Robert de Boron - Merlim (Rev)

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    Depois que Brs ficou pronto, Merlim contou-lhe fielmente todas as provas de

    amor que Jesus Cristo havia dado a Jos de Arimatia. Contou-lhe em seguida a

    estria de Alan e de seus companheiros, como havia partido da casa de seu pai e

    como Pedro havia partido e como Jos se desfez do Santo Graal e como morreu.

    Explicou como os diabos, diante desses acontecimentos, reuniram-se em conselho,

    porque haviam percebido que tinham perdido seu antigo poder sobre os homens.

    Considerando o prejuzo que os profetas lhes haviam causado, decidiram

    unanimemente gerar um homem...

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    Robert de Boron

    Merlim

    Romance do sculo XIII

    Traduzido do francs antigo,

    Com apresentao e glossrio, por Heitor Megale

    Imago

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    Copyright Imago Editora, 1993

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte.

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.____________________________________

    B741m

    93-0850

    _____________________________________

    Todos os direitos de reproduo, divulgao

    E traduo so reservados. Nenhuma parte

    Desta obra poder ser reproduzida por fotocpia,

    Microfilme ou outro processo fotomecnico.

    IMAGO EDITORA LTDA.

    Rua Santos Rodrigues, 201-A Estcio

    CEP 20250-430 Rio de Janeiro RJ

    Tel: 293-1092

    Impresso no Brasil

    Printed in Brasil

    Boron, Robert deMerlim / Robert de Boron, traduzido do francs antigo,

    com apresentao e glossrio de Heitor Megale Rio deJaneiro: Imago Ed., 1993.

    208 p. (Coleo Lazuli)

    Traduo da edio de 1980 de Alexandre Micha de:Merlim

    ApndiceBibliografiaISBN 85-312-0274-4

    1. Fico francesa antiga. I. Megale, Heitor, 1940-II. Ttulo. III. Srie.

    CDD 843CDU 840-3

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    SumrioSumrioSumrioSumrioApresentao...................................................................................................................5Glossrio.......................................................................................................................14

    Merlim.........................................................................................................................16Bibliografia.................................................................................................................261

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    ApresentaoApresentaoApresentaoApresentao

    Um menino de dezoito meses, ao ver sua me lamentar-se dizendo que

    em m hora Deus havia permitido o nascimento e a gerao do filho em seu corpo,

    para sua morte e seu suplcio, olha para ela, ri e diz: "Querida me, no temas nada,

    no morrers pelo pecado de que nasci."

    Na iminncia de sua me ser levada fogueira, esse menino enfrenta

    irritado o juiz e fala: "Sei quem meu pai melhor do que vs, o vosso; e vossa me

    sabe melhor quem vos gerou do que a minha, a mim."

    Esse menino Merlim, filho de uma donzela com um incubo. Depois de

    desmascarar a me do juiz, comea a fazer reverter o quadro de condenao que se

    configurava em relao a sua me, e explica "mais por amizade do que pelo medo

    do poder do juiz", que, de fato, filho de um demnio que seduziu sua me.

    Demnios desta espcie que seduzem mulher chamam-se ncubos e vivem no ar. E

    Deus permitiu continua ele explicando a quantos se encontram no tribunal , que

    esse demnio me desse o conhecimento das coisas feitas e ditas e acontecidas. Por

    isso que eu sei a vida que a me do juiz levou. E Nosso Senhor, para recompensar

    a virtude de minha me, seu sincero arrependimento, pela penitncia que lhe imps

    o ermito, e pela obedincia aos mandamentos da nossa santa Igreja, deu-me a

    graa de conhecer, em parte, o futuro.

    Ainda menino, d mais provas de conhecimento do passado, como na

    cena em que os emissrios do rei o levam corte. Um dia, passam por uma vila,

    onde se enterrava uma criana. Homens e mulheres acompanham o corpo com

    grandes manifestaes de dor. Ao ver essa dor e os padres e os clrigos que

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    cantavam e levavam o corpo com pressa a enterrar, Merlim comea a rir e pra. A

    quem lhe pergunta por que ria, responde que era pela maravilha que presenciava:

    "...na frente vai o clrigo que canta; pois ele que deveria lamentar-se no lugar do

    homem. O menino que est morto e pelo qual o homem chora filho do clrigo que

    canta." E prova disso depois, o testemunho da me da criana.

    O riso de Merlim percorre a narrativa, prenunciando sempre o controle do

    uso da magia da personagem.

    Merlim controla tambm a prpria narrativa. Confia a Brs a misso de

    meter em escrito toda a matria que lhe passar e profetiza que nunca a estria de

    uma vida ser ouvida com tanto agrado, como a de Artur e a dos homens de seu

    tempo. E quando Brs tiver acabado o livro e contado as vidas deles a todos, seu

    mrito ser igual ao daqueles que vivem na companhia do santo vaso que se chama

    Graal, e seu livro ser chamado Livro do Graal, e as pessoas tero grande prazer

    em escut-lo, porque muito pouca coisa dele, de palavras ou aes contadas,

    deixar de ter proveito, ou ser letra morta.

    Merlim, essa personagem de uma origem misteriosa principiada num

    conclio dos demnios, atua na Inglaterra, num tempo em que o cristianismo apenas

    l chegara e a ilha no havia tido ainda nenhum rei cristo.

    As mais antigas informaes acerca de Merlim nem sempre coincidem.

    Os poemas galeses de Mirdim, sem dvida, forma literria de folclore mais antigo,

    apresentam a personagem com traos que caracterizam a figura do mago como um

    heri, um chefe guerreiro ou um bardo chamado Mirdim. Tocado pela loucura ao

    cabo de uma batalha, refugia-se na floresta de Calednia, onde passa a viver como

    selvagem ocupando-se em profetizar acerca da vida poltica de seu povo em conflito

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    com povos rivais1. Triads, versos da antiga literatura galesa que cantam importantes

    assuntos da tradio do povo gales, numa estrutura de grupos de trs, traz Merlim

    embarcando numa nave de cristal com seus nove bardos sbios e nunca mais se

    soube dele2. Outra lenda de Gales apresenta Merlim num palcio de cristal na ilha

    de Bardsey, cercado dos treze tesouros da Gr-Bretanha. De acordo com essa

    lenda, o mago estaria fadado a permanecer nesse palcio, num sonho encantado,

    at o dia em que Artur voltasse da Ilha de Avalon, que o lugar para onde o rei

    havia seguido com Morgana e as fadas, depois da ltima batalha contra seu filho

    incestuoso Morderete3. A estria mais repetida nos romances da poca, no entanto,

    d outro destino a Merlim, sob os encantamentos de Viviane, num palcio

    encantado, na floresta de Broceliande4.

    No apenas os destinos de Merlim so diferentes, como tambm variadas

    so as verses de sua origem. Numa tradio considerada galesa, mas que pode

    remontar a uma lngua comum anterior distino entre o gals, o cornualhs e o

    breto, situa-se a lenda de Myrddin Willt, o Merlim Silvestre, o Merlim da floresta de

    Calednia. Em Monmouth, encontramos Merlim Ambrsio, o mago do rei Aurlio

    Ambrsio, que teria vivido cerca de um sculo adiante daquele. Talvez fosse mais

    acertado considerar esses dois um s, tal a variedade de figuras que Merlim

    1 A. O. H. Harman, "The Welsh Myrddin Poems" in Roger Dhernian Loomis (org.), Arthuran Literaturein the Middle Ages. A Collaborative History (Oxford: Clarcnclon Press, 1959), p. 20-30.2 Rachel Bromwich. Trioedd Ynis Prydein(Cardiff: University of Wales Press, 1961).3 o que ocorre em A morte de rei Artur, no Ciclo do Pseudo Map ou Vulgata da matria daBretanha, bem como na Demanda do Santo Graal, na Post-Vulgata. Da primeira destas obras, htraduo brasileira recente, A Morte do Rei Artur (So Paulo: Martins Fontes, 1992) e da outra, hedio em portugus contemporneo: Demanda do Santo Graal (So Paulo: T. A. Queiroz Editor,Editor, 1 reimpr., 1989). Na obra tardia de Malory, The Whole Book of King Arthur and His NobleKnights of lhe Round Table, titulo alterado pelo editor Ccazton para Le Morte DArthur, tambm estpresente a cena.4 o que se pode constatar Agravain, ed. H. Oskar Sommer, The Vulgate Version of the ArthurianRomances, vol. V: Le Livre de Lancelot del Lac, parte 3; no Galehaut, na mesma edio de Sommer,

    vol. III, Le livre de Lancelot del Lac, parte l e vol. IV, parte 2; ainda na mesma edio de Sommer, vol.VII, Le Livre d'Artus; em La Suite du Merlin, na edio de Gaston Paris: Mertin roman en prose duXIII. siecle, publi d'apres l ms. Huth; e na Vulgate Merlin Continuation, novamente na edio deSommer, vol. II: L'Estoire de Merlin.

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    assume, como se ver, por exemplo, ao longo deste livro. O que comum s lendas

    brets que estariam entre as fontes deste livro que Merlim um mago com

    poderes sobrenaturais exercendo a funo de profeta e protetor dos bretes.

    Quando a personagem chega Historia Regum Britanniae, de Geoffrey of

    Monmouth, seus traos, provenientes porventura de variadas fontes, no sofrem

    alteraes to relevantes. Nessa obra, em sua primeira apario, encontramo-lo j

    moo, na corte de Vortigerne, sendo agredido por outro jovem que o desafia por

    ignorar quem seu pai5.

    Geoffrey of Monmouth declara ter traduzido as Profecias de Merlim do

    original gals para o latim, a pedido de Alexandre, bispo de Lincoln6. Entre outras

    obras em latim que trazem essas profecias com as possveis diferenas, ou

    simplesmente fazem referncia a elas, est a Historia Ecclesiastica, de Ordericus

    Vitalis7.

    Historia regum Britanniae, de Geoffrey of Monmouth inspirou Wace of

    Jersey em seu Roman de Brut, obra que, para alguns estudiosos, considerada

    como aquela Historia posta em versos. Essa obra normanda , sem dvida, o elo de

    ligao entre as fontes primitivas e o grande desenvolvimento que atingir a

    chamada matria da Bretanha. Robert de Boron deve muito ao Brutde Wace, tendo

    5 Geoffrey of Monmouth, Historia Regum Britanniae, ed. de Jacob Hammer (Cambridge: TheMediaeval Academy of America, 1951).6 Na obra referida na nota anterior, nos Livros II e VII.7 Orderici Vitalis Angligenae coenobii Uticensis monachi, Historiae Ecclesiasticae libri tredecim, ed.Auguste Le Prevost (Paris: 1852), apud Michael J. Curley, "A New Edition of John of Cornwall'sProphetia Merlini" in Sepeculum, LVII, fasc. 2, 1982, p. 217-249.

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    utilizado at mesmo a grande inovao de Wace: o estabelecimento da tvola

    redonda por Artur8.

    As circunstncias do nascimento do mago so as mesmas em Geoffrey e

    em Wace. Geoffrey conta ter lido nos filsofos e cm numerosas histrias que muitos

    homens foram concebidos da mesma forma que Merlim. Como Apulio sustenta a

    respeito do deus de Scrates, habitam entre a lua e a terra certos espritos que

    chamamos ncubos. Eles participam ao mesmo tempo da natureza humana e da

    anglica e, quando lhes agrada, assumem figura humana para seduzir mulheres. M

    de ter sido assim que este menino nasceu. Wace, em seus versos, no muito

    diferente. O que se nota que natureza humana acrescenta-se a diablica, que

    alis no seno a anglica decada9.

    Em Robert de Boron, h um projeto de maiores propores, com um

    programa definido. Atendo-nos inicialmente apenas ao Merlim, convm observar que

    o estatuto e a funo da personagem passa por uma grande transformao, na

    medida em que o autor a situa dentro da histria da humanidade, num momento

    crucial posterior redeno. Percebendo o grande risco de uma perda total, os

    demnios resolvem, em concilio, dar sua rplica decidindo criar o avesso de Cristo

    por meios que violam as leis ordinrias da criao: o diabo fecunda um corpo

    feminino, assim como o Esprito Santo fizera com a Virgem. O esperado fruto

    diablico teria a misso de desviar o povo de Deus do caminho traado por Cristo e

    conquist-lo para os domnios infernais.

    8 Wace of Jersey, Le Roman de Brut, edio de Yvor Arnold (Paris: SATF, 1938): "Pur les noblesbaruns qu'il out, / Dunt chescuns mieldre estre quidout, / Chescuns se teneit al meillur, / Ne nuls n'ensaveit le peiur, / Fist Artur Ia Ronde Table / Dunt Bretun dient mainte fable." (versos 9747-9752).9 Cf. entre outras passagens bblicas: Luc. X, 18 e Apoc. XII, 7 - 10.

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    Mas os demnios fracassam. As razes desse fracasso, o prprio Merlim

    as expe a seu fiel amigo Brs: "Eles (os demnios), por sua vez, no foram sbios

    quando decidiram que um deles engravidaria minha me, como de fato engravidou:

    o vaso que me recebeu era muito puro para pertencer a eles, e a virtude de minha

    me prejudicou-lhes muito o plano. Se me tivessem feito em minha av, no teria

    tido o poder de conhecer a Deus e acabaria pertencendo a eles, pois ela levou m

    vida e por causa dela aconteceram todas as catstrofes que se abateram sobre meu

    av e sobre minha me..."

    Em conseqncia, pois, da virtude de sua me, este filho de um incubo

    confirma as esperanas de salvao para toda a humanidade. Esta a primeira

    grande renovao que Robert de Boron opera na tradio da personagem de

    Merlim.

    A segunda, estreitamente vinculada a essa, foi acoplar Merlim e o Graal

    de modo to ntimo que o prprio Merlim tornou-se autor da estria, na medida em

    que ele quem passa os fatos a serem registrados para seu fiel escriba e confidente

    Brs. Dessa forma, cumpre Merlim a funo de preparar os reis e o povo da

    Inglaterra para a vinda do cavaleiro que h de "dar cima" s aventuras do reino de

    Logres10: o cavaleiro digno de ocupar o lugar vazio da mesa do Graal a mesa de

    Jos de Arimatia , smbolo daquele lugar deixado vazio por Judas na mesa da

    ceia de Cristo com seus discpulos, a primeira das mesas. Esse cavaleiro, flor da

    cavalaria, preencher a vaga na terceira mesa, a tvola redonda fundada pelo rei

    Artur.

    10Dar cima uma expresso corrente nos textos arturianos medievais ibricos, com o significado delevar a cabo, levar a bom termo, acabar, terminar com xito.

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    Em conseqncia dessas duas grandes inovaes, a trama recebe as

    adaptaes necessrias. Na infncia, Merlim vai confirmando seu dom de profecia,

    ao longo de episdios que arrancam a admirao dos circunstantes. Com o episdio

    da torre de Vortigerne, ele conquista a fama de sbio e desmascara os conselheiros

    do rei que o queriam morto e seu sangue misturado na massa da reconstruo da

    torre. Essa sabedoria s cresce com a prudncia demonstrada no modo como

    persegue o usurpador, vence os invasores e elimina um dos filhos de Constncio

    para evitar lutas fratricidas. Merlim ganha a estima e a admirao de todos, sabe

    estimular os dois irmos, provoca Uter na relao com sua amiga e finalmente,

    utilizando-se do dom de transformar-se e de transformar os outros, favorece os

    amores de Uter por Igerne, provocando assim o nascimento de Artur.

    Essa a grande cena da origem de Artur. Se em Geoffrey of Monmouth e

    em Wace, ela pode ter chocado, porque Uter e Igerne casam-se logo e Artur cresce

    ao lado de seus pais, herdando pacificamente o reino, em Robert de Boron h

    atenuantes altamente implicadas em seu projeto. Uter casa-se com Igerne, mas

    Artur torna-se o menino sem pai, abandonado por sua me, portanto sem direito ao

    trono ou ignorando a possibilidade de herd-lo. Parece um tropeo, mas na verdade

    um grande recurso para garantir ao futuro rei dupla legitimidade. Com a espada

    tirada da bigorna e com a longa espera da confirmao de seu direito ali

    conquistado, patenteia-se a legitimidade divina: revelado no Natal, sagrado rei em

    Pentecostes. Mais tarde, ainda por meio de Merlim e de seu pai nutrcio Antor,

    sobrevm a confirmao da legitimidade terrena: era filho de Uter.

    Percebe-se assim como construdo este Merlimde Robert de Boron e

    como obedece a um propsito novo dentro de um projeto que costuma ser apontado

    como projeto de cristianizao da matria da Bretanha mas cristianizao mais

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    acabada ainda est por vir. Aqui, porm, no o momento nem o lugar de tratar

    dela. A obra outra.

    Este Merlim traduo do francs antigo do Merlin do sculo XIII, a

    personificao do romance em verso de Robert Boron. E muito polmica a questo

    da autoria da prosificao. Sabe-se que, pelo menos em sua segunda verso, no

    do prprio Robert de Boron, motivo pelo qual ela sempre nomeada como Pseudo-

    Boron.

    O texto de que nos servimos foi a edio de Alexandre Micha (Paris e

    Genebra: Droz, 1980), tendo tomado o cuidado de oferecer ao leitor as variantes do

    final, segundo o manuscrito de Mdena e o Didot, a que no teramos acesso, se

    no fosse a edio de Micha. Como se percebe nos trs finais da narrativa, existe

    sempre uma ligao com o Perceval, do ms. Didot, o que confirma a descrio de

    uma trilogia de obras de Robert Boron: Joseph d'Arimathie, Merlin e Perceval. A

    matria narrada termina com a coroao do rei Artur.

    Na traduo, tomamos o cuidado de aportuguesar os nomes prprios, em

    concordncia com a tradio das tradues dos textos arturianos para o galaico-

    portugus realizada no sculo XIII. S intervimos minimamente, como por exemplo

    no caso de Vertigier, passado a Vortigerne, com apoio na forma latina registrada na

    Historia Regum Britaniae: Vortigernus, mesmo porque os breves fragmentos do

    Merlim galaico-portugus no trazem esse nome. Deixamos aqui consignados

    nossos agradecimentos a Antnio Furtado, professor da Pontifcia Universidade

    Catlica do Rio de Janeiro, pesquisador arturianista de escol, pela solicitude com

    que leu nosso trabalho e nos apresentou sugestes; a Slvio Almeida de Toledo

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    Neto, cujas pesquisas iniciais so altamente promissoras, e aos ps-graduandos que

    nos acompanham de perto.

    So Paulo, 3 de janeiro de 1993

    Heitor Megale

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    GlossrioGlossrioGlossrioGlossrio

    Candelria a festa da Purificao de Nossa Senhora, celebrada a 2 de fevereiro.

    O nome est ligado ao uso de velas acesas na procisso da solenidade.

    Circunciso a festa da circunciso de Jesus, celebrada em primeiro de janeiro.Observe-se que o texto permite perceber a importncia das festividades litrgicas,

    para as quais eram marcados sucessivamente compromissos do reino: Natal,

    Circunciso, Candelria, Pscoa, Trindade, Pentecostes.

    Clerezia cincia, instruo, conhecimento; usada a expresso mestria de

    clerezia.

    Graal Robert de Boron associa Graal a graa e, aproximando as duas palavras

    (n. 48) estabelece um jogo de sonoridade na relao entre o objeto e seus efeitos.

    No seu Jos de Armatia, o Graal explica-se pelo verbo agradar (agrer). No h

    referncia a uma refeio; a fome parece saciada pela graa que o graal prodigaliza.

    No h tambm interesse em trabalhar a etimologia da palavra.

    Cuersil termo saxo de convite bebida, ao se fazer um brinde; equivale

    expresso: sua sade.

    Justa combate individual, estando os contendores armados, a cavalo, e

    comeam a luta com a lana.

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    Mestria saber grande, de mestre (Morais, 1813); domnio do conhecimento, na

    expresso mestria de clerezia.

    Rico-homem na hierarquia feudal, indivduo das famlias mais poderosas,

    imediatamente superior aos infanes, que constituam o grau supremo da cavalaria,

    e inferior aos ttulos nobilirquicos (Magne, Glossrio da D.S.G.).

    Sculo mundo, vida profana, por oposio vida monstica, clerical ou religiosa.

    Senescal provedor, vedor ou mordomo-mor da casa real.

    Torneio jogo pblico em que os cavaleiros mostravam sua destreza em combates

    coletivos.

    Vsperas hora cannica equivalente a 18 horas. As demais: prima, 6 horas;

    tera ou trcia, 9 horas; sexta, 12 horas, noa, 15 horas; completas, 21 horas;

    matinas, 24 horas e laudes, 3 horas

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    MerlimMerlimMerlimMerlim

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    O inimigo ficou muito irado quando Nosso Senhor desceu ao inferno e

    libertou de l Ado e Eva e quantos mais lhe agradou. Quando os demnios viram

    isso, ficaram muito maravilhados, reuniram-se em conselho e disseram entre si:

    Quem este homem que nos levou de vencida? Por que, com todanossa fora, nada h que possamos fazer para impedir que continue fazendo o que

    bem lhe apraz? Nunca podamos imaginar que algum homem nascido de mulher

    pudesse escapar de nossas garras. E eis que esse nos destri! Como pode ter

    nascido sem ter parte nos pecados deste mundo, diferentemente de todos os outros

    homens?

    Respondeu ento um dos demnios:

    Fomos vencidos pelo que julgvamos que mais nos valeria. Lembrai-

    vos do que diziam os profetas que anunciavam que o Filho de Deus viria terra para

    apagar o pecado de Ado e Eva e de seus descendentes. Ns nos apoderamos

    daqueles que proclamavam que esse homem viria terra e os livraria das penas do

    inferno. E eis que aconteceu o que no cansavam de anunciar. Esse homem nos

    arrebatou aquilo de que nos havamos apoderado e no podemos nada contra ele.

    Ele nos arrebatou todos aqueles que j tnhamos sob nosso domnio e que ningum

    nos podia mais retirar. Como foi que isso aconteceu? Como no os teremos mais?

    No sabeis ento, prosseguiu outro demnio, que ele faz com que selavem com gua, em seu nome, para que essa gua lave o delito de pai e me, justo

    aquele pecado pelo qual os teramos sob nosso domnio, como sempre os tivemos?

    Doravante perdemos a todos, por causa dessa gua, e no temos nenhum poder

    sobre eles, a menos que venham a ns por seus prprios pecados. Desse modo

    nosso poder ficou rebaixado e bloqueado. E ainda h mais: ele anunciou que vai

    ordenar e deixar ministros seus na terra para salv-los, ainda que venham a

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    participar de nossas obras, bastando que as reneguem, que se arrependam e faam

    quanto lhes for ordenado. Assim os perdemos, se forem moderados. Um benefcio

    inteiramente espiritual propiciou aquele que veio terra para salvar a humanidade e

    quis nascer de uma mulher, sem que o soubssemos, sem pecado de homem e de

    mulher. E se o vssemos e o tentssemos de todos os modos a nosso alcance, no

    encontraramos nele nenhuma de nossas obras, tal sua determinao de salvar os

    homens. Tanto amou os homens, que quis morrer para salv-los e tir-los de nosso

    jugo. Deveramos ento agora buscar um meio de reconquistar os homens, antes

    que possam se arrepender e antes que digam a quem lhes deu o perdo que esse

    homem os redimiu com sua morte. Ento disseram todos juntos:

    Perdemos tudo, visto que ele pode perdoar os pecados at o ltimo

    instante da vida do homem; e, se o encontra em suas obras, estar salvo; e ainda

    que esteja em nossas obras at o fim, se se arrepende e cumpre o que mandam

    seus ministros, ns o teremos perdido. Assim perdemos a todos, se no os

    retivermos. Mas quem nos prejudicou mais e nos estorvou e propiciou a vinda dele

    terra?

    Ento prosseguiram dizendo entre si:

    Quem mais nos prejudicou foram aqueles que anunciaram sua vinda.

    Por meio desses que nos advieram os maiores prejuzos. Quanto maisanunciavam sua vinda, mais ns os atormentvamos. Parece mesmo que ele se

    apressou em vir ajud-los e socorr-los dos tormentos que lhes causvamos. De

    que modo conseguiramos algum que falasse aos homens e dissesse quais so os

    nossos objetivos, qual o nosso poder e a nossa maneira de agir, e que tenha, como

    ns, poder de saber o que acontece, o que se diz e o que se faz? Se contssemos

    com um homem com esse poder, que soubesse essas cousas, e pudesse viver com

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    os outros homens na terra, ele poderia nos ajudar muito a engan-los, assim como

    os profetas que estavam do nosso lado e prediziam o que nunca imaginvamos que

    pudesse acontecer. Este homem falaria as cousas ditas e feitas num passado

    distante ou prximo e ganharia a confiana de muita gente. Ento disseram todos

    juntos:

    Excelentes resultados conseguiria quem tal homem pudesse criar.

    Todos acreditariam nele.

    Disse um deles:

    No tenho o poder de conceber nem de fecundar uma mulher, mas se

    tivesse, faria com gosto, porque tenho uma mulher que faz e diz tudo o que eu

    quero.

    Disse um outro:

    Mas h entre ns quem pode assumir a figura humana e fecundar uma

    mulher, e convm que a engravide o mais discretamente que puder.

    Assim disseram e decidiram que gerariam um homem que enganaria os

    outros. So loucos demais, porque imaginam que Nosso Senhor, que tudo sabe,

    ignore suas obras. O diabo ento decidiu fazer um homem que tivesse a sua

    memria e a sua inteligncia para enganar Jesus Cristo. Deste modo podeis saber o

    quanto louco o diabo, e muito devemos temer, porque to louca cousa nosengana.

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    Tendo concordado todos com tal deciso, os demnios encerraram o

    conselho. Aquele que, como dissera, tinha uma mulher em seu poder, no demorou

    a dirigir-se para onde ela estava. E tendo chegado a ela, encontrou-a muito

    disponvel c ela entregou-lhe o que tinha, at seu senhor e sua prpria pessoa. Ela

    era mulher de um rico-homem que tinha muitos bens e numeroso rebanho. Esse

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    homem tinha dessa mulher submissa ao diabo um filho e trs filhas. O diabo no

    esqueceu nada, dirigiu-se ao campo como quem desejava ardentemente enganar o

    marido dela. Um dia conversou com a mulher e perguntou-lhe como poderia enganar

    seu marido. Ela respondeu que no poderia engan-lo de modo algum, sem que ele

    se enfurecesse. "E podes facilmente irrit-lo, porque ficar irado, se tomares minhas

    coisas."

    Ento voltou o diabo ao rebanho do rico-homem e matou grande parte do

    gado. Quando os pastores viram os animais morrerem no meio do campo,

    maravilharam-se muito e disseram que iriam contar a seu senhor. Foram e contaram

    a seu senhor a maravilha que provocava a morte de seu gado. Ao ouvir, irou-se e

    maravilhou-se muito o senhor de corno os animais morriam. E perguntou aos

    pastores:

    Sabeis o que tm estes animais que morrem assim?

    Eles responderam que no sabiam. E assim passou aquele dia. O diabo,

    tendo sabido que o senhor irou-se por to pouco, imaginou que, se lhe fixasse maior

    prejuzo, o enfureceria mais, e assim o teria mais a sua vontade. Voltou ento ao

    rebanho e a dois belos cavalos que ele tinha, e os matou numa noite. Quando o

    senhor soube que suas coisas iam to mal, irritou-se muito e disse uma palavra

    louca, porque na sua grande fria disse que dava ao diabo o que tivesse sobrado.Ao saber que lhe havia sido dado tal dom, o diabo ficou muito alegre e

    resolveu causar ainda maiores prejuzos, matando desta vez todos os animais. No

    auge de sua fria e de seu desespero, o senhor fugiu de toda companhia. Quando o

    diabo soube que ele se isolara de toda gente, concluiu que realizaria tudo o que

    queria, porque podia estar l quando quisesse. Chegou-se ento ao filho dele, um

    belo rapaz, e o estrangulou, enquanto dormia. De manh, encontraram o rapaz,

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    morto. O pai, ao ser informado de que havia perdido seu filho, entregou-se ao

    desespero e renegou sua f. Ao saber que ele havia perdido a f e no a recobraria

    mais, o diabo, muito feliz, voltou mulher, por meio da qual havia conseguido seus

    objetivos. Fez com que ela subisse sobre o cofre de madeira do celeiro, e passou

    uma corda das pranchas do celeiro em seu pescoo, em seguida afastou o cofre, e

    assim enforcou-a. Ela foi ento encontrada morta. O senhor, informado de que havia

    perdido a mulher alm da perda do filho, ficou de tal maneira abatido, que caiu

    doente e morreu. Assim procede o diabo com aqueles que pode enganar e submeter

    a sua vontade.

    3

    Quando soube do acontecido, o diabo ficou muito satisfeito e comeou a

    imaginar como iria seduzir as trs filhas sobreviventes. Entendeu muito bem que

    nada conseguiria se no fizesse o que elas queriam. Ora, havia na cidade um jovem

    que lhe e ir. muito dedicado. O diabo levou-o ento a elas. Ele comeou a cortejar

    uma das trs e conseguiu fazer e falar to bem que a seduziu para seu grande

    prazer. Mas o diabo no se preocupa em esconder seu xito, ao contrrio, gosta de

    torn-lo conhecido para prejudicar mais suas vtimas. Esforou-se ento para que

    toda gente soubesse do acontecido. Naquele tempo era costume que a mulher

    surpreendida no pecado, salvo o caso de entregar-se abertamente a qualquer

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    homem, fosse condenada morte. O diabo, que nada mais deseja do que prejudicar

    suas vtimas, tornou pblico ento tudo o que havia passado. Quando os juzes a

    viram, tiveram muita pena dela, em considerao ao senhor de quem era filha.

    Disseram eles: Grande maravilha podeis ver que se passou com o senhor de quemesta jovem foi filha, porque no h muito tempo ele era um dos mais notveis desta

    cidade.

    Depois que falaram isso, disseram que convinha que a justia fosse feita.

    Concordaram que a enterrariam viva, noite, para poupar seus amigos. Assim foi

    feito. Eis como o diabo procede com quem se entrega a sua vontade.

    Ora, havia na regio um ermito que era muito bom confessor e ouviu

    falar dessa maravilha. Veio encontrar as irms sobreviventes, a mais velha e a

    caula. Reconfortou-as e perguntou-lhes:

    Como tal desventura aconteceu a vosso pai, a vossa me e a vosso

    irmo?

    Elas responderam:

    Nada sabemos a respeito, seno que imaginamos que Deus nos odeia,

    visto que permite que soframos assim.

    E o ermito disse: Estais enganadas. Deus no odeia ningum, a Ele pesa que o

    pecador odeie a si mesmo. Sabei que tudo o que aconteceu foi por obra do diabo. E

    de vossa irm que teve morte to vil, sabeis se procedia daquele modo?

    Responderam elas:

    Senhor, Deus nos odeia; nada mais sabemos a respeito.

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    Guardai-vos das ms obras, porque as ms obras conduzem o

    pecador e a pecadora a mau fim. E quem a Deus entrega-se no pratica ms obras

    nem tem mau fim.

    Assim as exortava o ermito, esperando que o ouvissem. A mais velha

    ouviu atentamente e o que ele lhes disse agradou-lhe muito. O ermito instruiu-a

    pois na f, falou-lhe do poder de Jesus Cristo e ensinou-a a crer e a amar. E ela

    esforou-se muito para guardar os ensinamentos e p-los em prtica.

    Acrescentou o ermito:

    Se confiardes no que vos direi, grandes benefcios vos adviro e sereis

    minha amiga e minha filha em Deus; e em qualquer dificuldade que estiverdes, por

    maior que seja a necessidade, se agirdes segundo os meus conselhos, poderei vos

    assistir com a ajuda de Nosso Senhor. No receeis ento nada, porque Nosso

    Senhor vos socorrer, se permanecerdes com ele e vierdes freqentemente me ver,

    porque no me instalarei longe daqui.

    Dessa maneira aconselhou o ermito as duas donzelas e apontou-lhes o

    bom caminho. A mais velha recebeu muito bem o ermito e apreciou seus conselhos

    e as boas palavras que dizia.

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    4Quando o diabo soube disso, pesou-lhe muito e teve grande receio de

    perd-las. Imaginou ento como poderia engan-las por meio de um homem, no

    caso de no conseguir por meio de uma mulher. Ele conhecia uma que muitas vezes

    j havia cumprido sua vontade e feito suas obras. Tomou ento essa mulher e

    mandou-a casa das duas irms. Ela chamou parte a mais jovem mais velha

    no ousava falar, tanto sua conduta era cheia de humildade , e estando a ss com

    ela, perguntou-lhe:

    Que vida leva agora vossa irm? Imaginais que ela esteja feliz e

    satisfeita?

    E ela respondeu:

    Ela anda muito pensativa e est to preocupada com as desventuras

    que nos aconteceram, que no externa alegria nem para mim nem para outrem. E

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    um ermito que lhe falou de Deus modificou de tal maneira sua conduta, que ela no

    faz, seno o que ele quer.

    Ento disse-lhe a mulher:

    Que pena! Vosso belo corpo no ter nunca prazer, enquanto estiver

    em companhia dela. Por Deus, bela amiga, se soubsseis os prazeres que as outras

    mulheres tm, desprezareis tudo o que tendes, "reinos tal prazer quando estamos

    em companhia de quem amamos que, ainda que tivssemos de nos contentar

    apenas com um pedao de po, ficamos to felizes como no podereis estar com

    todas as riquezas do inundo. Por Deus! Que prazeres pode experimentar uma

    mulher que no conhece o prazer do homem? Minha bela amiga, digo-vos que no

    tereis nem sabereis o que e o prazer do homem. E explico por qu. Vossa irm

    mais velha que vs; se puder, conhecer antes que vs os prazeres da carne; no

    permitir que passeis na frente dela. E depois que tiver conhecido, no cuidar mais

    de vs. E vs tereis perdido, para vossa desventura, todo o prazer de vosso belo

    corpo.

    Mas como ousarei fazer o que dizeis? Minha irm morreu disso!

    Ela respondeu:

    Vossa irm o fez loucamente e seguiu maus conselhos. Vs, se

    confiardes em mim, no sereis vtima das circunstncias, nem de acusao. No sei como me atrevo a continuar falando disso, por causa de minha

    irm. Ide embora agora. Quando vos vir novamente, ento podereis voltar a falar a

    respeito.

    Tendo ouvido essa resposta, o diabo ficou muito alegre e soube que a

    teria a sua vontade. Ento afastou a mulher que possua. Depois que a mulher foi,

    estando a ss, a donzela rememorou tudo o que lhe havia sido dito. E o diabo,

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    quando a viu to inclinada a sua vontade, que no parava de pensar naquilo,

    excitou-a o mais que pde, tanto que, noite, ela olhava o prprio corpo e dizia: "De

    fato, tem razo a mulher que me diz o que estou perdendo." Assim que raiou o dia,

    mandou cham-la e disse-lhe:

    Tnheis razo em dizer que minha irm no se preocupa comigo. Ela

    respondeu:

    Eu sabia. Ainda menos cuidar, se encontrar o prprio prazer. Ns no

    temos outra razo de viver, seno a de ter o prazer do homem.

    Ento disse ela:

    Eu o terei de muito boa vontade, desde que no precise temer a

    condenao morte.

    Haveriam de mat-la, se o fizsseis to loucamente como vossa irm.

    Mas eu vos ensinarei como fazer.

    Dizei-me como, e eu confiarei em vosso ensinamento.

    Ao que ela respondeu:

    Vs vos entregareis a todos os homens e fugireis para longe daqui

    dizendo que no podeis mais suportar vossa irm. Deste modo fareis de vosso corpo

    o que bem quiserdes; no encontrareis na Justia quem vos retruque e estareis livre

    de qualquer perigo. E depois que tiverdes levado essa vida, encontrareis facilmenteum homem prudente que se sentir muito feliz de vos ter, por causa de vossa

    grande fortuna. Dessa forma, podereis conhecer todos os prazeres do mundo.

    Ento fugiu abandonando a casa de sua irm e entregou seu corpo aos

    homens, pelo conselho dessa mulher.

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    Depois que enganou a outra irm, o diabo ficou muito alegre. A mais

    velha, ao ver que sua irm havia ido embora, procurou o ermito, aquele que a

    mantinha fiel em sua crena, muito revoltada e externando grande dor pelo fato de

    ter desse modo perdido sua irm. E o ermito, vendo-a fazer tal lamento, teve muita

    pena e disse-lhe: Faze o sinal da cruz e recomenda-te a Deus, porque te vejo muito

    transtornada.

    Ela respondeu:

    E com razo, pois perdi minha irm.

    E contou-lhe como acontecera e o que pde saber que ela havia se

    entregado a todos os homens. Quando o ermito ouviu isto, ficou muito atordoado e

    disse:

    O diabo ainda est ao vosso redor e no ter sossego, enquanto no

    tiver seduzido as trs, se Deus no vos guarda.

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    Ento perguntou ela:

    Senhor, por Deus, como poderei guardar-me? No h nada que

    tanto receie, como sucumbir a sua seduo.

    Respondeu o ermito:

    Se confiares em mim, ele nunca te seduzir. Respondeu ela:

    Confiarei em tudo que me disserdes. E ele disse:

    Crs no Pai, no Filho e no Esprito Santo? Crs que essas trs

    pessoas fazem um s Deus? Crs que Nosso Senhor veio terra para salvar todos

    os pecadores que acreditarem no poder do batismo e dos outros sacramentos da

    Santa Madre Igreja e obedecerem aos ministros que ele deixou na terra para ensinar

    a acreditar no seu nome?

    E ela respondeu:

    Em tudo o que dissestes e ouvi eu creio; assim verdadeiramente me

    guarde ele que o diabo no possa me seduzir.

    Disse-lhe o ermito:

    Se acreditas no que eu disse, o demnio no te poder enganar. Mas

    acima de tudo peo-te que no te entregues clera, porque o diabo insinua-se

    mais quando um homem ou uma mulher esto em grande clera. Por isso guarda-te

    de todas as ms obras e desventuras que sobrevierem. Vem a mim e conta-me oque te torna culpada diante de Nosso Senhor, de todos os santos e de todas as

    santas e de todas as criaturas que crem em Deus e o servem e o amam, e de mim,

    em honra de Deus. Todas as vezes que deitares e te levantares persigna-te em

    nome do Pai, do Filho e do Esprito Santo, em nome desta cruz que fez de seu

    Santo Corpo e no nome daquela em que sofreu a morte para salvar os pecadores

    das penas do inferno e do poder do diabo. Se assim fizeres como te ordeno, nada

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    receies do inimigo. Cuida que haja sempre claridade onde dormires, porque o diabo

    odeia sobretudo a luz e no vem facilmente onde ela brilha.

    Isto ensinou o ermito donzela que tinha muito pavor de que o diabo a

    enganasse.

    Ento voltou a donzela casa, firme na f e muito humilde diante de Deus

    e da gente pobre de sua regio. As pessoas honestas vinham v-la e diziam-lhe

    freqentemente:

    Amiga, muito deveis temer do que aconteceu a vossos pais, a vosso

    irmo e a vossas duas irms. Tende nimo forte, porque sois mulher rica e tendes

    boa herana e muito feliz ser o homem que vos esposar. Mas ela respondia:

    Nosso Senhor me mantenha no estado que ele sabe que me convm.

    Assim ficou a donzela por muito tempo, dois anos ou mais, que o diabo

    no pde seduzi-Ia e nem soube de m obra que ela fizesse. Pensou muito o diabo

    e entendeu que no poderia seduzi-la, porque no via como induzi-la a alguma de

    suas ms obras; at que percebeu que no conseguiria engan-la, seno fazendo-a

    esquecer o que o ermito lhe havia ensinado, e isto no seria possvel, se no a

    enfurecesse, porque ela no tinha nenhuma tendncia para as obras do seu agrado.

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    Apoderou-se o diabo da irm dela, e levou-a, um sbado noite, casa

    da mais velha, para ver se a punha em estado de clera, e assim seduzi-la. A m

    irm chegou casa paterna muito tarde da noite com um bando de maus rapazes

    que ela fez entrar. Quando a irm os viu, ficou muito irada e disse-lhes:

    Minha irm, enquanto levais esta vida no devereis vir aqui, porque

    fareis com que me censurem, sem que eu d motivo.

    Quando ouviu que ela seria censurada por sua culpa, ficou muito

    enfurecida e disse, como quem tinha o diabo no corpo, que a odiava, que sua

    conduta era pior, que ela era amante do ermito e que, se as pessoas ficassem

    sabendo, ela seria queimada viva. A mais velha, sentindo-se assim acusada de tal

    diabrura, enfureceu-se e ordenou que sua irm se retirasse da casa, mas a outra

    retrucou que a casa era do pai delas duas e que no sairia. Compreendendo que ela

    no sairia, tomou-a pelos ombros e quis empurr-la para fora, mas a outra reagiu e

    os rapazes que estavam com ela agarraram a mais velha e bateram nela muito

    cruelmente. Quando conseguiu escapar, porque estavam cansados de bater, entrou

    no quarto e trancou a porta. Ela no tinha seno uma serva e um servo, sobre os

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    quais eles descarregaram sua fria. Uma vez s no quarto, deitou-se no leito

    inteiramente vestida e chorou copiosamente, cheia de raiva de sua irm que a havia

    maltratado dessa maneira. E assim dormiu. O diabo, quando a viu s e enfurecida,

    na escurido, onde no se enxergava absolutamente nada, ficou muito alegre.

    Ento lembrou-se a mais velha da dor de seu pai e de sua me, de seu

    irmo e de sua irm, essa com quem havia brigado. Chorou, ao lembrar-se de todas

    essas coisas, muito sentidamente e nessa dor adormeceu.

    O diabo, quando percebeu que ela havia esquecido tudo o que o ermito

    lhe havia recomendado, devido grande raiva que tomou conta dela, alegrou-se e

    disse:

    Agora ela est bem transtornada e fora da proteo de seu mestre.

    Podemos bem entreg-la a nosso homem.

    Aquele demnio que tinha poder de, assumindo figura humana, dormir

    com mulher estava pronto. Veio, dormiu com ela e ela concebeu. Depois de ter

    concebido, acordou, lembrou-se do ermito, persignou-se e disse:

    Santa Maria! O que me aconteceu? No sou mais como era quando

    me deitei! Gloriosa Me de Deus, filha e me de Jesus Cristo, rogai, em vossa

    bondade, ao Pai e caro Filho, que guarde minha alma e a defenda contra o inimigo.

    Ento levantou-se e comeou a procurar aquele que a havia assimtratado, imaginando poder encontr-lo. Foi porta e encontrou-a fechada, como a

    havia deixado ela mesma. Vendo que eslava bem fechada a porta do quarto,

    procurou por todo o quarto e nada encontrou. Ento entendeu que havia sido

    enganada pelo inimigo. Lamentou-se muito e pediu a Nosso Senhor que no a

    deixasse ser desonrada nesse mundo. Passou a noite e veio o dia. To logo raiou o

    dia, o diabo levou de volta a mulher, porque ela havia feito muito bem tudo aquilo por

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    que viera. Depois que ela c os rapazes foram embora, a mais velha saiu do quarto

    chorando e, muito irada, chamou seu servo ordenando-lhe que procurasse duas

    mulheres. Assim que chegaram, ela se ps a caminho cio seu confessor.

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    Foi muito depressa e chegou; quando ele a viu, disse-lhe: Ests em dificuldade, porque te vejo muito aflita! E ela respondeu:

    Devo estar mesmo muito aflita, porque o que me aconteceu ontem

    nunca aconteceu com ningum, a no ser comigo. Venho pois aconselhar-me

    convosco, porque me dissestes que todo pecador, seja qual for a enormidade de seu

    pecado, ser perdoado se confessar e arrepender-se sinceramente e fizer o que seu

    confessor ordenar. Ora, senhor, eu pequei, confesso, e fui seduzida pelo diabo.

    Ento contou como sua irm viera casa, e como enfureceu-se, e como

    os rapazes bateram nela, e como refugiara-se em seu quarto cheia de raiva, mas

    teve todo o cuidado de fechar bem a porta.

    Como estava com muita raiva, esqueci-me de persignar-me, bem como

    esqueci-me de vossas recomendaes. E do modo como deitei inteiramente vestida,

    adormeci. Ao acordar, tomei conta de que estava desonrada e deflorada. Revirei

    meu quarto e assegurei-me de que a porta estava fechada como eu a fechara; no

    achei ningum e nem pude saber quem me fizera aquilo. Senhor, tudo passou como

    vos digo: fui enganada pelo diabo. Suplico, em nome de Deus, que me ajudeis a

    salvar a minha alma, ainda que meu corpo deva ser entregue ao suplcio.

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    O ermito ouviu com muita ateno tudo o que ela disse, mostrou-se

    muito maravilhado e no acreditou em nada do que ela contara, porque, disse ele,

    nunca ouvira contar semelhante maravilha. E disse a ela:

    Ests possuda pelo diabo, e ele ainda est em ti. Como ouvirei tua

    confisso e te darei penitncia, se sei verdadeiramente que ests mentindo? Jamais

    uma mulher foi deflorada sem saber de quem ou ao menos sem ver quem a

    deflorava e queres me fazer acreditar que essa maravilha aconteceu?

    Senhor, que Deus me salve e me preserve dos suplcios, to

    verdadeiramente como vos digo a verdade.

    E o ermito:

    Se to verdade como dizes, vers pelas prprias obras. No entanto,

    cometeste um grande pecado no cumprindo o que eu havia determinado; porque

    desobedeceste, imponho a penitncia de, pelo resto da vida, toda sexta-feira, no

    comeres seno uma vez. E quanto ao que me dizes da luxria, no que nada

    acredito, convm que te d uma penitncia, se te comprometeres a cumpri-la.

    Ela respondeu:

    No me ordenareis nada, por mais difcil que seja, que eu no faa.

    O ermito:

    Deus te oua! Asseguras ento que vens aconselhar-te na SantaIgreja, sob a proteo de Jesus Cristo que nos redimiu com to alto preo como o de

    sua morte em verdadeira confisso e com firme arrependimento e bons

    propsitos de corao e tudo o que disseste pela boca garantes cumprir em teu

    corao e em teu corpo, na medida de tuas foras? E ela respondeu:

    Senhor, assim como dissestes, eu me comprometo, de boa vontade, se

    Deus o quer.

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    O ermito:

    Confio em Deus que se o que dizes verdade, ele te proteger.

    Senhor, que Deus me salve do mal, tanto quanto verdade o que digo.

    Prometes cumprir a penitncia que te imporei e fugir de todo o pecado?

    Sim, prometo.

    Renuncia ento a toda luxria e eu te probo, at o fim de teus dias, de

    sucumbires a qualquer pecado da carne, exceto cm sonho, porque o homem nada

    pode contra os sonhos. Tens firme propsito de te guardares de todo pecado da

    carne?

    Sim, se me garantes que eu no seja condenada por esse, nenhum

    outro me acontecer.

    Desse eu serei tua garantia perante Deus, por seu mandamento, pois

    nos ps na terra como seu ministro.

    Ela aceitou a penitncia que ele imps, com muito boa vontade e

    chorando, como quem se arrepende de todo o corao. O ermito fez sobre ela o

    sinal da cruz, deu-lhe a absolvio e confirmou-a no amor de Jesus Cristo. No

    entanto, continuou a perguntai-lhe se o que havia dito era verdade, e concluiu que

    ela, de fato, havia sido enganada pelo inimigo. Fez ento com que tomasse gua

    benta, em nome do Pai, do Filho e do Esprito Santo, lanou tambm a gua sobreela, e disse:

    Cuida de no esqueceres minhas ordens, e volta todas as vezes que

    tiveres necessidade.

    Abenoou-a ento e recomendou-a a Deus, e passou a considerar como

    penitncia todas as boas aes que ela fizesse.

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    Ento voltou para casa e levou vida exemplar e muito simples. E quandoo diabo viu que a havia perdido e que no sabia o que ela dizia ou fazia, como se ria

    nunca tivesse existido, ficou muito irritado.

    A jovem viveu assim at o momento em que no pde esconder o fruto

    que carregava no corpo. Ela criou barriga e engordou, de modo que as outras

    mulheres perceberam e vieram falar-lhe:

    Por Deus, senhora, o que isso? Engordastes muito.

    Ela respondeu:

    verdade.

    Estais grvida?

    Sim, como vedes.

    E de quem?

    Tanto quanto peo a Deus que me d uma boa hora, eu no sei.

    Dormistes com tantos homens que no sabeis quem o pai?

    Que Deus me impea para sempre de deitar com algum homem, se

    conscientemente mantive relaes que me tornaram grvida!

    As mulheres que ouviram isso persignaram-se e disseram:

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    Amiga, isso no poderia acontecer, nem nunca aconteceu convosco

    nem com ningum mais. Sem dvida amais em segredo algum que no quereis

    acusar. Mas certamente esta a vossa grande desgraa, porque, assim que os

    juzes souberem, devereis morrer.

    Ao ouvir isso, ficou muito espantada e disse:

    Deus salve a minha alma, tanto verdade que nunca vi nem conheci

    quem me deixou neste estado.

    As mulheres riram e a tomaram por louca e consideraram grande

    desventura que ela perdesse desse modo sua herana, to bela terra e to bom

    feudo. A jovem inteiramente transtornada procurou seu confessor e contou-lhe o que

    haviam dito as mulheres. O ermito percebeu que ela estava grvida, maravilhou-se

    muito e perguntou-lhe:

    Cumpriste rigorosamente a penitncia que te impus?

    Sim, senhor, sem faltar nada.

    E verdadeiramente no te aconteceu esta maravilha mais de uma vez?

    No, senhor, nunca me aconteceu nem antes, nem depois.

    O ermito ouviu, maravilhou-se muito, anotou por escrito cuidadosamente

    a noite e a hora, como disse ela e concluiu:

    Fica tranqila! Quando esta criana que carregas nascer, saberei defato se me mentiste. E confio em Deus que, se o que me contas te verdade, ele te

    salvar da morte. Certamente pssaras muito maus momentos, porque os juzes,

    quando o souberem, mandaro tomar teus bens e tua terra e falaro cm executar-te.

    Quando te mandarem prender, faze-me saber e, se puder, irei em teu socorro. E, se

    s tal como dizes, Deus no te recusar ajuda. Volta ento cm paz para tua casa,

    confia em Deus e fica segura de que vida boa ajuda muito a ter bom fim.

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    Ento voltou para casa e ficou em paz em sua vida simples at que os juzes chegaram a sua terra e souberam da novidade. Mandaram busc-la a sua

    presena. Quando ela foi presa, mandou buscar o ermito, aquele que sempre a

    havia aconselhado. Quando ele soube, veio o mais depressa que pde. E ao chegar,

    j encontrou os juzes. Ao v-lo, citaram-no e contaram-lhe a declarao da mulher

    que dizia no saber quem a havia engravidado e perguntaram-lhe:

    Cuidais que uma mulher possa engravidar e ter filho sem conhecer

    homem?

    O ermito respondeu:

    No vos direi tudo o que sei, mas posso pelo menos vos declarar, se

    meu conselho quereis ouvir, que no fareis justia condenando esta mulher,

    enquanto estiver grvida, porque no razovel nem justo que uma criana seja

    executada, nada tendo a ver com o pecado da me. Se a condenardes morte,

    podereis dizer que executastes quem tinha pecado e tambm quem no tinha

    pecado.

    Ento disseram os juzes:

    Seguiremos vosso conselho. O ermito:

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    J que assim decidistes, fazei guardar esta mulher numa torre, em tal

    lugar que nada possa fazer de repreensvel. Deixai com ela duas mulheres que a

    ajudaro, quando a hora chegar, a fazer o parto. Cuidai que de l no possam sair, e

    dai a elas tudo o de que precisarem. Mantendo-a desse modo sob vigilncia at o

    nascimento da criana. Aconselho ainda que deixe a criana alimentar-se at o dia

    em que possa pedir o de que tenha necessidade. Se at ento nada tiver acontecido

    de diferente, fareis com esta mulher o que quiserdes. Se confiais em meu conselho,

    fazei assim; se quiserdes agir de outro modo, nada poderei fazer.

    Os juzes responderam:

    Parece-nos que tendes razo.

    Ento fizeram corno o ermito disse. Colocaram-na em uma torre alta.

    Mandaram murar todas as portas embaixo e puseram em sua companhia duas

    mulheres, as mais prudentes que puderam encontrar. Deixaram aberta uma janela

    no alto para fazer chegar tudo o de que precisassem, por uma corda. O ermito,

    quando soube que tudo havia sido feito, falou com ela, pela janela, e disse:

    Quando tiveres a criana, faze batiz-la o mais depressa que puderes

    e, quando vierem tirar-te daqui para levar fogueira, manda chamar-me.

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    Assim ficou a mulher muito tempo na torre. Os juzes cuidaram bem queela tivesse na torre tudo o de que precisava. E assim ficou l e teve a criana, como

    a Deus aprouve. Desde o nascimento, a criana teve o poder e a inteligncia do

    diabo, pelo qual havia sido concebido. Mas o diabo o havia feito loucamente, porque

    sabia muito bem que Nosso Senhor havia redimido com sua morte e perdoado os

    pecados de todos aqueles que se arrependem sinceramente. Ora, o diabo havia

    seduzido aquela mulher por astucia, por ardil e estando ela dormindo. E to logo

    sentiu-se enganada, implorou a piedade de quem era preciso e submeteu-se aos

    mandamentos de Deus e da Santa Igreja e fez tudo o que lhe ordenaram. E porque

    Deus no quis que o diabo perdesse o conhecimento do que devia acontecer e quis

    que ele tivesse o que desejava, por isso o criou. Ele o criou para que tivesse a arte

    de saber as coisas que existiam, as coisas ditas e feitas e acontecidas, e tudo isso

    ele soube. E Nosso Senhor que tudo sabe e conhece, pelo arrependimento da me,

    pela confisso e pelo bom propsito que tinha em seu corao, pela boa vontade

    que a conduzira at o ponto em que estava e pela fora do batismo, pelo qual o filho

    havia sido levado at a fonte batismal, quis Nosso Senhor que o pecado de sua me

    no o pudesse prejudicar. Deu-lhe ento o poder e a inteligncia de saber as coisas

    que deviam acontecer. Por essas razes teve o menino o conhecimento das coisas

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    feitas, ditas e acontecidas, porque ele o teve do inimigo. E alm de saber as coisas

    que esto por acontecer, quis Nosso Senhor que soubesse, em relao s outras

    coisas, o que sabia de sua parte. Volte-se para a parte que quiser, ele ter do diabo

    seu direito e de Nosso Senhor, o seu, porque o diabo no lhe deu seno o corpo, e

    Nosso Senhor ps nesse corpo o esprito para ver, ouvir e compreender cada coisa

    segundo o ajudar a memria. E a ele, deu-lhe ainda mais que a qualquer outra

    pessoa, porque para grandes coisas foi feito. Ento saber muito bem a que

    dedicar-se. E assim ele nasceu. Quando as mulheres o tomaram em seus braos,

    assustaram-se porque ele era mais peludo que todas as crianas que haviam visto.

    Levaram-no me que persignou-se ao v-lo e disse:

    Este menino me enche de medo. E as outras mulheres disseram:

    A ns tambm, a tal ponto que com dificuldade o conseguimos segurar.

    Fazei com que o levem fora da torre disse a me , e mandai

    batiz-lo.

    Como quereis que se chame?

    O nome de meu pai.

    Colocaram-no em um cesto, desceram-no pela corda ordenando que

    fosse batizado com o nome de seu av materno; aquele homem bom chamava-se

    Merlim. Desse modo foi o menino batizado com o nome de Merlim, da parte de seuav, e foi recambiado me para o amamentar, porque nenhuma outra mulher

    ousava faz-lo. Sua me o amamentou at que tivesse nove meses. As mulheres

    que estavam com sua me repetiam muitas vzes que se maravilhavam muito por

    esse menino ser assim to peludo e parecer mais velho; no tendo seno nove

    meses, era como se tivesse dois anos ou mais.

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    Ento aconteceu, muito tempo depois, que o menino chegou aos dezoitomeses, e as duas mulheres disseram me:

    Senhora, queramos sair daqui e voltar a nossas famlias e amigos, em

    nossas casas, porque h muito tempo que estamos aqui.

    Ela respondeu:

    Assim que tiverdes sado daqui, sei que viro condenar-me.

    Certamente, senhora, mas no podemos ficar aqui eternamente.

    Ela chorou e implorou por Deus que ficassem mais um pouco. Dirigiram-

    se janela e a me, com o menino nos braos, sentou-se, chorou muito e disse:

    Filho, por tua causa serei morta, sem o ter merecido; morrerei porque

    no h quem saiba a verdade e no h quem acredite em mim, por isso morrerei.

    Como se lamentasse dessa forma por sua morte, dizendo que em m

    hora Deus havia permitido seu nascimento e gerao em seu corpo para sua morte

    e seu suplcio, falando essas coisas e mostrando a Nosso Senhor seus sofrimentos,

    o menino olhou para ela, riu e disse:

    Querida me, no temas nada, no morrers pelo pecado de que

    nasci.

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    Ouvindo-o assim falar, enfraqueceu seu corao e teve pavor e soltou o

    menino dos braos; ele caiu ao cho e machucou-se. As mulheres que estavam

    janela voltaram-se para ela e imaginaram que ela quisesse mat-lo.

    O que quereis fazer? Quereis matar vosso filho?

    Ela respondeu inteiramente transtornada:

    - No! Jamais pensei nisso. O que aconteceu foi uma grande maravilha:

    ele falou comigo! Ento faltaram-me o nimo e os braos, por isso caiu.

    - E o que disse ele?

    - Que no morrerei por causa dele.

    - Ele ainda vai falar mais?

    Tomaram-no ento em seus braos e ficaram atentas para ver se falaria

    de novo, mas ele no mostrou inteno de falar mais nada. Passado um bom tempo,

    disse a me s mulheres:

    Ameaai-me e dizei que serei queimada por meu filho, ento vereis se

    ele vai querer falar.

    As mulheres ento disseram:

    Muito grande desgraa vos atingir porque sereis queimada por causa

    de vosso filho. Melhor seria que ele no tivesse nascido.

    Ele ento respondeu:- Estais mentindo. Foi minha me que vos mandou dizeer isso.

    Apavoradas por ouvi-lo dizer isto, gritaram:

    - No um menino, mas o diabo que sabe o que dissemos.

    E comearam a falar novamente e a question-lo, mas ele respondeu

    tranqilamente:

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    - Deixai-me em paz, porque sois loucas e pecadoras mais do que minha

    me.

    Ouvindo isto, ficaram muito maravilhadas e disseram:

    Esta maravilha no pode ficar apenas entre ns. Vamos cont-la a toda

    gente.

    Ento foram janela, chamaram as pessoas e contaram o que o menino

    havia dito e falaram que no queriam mais ficar l. Que fossem contar aos juzes.

    Quando os juzes souberam dessa maravilha, concluram que era coisa

    muito maravilhosa e que havia razes para executar a me. Mandaram fazer as

    cartas de convocao para execut-la no prazo de quarenta dias. Quando a

    intimao foi entregue e a me soube que o dia de seu suplcio estava marcado,

    mandou imediatamente avisar seu confessor.

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    O tempo passou e no faltava seno uma semana para que ela fosselevada fogueira. Quando pensou nisso, ficou muito aterrorizada. O menino que

    andava pela torre, ao ver sua me chorando, comeou a rir e a externar grande

    alegria. Ento as mulheres disseram:

    Pensa bem agora que na semana que entra tua me ser queimada

    por tua causa. Maldita seja a hora, em que nasceste, se Deus no intervm, porque

    ela sofrer o suplcio.

    E ele respondeu e disse:

    Elas mentem, querida me, enquanto eu viver, ningum ousar te fazer

    queimar, nem submeter a julgamento de morte, seno Deus.

    Ouvindo isto, a me e as mulheres ficaram muito felizes e disseram:

    Um menino que tais palavras diz ainda ser muito cheio de sabedoria.

    As coisas ficaram assim ate o dia marcado para o suplcio. As mulheres

    foram postas fora da torre e a me saiu com o filho nos braos. Os juzes chegaram

    e conversaram com as duas mulheres, parte, e perguntaram se era verdade que o

    menino falava aquelas coisas. E elas contaram tudo o que haviam ouvido. Ao tomar

    conhecimento, maravilharam-se muito e disseram que o menino precisaria saber

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    muito para livrar a me da morte. Tomaram ento seus lugares, e o ermito que

    aconselhava a me chegou.

    - Senhora disse um dos juzes , tendes uma ltima vontade a fazer?

    Preparai-vos, porque estais prestes a ser executada.

    - Senhor disse ela , se permitis, gostaria de falar com este ermito.

    O juiz deu-lhe permisso; ela dirigiu-se a uma cmara e seu filho ficou

    fora. Muita gente ento comeou a perguntar o que se passava, sem obter resposta.

    A me falava com seu confessor muito piedosamente chorando. Depois que falou

    tudo o que queria, o ermito perguntou-lhe

    verdade que seu filho fala corno esto contando?

    Sim, senhor respondeu ela, e repetiu o que dele havia ouvido.

    Alguma maravilha est para acontecer ento concluiu ele.

    Saiu o ermito da cmara e foi para onde os juzes estavam. Saiu depois

    a infeliz vestida apenas com a tnica e encontrou seu filho fora da cmara. Tomou-o

    em seus braos e dirigiu-se para diante dos juzes. Eles perguntaram-lhe:

    Senhora, quem o pai deste menino? No ouseis ocultar.

    Ela respondeu:

    Senhores, sei bem que estou condenada fogueira, mas Deus no

    tenha piedade de mim, se algum dia conheci o pai deste menino ou se alguma veztive intimidades com um homem de que ficasse grvida.

    No acreditamos que isso possa ser verdade, mas perguntaremos s

    outras mulheres se possvel que uma mulher se engravide sem o concurso de um

    homem, porque nunca ouvimos falar tal maravilha. Ento retiraram-se e foram

    perguntar a diversas mulheres a respeito do que se dizia da me de Merlim:

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    Senhoras, j vos aconteceu ou alguma de vs j ouviu contar ter

    alguma mulher concebido ou posto no mundo um filho, sem ter tido relaes carnais

    com um homem?

    Elas responderam:

    impossvel. Nunca ouvimos falar tal coisa, seno da me de Jesus

    Cristo.

    Os juzes voltaram ento e relataram para a me de Merlim o que as

    outras mulheres haviam dito.

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    E concluram que nada mais havia a fazer, seno aplicar a justia. Falouum dos juzes, o mais poderoso, com quem todos os outros concordavam:

    Ouvi dizer que este menino fala e que ele diz que sua me no

    receber morte por ele. Se deseja vir em seu socorro, o que est esperando para

    falar?

    Ao ouvir isto, soltou-se o menino dos braos da me e ps-se de p.

    Dirigiu-se ento frente dos juzes e disse:

    Senhores, peo-vos, se o souberdes, que me digais por que quereis

    lanar minha me fogueira.

    Um deles respondeu:

    Sei muito bem por que te direi: porque ela te teve em maldade do

    prprio corpo e porque nega-se a acusar quem no seu corpo te gerou. E ns

    seguimos uma lei antiga, segundo a qual devemos fazer justia com uma mulher

    nessas circunstncias, por isso a queremos fazer com tua me.

    O menino replicou:

    Senhores, no desta vez que minha me ser levada morte. Se

    fosse para se levar morte todos aqueles e todas aquelas que tm tido relaes

    carnais com parceiro alem do prprio, seria preciso lanar fogueira dois teros dos

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    homens e das mulheres aqui presentes. Conheo bem todos os seus segredos e, se

    quisesse, poderia revel-los. Aqui h muitos que fizeram pior do que minha me,

    porque o fizeram sabendo e conhecendo o parceiro, ela, que o fez sem saber, no

    culpada do que a acusam. Isso o sabeis vs muito bem. E se ela o fosse, aqui est o

    ermito que se responsabilizou seu erro. Se duvidais de mim, perguntai a ele.

    Os juzes chamaram o ermito e relataram a ele palavra por palavra o que

    o menino havia dito e perguntaram-lhe se era verdade. O ermito respondeu:

    - Senhores, tudo o que ele vos disse a respeito do pecado de sua me

    verdade. Ela me contou que, do modo como aconteceu, ela no tinha receio nem

    de Deus nem do mundo de que a condenassem. E ela mesma vos contou como

    foi enganada e como esta maravilha de ter ficado grvida do menino lhe aconteceu

    dormindo, sem nenhum outro delito, e que ela no sabe quem a engravidou. Assim

    confessou e arrependeu-se, mas que tivesse acontecido desse modo, eu nunca

    acreditei, no entanto, o fato de eu no acreditar no pode nem deve em nada

    prejudic-la, pois sua conscincia verdadeira.

    Ento o menino tomou a palavra e disse:

    Vs sabeis a noite e hora e hora em que fui gerado e vos fcil saber

    o dia e a hora em que nasci. De modo que podeis verificar, em grande parte, o que

    minha me diz. Seguramente disse o ermito , verdade o que dizes. No sei de

    onde vem tua sabedoria que superior a de todos ns juntos.

    Chamaram ento as duas mulheres que haviam vivido com a me de

    Merlim na torre, e elas fizeram um relato, diante dos juzes, da durao da gravidez

    da me, da concepo do menino e do parto. Elas compararam suas informaes

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    com as anotaes do ermito e concluram que haviam chegado ao mesmo

    resultado.

    Apesar disso disse um dos juzes ao menino ela no estar quite,

    se no nos disser quem te gerou e quem teu pai.

    O menino irritou-se e disse:

    Sei quem meu pai melhor do que vs, o vosso; e vossa me sabe

    melhor quem vos gerou do que a minha, a mim.

    A que o juiz replicou encolerizado:

    Se tens alguma acusao contra minha me, eu a chamarei ajuzo.

    Posso muito bem dizer que, se a condensseis morte, a pena seria

    mais merecida do que pela minha me. Se pois eu a obrigo a que vos d ela mesma

    a prova, livrai a minha me, porque no culpada do que a acusam, e ela disse a

    verdade quando contou como fui gerado.

    Merlim respondeu o juiz muito irritado , se assim, tua me

    escapar da fogueira, no entanto, fica sabendo que, se no podes fornecer prova do

    erro de minha me, ento a tua no fica livre e tu sers queimado juntamente com

    ela.

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    Os juzes fixaram ento um recesso de quinze dias. O juiz mandou buscara prpria me e manteve cuidadosamente vigiados Merlim e sua me. Prosseguiram

    os interrogatrios do menino a respeito de sua me, mas durante este prazo no

    conseguiram dele nem uma palavra. No dia marcado, a me do juiz chegou; ento

    mandaram buscar na priso Merlim e sua me e conduziram todos presena do

    povo.

    - Merlim disse o juiz , eis aqui minha me contra quem deves

    formular a acusao.

    - No sois nem de longe to sbio como imaginais disse o menino.

    Conduzi vossa me, parte, a uma casa e convocai para vos ajudar os amigos mais

    fiis; e eu i invocarei os que ajudaro minha me: Deus todo-poderoso e seu

    confessor.

    Todos quantos ouviram tais palavras da boca do menino ficaram

    abismados e no sabiam o que dizer, mas o juiz entendeu claramente que ele era

    sbio e estava em direito.

    Senhores perguntou o menino aos outros juzes , se eu provar,

    em bom juzo, o direito de minha me contra este homem, vs a absolvereis?

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    Sim responderam , se ela escapar deste, no encontrar mais

    quem a acuse de nada.

    Retiraram-se ento o juiz e Merlim a uma cmara. O juiz levou dois outros

    homens dentre seus amigos, os mais sbios que pde encontrar; e Merlim, o

    confessor de sua me. Estando assim reunidos, disse o juiz a Merlim:

    Agora podes dizer a minha me tudo o que queres para desculpar a

    tua.

    No quero replicou Merlim dizer contra vossa me algo para que

    minha me fique livre, se vossa me nada tiver feito de errado, pois no quero

    defender minha me injustamente, mas quero ver triunfar o direito de Deus e o dela.

    Minha me, vs o sabeis muito bem, no mereceu nenhum castigo como o que lhe

    quereis impor e, se acreditais em mim, vs a absolvereis e ento renunciarei ao

    interrogatrio da vossa.

    No escapars assim disse o juiz , preciso que fales mais.

    Vs nos haveis assegurado a mim e a minha me que eu poderia

    defend-la.

    verdade, e estamos aqui reunidos para ouvir o que dirs sobre minha

    me.

    Prendestes minha me e a quereis lanar fogueira, porque eu nascie ela no sabe dizer quem me concebeu, mas, se eu quisesse, saberia melhor

    nomear meu pai do que vs, o vosso.

    Querida me disse o juiz , no sou o filho de vosso legtimo

    esposo?

    Por Deus, meu filho, de quem serieis filho seno de meu bom senhor

    que morreu? respondeu a me do juiz.

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    Senhora interveio Merlim , precisareis dizer a verdade, no caso de

    vosso filho no nos livrar a mim e a minha me; mas se ele o fizer, sem mais nada

    perguntar, eu me calarei.

    No farei nada disso interveio o juiz.

    Tereis pelo menos a vantagem de encontrar vosso pai vivo, pelo

    testemunho de vossa me disse Merlim ao juiz.

    Ao ouvir tais palavras, todos os que estavam presentes a este julgamento

    persignaram-se, to maravilhados ficaram.

    Senhora disse Merlim me do juiz , ser necessrio que digais a

    vosso filho a verdade sobre vosso pai.

    E j no a disse, demnio!

    Sabeis muito bem que ele no filho daquele que cuida ser.

    E de quem ento? replicou ela, apavorada.

    Sabeis, em verdade, que filho de vosso confessor! E eis aqui a prova:

    a primeira vez que dormistes com ele, dissestes-lhe que tnheis muito medo de que

    vos fizesse um filho. Ele vos respondeu que isto no aconteceria e que ele poria por

    escrito a anotao de cada vez que dormisse convosco. Ele temia, portanto, que a

    engansseis com outro homem, e naquela poca tnheis discrdia com vosso

    marido. Agora, dizei se verdade o que acabei de falar, seno, prosseguirei.- O que ele disse verdade? perguntou encolerizado o juiz a sua me.

    - Filho querido disse a me muito confusa , acreditais neste

    inimigo?

    Senhora continuou Merlim , se no reconheceis a verdade, direi

    ainda outra coisa que sabemos muito bem ser verdadeira.

    Corno a mulher continuasse muda, ele prosseguiu:

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    - Quando percebestes vossa gravidez, pedistes a vosso confessor que

    vos reconciliasse com vosso marido, antes que ele notasse vosso estado. Vosso

    confessor o enganou to bem que vos reconciliou, e ento dormistes .com vosso

    marido. Em seguida, fizestes com que ele acreditasse que vosso filho era dele, como

    o pensa ainda hoje grande parte das pessoas; vosso prprio filho aqui presente est

    firmemente persuadido disso. Quanto ao mais, continuastes vossa manobra e ainda

    hoje a sustentais,. Na noite anterior a vossa vinda para c, ainda dormistes com

    vosso confessor e, de manh, ele vos acompanhou bom pedao do caminho

    e, ao despedir-se, disse rindo no vosso ouvido: "Amiga, cuidai bem de fazer e dizer

    tudo o que meu filho quiser." Porque ele sabia muito que o filho era seu, por causa

    das anotaes que fizera.

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    Quando a me do juiz ouviu o que Merlim dizia e ela sabia muito bemque era tudo verdade , caiu sentada, com enorme assombro, e compreendeu que

    lhe convinha confessar tudo.

    Minha me disse-lhe o juiz , seja quem for o meu pai, eu sou

    vosso filho e vos tratarei como tal. Dizei, eu vos peo, se esse menino diz a verdade.

    Meu filho, em nome de Deus, piedade! No posso mais te esconder:

    aconteceu tudo como ele disse.

    Este menino dizia ento a verdade, quando afirmava que conhecia

    melhor seu pai do que eu, o meu! No pois justo que eu puna sua me, quando

    no puno a minha. Merlim dirigiu-se diretamente ao menino , eu te pergunto,

    em nome de Deus e para que eu possa te desculpar e a tua me diante do povo,

    quem teu pai?

    Vou dizer, mais por amizade do que pelo medo do vosso poder. Quero

    que saibais e acrediteis que sou filho de um demnio que seduziu minha me. Sabei

    tambm que demnios desta espcie chamam-se ncubos e vivem no ar. E Deus

    permitiu que esse demnio me desse o conhecimento das coisas feitas e ditas e

    acontecidas. Por isso que eu sei a vida que vossa me levou. E Nosso Senhor,

    para recompensar a virtude de minha me, seu sincero arrependimento, pela

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    penitncia que lhe imps o ermito, e pela obedincia aos mandamentos da nossa

    santa Igreja, deu-me a graa de conhecer, em parte, o futuro. E com o que vos direi,

    hei de prov-lo. Ento chamou o juiz parte e disse-lhe: Vossa me vai contar

    quele que vos gerou tudo o que eu disse. E quando ele souber, ter tal pavor e tal

    remorso, que no suportar. Ento empreender uma fuga por medo de vs; e o

    diabo, cujas obras sempre praticou, o far chegar margem de um rio, e nas guas

    deste rio se afogar. Poderei ento provar para vs que conheo o futuro.

    Merlim disse o juiz , se assim for, nunca deixarei de acreditar no

    que disseres.

    Encerrada essa conversa, voltaram para diante do povo.

    - Este menino disse o juiz, dirigindo-se a todos salvou sua me da

    fogueira. E todos quantos o virem saibam que nunca tero visto nem vero jamais

    algum to sbio.

    O povo respondeu:

    - Deus seja louvado! Ela est salva!

    Desse modo foi a me de Merlim salva da morte e a do juiz, culpada.

    Merlim permaneceu com os juzes. E aquele juiz mandou que dois homens

    acompanhassem sua me para saber se era verdade o que o menino havia dito. A

    me do juiz, assim que chegou casa, foi contar ao ermito tudo como se passara.Ao ouvir, ele ficou to espantado, que no respondeu palavra. Concluiu que, assim

    que os juzes chegassem, o matariam. Pensando assim, fugiu para fora da cidade e

    chegou a um rio, disse ento que mais lhe valia matar-se do que receber morte vil ou

    ser entregue ao suplcio pelos juzes. Foi assim que o diabo, cujas obras ele sempre

    havia feito, o induziu a lanar-se ao rio e afogar-se nas guas, sob os olhares dos

    dois homens que haviam sido enviados juntamente com a mulher e o haviam

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    seguido. Eis por que a estria aconselha que nenhum homem fuja da companhia

    dos outros, porque mais facilmente o diabo apodera-se de quem est isolado. As

    testemunhas da morte do ermito ele havia se afogado dois dias aps a chegada

    deles voltaram aos juzes e contaram o que haviam assistido. Quando o juiz

    soube que o ermito havia se afogado, tomou-o por grande maravilha e foi repeti-lo

    a Merlim. Merlim riu e disse ao juiz:

    Agora podeis saber que eu dizia a verdade. Peco-vos que, assim como

    o contastes para mim, tambm o conteis a Brs. Brs era o ermito que confessava

    sua me. E o juiz contou-lhe a maravilha que havia acontecido ao outro ermito.

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    Depois, Merlim saiu com sua me e Brs numa direo e os juzes,

    noutra. Brs era um clrigo cheio de sabedoria e de discernimento. Havia ficado de

    tal modo impressionado com as sbias palavras de Merlim que no entanto no

    tinha seno dois anos e meio de idade , que se perguntava onde poderia o menino

    ter haurido tamanha sabedoria. De diversas maneiras tentou sond-lo, at que

    Merlim lhe disse:

    Brs, no tente experimentar-me, quanto mais esforar-se nisso, mais

    surpresas ter. Faa porm o que lhe pedir e tenha confiana no que eu disser,

    assim lhe ensinarei a merecer o amor de Jesus Cristo e a ter alegria constante.

    Brs respondeu:

    Merlim, j ouvi contares e, da minha parte, acredito que foste gerado

    pelo diabo, por isso receio que me enganes.

    Disse-lhe ento Merlim:

    costume dos maus ver por toda a parte os prprios vcios e enxergar

    muito mais o mal do que o bem. O senhor me ouviu dizer que fui gerado pelo diabo,

    mas tambm me ouviu dizer que Nosso Senhor me havia dado a faculdade de

    conhecer o futuro. Se fosse sbio, o senhor deveria procurar saber qual caminho eu

    deveria seguir. Saiba que Nosso Senhor conferiu-me este poder, porque os diabos

    queriam perder-me, eu, no entanto, no perdi seu engenho e sua arte, antes tenhodeles aquilo que devo ter, mas no o utilizo em proveito deles. Eles, por sua vez,

    no foram sbios quando decidiram que um deles engravidaria minha me, como de

    fato engravidou: o vaso que me recebeu era muito puro para pertencer a eles, e a

    virtude de minha me prejudicou-lhes muito o plano. Se me tivessem feito e

    concebido em minha av, no teria tido o poder de conhecer a Deus e acabaria

    pertencendo a eles, pois ela levou m vida e por causa dela aconteceram todas as

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    catstrofes que se abateram sobre meu av e sobre minha me, como a ltima que

    lhe contei. Mas agora acredite que vou ensinar-lhe a respeito da f e da crena em

    Jesus Cristo, e direi coisas que ningum saberia dizer-lhe, a no ser o prprio Deus.

    faa disso um livro e assim muitas sero as pessoas que se tornaro melhores e se

    afastaro do pecado, ouvindo sua leitura, ento ter feito uma esmola e uma boa

    ao.

    Brs respondeu:

    De muito boa vontade farei o livro, mas te conjuro, em nome do Pai, do

    Filho e do Esprito Santo, to verdadeiramente quanto sei e creio nestas trs

    pessoas como um s Deus, em nome da boa senhora que carregou o corpo de

    Deus, de todos os santos apstolos, de todos os anjos e de todos os arcanjos, de

    todos os santos e santas, de todos os prelados da santa Igreja, de todos os homens,

    de todas as mulheres, de todas as criaturas que servem e amam a Deus, e peo que

    me ensines a no me enganar e nada fazer que no seja do agrado de Nosso

    Senhor Jesus Cristo.

    Que todos aqueles que acaba de nomear me prejudiquem junto a Deus

    respondeu Merlim se eu fizer com que o senhor aja contra a vontade de Jesus

    Cristo, meu salvador.

    Dize-me ento tudo o que queres, porque, desde j, farei o quejulgares que bom e deva fazer.

    V buscar bastante pergaminho e tinta, porque tenho muitas coisas a

    ditar que o senhor dever escrever no livro e no imaginaria que qualquer outra

    pessoa pudesse dizer.

    Depois que Brs ficou pronto, Merlim contou-lhe fielmente todas as provas

    de amor que Jesus Cristo havia dado a Jos de Arimatia. Contou-lhe em seguida a

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    estria de Alan e de seus companheiros, como havia partido da casa de seu pai e

    como Pedro havia partido e como Jos se desfez do Santo Graal e como morreu.

    Explicou como os diabos, diante destes acontecimentos, reuniram-se em conselho,

    porque haviam percebido que tinham perdido seu antigo poder sobre os homens.

    Considerando o prejuzo que os profetas lhes haviam causado, decidiram

    unanimemente gerar um homem.

    O resto acrescentou Merlim o senhor ouviu de minha me e de

    outros, quanto esforo e quanta astcia despenderam, mas no foram capazes de

    me conservar do lado deles.

    Desse modo Merlim exps toda a estria a Brs que a meteu por escrito.

    Maravilhou-se muito com as revelaes de Merlim, e dizia que todas essas

    maravilhas pareciam-lhe boas e belas e as ouvia com muito agrado.

    Enquanto trabalhava, Merlim disse-lhe:

    Esta obra que o senhor est escrevendo lhe causar muitos

    sofrimentos e a mim ainda maiores.

    Como assim?

    Serei procurado desde o Ocidente e todos os que vierem a minha

    procura tero jurado a seus senhores matar-me e levar-lhes meu sangue. No

    entanto, logo que me virem e me ouvirem, perdero a vontade de cumprir seus juramentos. E quando eu for com eles, o senhor se dirigir para onde habitam os

    que guardam o Graal, l o escutaro sempre e conservaro de bom grado o livro em

    que tanto tem trabalhado. Entretanto este livro no estar revestido de autoridade,

    porque o senhor no tem autoridade, visto que no pode ser um apstolo. Os

    apstolos no meteram em escrito seno o que viram e ouviram de Nosso Senhor,

    ao passo que o senhor, o que faz meter no livro o que viu e ouviu por meio de

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    mim. E assim como eu sou obscuro para as pessoas a quem no quero esclarecer,

    assim seu livro ser cheio de segredos e poucos os haver que os desvendaro.

    Quando eu for com os que vierem me buscar, o senhor levar o livro. Ento, os

    livros de Jos e de Bron e o seu, quando o senhor o tiver terminado, sero reunidos.

    E ser boa coisa, prova do meu e do seu trabalho. Aqueles a quem agradar sero

    reconhecidos e rezaro a Nosso Senhor por ns. E quando os dois livros forem

    reunidos, formaro um belo livro e os dois sero a mesma coisa, s no estaro l

    as palavras secretas trocadas entre Jesus Cristo e Jos, que no posso e nem devo

    contar.

    Assim diz Roberto de Boron que este conto relata e assim ditou Merlim

    que no pde saber o Conto do Graal.

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    No tempo de que vos falei e ainda vos estou falando, a Inglaterra apenas

    havia recebido o cristianismo, e no tinha tido ainda nenhum rei cristo. Dos reis

    anteriores nada vos falarei, a no ser o que tiver relao com o meu conto. Houve

    um rei na Inglaterra chamado Constncio. Seu reinado durou muito tempo. Ele tinha

    trs filhos: o mais velho chamava-se Moines, o segundo Pendrago e o terceiro Uter.

    Constncio em sua terra tinha um homem que se chamava Vortigerne, homem cheio

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    de sabedoria, muito hbil e bom cavaleiro, no seu tempo. Constncio morreu, e seus

    sditos perguntavam-se a quem escolheriam para suced-lo. A maioria concordou

    que fizessem rei a Moines, porque era o mais velho. O prprio Moines concordou e

    ento o fizeram rei. Quando Moines tornou-se rei, houve uma guerra e Vortigerne

    tornou-se senescal. Os saxes, com efeito, declararam guerra ao rei e s

    populaes que reconheciam as leis de Roma e atacaram repetidamente os cristos.

    O senescal, no entanto, governava como bem entendia, visto que o rei era apenas

    um menino e no tinha a sabedoria nem a bravura necessrias para sua funo.

    Vortigerne, por sua vez, detinha grande parte do reino sob seu domnio e gozava de

    muita simpatia entre as pessoas que, como ele sabia, reconheciam sua fora.

    Quando ele avaliou que o tinham por prudente e sbio, orgulhou-se muito e visto

    que se considerava insubstituvel renunciou a continuar comandando a guerra e a

    ocupar-se de negcios do rei. Ento afastou-se dessas atividades. Quando os

    saxes souberam disso, reuniram-se e vieram com grande fora atacar os cristos.

    Moines foi ento procurar Vortigerne.

    Amigo, peco-vos que me ajudeis a defender este reino. A sorte de

    todos os seus habitantes, bem como a minha, est em vossas mos.

    Senhor, que outros encarreguem-se disso doravante, porque em vosso

    reino h pessoas que me odeiam por vos ter servido. Ento quero que agora essaspessoas se ocupem da guerra, porque eu no me ocuparei nunca mais.

    Quando o rei e os seus viram que Vortigerne no mudava de opinio,

    partiram para combater os saxes. Mas estes venceram, e, de volta, os homens de

    Moines confessaram a derrota e disseram que tudo teria sido diferente, se

    Vortigerne tivesse ido com eles. E assim ficou. O rei menino no sabia governar nem

    ganhar a simpatia das pessoas de que precisava, e muitos comearam a odi-lo.

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    Chegou o dia em que o rei Moines foi considerado mau e seus sditos se recusaram

    a suport-lo mais tempo. Ento foram procurar Vortigerne.

    Senhor, estamos sem rei e sem chefe, porque nosso rei no vale nada.

    Por Deus, pedimos que sejais nosso rei e nos governeis, porque ningum melhor do

    que vs deve reinar nesta terra.

    Senhores, se o rei tivesse morrido e me pedsseis para suced-lo, de

    bom grado aceitaria, mas enquanto Moines for vivo, impossvel.

    Cada um que ouviu essa resposta de Vortigerne interpretou-a a seu

    modo. Despediram-se de Vortigerne, voltaram para suas terras e reuniram seus

    amigos para examinar a situao e contaram a conversa que haviam tido com ele.

    O melhor que temos a fazer concluam eles matar Moines.

    Depois que o matarmos, Vortigerne ser rei. Ento saber que chegou ao trono,

    graas a ns que matamos Moines por ele, e far tudo o que quisermos; assim o

    teremos em nossas mos.

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    Procuraram ento entre si quem mataria o rei e escolheram doze. Os

    doze dirigiram-se a Moines munidos de facas e espadas com que o matariam, mas

    seus cmplices tambm estavam na cidade para ajud-los, se fosse o caso. Ento

    entraram os doze onde Moines estava, lanaram-se sobre ele e o mataram a golpes

    de faca e de espada. Tudo se passou muito rpido Moines era muito jovem, um

    menino e diante de uma indiferena quase geral. Os conjurados voltaram ento a

    Vortigerne e disseram-lhe:

    Ser rei, porque matamos o rei Moines. Ao ouvir esta nova, Vortigerne

    encolerizou-se.

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    Senhores disse ele , fizestes muito mal assassinando vosso

    senhor e aconselho-vos a fugir. Os senhores desta terra vos mataro, se puderem

    apoderar-se de vs; de minha parte, estou muito descontente por vos ver aqui.

    Os conjurados retiraram-se.

    Depoi