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Revista cultura Ajufe

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Revista Cultura nº 7

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Page 1: Revista cultura Ajufe
Page 2: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE2

Diretoria da AJUFE · Biênio 2008/2010

Presidente

Fernando Cesar Baptista de Mattos

Vice-Presidente da 1ª Região · Miguel Ângelo de Alvarenga Lopes

Vice-Presidente da 2ªRegião · Andréa Cunha Esmeraldo

Vice-Presidente da 3ª Região · Nino Oliveira Toldo

Vice-Presidente da 4ª Região · Carla Evelise Justino Hendges

Vice-Presidente da 5ª Região · José Parente Pinheiro

Diretoria

Secretário-Geral · Jurandi Borges Pinheiro

1° Secretário · Paulo Cezar Neves Junior

Diretor Tesoureiro · Vilian Bollmann

Diretor da Revista · André Ricardo Cruz Fontes

Diretor de Assuntos Legislativos · Paulo Ricardo Arena Filho

Diretor de Relações Internacionais · Marcelo Navarro Ribeiro Dantas

Diretora Cultural · Raquel Domingues do Amaral Corniglion

Diretora Social · Isadora Segalla Afanasieff

Diretor de Relações Institucionais · Antônio Sávio de Oliveira Chaves

Diretora de Assuntos Jurídicos · Márcia Vogel Vidal de Oliveira

Coordenador de Comissões · Ivanir Cesar Ireno Junior

Diretor de Esportes · Marcus Lívio Gomes

Diretor de Assuntos de Interesse dos Aposentados · Edison Messias de Almeida

Diretor de Informática · Bruno Augusto Santos Oliveira

Diretora Administrativa · Élio Wanderley de Siqueira Filho

Diretor de Comunicações · Lidiane V. Bomfim Pinheiro de Meneses

Conselho Fiscal

Guy Vanderley Marcuzzo

Marcello Ennes Figueira

Bianca Georgia Arenhart Munhoz da Cunha

Diretores Suplentes

Manuel Maia de Vasconcelos Neto

Roberto Carlos de Oliveira

Revista de Cultura AJUFE · 7ª Edição

Coordenação geral · Fernando Cesar Baptista de MattosCoordenação de apoio · Mônica Sifuentes e Liliane RorizJornalista responsável · Renata CamargoProjeto gráfico e diagramação · Eye DesignIlustrações · Rafael Limaverde e Claudia El-moorApoio técnico · Andréia Levi

Colaboradores desta edição · Vera Brant

Foto da capa: Nicolau El-moor

AJUFE · Associação dos Juízes Federais do BrasilSHS Quadra 06, Bloco E, Conjunto A, Salas 1305 a 1311, Brasil XXI, Edíficio Business Park 1 Brasília/DFCEP 70322-915Tel. (61) 3321.8482 e fax (61) 3324.7361www.ajufe.org.br

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. É proibida a reprodução total ou parcial dos textos, fotos e ilustrações sem prévia autorização.

Revista não destinada à venda. Distribuição realizada pela AJUFE.

Palavra do PresidentePrezados colegas magistrados federais e demais leitores, mãos de quem essa

nossa publicação possa chegar, é com orgulho que apresento mais uma edição

da nossa Revista de Cultura AJUFE.

Para quem como eu, por força do ofício, conhece de perto a rotina dura de um

magistrado – horas a fio num gabinete lendo processos e, na maioria das vezes,

sendo obrigado a levar trabalho para casa, além da necessidade de uma continua

reciclagem do conhecimento por força de novas legislações –, não deixa de ser

surpreendente a capacidade produtiva dos que contribuem, por meio de suas obras,

com a nossa revista. Isso, é claro, sem falar da força criativa de nossos autores.

Dentro dos mais variados estilos, você vai se comover com a história de algum

personagem, rir da criatividade de outro, compreender melhor a necessidade da

defesa de princípios morais e, claro, aumentar seu conhecimento.

Tenho certeza que, durante a leitura, você vai encontrar entre versos e prosa, um

pouco de Dostoiévski, um pouco de Gogol, de Balzac. Vai sentir também um pouco

do nosso Machado, de Drummond e de Vinicius.

O leitor vai também – por meio de contos e poemas, vindos de várias partes do Brasil

e produzidos por quem no dia a dia de seu trabalho aprofunda o conhecimento

sobre o caráter do ser humano – conhecer um pouco do sentimento e do jeito

de ser dos brasileiros.

Portanto, caro leitor, não perca tempo e aceite o convite de quem teve, em primeira

mão, o prazer de se deliciar com a prosa e os versos aqui contidos. Escolha um local

confortável, se preferir coloque para tocar baixinho uma música, e aproveite.

Fernando Cesar Baptista de Mattos

expediente

Page 3: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE 5

sumário

Revista de Cultura AJUFE 5

6

13

20

32

36

42

58

64

Inspiração poéticaPoesias · Francisco de Barros e Silva Marcos César Romeira Moraes Marcos Mairton

Contador de HistóriasCrônicas · Arthur Pinheiro Chaves Francisco Roberto Machado Flávio da Silva Andrade

Quem Conta um ContoContos · Gilberto Mendes Sobrinho Vladimir Souza Carvalho Edilson Pereira Nobre Júnior

No Escurinho do CinemaEsta rua é nossa · José Carlos Garcia

Ponto de VistaEntrevista com Vladimir Passos de FreitasReportagem Renata Camargo

AcademiaArtigos · Adhemar Ferreira Maciel Adão Assunção Duarte Paulo Fernando Silveira

Saiba maisOs encantos da Amazônia

Outras PalavrasO motorista de caminhão na estradaColaboradora Vera Brant

Fazer uma revistaFazer uma revista semestral de cultura é sempre um desafio,

renovado a cada edição. Poucos sabem quantas pessoas se envolvem

na produção de um periódico. Há que procurar e separar textos,

temas, distribuí-los por páginas. E o patrocínio? Nem fale… Espera-

se, ao final, que o produto possa chegar às mãos do leitor, belo o

suficiente para incitá-lo a começar, imediatamente, não apenas a

ler, mas a devorar as suas páginas. Isso porque, desculpem-nos as

feias, mas como diria Vinícius, a beleza, nesta Revista de Cultura,

é fundamental!

À beleza estética devem-se acrescentar, ademais, textos e textos.

Densos na mensagem, mas fluidos na forma, leves na concepção,

especiais. A leveza aqui também não poderá ser insustentável. Antes,

é o que nos dá o material para criar formas de borboleta. E a cada

edição nos surpreendemos como, para além do negro das togas,

projetam-se personalidades flexíveis, encantadas, mágicas, como o

pincel dos grandes mestres. Aí está a riqueza do humano em cada

um de nós, onde pedaços de formas geométricas transformam-se

em um caleidoscópio de imagens repletas de luz e cor.

Mas há que se ter, sobretudo, mestres para transformar tudo

isso em pontos, linhas e páginas. Vai aqui então uma homenagem

– singela, mas genuína – às três maestrinas que tornam essa revista

possível e bela, a cada semestre: Claudia, Renata e Andréia. Mãos

de fada, almas de artista. A elas aquilo que somente por gestos e

palavras faladas até hoje pudemos dizer: Obrigada!

Mônica Sifuentes e Liliane Roriz

Page 4: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE6 Revista de Cultura AJUFE 7

natalpoesia

Revista de Cultura AJUFE6

Um véu solto ao vento

Leve voar sob o azul

Sem dor, sem calor, sem medo

Aonde vai não se sabe, não importa

Importa voar, solto.

Sou eu, que não sou

É quem é, não quem se quer

É ser ou é sonho?

Não dor, não calor, não medo

Só ser, solto sob o azul.

Ao vento, uma sombra

Um corpo sem corpo

Vai aonde o leva

E voar é o que importa

Um sonho.

Livre alma, corpo oco

Suspiros fartos de brisa fria

Veloz passar ao infinito espaço

Chegar nenhum e em todo está

Para onde, não importa.

Quando meu corpo sentir o frio

Estarei preparado para ele

Curvarei sobre mim e profundamente abraçar-me-ei.

Deitarei num chão escuro e vazio

E no escuro permanecerei, com os olhos fechados

Fechado estarei, escuro e vazio

Ausência de mim, fria alma.

O frio envolverá

O vazio libertará

O escuro confortará.

Sem tempo na eternidade

Esperarei o inverno

Nada sentirei, só o frio, o escuro e o vazio

Há um fim ou um começo.

Não mais inverno

E a luz atingirá

O vazio será inundado.

Abrirei os olhos

Revelado estarei

Não haverá escuridão

E serei livre para novamente esperá-lo, o meu inverno.

Idosa circunspeta sorridente,

Com seus portões largos enferrujados.

Carambolas ao chão, adocicando

O cheiro das folhas secas no mato

Verde. De cidreiras e capim-santo.

Uma pitangueira ao longe, distante

Como qualquer país. Dedos-de-moça

Vermelhos. Mangas e maracujás

Enrugados na face, porém doces

De pessoa. Nos tempos de quintais.

Latidos de pastor alemão, asas

Esvoaçando. Um grito: “Menino,

Já disse, deixe as galinhas em paz!”

Roupas nos alpendres. Paredes brancas.

Um cheiro da comida de não mais.

A mesa de madeira com fantasmas

Celebrando ao redor. E nas fotos,

Ainda vivas, seus olhos serenos.

No fim do corredor, uma cadeira:

Balanço, saudade, terço nas mãos.

Larga do Feitosa Sonho

Quando o inverno chegar

É o passo, fim de jornada, no meio da tarde da vida.

Fecha-se o ciclo, apuram-se os haveres, contabiliza-se

como se cada relação sobrevivida fosse custo e benefício

do grande livre diário – contado às gerações futuras.

Eis que a conta não fecha. E o balanço prossegue.

Adiam-se os minutos. Suspendem-se os passos.

A escritura, como a vida, não segue antes de finda.

Não se contenta com o próximo. Exige o exato.

E o tempo cobra o seu imposto. No lucro ou não.

Na pendência das contas. Com ou sem haveres.

Encerra nova moratória, dantes averbada na face.

Passou a hora de economizar gestos e palavras…

Ano Fiscal

Francisco de Barros e Silva é Juiz Federal da Seção Judiciária

de Pernambuco.

Marcos César Romeira Moraes é Juiz Federal Vara Federal Criminal Maringá (PR).

Page 5: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE8 Revista de Cultura AJUFE 9

editoriapoesia

Revista de Cultura AJUFE 98 Revista de Cultura AJUFE

Uma aventura na Amazônia

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No outro dia, de manhã,

Seguiram na embarcação,

Onde um guia explicava

Cada trecho da excursão,

Mas Daniel nem ligava,

Na floresta é que estava

Toda a sua atenção.

Via as árvores gigantes

Que ali nas margens ficavam,

Algumas araracangas

Que no céu azul voavam,

E até um casal de botos

Que, igual a dois garotos,

Na água escura brincavam.

Aquele foi um passeio

Pra ele nunca esquecer.

Até índios de verdade

Ele pôde conhecer,

Mas não imaginaria

O que ainda iria

Em seguida acontecer.

A divertida excursão

Já estava terminando,

E o barco já estava

Para o porto retornando

Quando apareceu na frente,

Em meio à água corrente,

Um grosso tronco boiando.

“Cuidado!”, gritou um homem,

“Vamos bater nesse pau!”

E o piloto do barco

Manobrou depressa a nau,

Mas não deu pra desviar,

Ele não pôde evitar

Aquele choque fatal.

Quando o barco se chocou

Com aquele tronco imenso,

Abriu no casco um buraco

Que deixou o barco penso.

Passageiros assustados

Gritavam desesperados,

O ambiente era tenso.

Mas, com muita habilidade,

O piloto controlou

Aquela situação

Que ali ele enfrentou.

Mesmo muito avariado

E com o porão inundado

O barco não afundou.

Só que, em meio à confusão,

Ninguém tinha percebido

Que o menino Daniel

Tinha desaparecido.

A mãe teve um calafrio

De imaginar que no rio

Ele tivesse caído.

Chamaram pelo seu nome,

Puseram-se a procurar,

Outros barcos que passaram

Vieram para ajudar,

Mas, por obra do destino,

Naquele dia, o menino,

Não puderam encontrar.

Apesar de muitas buscas

Que foram empreendidas

As chances de encontrá-lo

Estavam todas perdidas.

Daniel ia boiando

Depressa se afastando,

Com um colete salva-vidas.

A noite chegou depressa.

Já não havia esperança

De se encontrar com vida

Aquela pobre criança,

Mas, enquanto os pais sofriam,

Dois índios o socorriam

Com destreza e segurança.

Estavam os índios pescando

Rio abaixo, bem distante,

Quando viram Daniel

Passando, naquele instante,

Com frio, muito assustado,

Porém, com força, agarrado

Ao colete flutuante.

Então, remaram com força

E logo o acompanharam.

Para dentro da canoa

Bem depressa o puxaram.

Completando o salvamento,

Para o acampamento

Daniel eles levaram.

Um índio levou nos braços

Daniel, que adormeceu.

Até hoje ele não sabe

Direito o que aconteceu,

Mas, pelo que me falou,

Lembra que só acordou

Quando o dia amanheceu.

Nessa hora, já havia

Outros índios ao seu lado,

Que ficaram muito alegres

Quando o viram acordado,

E dentro de uma oca,

Ele comeu tapioca

E um pouco de peixe assado.

Dos índios, não eram todos

Que falavam português.

De um grupo de cinquenta,

Talvez só uns dois ou três.

Por isso, um, que falava,

Explicou que ali passava

Um barco uma vez por mês.

Enquanto o barco não vinha,

O jeito era esperar.

Muitos dias na aldeia

Teria que demorar.

Daniel, então chorou

Mas, em seguida aceitou

O que tinha que passar.

Daniel era um menino

Que tinha muita coragem.

Esperou sem reclamar

O dia de sua viagem,

E nunca mais esqueceu

Muita coisa que aprendeu

Naquele lugar selvagem.

Aprendeu a pegar peixe,

Por dentro do igarapé,

A pescar aruanã,

Pacu e tucunaré,

Quem lhe mostrava o caminho

Era o pequeno indiozinho

Que era filho do Pajé.

A criança de hoje em dia

Na escola cedo aprende

As coisas da natureza,

E por isso compreende

Que os animais da mata

A gente nunca maltrata,

Nem tampouco a gente prende.

Mesmo assim, ainda existem

Homens mal acostumados,

Que pegam os animais,

Na mata capturados,

E levam para a cidade

Pra viver sem liberdade,

Tristes e engaiolados.

Por causa desse costume,

Certa vez aconteceu

Uma história interessante

Com um menino que eu

Conheci quando criança,

E ainda tenho a lembrança

De como tudo ocorreu.

Seu nome era Daniel,

Tinha dez anos de idade,

Quando o seu tio, Pedro,

Chegou a nossa cidade

Vindo de uma viagem

E trazendo na bagagem

Uma grande novidade.

O tio falou pra ele:

“Este é o seu presente,

Que eu peguei numa floresta

Onde fui recentemente,

E pensei: – Esse bichinho,

Vou levar pro meu sobrinho,

Ele vai ficar contente!”

Era um macaco-aranha

Bem pequenino e peludo.

O pelo preto e macio

Parecia de veludo.

Daniel, assim que viu,

Ficou feliz e sorriu,

Pensou: “Como eu sou sortudo!”.

Então, guardou o macaco

Em uma jaula que havia

No quintal de sua casa,

E era ali que todo dia

Daniel alimentava,

Com muito jeito cuidava

Do bichinho que crescia.

Mas, passados alguns meses,

As férias, então, chegaram,

E Daniel e seus pais

Para longe viajaram.

Pediram que um vizinho

Cuidasse do macaquinho

E no avião embarcaram.

Eles foram a Manaus

Pra fazer uma visita

À tia de Daniel,

Chamada Maria Rita,

Que desde a sua mocidade

Morava nessa cidade

Moderna, grande e bonita.

Aproveitaram também

Pra conhecer os locais

Que são pontos de turismo

E foram nos principais:

O teatro e o mercado,

O porto movimentado

E os centros culturais.

E, para o dia seguinte,

Marcaram logo um passeio

De barco, no Rio Negro,

Que, aliás, estava cheio,

Com a sua água escura.

Era tão grande a largura

Que até dava receio.

Page 6: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE10 Revista de Cultura AJUFE 11

editoria editoria

Revista de Cultura AJUFE10 Revista de Cultura AJUFE 11

Aprendeu nomes de aves,

De peixes e animais.

Cada dia que passava

Aprendia um pouco mais.

Só lhe doía a saudade

De sua casa na cidade,

De estar junto de seus pais.

Às vezes, quando pensava

Na sua família ausente,

Ele imitava um guariba

Com seu grito estridente.

Vendo o que acontecia

O Pajé sempre dizia:

“Ele é índio como a gente!”

Um dia, o Pajé chamou

Daniel e disse assim:

“Tempo de menino branco

Nessa aldeia tá no fim.

O seu barco não demora.

Menino, não vá embora

Sem se despedir de mim”.

Entendendo que o barco

Brevemente chegaria,

Daniel, não se continha,

Tamanha a sua alegria.

Pulava de tão contente,

Pois agora, finalmente,

Para casa voltaria.

Nessa hora, um indiozinho,

Quase chegou a chorar

E perguntou ao Pajé:

“Ele não pode ficar?

Ele agora é meu amigo,

Gosta de brincar comigo,

Por que tem que nos deixar?”

O Pajé lhe respondeu:

“Curumim vai entender,

Quando estiver maior

E puder compreender,

Que pra todo ser liberto

Existe o lugar certo

Onde ele deve viver”.

“Daniel ficar aqui

Seria uma crueldade,

Como fazem com os bichos

Que levam para a cidade.

Por isso, ele deve ir,

Para lá se reunir

Com seu povo, de verdade”.

Então, no dia seguinte,

O barco por lá passou,

E com destino a Manaus

Daniel nele embarcou,

Com uns quatro dias mais,

Encontrou com os seus pais

Onde tudo começou.

Quando chegou a Manaus,

Houve uma festa no porto.

Diziam que Daniel

Fora dado como morto,

Mas agora regressava

Para a família que amava,

Gozando todo conforto.

Depois de ter retornado

Pra cidade onde nasceu,

Contou-me toda a aventura

Que na floresta viveu.

Como os índios lhe salvaram

E também lhe ensinaram

Muitas coisas que aprendeu.

Falou-me que, muitas vezes,

Na selva estava sozinho

E lembrava da família,

Seu amor e seu carinho.

E ficava imaginando:

“Eu acho que estou passando,

O mesmo que o macaquinho”.

Ele então rezava: – Deus,

Me ajude a sair desta.

Se voltar pra minha casa

Eu não vou nem querer festa.

Mas eu prometo fazer

De tudo pra devolver

Meu macaco pra floresta.

E, de fato, foi assim

Que terminou esse drama:

No dia em que Daniel

Foi dormir em sua cama,

Só aceitou se deitar

Depois de o pai entregar

O macaco pro Ibama.

Do Ibama, o macaquinho

Foi morar em um zoológico,

Onde teve tratamento

Médico e odontológico.

Lá foi readaptado

Pra depois ser libertado

Em um parque ecológico.

Daniel hoje é adulto

E fala sempre comigo.

Ainda gosta de aventura,

De brincar com o perigo.

Macacos não teve mais,

Mas dos índios e animais

Continua muito amigo.

E você que é criança

E leu com muita atenção,

Não precisa se perder

Para aprender a lição:

De criar cachorro e gato,

Enquanto os bichos do mato,

A gente deixa onde estão.

Cordel extraído do livro ilustrado de literatura infanto-juvenil Uma aven-tura na Amazônia, publicado pela Conhecimento Editora, em 2008.

Aruanã · espécie de peixe de água

doce que vive nos rios da Amazônia,

onde se encontram as espécies

preta e prateada. É chamado

de macaco d’água porque salta

até um metro pra fora da água

(quando adulto) para pegar

pequenos frutos ou insetos nos

galhos das árvores situadas nos

igapós (floresta inundada).

Botos · o boto-vermelho ou boto-

cor-de-rosa é um golfinho fluvial

presente nas bacias dos rios

Amazonas e Orinoco.

Curumim · menino em tupi-guarani.

Guariba · um dos maiores

primatas neotropicais, com com-

primento de 30 a 75 centímetros.

Sua pelagem varia de tons ruivos,

ruivo acastanhado, castanho e

castanho escuro. É famoso por

seu grito, que pode ser ouvido em

toda a mata, e pela presença de

pelos mais compridos nos lados

da face, formando uma espécie

de barba.

Ibama · Instituto Brasileiro de Meio

Ambiente e Recursos Renováveis,

órgão federal responsável pela

preservação do meio ambiente

no Brasil.

Igarapé · palavra que em tupi-

guarani quer dizer “pequeno

curso d’água”. São pequenos

braços dos rios amazônicos que

entram pela floresta.

Macaco-aranha · é o mais rápido

e o mais acrobático dos mamíferos

da floresta. A cauda funciona com

a força e a agilidade dos outros

membros, podendo ser considerada

uma quinta mão.

Oca · nome dado à habitação

indígena brasileira. O termo é

oriundo da família linguística

tupi-guarani.

Pacu · espécie de peixe que vive na

Amazônia. Alimenta-se de frutos,

caranguejos e detritos orgânicos

encontrados na água. Atinge até

15 kg de peso.

Pajé · pessoa de destaque em uma

tribo indígena. Em muitas tribos, é

considerado curandeiro, tido por

muitos como portador de poderes

ocultos ou orientador espiritual.

Readaptado · no texto, refere-se ao

animal que, após viver um tempo

em cativeiro, é treinado para viver

novamente na selva.

Rio Negro · rio brasileiro que banha

o estado do Amazonas. Une-se com

o Rio Solimões para formar o Rio

Amazonas, sendo um dos afluentes

deste. O Rio Negro, em volume de

água, é o segundo maior rio do

mundo, pois o maior mesmo é o

Rio Amazonas.

Tapioca · comida tipicamente bra-

sileira, de origem indígena, feita

com o amido extraído da mandi-

oca, também conhecida como

polvilho, goma ou beiju. Pare-

cida a uma panqueca ou crepe,

podendo ser servida recheada

com manteiga, queijo, coco ralado

e, as mais exóticas, com banana,

chocolate, carne-de-sol e outras. A

tapioca era o alimento básico dos

índios brasileiros.

Tucunaré · espécie de peixe da

Amazônia, que mede de 30 cen-

tímetros a um metro. Vive em lagos,

lagoas e rios, preferindo águas

lentas ou paradas. Tem hábitos

diurnos e alimenta-se de outros

peixes e pequenos crustáceos. Em

sua cauda, destaca-se um círculo,

semelhante a um olho.

Marcos Mairton é Juiz Federal Juiz Federal

da 8ª Vara da SJ/RN, em Mossoró.

GLOSSÁRIO

Page 7: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE12 Revista de Cultura AJUFE 13

poesia contador de histórias

Revista de Cultura AJUFE Revista de Cultura AJUFE 1312

Eram 6h15 da manhã de um sábado, quando recebi

a notícia: “Seu irmão está morto!”. Palavras que soaram

como uma agressão que, até então, era para mim inima-

ginável de caber em uma simples manifestação verbal,

revelando realidade que contraria o corpo e suas funções,

imobilizando uma estrutura humana que, até então, sorria,

andava e estava feliz. A morte tem esse poder: imobiliza

tanto quem vai, quanto quem fica.

Tinha, então, diante de mim, uma distância a ser

percorrida até São Luís do Maranhão, onde moravas, mas

meu coração não desejava ir a lugar algum. Queria se

fixar nos acontecimentos que antecederam aquela notícia.

Queria se prender nas certezas de outrora, no tempo em

que o sorriso largo ainda estampava o teu rosto, revelando

sonhos de viver e ser feliz.

O sorriso já não mais existe, ancorou-se nas paragens

distantes, onde a razão não prepondera e os conceitos

nada significam. Restou-me a lembrança de nossa última

conversa pela internet, via webcam. Uma alegria sincera

transcendia de tua imagem no monitor, desejando-me

uma boa noite de sexta-feira, dizendo estar com saudade,

mas que, no dia seguinte, estaríamos juntos, pedindo-me

que fosse buscá-lo no aeroporto.

Nada mais, naquele momento, era real. Tampouco a

morte; afinal, uma realidade tão abrupta e cruel não cai

de maneira definitiva sobre o coração dos entes queridos

que ficam. Ela se dá aos poucos, minuto a minuto, até que

se torna excessiva, redundante, sufocante. Abria, então, os

olhos e repetia: “Acabou! Acabou!”. Fechava os olhos e o

mesmo pensamento continuava ecoando.

Depois da viagem, que pareceu a mais longa de minha

vida, tive que testemunhar seu corpo imóvel. Para alguém

que sempre foi tão vivo, para ser feliz ou mesmo para

sofrer, aquela imobilidade era desconcertante. Naquele

momento, a notícia se concretizou diante dos meus olhos.

As marcas do acidente estavam ali, diante do meu silêncio

e de minha total incapacidade de reverter os fatos. Era

como se eu pudesse ouvir a tua voz a nos dizer: “Não pude

resistir, me perdoem por partir tão cedo”.

Os dias que se seguiram foram os piores, até então,

vividos por todos nós. Aos poucos, à medida que o

sofrimento permitia, íamos vasculhando as tuas coisas,

encontrando detalhes de uma história interrompida: seu

amor pelo magistério, seu sonho de constituir família, sua

apreensão com o futuro. Tudo isso estava agora sob o

toque do encerramento, da finalização, a denotar que o

doloroso epílogo de tua existência havia chegado.

Algum tempo já se passou, mas parece que foi ontem.

Depois que você se foi, algumas coisas mudaram por aqui.

Nossa sobrinha já está uma moça. Dá orgulho de ver.

Outras coisas, porém, continuam do mesmo jeito. Nossa

mãe, apesar do sofrimento, continua sendo o nosso porto

seguro, a fortaleza de todos.

Eu estou por aqui. Às vezes, quando a saudade aperta,

repito o mesmo pensamento que tive no dia em que

partiste: “Leva o meu coração, que eu fico com o seu, ‘mano’.

Eternamente, até o dia em que vamos nos reencontrar”.

Fica com Deus, meu irmão! Dê um beijo Nele por mim.

Carta a um irmão que partiuPor Arthur Pinheiro Chaves

Arthur Pinheiro Chaves é Juiz Federal Substituto da 1ª Vara da Seção Judiciária do Pará.

E disse o índio ao presidente:

“We are part of the earth and it is part of us.

The perfumed flowers are our sisters; the deer, the horse,

the great eagle, these are our brothers.

The rocky crests, the juices in the meadows, the body heat

of the pony, and man - all belong to the same family.”

Do jardim

Das tuas florestas

Vêm sorrir pra mim

Flores coloridas, animais, enfim,

Tudo que a vida faz nascer em ti.

We must live with nature in harmony

And with fauna and flora like a family.

Voar,

cruzar teu céu e sobrevoar teu mar,

De leve te tocar,

e então mergulhar.

Correr

pelos teus campos à luz do alvorecer.

Voar,

cruzar teu céu e sobrevoar teu mar,

De leve te tocar,

e então mergulhar.

Correr

pelos teus campos à luz do alvorecer.

Quero te conhecer

E sentir o prazer

De viver,

Ó, Mãe Terra,

A vida inteira assim.

Pois bem sei

Que sou parte de ti

E tu és parte de mim.

To fly

over the sea and across the blue sky,

Lightly touching you,

Then through you disappear.

To run

across the fields at the bright of the rising sun.

I wanna figure you out

And feel the joy

Of living,

Oh, Mother Earth,

A lifetime so free

Cause I know

That I complete you

And you complete me.

Ó, Mãe Terra! Oh, Mother Earth!

Marcos Mairton é Juiz Federal Juiz Federal da 8ª Vara da SJ/RN, em Mossoró.

* Texto incidental: Carta do Cacique Seattle ao Presidente dos

Estados Unidos (1855). Poema escrito em parceria com Zico.

Page 8: Revista cultura Ajufe

15Revista de Cultura AJUFERevista de Cultura AJUFE14

contador de histórias

dizia: “A realidade é que sem ela não há paz,

não há beleza, é só tristeza e a melancolia que

não sai de mim, não sai de mim, não sai!”. E

logo eu pedia: “Vai, minha tristeza, e diz a

ela que sem ela não pode ser. Diz-lhe, numa

prece, que ela regresse, porque eu não posso

mais sofrer… chega de saudade”. E também

mandava recadinhos: “Volta, querida, os seus

olhos têm que ser só dos meus olhos, os

meus braços precisam dos teus, teus abraços

precisam dos meus, estou tão sozinho, não

me deixes ficar triste; tem dó, pois quem viveu

junto não pode nunca viver só!”. E insistia:

“Tomara que você volte depressa, que você não

se despeça nunca mais do meu carinho, afinal,

tu me chegaste sem me dizer que vinhas e

foste em minh’alma como um amanhecer!”.

E implorava: “Guarda-se para mim, pois tua

ausência é um sofrimento!”.

O desfecho é de todos sabido: apesar dos

tantos apelos, nenhuma retornou aos meus

braços nem fez de seus braços o meu ninho.

Aliás, pelo menos uma delas se foi embora

de repente, não mais que de repente, antes

que eu, como de costume, saísse à francesa

em busca de uma nova paixão. (Do episódio

de minha fujona amada, o Badinho é teste-

munha). E o que é pior, como o perdão tam-

bém cansa de perdoar, ela se foi sem sequer

dizer adeus, mesmo que eu lhe rogasse: “Ah,

meu amor não vais embora, pois sem você

eu não sou ninguém, porque sei que vou te

amar, por toda minha vida eu sei que vou te

amar, desesperadamente, eu sei que vou te

amar”. Tudo debalde, restou-me exclamar: “Ah,

insensatez, que você fez, fez chorar de dor o

seu amor, um amor tão delicado”. Vendo tudo

desfeito, tudo perdido, o amor dilacerado, o

pranto ante a agonia do fato consumado, ainda

tentei uma ameaçazinha: “Tudo bem, agora vá

viver sua vida como você quer, porém não se

surpreenda se uma outra mulher nascer de

mim, como do deserto uma flor!”. Mas ela se

foi. E eu fiquei pensando. É, existe sempre uma

mulher para se ficar pensando! À noite, em

conversa com amiguinhas confidentes, uma

me recomendou uma macumbazinha. Mas

logo outra advertiu: “Coitado do homem que

vai atrás de mandinga de amor!”. Enquanto

uma dizia: “Vai, vai, vai”. Logo a outra insistia:

“Se é canto de Ossanha, não vá, pois muito vai

se arrepender”. Resoluto, decidi: eu só vou se

for pra ver uma estrela aparecer na manhã de

um novo amor!

Durante minha vida terrena, por céus e

mares, eu andei na esperança de saber o que

é o amor. Ninguém sabia me dizer, quando

um velhinho com uma flor assim falou: “O

amor é o carinho, é o espinho que não se vê

em cada flor”. De passagem pelo candomblé

baiano, sob os auspícios de meu orixá, ali me

foi ensinado que o amor só é bom se doer,

pois ninguém tem nada de bom sem sofrer.

Olha, fale quem quiser falar, meu bem, mas

a gente nasce, a gente cresce, a gente quer

amar, mesmo sabendo que são demais os

perigos dessa vida para quem tem paixão.

Descansasse o Senhor no 6º dia da Criação,

simplesmente não existiríamos e, portanto,

não sofreríamos males de amor. Mas como

Eu, o capitão-do-mato, Vinicius de Moraes, poeta e

diplomata, o branco mais preto do Brasil na linha direta

de Xangô, intitulado, post-mortem, de “o poeta da paixão”,

quero aproveitar, porque agora apareceu um portador,

para mandar um recadinho aos meus caros amigos,

especialmente, aos parceirinhos Chico e Toquinho,

entregando-lhes a missão de divulgar esta mensagem

além da vida. Aqui, direto dos estúdios do Pai Celestial —

num petit comité ao lado do meu querido Tonzinho, de São

Pixinguinha e do meu bom Maria, com eles entornando

uma cachacinha de rolha, porque aqui no céu não chega

cachorro engarrafado —, quero externar algumas reflexões

sobre minha passagem terrena, principalmente neste Rio

de amor que se perdeu. E de logo revelo duas coisinhas

que nunca me abandonaram o espírito, especialmente

porque juntas sempre representaram para mim algo uno e

indivisível: a mulher e a paixão. Aliás, quero de logo deixar

bem claro que nada há de novo sobre o assunto, senão

o meu desejo, agora celestial, de repisar o que todos já

sabem: que a vida é boa para ser vivida, como eu sempre

quis vivê-la, intensa e apaixonadamente, em cada vão

momento, tanto que em seu louvor tratei de espalhar meu

canto. E agora, cá do céu, posso dizer em alto e bom som,

o que eu já dizia antes: Cuidado, companheiro, a vida é pra

valer. E não se engane não, tem uma só, pois duas mesmo

que é bom, ninguém vai me dizer que tem, porque agora

sou testemunha ocular do fato, tornando-se dispensável

aquela prova que eu tanto em vida propugnava: certidão

passada em cartório do céu, assinada embaixo, Deus — e

com firma reconhecida. Acreditem em mim!

A propósito de acreditar, lembro que, embora o general

Costa e Silva não acreditasse, a ponto de exigir então minha

cabeça na “diplomacia”, digo-lhes que minha vida foi uma

luta para que ninguém tivesse mais que lutar. Olha que

eu já havia dito isso em antigo poema dedicado a Pedro,

meu filho, quando ele ainda era um menininho. Mas acho

que meus detratores só entenderam o que então escrevi

muito depois de meu previsível passamento.

Luta à parte, durante minha única vida terrena, tive dois

grandes amores: a mulher e a poesia. A poesia foi para mim

uma mulher cruel em cujos braços me abandonei sem

remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres

que por ela abandonei. E amei a ti, mulher amada, cioso

de que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.

Tu, mulher amada, és tão profundamente que irrelevas

as coisas mesmo do pensamento. E eu te amei e amei,

ai de mim, muito mais do que devia amar. Era como se

o amor doesse em paz. Ah, eu amei, amei demais. E eu

chorei, perdi a paz. O que eu sofri por causa de amor

ninguém sofreu. Ainda assim, te peço perdão por te amar

de repente. E se te amei assim muito e amiúde, e assim

o fiz até mais do que pude, foi porque sempre cri na idéia

de que a vida é a arte do encontro, embora haja tanto

desencontro pela vida. E é por acreditar cegamente na

magia desse encontro que confesso: semeei o amor e

a paixão ao lado de muitas mulheres e, com cada uma

delas, eu conheci o que é felicidade. Mesmo acreditando

que as mulheres são muito estranhas, muito estranhas, e

que vivem perdidas num mundo lírico e confuso, cheio

de canções, aventura e magia, eu quis viver a vida sempre

assim, com uma mulher perto de mim, até o apagar da

velha chama. E sempre, em cada uma, encontrei a razão

de viver e de amar em paz e não sofrer mais. Mas, como

o amor, o sorriso e a flor se transformam depressa demais,

pude perceber nos olhos de cada uma em particular que

o amor é a coisa mais triste quando se desfaz.

Caros amigos, sempre que senti arrefecer a chama da

paixão, tornei-me fiel apenas à minha poesia e fui em busca

de outros amores. Mas confesso: Nessa busca tive algumas

recaídas. E quando a saudade batia-me à porta, eu logo

A paixão de ViniciusPor Francisco Roberto Machado

Page 9: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE16

contador de histórias contador de histórias

17Revista de Cultura AJUFE16 Revista de Cultura AJUFE

Não faz muito tempo, recebi uma carta de meu velho

tio que mora no estado de São Paulo. Entre as felicitações

e manifestações de saudade que nos dirigiu, disse que

sempre admirou Rui Barbosa – a seu ver um dos maiores

expoentes do Direito brasileiro –, mas que atualmente não

acreditava mais no Poder Judiciário, em razão de sua crítica

lentidão e de sua incapacidade de combater efetivamente

a corrupção e fazer diminuir a impunidade no país.

Em resposta, sem querer lhe tirar totalmente a razão,

expus meu ponto de vista sobre o assunto:

“Prezado tio,

Foi com felicidade e satisfação que recebi sua carta.

Pude aprender um pouco mais graças aos seus conhe-

cimentos e cultura hauridos ao longo dos anos.

Fico alegre em saber de seu interesse pelo mundo

jurídico, especialmente pelo jurista, jornalista, político e

orador Rui Barbosa. Realmente, ele foi cognominado “Águia

de Haia” por sua brilhante atuação como representante do

Brasil na 2ª Conferência de Paz, realizada em Haia, na

Holanda, em 1907. Ali ele se revelou um grande defensor

das idéias liberais, tendo realizado discursos históricos, até

hoje lembrados, principalmente no meio jurídico.

Para ilustrar a cultura do saudoso baiano Rui Barbosa,

conta-se1 que, certa feita, ao chegar em casa, ouviu um

barulho estranho vindo de seu quintal. Chegando lá,

constatou haver um ladrão tentando levar seus patos

de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo

e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus

amados patos, disse-lhe:

Resposta à carta de um velho tioPor Flávio da Silva Andrade

1 Disponível em www.casaruibarbosa.gov.br

Deus criou o mundo e fez o homem (quase)

à sua semelhança, e se, por outro lado, paixão

é sofrimento, tinha eu razão quando dizia:

“Mesmo que tenha que sofrer, eu abro o jogo

e o coração e deixo o meu barco correr”. E

dizia mais: “Pelo amor de uma mulher, eu viro

a cara pro perigo e seja lá o que Deus quiser”.

Mas pergunto agora: “Pra que chorar, pra

que sofrer, se é sempre um novo amor cada

novo amanhecer?”. Em verdade vos digo: “É

preciso amar sem mentir, é preciso manter a

esperança divina de amar em paz, é preciso

inventar de novo o amor”.

Amigos meus, está chegando a hora.

Como vocês já sabem, eu morri. Logo eu que

vivia perguntando: “Quem pagará o enterro

e as flores se eu me morrer de amores?”.

Pois estou morto. Literalmente. Morri, sim,

de amores. Ah, como é lindo se morrer de

amor! Morto, ainda choro de saudades de

minha pátria. Morto, espero estar bem vivinho

em vossas mentes e corações. Bom… mas

eu vou partir, eu vou ter que dizer adeus,

mais uma vez. Lembram que eu, ainda na

vida terrena, pedi a benção, ao cabo de uma

canção, aos meus amigos então já no céu,

grandes sambistas desse meu Brasil branco,

preto e mulato? Pois agora, aqui do além, sou

eu que lhes mando minha benção, a todos

que ainda aí padecem. E não esqueçam:

“Para viver um grande amor é muito, muito

importante viver sempre junto e até ser,

se possível, um só defunto, pois o amor é

sempre um sentimento que a separação

não deixa em paz”. Também não esqueçam:

“Mesmo sabendo que a paixão traz sempre

muita dor, a mulher foi feita pro amor e pro

perdão (caiam nessa, não!); e ai de quem não

rasga o coração, esse não vai ter perdão”. Para

finalizar, vou repetir: “Ninguém vive mais do

que uma vez”. Portanto, acreditem em mim e

se cuidem, pois o gim é um veneno. Cuidado,

parceirinhos, não bebam demais. E procurem

o colo de uma mulher, uma companheira,

uma brasileira, para se amar, porque a coisa

mais divina que há no mundo é viver cada

segundo como se fosse nunca mais. E sou

eu, o poeta, quem diz: Ser feliz é viver morto

de paixão.

Mensagem psicografada

Nota explicativa: A alusão à psicografia é verdadeira

licença poética. Este texto é resultado, sim, de pura

intelecção, encerrando, em verdade, uma construção,

tijolo a tijolo, num desenho lógico, da poética de

Vinicius de Moraes, a partir das seguintes composições

e poemas do poetinha: Samba da benção; Caros

amigos; Tarde de Itapoã; Carta ao Tom 74; Soneto de

fidelidade; Deixa; Mais um adeus; Pedro, meu filho;

Dia da Criação; Conjugação da ausente; Amor em

paz; É preciso dizer adeus; Berimbau; Ternura; Soneto

do amor total; Testamento; Corcovado; Meditação;

Chega de saudade; Minha namorada; Samba em

prelúdio; Tem dó; Tomara; Soneto de separação;

O que tinha de ser; Regra três; Apelo; Samba em

prelúdio; Eu sei que vou te amar; Insensatez; A rosa

desfolhada; E se esqueça de mim; A carta que não

foi mandada; Canto de Ossanha; O velho e a flor;

Deixa; Formosa; Soneto do corifeu; Turbilhão; Pra

que chorar; Se todos fossem iguais a você; Se ela

quisesse; Amigos meus; A hora íntima; Pátria minha;

Para viver um grande amor; As razões do coração;

Como dizia o poeta; No colo da serra; Tomara e As

cores de abril.

Francisco Roberto Machado é Juiz Federal da 6ª Vara do Ceará.

Page 10: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE18 Revista de Cultura AJUFE 19

editoria

se ambiente propício para a impunidade. Nota-se que

não se pode confundir polícia com justiça. O Poder

Judiciário só pode julgar aquilo que chega às suas mãos.

Mas acontece que, como dito, as polícias civil e militar,

em muitos estados, estão desestruturadas e, às vezes,

lamentavelmente, sofrem ingerência política. A Polícia

Federal, com o apoio recebido do governo federal, vem

fazendo um bom trabalho, avançando em investigações e

cumprindo uma série de mandados de prisão e de busca

e apreensão, expedidos pela Justiça Federal em todo o

país. Isso já é um alento. A única crítica é no sentido de ser

desnecessário o espetáculo midiático quanto às prisões e

ao cumprimento dos mandados de busca. Não se pode

esquecer que o preso perde a liberdade, mas mantém

o direito à imagem, à intimidade e à vida privada. Como

consequência disso, o Supremo Tribunal Federal editou a

Súmula Vinculante nº. 11, segundo a qual “só é lícito o uso

de algemas em caso de resistência e de fundado receio

de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia,

por parte do preso ou de terceiros”.

Por outro lado, penso que devemos lutar para mudar

o quadro de corrupção e impunidade que torna o Brasil

conhecido no mundo. O inteligente Jô Soares, tratando do

assunto, lembrou que “a corrupção não é uma invenção

brasileira, mas a impunidade é uma coisa nossa”.

De fato, essa é uma realidade que precisa ser

transformada. As instituições competentes devem, a

bem da sociedade, tentar converter em condenações as

denúncias fundadas em provas, respeitadas as garantias

constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Aju-

daria muito se os Tribunais Superiores, integrados por

ministros nomeados, passassem, sem perder o equilíbrio

e a prudência, a ter uma visão mais enérgica quando da

aplicação da lei, como o é nas instâncias de 1º grau e nos

Estados Unidos da América, por exemplo. No Brasil, os

ministros ficam distantes dos acontecimentos, tornando-

se, às vezes, dissociados da realidade de uma sociedade

que se vê acuada e que clama por justiça. Em 2008, a

então presidente do Supremo, ministra Ellen Gracie, e o

ministro Gilmar Mendes foram assaltados no Rio de Janeiro!

Sentiram na pele o que a população está sofrendo…

O povo não mais se conforma calado com atos cri-

minosos e de corrupção. Não se pode mais admitir uma

sociedade marcada pela violência aguda, por políticos e

funcionários corruptos, pelas desigualdades sociais e pela

pobreza. Para que as gerações futuras possam viver em

um país digno e honrado, impõe-se que, sem prejuízo do

investimento em educação e saúde, seja a lei aplicada

com mais rigor, de maneira a desencorajar o avanço da

criminalidade, especialmente no que tange aos delitos

contra a administração pública, permitindo-se, quem sabe,

em um futuro próximo, governos mais honestos e justos,

de modo que possamos ter uma sociedade mais igualitária

e, quiçá, mais feliz.

Por fim, voltando ao jurista de sua predileção, Rui

Barbosa, um dos maiores combatentes da corrupção, vale

lembrar trecho de importante discurso em que disse: “De

tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a

desonra, de tanto agigantarem-se os poderes nas mãos

dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude e

rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.3

Ainda que tenha razão o renomado jurisconsulto e

orador, não podemos esmorecer, de modo que, com

sacrifícios e esperanças, devemos continuar travando

batalhas e fazendo esforços em nome do ideal de Justiça,

aplicando a lei como manda a Constituição da República

e da maneira que espera a sociedade.

Espero que tenha assistido à minissérie Mad Maria e

também, por último, ao seriado Amazônia, os quais bem

retrataram a história dos estados de Rondônia e do Acre,

respectivamente. Por tais obras, se pode ter uma noção de

como foi a saga do povo que aqui se instalou no final do

século XIX e início do século XX. É verdade que a história

acreana, com a revolução, é bem mais atraente do que

a da terra do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon,

o que, entretanto, não diminui a grandeza do estado da

Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Fraternal abraço, acompanhado de votos de con-sideração e apreço”.

– Oh! Bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor

intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e

sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação,

levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes

isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares

da minha elevada prosopopéia de cidadão, dar-te-ei com

minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga e

o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima

potência que o vulgo denomina nada.

E o ladrão confuso, coça a cabeça e diz:

– Doutor, eu levo ou deixo os patos?

Quanto à morosidade da Justiça brasileira, você está

coberto de razão. É fato que vem surgindo um alento

com a criação dos Juizados Especiais Federais e também

com os Juizados Virtuais. Mas o problema é que a Consti-

tuição Federal de 1988 abriu as portas do Poder Judiciário,

facilitando o acesso à Justiça. E, até aqui, não se conse-

guiu encontrar, satisfatoriamente, a porta de saída! Apesar

de se ter incluído no texto constitucional o princípio da

razoável duração do processo2, a maioria dos processos

ainda tramita por muitos anos até a solução definitiva. Se

não obtida uma liminar, a parte cujo direito foi violado

pode acabar prejudicada em função do prolongado trâmi-

te do processo.

Nossa legislação processual (civil e penal) revela-se

arcaica. Nosso Código Penal, como você bem lembrou,

é da década de 1940. Também o Código de Processo

Penal é de 1942. Nosso Código Civil era de 1916 e só

recentemente foi substituído. Já o Código de Processo

Civil é de 1973, sendo que está ultrapassado para cuidar

dos modernos conflitos de interesse que chegam, em

números alarmantes, às Cortes de Justiça.

Além desse aspecto de caráter legislativo, há a

possibilidade de uma série interminável de recursos.

Muitas causas vão até o Supremo Tribunal Federal – apesar

de que o Pretório Excelso só deveria cuidar de casos de

repercussão geral e de sua competência originária (somente

questões relevantes relativas à Constituição Federal). Só

agora, recentemente, é que foram aprovadas as leis que

regulamentaram as chamadas súmulas vinculantes e

também o regramento para os recursos repetidos, o que

deverá encurtar o tempo de tramitação dos processos.

Vale realçar também que, mesmo de modo vagaroso

(culpa do Poder Legislativo Federal), estão sendo refor-

mados os citados códigos – medida que deverá tornar mais

célere o andamento dos processos, porque finalmente

foi editada a Lei nº 11.419/2006, que cuida do chamado

processo eletrônico. Isso já é realidade na Justiça Federal

e em vários Tribunais Estaduais. Na Vara Federal em que

trabalhei até o ano passado, por exemplo, mais de 96%

dos processos são digitais (Justiça sem papel). Acontece

que essa nova sistemática só se tornará mais concreta e

ampla no país, se houver um maciço investimento estatal

em tecnologia da informação junto aos tribunais. Também

há a necessidade de se reforçar o repasse orçamentário

ao Poder Judiciário, permitindo-se a contratação de mais

servidores, a instalação de novas varas e a realização de

treinamentos e cursos de aperfeiçoamento. Nesse ponto,

há de se contar com a sensibilidade e o bom senso do

Poder Executivo e também do Parlamento.

No campo penal, a situação se mostra mais crítica.

O crime organizado já está na Era Cibernética e atuando

em várias frentes, avançando cada vez mais, ultrapas-

sando todos os limites. O Congresso Nacional, por sua

vez, só sinaliza para um aperfeiçoamento das leis ou

recrudescimento normativo graças a pressões da impren-

sa e da população indefesa e age somente à medida que

se tem notícia de um grave crime, como aquele de que

foi vítima o pobre menino carioca João Hélio. Aguarde-

mos, pois, o próximo pacote legislativo, sabendo que há

o risco de inocuidade, já que a questão se revela mais

séria e tem contornos sociais, passando, ademais, pela

necessidade premente de melhor aparelhamento das

polícias e fiscalização efetiva das fronteiras pátrias.

No atual contexto, a verdade é que, no aspecto

criminal e no que diz respeito ao combate à improbidade

administrativa (corrupção na administração pública) e

às infrações eleitorais, não tem havido efetividade nas

investigações e celeridade nos julgamentos, criando-

Flávio da Silva Andrade é Juiz Federal Substituto da Seção Judiciária de Rondônia.2 O inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição da República de 1988, acrescentado pela Emenda Constitucional nº. 45/2004, dispõe: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. 3 Senado Federal, RJ, Obras Completas, Rui Barbosa. v. 41, t. 3, 1914, p. 86.

Page 11: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE20 Revista de Cultura AJUFE 21

editoriaquem conta um conto

ao velho agradava escrever sobre

seus pequenos amigos de penas. A

história estava assim escrita:

“Meu amigo joão-de-barro

Ontem, meu amigo joão-de-barro

apareceu cabisbaixo. Vendo-o triste,

perguntei-lhe se algo o afligia. Então

me fez este pequeno discurso, num

tom que eu entendi ser de desabafo:

‘Como vês, sou um pássaro velho.

Há algum tempo, tenho observado

vós, os homens, e te confesso que,

mesmo após muita reflexão, ainda não

vos compreendi. Como sabes, sou um

pássaro-arquiteto. Construo minhas

casas, uma em cada temporada, nas

árvores da floresta, empregando o

barro que recolho do leito dos rios.

Antigamente, era-me mais fácil cons-

truir, pois havia muitas árvores e rios.

Atualmente, contudo, minha vida

está difícil, pois há cada vez menos

árvores e muitos rios secaram, o que

aumenta a cada dia as distâncias que

tenho que percorrer com a porção de

barro no bico. Procuro acostumar-me

a essas dificuldades, mas, às vezes,

sou tomado por um certo desânimo.

Meus amigos enfrentam o mesmo

problema. E, entre os animais da

natureza, sois apenas vós, os homens,

que nos aborrecem. Ontem mesmo,

um de vós derrubou a árvore onde

construí minha casa, de modo que

tive que dormir ao relento. Aproveitei

para refletir um pouco e concluí

que nós, os pássaros, somos muito

diferentes de vós, os homens. Talvez,

por isso, nossa convivência não esteja

boa, se é que algum dia esteve. Nós

somos mais alegres, pois cantamos

todas as manhãs e, também, durante

a maior parte do dia, de modo a

enaltecer as maravilhas da natureza,

enquanto vós viveis geralmente tris-

tes, preocupados com um mundo

de problemas diários; e quando

estão alegres, é apenas uma mera

aparência, pois na verdade inventais

distrações para fugirdes de vossas

angústias. Também nós somos mais

simples do que vós; contentamo-nos

com o nascer do dia, com as árvores,

os campos, os rios, e passamos o dia

aproveitando essas coisas da natu-

reza. Já vós sois complexos, fugis do

campo para as cidades, onde vos

aglomerais em espaços apertados;

não vedes o raiar do sol, pois quando

ele surge no horizonte ainda estais

dormindo ou já estais nas fábricas e

escritórios. Inventais um sem número

de atividades que nada tem a ver

com as vossas necessidades naturais

e, por isso, não tendes tempo pra

nada. E, mesmo angustiados, ficais

nas cidades, reclamando de diversos

problemas, diferentemente de nós,

que quando não nos agrada um lugar,

simplesmente voamos para outro.

Além disso, vós maltratais a natureza,

o que eu não só vejo, como sinto.

Atirais em nós, pássaros indefesos,

com espingardas, como já aconteceu

a muitos amigos meus. Construís

fábricas que lançam fumaça no ar,

dificultando nossa respiração, pois,

como pássaros que somos, vivemos

muito tempo no ar. Sujais os rios,

prejudicando a vós e a nós, pois todos

necessitamos de suas águas. No meu

caso, que construo minhas casas

com o barro que recolho nos rios, se

estes secam, sou obrigado a mudar

de lugar, pois, apesar de ser fácil

para mim vencer longas distâncias, o

barro que carrego seca facilmente, de

modo que não é possível moldá-lo na

obra. Por fim, derrubais as mais belas

árvores da floresta, aquelas onde

meus antepassados mais remotos

moraram. Como já te disse, não vos

compreendo. Dizem alguns de vós

que os homens agem assim porque

devem buscar o que chamam de

progresso e felicidade. Causais tantos

males à natureza para produzirdes

cada vez mais objetos, quase todos

desnecessários para o atendimento

de vossas necessidades naturais.

Tomas a mim como exemplo. Como

um simples joão-de-barro, a natureza

me faz necessitar de pequena casa

de barro, de alimento, de água e de

ar. E o que tenho a não ser isso? E

te digo que não sinto falta de mais

nada. E vós, homens, por que agis

diferente? Quereis casas enormes,

alimentos demasiados, bebidas de

diversas espécies e um sem número

de outras coisas que poderíeis des-

prezar; e por não conseguirdes todas,

viveis angustiados, de tempos em

tempos imersos no que chamais de

crises. E vale a pena? Por acaso sois

mais felizes do que nós, pássaros

simples da natureza?’.

Após ouvir meu amigo, não me

veio à mente, de imediato, uma pala-

vra para iniciar uma explicação. Então

me pus a refletir. Mas o joão-de-barro,

sem aguardar qualquer palavra minha,

voou até desaparecer no horizonte e

nunca mais voltou”.

Conta-se que numa aldeia do interior do país,

diminuta em terras e população, viveu por algum tempo

um velho que conversava com os pássaros. Morava

sozinho na pequena casa de madeira que construíra num

terreno ao pé da serra. Tinha o hábito, de resto comum

aos velhos, de acordar muito cedo, logo aos primeiros

raios de sol, pois o que mais lhe agradava na vida era

receber a passarada que acorria ao terreiro todas as

manhãs, tomando lugar nas três laranjeiras plantadas no

quintal. Entre todos, um chamava a atenção do velho de

forma especial: um joão-de-barro. Não era jovem, pois a

plumagem superior, inicialmente marrom, já pendia para

o vermelho, enquanto as plumas do peito, à semelhança

dos cabelos do velho, eram quase brancas.

Ao contrário das demais espécies, que vinham ao terreiro

em bando, o joão-de-barro chegava sempre sozinho e era o

que mais se aproximava do velho. Pousava na laranjeira menor

e ficava a observar as árvores, a horta, a casa; depois, punha-

se a caminhar pelo terreiro, até bem perto do alpendre, onde,

sentado no banco de madeira, o velho lançava as porções

de farelo de milho. Às vezes, o joão-de-barro – e somente

ele – entrava no alpendre para comer o farelo que caia ao

pé do velho. E parece que esse foi o motivo do surgimento

da amizade entre os dois, amizade essa que rapidamente se

frutificou. Aliás, frutificou tanto que um dia aconteceu um fato

significativo. Foi que o velho pareceu ouvir o joão-de-barro

dizer algumas palavras sobre o tempo.

No início, supôs que fosse coisa de sua imaginação,

mas como o pássaro insistiu, atentou que a voz partira

mesmo dele. Então, conversaram sobre o tempo, as

árvores, o rio que cortava a aldeia e outros assuntos.

Daquele dia em diante, a conversação foi diária. O joão-de-

barro relatava ao velho suas viagens pelas matas da região,

seus amores, os perigos que, muitas vezes, enfrentava e

muitos outros casos pitorescos e alegres; ao passo que o

velho – sem ter vivido momentos alegres que não aqueles

passados na aldeia, pois antes morava na cidade – contava

ao joão-de-barro sobre sua plantação, falava sobre o que

esperava colher na horta e sobre suas caminhadas pela

mata todas as manhãs, para ouvir os animais.

Algum tempo se passou, até que num determinado

dia o velho morreu. E morreu durante o sono, numa

noite calma, como geralmente morrem as pessoas de

bom coração. Os vizinhos que o viram no leito disseram

que tinha uma expressão feliz. Naquela mesma manhã,

os pássaros foram ao terreiro e, apesar da ausência do

farelo, ficaram lá até por volta do meio dia, cantando

alegremente, talvez para homenagear o descanso eterno

do velho. Depois, partiram e nunca mais voltaram. O joão-

de-barro, que já não era visto desde a semana anterior,

não apareceu.

Após sepultado o corpo do velho, alguns homens

foram recolher suas poucas coisas para levarem-nas à

Prefeitura, já que não havia herdeiros, e encontraram uma

pasta de papéis. O homem que a encontrou abriu-a por

curiosidade e, logo nas primeiras folhas, leu a história que

segue. Após a leitura, não vendo valor naqueles papéis

velhos, os deitou ao lixo, e ninguém ficou sabendo que

O arquiteto joão-de-barroPor Gilberto Mendes Sobrinho

Gilberto Mendes Sobrinho é Juiz Federal Substituto em Jaú (SP).

O arquiteto joão-de-barro

Page 12: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE22 Revista de Cultura AJUFE 23

editoriaquem conta um conto

O marido aceitou o conselho. Trocou o apartamento

por uma casa, jardim imenso, árvores copudas, muita

sombra e muito verde, espaço como o quê para a esposa

caminhar, explorar, viver, conhecer, um mundão pela frente,

com a vantagem de poder ficar longe dos olhares dos

condôminos de seu edifício. Chatos eles, chato o síndico,

com sua conversa mansa, a tocar na sua ferida de forma

tão crua, sem respeitar o problema que estava passando.

Ela viu a casa. Não caminhava. Bailava. De canteiro

em canteiro, alisando a grama, beijando as folhas de onze

horas, das dálias, dos crisântemos, das orquídeas, das

damas-da-noite, dos véus-de-noiva. As mãos acariciando

as papoulas, os cravos, os jasmins, as cabritas, os sorrisos,

as gérberas, as tulipas. Aqui e ali um abraço demorado nas

algarobas. O sorriso estampado no rosto. O marido quase

chora de emoção. A felicidade da esposa lhe contagiava.

O jardim seria seu mundo, grande, verde, bonito, bem

cultivado. Ele se sentiu recompensado pela mudança. O

médico fora feliz na receita. Acertara em cheio.

Não demorou muito tempo se viu obrigado a voltar

ao consultório. O problema não se resolvera. Ao contrário,

inchara e estava maior. Agora era a mulher que não

saía do jardim, esquecida da casa, das suas obrigações.

Não visitava ninguém, não se interessava por nenhuma

novidade, não comprava roupa de espécie alguma, o que

fazia antes de tudo aquilo ter início. As plantas já têm

sua roupa especial, dizia. Aliás, para bem da verdade, só

entrava em casa para dormir, assim mesmo forçada pelo

marido. De manhã cedo, antes do sol se pôr fora do ninho,

já estava no jardim, a molhar os dedos com o orvalho que

as folhas guardavam. Era o seu desjejum.

Novamente ele foi ao médico. Narrou o ocorrido. O

médico anotando, terminando por lhe recomendar que

passasse uma temporada em um sítio, numa chácara,

mais espaço, mais verde, quem sabe se não é, enfim,

o ambiente adequado para ela. Se a casa com grande

jardim não resolveu, o sítio, em plena zona rural, vai ser a

solução. O marido acreditou. E assim fez, de acordo com

a recomendação médica.

A mulher vibrou. Um quadrado de cem tarefas. A casa

no alto, construção nova, larga, com muitos quartos e salas,

terreiro oferecendo uma visão ampla da propriedade,

pequeno curral de lado, muita árvore – barriguda, maria-

branca, juremeira, muricizeiro, quarana, burra-da-mata, sete-

casco, ingá –, capim nativo para todo lado, misturado com

mata rasteira (mimo-do-céu, bananeira brava, melancia-

de-praia, matapasto, juiz-de-paz, capeba) se espalhando

por todos os lados. Uma plantação desativada de abóboras.

Um gigantesco formigueiro que veneno nenhum acabava,

conforme o corretor explicou. Era o único ponto negativo

naquela área toda cercada. Um riacho passando perto

da cerca, a água fria escorrendo lentamente. Orquídeas

nativas se mantinham em pé em ramos que se arrastavam

por longos metros. Que alegria, meu Deus! Se ela vibrou,

O marido a surpreendeu assim, deitada na grama em

agradável contato com as plantas.

– Ora, amor, o almoço na mesa e você aí…

A espontaneidade da esposa o comoveu:

– Agora sou uma rosa branca. Ontem fui uma dália.

Amanhã serei um girassol.

A surpresa poderia ter ficado aí, se o fato não tivesse se

tornado repetitivo. Todo dia a mesma cena. A magnólia de

hoje era uma margarida amanhã. O alimento era o sol que

esquentava as pétalas. O seu mundo era o verde do jardim.

A visita do síndico no local de trabalho o deixou

encabulado. A conversa calma, sem pressa. Os moradores

desconfiados de alguma anormalidade. Os empregados

do condomínio a reclamarem da presença permanente

de sua esposa a machucar a grama. Depois, deitar-se na

grama… Por ele, síndico, não. Achava até bonito a mulher

deitada na grama, a conversar com as plantas. Mas os

moradores estavam espantados e indignados. Uns riam,

outros criticavam. Ele temia uma manifestação contrária à

permanência de sua senhora no jardim. Daí fazer a visita

para pedir o apoio, compreender a sua posição de síndico,

responsável pela manutenção da ordem e tranquilidade

do condomínio, tarefas que, contra a vontade, terminara

por aceitar, contando-lhe a história da eleição, pormenor

por pormenor.

O marido baixou a cabeça. Levaria a esposa ao

médico. Aquilo podia ser um problema passageiro. A falta

de filhos, talvez, ou talvez a morte do pai, em choque

com um caminhão, o rosto recebendo o óleo quente do

motor a lhe queimar a pele, a ponto do caixão permanecer

fechado. Talvez, talvez. Não sabia. Desculpasse. Andava

encabulado, sem fitar ninguém no condomínio, período

que seria, podia confiar, passageiro.

O médico, contudo, recomendou liberdade de ação.

Deixar que ela desse completa evasão aos seus desejos

reprimidos. Algum trauma de infância, quem sabe, não

vencido a tempo. Às vezes, um fato ligado ao sexo, ou

relacionado a outra ocorrência que agora vem à tona na

forma de um comportamento ativo ou passivo. Assim os

entendidos pregavam. Dê-lhe apoio. Que não a criticasse.

Que a deixasse fazer o que quisesse. Aquilo não seria

eterno. Em lugar de reprimir, permitir. Encarar o fato com

naturalidade. Recomendou uma casa com um grande

jardim. Quem sabe se isso não a curaria?

Pequeno eucaliptoPor Vladimir Souza Carvalho

Page 13: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE24 Revista de Cultura AJUFE 25

quem conta um conto

ele nem se fala. Desta vez, chorou, encostado ao mourão

da cancela, feliz por vê-la sorridente por ter o sítio como

nova morada. A felicidade era tão radiante que o otimismo

explodiu. Pela primeira vez, ele admitiu a cura, com a fé

em São Francisco de Assis. O sorriso no rosto da mulher

assumia, sem que o marido percebesse bem, a forma

de uma flor.

O sítio, no entanto, fez foi piorar. Se na casa ela

passava o dia todo no grande jardim, aqui nem vinha

dormir mais em casa. “Ora, amor, a frieza da noite. Olhe

que estamos na época de São João. Vai lhe fazer mal.

Você terá um resfriado, uma gripe qualquer, a lhe impedir

de ficar com suas plantas”. Ela riu. O sereno far-lhe-ia bem.

Não atendeu ao convite. Era agora um pequeno eucalipto.

O tronco precisava do ar da noite para perfumar a casca,

respondeu, abrindo os braços, ereta, em meio ao capim

rasteiro, numa área espaçosa, um pouco distante da casa,

próxima da cancela.

O marido insistiu. Eucalipto não dorme no interior de

uma casa. Fica pregado no chão, os pés se transformando

em raízes que se enfiariam pelo chão adentro, à procura

do alimento devido. Não deixasse a lagarta de fogo comer

suas folhas nem a coruja se abrigar em seus galhos. Foi a

resposta. O marido desistiu dessa forma de levá-la para a

casa. Foi dormir. Sua paciência tinha limites. Na hora em

que o frio aumentasse, ela correria para dentro de casa. Era

só esperar para ver. Depois, aquela mania pelo verde tinha

um limite. Por sim ou por não, ele estava de cabeça cheia

com tudo aquilo. “Então, boa noite, pequeno eucalipto,

que eu vou dormir. Até manhã”.

De madrugada, foi acordado, aos poucos, pelo som

animado de uma zabumba, o vozerio de pessoas ao

longe, conversando alto, foguetes que pipocavam no

ar. Ele continuou na cama. Na certa, estavam em busca

de um mastro para os festejos juninos, como faziam

anualmente na mesma data, com muita festa e garrafas

de cachaça, segundo as boas tradições nordestinas. De

repente, estremeceu. O pensamento fulminou sua mente.

Levantou-se. De pijama mesmo correu para fora da casa.

Do terreiro ainda pode ver a multidão se afastando com o

pequeno eucalipto nas costas.

(*) Extraído do livro Mulungu Desfolhado, Juruá Editora, Curitiba, 1993.

Vladimir Souza Carvalho é membro do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Num de seus famosos escritos literários, Anatole

France narra que o personagem Sylvestre Bonnard ficou

aturdido por ocasião da descoberta da fada, cuja imagem se

encontrava impressa no manuscrito em alemão Crônica de

Nuremberg, a qual sonoramente lhe transmitira a seguinte

lição de vida: “Saber não é nada, imaginar é tudo. Só existe

aquilo que a gente imagina. Eu sou imaginária”.1

Isso mesmo. É corretíssimo que não é o poder, como

pensam alguns, mas a imaginação, o que alimenta a

existência da sociedade.

Daí que somos forçados a volver, mais uma vez, no

túnel do tempo, com princípio e término, respectivamente,

entre a redemocratização que se seguiu à derrubada da

ditadura Vargas e ao fim do governo Costa e Silva.

Trata-se agora da respeitável – e mais ainda espi-

rituosa – figura do Doutor Astrogildo Tibúrcio Barreto

de Mendonça. Formado por tradicional escola jurídica,

conseguiu, por seu notável saber e ilibada reputação,

considerável ascensão social.

Filho de família humilde, o seu talento lhe proporcionou

galgar relevantes postos da vida pública, coroada pelo

exercício, por quase uma década, do cargo de reitor

duma universidade federal, sita em estado nordestino,

sendo capaz de granjear-lhe prestígio somente ofuscado

pelo governador. De tão afortunada, a circunstância lhe

assegurou o apelido de “o Magnífico Tiba”.

Mas nem tudo foram rosas. Como sempre, o sucesso

trouxe incômodo. Rival na academia, o terrível Doutor

Rivadávia Batalha Mourão, catedrático de Direito Civil

e decano do curso de Ciências Jurídicas, durante suas

retumbantes aulas, não cessava em ridicularizar a candura

do Magnífico Tiba, desmerecendo, por completo, os in-

cansáveis esforços deste. Assim, entre várias invectivas,

trombeteava em alto e bom som que “após a tomada do

poder estadual pelo PSD, estava o Magnífico Tiba a subir,

ascendendo, sucessivamente, aos cargos de defensor de

ofício, promotor de Justiça, procurador do estado, professor

titular de Direito Administrativo e, finalmente, reitor”.

As dificuldades não paravam por aí. A circunspecção

inerente ao bom chefe de família, característica do

Magnífico Tiba, não encobriu o seu perfil sonso, a permitir

a explosão dos insatisfeitos e represados desejos da

Amor no alémPor Edilson Pereira Nobre Júnior

1 O Crime de Sylvestre Bonnard. Tradução e introdução: Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 113.

Page 14: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE26 Revista de Cultura AJUFE 27

editoria

juventude, propiciando-lhe, na inversão da

roda da fortuna, uma incursão na província

das investidas amorosas.

O exercício das magnificentes funções

ensejava ao professor Tibúrcio frequentes

– e, algumas vezes, um pouco demoradas

– idas e vindas ao Rio de Janeiro, em cujo

estado, não obstante a transferência da

capital para Brasília, ainda remanescia setores

estratégicos do Ministério da Educação.

Nisso conheceu Rita de Oliveira Duarte,

servidora graduada de dito ministério, que

conservava, nos seus 35 anos, os pueris e

inocentes encantos da juventude.

Além disso, duas qualidades contras-

tantes ornavam a personalidade de Rita.

Uma delas, talvez a pior para as mulheres,

foi haver passado pelo estigma da desilusão

amorosa, decorrente do rompimento de

promessa de matrimônio com o único

homem de sua vida, depois de 10 anos de

casto noivado; a outra, era a mantença de

belíssimo rosto, que, justamente por essa

razão, a tornava uma verdadeira maldição

dos céus.

Dessa conjuntura, e com a ajuda

de oportunos e irresistíveis galanteios

por parte do Magnífico Tiba – que, no

idílio, reduzira-se a “Tiba” –, surgiu forte

romance entre este e Rita, o que levou

Vossa Magnificência a, com frequência

cada vez maior, deslocar-se ao Rio de

Janeiro, sempre a serviço, é claro.

É que, por esquecimento, não afirmei

logo ao início que nosso personagem era,

há quase duas décadas, matrimoniado com

Dona Violeta de Gonçalves Prado, filha de

próspero homem de negócios, com forte

trânsito no meio político local.

Mesmo consciente do devotamento

de seu querido e estimado esposo ao

trabalho em prol da coisa pública, sua

cordata (até certo ponto) esposa passou

a indispor-se com tantas viagens. Seus

reclamos, sempre dirigidos com urbanidade,

justificavam-se pela necessidade que tinha

de, juntamente com seus filhos, ficar em

presença de seu marido, como também

por certa desconfiança, marca indelével

da intuição feminina.

Um dia veio a tão esperada gota

d’água. Sabedora de que seu amado era

profundo admirador de Bonaparte, Rita o

presenteou, por ocasião de seu aniversário

de 50 anos, com o romance A Cartuxa de

Parma, de Stendhal.

O problema é que, não podendo conter

seus sentimentos, Rita lançou, inadvertida

e imprudentemente, uma dedicatória em

forma de poesia, capaz de dar inveja ao

mais romântico dos trovadores medievais,

na qual, após data e lugar, vinha escrito:

“Um beijo (com açúcar e com afeto) de

sua Rita”.

Madame Violeta, que há muito já

se encontrava à espreita dum flagrante,

vinha mansamente, nas últimas viagens

do Magnífico Tiba, vasculhando as malas

deste, com o intuito de procurar todo e

qualquer vestígio que contivesse relevância

para uma acusação. Não deu outra. O livro

foi encontrado e a certeza do delito e da

autoria se tornou irrefutável.

Toda a tranquilidade duma magnífica

vida desabou por completo. Madame

Violeta, brandindo o exemplar clássico

da literatura universal, impôs pena

segregacionista para seu esposo. Este,

então, encontrava-se proibido de viajar

para fora dos confins de seu estado. O

Rio de Janeiro, cidade da perdição, nem

pensar. A necessidade do serviço público

também não poderia representar desculpa.

Se existisse interesse da universidade,

que seu marido designasse alguém para

representá-lo, o qual, decerto, melhor

atenderia aos reclamos da sociedade,

pois não estaria movido por desejos

pecaminosos.

Agravando a situação, Madame Violeta

praticamente submeteu o professor Astro-

gildo Tibúrcio a regime idêntico ao de

cárcere privado. Nem mesmo poderia

fazer ligações interurbanas para, escutando

a meiga voz de Rita, diminuir a distância

que os separava. À instância da agora

feroz esposa, foi designada Dona Quintina

dos Anjos, sexagenária e solteirona, para

secretariar o gabinete da Reitoria, com

plenos poderes para vistoriar o expediente

postal recebido e efetuar os telefonemas

que o Magnífico Reitor necessitava realizar

– haja vista que a linha direta de seu gabi-

nete de trabalho havia sido suprimida.

Foram seis meses consecutivos de

grande sofrimento e dor infligida ao

Magnífico Tiba que, desinteressado das

coisas da vida, se recolhia à soberania de

sua tristeza. Até que veio uma luz no fim

do túnel. A doce lança do amor sensual

que perfurara sua alma fez com que

imaginasse uma fuga para a liberdade.

O amor, aguçado pela imaginação

do amante sincero, forjou a seguinte

ideia: providenciaria, mesmo diante da

impossibilidade de obter o consentimento

de Rita, um anúncio do falecimento desta

num dos jornais cariocas.

Assim foi feito. Publicara no obituário

do Jornal do Brasil, edição de segunda-

feira, nota comunicando o falecimento

de sua amada. Logo após, providenciou

para que o fraternal amigo João Calógeras,

insigne professor de Medicina, mostrasse

um exemplar do conceituado periódico à

Dona Violeta.

Exibindo a comprovação material

àquela, João relatara o acontecimento,

dizendo-lhe que agora não havia mais

necessidade de manter o seu esposo

sob regime de quase escravidão. Com

a morte de Rita, tudo voltaria ao normal,

uma vez que Tibúrcio sempre foi um

marido apaixonado por sua esposa e

que nada mais iria atrapalhar a felicidade

do casal.

Tudo transcorreu no mais impecá-

vel êxito. Madame Violeta revogou, dum

momento para outro, todas as restrições

impostas. Ao seu esposo, que passou a

ser carinhosamente chamado de “meu

Tiburciozinho”, foram permitidas todas as

regalias da vida de um bom pai e esposo.

O Magnífico Tiba não perdeu tempo.

Adquiriu uma passagem de aviação na

Cruzeiro, partindo para mais uma viagem

a serviço na Baía de Guanabara.

Numa longa conversa após o qua-

se impossível reencontro, Rita perfeita-

mente compreendeu a atitude de seu

amado, atribuindo-lhe a causa do amor

verdadeiro. Assim viveram felizes e ines-

quecíveis aventuras.

De tudo isso, o Magnífico Tiba pode

fazer uma constatação: quão genial aque-

le rapaz – de nome Francisco, como

o santo de Assis, e filho de seu amigo

Sérgio Buarque de Holanda – que, por

desígnio da imaginação, compôs versos de

sonoridade e beleza inigualáveis: “A Rita

levou meu sorriso/No sorriso dela/Meu

assunto […] Levou meus planos/Meus

pobres enganos/Os meus 20 anos/O meu

coração […]”.

Edilson Pereira Nobre Júnior é Juiz Federal da 4ª Vara da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte.

Page 15: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE28 Revista de Cultura AJUFE 29

quem conta um conto

Sábias as lições dos mais antigos. Uma delas reside

em que sogra é igual em todo lugar, seja em Passa e Fica,

cidadela do interior do Rio Grande do Norte, seja em Paris.

Portanto, o máximo de cuidado com elas. Quem assim

não se precatar jamais terá paz em sua existência.

Esse o equívoco que, segundo foi sabedor duran-

te curta estada em Florianópolis, cometera Giácomo

Campos Nardini, atualmente um dos mais prósperos

empresários sulistas.

Desde os mais pueris tempos de sua existência, ena-

morou-se por Julienne Bastos d’Estrées, filha de Jean

Paul d’Estrées, francês de origem, e de Esmeralda Bastos

d’Estrées, gaúcha de nascimento, mas catarinense por

afeição. Jovem de beleza mediana, com a qual Giácomo,

depois de cinco anos de namoro, veio a contrair núpcias

que, na carruagem do tempo, já perduram por 30 anos –

vinte e cinco dos quais da mais harmônica paz e felicidade;

enquanto, lamentavelmente, os últimos cinco anos estão

sendo marcados por intensa e profunda desinteligência

do casal.

Nos tempos de namoro, muito contribuiu para a

decisão casadoira o fato de Giácomo olhar em sua futura

sogra um modelo de probidade feminina. De grande

meiguice e discrição, Dona Esmeralda era exemplo de

esposa e de mãe. Lembrava-se de advertência de seu

saudoso pai, que lhe costumava dizer: “Meu filho, a gente

namora a mãe da moça, mas casa com a moça”.

Para evitar desentendimento, possivelmente provoca-

do pela leitura rápida, o genitor de Giácomo, senhor

Pietro di Virga Nardini, genovês experiente na arte da

conquista feminina, não preconizava a seu filho prática

luxuriosa. Absolutamente. Apenas lhe recomendava lição

que recebera de seus antepassados, consoante a qual o

noivo deve examinar as qualidades de sua futura sogra,

ou seja, se boa e honesta esposa, para não se equivocar

com a decisão em desposar a filha desta, que, por força

de transmissão educativa, poderia herdar alguma qualidade

deplorável de sua mãe. Na realidade, a advertência decorria

do adágio popular de que “filhos de peixe, peixinhos são”.

Desde a época do namoro até as bodas de prata,

a convivência do casal Giácomo e Julienne Nardini foi

a mais harmoniosa possível. E não é só. O afeto que

Giácomo nutria pela sua sogra, “mãe Esmeralda”, como

carinhosamente a chamava, era de despertar inúmeros

comentários entre amigos e familiares. Tanto foi assim que

tal sentimento despertou, não obstante sua pureza, fortes

ciúmes no senhor Jean Paul, que, por fim, compreendia

Giácomo pelo fato de que este, aos 15 anos de idade,

perdera sua mãe.

Mas esse cenário de paz e bonança não perdurou

indefinidamente. Cônscia dos progressos empresariais

de Giácomo e das consequências que isso poderia

acarretar, Dona Esmeralda, aos poucos, pôs-se a alertar

sua inocente filha.

Muito embora nunca deixasse – principalmente

nas ocasiões públicas – de mimar o seu genro, nos

bastidores, como se diz em política, aconselhava Julienne

para que, uma vez provido de muitos recursos, Giácomo

poderia ser outra pessoa, enveredando pela busca, quase

sempre nociva à família, de amores em outras paragens.

Relembrava à sua filha conselho que, certa vez, ouvira de

sua avó, Violeta de Oliveira Bastos, de que “para saber se

o homem é bom e fiel, dê dinheiro a ele”.

Julienne não bem recepcionara o conselho de sua

mãe. Dissera a esta que não deveria fazer um mau e

apressado juízo do genro. Logo desconfiar da candura

de Giácomo que era um exemplo de probidade no lar

e nos negócios e que, fervoroso cristão, chegara na

Indesejável parentescoPor Edilson Pereira Nobre Júnior

Page 16: Revista cultura Ajufe

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editoria

Revista de Cultura AJUFE 31

editoria EDITORIA

Edilson Pereira Nobre Júnior é Juiz Federal da 4ª Vara da Seção

Judiciária do Rio Grande do Norte.

adolescência a ser seminarista.

Parece que Dona Esmeralda adivinhava.

Não que Giácomo estivesse voltado a aventuras

extraconjugais. Pelo contrário. Seu apelido entre

os amigos do British Country Club de Floripa

era de “o casto”, justamente por somente amar

a sua esposa.

Seu único divertimento, além da família,

consistia na mania de colecionar relógios raros,

de elevado valor. Para se ter uma idéia de tal

excentricidade, Giácomo jamais vestia uma

camisa de manga comprida. Isso para que

todos pudessem observar, com admiração,

suas impressionantes máquinas do tempo.

Mas, então, qual era o problema? Sem

dúvida sua polpuda conta bancária, ornada

pelas mais variadas e rentáveis aplicações.

Com efeito, observando no cotidiano

do seu trabalho de bancária a conta do

nosso personagem, que já superava oito

dígitos, Maria Josefa da Silva, identificada

em seu crachá com o charmoso nome de

Mary, passara a despertar atenção especial a

Giácomo, nas suas idas e vindas semanais à

agência do HSBC no Beiramar Shopping.

Em boa forma estética no princípio dos

seus 30 anos, Mary se desdobrava em dengos

a Giácomo, com amplo destaque ao aspecto

jovial deste. Isso sem deixar de ter o cuidado

de propiciar a ele uma belíssima e panorâmica

visão de seus seios, o que se otimizava seja

por meio de provocativos decotes, seja pela

exposição de suas rijas pontas, em blusas

transparentemente idealizadas para a arte de

tornar o cliente um bobo seduzido.

Foram justos três anos dum chove não

molha até que a Giácomo, então fervoroso

bastião na defesa da família e dos bons

costumes, foi imposta situação de inexigibili-

dade de conduta diversa.

Tudo sucedeu num começo de noite de

quinta-feira quando Giácomo, após haver

tomado vários chopes no recôndito Bristô

d’Acampora, ingressou acompanhado por

sua musa em estabelecimento próprio à

intimidade dos encontros amorosos.

O forte estado de timidez, aliado à

consciência pesada de quem se supunha

praticando uma indignidade sem tamanho,

fez com que Giácomo continuasse a ingerir

mais duma garrafa de vinho – por sinal

um bordeaux inigualável. Nesse estado,

coube-lhe consumar, em rápidos minutos,

sua façanha, tal qual Henrique IV na noite

de núpcias com Catarina de Médicis,

passando, em seguida, a pesado e longo

sono, do qual somente acordara às nove

horas da manhã seguinte.

Aturdido com a deslealdade do horário, e

sozinho, uma vez que sua parceira abandonara

a alcova sem estrépito, Giácomo restou

bastante preocupado em como explicar à sua

família ausência brusca e muito demorada.

A única idéia foi ligar para o amigo José

Bittencourt – carinhosamente conhecido

como Bitanca, experto em aprontar muitas

presepadas –, que rapidamente vislumbrou

uma saída: Giácomo deveria comentar para

a família que, desde o dia anterior, se inserira

no rol dos milhares de brasileiros vitimados

por sequestro-relâmpago. A saída se mostrava

genial, comprometendo-se Bitanca a dar todo o

apoio estratégico para a sua verossimilhança.

Seguiu-se a execução do plano. Exímio

dissimulador, Bitanca discou o número do

telefone da residência de Giácomo. Após três

toques, falou uma voz feminina. Era Julienne,

que demonstrava bastante preocupação com

a possibilidade do telefonema revelar alguma

notícia maléfica quanto a seu esposo.

Procurando tranquilizá-la, bem como

Dona Esmeralda e filhos, Bitanca informou,

pausadamente, que Giácomo teria sofrido

um sequestro-relâmpago, mas que ninguém

se preocupasse, pois o pior já havia passado.

Os bandidos fizeram com que este se dirigisse

a um caixa eletrônico e, após a realização de

um saque, liberaram-no às sete horas da

manhã, num local um pouco distante do

centro de Florianópolis. O leal amigo informou

também que, em aproximadamente uma

hora, Giácomo, sem maiores danos pessoais,

retornaria a seu lar.

Com efeito, o retorno foi triunfal, quase

rivalizando com a volta a Roma dum con-

quistador vitorioso. Uma legião de amigos e

parentes estava à espera da pobre, mas altiva,

vítima da realidade criminosa brasileira.

Enfim, com mais de uma hora além do

previsto, aparece Giácomo que, depois de

cumprimentar os presentes, se põe a contar seus

suplícios, agora transformados em aventura.

No entanto, como não tinha vocação

para fanfarrão ou gabola, cometeu um equí-

voco daqueles que põe por terra toda uma

batalha, ou até mesmo uma guerra. Isso

porque sua natural humildade, por maior que

fosse, não se continha diante da sua única

soberba, consistente na necessidade de

mostrar seus caríssimos relógios a terceiros,

principalmente quando reunidos num con-

junto numericamente considerável.

Daí que, desenvolvendo sua narrativa

com vibrátil emoção, Giácomo, sem se aten-

tar para as circunstâncias do contexto em

que estava inserido, não poupou amostras

de seu pulso esquerdo reluzindo um belo

Rolex, ano de fabricação 1945, inteiramente

em ouro maciço.

A insistência expositiva de Giácomo pro-

vocou a intervenção de “mãe Esmeralda”, a qual,

com paciência, fez a seguinte indagação:

– Meu filho, explique-me uma coisa: esses

ladrões que lhe sequestraram são burros ou

cegos? Como é que eles deixaram você com

esse chamativo e brilhante relógio?

Após tal instante, e vendo seu álibi desmo-

ronar por completo, Giácomo praticamente

perdeu a fala e cessou as explicações.

A sensação de culpa que sua paralisia

exalou foi suficiente para gerar fortes

desconfianças em Julienne, que só agora

passou a ver quão importante são as lições

de suas avós.

A vida em comum, a partir desse mo-

mento, vem se tornando cada dia mais

insuportável. Tudo – se diga com razão –

por culpa de Giácomo, pela má escolha de

sua aliada incondicional.

Page 17: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE32 Revista de Cultura AJUFE 33

editoriano escurinho do cinema

“Ó grund… Ó vós, belos e sadios estudantes da planície, aos quais basta dar um passo para vos encontrardes na estepe imensa, sob a admirável redoma azul que se chama firmamento, vós cujos olhos estão acostumados às grandes distâncias, aos longes, vós que não viveis apertados entre edifícios altos, nem podeis imaginar o que é para os guris de Budapeste um terreno baldio, um grund. É a sua planície, a sua estepe, o seu reino; é o infinito, é a liberdade. Um pedacinho de terra, limitado a um dos lados por uma cerca meio desmoronada, ao passo que, pelos demais lados, altos muros de edifícios o rodeiam. Atualmente o grund da Rua Paulo também já se encontra ocupado por um triste edifício, de quatro andares, cheio de moradores, nenhum dos quais sabe, talvez, que aquele pedacinho de terra significou a mocidade para alguns pobres estudantes de Budapeste.”1

Os meninos da Rua Paulo (A Pál-utcai fiúk, no original

húngaro), de Ferénc Molnár (1878-1952), é seguramente

um dos grandes clássicos mundiais da literatura infanto-

juvenil. Segundo Paulo Rónai, responsável por sua tradu-

ção para o português, o livro é mesmo um dos raros

clássicos que – contrariando o caminho feito por muitas

obras literárias escritas para adultos e depois popularizadas

em versões para crianças e adolescentes (como Gulliver,

Robinson Crusoé ou Don Quixote) – foi escrito originalmen-

te para jovens, mas depois veio a conquistar públicos de

todas as idades em todo o mundo2.

Publicado na Hungria pela primeira vez em 1907, sua

primeira edição brasileira surgiu em 1952. Desde então,

sucederam-se edições em várias casas. Primeiramente na

Saraiva, depois na Ediouro e, mais recentemente, na Cosac

Esta rua é nossaPor José Carlos Garcia

& Naify. Trata-se de uma daquelas

obras com admiradores em todos

os continentes – em geral, pessoas

que, como eu próprio, leem-na e

releem-na dezenas de vezes ao longo

da vida, no texto belo e fluido e tão

carinhosamente traduzido por Rónai.

Perdi a conta das inúmeras releituras

desde minha primeira, aos nove

ou 10 anos de idade, em pequena

edição da Ediouro emprestada pela

biblioteca da escola.

Na Budapeste de 1889, dois

grupos de meninos lutam pelo grund,

um terreno baldio espremido entre

os prédios da capital húngara em

crescimento, local para suas fantasias,

jogos e brincadeiras, onde travam

com todo ardor sua guerra pela pátria

infantil. Na maravilhosa, comovente

e singela narrativa, aquelas crianças,

juntamente com o leitor, vivem

uma infância quiçá hoje superada

pelo progresso e pela vertigem do

cotidiano urbano, confrontando os

desafios, as amizades, as traições, as

perdas da vida, “da qual todos somos

os soldados e os servidores, ora tristes,

ora alegres”3.

A obra foi vertida, pelo menos,

duas vezes para a televisão: uma na

Itália, em 2003 (I ragazzi della via

Paal), com excessiva, injustificável e

ineficaz liberdade em relação ao texto

original, que chegou a ser exibida no

Brasil pelo canal pago Eurochannel; e

outra para a tevê húngara, em 2005,

com o mesmo título do livro.

Para o cinema, foram quatro

diferentes versões. A primeira foi

húngara, de 1929 (A Pál-utcai fiúk, de

Béla Balogh); em seguida, a americana,

de 1934 (No greater glory, de Frank

Borzage); em 1935, foi realizada

uma italiana, I ragazzi della via Paal,

co-dirigida por Alberto Mondadori e

Mario Monicelli; e, finalmente, a mais

conhecida, que aqui será comentada,

uma produção húngaro-americana

dirigida por Zoltán Fábri em 1969.

Essa versão foi indicada ao Oscar de

Melhor Filme Estrangeiro daquele ano,

perdendo para o russo Guerra e Paz

(Voyna i Mir, de 1967, dirigido por

Sergei Bondarchuk)4.

A versão de Fábri, lançada à época

nos cinemas do Brasil com o título Esta

rua é nossa, tem poucas variações

em relação ao texto original. Algumas

delas, o fato de estarem ambientadas

no início do século XX, e não em fins

do XIX, e algumas pequenas alterações,

possivelmente, para que o roteiro,

assinado pelo próprio Fábri e por Endre

Bohem, ficasse mais enxuto. Quanto

a deficiências, chama a atenção certa

falta de resolução final na tensão entre

Boka e Geréb, após o fim da guerra

com os camisas-vermelhas.

Já na abertura fica caracteriza-

do o perfil da época e da infância

na Budapeste da virada do século

passado. O ritmo meio febril da

música de Emil Petrovics, combinado

com a aceleração das imagens em

preto e branco à moda dos antigos

cinematógrafos (com menos de 24

quadros por segundo) e sua mescla

com fotografias reais da época, in-

dicam muito adequadamente a

1 MOLNÁR, Ferenc. Os meninos da Rua Paulo. Tradução de Pau-lo Rónai, revista por Aurélio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], p. 27

2 Op. cit., prefácio de Paulo Rónai, p. 7.

3 Op. cit., p. 186.

4 Os outros indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 1969 foram o francês Beijos roubados (Baisers volés, de François Truffaut); o tcheco O baile dos bombeiros (Horí, má panenko, de Milos Forman); e o italiano A moça com a pistola (La ragazza con la pistola, de Mario Monicelli).

5 A respeito da elevada taxa de mortalidade infantil da época, Jac-ques Gélis, em nota a seu próprio texto, diz que “era para garantir a continuidade do prenome, um bem simbólico ao qual a família atribuía grande valor, que na Inglaterra às vezes se dava aos três primeiros filhos varões do casal o mesmo prenome: se o mais velho morresse, seu homônimo de algum modo o substituiria, cf. Lawrence Stone, The family, sex and marriage in England 1500-1800, Londres, 1973, p. 409” (GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: História da vida privada, v. 3 – Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, nota 1, p. 329).

Sob olhar da infância, o autor revela os contornos da história descrita na obra Os meninos da Rua Paulo, que mostra a disputa infanto-juvenil por liberdade, tão rara em um mundo cheio de amarras

“Uma das funções primordiais da brincadeira na infância é permitir que as crianças vivenciem seus conflitos de forma lúdica”

Page 18: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE34 Revista de Cultura AJUFE 35

editoriaeditoria

6 DOMINICK, Rejany dos Santos. Imagens - memórias vividas e compartilhadas na formação docente: os fios, os cacos e a corporificação dos saberes. Campinas, SP: [s.n.], 2003. Tese de Doutorado.

7 CORAZZA, Sandra Mara. O que faremos com o que fizemos da infância? In: LINHARES, Célia Frazão e GARCIA, Regina Leite. Simpósio Internacional Crítica da Razão e Crise da Política na Formação Docente. Rio de Janeiro: UFF, 2001, pp. 59-60.

8 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

9 Além do filme, disponível em DVD, igualmente o livro foi editado no Brasil pela Salamandra, com tradução de Ana Maria Machado.

10 Também em Ponte para Terabítia, tanto no filme quanto no livro, a estruturação do jogo simbólico na infância, entre os protagonistas Jess e Leslie, é evidente, como forma de ambos lidarem com suas frustrações, medos e desafios – por exemplo, a problemática relação de Jess com o pai, ou descobrir como compreender e enfrentar a “gigante” Janice Avery.

velocidade crescente da urbanização e do progresso

na virada daquele século, bem como a realidade disci-

plinadora da escola de então – ambas circunstâncias que

tornavam o grund espaço evasivo para a liberdade de

imaginação e para a brincadeira, uma necessidade tão

vital aos meninos da Rua Paulo.

A condição disciplinar da escola na época não era uma

circunstância peculiar à Hungria, mas a inúmeras esferas

da sociedade ocidental. Segundo vários autores, a infância

como a conhecemos inexistiu na Europa Ocidental até

aproximadamente o século XVI, em função de inúmeras

condições históricas5. Como salienta Rejany Dominick,

com referência na obra de Philippe Ariès, História social

da criança e da família:

“O sentimento da infância não trazia em si o significado de afetividade ou uma interpretação das particularidades e diferenças inerentes a essa faixa etária como hoje a vivemos. Na verdade, o que era determinado como infância relacionava-se mais com a possibilidade de sobrevivência do que com as características próprias, pois a mortalidade infantil era muito alta. Somente após uma determinada fase da vida do sujeito é que se identificava mais objetivamente aquele ser como participante do mundo, como ‘alguém com quem se poderia contar’. Essa passagem se dava, mais ou menos, quando a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou ama e, a partir daí, ela ingressava na sociedade dos adultos e já não se distinguia destes”.6

Somente a partir de então, são iniciadas as produções

sociais de imaginário sobre a infância, em longo e

multifacetado processo que redunda no quadro social

hoje vivenciado no Ocidente em etapa específica da

vida, merecedora de proteção especial e tratamento

diferenciado. De certo modo, portanto, ao contrário do

senso comum que imagina a infância como um dado

biológico que sempre existiu em todas as culturas e

sociedades, pode-se dizer, segundo vários pensadores,

que a infância foi “inventada”, no sentido atribuído por

Ariès. Muitos historiadores atuais analisam estar em curso

o fim da infância. Há mesmo autores que sustentam, mais

radicalmente, que ela jamais existiu da forma como o

discurso que lhe corresponde pretendia7.

Por outro lado, o período compreendido entre fins do

século XIX e princípio do XX é, ao mesmo tempo, apogeu

e princípio do ocaso, tanto do positivismo nas ciências

quanto da lógica disciplinar, organizando os corpos e

docilizando as mentes, espraiando-se pelas principais

estruturas de aglomeração de indivíduos – a prisão, o

hospital, a escola8. Portanto, não é nada casual a evidente

dicotomia entre o rigor do espaço escolar, representado

pelo professor Rácz, e a sensação de liberdade das crianças

no grund, como demonstra nitidamente a passagem

escolhida como epígrafe para este texto. Mais do que

um lugar para jogar péla, está em disputa na história (livro

e filme) o território de liberdade não afetado diretamente

pela autoridade disciplinar adulta ou, em outras palavras,

o próprio local onde a infância rebela-se contra as amarras

do poder disciplinar adulto e corre solta em suas estepes,

seu reino, sua planície.

Não por acaso, nem tão paradoxalmente assim, ambos

os grupos (os da Rua Paulo como os camisas-vermelhas,

do Jardim Botânico) vivenciam essa experiência de liber-

dade como reprodução do mundo disciplinar adulto, em

estruturas de natureza militar e profundamente hierar-

quizada. Uma das funções primordiais da brincadeira

na infância é permitir que as crianças vivenciem seus

conflitos de forma lúdica e, por meio dela, compreendam

a sociedade em que vivem. Elas reproduzem e

recriam, no jogo, as estruturas e as relações de poder

existentes, de modo a compreendê-las, questioná-las

e integrarem-se socialmente em seu contexto, como já

afirmaram pensadores como Piaget e Vigotsky. Em uma

sociedade altamente hierarquizada e disciplinar, o jogo

simbólico não poderia refletir senão essa estrutura. No

grund, entretanto, as regras são estabelecidas de forma

autônoma pelas crianças, que são suas destinatárias, e

não heterônoma, e sua afirmação

permanente como sujeitos se faz de

modo independente dos adultos —

seja a família, sejam os professores.

Belo livro e belo filme, são

inesgotáveis os aspectos a serem

vistos e revistos em ambos. Mas

há um, em particular, que me

parece merecer especial atenção: o

tratamento dado à perda e à morte.

Com rara e triste beleza, esse tema

– geralmente, difícil no trato com as

crianças do mundo contemporâneo,

cada vez mais vinculado a um

hedonismo sem contrapartidas – é

trabalhado com imensa dignidade

e emoção, em que a agonia do

jovem protagonista é lapidada de

forma profundamente comovente.

Mais no livro do que no filme, é

impossível conter as lágrimas ante

a sucessão de devaneios e delírios

da criança numa época anterior

à penicilina. Tão incomum me

parece essa abordagem em obras

infanto-juvenis, a não imbecilizar as

crianças, que rapidamente me vem

à lembrança a muito mais recente

Ponte para Terabítia, adaptação

dirigida por Gabor Csupo, em

2007, para o livro homônimo

de Katherine Paterson, de 1977

(escrito para consolar seu filho

mais jovem pela perda de uma

grande amiga)9 – outra indicação

sem dúvida inafastável para se ver

e ler com os pequenos e provocar

boas conversas sobre momentos

desagradáveis, mas invencíveis, da

vida de todos10.

Infelizmente, Os meninos da

Rua Paulo é mais um daqueles

filmes tornados raros pelo desprezo

da indústria de audiovisual, que

esbraveja hipocritamente contra a

pirataria, mas é incapaz de reeditar

filmes essenciais e disponibilizá-

los a preços honestos e razoáveis,

forçando o público (por certo

restrito) desse tipo de produção

a realizar verdadeiras jornadas de

provação para garimpá-los, encontrá-

los e, finalmente, a eles assistir. Há

alguns anos, a Amazon.com vendia o

título em VHS, com som original em

húngaro e legendas em inglês, mas

o material encontra-se atualmente

esgotado, e a distribuidora res-

ponsável, especializada em filmes

húngaros nos Estados Unidos

(European Video Distributors, sediada

na Califórnia), aparentemente en-

cerrou seu funcionamento. Não

houve lançamento do filme em DVD

nem nos Estados Unidos nem na

Europa Ocidental. Ele é facilmente

encontrado na Hungria, em DVD,

mas apenas com som original em

húngaro e sem legendas sequer na-

quele idioma. Consegui essa versão

com um amigo daquele país, o

juiz e professor universitário Jószef

Liechtenstein, a quem mais uma vez

agradeço – agora em público – pelo

fim dessa minha busca que durou

vários anos. É possível, entretanto,

encontrar o filme na internet, via

torrent – inclusive com legendas em

inglês e português.

José Carlos Garcia é Juiz Federal na Seção Judiciária do Rio de Janeiro.

“...é impossível conter as lágrimas ante a sucessão de devaneios e delírios da criança

numa época anterior à penicilina”

FICHA TÉCNICATítulos: Os meninos da Rua Paulo, ou Esta rua é nossa (A Pál-utcai fiúk, Hungria/EUA, 1969)Títulos Alternativos: The Boys of Paul StreetGênero: DramaDuração: 110 min.Tipo: Longa-metragem / ColoridoProdutoras: Groskopf, MAFILM Stúdió 1Diretor: Zoltán FábriRoteiristas: Endre Bohem, Zoltán FábriElenco: Mari Törõcsik, Sándor Pécsi, László Kozák, Anthony Kemp, William Burleigh, John Moulder-Brown, Robert Efford, Mark Colleano, Gary O’Brien, Paul Bartleft, Earl Younger, György Vizi, Julien Holdaway, Péter Delmár, Jancsó MiklósFonte: http://epipoca.uol.com.br/filmes_detalhes.php?idf=16768, acessado em 30 de março de 2009.

Page 19: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE36 Revista de Cultura AJUFE 37

editoriaponto de vista

Em matéria de Direito Ambiental, Vladimir Passos de

Freitas é, sem dúvida, uma das grandes referências no

Brasil e no mundo. Professor universitário da Pontifícia

Universidade Católica do Paraná e desembargador apo-

sentado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF

4ª), com sede em Porto Alegre (RS), Vladimir é daqueles

cidadãos incansáveis que, diariamente, lembram e relem-

bram o papel ativo que todos devemos ter diante da

preservação do meio ambiente.

Ambientalista de coração – e de ação –, Vladimir diz

se admirar por ter passado ileso e não ter “levado um soco”

até hoje, já que, por tantas vezes, chamou a atenção de

pessoas que jogaram lixo no chão, deixaram a torneira

aberta ou extrapolaram no uso de energia elétrica.

“Outro dia um grupo de jovens caminhava no parque

Barigui, em Curitiba, e eu ia com meu filho. Nisso, um

jogou uma garrafa no chão. Eu avancei, peguei a garrafa e

entreguei a ele, dizendo: ‘Olhe, você deixou cair no chão’”,

conta Vladimir.

Nascido em São Paulo, em 1945, Vladimir é autor, co-

autor e organizador de 18 livros na área do Direito. Entre as

obras, dois grandes clássicos do Direito Ambiental: o livro A

Constituição e a efetividade das normas ambientais, que está

na 3ª edição, e Crimes contra a natureza, escrito na década

de 1980, em parceria com Gilberto P. Freitas, e considerado

o primeiro livro sobre crimes ambientais no Brasil.

“Eu tinha como meta escrever um livro sobre crimes

ambientais. Telefonei ao meu irmão e ele me respondeu

que o tema não merecia um livro. Consegui convencê-

lo dizendo que um dia esse seria o grande tema da

humanidade”, conta Vladimir, relembrando a época em

que tinha como sonho escrever a obra que hoje já está

na 8ª edição.

Ao longo de sua trajetória, Vladimir já ministrou mais

de 200 palestras sobre Direito e meio ambiente em vários

estados e em países como Estados Unidos, Portugal, Quê-

nia e Tailândia. Atualmente, é o representante brasileiro

do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente

(Pnuma) para a capacitação de juízes na América Latina e

co-chair do Grupo de Especialistas do Judiciário da União

Internacional para a Proteção da Natureza.

No dia a dia, Vladimir divide seu tempo entre ministrar

aulas e palestras, promover estudos de grupo na área de

Direito Ambiental e de Sistema Judiciário, escrever livros e

artigos e dar consultorias relacionadas ao meio ambiente.

Além disso, o desembargador aposentado é presidente

do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judi-

ciário (Ibrajus), fundado em 2006 para colaborar com o

aperfeiçoamento do Judiciário.

Em entrevista à Revista de Cultura AJUFE, Vladimir

Passos de Freitas analisa a legislação ambiental brasileira.

Para ele, em termos de efetividade, as normas ambientais

estão longe de alcançar o padrão ideal. O jurista alerta, por

exemplo, para os poucos efeitos surtidos, a partir da Lei de

Crimes Ambientais, na responsabilização da pessoa jurídica

em matéria ambiental. Ele fala também sobre os conflitos

de competência no âmbito ambiental. Confira a entrevista.

Qual a importância da Amazônia para o equilíbrio ambien-

tal mundial?

A Amazônia é considerada o maior ecossistema exis-

tente no mundo. Sua importância está nas suas florestas,

Ambientalista, sim.Fundamentalista, nãoReportagem de Renata Camargo

que colaboram para evitar o aquecimento

global, nas suas águas, que no futuro poderão

servir a pessoas deste e de outros continentes,

na biodiversidade, que pode servir na confecção

de remédios para a população, na preservação

da fauna, enfim de múltiplas formas. O des-

matamento pode influenciar negativamente

outras regiões. Cientistas argentinos afirmam

que a seca e os vendavais no Rio Grande

do Sul e Argentina seriam consequência do

desmatamento da Amazônia.

Quais os desafios mais relevantes do ponto de vista

jurídico quando se fala em Amazônia?

Creio que convencer as pessoas que

residem no local de que o desenvolvimento

só vale se for sustentável, de nada adiantando

elevar o PIB pelo corte desenfreado de ma-

deira e, no futuro, quando encerrado o ciclo

de exploração, termos cidades empobrecidas

e decadentes. Outro problema é a extensão,

que dificulta muito a fiscalização dos órgãos

ambientais e da polícia.

A Amazônia Legal é formada por nove estados. Em

termos de políticas públicas ambientais, é coerente

tratar esses estados da mesma maneira?

Não, não é coerente. Mas a autonomia

dos estados não permite que a União imponha

uma política única. A União só pode legislar,

editar normas gerais, mas não pode impor que

os estados façam ou deixem de fazer algo.

A regularização fundiária da Amazônia é apresen-

tada pelo governo como o primeiro passo para

desenvolver de maneira sustentável a região. O

senhor concorda com essa estratégia?

Sim, a regularização fundiária é importan-

tíssima para um desenvolvimento sustentável.

Mas não é tarefa fácil. Há problemas nos títulos

de domínio, inclusive fraudulentos, ensejando

a ação da Corregedoria Nacional de Justiça.

Propostas de uso sustentável de recursos seriam

uma saída para a população da Amazônia?

Sem dúvida. O desenvolvimento passa

pela preservação do meio ambiente. Assim

manda a Constituição. Mas não é tarefa fácil.

O empreendedor nem sempre está disposto

a abrir mão de parte de seu lucro a favor do

interesse público. Um exemplo típico é o das

áreas de reserva legal. Na Amazônia, o pro-

prietário está impedido de utilizar 80% de seu

imóvel rural, deixando-o como reserva, a fim

de preservar a fauna e a flora. Mas é claro que

nem todos assim procedem. E a fiscalização,

em razão das distâncias, é ineficaz.

O senhor é autor de diversas obras com interface

ambiental. Na sua avaliação, a cultura jurídica já

incorporou os princípios ambientais?

Sim, a cultura jurídica na área ambien-

tal avançou muito nos últimos anos. Em

passado relativamente recente, não havia

Referência no ramo do Direito Ambiental, Vladimir Passos de Freitas analisa a legislação ambiental brasileira e afirma que “falta muito para chegarmos ao ideal de efetividade dessas normas”

“O empreendedor nem sempre está disposto a abrir mão de parte de seu lucro a favor do interesse público. Um exemplo típico é o das áreas de reserva legal”

Page 20: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE38 Revista de Cultura AJUFE 39

editoria editoria

mais do que cinco ou seis livros de doutrina e pouca

jurisprudência. Atualmente, temos cerca de 200 livros

na área do Direito Ambiental, alguns deles analisando

temas específicos, como tributação ambiental, crédito de

carbono ou matas ciliares. Mudou muito e para melhor.

Em 1992, conversando com um colega do TRF 4ª sobre

a necessidade do Direito Ambiental fazer parte das provas

do concurso para juiz, ele me respondeu sorrindo: e por

que não o Direito Eletricitário? Agora o Direito Ambiental é

obrigatório nos concursos de todo o Brasil. Esse é só um

exemplo. Eu poderia citar vários.

Qual a sua avaliação sobre a efetividade das normas ambien-

tais brasileiras?

Não é ideal, mas dentro de um quadro internacional

estamos acima da média. O Ministério Público tem tido

um papel relevante e isso só ocorre no Brasil. No Judiciário,

a evolução é constante, o nível das decisões judiciais

melhorou. Agora temos muitas e boas decisões judiciais.

Tribunais outrora indiferentes, agora possuem precedentes

de ótima qualidade. O Tribunal de Justiça do Paraná é

um exemplo. A Polícia Federal, depois da especialização

da delegacia de crimes ambientais e contra o patrimônio

histórico, em 2002, melhorou muito. Mas os órgãos

ambientais ainda padecem de falta de estrutura e pessoal,

e os meios tecnológicos ainda são escassos. Enfim, falta

muito para chegarmos ao ideal, mas já construímos um

padrão razoável de efetividade.

Parte do setor produtivo defende que a legislação ambiental

brasileira obstaculiza a produção agropecuária. Qual a sua

avaliação sobre isso?

Não concordo. Na verdade, o inconformismo está nas

áreas de reserva legal, que são de 20% nas regiões Sul e

Sudeste, e nas de preservação ambiental, como encostas

de morros, beira de rios e outras. A produção agropecuá-

ria é importante para todos nós. A chamada agroindústria

é um sucesso. Mas não podemos tornar nossas terras um

“mar de cana”, ou uma monocultura de soja, ou pinus, com

graves problemas ambientais.

A legislação ambiental brasileira é muito rigorosa?

Não. Nossas multas são irrisórias, se comparadas

com as impostas nos Estados Unidos. Nossa lei de crimes

ambientais tem penas simbólicas. O tráfico de espécimes

da fauna para o exterior significa uma pena de seis meses

a um ano, o que chega a ser um estímulo aos traficantes.

E na área das indenizações civis, as dificuldades com a

realização da prova pericial e a quantificação do dano

beneficiam milhares de réus. Em outros países, como

o Panamá, o laudo feito pelo órgão ambiental pode ser

aproveitado na ação de reparação civil. Aqui não.

Tendo em vista a ponderação de interesses, como agir quando

políticas públicas mitigam bens ambientais?

Vendo mais longe, pode-se dizer que os bens ambien-

tais são necessários para o futuro da humanidade na terra.

Assim, não adianta dar apoio a políticas públicas com

sacrifício da população. Há um acórdão do Superior Tribunal

de Justiça (STJ) em um caso de loteamento clandestino

na beira da represa Guarapiranga, em São Paulo, que é

emblemático. No conflito de interesses, o voto do relator,

ministro Otávio Noronha, optou pela retirada de cerca de

150 famílias, porque se ali elas permanecessem, lançando

dejetos à represa, possivelmente em alguns anos nem água

teriam os milhões de habitantes da grande São Paulo.

Em relação à resolução de conflitos de competência ambiental

entre municípios, estados e União, já é possível vislumbrar algum

consenso no âmbito jurisdicional?

Não, no âmbito jurisdicional persistem muitas dúvidas.

Principalmente na área cível. Recentemente, uma decisão

isolada do ministro do STF Cezar Peluzo, pela primeira vez,

dispôs sobre a competência para emitir licença ambiental.

Era um caso de Salvador, Bahia, onde o licenciamento era

feito pelo município, com a concordância do Ibama. O

Ministério Público Federal, no entanto, não se conformava

e ingressou em juízo, recebendo o apoio do TRF 1ª Região.

Mas ainda são poucas as decisões dos tribunais, e isso

colabora para a insegurança jurídica, com graves problemas

econômicos. Certa feita, quando eu era presidente do TRF

4ª. Região, uma alta autoridade ambiental do

Rio Grande do Sul procurou-me desesperado

com as liminares dadas em ações que tinham

a concordância do Ibama e do órgão estadual.

Os empreendedores, inclusive estrangeiros,

ficavam totalmente desprotegidos quando,

depois de cumprirem todas as exigências,

eram surpreendidos por liminares da Justiça.

Infelizmente, nada pude fazer, pois a matéria

era jurisdicional.

Na sua avaliação, o Poder Legislativo é omisso por

não editar lei complementar sobre esses conflitos?

Sem sombra de dúvida.

Qual o caminho mais eficaz para diminuir esses

conflitos de competência?

A lei complementar que se espera desde

1988 é o primeiro passo. E acórdãos explícitos

nos casos submetidos a julgamento, o segundo.

Os desembargadores e ministros, perdidos nos

milhares de recursos que recebem, não se dão

conta da relevância de definir as competências

na área ambiental. Os anos passam e a

insegurança jurídica persiste. Aí está algo de

que não podemos nos orgulhar.

Como o senhor avalia as medidas compensatórias

no âmbito ambiental e a licença ambiental como

fator de troca?

As medidas compensatórias são comuns

nos grandes empreendimentos e até nos de

porte médio. Não é raro, por exemplo, que mine-

radoras cuidem de escolas, ou asfaltem ruas

de uma cidade. Ou ainda que empreendimen-

tos imobiliários em áreas urbanas entreguem

e cuidem de áreas verdes por um prazo razoa-

velmente longo, como cinco anos.

O recém-sancionado Código Ambiental Catarinense

tem causado polêmica. O senhor concorda com a

“estadualização” da legislação ambiental?

Os estados podem legislar sobre matéria

ambiental, mas nunca sobre matéria que, por

ser lei geral, caiba à União. Santa Catarina

legislou sobre aspectos que afrontam o Código

Florestal de 1965, considerado “norma geral”.

Tudo indica que será considerado, ao menos

parcialmente, inconstitucional.

Em sua avaliação, o atual Código Florestal brasileiro

deve ser remodelado?

Sendo de 1965, creio que ele deve ser

atualizado. Há dispositivos completamente

fora do contexto, como um que dá poderes

à Polícia Florestal para autuar em flagrante o

infrator, contrariando a Constituição Federal

que enfeixa essa atividade nas mãos da Polícia

Judiciária Federal ou Civil. Outro irreal é o que

mantém as áreas de mata ciliar em rios ou

córregos urbanos. São descumpridos de sul

a norte, porque é impossível o cumprimento.

Uma adequação à realidade seria bom, pois

as leis não devem levar ao absurdo.

Como o senhor avalia as ações do Poder Legislativo

em termos de criação e modificação de normas

ambientais nos últimos anos?

As alterações das leis ambientais em

tempos mais recentes correm sempre risco

sério de retrocesso. Hoje não passariam leis

excelentes, como a Lei 6.938, de 1981, que

instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente,

ou a Lei 7.347, de 1985, que trata da ação

civil pública.

O senhor escreveu o primeiro livro sobre crimes

ambientais do Brasil. Em relação a outros países,

como o senhor avalia a legislação de crimes

ambientais brasileira? Ela é muito severa?

É uma boa pergunta e de difícil resposta.

Há países, como a Argentina, em que a

proteção civil é ótima e a penal quase ine-

“Nossa lei de crimes ambientais tem penas simbólicas. O tráfico de espécimes da fauna para o

exterior significa uma pena de seis meses a um ano, o que chega a ser um estímulo aos traficantes”

“Os desembargadores e ministros, perdidos nos milhares de recursos que recebem, não se dão conta da relevância de definir as competências na área ambiental”

Page 21: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE40 Revista de Cultura AJUFE 41

editoria editoria

xistente. Outros, como a Itália e o Paraguai, em que o

forte é a proteção penal do meio ambiente. A legislação

penal do Brasil é avançada, é objeto de uma só lei e

favorece os acordos para recuperação do dano. Não a

considero severa. Não conheço nem 12 casos de prisão.

O mérito maior é mesmo o de possibilitar transações e

suspensões do processo com recuperação da área ou

medidas compensatórias. Quanto ao livro, vou contar uma

passagem boa. Eu me interessava pela matéria desde a

década de 1970, quando era promotor no litoral do estado

de São Paulo e tinha como meta escrever um livro. Mas o

serviço como juiz federal era muito e eu ia adiando essa

meta. Em 1988, perdi uma eleição para presidente da

Ajufe e, um dia, voltando para casa, pensei: “Bem, agora

eu não tenho o que fazer, a Vara está em dia e, por isso,

vou realizar meu sonho de escrever aquele livro”. Telefonei

ao meu irmão e ele me respondeu que esse tema não

merecia um livro. Consegui convencê-lo dizendo que um

dia esse seria o grande tema da humanidade. Para poder

escrever fui ao órgão ambiental do Paraná e, reunido com

procuradores e pessoal da área técnica, fui perguntando

o que significavam aquelas cautelas da lei florestal ou da

fauna. Gravei tudo e até hoje guardo a fita.

A responsabilização penal da pessoa jurídica em matéria ambiental,

instituída pela Lei 9.605/08, surtiu ou surte o efeito desejado no

sentido de redução de danos ambientais?

Algum efeito surtiu, mas bem aquém do ideal. O des-

conhecimento do assunto, o conformismo dos penalistas

mais tradicionais, a falta de disposição para as coisas novas,

fez com que a jurisprudência custasse a se consolidar. Até

hoje, a maioria dos tribunais não tem um precedente.

Como tem se comportado a jurisprudência sobre essa possibilidade

de responsabilização?

Em 2003, o TRF 4ª, em acórdão do Desembarga-

dor Federal Elcio Pinheiro de Castro, julgou o primeiro

caso. A partir daí, alguns tribunais de Justiça, como o do

Rio Grande do Sul, de São Paulo e de Santa Catarina,

emitiram decisões favoráveis. O STJ, ao início hesitante,

passou a aceitar a possibilidade de responsabilizar a

pessoa jurídica, desde que na companhia de uma física.

E o STF, em agosto de 2008, sinalizou que aceita tal tipo

de responsabilidade, em acórdão relatado pelo ministro

do Supremo Ricardo Lewandowski, no qual a discussão

central ficou por conta de caber ou não habeas corpus

para trancar a ação penal.

E o que dizer da responsabilização penal de pessoas físicas em

matéria ambiental? Houve redução de danos?

Sim, com certeza. Principalmente por meio de com-

posições com o Ministério Público. A intimidação também

é um fator inibitório.

O senhor é autor da obra Direito Ambiental em Evolução. Em qual

direção caminha a evolução do Direito Ambiental?

Caminhamos para uma absoluta predominância do

Direito Ambiental sobre todos os ramos do Direito. Não

existirão matérias alheias ao Direito Ambiental. Estamos

apenas no começo, mas já vemos a verdadeira “invasão”

no Direito Civil, Administrativo, Bancário e outros ramos.

O caminho é divulgar a matéria, torná-la obrigatória nos

cursos de graduação, exigi-la nos concursos de servidores,

alargar seu campo de atuação.

Alguns críticos dizem que o Direito Ambiental brasileiro não inclui

o “homem” como bem ambiental. O que pensa a esse respeito?

Essa é uma crítica desarrazoada, pois o art. 225,

caput, da Constituição é nitidamente antropocêntrico. O

homem continuar a ser o centro de tudo. Ao meu ver exa-

geradamente. Temos que cuidar de nossos companheiros

de viagem, os animais, as plantas, a terra.

Em relação à conscientização ambiental, o senhor acredita

que a população brasileira já consegue mensurar danos e

riscos ambientais ou, em sua maioria, ainda permanece leiga

sobre o tema?

Avançamos bastante, mas a maioria ainda está longe

de ter consciência ambiental. Pensam que meio ambiente

é proteger os bichos e não jogar lixo nas ruas. No entanto,

continuam a gastar energia elétrica inutilmente, a dirigir

um veículo por pessoa, a tomar banhos, ou permitir que

seus filhos tomem, cuja duração é exagerada. Brasília é

o exemplo máximo. Prédios fechados, janelas escuras e

ar condicionado dia e noite. Em uma cidade de imensa

claridade. Que arquitetura é essa?

Tendo em vista o citado art. 225, caput, da Constituição, qual deve

ser o papel de cada um nessa defesa do meio ambiente?

O papel é de ativismo, na vida diária, na vida pro-

fissional, em tudo. Tenho dezenas de passagens em que,

como cidadão, agi. Até me admiro por não ter levado

um soco, pois já chamei a atenção de gente fazendo a

barba com a torneira aberta, jogando lixo na rua, lavando

a calçada com aquelas horríveis mangueiras a jato, coisas

assim. Não me importo. Sigo firme. Às vezes, com

delicadeza. Outro dia um grupo de jovens caminhava

no parque Barigui, em Curitiba, e eu ia com meu filho.

Nisso, um jogou uma garrafa no chão. Eu avancei, peguei

a garrafa e entreguei a ele, dizendo: “Olhe, você deixou

cair no chão”.

O senhor se considera ambientalista?

Creio que não só eu me considero, mas que todos

assim me consideram. Mas não sou fundamentalista. Sei

perfeitamente os limites. Como juiz, por vezes, decidi

contra a tese do Ministério Público. Ambientalista sim,

mas com percepção de todos os problemas que nos

envolvem, inclusive sociais e econômicos. E me orgulho

disso. Quando estivermos em 2025, com falta de água,

poluição do ar e em cidades quentes e desagradáveis,

meus descendentes se lembrarão de mim com orgulho. E

eu, seja lá onde estiver, se tiver oportunidade de dizer algo,

direi: “Olhem, a minha parte eu tentei fazer bem feita”.

“A maioria das pessoas ainda está longe de ter consciência ambiental. Pensam que meio ambiente é proteger os bichos e não jogar lixo nas ruas”

“As alterações das leis ambientais em tempos mais recentes correm sempre risco sério de retrocesso. Hoje

não passariam leis excelentes como a que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente”

Page 22: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE42 Revista de Cultura AJUFE 43

academia

De todas as cidades do Brasil, o Rio

de Janeiro é a que mais tem história para

nos contar. Sua história vem de longe. Na

verdade, vem do primeiro dia do ano de

1502. Uma flotilha – capitaneada, de direito,

por um protegido do rei Dom Manuel1, mas

de fato comandada pelo experiente Américo

Vespúcio2 – fundeou-se no estuário (assim

se acreditou) de um rio volumoso, cercado

de luxuriantes montanhas, que se tornavam

azuis à medida que se afastavam da vista do

navegante extasiado3. No governo-geral do

desembargador Mem de Sá, houve sucessivas

refregas e escaramuças para desalojar os

calvinistas franceses trazidos por Villegaignon4.

Em pleno reinado de Dom Sebastião, o

capitão-mor Estácio de Sá, a mando do

governador-geral, saiu da Bahia rumo à Baía

de Guanabara5. Foi impedido de atracar pelos

gentios e franceses. Rumou, então, para

São Vicente, onde conseguiu mais gente e

melhor equipagem. Voltou com o propósito

de fundar naquele sítio uma nova colônia, a

qual deu o nome Cidade de São Sebastião

do Rio de Janeiro. Em 1º de março de 15656,

Estácio de Sá7 mandou limpar uma boa área8

e edificou uma tranqueira (paliçada) para

proteger a feitoria contra ataques de tamoios

e franceses9. Em novembro de 1711, chegou

o revide dos franceses: o Rio de Janeiro foi

invadido por marinheiros de Duguay-Trouin,

que exigiram dinheiro, gado e açúcar para

devolver a cidade aos portugueses.

De 1763 a 1960, a cidade foi a capital

política da Colônia, do Reino, do Império e,

por último, da República. O Rio nunca perdeu

o título de Cidade Maravilhosa, de cidade

do samba e do carnaval, do futebol, dos

intelectuais, das favelas e das morenas bem

torneadas e queimadas de sol.

A Cidade de São Sebastião do Rio de Janei-

ro, porém, não poderia sequer imaginar que sua

paz bucólica estava para ser perturbada para

sempre em razão das guerras napoleônicas.

Se a marinha de Pitt havia derrotado Napoleão

Bonaparte nos mares, no continente o exército

francês vencia10. Com a capitulação da Prússia,

Napoleão impôs (Decreto de Berlim) o

P.R. = Príncipe Real = Ponha-se na ruaPor Adhemar Ferreira Maciel

Seduzidas pelos luxos da realeza, as pessoas cediam de bom grado suas casas para os nobres. Em um Brasil colônia, a chegada da Família Real portuguesa mudaria para sempre a realidade do país

bloqueio dos portos do continente europeu

para os navios ingleses. Dinamarca e Portugal,

todavia, ainda continuavam neutros. Napoleão,

então, não teve dúvida: firmou secretamente

com a Espanha a invasão e o retalhamento de

Portugal (Tratado de Fontainebleau).

Por mais de uma vez, o Brasil já havia sido

lembrado como uma alternativa segura para a

transferência da Corte portuguesa, sobretudo,

em caso de emergência. A estratégia era

antiga e encontrava precedentes na Europa.

Padre Antônio Vieira, no século XVII, com suas

visões messiânicas do Quinto Império, teria

aconselhado Dom João IV a transferir-se para

o Brasil11. Mais tarde, sem ameaça aparente

de invasão estrangeira, o embaixador Dom

Luís da Cunha (1668-1740) insistiu na saída

da Corte de Portugal. Também no governo do

Marquês de Pombal (1750-1777), cogitou-se

da transferência da Corte de Dom José I para

a América portuguesa. Mas só em agosto

“A chegada da Família Real portuguesa, em março de 1808, trouxe uma série de transtornos

iniciais à cidade do Rio de Janeiro”

“Por mais de uma vez, o Brasil já havia sido lembrado como uma alternativa segura para a transferência da Corte portuguesa”

REFERÊNCIAS

1 Dom Nuno Manuel. Nuno Manuel era irmão do camareiro-mor do rei, ambos filhos do bispo da Guarda com uma ama do soberano (cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História geral do Brasil, 7ª ed.,1962, t. I, p. 82). Para alguns historiadores, quem se achava no comando era Gonçalo Coelho (ver as notas de rodapé de CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1963, I v., p. 86). Amerigo Vespucci, em sua duvidosa Lettera al Soderini – uma mistura de realidade e fabulação -, não menciona o nome de Gonçalo Coelho.

2 Ibidem, p. 83.

3 Foi um “notável engano cosmográfico” tomar a Baía de Guanabara como a foz de um grande rio (cf. VARNHAGEN, ob. cit., p. 322).

4 Cf. CALMON, Pedro, ob. cit., p. 265 e seg.

5 ROCHA PITTA. A história da América portuguesa. São Paulo: W. M. Jackson Inc., v. XXX de Clássicos Jackson, 1965, p. 125.

6 Cf. ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800). Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, Publifolha, 2000, p. 77.

7 Coincidentemente, foi no dia do padroeiro da cidade (S. Sebastião) que Estácio de Sá recebeu uma flechada no rosto, falecendo dias depois (cf. CALMON, ob. cit., p. 290). Cf., ainda, ROCHA PITTA, ob. cit., p. 129.

8 Acredita-se que o sítio ficava no Outeiro da Glória, antigo Morro do Léry. (cf. VARNHAGEN, ob. cit., p. 339). Jean de Léry, um huguenote que se desentendeu com Villegaignon, foi, com outros colonos, ocupar parte do continente (Sobre Léry, consulte http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_de_L%C3%A9ry. Acesso em 31.03.2008).

9 Diversos fatores contribuíram para afastar os franceses do Rio de Janeiro: a energia de Mem de Sá, a habilidade

Page 23: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE44 Revista de Cultura AJUFE 45

editoria editoria

de 1807, o Príncipe Regente Dom João

tomou a decisão de vir para sua colônia12.

Oficialmente, foi no dia 30 de setembro

de 1807, no Palácio de Nossa Senhora da

Ajuda, que o Conselho de Estado Português13

sacramentou a transferência imediata da

Família Real para o Brasil: o exército franco-

espanhol estava prestes a invadir Portugal14.

Em 29 de novembro daquele ano de 1807,

às sete da manhã, quando as tropas de Junot

já se achavam nas cercanias de Lisboa, a

frota luso-inglesa deixou a barra, rumando

para o Brasil15.

A chegada da Família Real portuguesa,

em março de 1808, trouxe uma série de

transtornos iniciais à cidade, cuja população

andava entre 50 mil16 e 60 mil17 habitantes.

Ruas tresandando a urina, fezes e amônia.

Animais soltos. Porcos chafurdando na lama.

Ratos indo e vindo, espiando curiosos para os

passantes. Muitas vezes, como relatam Von

Spix e Von Martius menos de uma década

depois, a limpeza pública ficava a cargo de

urubus, “por esse motivo protegidos”18. A

água potável, que era captada no morro do

“Não há dúvida de que o Março de 1808 nos trouxe alento, esperança e, sobretudo, união, evitando que o Brasil se rachasse em múltiplos e pequenos países”

Corcovado, chegava à cidade por meio de um

imponente aqueduto construído em 174019. A

seguir, era vendida por escravos em vasilhames

sem tampa ou em odres já aquecidos pelo

sol ou pelo corpo do transportador20. Os

dejetos humanos, tal como nos burgos e

cidades europeias da Idade Média, eram

transportados em carroças ou nas costas

suarentas de “tigres” (escravos)21, para serem

despejados no mar ou nos fossos mandados

fazer pelo Senado da Câmara. A falta de

higiene e cuidado sanitário fez com que

doenças como o tifo e a varíola plantassem

“tenda” definitivamente na cidade22. Esse foi o

Rio de Janeiro que a comitiva real, composta

de mais de 4 mil pessoas23, encontrou pela

frente e iria habitar.

Como não havia casas para todos, o gover-

no optou por solução bem da época: requisitou

as melhores moradias de comerciantes, qua-

se todos eles portugueses. O procedimento

administrativo era o mais sumário possível:

colocava-se na porta da habitação requisitada

as iniciais “P.R.” (Príncipe Real), e a residência

estava automaticamente requisitada… O vulgo,

na fina ironia carioca, traduzia o “P.R.” como

“ponha-se na rua”24.

Muita gente, enfeitiçada pela maneira

afetada das damas e dos alfenins da Corte,

cedia de bom grado suas casas e seus serviçais

para os áulicos. Com isso, sentia-se prestigiada,

pois estava prestando favor ao Príncipe25.

do Padre Nóbrega, o desencanto de Coligny com Villegaignon e as lutas entre católicos e huguenotes na França (cf. SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Trad. Luis Joaquim de Oliveira e Castro. Belo Horizonte: Livraria Itatiaia Editora Limitada, 1981, v. 1, p. 205 e 219). 10 MAUROIS, André. História da Inglaterra. Trad. Carlos Domingues. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, p. 401 e seg.

11 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Transfer%C3% AAncia_da_corte_portuguesa_para_o_Brasil_(1808-1821)#Antecedentes. Acesso em: 12.04.2008.

12 Dom João, que fez que ia assinar o decreto por cinco vezes, tinha verdadeiro pavor só de pensar em atravessar o Oceano Atlântico (cf. WILCKEN, Patrick. Império à deriva: a corte portuguesa no Rio de Janeiro (1808-1821). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p. 32).

13 O Conselho, em sua maioria, era pela neutralidade. Havia, porém, partidários da Inglaterra e partidários da França (cf. BRANDÃO, Fernando Antônio Xavier: A viagem marítima da família real portuguesa para o Brasil. Belo Horizonte: IHGMG, 2008, p. 4).

14 Cf. OLIVEIRA LIMA. Dom João VI no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p. 47.

15 Ibidem, p. 54. Segundo Kenneth H. LIGHT (A viagem marítima da família real: a transferência da corte portuguesa para o Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 224 e seg.) a frota que saiu de Lisboa era formada de 57 navios (naus, brigues, fragatas, bergantins, escunas e corvetas) portugueses e britânicos. Para uma visão resumida, consulte BRANDÃO, ob. cit., p. 7.

16 LUIZ EDMUNDO. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, p. 58. Também os naturalistas alemães (bávaros) Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, que estiveram no Brasil de 1817 a 1820, falam que o Rio de Janeiro devia ter uma população de 110.000 habitantes. Antes da chegada da Família Real, a população era estimada em 50.000 almas (Viagem pelo Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, I v., p. 52).

17 Para John Luccock, comerciante inglês que chegou cerca de 3 meses depois da vinda da Corte portuguesa, a população do Rio de Janeiro era de 60.000 habitantes (cf. GOMES, Laurentino. 1808. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p.155). Só para se ter uma idéia, no ano de

1800, Londres era a maior cidade do mundo: um milhão de habitantes (cf. PORTER, Roy. London: a social history. Cambridge, Massachusetts, 1995, p. 186). A população de Lisboa andava em pouco mais de 200.000 habitantes (cf. WILCKEN, ob. cit., p. 45).

18 SPIX/MARTIUS, ob. cit., p. 64.

19 O modelo da construção foi um aqueduto de Lisboa, construído no tempo de D. João V ( ibidem, p. 49).

20 Spix e Martius, depois de elogiarem a qualidade da água fresca captada, afirmavam que ela ficava comprometida quando transportada “por meio de negros pouco asseados”. Admoestavam que se devia chamar a atenção da “saúde pública, a fim de acabar com isso.” O governo, por outro lado, prestaria um “relevante serviço à população se encanasse água para muitas casas particulares” (ibidem, p. 49).

21 Os “tigres” eram recipientes destinados aos dejetos de cada casa (cf. EDMUNDO, Luiz, ob. cit. p. 63). Quem transportava o barril nas costas acabou por receber o mesmo nome (cf. HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed., 35. impressão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986).

22 EDMUNDO, Luiz, ob. cit., p. 20.

23 FAORO fala entre 10.000 e 15.000 civis (cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo. 10. ed.: Globo/Publifolha, 2000, v. I, p. 281). LUIZ EDMUNDO (ob. cit., p. 58) alude a 15.000. Pedro CALMON menciona 10.000 (cf. CALMON, Pedro. História do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1963, vol. IV, p. 1.390). MALERBA, Jurandir (A corte no exílio. São Paulo: Civilização Brasileira, 2000, p. 20, 202 e 233), diz “aproximadamente em 15.000 almas” embarcaram para o Brasil. As fontes primárias de Kenneth LIGHT (diários de bordo), porém, reduzem o número de civis para 4.500, no máximo.

24 Cf. FAORO, ob. cit., p. 290. No mesmo sentido, CALMON, ob. cit., p. 1.400.

25 Como o tesouro real estivesse minguado, Dom João, que não gostava de favores gratuitos, passou a recompensar aqueles que lhe serviam: distribuiu honrarias. Observa João ARMITAGE que durante o governo de Dom João VI distribuiu-se mais títulos e insígnias do que em todos os reinados anteriores da Casa de Bragança (História do Brasil, 3ª ed. Rio: Livraria Editora Zelio Valverde, 1943, p. 35)

Page 24: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE46 Revista de Cultura AJUFE 47

editoria editoria

Por certo, a requisição de habitações não

era novidade no final do século XVIII e início

do século XIX. Mas as requisições, quase

sempre, eram para abrigar temporariamente

tropas militares. Não para alojar civis, muito

menos, uma Corte inteira.

Alguns anos antes de a Corte portuguesa

ser transladada para o Brasil, requisições de

casas nos Estados Unidos da América, no lugar

de gerar títulos nobiliários e orgulho nacional,

geraram revolta e fomentaram uma guerra:

a Guerra da Independência (Revolution). A

preocupação com a requisição de moradias

por militares em tempo de paz era tão

grande que até uma emenda à Constituição

Federal – a Emenda nº. 3 – foi aprovada em

1791. Era frequente, mesmo em tempo de

paz, a requisição de residências particulares

de colonos por militares ingleses. O arbítrio

aumentou sobremaneira após um incidente

grave, em 16 de dezembro de 1773, que

ficou politicamente conhecido como Boston

Tea Party. O Parlamento britânico, como

retaliação, baixou uma lei (Quartering

Act), determinando a ocupação das casas

dos colonos que tivessem participado do

bloqueio naval ou da destruição da carga

de chá trazida por navios que se achavam

atracados na baía de Boston. Essa e outras

leis britânicas da época, que foram apodadas

pelos comerciantes e colonos americanos de

Leis Intoleráveis,26 apressaram a reunião de

representantes de todas as colônias (salvo

a da Geórgia), na cidade da Filadélfia. Essa

reunião deu origem ao Primeiro Congresso

Continental, que plantou, como já se disse, as

raízes da independência.

Para o colono não havia humilhação

maior do que ter sua casa requisitada para

abrigar e alimentar soldados.27 Thomas

Cooley ressalta que:

“É difícil imaginar meio mais terrível de

opressão do que seria, sob a autoridade do

Executivo, ou de um comandante militar, lotar

a casa de uma pessoa cheia de ódio com uma

companhia de soldados, que deveriam ser

alimentados e aquecidos a suas custas”.28

Talvez se possa estabelecer um paralelo

entre a requisição arbitrária de residências

tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.

Lá, como cá, havia um ressentimento, um

ódio velado por parte do colono contra a

metrópole. Ocorre, porém, que os estadu-

nidenses sempre se consideraram com os

mesmos direitos que os ingleses da Corte

de São Tiago (St. James).29 Conosco, aqui no

Brasil, isso não ocorria. A população do Rio

Janeiro era predominantemente de negros

ou mestiços,30 que não tinham voz política

nem administrativa. Daí, para nós, a vinda da

Família Real trouxe um sentimento de união,

de orgulho, um “sentimento nacional”, como

testemunhou John Luccock em suas Notas

sobre o Rio de Janeiro.31

Não há dúvida de que o Março de 1808

nos trouxe alento, esperança e, sobretudo,

união, evitando que o Brasil se rachasse

em múltiplos e pequenos países, como

movimentos políticos anteriores já tinham

mostrado claramente.32

Obras citadas

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_de_L%C3%A9ry. Acesso em 31.03.2008.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Transfer%C3%AAncia_da_cor-te_portuguesa_para_o_Brasil_(1808-1821)#Antecedentes. Acesso em: 12.04.2008.

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Adhemar Ferreira Maciel é Ministro aposentado do Superior Tribu-nal de Justiça e membro da Academia Mineira de Letras Jurídicas.

26 Cf. SELLERS, Charles, MAY, Henry, MCMILLEN, Neil. Uma reavaliação da história dos Estados Unidos. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 62.

27 FERGUSON, John H., McHENRY, Dean E. The American federal government. New York: McGraw-Hill Book Company, Inc., 1950, p. 149.

28 Tradução livre. No original: It is difficult to imagine a more terrible means of oppression than would be the power in the executive, or in a military commander, to fill the house of an obnoxious person with a company of soldiers, who shall be fed and warmed at his expense (COOLEY, Thomas. The general principles of constitutional law in the United States of America. 4th ed. Boston: Little, Brown, and Company, 1931, p. 264)

29 A Declaration do Primeiro Congresso Continental (13.10.1774) firmou que os ancestrais dos colonos que primeiro se fixaram nas colônias “(já) se achavam, por ocasião de sua emigração da mãe-pátria, habilitados a todos os direitos, liberdades e imunidades dos súditos livres e natos do reino da Inglaterra” (…were at the time of their emigration from the mother country, entitled to all the rights, liberties, and immunities of the free and natural-born subjects with the realm of England). No tocante ao colono considerar-se com os mesmos direitos do inglês da metrópole, ver STORY, Joseph, Commentaries on the constitution of the United States. New York: Da Capo Press, 1970, v. 1, p. 163.

30 Cerca de dois terços da população eram de negros e mestiços (cf. MALERBA, ob. cit., 126).

31 Apud Malerba, p. 225.

32 A vinda de D. João VI para o Brasil frustrou os planos de Napoleão, que já havia até escolhido oficiais para governar o Rio de Janeiro (Kellermann), a Bahia (Laborde) e o Maranhão (Loyson) após a queda de Portugal (cf. AMEAL, João. História de Portugal. Porto: Livraria Tavares Martins, 1940, p. 581).

Page 25: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE48 Revista de Cultura AJUFE 49

editoriaacademia

apenas para ilustrar. Claro que não se pode

fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas

algumas, pois de outra forma poderíamos cair

no abuso mencionado no conhecido ditado

popular que leciona: “o homem dos sete

instrumentos não toca bem nenhum!”.

Se organizarmos racionalmente nossas

atividades, poderemos ter mais tempo e

aproveitar aquilo a que chamamos o intertempo,

o somatório dos intervalos ou espaços entre

dois ou mais tempos… Sentimos, assim,

que o tempo comporta os estudos filosófico,

sociológico, funcional e profissional. Não é

sem razão que surgiram disciplinas como a

Cronoanálise, Cronologia, etc.

De qualquer modo, temos que valorizar

bem o tempo, inclusive o tempo de lazer

sadio, como já o fizera Laurindo Rabelo, em

seu belo e conhecido soneto A conta do

tempo ou, segundo outros, O tempo:

“Deus pede estrita conta de meu tempo,

É forçoso do tempo já dar conta.

Mas, como dar sem tempo tanta conta,

Eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo

Dado me foi bom tempo e não fiz conta.

Não quis sobrando tempo fazer conta,

Quero hoje fazer conta e falta tempo.

Oh! vós que tendes tempo sem ter conta,

Não gasteis esse tempo em passatempo:

Cuidai enquanto é tempo fazer conta.

Mas, ah! se os que contam com seu tempo,

Fizessem desse tempo alguma conta,

Não choravam como eu o não ter tempo”

(Gravação do Jornalista AZ, Rádio Mundial,

anos 50, e www.sonetos.com.br, acesso

Google, fevereiro-2009).

Por sua vez, o saudoso Constancio

Vigil, em sua Terra virgem, escrevera com

notável elegância:

“O tempo, como o vento, seca as lágrimas.

Como a água, tudo devolve. Como o fogo,

reduz as coisas a cinzas. Como o sol, tudo

esclarece. Aclara o confuso, descobre o

recôndito, encontra o perdido, reconcilia os

inimigos, põe à prova o amor e a amizade,

cega e confunde os ambiciosos, abate o

orgulho, extingue as paixões, dá conformidade.

Quem se joga contra ele, terá o malogro.

Quem o aguarda, torna-se poderoso e quem

o toma como aliado, estabelece comércio

com a Sabedoria”.

Aqui, portanto, a nossa homenagem ao

bom uso do tempo, sem deixar de lado o

precioso tempo do lazer, do esporte e do

descanso, ao lado do tempo de atividade

para todos. Neste pequeno estudo, nosso

esforço é também no sentido de abrir

perspectivas de mais valorização e melhor

análise do tempo, de maneira que sejam

respeitados os variados pontos de vista dos

demais seres humanos.

Suposto que o espaço seja a distância entre dois pontos, o tempo

é o espaço entre dois fatos, a espera entre dois eventos.

Entretanto, de acordo com a Teoria da Relatividade, “o tempo e

o espaço em si reduzem-se a meras sombras e só uma espécie de

interrelação entre ambos dá um caráter de independência”.

Uma das mais belas páginas da literatura universal lembra:

“Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo o

propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer e tempo de morrer,

tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de

matar e tempo de curar, tempo de derrubar e tempo de edificar; tempo

de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar; tempo

de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar e

tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar e tempo de perder;

tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo

de coser; tempo de estar calado e tempo de falar; tempo de amar e

tempo de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz”… (Salomão,

Eclesiastes, 3:1-8).

Nós, os membros da sociedade contemporânea, precisamos usar

bem e dominar carinhosamente o tempo, de modo racional. Do con-

trário, ele nos domina e nos devora, como Saturno a seus próprios filhos.

Por outro lado, a chamada “falta de tempo” significa, quase sempre,

desorganização de nossa parte, quando não preguiça e negligência. E

isso dizemos porque, muitas e muitas vezes, é possível fazermos mais

de uma coisa ao mesmo tempo. O cotidiano está cheio de exemplos

claros e práticos.

Na atual sociedade de consumo e de competição, as pessoas usam

o tempo para mais de uma coisa ou assunto, quais sejam: estudar

viajando ou viajar estudando, dirigir fumando ou fumar dirigindo, dirigir

“celularizando”, ler na fila, amar na fila, falar comendo, ou comer falando,

fazer dois cursos, médio ou superior ao mesmo tempo, etc. Na zona

rural, cantar capinando, capinar cantando. São esses alguns exemplos,

O tempo e a falta de tempoPor Adão de Assunção Duarte

O homem moderno está, cada vez mais, escravo do espaço entre dois fatos ou da falta de espaço entre eles. Organize seu tempo e faça dele alguma conta, é o que recomenda o autor

“Se organizarmos racionalmente nossas atividades, poderemos ter mais tempo e aproveitar aquilo a que chamamos o intertempo, o somatório dos intervalos ou espaços entre dois ou mais tempos”

Adão de Assunção Duarte é Juiz Federal aposentado e professor universitário em Salvador (BA). .

Page 26: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE50 Revista de Cultura AJUFE 51

academia editoria

Disciplinando o uso de algemas pela

polícia, recentemente, em 22/08/2008, o

Supremo Tribunal Federal editou a Súmula

Vinculante nº 11, de seguinte teor:

“Só é lícito o uso de algemas em casos de

resistência e de fundado receio de fuga ou de

perigo à integridade física própria ou alheia,

por parte do preso ou de terceiros, justifica-

da a excepcionalidade por escrito, sob pena

de responsabilidade disciplinar, civil e penal

do agente ou da autoridade e de nulidade

da prisão ou do ato processual a que se

refere, sem prejuízo da responsabilidade

civil do Estado”.

A Excelsa Corte, por seu plenário, invocou,

como suporte de sua decisão, vários preceitos

constitucionais, entre eles o que coloca a

dignidade da pessoa humana como um dos

fundamentos do Estado Democrático de

Direito e os que, resguardando os direitos

fundamentais, proíbe o tratamento desumano

e degradante do indivíduo, a violação da

imagem das pessoas e o que assegura ao

preso o respeito à sua integridade física e

moral (CF – art.1º, III e art. 5º, III, X e XLIX).

Em nível infraconstitucional, baseou-se,

entre outros dispositivos, no artigo 284, do Có-

digo de Processo Penal (Não será permitido o

emprego de força, salvo a indispensável no

caso de resistência ou de tentativa de fuga do

preso); no art. 350, do Código Penal, que cuida

do crime de exercício arbitrário ou abuso de

poder (Ordenar ou executar medida privativa

de liberdade, sem as formalidades legais ou

com abuso de poder); e na Lei 4.898/65, que

trata do abuso de autoridade (Art. 4º. Constitui

também abuso de autoridade: a) ordenar

ou executar medida privativa de liberdade

individual, sem as formalidades legais ou

com abuso de poder).

DIREITO PROCESSUAL ANTERIOR

Nesse passo, o Supremo Tribunal, ao

impor a igualdade negativa (a de que,

como regra, ninguém pode ser algemado),

retrocedeu à tradição de nosso vetusto

direito, sob a égide da Corte Imperial, que

outorgou impositivamente, debaixo dos

Algemas: regra ou exceção?Por Paulo Fernando Silveira

Amparado pelo direito à vida e pela proteção à integridade física, previstosna Constituição, o autor tece argumentos contrários à Súmula Vinculante nº 11, que diz que o uso de algemas só é lícito em casos de resistência

canhões, a Constituição de 1824 (oferecida e jurada por

Sua Majestade), colocando nas mãos deste, ao lado do

Poder Executivo, o poder moderador, fonte de privilégios

espúrios para os homens ricos do país (o imperador

nomeava os senadores para o exercício vitalício do cargo,

nomeava e destituía os juízes de direito) e para o clero,

cujos bispos eram também por ele nomeados, sendo

que todos os membros da Igreja – o catolicismo era a

religião oficial do Estado – recebiam remuneração estatal

(padroado), como se fossem funcionários públicos (CF-

1824, arts.101 e 102).

Dentro desse contexto, não é de admirar o acolhimento,

na época, pelo menos na lei formal, das denúncias do

marquês de Beccaria (o criminalista italiano Cesare

Bonesana – 1738-1794), quanto aos cruéis tratamentos

dispensados aos criminosos nos presídios, impondo-se

sanção ao funcionário que conduzisse o preso “com ferros,

algemas ou cordas”, salvo o caso extremo de segurança,

justificado pelo condutor (artigo 28, do Decreto nº 4.824,

de 22/11/1871, que regulamentou a Lei nº 2.033, de

20/09/1871)1. Já imaginou um barão, um conde, um

duque ou um padre sendo algemado? Seria loucura!

Além do mais, naquele tempo em que a existência da

desigualdade era fato aceito passivamente, a criminalidade

e a violência eram mínimas: era normal deixar as portas

das casas abertas durante o dia.

VÁCUO LEGISLATIVO

O Supremo Tribunal Federal resolveu editar a

súmula vinculante em face do vácuo legislativo, isto é, da

ausência de norma específica na Constituição de 1988 e

de legislação própria sobre o uso de algemas, eis que o

comando, expresso no artigo 199, da Lei de Execução Penal

– Lei nº 7.210, de 11/07/84 (O emprego de algemas será

disciplinado por decreto federal) não foi, até o momento,

cumprido pelo Poder Executivo.

Todavia, a meu ver, com todo o respeito, a Excelsa

Corte de Justiça não foi feliz nessa sua surpreendente

e inovadora iniciativa de normatização, generérica e

apriorística, da conduta policial.

ATO DISCRICIONÁRIO CONFORME O COSTUME

Digo surpreendente porque até então, durante toda a

vigência do atual Código de Processo Penal, que é de 1941,

o uso de algemas sempre foi considerado ato discricionário

do policial que efetua a prisão. A discrição, na verdade, era

de fato duvidosa. Primeiro, porque o agente geralmente

não tinha algema para ser empregada. Seu uso com mais

intensidade só está acontecendo nos dias atuais. Depois,

porque a algema, como regra, só era aplicada na prisão

de pessoa pobre, considerada a priori como elemento

perigoso e violento, e raramente (se é que houve algum

caso) em gente rica e poderosa, sempre tida como gente

de bem, o que sempre causava repulsa e protesto da elite

dominante – inclusive pelos veículos de comunicação de

sua propriedade, quando alguém de seu meio era tocado

pela polícia ou condenado pelo Poder Judiciário.

Coincidência ou não, a Súmula Vinculante nº 11, de

agosto de 2008, foi editada logo após a prisão de um

1 Mirabete, Julio Fabbrini. Execução Penal. 5.ed.São Paulo: Atlas, 1993, pg.462.

“A Excelsa Corte de Justiça não foi feliz nessa sua surpreendente e inovadora iniciativa de normatização,

generérica e apriorística, da conduta policial”

Page 27: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE52 Revista de Cultura AJUFE 53

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banqueiro e de um ex-prefeito da capital

paulista, em que ambos foram algemados.

Foram ignorados os surdos clamores de uma

sociedade saturada de injustiças no sentido

de ser implementado já, de modo sério, para

valer para todos, indistintamente, o princípio

constitucional da igualdade. Ao contrário,

optou-se, nos moldes dos tempos imperiais,

por uma igualdade negativa, de difícil, senão

impossível, realização que, por isso mesmo,

continua privilegiando os poderosos.

Portanto, até o advento dessa súmula

vinculante, a utilização da algema, no ato da

prisão, constituía ato discricionário do agente

encarregado da missão. Agora, a súmula proibiu

o seu emprego, exceto nos restritos casos a

que se refere. Logo, presentemente, a vedação

da prática do ato de prevenção e contenção

constitui a regra. E a excepcionalidade da

medida ficou vinculada aos parâmetros auto-

rizados pela citada súmula. Em resumo, a

discricionariedade foi extinta de vez, restando

o ato vinculado apenas a casos restritíssimos,

em que o policial está autorizado a algemar

o preso, desde que justifique, por escrito, as

razões da tomada da medida extrema.

VALORES ATUAIS A SEREM PRESERVADOS

Entendo, porém, ao contrário, que – numa

interpretação realística, que venha ao encontro

das sentidas necessidades atuais de igualdade

e de segurança da população – perante nossa

Constituição Federal, a utilização da algema,

quando da prisão em flagrante delito ou por

ordem judicial, deve constituir a normalidade,

figurando como exceção a sua não utilização.

A meu ver, há valores maiores em jogo do que

os suscitados pelo Supremo Tribunal Federal.

O direito à vida e à segurança e a proteção

à integridade física do agente e de terceiro

são garantidos pela Constituição Federal. O

emprego da algema visa, fundamentalmente,

preservar esses valores.

Mesmo no caso de comparecimento do

preso a juízo – e todas as vezes em que o

detento estiver fora da cela, em ambiente

público –, este também deve ser algema-

do. Durante a audiência, o magistrado, se

achar conveniente, pode mandar liberá-lo,

ouvindo-se, antes, o agente policial sobre a

periculosidade do réu.

Acredito que o uso de algema no ato

da prisão se impõe porque vivemos tempos

modernos, de ostensiva violência pública, em

que os marginais, isolados ou em quadrilhas

organizadas, como regra, têm demonstrado

pouco respeito pela vida alheia, sem que se

possa esperar deles que atendam, pacífica e

mansamente, à voz de prisão e se disponham,

sem reação, a ser conduzidos, ordeiramen-

te, à delegacia de polícia. Mesmo os que

acatam a ordem devem ser algemados para

a própria segurança e proteção, bem como

do agente e de terceiros.

Assim, o emprego da algema, no ato da prisão, data

venia, torna-se imprescindível por várias razões, evidentes

por si, a saber: a) para proteção e segurança da integridade

física do policial encarregado da diligência contra possíveis

e inesperados atos de agressão do preso; b) para resguardar

a incolumidade física de terceiros, ante atos de rebeldia do

prisioneiro; c) para evitar a fuga do preso; d) para evitar a

destruição de provas; e, finalmente, e) para proteção do

próprio preso, que pode, inclusive, em desespero, atentar

contra sua própria vida (suicídio).

RESPONSABILIDADE DO AGENTE E DO ESTADO

Aliás, se o preso não for algemado e houver dano a

terceiros, o policial responderá civil e criminalmente por

negligência e o Estado por danos materiais.

Por isso mesmo, não se compreende porque, em se

tratando a prisão de um ato tão perigoso, o uso de algema

seja negativamente disciplinado, a priori, por quem não

corre qualquer risco de vida ou de ferimento. Ocorre-me

a figura do almirante que, em terra firme, quer dispor, por

meio de regulamento, sobre a conveniência de o capitão

de um navio – que se encontra em alto mar, em vias de

naufragar, ao enfrentar uma violenta borrasca – atirar a

carga ao mar ou arriar as velas.

Não está dito aqui que os eventuais excessos no uso

da algema (por exemplo, a duração por tempo maior do

que o necessário ou depois que o detido já estiver dentro

da cela) não possam ser declarados inconstitucionais,

mas isso numa análise do caso concreto, posteriormente

à ocorrência do fato. Quanto à exposição do preso pela

mídia, a televisão, a meu ver, pode mostrar o ato da prisão

e a condução do preso algemado, desde que as tomadas

sejam feitas na via pública, sendo proibidas dentro do

distrito policial. Inconstitucional, também, parece-me a

permissão de entrevista do preso no recinto da delegacia,

mormente sem a presença do advogado de defesa.

A PRISÃO COMO ÚNICO FATO CONSTRANGEDOR

É obvio que o emprego da algema constitui uma

intrusão menor na privacidade do indivíduo do que o

próprio ato da prisão. Este, sim, atenta contra sua liberdade,

sua dignidade, sua integridade moral e sua imagem pública.

Decorre daí que, se o ato da prisão for legal, seja em

flagrante delito ou por ordem judicial, o uso da algema é

constitucionalmente permitido, eis que, além de se tratar

do uso moderado de força contra o preso, autorizada por

lei, visando proteger interesses maiores, como o direito à

vida e à integridade física do agente policial e de terceiros,

causa muitíssimo menos constrangimento do que a

própria prisão.

O interesse do Estado (agindo publicae utilitatis

causa) de evitar risco de vida, ou de danos pessoais, de

seus agentes policiais ou de terceiros – que autoriza o

uso de algema – sobrepuja, de muito, o individual ( jus

libertatis), e mais ainda relativamente à pretensa ofensa

– pelo único fato do emprego da algema – à dignidade e

imagem daquele que é preso.

O EMPREGO DE FORÇA NO ATO DA PRISÃO

Há de se reconhecer que, inerente ao ato da prisão,

encontra-se a autorização legal do emprego de força coer-

citiva necessária à sua realização – quem pode refutar

isso? – por parte do agente que o executa. Logo, o ato de

algemar está inserido, naturalmente, como meio moderado

e imprescindível à implementação da medida, para que ela

ocorra, eficazmente, sem risco de vida ou de ferimentos

para o policial, para terceiros e para o próprio preso.

“A discricionariedade foi extinta de vez, restando o ato vinculado apenas a casos restritíssimos, em que o policial está autorizado a algemar o preso”

Page 28: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE54 Revista de Cultura AJUFE 55

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VALORES CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS

Evidentemente, o risco de vida que corre o policial que

executa a diligência merece maior proteção constitucional

do que uma pretensa agressão, reflexa e indireta, ao

direito de privacidade (ou intimidade) do preso pelo

uso da algema, quando, na realidade, o constrangimento

sofrido decorre, precisamente, do ato ostensivo da prisão,

em princípio legal e legítima. É o preço que o indivíduo

paga para o resguardo, a proteção e o bem da sociedade.

Como é a prisão que causa o constrangimento, se esta

for, no futuro, tida como ilegal, o indivíduo tem direito

a receber do Estado a indenização pelos danos morais

que sofreu em decorrência dela. Mas não pelo fato, por

si só, da utilização da algema. Todavia, se a prisão for

legal, não haverá constrangimento pessoal juridicamente

protegido, eis que ele decorrerá não da prisão, mas do

delito praticado, do qual haveria fortes indícios de que o

detido foi o seu autor.

Portanto, a meu ver, o uso das algemas (atividade

meio), longe de ser uma agressão contra a dignidade do

indivíduo, ou degradar a sua imagem – eis que ele vai

legalmente, afinal, ser aprisionado, isto é, ficar trancafiado

atrás das grades (objeto-fim) –, constitui um dever para

o agente policial, que deve empregar, indistintamente, o

instrumento de prevenção e de contenção em todas as

pessoas, sempre que ocorrer a prisão, a fim de que seja

dado cumprimento ao princípio constitucional da igualdade

de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza

(CF – art.5º, caput).

O USO DE ALGEMAS POR POLICIAIS NOS ESTADOS UNIDOS

Nos Estados Unidos, a U. S. Supreme Court, ao julgar

o caso Muehler v. Mena (2005)2 considerou constitucional

o uso de algemas numa simples busca e apreensão

domiciliar determinada pela Justiça, sem especificação

dos nomes dos eventuais ocupantes de uma casa, que

foi indicada com precisão apenas pelo endereço.

Iris Mena foi algemada numa garagem por duas a três

horas, durante o curso da diligência, enquanto dois poli-

ciais, autorizados por um search warrant judicial, faziam

a busca de armas letais e procuravam por evidências de

formação de quadrilha (gang membership) na residência

ocupada por ela e mais quatro elementos, todos não

identificados previamente.

Falando por uma Corte unânime – os julgamentos, lá,

são sempre feitos pelo plenário, de modo a tornar única

e indiscutível, sem divergências de turmas, a decisão do

tribunal e anunciadas como “Acórdãos da Corte”, ou seja,

a posição final da Corte, e não como voto de determinado

ministro, fato que valoriza muito, politicamente, o Poder

Judiciário –, o Chief Justice Rehnquist enfatizou que:

“A jurisprudência firmada sob a quarta emenda3 (a

que autoriza a busca domiciliar ou pessoal, semelhante

à prevista nos arts. 242 a 250, do Código de Processo

Penal brasileiro, também condicionada à existência de

fundadas razões que a autorizem), há muito reconhece

que o direito de se fazer uma prisão ou uma parada

investigatória carrega consigo o direito do uso de algum

grau de coerção física ou a ameaça de efetivá-la. (Fourth

Amendment jurisprudence has long recognized that the

right to make an arrest or investigatory stop necessarily

carries with it the right to use some degree of physical

coercion or threat thereof to effect it). (…) Não obstante

o risco de perigo, inerente à execução de um mandado

de busca por arma, ter sido suficiente para justificar o uso

de algemas, a necessidade de deter múltiplos ocupantes

tornaram o uso de algemas muito mais razoável. (Though

this safety risk inherent in executing a search warrant for

weapons was sufficient to justify the use of handcuffs,

the need to detain multiple occupants made the use of

handcuffs all the more reasonable)”.

Salientou, ainda, que “o uso de força pelos policiais,

em forma de algemas, para efetuar a detenção de

Mena na garagem, como a detenção de outros três

ocupantes da casa, foi razoável porque os interesses

governamentais superam a intrusão marginal (no direito

de privacidade do preso). (The officers’ use of force in

the form of handcuffs to effectuate Mena’s detention in

the garage, as well as the detention of the three other

occupants, was reasonable because the governmental

interests outweigh the marginal intrusion)”. Finalmente,

esclareceu que “os interesses governamentais não só

de deter pessoas, mas o de usar algemas, alcançam o

seu zênite quando, como aqui, um mandado judicial

autoriza a busca de armas e quando um procurado

membro da quadrilha reside no local. Nessa situação

inerentemente perigosa, o uso de algemas minimiza

o risco de danos tanto para os agentes como para os

ocupantes. (The governmental interests in not only

detaining, but using handcuffs, are at their maximum

when, as here, a warrant authorizes a search for

weapons and a wanted gang member resides on the

premises. In such inherently dangerous situations, the

use of handcuffs minimizes the risk of harm to both

officers and occupants)”.

A RELEVÂNCIA DO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO

O leitor menos avisado poderia alegar que o

direito constitucional americano nada tem a ver com o

brasileiro e que, lá, eles seguem a common law, como

costumeiramente se ouve falar. Esse argumento é

totalmente inconsistente, porque a Constituição americana

de 1787, além de ser escrita, é a mais rígida de que já se

ouviu falar: está em vigor há mais de 220 anos e recebeu

apenas 27 emendas. Lá, para uma emenda entrar em vigor

não basta o Congresso simplesmente editá-la. É preciso,

em respeito ao princípio federalista (a Constituição é

resultado do pacto celebrado entre a União e os diversos

Estados-Membros, não podendo, assim, ser alterada

unilateralmente por uma das partes), que três quartos das

assembleias estaduais a ratifiquem. Com a Constituição, as

leis escritas (statutes) do país devem guardar fina sintonia,

sob pena de inconstitucionalidade, ou seja, de serem

declaradas nulas, de valor algum. A common law constitui

uma exceção, sendo utilizada, principalmente, nas ações

de indenização por danos (tort actions).

Depois, porque a Constituição brasileira, desde a

primeira republicana de 1891, é, em sua estrutura de

divisão de poderes e de proteção aos direitos civis, uma

cópia da americana. Foi uma sábia opção feita por Rui

Barbosa que, abandonando o modelo francês, em que

o Judiciário não é poder político (o juiz é escravo da

lei), e o inglês, em que o Judiciário não é independente,

pois está subordinado ao Parlamento (a Câmara dos

Lords é sua última instância), resolveu libertar o fraco

Judiciário brasileiro, que vinha despojado de autonomia

– eis que, ao tempo do Império, o juiz era nomeado e

demitido pelo imperador, ao seu livre alvedrio – e dotá-lo,

como ramo governamental não eleito, do poder político

de anular leis feitas pelos poderes eleitos (Congresso

Nacional e Executivo).

O USO DE ALGEMAS EM PAÍSES CIVILIZADOS

Costumam dizer contrariamente ao uso de algemas

2 Muehler v. Mena 544 U.S. (2005).3 The Fourth Amendment to the United States Constitution provides: “The right of the people to be secure in their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall not be violated, and no Warrants shall issue, but upon probable cause, supported by Oath or affirmation, and particularly describing the place to be searched, and the persons or things to be seized.”

“Costumam dizer, contrariamente ao uso de algema, que nos países civilizados tal não acontece. Esse argumento não merece, data venia, consideração”

Page 29: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE56 Revista de Cultura AJUFE 57

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COMO TORNAR SEM EFEITO A SÚMULA VINCULANTE

Por isso que, agora, resta saber como tornar sem

efeito essa súmula vinculante do Supremo Tribunal, vez

que ela sintetiza a interpretação constitucional da matéria

feita pela Excelsa Corte e que, por isso mesmo, não

pode – nem deve –, no momento, ser descumprida. O

respeito à Instituição é mais importante do que opiniões

pessoais. Afinal, queremos viver num governo de leis e

não de homens!

Assim, vê-se que o governo não pode mais, a título de

regulamentar o art.199 da Lei de Execuções Penais, dispor

por decreto, de forma diferente. Tampouco ao Congresso

Nacional é permitido alterá-la diversamente por meio

de lei. Ambos terão que se ater, compulsoriamente, às

diretrizes traçadas pela Súmula Vinculante nº 11. A situação

presente, em termos legislativos, é bem pior do que a

anterior, antes da edição da referida súmula.

Entendo haver, portanto, só duas soluções para

tornar essa súmula sem efeito, se esse for o objetivo dos

que discordam de sua aplicação. Primeiro, o Congresso

Nacional deve elaborar uma emenda constitucional

por meio da qual superará o entendimento esposado

pelo Supremo Tribunal Federal. Para esse fim, ele está

constitucionalmente autorizado. Em virtude de nossa

forma republicana de governo, o Poder Legislativo é,

também, ao lado dos outros dois ramos governamentais

– todos harmônicos e independentes entre si –, legítimo

intérprete do texto constitucional. Em segundo, os

doutrinadores devem emitir comentários contra o teor

da súmula, de modo a sensibilizar o Supremo Tribunal

Federal a revogá-la.

que, nos países civilizados, a exemplo da Inglaterra (como se

os Estados Unidos não o fossem!), tal prática não acontece.

Esse argumento não merece, data venia, consideração.

Observe-se que a Augusta Corte brasileira extraiu

a vedação do uso de algemas de um contexto en-

volvendo diversos preceitos constitucionais, ignorando

o costume, já quase centenário, do uso do poder dis-

cricionário da polícia na matéria. Logo, não é pertinente

a comparação da medida com o costume de outra

nação. Na Inglaterra, é costume o policial não portar

arma de fogo, diversamente do nosso costume e das

leis brasileiras.

Por outro lado, se se pretende dar execução real,

de forma positiva, ao princípio da igualdade – um dos

sustentáculos de nossa Constituição – a Inglaterra também

não serve de base, eis que, lá, o princípio da igualdade

não é aplicado em sua plenitude, havendo evidentes

atenuações. Tratando-se de uma monarquia, nela há,

presentemente, rei, rainha, príncipes, duques e lords. Eles

desfrutam, em razão do costume, de diversos privilégios.

Por exemplo, só pode ser membro da Câmara dos Lords

quem for de estirpe nobre, em razão do nascimento.

Assim, lá, afora a educação e a cultura do povo, não existe

interesse, nos tempos modernos, em algemar, igualmente,

todas as pessoas que forem presas cometendo delitos.

Essa situação lembra a mesma existente aqui no Brasil

no tempo do Império!

Atento à diferença de costumes, a comparação, para

ser válida, há de ser feita com base em fundamentos

constitucionais. É de nossa Constituição, que expressa,

normativamente, nossa cultura, costumes e tradições, que

o STF extraiu reflexamente, de uma zona de penumbra,

a proibição do uso de algemas, já que não há dispositivo

claramente dispondo nesse sentido. Fora do âmbito da

Constituição, os costumes e tradições de outros povos

servem, apenas, para efeito de outras comparações, como

a sociológica, por exemplo.

Diferente do Brasil, onde as leis regem, aprioris-

ticamente, a conduta das pessoas (Ninguém será

obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão

em virtude de lei – CF – art.5º, II), é de se ver que

os anglossaxões não dispõem de Constituição escrita,

regendo-se por alguns éditos com força constitucional

(a Magna Carta, de 1215, The Petition of Rights, de

1628, o Habeas-Corpus Act, de 1679, o Bill of Rights de

1689 etc). Lá, no Reino Unido, sim, predomina o direito

consuetudinário (common law) pelo qual o costume

é que gera o direito, o qual é declarado, caso a caso,

inicialmente pelo Judiciário, formando o precedente

(stare decise). A lei, se vier (não há necessidade de

vir), acatará obrigatoriamente o precedente, podendo

ampliar direitos.

Penso, pois, que a comparação constitucional

mais própria, adequada e pertinente é a que é feita

entre a Constituição brasileira e a americana – que

é, e continua sendo, o seu mais forte, evidente e

exponencial paradigma.

De todo modo, o objetivo dessas considerações, ao

analisar a matéria, não é o de exaltar o direito alieníge-

na. Procurou-se resolver a questão, efetivamente, com

base na coerente e perfeita interpretação dos princípios

constitucionais inseridos em nossa Carta Política, tendo-

se em mente a nossa atual realidade – repleta de crimes,

violências e corrupções – e as legítimas aspirações do

povo brasileiro em alcançar, de imediato, a igualdade de

fato e de direito.Paulo Fernando Silveira é Juiz Federal aposentado, advogado e escritor membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro.

Referências1. Abraham, Henry J. and Perry, Barbara A. Freedom & The Court. 6.ed.New York: Oxford University Press, 1994.2. Garvey, John H. and Aleinikoff, T. Alexander. Modern Constitutional Theory: A Reader. St.Paul, Minn.: West Publishing Co., 1991.3. Silveira, Paulo Fernando. Devido Processo Legal. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey,2001.4. The Fourth Amendment to the United States Constitution of 1787.5. Tribe, Laurence H. American Constitutional Law. 2.ed.Mineola,New York: The Foundation Press, Inc., 1988.6. Mirabete, Julio Fabbrini. Execução Penal. 5.ed.São Paulo: Atlas, 1993.7. Rehnquist, William H. U.S. Supreme Court: Muehler v. Mena 544 U.S. (2005).

“O Congresso Nacional deve elaborar uma emenda constitucional pela qual superará o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal”

“O risco de vida que corre o policial que executa a diligência merece maior proteção constitucional do

que uma pretensa agressão, reflexa e indireta”

Page 30: Revista cultura Ajufe

Revista de Cultura AJUFE58 Revista de Cultura AJUFE 59

editoriasaiba mais

O QUE É A AMAZÔNIA?

A Amazônia é uma região delimitada pela bacia do rio

Amazonas e coberta, em sua maior parte, pela Florestal

Amazônia – conhecida também por Floresta Equatorial

da Amazônia ou Hiléia Amazônica. Essa é a maior flo-

resta tropical do mundo e possui 60% de cobertura

em território brasileiro. Entre as características, estão

árvores com copas densas e abundantes, vegetação

rasteira muito escassa e fauna composta, em geral, por

animais de pequeno e médio porte que, em sua maioria,

habitam as copas das árvores, como papagaios, tucanos,

pica-paus, morcegos, macacos, além de bichos como

roedores e marsupiais.

A bacia do rio Amazonas é formada por importantes

afluentes como o rio Negro, o rio Tapajós e o rio Madeira.

O principal deles, o rio Amazonas – considerado o mais

volumoso do mundo –, nasce na cordilheira dos Andes e

atravessa, além do Brasil, outros oito países da América do

Sul: Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa,

Peru, Suriname e Venezuela. No Brasil, o chamado bioma

Amazônia ocupa 49,29% do território nacional e é sete

vezes maior que a parte francesa da Amazônia.

Para efeito de políticas públicas e legislação, o Estado

brasileiro definiu o conceito de Amazônia Legal. Esse

termo engloba uma área composta por nove estados

brasileiros pertencentes à bacia do rio Amazonas. Essa

denominação reúne regiões de semelhantes problemas

econômicos, políticos e sociais, que foram agrupadas na

tentativa de melhor planejar o desenvolvimento social e

econômico da região amazônica.

A Amazônia Legal abrange os estados do Acre, Amapá,

Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocan-

tins, além de parte do Maranhão. Ao todo, essa área

corresponde a cerca de 61% do território brasileiro, o que

representa aproximadamente 5,2 milhões de km².

Segundo levantamento do Instituto Homem e Meio

Ambiente da Amazônia (Imazon), desse total de área,

2,6 milhões de km² corresponde à região conservada

da Amazônia, com apenas 5% de cobertura florestal

desmatada; 1,2 milhão de km² é coberto por cerrados,

campos e campinaranas; 0,514 milhão de km² é área

desmatada, em antigas zonas de colonização, e cerca

de 0,7 milhão de km² situa-se em novas fronteiras de

desmatamento e ocupação.

O avanço da fronteira na Amazônia é um processo

relativamente recente. Ele foi impulsionado pelo governo

brasileiro nas décadas de 1960 e 1970, por meio de

incentivos à ocupação e integração da Amazônia. De

acordo com o Imazon, nas décadas de 1980 e 1990,

apesar da redução dos investimentos públicos em

projetos de infraestrutura, a ocupação da região se

intensificou com o boom da atividade madeireira

associada ao crescimento da pecuária, do agronegócio

e da especulação de terras públicas.

Os encantos da AmazôniaReportagem de Renata Camargo

Nesta 7ª edição, a Revista de Cultura AJUFE homenageia a Amazônia. Aos leitores, os organizadores oferecem ricas histórias e variadas informações sobre esse mundo arraigado de florestas com verde intenso e cores mil da arte e cultura dos povos amazônicos. Nesta reportagem, serão apresentadas as principais manifestações culturais e artísticas dos povos que habitam os estados considerados da Amazônia, dados importantes sobre espaço e ocupação do território, além de curiosidades sobre essas terras que compõem a maior floresta tropical do mundo. Aproveitem!

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em formato de cabeça de gado) e exploram temáticas

regionais como rituais indígenas e costumes ribeirinhos,

por meio de alegorias e encenações.

BOI CAPRICHOSO

O Boi-Bumbá Caprichoso tem origem atrelada à histó-

ria dos três irmãos da família Cid: Raimundo, Pedro e Félix.

Vindos de Crato, no Ceará, os irmãos Cid embarcaram

rumo à Amazônia em busca de uma nova vida. Devotos de

São João Batista, eles prometeram a este um boi de pano

caso tivessem êxito na nova terra. Fruto da promessa, o boi

dos irmãos Cid surge em 20 de outubro de 1913. Anos

mais tarde, Félix Cid, repentista, tornou-se o amo do Boi.

O Boi Caprichoso é representado pelas cores azul e

branca. No passado, antes do grupo se tornar uma agre-

miação folclórica, o Boi era passado de uma família para a

outra, cujo chefe da casa se tornava oficialmente o dono

do Boi e tinha como missão cuidar e preparar a alegoria

para as tradicionais brincadeiras da época, que eram feitas

na rua em meio a fogueiras acessas por foliões.

Conta-se que o nome Caprichoso surgiu para definir

algo “intrínseco” ao boi e às pessoas que cuidam dele,

que seriam cheios de capricho. O sufixo “oso”, significando

“provido ou cheio de glória”, somado a “capricho” significaria

“extravagante e primoroso”.

BOI GARANTIDO

O Boi vermelho e branco é conhecido como Boi-Bumbá

Garantido. Esse boi foi criado por Lindolfo Monteverde,

neto de um ex-escravo de origem maranhense. Crescido

em meio a histórias de um boi que dançava para divertir

adultos e crianças – feito da carcaça de uma rês morta e

coberto de tecido –, Lindolfo queria manter a tradição da

brincadeira com o boi, contada por seu avô.

Foi em 12 de junho de 1913, véspera do dia de

Santo Antônio, que Lindolfo fundou o Boi Garantido.

Anos depois de sua fundação, o Boi, que começou

como uma brincadeira junina, tornou-se coisa séria.

Lindolfo ficou muito doente e fez uma promessa a

São João Batista: se melhorasse, o seu boizinho sairia

às ruas enquanto ele estivesse vivo. A partir de então,

todos os dias 12 de junho (véspera de Santo Antônio)

e 24 de junho (São João), o Garantido dança na frente

das casas, animando os foliões.

O nome Garantido foi dado por Lindolfo porque

nas disputas dos bois-bumbá nas ruas, a cabeça de seu

boizinho nunca quebrava ou ficava pendendo pro lado.

Então, o criador dizia que seu boi “sempre saía inteiro,

isso era garantido”.

FESTIVAL DE CIRANDA DE MANACAPURU

Entre danças e músicas, a ciranda é uma das

manifestações populares que se apresentam fortemente

na cultura amazônica. A ciranda é expressa por meio de

cantigas de roda e movimentos desenvolvidos a partir

de uma grande roda, em que, para compor os sons, são

utilizados instrumentos de pau, de corda e de sopro, como

curimbós, maracas, ganzás, banjos, cacetes e flautas.

O Festival de Ciranda de Manacapuru é a mais famosa

das festividades de grupos de ciranda. Essa manifestação

cultural teve início com o professor José Silvestre do

Nascimento e Souza, que – após aceitar a proposta do

diretor da época do Colégio Comercial Sólon de Lucena,

em Manaus, para montar um cordão folclórico para a

Para se ter ideia do crescimento ocupacional na Ama-

zônia, a população na região aumentou de 5,4 milhões de

habitantes, em 1960, para 22,5 milhões, em 2004, o que

corresponde hoje a cerca de 12% da população brasileira.

Desses, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (Ipea), a maioria (73%) vive nas cidades e apenas

27% está no campo. Em 1970, essa situação era invertida,

sendo que 64% da população amazônica vivia em meio

rural e apenas 36%, em urbano.

A ARTE E A CULTURA AMAZÔNICA

Segundo a mitologia grega, “amazonas” que dizer

“mulher guerreira”. Conta a lenda que as amazonas faziam

parte de uma tribo de mulheres que montavam a cavalo,

manejavam arco e flecha e viviam sem admitir a presença

de homens em suas terras. Até mesmo os bebês do sexo

masculino eram rejeitados e mortos ao nascer. Aventureiros

que ousavam desbravar terras desconhecidas morriam de

medo só de pensar em cruzar o caminho das amazonas.

Foi em 1541, descendo o rio em busca de ouro na

região dos Andes, que o espanhol Francisco de Orellana

deparou-se com índias icamiabas – que, segundo o folclore

brasileiro, seriam de uma tribo de mulheres guerreiras, de

sociedade rigorosamente matriarcal e que não aceitavam

a presença de homens. Assustado com as guerreiras às

margens do rio, Orellana e sua tripulação teria chamado

as indígenas de “amazonas”, em referência às bravas

mulheres da mitologia grega.

A cultura amazônica é rica em diversidade étnica

e artística. É uma cultura bastante influenciada pelas

manifestações dos povos indígenas e negros descendentes

de africanos, com uma riqueza inimaginável oriunda

também da cultura ribeirinha. São os ribeirinhos, que

vivendo ao longo das margens dos rios, oferecem um

riquíssimo apanhado de histórias, ritmos, vibrações e mitos

à cultura amazônica. As lendas da Amazônia são contadas

em festivais como o Festival Folclórico de Parintins e o

Festival de Ciranda de Manacapuru.

FESTIVAL FOLCLÓRICO DE PARINTINS

Um dos principais palcos das manifestações cul-

turais da Amazônia é o Festival Folclórico de Parintins,

no estado do Amazonas, um evento conhecido interna-

cionalmente. É no festival que acontece a disputa entre

grupos de boi-bumbá (ou bumba-meu-boi), que, por

meio de artes cênicas, músicas, cenografias e figurinos,

expressam toda a grandiosidade da cultura amazonense,

que aparece mesclada com elementos das culturas

ibérica, árabe e indígena.

A cada ano, em Parintins – cidade a 420 km da

capital, Manaus, na ilha fluvial de Tupinambara e lo-

calizada no Baixo Amazonas, próximo à fronteira com

o Pará –, grupos ligados aos bois-bumbá Caprichoso

e Garantido fazem da rivalidade uma show de arte,

cores e músicas. Nos primeiros dias de festival, vários

grupos folclóricos se apresentam fantasiados, com

representações de lendas ao som de toadas e cantos

indígenas e teatralização de rituais.

Mas é no último fim de semana do mês de junho

o apogeu da festa. É nessa data que o festival popular

se transforma em uma das maiores festas folclóricas

do mundo. A céu aberto, as duas agremiações – o Boi

Garantido, de cor vermelha, e o Boi Caprichoso, de cor

azul – se apresentam no Bumbódromo (arena, projetada

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escola – teria ensinado aos alunos a “Dança da Ciranda”,

que inicialmente ficou conhecida como Ciranda de Tefé.

O que era uma brincadeira, tornou-se um festival com

competição entre grupos de ciranda. Desde 1997, a festa

traz equipes que, por meio da dança, das fantasias, das

coreografias, dos ritmos e das músicas, se apresentam

no Cirandódromo, em Manacapuru, município localizado

a cerca de 84 km de Manaus.

Entre os elementos da ciranda estão o Cupido Deus do

amor, um incentivador de paixões, representado por uma

criança com arco e flecha; o Galo Bonito, personagem que

homenageia as damas da cidade de Tefé; e o Carão, um dos

mais importantes personagens da ciranda, representado

por um pássaro negro que é perseguido pelo caçador.

DANÇAS TÍPICAS

A cultura amazônica é muito rica em danças típicas. Uma

das mais conhecidas é a Dança do Carimbó. Tradicional do

Pará, o Carimbó é conhecido, por alguns estudiosos, como

a única dança do país em que se percebe a influência dos

três povos que formam a sociedade brasileira: o batuque

africano, os instrumentos indígenas e a coluna curvada, e

o estalar de dedos dos portugueses.

A dança é interpretada por casais que iniciam os passos

em duas fileiras e vão dançando em voltas e galanteios

entre si. As mulheres, cheias de encanto, costumam tirar

sarros dos companheiros. Um dos pontos altos da dança é

quando o cavalheiro tenta apanhar com a boca um lenço

que a companheira estendeu no chão.

Também entre as manifestações populares, está o xote

bragantino, do Pará. Com origem nas danças folclóricas

da Escócia, na segunda metade do século XIX, o xote

tem influência de vários ritmos de diversos países, entre

eles a valsa vienense. No Pará, o xote foi cultivado pelos

portugueses, sendo, anos depois, fortemente influenciado

pelos escravos africanos, que fundaram a Irmandade de

São Benedito, no município de Bragança.

Foi lá que teve origem a Marujada, uma das mais

tradicionais festas populares do Pará, que é realizada para

louvar a São Benedito. Trata-se de um auto dramatiza-

do, constituído basicamente por mulheres, enquanto os

homens são tocadores ou, simplesmente, acompanhantes.

Em fila, a dança é feita de passos curtos e ligeiros, em

volteios rápidos, ora numa direção, ora em outra.

O Lundu também é uma dança de origem africana

muito conhecida na Ilha de Marajó, no Pará. Composta

de movimentos sensuais, o Lundu foi, por muito tempo,

considerado uma dança vulgar no Brasil. Mas, aos poucos,

essa dança ressurgiu de maneira mais comportada. Ela

simboliza um convite que os homens fazem às mulheres

“para um encontro de amor sexual” e se desenvolve por

meio de movimentos ondulares de grande volúpia.

Também muito expressivo no folclore amazônico

é a Dança do Siriá, a mais famosa dança folclórica

do município de Cametá (PA). É considerada uma

expressão de amor e gratidão ante um acontecimento

que, para indígenas e escravos africanos, representava

algo sobrenatural, como uma benção. Ela se inicia

mais lentamente e, à medida que os versos vão se

desenvolvendo, o ritmo aumenta a velocidade. Os

passos são feitos por pares que fazem volteios com o

corpo curvado para um lado e para o outro.

VOCÊ SABIA…

• O jornal inglês The Guardian elegeu a praia Alter do Chão, localizada

às margens do rio Tapajós, no oeste do Pará, como a melhor praia do

Brasil. Antiga aldeia dos Borari, a praia ficou à frente de paraísos como

Fernando de Noronha, em Pernambuco, e Jericoacoara, no Ceará;

• Pesquisa divulgada na revista internacional Nature Geoscience,

mostra que a poeira do deserto do Saara, na África, tem influência

importante no regime de chuvas da Amazônia;

• Durante o ciclo da borracha no Brasil (1870-1912), a Amazônia

foi responsável por quase 40% das exportações brasileiras. O

Teatro Amazonas, cartão postal de Manaus, é símbolo da riqueza

dessa época;

• Quando os portugueses aqui chegaram, os indígenas brasileiros

eram mais de seis milhões. Hoje, o país tem apenas cerca de 300

mil índios. Enquanto a população do Brasil cresceu 27 vezes, a dos

índios diminuiu 20 vezes;

• Na época do descobrimento, havia em torno de 1,3 mil línguas

indígenas no Brasil. Hoje, restam apenas 170;

• A vazão do rio Amazonas corresponde a 20% da vazão conjunta de

todos os rios da terra;

• O maior peixe de água doce do mundo é encontrado no Amazonas.

Trata-se do pirarucu, que chega a 2,5 metros de comprimento e peso

de 250 quilos;

• A vitória-régia, um dos símbolos da Amazônia, chega a medir dois

metros de diâmetro.

FONTESWikipédia – A enciclopédia livre

Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia

www.imazon.org.br

Enciclopédia Virtual sobre Amazônia – Amazônia de A a Z

portalamazonia.globo.com/amazonia_az.php

Amazônia.org – http://www.amazonia.org.br

WWF Brasil – www.wwf.org.br

www.pa.sebrae.com.br

www.manacapuru.am.gov.br

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outras palavras

A noite ameaçando ir embora. O preto

virando cinza. O sono, o cansaço da véspera,

de todas as vésperas, inúteis, vazias.

Caminhos já decorados. Árvore de um

lado, árvore de outro; um morrinho lá, outro

mais longe. Abismos, pontes, pontezinhas,

pontonas. Desce montanha, sobe montanha,

curvas, repetições, tédio.

O motorista desliza com indiferença,

sabendo da inutilidade das idas e das vindas,

das noites que surgem e que se vão, sempre

adeus, sempre noites. Das madrugadas que

ameaçam auroras, mas que só trazem dias

comuns, iguais.

Um clarão surge lá longe, ameaçando

incêndio. É o sol que tenta despertar o mundo

para a alegria, enfeitando-o todo, esverdeando

as plantas, clareando a areia, azulando o

mar, pintando as casas, os parques, as flores,

acordando as crianças.

O motorista pensa na sua infância, naquela

criança raquítica que ficou lá atrás, lá longe,

tentando entender o mundo, decifrar a vida.

Lembra-se de sua mãe, doente, lavando

roupa, sempre se queixando de dores, da

pobreza, do mundo.

Sua mãe morta e ele pulando corda,

pulando, pulando, para se confundir.

Seu pai, bêbado irresponsável, largando

sua mãe morta e voltando ao botequim

para beber mais ainda. O pai sumindo dias

e dias, reaparecendo, dando-Ihe surras e

desaparecendo para sempre.

O barraco se desmoronando, a chuva

entrando. As cobertas rasgando, o frio gelando.

Dor de dente, dor nas costas, dor de viver, dor

de existir, dor de só não ter.

Vontade de crescer para trabalhar, casar,

ter filhos e se compensar neles.

A chuva ameaçando, a chuva despen-

cando. Tempestade, já conhecida e manjada,

finge que não vem. A nuvem lá longe, depois

vai chegando. O parabrisas não funcionan-

do direito, o mundo todo embaçando; as

figuras se confundindo todas. Ter que parar

o caminhão, ficar sem ar, vendo o mundo

derreter-se lá fora.

O mundo limpo, com arco-íris e tudo. De

novo na estrada, correndo, correndo, como se

tivesse um destino.

A vontade de possuir alguém, de quem

pudesse ter saudades, para ter vontade e ânimo

de ir, ou de voltar. Alguém para fazer compa-

nhia à sua lembrança, ao seu pensamento.

Alguém que não o deixasse confundir a

lua com a bolota da Shell. Que o fizesse feliz

vendo as estrelas.

Que transformasse as montanhas, as ár-

vores, o céu, as pontes, pontezinhas, pontonas,

a chuva, o arco-íris, tudo em emoção.

Vera Brant é escritora e empresária.

O motorista de caminhão na estradaPor Vera Brant