-

formação social. Elaborando o que chamam de estética de combate, esses artistas buscam a arte que apóie os movimentos sociais na derrubada dos pilares do atual modelo sócio-econômico e seja, portanto, revolucionária.

Para o grupo, que existe há dez anos na periferia de São Paulo, é preciso que o teatro e a autodenominada classe artística se posicionem politicamente, já que toda a arte – queira ou não – está a serviço de interesses socioeconômicos. “Qualquer arte que se afirme neutra é mentiro-sa. Ela está a serviço de alguém. Mesmo aque-la de fruição, ao não querer transformar nada, também se posiciona”, afirma Luciano Carvalho, integrante do Dolores desde sua criação.

Assim, seus vinte e cinco integrantes – classificados por alguns como os extremistas lunáticos da noite de glamour – defendem o for-talecimento do que chamam de cultura popular, aquela produzida pelos trabalhadores e para os trabalhadores. Não a entendem como aquela me-nor, tradicional ou folclórica. “Trabalhamos com elementos da cultura tradicional, mas também atualizamos, identificando os atritos do cotidiano e reapresentando esteticamente”, explica Érika Viana, outra representante do primeiro núcleo que originou o coletivo.

Todo o entendimento do fazer cultura popu-lar por trabalhadores para trabalhadores tem um resultado prático que os distingue de muitos ou-tros grupos de teatros: não cobram ingresso. Des-de o início de suas apresentações, não era preciso desembolsar nada para sentar na platéia porque havia uma tentativa de construir cultura na co-munidade onde estavam e ainda estão sediados.

Mas agora, a questão é mais crítica: ao

Fotos: Divulgação

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receber verbas de incentivo público, o trabalha-dor já contribui para o fazer artístico e cobrar a entrada seria um roubo, no entendimento do Dolores. “Se pegarmos dinheiro público, de im-posto de trabalhador, nada pode ser cobrado. Cinco reais é acharque, roubo ou distorção na compreensão política desse processo. Se esta-mos construindo algo com a riqueza produzida pelos trabalhadores, então nossa contraparti-da é receber nossos soldos e oferecer de volta à classe trabalhadora sem custo adicional, o que eles já pagaram”, refor-ça Luciano.

Com um prêmio Shell no currículo, o Do-lores bem poderia agora buscar teatros de reno-me nacional e ganhar alguns trocados a mais, mas o grupo não está interessado em sair da Zona Leste e se apre-sentar no centro econô-mico-financeiro da ca-pital paulista. “A gente não é lacaio pra ficar se matando para entrar em cartaz no teatro Alfa e se apresentar para a burguesia, tal como um monte de artista que vive se acotovelando para isso: servir. Se um dia a gente precisar vender nosso trabalho, va-mos vender, tal como qualquer trabalhador”.

Estar no bairro Cidade Patriarca fazia parte do projeto iniciado há dez anos, quando Luciano e Erika eram estudantes do curso de jornalismo em uma universidade particular da Grande São Pau-lo. Ali faziam o jornal Boca Aberta e participavam

do movimento estudantil. O grupo político no qual estavam envolvidos, divertem-se ao lembrar, cau-sou pânico na direção da escola de ensino superior ao organizar a paralisação de 600 estudantes que gritavam o slogan: “nós não vamos pagar nada.”

Mas a revolta não era apenas com a uni-versidade. A exclusão de comunidades da pe-riferia do sistema teatral e a exclusão na qual vivem muitos artistas fizeram Luciano, Erika e outros dois conhecidos fundarem o Dolores com duas premissas: iam se estabelecer na periferia e

criar um circuito teatral fora do centro.

Buscar um local para os ensaios foi o primeiro desafio. “Não tinha dinheiro nenhum pra fazer isso, mas pre-cisávamos de uma sede. Pensamos na escola pú-blica porque entendía-mos que, se o espaço era público, podíamos cons-truir algo coletivamen-te”, lembra Luciano. Um

projeto que propunha a troca de um espaço por um curso de teatro para estudantes interessados foi então preparado e distribuído. Depois de en-frentar a desconfiança de algumas diretorias pe-dagógicas, a Escola José Bonifácio os aceitou.

Foi o início do trabalho e dos vínculos com a comunidade. “Nesse período demos aula para os jovens e começamos a estabelecer uma rela-ção com o entorno porque sabíamos que isso iria nos construir”, aponta ele. Na José Bonifácio, o grupo encenou sua primeira peça: Bonecos Chi-

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neses, escrita por Caio Fernando Abreu, depois de realizada uma pesquisa de como utilizar os materiais e o espaço limitado da sala de aula para se apresentar.

Durante este tempo, o coletivo olhava com interesse o Centro Desportivo Municipal (CDM), um galpão vizinho erguido em um amplo terreno durante a gestão de Luisa Erundina na prefeitu-ra paulistana, fechado e abandonado pela gestão Paulo Maluf, entregue a um grupo de senhores chilenos na gestão Celso Pitta e reaberto duran-te a gestão Marta Suplicy. A história do Dolores se confunde com a política.

Na época, dois grupos conservadores defi-niam o uso do espaço, mas o Vento Leste – movi-mento com tendências de esquerda – e o Dolores (sendo que havia integrantes em comum nos dois grupos), começaram uma disputa para democra-tizar o uso, acabar com a hierarquia na gestão e abri-lo para outros grupos. Uma das batalhas simbólicas foi a construção da Arena Arbórea, lo-cal de encenação de parte do premiado A Saga do Menino Diamante. “Eles não apenas não que-riam fazer, queriam nos impedir de construir a arena, argumentando falta de relação da arena com o esporte. Tivemos de escrever um documen-to explicando como o tai chi chuan e a capoeira, por exemplo, se beneficiariam”.

Ao fim, os integrantes do Dolores e mais alguns construíram a Arena Arbórea com 16 me-tros de diâmetro, um de profundidade e um de largura e, com o tempo, acabaram por cansar os demais grupos que abandonaram o espaço, que hoje se transformou em sede do Dolores.

Apesar dessa vitória, os cinco primeiros anos do grupo foram difíceis. Sem recursos, os

integrantes sempre trabalharam e tinham cons-ciência que, da forma como entendiam o fazer artístico, o teatro não traria riqueza. Esse é um dos motivos para que o grupo tenha tido diversas configurações nestes dez anos. “O lema era entra quem quer e fica quem agüentar”, brinca Erika. Mas não era apenas isso: a gestão democrática – na qual todas as decisões são debatidas coleti-vamente em longas reuniões – exige tempo, con-vencimento e resistência, explica ela. O Dolores não leva a voto nenhuma questão. Elas são de-batidas até haver consenso ou alguém entender que sua opinião é minoritária e abrir mão dela, aguardando as reuniões de balanço posteriores.

A vida não ficou mais fácil com a desmobi-lização dos grupos conservadores no CDM. O lo-cal foi fechado. O coletivo, porém, entendeu que era necessário ocupar aquele espaço e mantê-lo produzindo. Ali ficou “clandestino” por cinco anos, enfrentando o abandono que trouxe usuá-rios de drogas, traficantes, desmanchadores de carros roubados, entre outros, para o local. “Não havia banheiro. Os homens usavam o mato, as

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mulheres, um balde”, lembra Erika.O Dolores venceu pela resistência e por

iniciativas que levaram moradores a usufruir do local. O irmão de Luciano, por exemplo, orga-nizou uma escolinha de futebol que funcionava na quadra que há no fundo do terreno. Há pouco tempo, o coletivo conquistou o direito de usar o local, aberto também para outros grupos organi-zados da região. Em verdade, a situação melho-rou a partir de 2006, quando conseguiram, pela primeira vez, recursos públicos.

A Lei de Fomento ao teatro, importan-te lembrar, é fruto da luta de grupos ligados à produção cultural que se organizaram no movimento Arte Contra a Barbárie e que rei-vindicavam maior volume de recursos para a cultura e que o Dolores acompanhou quando ainda em gestação. Mas apenas em 2006 o grupo obteve recursos públicos pela primei-ra vez. A partir de então, avalia Luciano, foi possível ampliar o tempo de formação política dos integrantes. “A materialidade está intrín-seca e ligada à formação do ser social. Se está negada à periferia e à classe trabalhadora, o acesso à materialidade, está colocado um fa-tor determinante para a alienação. É mais di-fícil se emancipar”, diz Luciano.

Os recursos também ajudaram o grupo a aumentar a produção. Depois de uma experiência com grupos de artistas da Zona Leste na casa onde moravam alguns integrantes, a Casa de Dolores, na qual produziram um espetáculo com trechos de textos, música e poesia, ainda na fase sem recur-sos, o grupo encenou sua primeira peça com texto próprio, a “Sombras dançam neste incêndio”.

Nesta peça, o grupo criticava as religiões,

Marina Pita

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que na opinião do grupo, desmobilizava as cons-truções coletivas ao colocar uma perspectiva in-dividual às conquistas do ser humano. O texto foi fruto da experiência do próprio coletivo que perdeu um grupo de integrantes para a prática do consumo de Ayuasca, uma bebida produzida a partir de duas plantas amazônicas.

Depois dessa fase difícil, desagregadora, houve grande fortalecimento do caráter classista do grupo, tal como é hoje.

A saga do Dolores, no entanto, segue seu rumo longe da cooptação do dinheiro, desenvol-vendo projetos de arte de resistência. “A Saga do Menino diamante foi premiada porque nosso tra-balho trazia 300 pessoas por sábado. No último, tínhamos 600 pessoas no CDM. Mandávamos ônibus para buscar militantes dos movimentos sociais organizados com recursos de fomento público. Vinha gente de esquerda, do entorno, universitários”, conclui Luciano.

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Se acompanharmos as esparsas notícias veiculadas pelos meios de comunicação hege-mônicos em nosso país, pouco, muito pouco sa-beremos do que trata a Comissão Nacional da Verdade, sancionada, em novembro último, pela Presidente da República.

Estas pequenas notícias midiáticas vêm pro-duzindo determinadas subjetividades hegemônicas (modos de ser, perceber, sentir, pensar, agir) sobre a história recente do Brasil. Ou seja, apenas par-celas mais conservadoras, algumas saudosistas da ditadura, empenham-se hoje — com boa cobertura destes grandes meios de comunicação, diga-se de passagem — em criticar e falar da inconstituciona-lidade e ilegalidade desta Lei. Os demais, grandes segmentos médios da intelectualidade, os governos federal e estaduais, dentre vários outros segmen-tos, diferentes categorias profissionais... apoiam,

quase que de modo irrestrito, esta proposta de Comissão Nacional da Verdade que, segundo afir-mam, apontará as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura.

O que neste pequeno texto pretende-se mos-trar é que — fugindo dessa dicotomia produzida e aceita naturalmente: os que apoiam versus os que negam — há uma outra posição que vem se afirman-do, forjando outros modos de pensar uma Comissão da Verdade diferente desta Comissão do Possível.

É desta “terceira via”, ainda minoritá-ria social e totalmente silenciada pela grande mídia, que vamos falar um pouco. Para tal, há que pensar, mesmo que sucintamente, sobre a recente história de nosso país.

Desde a sanção da Lei da Anistia, em 1979, ainda em pleno período de ditadura, já se questio-nava a interpretação hegemônica que a ela se deu.

“É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.”(Carlos Marighella, Rondó da Liberdade)

Comissão da Verdade: mais uma farsa, mais um engodo

Cecilia Maria Bouças Coimbra*

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Ou seja, pelos chamados “crimes conexos”, todos aqueles que cometeram atos contra a humanidade (sequestros, prisões ilegais, torturas, assassinatos e ocultação de restos mortais) estariam anistiados.

Alguns movimentos sociais nunca aceitaram tal interpretação e grandes juristas, como os Drs. Fábio Konder Comparato e Hélio Bicudo, já aponta-ram, brilhante e completamente, que não há cone-xidade entre os atos praticados pelos grupos oposi-cionistas ao regime militar e o terrorismo de Estado que à época se implantou em nosso país.

Apesar disto, a perversa interpretação que ficou da Lei da Anistia é a de que os tortu-radores estariam anistiados.

Sabemos que, desde a Anistia até os dias de hoje, acordos foram feitos entre as forças po-líticas que respaldaram e apoiaram aquele regi-me de terror, e os diferentes governos civis que se sucederam após 1985.

Estes mesmo acordos — entre forças civis e militares — continuam dos mais diversos modos presentes na história política do Brasil, vigoran-do até os dias de hoje. Impõem, com isto, uma certa visão da história, mantendo e fortalecendo a chamada “história oficial”: a história narrada pelos “vencedores” que retira de cena as inúme-ras memórias oposicionistas daquele tempo.

Neste cenário de acordos e concessões mú-tuas, em 1995, foi sancionada pelo então presiden-te Fernando Henrique Cardoso a Lei 9.140, que criou uma Comissão Especial sobre Mortos e De-saparecidos Políticos e concedeu aos desaparecidos um atestado de óbito. Ou seja, apenas os declarou mortos, sem no entanto esclarecer onde, quando e como ocorreram tais crimes e quem os cometeu. Em realidade, um atestado de “morte presumida”,

acrescido das provas de que esses mortos e desapa-recidos estavam sob a guarda do Estado e/ou foram assassinados por agentes desse Estado deveriam ser demonstradas por seus próprios familiares. Com isto, de modo perverso, colocou-se o ônus das provas nas mãos dos familiares: e os arquivos da ditadura continuaram trancados a sete chaves.

Por pressão de vários movimentos, criou-se, nos inícios dos anos 2000 e em alguns estados brasileiros, Comissões de Reparação Econômica para familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos. Seguindo os acordos já estabele-cidos, também essas comissões estaduais de re-paração exigiram que os interessados provassem sua prisão, tortura, morte ou desaparecimento, visto os arquivos continuarem inacessíveis.

O próprio conceito de Reparação, enuncia-do pela ONU e aprovado em 2005, aponta para a necessária investigação, averiguação, publici-zação e responsabilização desses atos criminosos e para “medidas que possam impedir e, mesmo, garantir a não repetição de tais violações”.

O Brasil, de todos os países que passaram por recentes ditaduras, é o mais atrasado neste processo de reparação. Pela Lei 9.140 de FHC ape-nas se fez a reparação econômica, não se investi-gando, e muito menos publicizando e responsabili-zando qualquer agente do Estado violador à época. O Brasil mal iniciou este processo de reparação. Entendemos que a compensação econômica é um direito, mas só tem sentido para a afirmação de algo novo em nossas vidas se for parte integrante e o final de um processo. Sem isto, as reparações meramente financeiras se transformam — e é o que tem ocorri-do no Brasil — em um competente “cala-boca”, em uma proposta de esquecimento e silenciamento, em

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José Cruz/ABr

Manifestação em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília, critica a Lei de Anistia.

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Notas:* Psicóloga, Professora Adjunta em Psicologia na UFF, Fundadora e

atual Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ.1 Movimento de resistência ao regime militar (1966-1974) na região

do Bico do Papagaio entre o Pará, Maranhão e Goiás, organizado por militantes do PCdoB.

2 A 1ª versão da Comissão foi apresentada no bojo do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, em dezembro de 2009. Houve forte pressão dos comandantes militares e do Ministro da Defesa à época, Nelson Jobim, que colocaram seus cargos à disposição por serem contrários à Comissão. O Executivo cedeu à chantagem e, em maio de 2010, anunciou a 2ª versão do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, onde a Comissão da Verdade foi totalmente modificada. Forças conserva-doras também estiveram presentes questionando vários outros pontos desse 3º Plano. Saíram vitoriosas e o Presidente à época, Luiz Inácio Lula da Silva, voltou atrás em várias questões como a do aborto, das ocupações rurais, da liberdade de imprensa, dentre outras.

especial para os atingidos e para a sociedade.Atravessada por todas estas tensões e acordos

políticos firmados, a Comissão Nacional da Verdade foi votada como “aquilo que é o possível hoje”.

Há que lembrar que, em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Estado Brasileiro a investigar, esclarecer e responsabilizar seus agentes que par-ticiparam do desaparecimento de mais de 70 opo-sitores políticos na repressão contra a Guerrilha do Araguaia1. Estendeu esta sentença aos cerca de 500 mortos e desaparecidos políticos, afirmando que a interpretação oficial da Lei da Anistia não é empecilho para tais atos reparatórios. O Brasil deveria responder à OEA no prazo de um ano. Até hoje nada foi feito. E, é no bojo de tais questões que foi votada a “toque de caixa”, em regime de urgên-cia urgentíssima, a Comissão do Possível.

Esta proposta de Comissão, em sua 2ª ver-são2, é bastante limitada. Já no próprio texto do Projeto de Lei estreitava-se a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes esco-lhidos diretamente pela Presidente da República, não tendo orçamento próprio, com atuação ape-nas em 2 anos e desviando o foco de sua atenção ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988), minimizando na história do Brasil os anos de ditadura civil-militar (1964 a 1985). Além disso, impede-se que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades com-petentes para que estas promovam a responsabili-zação dos criminosos. E, para culminar, a publici-zação de suas conclusões irá depender da própria Comissão. Ou seja, continuamos guardando sigi-

lo, produzindo segredo sobre aquele período de terror. Continuamos produzindo esquecimento.

Os crimes cometidos pela ditadura civil-militar que controlou o Brasil por mais de 20 anos permanecem desconhecidos e os documen-tos que comprovam essas atrocidades continuam em segredo, assim como os testemunhos daque-les que cometeram tais crimes.

Só teremos uma Comissão Nacional da Me-mória, Verdade e Justiça se todos os arquivos da ditadura forem abertos e publicizados; se o perío-do de terrorismo de Estado (1964-1985) for efeti-vamente investigado, esclarecido, publicizado.

Que nossa história recente possa ser co-nhecida por todos, que os agentes do Estado ter-rorista possam ser execrados socialmente e res-ponsabilizados por seus bárbaros atos.

Há muito ainda para dizer, como afirmava Marighella, e há que não ter mede de dizê-lo. Há que não entrar na chantagem do “possível” em nome de uma pseudo governabilidade democrática.

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Era noite de 4 de novembro de 1969, num estádio de futebol, em São Paulo, Santos e Corinthians duelavam. O jogador de fute-bol mais badalado, na época, não era Neymar. Era Pelé. E Pelé, de boca fechada, é e foi inigualável. Se fosse hoje, Pelé seria até marca de sabo-nete pra cachorro. Na ocasião, Pelé aproximava-se do milési-mo gol e o país acompanhava o intento com o devido mérito do atleta. Na mesma cidade de São Paulo, Carlos Marighella fora atra-ído a uma emboscada na Alameda Casa Branca. Dezenas de policiais o aguardavam de tocaia. Inclusive o fa-migerado Sérgio Paranhos Fleury, notó-rio torturador e ocultador de cadáveres, serviçal das botas oficiais. Marighella foi alvejado de forma infame e covarde, práti-ca correlata da ditadura civil e militar e sua tirania. Para muitos era o início do fim da guerrilha.

Marighella: presente!

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Edson Teixeira da Silva JuniorProfessor do Pólo Universitário de Rio das Ostras - UFF

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No entanto, o nome de Marighella não foi ba-nido da história política brasileira. Certamente, os aparelhos privados de hegemonia da classe dominan-te não lembrarão do fato. Aliás, o que mais fazem é des-memorializar o conteúdo da história e sua rica cons-telação de brasileiros que ousaram resistir. Nomes de pessoas que merecem ser lembrados sem a necessidade de idolatria, tais como: Carlos Lamar-ca, Joaquim Câmara Ferreira e Virgilio Gomes da Silva, entre muitos homens e mulheres que são imprescindíveis nos dias de conformismo e trans-formismo exacerbado.

Marighella incomoda aos conversadores e aos de esquerda por vários fatores: aos conserva-dores pela sua tenaz retidão política comunista. Se cometeu equívocos, se cometeu erros, não os fez conciliando. E, sobretudo, foi coerente com seu histórico de lutador incansável pela emancipação dos trabalhadores e trabalhadoras. Além disso, Marighella, um mulato baiano bem humorado, traduz uma chama de indignação que - como ou-tras - incendeia a frieza da razão e aquece o calor da utopia. Por fim, Marighella simboliza a resis-tência, ou, mais ainda, a capacidade de resistir à opressão aonde ela apareça.

Aos de esquerda, incomoda por formular uma concepção de organização que fez severa crítica a concepção de partido que reinava nos agrupamentos da esquerda. Se sua tática e estratégia foram derro-tadas, a crítica ao modelo de partido não o foi e me parece, em alguns quesitos, bastante atual. Por outro lado, sua trajetória política nos setores de esquerda foi marcada pela tolerância e pela divergência, mas, sobretudo, pela ternura. A prática era o seu critério de verdade, como gostava de lembrar.

Em 5 de dezembro último, Marighella teria completado cem anos. Certamente, outros incô-

modos persistem. Mas os limites desse espaço e a intenção de lembrar nos impõem a singela tarefa de comemorar. De forma breve e singela. Afinal, lembrando também resistimos.

Então, o jogo acabou, e Pelé não fez o milési-mo gol. Naquela época, os comunistas estavam no Araguaia e em outras cercanias do país desenvol-vendo a guerrilha rural e urbana. Ou organizando a luta de massas na cidade e no campo.

Triste paradoxo: em tempos de democracia tutelada, os ditos “comunistas” de hoje, que não o são, escracham a sua verdadeira face em escusas tra-móias. De fato, a prática é o critério da verdade.

Capa da biografia de Carlos Marighella escrita pelo autor deste artigo, e professor da UFF, Edson Teixeira da Silva Junior.

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Divulgação

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De Capa

Realização de Copa do Mundo e Jogos Olímpicos serve de pretexto para reordenação espacial em cidades brasileiras, intensificando o processo de exclusão social

Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?Mega-eventos para quem?

Parte da área onde se situava a Vila Recreio 2, demolida para dar lugar à TransOeste

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Alvaro Neiva

Quando o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014, e o Rio de Janeiro para ser a cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016, houve muita comemoração. Além da expectativa do Brasil ganhar mais destaque no cenário internacional, os projetos apontavam a possibilidade de as cidades brasileiras receberem muitos investimentos, e que ambos os eventos deixariam um importante legado social. A cerca de dois anos e meio do início da Copa do Mundo, o que observamos é totalmente diferente: vemos um processo de reorganização socio-espacial das cidades brasileiras que intensifica a segregação social, prevalecendo a implantação de um modelo empresarial de cidade.

No dia 12 de dezembro do ano passado, hou-ve atos públicos simultâneos nas 12 cidades-sede da Copa de 2014, nos quais os movimentos sociais entregaram a autoridades cópias de um elaborado dossiê, onde denunciam uma série de violações de direitos em função da Copa. O documento também foi protocolado em secretarias de governos esta-duais e ministérios do governo federal, além de órgãos como o Ministério Público Federal, o BN-DES, a Controladoria Geral da União e o Tribunal de Contas da União. Organismos internacionais, como a Comissão de Direitos Humanos da OEA, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), e relatorias especiais da ONU também receberam cópias do dossiê. O documento relata, entre ou-tras coisas: casos de remoções e desapropriações arbitrárias, más condições de trabalho e super-exploração nas obras, descaso com as normas de preservação ambiental, militarização excessiva das cidades, especialmente as áreas mais pobres.

“Os mega-eventos estão sendo utilizados Fotos: Luiz Fernando Nabuco

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para fazer as modificações que há muito tempo queriam fazer em nossas cidades, mas que eram impopulares. Então, em função da paixão do bra-sileiro pelos esportes, em especial pelo futebol, é possível criar um consenso para realizar essa série de modificações na cidade, e impor um modelo de desenvolvimento cada vez mais excludente”, afir-mou Clara Silveira, do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, e do Movimen-to Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), em audiência pública sobre o legado social dos mega-eventos, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Segundo a Articulação de Comitês Populares, os preparativos para a realização da Copa de 2014 em 12 cidades-sede e das Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro já provocaram o despejo de mais de 2 mil pessoas pessoas em todo o país. A expectativa é que o ritmo de remoções se intensifique, com a aproximação da data dos eventos. Nas expectativas mais sombrias, a Articulação acredite que o número total de pessoas removidas pode chegar a 170 mil.

“O que nós estamos insistindo é que não há informação, avisos de remoção sem nenhuma an-tecedência, nenhum espaço de diálogo e de parti-cipação, nenhum espaço para que as comunidades possam apresentar um projeto alternativo que minimize as remoções. Enfim, tudo isso é desres-peitado. Por outro lado, também estão acontecen-do muitas violações no campo das compensações financeiras, indenizações e propostas de reassen-tamento. As indenizações estão com valores ex-tremamente baixos: R$3 mil, R$5 mil, R$10 mil... valores totalmente insuficientes para que aquelas famílias possam ter acesso a uma moradia ade-quada; elas realmente ficam sem ter onde morar”, afirma Raquel Rolnik, Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.

Vila Recreio 2 removida com truculência

No Rio de Janeiro, um dos exemplos im-portantes da truculência com que são feitas essas remoções é a Comunidade Vila Recreio 2, no Recreio dos Bandeirantes, na zona Oeste. Segundo alguns moradores, a comunidade estava estabelecida no local há cerca de 50 anos. O morador mais antigo teria chegado lá há 70 anos. A prefeitura previa a remoção da comunidade para a construção da TransOeste. O Ministério Público determinou que assim que as indenizações fossem depositadas, a prefeitura poderia iniciar a demolição das casas.

Todavia, antes que qualquer indenização fosse depositada, uma ação da prefeitura realiza-da em 27 de dezembro de 2010 derrubou 70% das casas da comunidade. E a maioria dos depósitos que foram efetuados permanecem bloqueados até hoje, por questões burocráticas. Em abril, nova ação da prefeitura derrubou mais casas.

“Estamos passando uma vida de cão. Minha casa foi derrubada em abril, com tudo dentro. Além do prejuízo, sofri uma enorme humilhação. Como eu resisti, eles me seguraram enquanto bo-tavam minha casa no chão”, afirma Selvita Maria Rufino. “Estou pagando aluguel desde janeiro de 2011, mas os números de telefone que devemos ligar para receber o aluguel social simplesmente não atendem”, completa Selvita.

Hoje, o cenário da antiga Vila Recreio 2 é desolador. Onde antes havia quase 300 casas, hoje persistem cerca de 20. Os entulhos das poucas casas derrubadas na operação mais recente – em agosto – permanecem no local. Embora o traça-do da nova pista já esteja absolutamente livre, a prefeitura segue ameaçando de derrubar as casas

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que permanecem em pé. Enquanto a reportagem da revista Classe visitava o local e conversava com alguns antigos moradores, um funcionário da pre-feitura se aproximou, com um pretexto qualquer, apenas para sondar do que se tratava.

“Se a Justiça fosse realmente justa, esses ‘ca-ras’ não faziam tudo isso. Os procedimentos estão errados, mas a Justiça fica de braços cruzados, deixa a prefeitura fazer o que quer. Eles são, no mínimo, coniventes”, afirma Jorge Santos, do Movimento União Popular (MUP), uma das principais lideranças da comunidade. Embora já estivesse fora do traçado da via, a casa de Jorge foi derrubada em agosto.

Alguns dos moradores que resistem obtive-ram, com a ajuda da defensoria pública, declara-ção de posse. É o caso de José Zielde Berssot Bessa que acredita que agora será mais fácil resistir aos ataques da prefeitura.

Outro caso emblemático é o do Parque Line-ar Várzeas do Tietê, na cidade de São Paulo. Se-gundo o dossiê, a obra prevê a construção de uma avenida, ‘Via Parque’, para ‘valorizar a região’ [...] que fica às margens da rodovia Ayrton Senna, en-tre o Aeroporto Internacional de Guarulhos e o fu-turo estádio do Corinthians, sede paulista na Copa do Mundo, em Itaquera. Mais de 4.000 famílias já foram removidas do local sem serem consultadas sobre a implantação do parque e sem saber para onde iriam. Outras 6.000 famílias aguardam sem saber seu destino. “Pegaram nós de surpresa. Com um projeto de tamanha proporção, a comunidade no mínimo tinha que ser consultada. [...] As famí-lias foram morar ali há mais de 40 anos, quando ainda não era Área de Proteção Ambiental”, afir-ma o líder comunitário Oswaldo Ribeiro.

Apesar de todas as denúncias, tanto as au-toridades quanto os dirigentes esportivos prefe-

rem ignorar. No final de setembro, Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasilei-ro, declarou à imprensa que “todos os reassenta-mentos estão sendo feitos ou por diálogo ou pela Justiça. Ninguém está sendo removido à força”.

Na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, foi proposta a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, para investigar as remoções. “O que está acontecendo com as remoções no Rio de Janeiro é uma ação perversa, devido à truculência utilizada pelo poder público”, afirma o vereador Eliomar Co-elho, do PSOL, autor do requerimento da CPI.

A CPI não foi instalada porque não conse-guiu o número mínimo de 17 assinaturas (1/3 dos vereadores). Quando faltava a assinatura de apenas um vereador, dois outros retiraram, dificultando o processo. A Mesa Diretora impôs mais dificuldades,

Jorge Santos, do MUP, teve sua casa demolida pela prefeitura em agosto.

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inviabilizando definitivamente a instalação da CPI.

Greves paralisam obras

O dossiê mostra também que a pressão para entregar os estádios dentro dos prazos previstos gerou uma precarização das condições de trabalho em diversas obras. De acordo com o documento, aconteceram dez paralisações de trabalhadores nas obras de seis dos 12 estádios que sediarão os jogos da Copa (em Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, For-taleza, Recife e no Rio de Janeiro). As pautas dos operários tinham em comum pedidos de aumento salarial, concessão de benefícios, fim do acúmulo de tarefas e das jornadas excessivas de trabalho.

As condições de trabalho nas obras estão rela-cionadas, de acordo com o dossiê, à pressa para que os empreendimentos fossem entregues. “Criou-se um fantasma que acompanhou e acompanha todo o processo de preparação para 2014 e 2016, e que,

com certo incentivo dos meios de comunicação, cria expectativas sobre a possibilidade de um fracasso vexatório da Copa no Brasil”, diz o texto.

Segundo o documento, essa pressão teria re-duzido entraves legais, beneficiando as empreiteiras envolvidas, e abrindo espaço para violações de direi-tos dos trabalhadores. “[A pressão] contribuiu para os atropelos legais, aportes adicionais de recursos públicos, irregularidades nos processos de licencia-mento de obras e inconsistência e incompletude de alguns projetos licitados sem qualquer segurança econômica, ambiental e jurídica”, diz o dossiê.

Em muitos dos casos, houve tentativas de repressão aos movimentos grevistas. Segundo o documento, em Brasília e Pernambuco, funcio-nários ligados às paralisações foram demitidos arbitrariamente.

Centenas de operários do Maracanã fize-ram uma primeira paralisação em 17 de agosto, depois que um funcionário ficou ferido por conta da explosão em decorrência do corte de um barril com uma solda. Em paralisação, os trabalhado-res iniciaram uma negociação com o Consórcio Maracanã Rio 2014, responsável pelas obras.

Entre suas principais reivindicações estava a contratação de serviços médicos para o turno da noite, e queixavam-se que estava sendo servida no canteiro de obras comida estragada. Além disso, pediam um aumento no benefício referente à ali-mentação, para R$ 180 mensais. O consórcio pro-meteu atender à maior parte das reivindicações, então os trabalhadores voltaram ao trabalho. Porém, alguns dias depois pouca coisa havia mu-dado, e os trabalhadores voltaram a cruzar os bra-ços. “Temos consciência de que estamos corretos, e eles quebraram parte do acordo. Estou em contato com outros estados, e sei que, pelo menos Minas

A presidenta Dilma Rousseff visita as obras de revitalização do estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão,

em solenidade pelos mil dias da Copa.

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Gerais e Bahia, estão com os mesmos problemas”, afirmou, à época, Nilson Duarte, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Pesada Intermunicipal do Rio de Ja-neiro (Sitraicp). Por questões burocráticas, o Tri-bunal Regional do Trabalho (TRT/RJ) declarou a greve ilegal. Apesar de discordarem da decisão, os operários voltaram ao trabalho, mas prometeram seguir com as mobilizações quando necessário.

Poucos dias depois, em 15 de setembro, em Belo Horizonte, os operários do Mineirão também en-traram em greve. Justamente no estádio onde estava prevista uma solenidade pelos mil dias para a Copa do Mundo, com a presença da presidente Dilma Rous-sef, as obras foram interrompidas. Os trabalhadores pediam aumento salarial (equiparação com São Pau-lo, onde os operários recebem R$ 1.150), aumento no valor da cesta básica de R$ 60 para R$ 160 e passar o plano de saúde individual para familiar.

No dia seguinte, com parte das reivindica-ções atendidas, os operários voltaram ao trabalho, e ocorreu normalmente a solenidade dos mil dias, com a presença de Dilma em meio às obras.

Estado de exceção

Outro tema que tem gerado grande preo-cupação na sociedade organizada são as mudan-ças na legislação para atender às exigências das entidades esportivas internacionais.

“O projeto de Lei Geral da Copa (PL 2330/2011), que dispõe sobre medidas relativas à Copa das Confederações de 2013 e à Copa do Mundo de 2014, cria um contexto de exceção, com alterações legais e administrativas de ca-ráter excepcional, e atenta frontalmente contra

os interesses nacionais, tudo em benefício da FIFA e seus parceiros. Por tal razão, os Comitês Populares da Copa das 12 cidades sede exigem que o Congresso Nacional rejeite a proposta do Executivo e abra um amplo debate com a socie-dade sobre as medidas relacionadas com a reali-zação dos Jogos no Brasil”, dizia nota pública da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa, divulgada no início de dezembro.

Apesar do forte empenho do governo federal para garantir a aprovação da lei ainda em 2011, houve grande impasse no Congresso Nacional e a votação foi adiada para o início de fevereiro.

Entre outras coisas, o projeto prevê a proibição de venda ou exposição de quaisquer mercadorias nos “Locais Oficiais de Competição, nas suas imediações e principais vias de acesso” (art. 11), sem permissão expressa da FIFA. Tal medida irá impactar fortemente sobre o comér-cio local, e os ambulantes serão penalizados se trabalharem nas “áreas de exclusividade” (zonas

O presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, e o secretário-geral da Federação Internacional de Futebol (Fifa), Jérôme Volcker, reúnem-se com a comissão especial responsável pela análise do projeto da Lei Geral da Copa do Mundo de 2014 (PL 2330/11, do Executivo).

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de exclusão) que serão demarcadas pelos muni-cípios, “considerados os requerimentos da FIFA ou de terceiros por ela indicados”.

A proposta de lei prevê também que a União assuma a responsabilidade por qualquer dano causado à FIFA. Não se trata apenas de responsa-bilidade civil pessoal. A União responderá ampla-mente por “todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos”. Se aprovada a lei, o Brasil se tornaria um fiador da FIFA em seus negócios privados.

Militarização e limpeza social

Para transmitir ao mundo uma sensação de segurança e tranqüilidade, e reverter a ima-gem de país violento, o Brasil precisava apre-sentar resultados concretos. Como antes dos Jogos Pan-Americanos de 2007, quando houve uma grande ocupação militar no Complexo do Alemão, agora as autoridades militares intensi-ficam a ocupação militar das áreas pobres do Rio de Janeiro. Como o Complexo do Alemão foi de-socupado após o Pan de 2007, a primeira grande ocupação aconteceu no mesmo local, em novem-bro de 2011. Diversas outras favelas do Rio de Janeiro têm sido ocupadas, com a instalação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora.

Embora alguns moradores comemorem a expulsão do crime organizado, vemos um processo de militarização absolutamente au-toritário, que, em certa medida, representa a criminalização de comunidades inteiras.

O Morro da Providência, “menina dos olhos” dos atuais governantes do Rio de Janei-

Manifestantes fazem ato em frente à prefeitura do Rio de Janeiro, onde protocolaram o dossiê que denuncia as violações de direito por conta da Copa e das Olimpíadas.

Renato Cosentino - Justiça Global

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ro, como parte do processo de “revitalização” da zona portuária (revitalização também voltada para os interesses do capital, mas deixemos isso para outra edição da Classe) é uma das muitas áreas “pacificadas”. Em julho de 2011, moradores entraram em conflito com policiais, em defesa da praça Américo Brum, requerida pela prefeitura para a instalação da base de um teleférico. A construção do teleférico representaria a remo-ção de dezenas de casas. Além disso, a praça é a única área de lazer no Morro da Providência, amplamente utilizada por crianças e jovens. Com a ajuda de policiais da UPP local, os responsáveis pela obras invadiram a praça e a cercaram, impe-dindo a entrada dos moradores. Então, centenas de moradores organizaram um protesto. Crianças carregavam cartazes, com dizeres como “Meus

avós e meus pais brincaram aqui. E eu, não vou ter esse direito?”. Moradores mais antigos carre-gavam faixas dizendo “Nós vivemos esta praça”, “O governo quer destruir o que a comunidade construiu”. Até hoje, o impasse não foi resolvido.

Esse é só um exemplo, de muitos. Sob o pretexto de garantir a segurança dos moradores, as forças policiais ocupam e depois garantem os interesses dos governantes e das empresas a que eles estão associados. O estádio do Mara-canã está cercado por um suposto “cinturão de segurança”, com UPPs em todas as favelas de seus arredores.

O modelo de militarização está sendo tão badalado pelos governantes e pela grande mí-dia no Rio Janeiro que já começa a ser exporta-do para outros estados brasileiros.

“O que mais o nosso Governador Sérgio Cabral entregará para as empreiteiras e Eike Batista? O Pão de Açúcar, o Cristo Redentor? Não podemos deixar que injustiças como essas fiquem impunes. Querem dar o que é do povo para grandes empresários cobrarem verdadeiros absurdos por um ingresso. O estádio é patrimônio da humanidade, já descaracterizaram todo ele com essa reforma, R$ 1 bilhão de dinheiro público está sendo investido. E agora chega a Srª Márcia Lins e diz que entregará para a iniciativa privada. Nós pagamos a conta, e um seleto grupo lucra com o nosso patrimônio, não podemos deixar isso acontecer”, afirmou Marcos Alvito, professor da UFF e representante da Associação Nacional dos Torcedores (ANT), em protesto realizado na frente do Maracanã, no dia 3 de dezembro.

A secretária estadual de Esportes e Lazer do Rio de Janeiro afirmou que a concessão do Maracanã deve ser realizada até meados de 2012. Ela reconhece que o grupo que vencer a licitação deve ter a receita quadruplicada antes do final do contrato.

Os manifestantes citaram os péssimos serviços por concessionárias de outros serviços, como o transporte público. Indignados, acreditam que este é mais um importante argumento contra a idéia de cessão do estádio. “Se o governador Cabral levar em frente esse absurdo, vamos acionar o Ministério Público Federal. Aqui foi investido muito dinheiro do povo carioca e dos brasileiros, não vamos ficar parados”, afirmou Alvito.

Torcedores criticam privatização do esporte

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Há anos ameaçada de remoção, Vila Autódromo segue mobilizada, enfrentando a pressão da especulação imobiliária

Vila Autódromo, uma comunidade que teima em resistir

Placa demarca a entrada da Vila Autódromo, na zona Oeste do Rio de Janeiro, que sofre com a ameaça de remoção.

Fotos: Luiz Fernando Nabuco

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Se a realização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos são o pretexto que o capital – mais especificamente a especulação imobiliária – precisava para iniciar uma série de remoções no Rio de Janeiro, existe uma comunidade que, apesar de estar há anos no alvo, segue resistindo: a Vila Autódromo.

Ao contrário de comunidades que já foram removidas – como a Vila Recreio 2, citada nas pági-nas anteriores – e as que estão ameaçadas de sê-lo em breve sob a pretensa justificativa de estarem no caminho de alguma obra importante, não existe previsão para construir qualquer coisa onde está situada a Vila Autódromo. Mas uma visita ao local nos permite entender porque tanta insistência em tirá-la dali. Dentro da lógica da cidade-mercadoria, deve ser realmente inaceitável que uma comunida-de pobre tenha uma vista espetacular como aquela, às margens da Lagoa de Jacarepaguá. O fato de a Lagoa ser uma área de proteção ambiental, portan-to, é usado como pretexto para tirá-los dali.

Há cerca de cinqüenta anos, no local existia uma pequena vila de pescadores, que moravam ali e tiravam seu sustento da Lagoa, quando a região ainda era essencialmente rural. Na década de 70, moradores removidos da Zona Sul foram morar ali. Hoje, vivem ali cerca de mil pessoas. De alguns anos para cá, a pressão para a remoção só faz aumentar.

Quando da preparação dos Jogos Pan-Americanos de 2007, a prefeitura tentou remo-ver a Vila Autódromo. “O Eduardo Paes, que era sub-prefeito, veio com os tratores pela parte de trás da comunidade, para começar a derrubar as casas. Mas nós montamos uma barreira humana na frente dos tratores, com as crianças na frente, depois as mulheres, e no final, os homens. Eles

desistiram e foram embora”, lembra, com orgulho Jane Oliveira, uma das lideranças da comunida-de, e militante do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro.

A Vila Autódromo já teve sua posse reco-nhecida pelo governo do estado com a concessão de direito real de uso válido por 99 anos. Apesar disso, a prefeitura segue visitando o local, ca-dastrando moradores, marcando as casas para demolição. “A prefeitura tem usado e abusado da coação, da tentativa de desqualificar lideranças, ações judiciais e laudos suspeitos. A luta dessa comunidade é muito mais do que manter suas ca-sas e histórias. Trata-se de uma luta pelo estado democrático de direito”, afirma o vereador Elio-mar Coelho, do PSOL, responsável pelo requeri-mento da CPI das remoções, que não prosperou na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

Casas marcadas para demolição

No dia 12 de outubro do ano passado, a Secretaria Municipal de Habitação, mais uma vez, iniciou um trabalho de cadastramento das residências na Vila Autódromo. Em geral, esse é o primeiro passo utilizado pelo poder público para as remoções. As casas da Vila Autódromo, muitas das quais ainda têm a marcação da época do Pan 2007, estão sendo marcadas novamente, mas desta vez apenas com números, sem a sigla “SMH”, que identificava a Secretaria Municipal de Habitação como responsável pelo processo.

Recentemente, estourou um escândalo, di-vulgado por toda a imprensa. O prefeito Eduardo Paes anunciou publicamente a compra de um ter-reno para construir novas casas para os moradores

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da Vila Autódromo. Ainda que a maior parte da imprensa não se incomode com o fato de mil pes-soas serem forçadas a deixarem suas casas e se mudarem, causou grande comoção a informação de que a prefeitura pagaria uma pequena fortuna pela aquisição de um terreno da Tibouchina Empreendi-mentos, controlada por duas empreiteiras doadoras de campanha de Eduardo Paes e de alguns de seus aliados. Com a repercussão negativa, o prefeito de-sistiu do negócio e, mais uma vez, a permanência da Vila Autódromo foi prorrogada.

Esteliano Francisco dos Santos, conhecido como “seu Pernambuco” vive na Vila Autódromo há 30 anos, e rechaça a possibilidade de se mudar. “Eu já morei em muito lugar, mas o melhor lugar que achei para morar foi aqui”, afirma. O pesca-dor completa dizendo que não está interessado em nenhuma das alternativas que o poder público lhe ofereceu e não acha justo ser forçado a sair de um lugar onde mora há tantos anos.

Preservação ambiental

“A Vila Autódromo sabe que parte de suas casas está em área ambientalmente protegida e concorda em colaborar para remediar o problema. Porém, a si-tuação geral é perfeitamente passível de regularização urbanística, no próprio local onde estão, a um custo inferior ao da remoção pretendida. Regularização tão prometida: o caderno de Legado Urbano e Ambiental, apresentado ao Comitê Olímpico Internacional (COI) durante a apresentação da candidatura Rio 2016, afirma que a comunidade seria integrada ao proje-to das Olimpíadas. Mas o radicalismo ideológico do mercado imobiliário, e de seus aliados eleitorais, não aceita essa hipótese”, afirma Eliomar Coelho.

Se a Vila Autódromo sempre viveu em har-monia com a Lagoa de Jacarepaguá, o mesmo não se pode dizer dos muitos empreendimentos imobiliários que começaram a tomar a região ao longo dos últimos anos.

“Quando eu vim morar aqui, a água era to-talmente limpa, tinha muita tainha e robalo. Com o passar dos anos, a água foi ficando poluída, hoje é muito difícil pescar, os peixes foram embora”, afirma ‘seu’ Pernambuco. Segundo ele, todos sabem – inclu-sive os órgãos governamentais – que a maioria dos novos condomínios instalados ali lança seus esgotos in natura nas águas da Lagoa. Muitos deles, inclusi-ve, já foram notificados pelo governo estadual, mas não tomaram nenhuma providência.

Além do lançamento de esgoto, outro proble-ma atinge a Lagoa: os sucessivos aterros. “Antiga-mente tinha jacaré, tinha capivara. Hoje, está tudo aterrado, e os animais desapareceram. Às vezes, aparece algum perdido, acuado”, acrescenta ‘seu’ Pernambuco. O motivo para o mais recente aterra-mento, que acabou com parte significativa do que

Marcação feita pela Secretaria Municipal de habitação do Rio de Janeiro para indicar casas que devem ser demolidas.

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ainda existia do manguezal da Lagoa de Jacarepa-guá foi a construção do terreno onde aconteceu o Rock in Rio IV, em outubro de 2011, terreno que será utilizado como Parque Olímpico em 2016.

Na luta para permanecer ali, a Vila Autódromo vive um momento importante. A partir de um amplo debate entre os moradores, e com a ajuda técnica de estudantes da UFF e da UFRJ, deram início a um plano de urbanização do local. Estudantes de serviço social, arquitetura, planejamento urbano, e

outros cursos, têm entrevistado o máximo possível de moradores, para identificar as principais demandas. Depois, teve início um processo mais amplo de deba-tes, para estabelecer sínteses, definir prioridades. Ao final deste trabalho, os moradores pretendem come-çar uma nova mobilização para transformar aquelas demandas em realidade, de modo a garantir a ur-banização e regularização fundiária, viabilizando a permanência definitiva da Vila Autódromo no local.

(Alvaro Neiva)

Seu Pernambuco”, pescador e morador da Vila Autódromo, com a bela vista da Lagoa de Jacarepaguá; a Lagoa, que já foi sua fonte de sustento, hoje sofre com o despejo de esgoto e os aterros.

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Comun i c a ção

O lançamento do Plano Nacional de Ban-da Larga 2010 deu a impressão de que o Brasil tinha acordado. Depois de anos com o serviço de internet deixado na mão dos interesses das empresas de telecomunicações, o Estado bra-sileiro parecia disposto a assumir o protago-nismo necessário para mudar a realidade de uma banda larga cara, lenta e para poucos. Os acordos firmados em junho de 2011, contudo, mostram que o governo não assumiu a postu-ra capaz de lidar com esse problema, insistin-do em negociar com base no que as empresas aceitam oferecer e não a partir de um plano estratégico de longo prazo. Aquilo que o mun-do inteiro já sabe parece não ter ficado claro por aqui: o problema não se resolve sem forte presença do Estado seja na regulação sobre as empresas privadas seja como provedor direto da infraestrutura e dos serviços.

‘Resolver o problema’ aqui tem a ver com

atender a quatro objetivos: o serviço deve ser universalizado, com preços acessíveis, com qualidade e velocidade satisfatórias e com ga-rantias de que não vai ser interrompido. Tudo isso porque a banda larga, pelo que repre-senta à concretização de direitos fundamen-tais – especialmente liberdade de expressão, acesso à informação, à comunicação, à educa-ção, à participação política e à cultura – e ao acesso a outros serviços, deve ser considerada um serviço essencial e garantida pelo Estado, por meio, inclusive, do controle público sobre a infraestrutura.

Mas não são só os objetivos de garantir o interesse público que justificam a necessidade de uma forte presença do Estado no setor. A própria estrutura econômica das telecomuni-cações faz com que o mercado seja incapaz, por si só, de prestar o serviço de forma eficien-te. Isso se dá por conta do alto investimento

Os caminhos para a universalização da banda largaGarantir internet para todos com qualidade e preços baixos depende de retomada do papel do Estado

Bráulio Araújo, João Brant e Veridiana Alimonti*Bráulio Araújo e João Brant são integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social; Veridiana Alimonti é advogada do IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor

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inicial para instalar redes e da necessidade de o prestador levar seu sinal até a residência de cada usuário. Essas características criam fortes barreiras à entrada de concorrentes e levam a uma falta de incentivos para o merca-do prestar o serviço nas áreas que demandem mais investimento ou que não tenham tráfe-go suficiente para gerar retorno econômico. Assim, o setor é praticamente um monopólio natural e não consegue garantir eficiência econômica por seus próprios meios.

Portanto há a combinação de dois desa-fios: garantir os objetivos de interesse públi-co e, ao mesmo tempo, garantir a eficiência econômica. Induzir a competição é certamen-te um dos objetivos da regulação, mas o setor privado, mesmo com razoável grau de compe-tição, é incapaz de garantir o interesse públi-co se não for obrigado a isso. As empre-sas não vão atuar em áreas que não ofere-çam retorno econômico, e portanto serviço uni-versal e tarifas baixas não são alcançados sem obrigações impostas pelo Estado. As experi-ências da Europa, Estados Unidos e Brasil mostram isso com clareza.

O histórico aqui e lá fora

Ainda que com modelos diferentes, a ex-pansão dos serviços de telecomunicação nesses países foi promovida com a participação efetiva do Estado. Nos países europeus, havia monopó-lios estatais que garantiram universalização, controle de preços e de qualidade, entre outras obrigações. No processo de liberalização e pri-vatização, a maioria dos países manteve par-ticipação estatal em uma companhia central e abriu o mercado para competidoras, mas sem perder a dimensão de serviço público. Nos EUA, havia um monopólio privado (AT&T), quebrado em 1983, mas sempre houve a imposição de obri-gações que respondiam à essencialidade do ser-viço. Ao longo das últimas décadas, buscou-se ampliar a competição, especialmente na longa

distância, mas a recente redução do mercado a duas empresas mostra que a tendência é

mesmo de forte concentração.O Brasil teve um desenvolvimen-

to bem particular do setor, com um início privado, um processo de es-

tatização na década de 1960 e uma reprivatização em 1998. No início da década de 1960, apesar de contar com cerca de

900 companhias telefônicas, o Brasil estava entre os países

com menor densidade telefônica do mundo – tinha apenas um te-

lefone para cada 100 habitan-tes, abaixo de países

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – JANEIRO/FEVEREIRO/MARÇO/2012Revista da Associação dos Docentes da UFF – JANEIRO/FEVEREIRO/MARÇO/2012 57

Marcello Casal Jr/ABr

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como Estados Unidos (38), Suécia (35), Argenti-na (6) e Uruguai (5)1. A estrutura de telefonia do país compunha-se de operadoras privadas muni-cipais, o que dificultava principalmente a comu-nicação intermunicipal e de longa distância.

Em 1965, foi criada a Embratel, em-presa pública que em cinco anos interligou as principais cidades das cinco regiões do país, permitindo a discagem direta à lon-ga distância (DDD). Em 1972, foi criada a Telebrás, que incorporou a Embratel e, por meio de suas subsidiárias (as “teles”, empre-sas polo estaduais), adquiriu as companhias municipais, uniformizou e expandiu a telefo-nia fixa residencial. Valendo-se de subsídios cruzados – cobrança de taxas maiores para o sistema empresarial e regiões mais densas para financiar o desenvolvimento do siste-ma residencial e de regiões menos povoadas –, a Telebrás teve grande êxito em expandir a infraestrutura de telefonia fixa no Brasil. O incremento anual do número de linhas na década de 70 realizou-se a taxas sempre supe-riores a 15%, tendo chegado a 32% em 1976. No final da década, essas taxas caíram, prin-cipalmente por conta do uso das estatais para fazer empréstimos a fim de cobrir a dívida ex-terna. De toda forma, de 1970 a 1990, enquan-to a população brasileira cresceu 50% e o PIB 90%, a planta instalada de terminais telefôni-cos do Sistema Telebrás cresceu 500%.

O rápido desenvolvimento das comuni-cações no Brasil impulsionou a indústria ele-troeletrônica e atraiu empresas fornecedoras transnacionais. Ao longo da década de 1970, o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento da

Telebrás (CPqD) desenvolveu uma série de novos produtos, obteve patentes no Brasil e no exterior e celebrou vários acordos e contra-tos de transferência de tecnologia.

Toda essa expansão não se deu sem pro-blemas. Durante a década de 80 e 90, a Tele-brás perdeu capacidade de investimento ao ser utilizada pelo governo brasileiro para cobrir problemas econômicos-financeiros. Além disso, o modelo de negócio – baseado em alto investi-mento inicial pelo usuário e assinatura básica baixíssima – começou a gerar especulação em torno das linhas e criou um mercado paralelo. Em 1994, começou-se a preparar o terreno para a privatização. A assinatura inicial, que era de R$ 0,69 mensais, subiu rapidamente para al-cançar R$ 12 em 1998, ano da privatização.

De toda forma, o processo histórico mostra que a participação estatal no setor foi determi-nante na saída de um modelo fragmentado, sem condições de se desenvolver, para um patamar de ampla expansão e ampliação do serviço que poderia ter ido ainda mais além se acompanha-do por uma mudança no modelo de negócio.

Privatização e modelo atual

Com a privatização, limitou-se o poder de intervenção do Estado. A Lei Geral de Te-lecomunicações (Lei 9.472/97) separou a pres-tação dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado. Para os prestados em regime público (apenas o serviço de telefonia fixa), reservou ao Estado um poder maior de regulamentação, atribuindo às pres-

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tadoras, entre outras, obrigações de univer-salização e continui-dade dos serviços e de reversibilidade de bens. No regime privado, por outro lado, o Estado in-c u m b i u - s e de observar “a exigência de mínima interven-ção na vida privada”, tomando a liberdade como regra.

O processo de privatização alterou o modelo de negócio do serviço de telefonia fixa. As empresas se beneficiaram de uma base já instalada de clientes, de uma demanda re-primida e do aumento do valor da assinatura básica (mais de R$ 40, atualmente), que passou a sustentar o negócio. As obrigações de univer-salização impuseram a necessidade de investi-mentos por parte das empresas e geraram uma ampliação significativa do serviço nos anos pós-privatização, mas a fraca atuação da Agência Nacional de Telecomunicações e um problema na própria conceituação de universalização faz com que ainda vivamos um serviço limitado.

Em mais de 20 anos da privatização das telecomunicações no Brasil, apenas 43% das re-sidências têm telefone fixo, como mostram da-dos do IBGE2. Ainda que se possa afirmar que a infraestrutura esteja presente em praticamen-te todas as localidades brasileiras, grande parte da população não utiliza o serviço. Isso porque a

Lei Ge-ral de Teleco-

municações enten-de universalização

como a possibilidade de o cidadão contratar o

serviço, mas não considera que o valor da assinatura fixa cons-t i t u i uma barreira econômica que impede o acesso de muitos. É como se alguém considerasse o serviço de saúde universalizado em determinada localidade simplesmente por haver um hospital privado na região.

Além disso, para muitos o telefone celu-

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lar passou a substituir a linha fixa. Porém, a despeito do razoável grau de competição e do enorme número de linhas ativas, a desigual-dade no acesso ao serviço móvel é uma reali-dade. Em 2009, apesar do Brasil fechar o ano com cerca de 174 milhões de linhas ativas, o IBGE mostrou que o número de adultos com telefone móvel para uso pessoal fica em pouco mais de 60%3. Entre os usuários do serviço, cerca de 80% das linhas são pré-pagas com R$ 8 de média mensal de ativação de créditos em 2010, segundo a Anatel. Na prática, muitos utilizam suas linhas apenas para o recebi-mento de chamadas, não tendo condições para efetivamente fruir o serviço. A União Interna-cional de Telecomunicações confirma isso ao mostrar que o Brasil está em 121º no ranking mundial de preços do serviço. Só 37 dos países pesquisados têm serviço mais caro.

As dificuldades de expansão da banda larga

Todo esse balanço é essencial para se com-preender as barreiras de expansão do serviço de banda larga no Brasil, prestado em regime privado. Hoje, apenas 27% das residências têm acesso a internet, sendo 22% com banda lar-ga4. O acesso é desigual entre as cinco regiões brasileiras, entre áreas urbanas e rurais, entre municípios mais e menos populosos e entre di-ferentes classes sociais. Mesmo em municípios que possuem acesso à banda larga, há grandes áreas sem oferta do serviço. As operadoras de telefonia fixa são responsáveis por 65% das co-

nexões de banda larga, e a expansão do serviço claramente depende delas, por sua penetração. Não é à toa que o Programa Nacional de Banda Larga brasileiro se ampara nessas empresas para buscar a expansão.

O problema principal do PNBL é que ele não reconhece a necessidade de o Estado atuar para impor metas de universalização e controle de preços sobre o setor privado. Os acordos as-sinados pelo Governo Federal com as empresas de telecomunicações no final do mês de junho estabelecem que até 2014 as empresas devem oferecer em todos os municípios um serviço de banda larga (móvel ou fixo) com velocidade de 1 Mbps por R$ 35 mensais. As letras miúdas re-velam os limites do pacote: há uma inaceitável franquia de download que restringe completa-mente o uso da internet e impede a utilização plena do serviço. O plano permite a venda casa-da da banda larga fixa com o serviço de telefo-nia, praticamente dobrando o preço final. Além disso, não há nenhuma garantia de atendimen-to dentro dos municípios atendidos (o serviço acabará concentrado nas áreas rentáveis), e a velocidade estabelecida está fora do que já hoje é considerado banda larga. Apenas para se ter uma ideia, o Plano Nacional de Banda Larga dos EUA prevê universalização da internet com velocidade mínima de 4 Mbps, com 75% da po-pulação com velocidade de 100 Mbps em 2020.

O plano brasileiro não estabelece a uni-versalização nem como meta (fala-se em mas-sificação, tomando a telefonia celular como referência), não prevê controle de preços (fora o pacote popular, os preços são livres) e não garante continuidade. Ele se ampara na ten-

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Notas:* Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique1 PEREIRA FILHO, 2002, A Embratel: Da Era da Intervenção ao Tempo da Competição. Revista de Sociologia Política, n. 18, p. 33-47, 2002 e DANTAS, Marcos. A lógica do capital informação. 2. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.

2 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 20093 Idem4 TIC Domicílios 2010, Comitê Gestor da Internet

tativa de gerar competição no setor e na de-finição de um pacote popular com condições limitadas e diferenciadas. A internet, que de-veria ser tratada como um direito de todos os cidadãos, torna-se mercadoria com qualidade diferenciada de acordo com o preço.

Qual o caminho?

Obviamente não há uma fórmula mágica para se garantir um serviço barato, de quali-dade, para todos, mas a experiência histórica mostra caminhos. Estimular a competição é im-portante, mas não garante nenhum dos objeti-vos listados acima. Para garanti-los, é preciso retomar o papel do Estado como organizador do setor. Aliás, o artigo 21 da Constituição Federal é claro em dizer que compete à União “explorar, diretamente ou mediante autorização, conces-são ou permissão, os serviços de telecomunica-ções”. É preciso então reconhecer a banda larga como um serviço público, em coerência com o texto constitucional, e combinar investimentos diretos com forte regulação sobre o setor.

Concretamente, nas regras atuais da Lei Geral das Telecomunicações, isso significa de-finir o regime público para prestação do ser-viço. Formalmente, para essa definição, basta um decreto da Presidência da República. Con-tudo, é preciso aprofundar o debate sobre o que isso implicaria em termos de novas regras e modelagem do sistema. As exigências deve-riam ser diferenciadas de acordo com a capa-cidade técnica e financeira de cada empresa. Além disso, devem ser levadas em conta as

diferenças nas áreas de prestação de serviço e o poder de mercado de cada ator, definindo-se um plano geral de outorgas que aponte para a universalização do serviço.

Seria preciso também definir a diferença nas obrigações das empresas que prestam o serviço jun-to com a TV a cabo e como a transição seria traba-lhada na banda larga móvel de forma convergente e coerente com essa nova modelagem. A Telebrás, como empresa pública, poderia combinar a oferta de capacidade de tráfego no atacado com atendi-mento direto a áreas remotas e a áreas bastante lucrativas, para ajudar seu equilíbrio financeiro. Poderia ainda assumir o papel de fonte indutora de pesquisa e desenvolvimento tecnológico nacional.

O desafio de universalizar uma banda larga barata, rápida e com qualidade impõe-se como necessário ao efetivo desenvolvimento econômico e social do país e à garantia de direi-tos básicos. Fazê-lo possível é tarefa urgente e implica assegurar ao Estado os poderes de exi-gir da iniciativa privada as obrigações voltadas à dimensão de interesse público na prestação do serviço. Sem isso, o Plano Nacional de Banda Larga é um passo absolutamente insuficiente.

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F i lme s

As excelentes intenções que motivaram a produção do documentário Trabalho interno (“Insi-de Job”, no original, EUA, 2010), dirigido por Char-les Ferguson, não são suficientes para isentá-lo de um juízo crítico. Mas também não se pode negar que o filme é absolutamente pertinente como regis-tro histórico da crise financeira de 2008 – uma das maiores da era capitalista – e indispensável seja como filme em si, seja como sincera interpretação das causas da crise (por mais problemática que ela possa ser). Suas virtudes e limitações comparecem de forma igualmente aberta, de maneira que não se pode apreciá-lo sem fazer uso do raciocínio, o que é indubitavelmente o seu maior mérito.

Como anunciado na sinopse oficial do filme, o documentário propõe-se a “expor a chocante verdade por trás da crise de 2008 […], que custou mais de US$ 20 trilhões, fez com que milhões de pessoas perdes-sem suas casas e seus empregos”. Se esse é o objetivo central do documentário, pode-se julgá-lo muito bem sucedido. O roteiro funciona de modo muito didático na decifração da complexa linguagem das finanças

João Leonardo MedeirosProfessor do Departamento de Economia da UFF

Verdade por trás da criseResenha do filme “Trabalho interno” (“Inside Job”), vencedor do Oscar de melhor documentário em 2011

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e na reconstituição da seqüência de acontecimentos que conduziram ao craque financeiro de 2008, recons-tituindo ainda suas conseqüências mais imediatas. Os principais elementos de qualquer reconstrução crítica da crise estão todos lá: a desregulação dos mer-cados financeiros em escala mundial, a explosão dos derivativos, a temerosa alavancagem das instituições financeiras, a bolha imobiliária nos EUA, a cúmplice participação das seguradoras e agências de avaliação de risco e o suporte ideológico da ciência econômica.

Para além da didática exposição sobre o vocabulário e os fatos da crise, o que real-mente distingue o documentá-rio Trabalho interno de outros registros cinematográficos da crise de 2008 (menciona-dos a seguir) é a tentativa de reconstituí-la com base em in-formações e opiniões oferecidas por homens e mulheres que, de alguma forma, participaram do (ou contribuíram para o) jogo financeiro por detrás da tragé-dia. Aliás, o intraduzível título original da obra, Inside job, tem obviamente a intenção de alertar o espectador para a cumplicidade dos entrevistados com relação aos desumanos desdobramentos da crise. Recorrendo a um dicionário da língua inglesa, como o Webster, pode-se retornar para a expressão “inside job” o se-guinte significado, perdido na tradução literal para o português: “um crime cometido por, ou com ajuda de, uma pessoa empregada ou de confiança da vítima”.

A intenção do filme, portanto, é caracterizar a crise como o resultado de um crime provocado por

figuras-chave das corporações financeiras, das ins-tâncias governamentais responsáveis pela regulação do setor e mesmo da universidade. A identificação dos nomes, sobrenomes, rostos, currículos, filiações institucionais etc. dos personagens que se envolve-ram e se beneficiaram, direta ou indiretamente, nas tramóias financeiras que antecederam e sucederam a crise é um ponto fortíssimo da obra. Isso porque é evidente que nenhum episódio crítico da vida social

pode ocorrer sem a mediação de atos concretos de indivíduos de carne e osso. Em se tratando de uma crise que solapou as econo-mias de, como se diz, cidadãos comuns aos milhões, privando outros tantos inclusive da pró-pria residência, é de se esperar que os atos concretos que pro-duziram a crise sejam irrespon-sáveis, para dizer o mínimo, e/ou (mais provavelmente “e” e não “ou”) obscenos. Por isso é fundamental que seus agentes sejam, senão responsabilizados, ao menos identificados.

Neste particular, é mar-cante a habilidade do documen-

tário em desnudar o péssimo caráter e a desfaçatez absoluta de executivos das principais corporações financeiras estadunidenses, alguns dos quais tam-bém ocupantes (ou ex-ocupantes) de posições cruciais no governo dos EUA e em instituições supra-estatais como o FMI. As entrevistas são particularmente inte-ressantes, pois o corajoso e bem-informado entrevis-tador (oculto) consegue, por diversas vezes, desmentir e embaraçar o entrevistado, que se vale do expediente de supor a ignorância generalizada para sustentar

“A intenção do filme é caracterizar a crise como o resultado de um crime provocado por figuras-chave das corporações financeiras, das instâncias governamentais responsáveis pela regulação do setor e mesmo da universidade”

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um argumento totalmente falacioso e contra-factual. É difícil não se regozijar em ver multimilionários, sujeitos poderosíssimos, totalmente desconcertados com uma contra-argumentação bem-fundamentada empiricamente e imediata – “na lata”, como se diria na linguagem das ruas do Rio de Janeiro.

Por outro lado, é bastante incômodo perceber a complacência com entrevistados não menos suspeitos de participação na construção e sustentação da ar-quitetura econômico-financeira que vem produzindo periodicamente crises como as de 2008. Figuras como o megaespeculador George Soros, os diretores do FMI Dominique Strauss-Kahn e Christine Lagarde, além do infame ex-presidente do FED (o Banco Central dos EUA) Paul Volcker saem ilesos no documentário. Para isso, bastou que oferecessem um discurso crítico bem-encaixado, em favor da regulação das finanças e da criminalização dos “excessos”, em lugar de assu-mir a atitude defensiva e mentirosa da maior parte dos demais entrevistados. De certo modo, o filme oferece a oportunidade para que sujeitos como Soros e Volcker falem distraidamente do caráter danoso da especulação financeira, como se tivessem a vida toda trabalhado outside e não – como todos sabemos que ocorreu – inside até a raiz.

A complacência com os entrevistados do “discurso correto” é um apenas um indício do que julgo ser a principal limitação do filme: como inter-pretação das causas da crise, Trabalho interno não passa de uma reedição do clamor keynesiano pela regulação das finanças, pelo ativismo estatal, pelo retorno da presumida prioridade da produção sobre as finanças etc. Segue-se daí que as causas da crise são encontradas não exatamente no capitalismo em si, ou mesmo em sua atual fase, mas, de um lado, no limitado controle do Estado sobre a atividade finan-ceira e, de outro, na moral pervertida dos financis-

tas, políticos e acadêmicos por detrás dos episódios relatados no filme. Contrastando Trabalho interno com duas outras produções que abordam a crise de 2008 – Wall Street: o dinheiro nunca dorme, de Oliver Stone, e Capitalismo: uma história de amor, de Michael Moore, o primeiro como obra de ficção, o segundo como documentário –, o único que não propõe uma reflexão sobre o caráter endêmico das crises capitalistas é Trabalho interno.

O resultado é que não nos é oferecido um questionamento verdadeiramente externo, nega-tivo, da crise, mas apenas um trabalho crítico in-terno, positivo e propositivo. Seguindo fielmente o argumento do filme, chegaríamos à conclusão de que a história da humanidade, de repente e sem qualquer razão de fundo, foi simplesmente tomada de assalto por sujeitos que dominaram as institui-ções políticas e econômicas do país mais poderoso do mundo e as conduziram em benefício próprio. Ainda que essa denúncia seja fundamental, não se pode oferecê-la sem, ao mesmo tempo, explicar que não se trata de um problema administrativo, moral ou de pura e simples “tomada de poder”, mas sim de uma exigência da reprodução social.

O ponto aqui é o seguinte: o capital é uma di-nâmica sem sujeito, uma dinâmica do valor em mo-vimento de autoexpansão contínua. Na década de 1970, diversos obstáculos punham freio à expansão do capital, dentre eles o próprio poder dos sindica-tos e dos partidos de esquerda e a existência do con-traponto do socialismo real (por mais problemática e bárbara que tenha sido tal experiência). Além das transformações técnicas e tecnológicas e do avan-ço da extrema direita, encarnada inicialmente em Thatcher e Reagan, que explodiram as instituições contra-capitalistas, a reorganização das finanças mundiais ofereceu ao capital oportunidades de lu-

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cratividade imediata (em geral pela expropriação e reapropriação de riqueza já criada ou a criar), mas também a possibilidade de concentrar rapidamen-te recursos sem os quais determinados projetos produtivos não poderiam ser executados.

A conclusão dessa linha de raciocínio omitida no filme é que a reprodução capitalista, ameaçada na década de 1970, recompôs-se justamente (mas não unica-mente, é claro) por intermédio da desregulação financeira. Se a nova arquitetura das finanças mundiais tem produ-zido crises periódicas, o que é verdade, essas crises têm cada vez mais se demonstrado um problema da humanidade, e não da reprodução do capital. Seres humanos morrem, per-dem suas casas etc., enquanto os operadores do capital têm na crise apenas o subterfúgio necessário para avançar sobre os fundos públicos, sobre os sindicatos e sobre a ideologia de esquerda, tudo em favor do próprio capital.

Por concentrar-se ex-clusivamente na atividade dos operadores do capital, o documentário perde de vista o fato de que, por mais infames que sejam, e eles são de fato, tais operadores dão corpo e subjetividade a uma dinâmica abstrata, objetiva e incontrolável, a di-nâmica do capital, que se reproduz cegamente, cada vez mais sem anteparos visíveis. De todo modo, como não é possível reconstituir a história sem reconstituir

também as mediações entre as leis de movimento da sociedade e a participação dos indivíduos que, nas suas ações, as materializam concretamente, Trabalho interno cumpre um papel muitíssimo relevante.

Considerando que essa resenha dirige-se a uma publicação de um sindicato de professores, não seria possível encerrá-la sem mencionar o trecho

do documentário no qual são iluminados os laços íntimos entre os professores das renomadas faculdades de economia das universidades dos EUA, em particular Har-vard e Columbia, e o bem-remunerado mundo das altas finanças. O documentário é, de fato, impagável neste pon-to, pois consegue caracterizar magistralmente os professo-res doutores e pós-doutores como “espadachins do ca-pital”, para usar a famosa expressão de Marx, levando ao conhecimento do público a total submissão da pesquisa acadêmica aos interesses cor-porativos mais mesquinhos. “Professores” convertidos em meros ideólogos e “cientistas” reduzidos a propagandistas é a expressão mais clara de

uma ciência decadente (no caso, a Economia) e de uma universidade muito distante de seu papel, o de educar e formar seres humanos com capacidade crí-tica. O triste da história é reconhecer que, no Brasil, por cifras infinitamente menores, os mesmos com-portamentos são emulados e difundidos.

““Professores” convertidos em meros ideólogos e “cientistas” reduzidos a propagandistas é a expressão mais clara de uma ciência decadente e de uma universidade muito distante de seu papel, o de educar e formar seres humanos com capacidade crítica”

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N o s s a R e s e n h a

Foi lançada recentemente pela Edi-tora Boitempo, em coedição com a Editora UFRJ, a tradução brasileira dos Grundris-se der Kritik der Politischen Ökonomie1, manuscritos preparatórios de Marx para O Capital. Aqueles que não conhecem o trajeto marxiano, podem talvez se perguntar qual seria o sentido do investimento na leitura destes manuscritos, uma vez que a versão posterior do texto (o próprio O capital) já foi publicada. Contudo, é imprescindível frisar que existem elaborações e desenvolvimentos conceituais de Marx que só podem ser encon-trados nos Grundrisse. Redigido entre 1857 e 1858, o texto tem valor próprio; trata-se de uma espécie de laboratório conceitual do próprio Marx, que ali pode ser surpreendi-do na gestação mesma de seu pensamento. Dentre a riqueza de questões nele presentes – virtualmente impossível de ser resumida –, destacamos apenas algumas delas.

O laboratório de MarxMaurício Vieira Martins*

Divulgação / B

oitempo Editorial

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Inicialmente, recordemos que os Grun-drisse oferecem abundante material sobre a interlocução de Marx com Hegel (uma relação de “amor-ódio” aflitiva, nas palavras de H. G. Flickinger2), sua matriz filosófica mais dura-doura. Sabe-se hoje que houve uma absorção, sem dúvida crítica, de várias elaborações he-gelianas por parte de Marx, principalmente no que diz respeito à construção lógica do ar-gumento (que por fim se revela intimamente ligada ao seu próprio conteúdo). Assim é que o leitor de A ciência da lógica - obra magna do mestre de Jena - ficará surpreso ao deparar-se com alguns motivos desta obra modifica-dos e reconstruídos no texto do próprio Marx. Foi o que ocorreu com as famosas determi-nações reflexionantes (como forma/conteúdo, aparência/essência, imediaticidade/mediação etc.), pares de conceitos nos quais, muito bre-vemente falando, um dos termos é definido mediante sua referência ao outro, pois “a ver-dade deles, dizia Hegel, é a sua relação”. Tal entendimento reescreve de modo profundo a tradição filosófica anterior que afirmava uma dada essência como realidade auto-contida. E, no que toca ao debate propriamente econô-mico, explica também a recusa de Marx em, por exemplo, isolar a esfera da produção da do consumo, preferindo evidenciar sua intrín-seca interdependência (mesmo que o chamado momento predominante caiba à primeira).

Ainda em sua interlocução crítica com Hegel, são particularmente impactantes nos Grundrisse aquelas passagens que discutem a lógica peculiar e contraditória do processo histórico. Vejamos como o texto formula, a este

respeito, a diferença entre o capital formado através da poupança por parte do próprio ca-pitalista daquele outro, posterior, que já é o resultado do processo de acumulação efetiva-do: “Para devir, o capital não parte mais de pressupostos, mas ele próprio é pressuposto, e, partindo de si mesmo, cria os pressupostos de sua própria conservação e crescimento. Por isso, as condições que precediam à criação do capital excedente I,..., não pertencem à esfe-ra do modo de produção ao qual o capital ser-ve de pressuposto; situam-se por detrás dele como etapas históricas preparatórias de seu devir, da mesma maneira que os processos pe-los quais passou a Terra, de um mar líquido de fogo e vapor à sua forma atual, situam-se além de sua vida como Terra já acabada.” (p.378). Seguindo esta via, eis que nos deparamos com a espessura de uma ontologia encravada no interior mesmo do debate com a economia po-lítica. É uma concepção do ser como processu-alidade que se manifesta com força no texto marxiano, só que agora, de modo distinto do que ocorria com Hegel, em bases decidida-mente materialistas. Até porque em Marx é o trabalho humano – e não o Espírito - o respon-sável pela constituição do mundo objetivo tal como o conhecemos hoje (“mas o trabalho é e continua sendo o pressuposto” p. 323).

Muito já se escreveu sobre as aquisi-ções metodológicas presentes nos Grundris-se. Sobre isso, é valiosa a indicação existente na carta de Marx a Ferdinand Lassalle (de 22/02/1858). Nela, referindo-se precisamente ao texto em questão, podemos ler: “o traba-lho que me ocupa no momento é uma crítica

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das categorias econômicas ou, if you like, uma exposição crítica do sistema da economia bur-guesa. É ao mesmo tempo uma exposição e, do mesmo modo, uma crítica do sistema.” Tal passagem reitera o antigo desejo de Marx - nem sempre alcançado - em reunir num só movimento a exposição e a crítica das catego-rias econômicas. Conforme é sabido, em seus textos anteriores, a crítica à so-ciedade burguesa era muitas vezes feita a partir de seu confronto com uma futura sociedade de sujeitos emancipados, que tornará possível que eu “cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardi-nha...“, na conheci-da formulação des-te belo texto que é A ideologia alemã.

Ocorre que tal procedimento tornava o jovem Marx vulnerá-vel à reprovação de que estaria veiculando apenas e tão-somente uma utopia, de concretização inviável. Em contrapar-tida, o esforço de imersão na lógica das ca-tegorias da economia política, com o intuito de criticá-las de modo imanente, representa o acesso a um patamar explicativo de outra or-dem, que fortalece inclusive o projeto político marxiano. E não resta dúvida que este é um dos motivos de fundo que atravessa os Grun-

drisse, onde encontramos este intento anun-ciado de forma quase programática em várias passagens: “Analisemos primeiro as determi-nações simples contidas na relação entre capi-tal e trabalho, de modo a descobrir a conexão interna – tanto dessas determinações como de seus desenvolvimentos ulteriores – com o an-tecedente.” (p. 206, grifos nossos). Ora, o que

tal análise imanente vai demons-trar é a progressiva captura do

trabalho humano3 num cir-cuito de categorias (mer-

cadoria, dinheiro, capi-tal) que o distancia e aliena dos sujeitos responsáveis por sua objetivação; es-tranhamento que vem a ser, talvez, o tema mais recor-rente dos Grundris-

se como um todo.Um outro con-

junto de questões originais destes den-

sos manuscritos pode ser encontrado na sua vertente

propriamente econômica – lem-brando que ela não deve ser isolada

da já mencionada dimensão filosófica. Referi-mo-nos, por exemplo, às seções em que Marx analisa as mudanças trazidas pelo desenvol-vimento da indústria moderna, impulsiona-da pelas contribuições da ciência, que poten-cialmente permitem uma liberação de tempo disponível para os agentes da produção. Ro-

trar é a progressiva captura do trabalho humano

cuito de categorias (mer

ciedade burguesa era muitas vezes feita a partir de seu confronto com uma futu-ra sociedade de sujei-tos emancipados, que

originais destes densos manuscritos pode ser

encontrado na sua vertente vel à reprovação de que estaria veiculando apenas e tão-somente uma utopia, de

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Notas:* Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-

Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Flumi-nense. Esta resenha foi publicada originalmente na Revista História & Luta de Classes. Vol. 12, agosto, 2011.

1 Marx, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.

2 Flickinger, Hans-Georg. Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social. Porto Alegre: L&PM/CNPq, 1986, p.32

3 Ou, para sermos mais precisos, da capacidade de trabalho, embora o texto apresente uma oscilação terminológica que, pelo menos neste caso, pode ser fecunda.

4 Rosdolsky, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Ed. Uerj/Contraponto, 2001, p. 354.

5 Nicolaus, Martin. “El Marx desconocido”. In: Marx, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política. México: Siglo Veintiuno Editores, 1984, p. xxxi.

man Rosdolsky dizia que estas passagens dos Grundrisse são de tirar “o fôlego ao serem li-das hoje”4, pois nelas se demonstra de modo preciso a profunda contraditoriedade do pro-cesso: o mesmo desenvolvimento tecnológico que potencialmente traria a conquista de tem-po livre para os homens, finda por se transfor-mar, sob a égide do capital, numa forma mais sofisticada de dominação. Nas palavras de Marx: “O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza atual se baseia, apare-ce como fundamento miserável em compara-ção com esse novo fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria.” (p. 588). Só mesmo uma mudança de forma social - no sentido mais profundo do termo - pode ultrapassar esta situação, fazendo-nos chegar a uma sociedade onde a medida da ri-queza seja não mais o tempo de trabalho, mas o disposable time, para usarmos a expressão inglesa da qual Marx se vale neste debate. Em nosso século XXI, após as insistentes promes-sas midiáticas de uma liberdade que adviria do desenvolvimento tecnológico, sabemos que o que se efetivou foi uma expansão brutal da jornada de trabalho (que invade nossos fins de semana, feriados etc.), trazendo de chofre a atualidade da reflexão e do combate de Marx para os dias de hoje. Motivo adicional para a leitura do texto, a ponto de Martin Ni-colaus afirmar que, se O capital se encon-tra “penosamente inconcluso”5, já os seus manuscritos preparatórios permitem em al-guns momentos vislumbrar melhor a íntegra do projeto marxiano.

Por fim, cumpre destacar a seriedade

com que a tradução brasileira dos Grundrisse foi realizada. O Professor Mário Duayer, da Universidade Federal Fluminense, respon-sável pela supervisão editorial, explicitou de forma segura suas decisões conceituais, que sem dúvida contribuem para um melhor en-tendimento do texto. Apenas como exemplo, o Mehrwert marxiano foi coerentemente tra-duzido como mais-valor, ao invés da tradução usual por mais-valia, que opacifica o conceito e o converte em “algo enigmático, quase uma coisa” (p. 23). Além disso, Duayer redigiu uma “Apresentação” extremamente esclarecedora, que comenta algumas passagens seminais dos Grundrisse, bem como contextualiza a gêne-se do texto e sua importância no interior do pensamento de Marx. Razões de sobra, aliás, para não permitirmos que prospere a conspi-ração do silêncio que tantos desejam, ainda hoje, fazer em torno de sua vasta obra.

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D iá l ogo s c om a c i dade

Desabrigados sofrem com descaso

Andrew Costa

Fotos: Andrew Costa

Desabrigados sofrem com descaso

Quase dois anos depois depois das

tempestades, antigos moradores do

Morro do Bumba não receberam da

Prefeitura o devido atendimento

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As chuvas de 6 de abril de 2010 mudaram para sempre as vidas dos moradores do Morro do Bumba, afetados pelos deslizamentos, que os colo-caram na mesma situação de centenas de outros cidadãos niteroienses: a de desabrigados.

O abrigo para onde foram transferidos di-versos moradores do Bumba depois da tragédia, hoje é a casa de desabrigados de diversas comu-nidades fluminenses. Texeira de Freitas, Cova da Onça, Viradouro, Santa Rosa e Morro do Céu são algumas das localidades de onde advém parte dos moradores do abrigo localizado no 3º Batalhão de Infantaria, em São Gonçalo.

A espetacularização dos deslizamentos na mídia durante o período das chuvas de 2010 fez com que o início da prestação de serviço aos desa-brigados funcionasse. Logo que as famílias foram deslocadas para o 3ºBI, a prefeitura arcou com a promessa de moradia para todos em até três meses. Segurança no abrigo, professores para crianças, alimentação e atividades de lazer eram garantidas pela prefeitura enquanto o caso continuava com destaque nos programas televisivos.

Um ano e oito meses depois, as casas ain-da não chegaram, e o que era ruim só piorou. A retirada da segurança, da limpeza, dos médicos e também das atividades de lazer das crianças transformou a dinâmica do abrigo em algo próxi-mo a um regime de encarceramento semi-aberto. É o que afirma Marta Silva, 44 anos, diarista, mãe de sete filhos e ex-moradora do abrigo: “Quando chegamos no alojamento só podíamos ter um colchonete e roupa de cama, todos dormíamos no chão, inclusive os idosos e deficientes fisícos. Aqui dentro do 3ºBI a população está sendo maltratada! Tem hora para comer, tomar café, levantar, jantar, para chegar. Se o abrigo é nossa casa, queremos

liberdade para poder sair e entrar na hora que quisermos e podermos receber nossas visitas. Te-mos horário pra visita, exatamente como em uma prisão! É como um regime semi-aberto: saímos pra trabalhar e voltamos pra dormir, tudo com hora marcada. Convivemos com esgoto a céu aberto e não temos direito nem à piscina do complexo, fal-tam psicólogos para as crianças, há descaso com a saúde dos moradores. Nossa condição de vida aqui é sub-humana”, afirma Marta.

Alta insalubridade

Além dos casos citados por Marta, o abrigo também possui problemas sérios em relação à estru-tura. Os banheiros, por exemplo: são grandes áreas divididas em dois, com canos que jorram alguma água, a iluminação é muito ruim, e as paredes são tomadas por muito lodo. O cheiro de urina e fezes é muito forte e no canto do banheiro fica um pequeno buraco destinado ao escoamento das águas do banho e também às necessidades fisiológicas dos moradores. O espaço é altamente insalubre e freqüentado tanto pelos adultos quanto pelas crianças. A existência de animais em grande número também é algo que inco-moda os moradores: “São muitos! Ratos e baratas ve-mos a toda hora. Uma menina do abrigo já foi atacada por uma lacraia e esse monte de pombo traz muitas doenças aqui para dentro”, comenta Marta.

A piscina que existe no 3ºBI é um capítulo à parte. Sem manutenção há um ano e cinco meses, a água adquiriu tons laranja e marrom e, nela, jazem um cachorro e um gato que freqüentavam o lugar. Potencial foco de mosquitos da dengue, a piscina também é um perigo para as crianças menores que podem transitar livremente por ali. “O refeitório

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possui cabos de eletricidade soltos e o chão freqüen-temente está molhado, é um perigo muito grande para os adultos e principalmente para as crianças. O ônibus prometido pela prefeitura para levar as crianças ao colégio só começou depois de muita mo-bilização perante a prefeitura”, afirma Marta.

O aluguel social é outro tema problemático. Anunciado como uma das principais políticas para sanar o problema dos desabrigados de Niterói, o aluguel social no valor de R$ 400,00 não é suficien-te para cobrir os valores de aluguel da maioria das famílias e parte dos desabrigados sequer começou a receber o pagamento. Marta também comenta: “Recebia 1 mês, ficava 2 meses sem receber. Depois regularizou, mas muita gente nunca chegou a rece-ber o aluguel social”. A especulação imobiliária tem aumentado muito em Niterói e arredores, fazendo o preço dos aluguéis aumentarem vertiginosamente. Marta é um dos exemplos de vítimas do preço do aluguel: o recente reajuste do imóvel onde vive não lhe permite pagar só com o aluguel social. Ela quer voltar para o abrigo, mas encontra dificuldades e re-clama do processo de administração do espaço, que considera antidemocrático: “A administração não foi eleita por ninguém e manda e desmanda aqui den-

tro. Preciso voltar para o abrigo agora, mas a politi-cagem deles dificulta minha volta. O que eu faço com minhas crianças enquanto isso?”, questiona.

Os moradores do abrigo do 3ºBI em São Gonçalo reivindicam apenas moradia digna. São trabalhadores, pagam seus impostos e com muito suor também pagaram suas casas antes de tudo vir abaixo pelo descaso da prefeitura com a estrutura da moradia nas regiões menos abastadas da cidade. O programa “Minha casa, minha vida” do governo federal é rechaçado pelos moradores do abrigo: “Não

À esquerda, Marta Silva, diarista, 44 anos e mãe de 7 filhos, desabrigada da tragédia

no Morro do Bumba.

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aceitamos esse negócio de ‘Minha Casa, Minha Vida’, ter que pagar de novo pela própria casa é um absurdo! Eu já paguei pela minha casa! A gente quer de volta o que é nosso por direito, a nossa casa. Os impostos que pagamos com muito suor vão para construir Caminho Niemeyer, Via Orla, gerar mais pobres desabrigados e nunca vem nada para cons-truir encostas e garantir a segurança da minha casa e da minha família. É um absurdo eu ter que me endividar com a Caixa Econômica Federal pra pagar pela segunda vez a minha casa!”, conclui Marta.

Acima, banheiro do alojamento no 3°Batalhão de Infantaria, em São Gonçalo. À direita, também no abrigo, caixa de energia anuncia perigo, em local onde as crianças transitam livremente

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H ipe r f o ca l

AF Rodrigues, fotógrafo de dois mundos

Dante Gastaldoni *

O cenário da fotografia é o Complexo do Ale-mão, em 26 de novembro de 2010, dia em que a favela foi ocupada pelas tropas encarregadas de expulsar os traficantes de drogas e criar as bases para a implantação de uma Unidade de Polícia Pacificadora naquele local.

No centro do quadro, um homem corre, vi-sivelmente assustado, protegendo o bebê que car-rega em seus braços de uma ameaça que escapa aos nossos olhos. A polícia se faz presente nas ex-tremidades da foto, mas é informação periférica: à esquerda, um motociclista cruza a rua deserta; à direita, um soldado, portando armamento pesa-do, corre um pouco atrás do homem com o bebê. A cena sugere um tiroteio prestes a eclodir.

Contudo, a tensão da imagem advém de um

gesto de amor: nosso olhar converge para o corpo magro do homem em primeiro plano, ligeiramente recurvado, como quem procura exercer uma ins-tintiva proteção sobre o bebê, complementada pela posição de seus braços e mãos, espécie de escudo humano envolvendo o pequenino ser.

A foto ainda nos brinda com um dado curioso, porque é precisamente desta indefesa criança que irradia o único olhar capturado pelo fotógrafo: um olhar assustado, que parece simbolizar nossa per-plexidade diante da violência que oprime a popu-lação do Rio de Janeiro, em especial os moradores das comunidades populares, principais vítimas do tráfico, das milícias e da truculência policial.

Feita no calor dos acontecimentos, a fotogra-fia diz muito sobre seu autor, o fotógrafo Adriano

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Em tiroteio no Complexo do Alemão, pai tenta proteger seu filho.

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Ferreira Rodrigues – que assina AF Rodrigues –, nascido e criado no complexo de favelas da Maré, um aglomerado de 140 mil pessoas, que margeia a Avenida Brasil, RJ. De cara, a imagem se con-trapõe à visão com que a invasão do Alemão foi apresentada pelos principais jornais da cidade, preocupados em mostrar os traficantes fugindo, em contraponto com uma população agradecida. No entanto, o grande diferencial desta foto resi-de na atitude do próprio fotógrafo, um misto de coragem (para se expor de peito aberto, diante do conflito iminente) e de olhar solidário (que optou por centrar o foco na tensão dos moradores, em de-trimento do heroísmo com que a ação dos soldados foi então louvada pela mídia). “Procuro enxergar no outro meu eu” – explica Adriano – “quando foto-grafo toda a minha história de morador da favela se faz presente e dirige meu enquadramento”.

Conheço Adriano desde 2006, quando ele,

recém-formado em Ciências Agrí-colas pela UFRRJ, abriu mão de uma bolsa de pesquisa para cursar a Escola de Fotógrafos Populares, na Maré, um alentado curso de um ano, com 540 horas/aula, oferecido pelo Observatório de Favelas. Na-quela ocasião, eu completava 30 anos de magistério, lecionando dis-ciplinas ligadas à área da imagem no IACS/UFF e na ECO/UFRJ, e tinha acabado de assumir a co-ordenação acadêmica da Escola, a convite de João Roberto Ripper, um dos maiores fotodocumentaris-tas brasileiros.

O projeto da Escola é anco-rado na ideia de formar fotógrafos

oriundos dos espaços populares, capazes de pro-duzir uma documentação endógena das perife-rias, que se oponha à visão de favela como foco de violência, frequentemente veiculada pela grande imprensa. Ainda em 2006 apresentei o projeto à Proex/UFF, que passou a diplomar os formandos.

Dentre os muitos talentos que vi brotarem na Maré, saltou aos olhos a qualidade da fotografia de Adriano, que já havia incorporado um acento autoral antes mesmo do término do curso. Não me parece exagero dizer que sua ascensão profissional foi muito rápida. Ao longo de 2007, ele participou de três importantes exposições coletivas: ”Esporte na favela“, CCBB, RJ; ”Olhar Cúmplice“, Caixa Cul-tural, RJ; e “Belonging”, Canning House, Londres. E em março de 2008, Adriano e seu colega Bira Carvalho, subiram ao palco do Copacabana Palace para receber, em nome de seus colegas, o prêmio Faz Diferença do jornal O Globo, conquistado pela

Voluntários buscam por vítimas após o desastre “natural” em Teresópolis.

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Escola de Fotógrafos Populares no ano anterior.A destacar, desde 2007, sua atuação profis-

sional como fotógrafo na Coordenadoria Especial de Comunicação da Cidade do Rio de Janeiro, uma atividade que lhe permite o cumprimento de pautas diárias bem diferenciadas daquelas que executa em sua vivência como fotógrafo documen-tarista nas favelas, o que faz de AF Rodrigues um fotógrafo de dois mundos:

- Meu trabalho na Prefeitura às vezes é conflitante com o trabalho documental que faço nas periferias, porque sou obrigado a respeitar uma visão institucional da cidade, que nem sempre enxerga o Rio como uma cidade parti-da, mas a gente sempre dá um jeito de trazer o humano para dentro das fotos”.

Agora em 2012, Adriano está prestes a con-cluir sua segunda graduação, desta feita em Geogra-fia, pela UFF. Hoje, além de sabê-lo um excepcional fotógrafo, na esteira de gente como Ripper, Eugene Smith e Josef Koudelka, tenho no Dri um grande amigo. A gente se frequenta e, vez por outra, quan-do o papo ou a saudade se impõem, vou encontrá-lo na Maré, mais especificamente na Nova Holanda, onde ele continua morando com sua companheira, a também fotógrafa e amiga Elisângela Leite. A pro-pósito, em junho deste ano, o casal irá à Cidade Luz, representar a Agência-Escola Imagens do Povo na abertura da exposição fotográfica que estará sendo exibida pela Aliança Francesa, em Paris.

* Dante Gastaldoni é jornalista e cientista social formado pela UFF, mestre em Comunicação Social e professor de Foto-grafia na UFF (1980), UFRJ (1984) e Escola de Fotógrafos Populares da Maré (2004)

No alto da página: Grupo de Teatro Cia. Marginal conta história da Maré.

Acima: Agente de saúde da Rocinha entrega remédios para paciente tuberculoso.

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Acima: João Bolinha passa vendendo seu brinquedo e de

graça oferece suas leves alegrias pelas ruas da Maré.

Ao lado: Vista do Complexo do Alemão a partir de um dos

bondes do teleférico.

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Neste número:A Classe está de volta

Crise estrutural necessita de mudança estrutural

Notas sobre a atualidade de Lukács

Vozes da resistência contra Belo Monte

A saga de um grupo de teatro classista

Comissão da Verdade: mais uma farsa, mais um engodoMarighella: presente!

Megaeventos para quem?Vila Autódromo: uma comunidade que teima em resistir

Os caminhos para a universalização da banda larga

Verdade por trás da crise - resenha do filme “Trabalho interno”

O laboratório de Marx - resenha dos Grundisse

Desabrigados das chuvas sofrem com descaso

AF Rodrigues - fotógrafo de dois mundos

Ano V - nº 4JANeiRO/FeVeReiRO/MARÇO De 2012

iSSN: 2176-9605

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Associação dos Docentes da UFF

Seção sindical do AndesFiliado à CSP/CONLUTAS

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