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89 Roberto José Moreira Renda da natureza e territorialização do capital: reinterpretando a renda da terra na competição intercapitalista Preliminares Esta contribuição procura atender a proposta de programa que visa fundamentar noções conceituais associadas à compreensão da agricultura na Amazônia e, em especial, sobre a questão das inter-relações entre campesinato e ecologia. Apesar de não ser uma discussão específica sobre a Amazônia, e nem sobre o campesinato e ecologia na Amazônia, consideramos esta problematização pertinente ao tema proposto, como procuraremos demostrar. Procurando não dissociar o todo da parte, em uma perspectiva de análise holística do social histórico, estaremos retomando as discussões sobre renda

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Roberto Moreira Renda da Terra

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    Roberto Jos Moreira

    Renda da natureza e territorializao do capital: reinterpretando a renda da terra

    na competio intercapitalista

    PreliminaresEsta contribuio procura atender a proposta de programa que visa fundamentar noes conceituais associadas compreenso da agricultura na Amaznia e, em especial, sobre a questo das inter-relaes entre campesinato e ecologia. Apesar de no ser uma discusso especfica sobre a Amaznia, e nem sobre o campesinato e ecologia na Amaznia, consideramos esta problematizao pertinente ao tema proposto, como procuraremos demostrar.

    Procurando no dissociar o todo da parte, em uma perspectiva de anlise holstica do social histrico, estaremos retomando as discusses sobre renda

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    da terra, ressignificando-a como renda da natureza.1 Estaremos pensando esta questo na perspectiva da competio intercapitalista pela apropriao do conhecimento sobre a natureza.2

    Move-nos a noo geral de que a utilizao das terras, e da natureza, est associada ao conhecimento que se tem sobre elas. A propriedade privada sobre estes recursos garante ao seu proprietrio um lugar na disputa da apropriao deste conhecimento e da mais-valia social. Nossa hiptese a de que o processo de mercantilizao das terras, aqui entendido como territorializao do capital, associa a apropriao das terras formao de uma frao da classe capitalista: o capitalista agrrio, enquanto proprietrio do capital imobilizado em terras.

    Nosso esforo de reintepretao da renda da terra envolve, portanto, a reinterpretao da figura do proprietrio de terras. Percorreremos este caminho comeando por uma releitura do debate originrio da renda da terra, enfatizando a perspectiva de classe dos autores envolvidos, em particular, os fisiocratas, Ricardo e Marx. Natureza como uma ddiva, como algo externo ao fazer humano. Nossa reinterpretao sobre a renda diferencial I, enfatiza a faceta da apropriao do conhecimento como um elemento da competio intercapitalista. Aqui elaboramos, tambm, o argumento de que a imobilizao do capital dinheiro, em terras, um processo de territorializao do capital. Apontamos, ainda, questes relacionadas com a especificidade da valorizao desta frao do capital na disputa intercapitalista e discutimos a questo do tamanho e do poder de mercado a ele associado, procurando localizar o pequeno e o campons mercantil, nesta esfera da competio. Finalizamos, com algumas reflexes e hipteses de trabalho para a compreenso do caso brasileiro. A seguir apresentaremos algumas consideraes sobre a questo do conhecimento, e da apropriao do conhecimento nas sociedades capitalistas.

    1 Ver Capra (1982) para a discusso de elementos de uma viso sistmica e holstica do saber cientfico e Moreira (1993a) para alguns significados da questo ambiental contempornea.

    2 Castoriadis (1978: 135-157), em O dizvel e o indizvel e na linha da fenomenologia da percepo, argumenta sobre o carter sociohistrico da percepo da natureza e da idia de natureza, ou seja, sobre a historicidade do mundo natural. Ver tambm Thomas (1988).

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    A apropriao do conhecimentoA sociologia do conhecimento, que lida com a questo da construo social da realidade, elabora-se compreendendo o saber-fazer humano como um processo dinmico e diacrnico de exteriorizao, objetivao e interiorizao. Neste processo, o social histrico conforma uma realidade objetivada nas instituies sociais e uma realidade subjetivada na psique, individual e coletiva. Esta percepo sobre a realidade do mundo da cultura implica no reconhecimento de uma realidade polimorfa e mutante. O mundo da cultura torna-se uma magma da significaes e a prpria realidade torna-se relativa.3 Reconhecer estas realidades, como significaes que informam sentidos para a ao e do significado para a vida, significa o reconhecimento de diferentes realidades culturais. Realidades conformadoras do convvio dinmico, da colaborao e da disputa: polimorfo e mutante; conservador e criativo; de futuro incerto e imprevisvel.

    Esta uma das caractersticas bsicas da percepo do mundo cultural, e da realidade, que est se convencionando denominar de ps-moderno, de ps-modernidade: a ordem da desordem.4

    A dinmica das sociedades capitalistas envidencia esta realidade polimorfa e mutante, tanto por suas diferenas no tempo histrico, quanto por suas formaes sociais especficas. Em particular, os conhecimentos cientfico e tecnolgico tornam-se o lcus privilegiado da inovao: a apropriao do conhecimento torna-se, nestas sociedades, um elemento chave de sua dinmica econmica, social e cultural.

    Estas consideraes apontam para um embate cultural e uma dominao cultural no fixa; capaz de mudar, permanecendo. A dominao cultural, e suas crticas, conformam um campo de realidade polimorfa, onde valorizam-se determinados saberes, desvalorizando outros.

    Em que sentido uma nova percepo sobre a natureza, em curso em nossa contemporaneidade, tende a valorizar ou desvalorizar a cultura, por exemplo, dos povos da Amaznia e o saber campons? Como estes conhecimentos sero apropriados no contexto da lgica polimorfa e mutante da competio intercapitalista?

    3 Ver Berger e Luckmann (1990) para a anlise da sociedade como realidades objetiva e subjetiva e Castoriadis (1975: 201-258) para as significaes imaginrias sociais.

    4 As noes de caos, de desordem, de dinmica, de incerteza, de diversidade, de biodiversidade e de conjuntos nebulosos ajudam a avanar na percepo da realidade do social histrico.

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    Nos processos da dinmica econmica capitalista as crises desvalorizam capitais, setores produtivos, estruturas produtivas e padres tecnolgicos. As expanses valorizam novas esferas, ramos e tecnologias, como , recentemente, os casos da informtica, da automao, das comunicaes e da biotecnologia.

    A questo da institucionalizao do conhecimento cientfico e tcnico, no capitalismo contemporneo,5 coloca em pauta a anlise da produo e da apropriao do conhecimento.

    A questo do progresso tcnico um dos elementos bsicos da competio intercapitalista. O conhecimento associado questo ecolgica contempornea, e a possibilidade de configurao de um capitalismo ecolgico, com a incorporao dos constrangimentos ambientais lgica capitalista,6 reintroduzem a questo da apropriao privada dos recursos naturais na ordem do dia. Colocam novos significados territorializao do capital na Amaznia, ao ambientalista do Estado e s aes diferenciadas, e diferenciadoras, das ONGs ambientalistas.

    Pretendemos contribuir para a compreenso destes processos, retomando discusses sobre renda da terra,7 competio intercapitalista e apropriao do conhecimento sobre a natureza.

    Os processos de valorizao da terra e da natureza sero aqui abordados como elementos da competio intercapitalista, como processos de mercantilizao da terra e da natureza.

    5 Ver Habermas (1968) em suas discusses sobre cincia e tcnica como ideologia; onde aponta este saber como uma fora produtiva do tardo-capitalismo e como legitimador cultural da tcnico-burocracia. Esta questo nos remete tambm compreenso da natureza intelectual do trabalho produtivo, do trabalho intelectual como trabalho produtivo, da proletarizao do trabalho do intelectual e da rediscusso das sociedades de trabalho modernas. Coloca em crtica a noo cultural de que o saber tcnico neutro e exterior prpria dinmica da competio intercapitalista. Esta temtica nos remete ainda s questes relativas mercantilizao de bens culturais.

    6 Ver Moreira (1991) e (1993a) para uma visualizao de processos conformadores de um capitalismo ecolgico.

    7 Inicialmente levantado em Moreira (1979) e (1981) luz da economia poltica. Ver tambm Moreira (1993b).

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    Fisiocratas, Ricardo e Marx: renda da terra e o embate ideolgicoA discusso originria sobre a renda da terra se d no contexto histrico da revoluo industrial e das revolues burguesas na Europa, em particular, no chamado perodo de transio. Este perodo histrico est associado absolutizao da propriedade da terra: sua transformao em mercadoria; livre de entraves.

    Este processo um

    Processo social e poltico que envolve a ruptura da estrutura hierrquica e remontada de deveres, obrigaes, honra e lealdade, circunscrita propriedade feudal. As trajetrias constitutivas dos Estados absolutistas evidenciam, histrica e assincronicamente, a centralizao do poder do rei e a desvinculao da propriedade de seus traos feudais, abrindo-lhe a possibilidade de adquirir forma mercantil, livre de quaisquer outros atributos que no os da condio de mercadoria (Smith, 1990: 340-341).

    A discusso sobre a renda da terra envolve a elaborao interpretativa da fisiocracia francesa, a economia clssica inglesa e a interpretao de Marx, em sua crtica economia poltica.8

    Homogeneizar estas elaboraes, sem situar o contexto histrico distinto no qual falam os autores, e sem buscar entender a posio de classe da qual eles falam, pode levar a algumas confuses interpretativas. Ricardo e os economistas clssicos promovem uma ruptura metodolgica, que, tambm, no deixa de ser ideolgica9 com a fisiocracia. O mesmo se pode dizer em relao a Marx e sua crtica economia poltica de sua poca: uma crtica ideologia dominante.

    Em Marx, um dos significados fundamentais da lei do valor, e da mais valia, tem a ver com a explicitao do carter de classe do capitalismo. Sua teoria da explorao explicita sua viso sobre a natureza e o carter destas sociedades. Os economistas clssicos no fizeram esta ruptura epistemolgica/ideolgica.

    8 Veja Galbraith (1989) para uma contextualizao histrica destes pensamentos e suas significaes.

    9 Heilbroner (1988: 78) concebe como ideologia as opinies da classe dominante mantidas de maneira profunda e inconsciente em qualquer ordem social.(...), as ideologias so sistemas de pensamento e de crena por meio dos quais as classes dominantes explicam a si mesmas como funciona seu sistema social e que princpios ele subentende. Por conseguinte, os sistemas ideolgicos existem no como fices, mas como verdades e no apenas verdades probatrias mas verdades morais. A ideologia capitalista tem exatamente a mesma funo explicativa que a dos sistemas feudal ou tributrio de crena.

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    Nem Smith, nem Ricardo, que muito contriburam para o entendimento que Marx veio a ter sobre a questo da sujeio da fora de trabalho ao capital, interpretam a existncia das classes no capitalismo atravs de uma teoria da explorao.

    A posio de classe,10 associada s elaboraes tericas sobre a renda da terra, vai posicionar cada autor a favor ou contra a renda absoluta. A questo aqui tem a ver com a interpretao sobre o significado do monoplio de classe sobre os recursos da natureza, que vai justificar o rendimento sobre a propriedade da terra.

    Os fisiocratas[11] afirmam o domnio da natureza. Eles visavam, na formulao de suas teorias, uma compreenso de sua poca: o antigo regime na Frana. Tinham tambm a pretenso de reformar o antigo regime e defend-lo ao mesmo tempo, na perspectiva de conservao da ordem e dos interesses dominantes. Estavam distanciados de uma perspectiva burguesa revolucionria, em seu combate aos mercantilistas. Este contexto imprime uma significao especfica ao lucro empresarial do fermier. Ao interpret-lo como salrio, igualavam o fermier ao trabalhador agrcola, considerando-os como classe produtiva. Ocultando as diferenas, mascaravam uma possvel explorao de classe na agricultura empresarial. Unificavam as atividades do comrcio e da manufatura (atividades originrias da burguesia) e associavam-nas aos mercantilistas, interpretando-as como atividades improdutivas (classes improdutivas).

    Afirmando o domnio da natureza e suas leis naturais, os fisiocratas sustentavam a existncia e a preservao da propriedade com base na lei natural e, no no direito divino, ou de sangue, prprios da interpretao e justificativa da ordem feudal. Com base no laissez-faire, laissez-passer, advogavam contra os mercantilistas, seus privilgios e sua influncia nas polticas do Estado. Estando a favor da liberdade de comprar e vender, estavam contra os monoplios mercantilistas, o que os colocava contra qualquer monoplio, inclusive aqueles associados ao direito divino, ou de sangue, sobre a propriedade patrimonial. Vo justificar a propriedade fundiria, base de sustentao da oligarquia agrria francesa, com o argumento de que a natureza a fonte geradora do produto lquido.

    10 Categoria analtica indicadora dos interesses de classe expressos na elaborao interpretativa dos autores, ou atores sociais.

    11 Eruditos e aristocratas franceses que exerceram influncia significativa nos reinados de Lus XV e Lus XVI.

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    O embate poltico e ideolgico central contra os mercantilistas. Na interpretao fisiocrtica, o direito ao produto lquido no poderia aparecer, ou ser concebido, como direito de monoplio: o direito advm do carter produtivo do trabalho associado natureza. No poderia surgir, portanto, a partir desta posio de classe, uma interpretao que conformasse uma teoria de renda absoluta, caracterizadora do monoplio sobre os recursos naturais, objetivados na terra.

    Para a Inglaterra de Smith, Anderson e Ricardo, particularmente em Ricardo, a negao da renda absoluta vai ser um dos elementos decisivos em sua luta, poltica e ideolgica, contra o poder dos landlords no Estado; a favor da burguesia industrial. Desta perspectiva, Ricardo questiona o monoplio da propriedade fundiria da oligarquia inglesa, associando-a a atributos feudais que impedem a livre compra e venda de terras. Esta imperfeio, no mercado de terras, sujeita os arrendatrios ingleses, e a indstria, vontade da oligarquia fundiria. Este monoplio, associado a elementos da ordem feudal, funcionaria como o elemento chave para a elevao dos preos dos produtos agrcolas e a transferncia de valores gerados pela indstria aos proprietrios de terra; concebidos como ociosos e improdutivos. Neste sentido, para Ricardo, a terra no uma mercadoria plena.

    Em Ricardo, a propriedade fundiria, como patrimnio aristocrtico, est associada negao da renda absoluta. Admitir teoricamente a renda absoluta seria, no plano ideolgico e poltico, admitir a legitimidade da fonte justificadora desta renda: a legitimidade da propriedade patrimonial aristocrtica. Esta negao , tambm, a negao do direito do patrimnio herdado da ordem anterior.

    Para Ricardo, a propriedade fundiria em si12 no justificaria nenhum acesso apropriao de parte do excedente econmico. Esta posio de classe, interpretativa dos interesses da burguesia industrial e dos arrendatrios capitalistas ingleses de sua poca, vai imprimir um significado especfico, em sua concepo de renda da terra, como renda diferencial.

    A renda diferencial I vai ser reconhecida como aquela parcela do valor dos produtos do solo que paga ao proprietrio pelo uso dos poderes originais e indestrutveis do solo (localizao e fertilidade). Sua idia sobre renda diferencial esteve associada a dois pressupostos bsicos. De um lado, a concepo malthusiana da lei da populao e, de outro, a afirmao de que as

    12 Que em Marx est associada noo de renda absoluta e noo de monoplio de classe.

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    terras que eram adicionadas ao uso, na margem, eram terras menos frteis e de pior localizao. A demanda crescente de produtos da terra, devido ao aumento populacional, requer que piores terras entrem em uso. Isto viria a garantir um ganho adicional, diferencial, s terras j em uso. Estas diferenas, de fertilidade e de localizao, entre as terras em uso, seriam os elementos explicadores e justificadores da renda da terra: a renda da terra propriamente dita.

    Assim, em Ricardo, a renda fundiria propriamente dita (renda diferencial I) aquela devida e explicada pelas diferenas naturais do solo. A propriedade privada do solo daria direito a este rendimento, como um rendimento da natureza.

    A renda diferencial II refere-se aos benefcios remanescentes que o investimento do arrendatrio deixa incorporado ao solo, tais como desmatamento para plantio, terraceamentos, drenagem, audes, etc... Estes benefcios, no devidos natureza, valorizam a terra e, tambm, garantem um direito de elevao do preo de arrendamento, nos prximos contratos.13

    O que nos interessa, no momento, ressaltar que, na tradio fisiocrtica, e, tambm, em Ricardo, a apropriao da natureza o nico elemento justificador da renda propriamente dita. Qualquer outro elemento justificador da renda, tais como, o direito divino ou de sangue, prprios da interpretao e justificativa da ordem feudal, negado como sendo legtimo. Para Ricardo ilegtimo na ordem competitiva capitalista.

    Como, no ver de Ricardo, a oligarquia fundiria inglesa impe outros ganhos alm daqueles devidos s rendas diferenciais, o monoplio da terra considerado como entrave ao capitalismo industrial. Seus proprietrios so considerados improdutivos. No so uma frao de classe do capitalismo, mas um resqucio da ordem anterior, que precisa ser combatido.

    Em Ricardo, e, tambm, em Marx, a terra vai ser considerada como um elemento que atua na esfera da distribuio de valores; na circulao. No um elemento da produo. Os atributos da fertilidade e localizao so considerados como ddivas da natureza aos homens. Como substrato natural da produo social. No

    13 Esta percepo leva Marx a conceb-la como frutos da incorporao de trabalho passado terra. Refere-se portanto s terras j trabalhadas, onde o uso anterior deixa incorporado trabalho humano. Este tambm seria o caso do campesinato da fronteira que, expulsos, deixam terras desmatadas e prontas para o cultivo.

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    so considerados como elementos sociais da produo. Nossa reinterpretao, no prximo tpico, coloca esta questo de outra forma.

    Marx, em sua perspectiva de compreenso das classes, como classes proprietrias e no proprietrias dos recursos materiais produtivos, vai interpretar a sociedade capitalista de uma posio de classe crtica interpretao dominante: da posio da classe trabalhadora. Em sua teoria da renda da terra, a renda absoluta ganha significao como uma renda de propriedade, como monoplio de classe, como renda em geral,14 da mesma forma que a propriedade do capital d acesso a um lucro em geral.

    A renda da terra, enquanto renda em geral, vai permitir conceber como unificados os interesses da classe proprietria de terras e os interesses da propriedade capitalista.15

    Em Marx, a terra j reconhecida como mercadoria, objeto de compra e venda. A lgica analtica de Marx se d em cima do pressuposto de uma agricultura capitalista, portanto mercantil. A propriedade da terra, como mercadoria, vai permitir que ela funcione na competio intercapitalista como equivalente de capital. A renda absoluta aqui no pode ser concebida como uma renda patrimonialista, como resqucio da ordem feudal: uma renda de propriedade (monoplio de classe) de um tipo particular de mercadoria, no capitalismo.16

    Enquanto os fisiocratas e Ricardo vo negar, por razes diversas, a renda absoluta, Marx vai argumentar que a propriedade privada, enquanto propriedade e enquanto essncia da ordem capitalista, garante ao proprietrio um rendimento vis vis aos no proprietrios dos bens de produo: os trabalhadores.

    Esta postulao interpretativa associa, em algum nvel, os interesses do proprietrio de capital e de terra; em oposio aos interesses dos trabalhadores.

    14 Devo esta compreenso Silva (1981), que reinterpreta a renda absoluta em um sentido originrio em Marx. Para ele a renda absoluta no logicamente demonstrvel como uma parcela quantificvel da renda da terra, ganha significado como renda da terra em geral.

    15 Reconhecer estes interesses como unificados, em geral, no significa conceb-los como idnticos. H um campo de expresso desta diversidade: o campo da distribuio da mais valia; que o campo da competio entre proprietrios na apropriao do excedente econmico. O campo analtico o da competio intercapitalista.

    16 A meu ver, este o sentido que Marx atribui propriedade privada em geral, como base do Estado moderno.

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    Este um dos sentidos da noo da mercadoria terra como equivalente de capital.

    Esta noo abre espao para a anlise dos embates do interesses divergentes, entre capitalistas (financeiros, industriais, comerciais e arrendatrios) e proprietrios de terra, como um dos aspectos da competio intercapitalista; como parte componente da dinmica do capital. Neste contexto, basta que a terra seja uma mercadoria plena, sem entraves no mercado de terras, e que a propriedade privada esteja na base de fundamentao do Estado.

    Com a generalizao do mercado de terras, a parte do capital social que se encontra imobilizado em terras vai funcionar como equivalente de capital; , em nossa perspectiva, capital territorializado. Apresenta uma rigidez de localizao, um limite sua mobilidade, mas apresenta, tambm, uma potncia produtiva mltipla devida fertilidade.

    O acesso ao uso da terra, fora do arrendamento capitalista, vai requerer, do aspirante a proprietrio, a acumulao prvia de capital sob a forma de dinheiro: um requisito de comprador.17 A anlise da separao entre arrendatrio e proprietrio da terra, caso clssico da Inglaterra, ou a sua unificao em uma s figura social, como a regra no caso brasileiro, teria que ser remetida s condies histricas das diferentes formaes sociais capitalistas e ao contexto da competio intercapitalista nestas formaes.18 Voltaremos ao assunto nas consideraes finais.

    17 Neste sentido pode-se dizer sobre um processo de territorializao do capital. Podemos, assim, pensar a oligarquia agrria como uma frao de classe do capitalismo; como capitalistas fundirios ou agrrios.

    As reformas agrrias burguesas, no associadas transio, teriam que ser compreendidas como elementos de ruptura paradigmtica no interior da ordem e da competio capitalista; como reformas desta ordem, no como sua negao. Como processos sociopolticos de reduo do poder de mercado dos proprietrios de terra, frente ao poder de mercado do capital financeiro, industrial e comercial, incluindo suas representaes e poderes no Estado, bem como, no exerccio da hegemonia.

    18 A meu ver, concepo da propriedade da terra como barreira ao capital ou como limite do capitalismo no campo, que os analistas tm ressaltado como oposio entre a propriedade da terra e a propriedade do capital teria que ser repensada no como uma oposio entre classes no-capitalistas e capitalistas, mas como uma expresso da diferenas de interesses na competio.

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    Renda da natureza como apropriao do conhecimentoA concentrao da propriedade da terra, que define o funcionamento do mercado de terras, est associada ao acesso terra e ao prprio carter da democracia burguesa de uma formao social especfica.19

    Em geral, tanto na tradio ricardiana quanto na marxista, fertilidade e localizao so tomadas, a-historicamente, como atributos da natureza: como doao da natureza ao fazer humano, como dados exteriores ao fazer e cultura humana.

    Esta concepo aparece associada compreenso da especificidade da mercadoria terra, como elemento bsico da circulao/distribuio e, no, aos processos produtivos no campo. A noo de que a terra no produto do trabalho humano, no sendo, portanto, reproduzvel, vai ser o elemento bsico para diferenci-la dos produtos do capital, em Marx, e como elemento exterior produo de mercadorias por meio de mercadorias, na perspectiva neo-ricardiana de Sraffa.20

    A incapacidade de compreenso deste fenmeno social est associada idia de produo de mercadorias por meio de mercadoria, sob a organizao direta do capital produtivo. Como a terra e a fertilidade no so produtos de uma esfera produtiva capitalista especfica, a incorporao delas na anlise apreendida como algo externo ao capital produtivo e ao capital social, tornando-se uma ddiva da natureza.21

    19 Imprime sua marca no poltico, na conformao das elites, na conformao dos processos de industrializao, em no carter de excludncia e de incorporao de massas trabalhadores, ao consumo capitalista. Ver Moreira (1978; 1981b; 1982; 1995) para algumas anlises sobre o caso brasileiro no perodo Republicano.

    20 Colocando de outra forma: nesta perspectiva, as diferenas de fertilidade das terras em uso, ao potencializarem, de forma diferenciada, o trabalho aplicado s terras, vo conformar diferenas na produtividade do trabalho. Um mesmo conjunto tcnico organizado pelo capital no campo vai apresentar uma eficincia produtiva diferenciada, que se reflete em diferentes custos unitrios de produo. Frente a um preo nico de mercado, a apropriao destas diferenas, pelos capitalistas ou pelos proprietrios de terra, seria, portanto, a apropriao da natureza: de algo no social.

    Esta concepo vai permitir a anlise da renda da terra como ocorrendo apenas na esfera da distribuio. Como a fertilidade concebida como um elemento exterior ao fazer humano, como uma exterioridade do mundo natural, no faz sentido pens-la como um elemento potenciador do trabalho, portanto da produtividade do trabalho, no mesmo sentido que adquirem os instrumentos de trabalho.

    21 Em nosso esforo argumentativo, buscando uma redefinio conceitual, move-se a noo de que a natureza como fato social do capitalismo um produto da sociabilidade humana: sujeito apropriao privada. Tambm nos inspira aqui a tese de que a institucionalizao do saber cientfico e tcnico e, portanto, da tecnologia aplicada est associada expresso dos interesses dominantes no desenvolvimento do tardo-capitalismo e ao exerccio da dominao econmica, social e poltica e cultural, j apontada na discusso sobre a apropriao do conhecimento.

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    A questo que coloco em discusso aqui a noo de natureza e de natural associada discusso da renda da terra e s discusses sobre os direitos sobre a natureza na ordem capitalista. Ao no entend-la como natural, nos sentidos ricardiano e marxista, e, sim, como uma naturalidade da sociabilidade capitalista, cabe-nos indagar sobre o sentido e a significao das noes de fertilidade e de localizao no contexto da apropriao capitalista.

    Em relao renda diferencial I, de localizao, a localizao que conta no uma localizao absoluta, mas uma localizao em relao aos mercados.

    No interior de uma nao, o que conta so os processos sociais de urbanizao, que localizam uma determinada terra aos ncleos civilizatrios mercantis da urbanizao. Os investimentos, pblicos e privados, realizados fora dos espaos da propriedade agrria se objetivam na valorizao da propriedade.22

    Se concebermos que so os processos sociais de urbanizao, transportes e comunicao, que localizam produtivamente uma terra, a valorizao das terras se d por fatores externos aos gastos de seu proprietrio e ao trabalho aplicado diretamente na terra. Este dispndio social, no entanto, se objetiva em suas terras, valorizando-as.

    a propriedade da terra que garante, e legitima, o lugar do proprietrio na disputa destes benefcios, tambm disputados pelos capitais que se localizam no setor de transportes e de sua infra-estrutura. Estes ganhos so gratuitos, uma apropriao privada sobre o conjunto da sociedade.

    No contexto capitalista, a fertilidade aparece como um conhecimento, como um saber social, e, no, como uma externalidade do social-histrico: como um

    22 A aventura civilizatria dos grandes descobrimentos no pode ser pensada sem o progresso das navegaes, de um lado, e da valorizao do produtos exticos na Europa, de outro. Os investimentos pblicos, em transportes, especialmente estradas, e a interiorizao da urbanizao podem significar ganhos relativos dos proprietrios, no contexto da disputa intercapitalista. Neste contexto, no irrelevante o traado de uma ferrovia, de uma Belm-Braslia, de uma Transamaznica, de estradas vicinais e de barragens e audes pblicos. A histria poltica brasileira farta de disputas entre fraes de suas elites agrrias pelo direcionamento dos investimentos pblicos, que possam se rebater na valorizao de suas terras.

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    dom da natureza ou como uma ddiva divina. O conhecimento sobre a natureza, e sua fertilidade, torna-se a chave para sua utilizao produtiva: informa, e conforma, as tcnicas e a ao produtiva.

    A noo de fertilidade, como um elemento social-histrico, introduz as questes da produo social deste conhecimento, esteja ele associado uma sociabilidade do trato cotidiano com as terras, prprio do saber campons e das populaes agrrias, esteja ele associado ao conhecimento cientfico e tcnico institucionalizado, prprio das sociedades contemporneas.

    A questo da produo do conhecimento nos remete, novamente, questo da apropriao deste conhecimento e renda diferencial I.

    O conceito de renda diferencial I tem esta questo como uma questo subjacente, que aqui procuramos analisar. O conhecimento sobre a fertilidade das terras e o uso produtivo dos recursos da natureza varivel social e historicamente.23 Este conhecimento se objetiva nas terras e nos recursos da natureza. Com sua interiorizao na psique passa a ser tomado como algo exterior ao prprio fazer humano, em um processo de reificao e fetichizao do objeto material,24 j referido em item anterior.

    Se concebermos que, no geral, a sociedade despende parte de seu trabalho social na produo deste conhecimento, e que este dispndio, ou investimento, no diretamente aplicado uma propriedade em particular, o direito privado sobre uma parte dos solos vai viabilizar que seu proprietrio entre na disputa pela apropriao do trabalho social relacionado produo deste conhecimento. Seu patrimnio se valoriza, em virtude desta apropriao indireta do conhecimento

    23 Como o caso, por exemplo, do potencial produtivo das quedas dguas, da expanso do gs e do vapor, do petrleo e do urnio. Estas ddivas da natureza, s para explicitar o argumento, no faziam sentido e no eram objeto de apropriao em tempos passados. Os ciclos extrativistas do pau-brasil, da borracha e os ciclos produtivistas da cana, do cacau e do caf, por exemplo, so marcados por conjunturas nacionais e internacionais especficas.

    24 Base da cultura positivista e materialista e da operao do pensamento cientfico que reduz a realidade humana realidade do objeto. Em uma perspectiva objetivista, a fertilidade percebida como um elemento intrnseco s terras, independente do que se sabe sobre ela. O que estamos aqui ressaltando que nos processos sociais h uma dialtica entre o saber e o fazer, o saber que conta aquele que se conforma em ao. Nas sociedades mercantis, a fertilidade que conta aquela relativizada pelo aparato tcnico-produtivo da sociedade.

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    produzido: as terras frteis objetivam mais valores.25

    No h aqui um questo de uma fertilidade absoluta mas, sim, uma questo de uma fertilidade relativa s tcnicas em uso. Mesmo que um proprietrio de terras no despenda um nquel de seus recursos prprios, ou um minuto de seu tempo, na produo destes conhecimentos, a propriedade sobre s terras lhe d o direito de disputa sobre os frutos do progresso tcnico aplicado. Este um poder de mercado, que a propriedade da terra apresenta na competio intercapitalista: ser grande ou pequeno, e estar em posse de terras frteis relativas ao seu tempo social histrico, tem a ver com o exerccio deste poder.

    Esta interpretao pode lanar nova luz sobre a anlise do progresso tcnico na agricultura e do desenvolvimento da cincia e da tecnologia aplicada agricultura.26

    Neste contexto analtico, a propriedade torna-se um elemento na disputa sobre o conhecimento que se tem sobre a natureza. A propriedade da terra um dos caminhos ao acesso e uso: apropriao deste conhecimento.

    A valorizao de um novo conhecimento tem a sua contraface: a desvalorizao do conhecimento anterior.27

    25 Neste campo, a questo da engenharia gentica, dos genomas e da apropriao destes novos conhecimentos estaria associada a uma discusso sobre os direitos que uma nao e um proprietrio em particular tem sobre a biodiversidade.

    26 Os processos de maquinao e de quimificao da agricultura colocam o capital industrial aplicado, na produo de mquinas, equipamentos, fertilizantes e defensivos, na disputa da apropriao do conhecimento sobre o uso das terras, plantas e animais. No caso dos melhoramentos biolgicos, por exemplo, o poder do capital industrial j no to simples. Os melhoramentos biolgicos, ou envolvem investimento pblico do Estado, que coloca o conhecimento ao uso indiferenciado dos produtores agrcolas em geral ou, na ordem privada, tem que envolver uma garantia de apropriao deste conhecimento tcnico, seja o direito de patentes biolgicas, seja a busca de matrizes que garantam o poder do capital investido. A semente de milho hbrido, e a perda de qualidade produtiva das novas geraes de gros, est correlacionado acumulao de capital no setor de sementes; na indstria de sementes, como o caso da Agroceres.

    27 No inusual, no campo da cultura, um embate sobre diferentes noes de natureza. A dominao cultural da terra mercantil implica na desvalorizao das noes de natureza associadas s culturas indgenas, por exemplo. O embate cultural associado a territorializao do capital na Amaznia envolve a desvalorizao da cultura dos povos da Amaznia, de seus mitos e imagens sobre a natureza. No tempo do trator, nada vale o domnio da tcnica do manejo do boi de arao, associado cultura cabocla.

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    Parte do processo de valorizao das terras est associado este processo social que produz novos conhecimentos e novas utilizaes. O processo de gerao de tecnologias est institucionalizado na universidade, nos centros de pesquisa e de produo de tecnologia e no interior dos setores de pesquisa das grandes empresas.28 O financiamento e as polticas cientficas e tecnolgicas direcionam a gerao destas tecnologias. A questo da apropriao deste conhecimento um dos elementos chave na configurao dos setores de ponta das economias ocidentais, como , atualmente, o caso das biotecnologias.

    As caractersticas de fertilidade e de localizao, associadas ao conceito de renda diferencial I, envolvem processos sociais mais amplos do que as questes dos investimentos privados empresariais, expressos no conceito de renda diferencial II.29

    Falando em termos de investimentos, podemos dizer que o capital social, em seus desdobramentos na esfera do conhecimento sobre a fertilidade e a localizao das terras, garante o espao da propriedade da terra na disputa intercapitalista, prpria da ordem burguesa. Estas caractersticas, no contexto da renda diferencial I, vo significar uma apropriao gratuita sobre o conjunto da sociedade30 e, diria eu, tambm uma disputa com outras fraes capitalistas.

    Teoricamente, na economia poltica esta perspectiva vai colocar a questo no nvel da dinmica e da concorrncia intercapitalista ou, se preferirmos, no embate de interesses de capitais industrial, financeiro e comercial e de capitais-dinheiro imobilizados em terras. Os capitais imobilizados em terra buscam sua valorizao pela apropriao de trabalho social (no conhecimento da fertilidade e na localizao das terras) que se objetivam na terra e na natureza.

    28 Ver Moreira (1994b) para uma discusso sobre universidade e sociedade.29 Ver Graziano da Silva (1981). O campo analtico da renda diferencial II, envolve

    as questes dos investimentos produtivos realizados no interior da propriedade, que se incorporam na terra, tais como barragens, audes, terraceamentos, recuperaes de solo, etc., sejam eles realizados pelos arrendatrios capitalistas, ou pelos prprios proprietrios. Alguns autores vo caracterizar este elemento da renda da terra como renda da terra propriamente capitalista. Este campo analtico, de incorporao de trabalho diretamente terra, engloba tambm a anlise dos processos sociais de incorporao de novas terras por setores camponeses, como o caso dos posseiros e a preparao de terras para cultivos em zonas de fronteira. No passado, as terras trabalhadas estiveram baseadas na explorao do trabalho escravo a elas incorporadas.

    30 este o sentido das palavras de Martins (1983: 167) quando afirma que a terra, atravs do proprietrio, cobra no capitalismo renda da sociedade inteira.

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    A valorizao das terras e a territorializao do capitalAs anlises da rendas diferenciais I e II, referem-se ao campo analtico das terras em produo.

    Na esfera da competio intercapitalista, a imobilizao de capital-dinheiro em terras est associada a outros processos que no os diretamente ligados produo agrcola. No s um processo de valorizao das terras em produo, mas, tambm, a valorizao das terras improdutivas que est em jogo.

    Como viemos demonstrando, a terra se valoriza pela incorporao de trabalho aplicado diretamente nela. Este processo de valorizao captado, analiticamente, pelo conceito de renda diferencial II. H ainda um processo, reconhecido na anlise da questo, que visualiza a valorizao das terras como associada elevao da demanda social por alimentos. Nesta formulao clssica, de base malthusiana e ricardiana, aparece uma demanda social, externa agricultura, por terras produtivas voltadas produo agrcola, que se rebate sobre a agricultura e o estoque de terras. Associado s terras em produo, este processo social tende a ser captado analiticamente pelo conceito de renda diferencial I, de localizao e de fertilidade, que reinterpretamos acima.

    A terra, ainda, se valoriza como forma e resultado do processo de desvalorizao do capital social,31 que envolve a competio tecnolgica, a obsolescncia do capital produtivo imobilizado e a concentrao e centralizao de capitais.

    A terra pode apresentar-se para diferentes usos produtivos, diferentemente da rigidez produtiva de uma estrutura produtiva industrial.

    A acelerao da obsolescncia tecnolgica, no capitalismo monopolista, leva desvalorizao do capital produtivo imobilizado, fazendo com que, neste processo, parte do capital social produtivo deixe de funcionar como capital.32

    Como capital-dinheiro imobilizado, a terra vai funcionar como reserva de valor. Pode entrar na disputa intercapitalista pela apropriao do excedente econmico, tambm como ativo financeiro. Entra na disputa pelo futuro como garantia de acesso novas potencialidades e usos da terra, abertos pelo avano

    31 Ver Moreira (1981a) para detalhes da argumentao.

    32 Processo que alguns autores tm denominados de queima ou sucateamento do capital industrial e, outros, de destruio dos capitalistas ineficientes.

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    do conhecimento, pelas novas tecnologias e pela formao de expectativas com relao ao futuro.

    Uma das especificidades da mercadoria terra, frente outras mercadorias, a sua flexibilidade no uso. Seu valor de troca no est associado a um s valor de uso. Em geral, um estoque de capital produtivo est associado produo de uma s mercadoria: a indstria de automveis, por exemplo, s produz automveis.

    Um estoque de terras, apesar da rigidez de localizao, apresenta, no entanto, uma possibilidade de uso bastante flexvel: pode incorporar diversos valores de uso.33 Neste sentido, podemos dizer que a terra tem a possibilidade de objetivar diversos usos presentes e futuros, respondendo formao de expectativas sobre o futuro. Esta flexibilizao dos usos da terra imprime ao capital imobilizado em terras uma particularidade frente ao capital industrial, cuja composio tcnica visa a produo de uma mercadoria determinada, um determinado valor de uso.

    No sentido capitalista, podemos dizer que a imobilizao do capital em terras, produtivas ou improdutivas, significa a territorializao do capital. No como algo estranho ao capitalismo, mas prprio dele. Os processos associados aos incentivos fiscais na Amaznia, em dcadas recentes, por exemplo, significaram, no sentido que aqui estamos dando, a territorializao do grande capital.

    As lutas pela apropriao da terra, e da natureza, que conformam aspiraes dos povos da Amaznia no esto dissociadas deste processo de territorializao do capital, e do grande capital, nesta regio. No algo estranho ao capitalismo, parte componente de sua dinmica. Os embates associados apropriao da terra na Amaznia tm a ver com a dinmica do capitalismo contemporneo e a territorializao de seus interesses: a biodiversidade um deles.

    33 A flexibilidade na utilizao das terras envolve no s uma flexibilidade na produo de diversas mercadorias agropecurias, mas tambm uma flexibilidade de utilizao no propriamente agrcola: usos urbanos, minerao, energia eltrica, lazer, turismo e, futuramente, est sendo considerada como a fonte da biodiversidade; seja o que isto venha a significar.

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    Valorizao da natureza e o campesinatoConsiderando a questo do poder de mercado, que est associada anlise da competio e da dinmica intercapitalista, a questo do tamanho no irrelevante: ser grande ou pequeno faz diferena.

    Cabe, aqui, fazer um refinamento desta anlise. Compreender a valorizao das terras, como um processo de elevao dos preos das terras: devido capitalizao da renda das terras em produo, ou formao de expectativas, frente ao futuro. A realizao econmica desta apropriao s se d totalmente no momento da venda das terras; quando o valor das terras se transforma em equivalente geral: em dinheiro. Aqui, a renda da terra capitalizada no preo da terra se transforma (muda de forma) em capital dinheiro.

    Os processos sociais, que valorizam as terras em geral, tendem a ser favorveis aos proprietrios, sejam eles grandes ou pequenos; empresrios ou camponeses. Socialmente, a territorializao do capital expressa um processo de valorizao frente a outra formas de capital, em especial, frente ao capital industrial; mas tambm frente aos no proprietrios: os trabalhadores sem terra.

    Uma outra questo a possibilidade dos proprietrios de terras produtivas conseguirem captar a renda da terra como componente dos preos dos produtos agrcolas. Aqui opera, mais diretamente, sua posio, nos mercados dos produtos e nos mercados que conformam seus custos produtivos, na esfera intercapitalista.

    No conseguir captao do excedente econmico da renda da terra como parte componente dos preos dos produtos vai significar uma desvalorizao da terra, enquanto terra produtiva. A propriedade de terras em produo no garante rotineiramente, ao proprietrio, a renda diferencial I e II.

    Este processo assume um carter individual e est associado ao poder de mercado de cada produtor, seja ele capitalista ou campons. Neste sentido, o capital-dinheiro imobilizado em terras produtivas tende a ser desvalorizado na competio intercapitalista. Apropriado por concorrentes nos mercados oligopolizados montante e jusante. O que deveria se constituir como renda da terra assume a forma de juros, lucros comerciais, de lucros agroindustriais, associados reduo dos custos agroindustriais, e de lucros industriais de setores produtores de mquinas e insumos.

    Estes processos de reduo progressiva da possibilidade de reteno da renda econmica da terras, nos preos dos produtos, afeta mais fortemente as

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    menores propriedade, os menores proprietrios e as menores produes: lcus de existncia social dos camponeses proprietrios e no proprietrios.

    Reflexes guisa de concluso e levantamento de hiptesesNo caso da formao social brasileira, como regra geral, no existiu, nem existe, uma classe de proprietrios fundirios separada daquela que possui os meios de produo agrcola,34 exceto em situaes regionais especficas, como o caso do arrendamento capitalista no arroz do Rio Grande do Sul, por exemplo.

    A apropriao da terra, e da natureza, no Brasil conforma historicamente um proprietrio de terras que , tambm, o dirigente do processo produtivo. A formao da grande propriedade, da grande produo e das elites agrrias um s processo na histria brasileira.

    Neste sentido, pode-se dizer que o rendimento econmico, apropriado por estes proprietrios/dirigentes um misto de renda da terra e lucro produtivo. Esta funo de dirigente do processo produtivo no se limita, historicamente, apenas esfera da produo agrcola, mas pode tambm englobar funes de financiamento, de beneficiamento e de comercializao de sua prpria produo, de parceiros, colonos e moradores ou de outros produtores. Nestes casos, o rendimento envolve outros elementos, tais como juros, lucros agroindustriais (engenhos e usinas de acar, propriedades de mquinas de beneficiamento de caf, arroz, por exemplo), transporte e comrcio (barraces, atacadistas, por exemplo), bem como investimentos urbanos industriais. A fonte mltipla de rendimento das elites agrrias diferenciada e estabelece regras de convivncia social, prprias do clientelismo do perodo republicano.

    O que quero reter aqui que esta multiplicidade de rendimento um elemento enfraquecedor da propriedade na disputa pela garantia da presena da renda da terra nos preos dos produtos, mesmo dos exportveis.

    A anlise da apropriao da renda da terra, na formao social brasileira, deve englobar nossa origem colonial e o poder colonial de Portugal, bem como a conformao e o desenvolvimento do mercado de terras e de trabalho

    34 Ver Smith (1990) sobre a especificidade da absolutizao da terra em Portugal e no Brasil e a constituio do mercado de terra e de trabalho no sculo XIX. Ver Moreira (1994 a), para o padro da 1 metade do sculo XX e para referncia a outros autores.

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    na ordem imperial e republicana, onde, cumpre ressaltar, a hegemonia do capital mercantil, financeiro e industrial ingls exerce um poder de mercado expressivo no momento histrico de vigncia do modelo exportador mercantil-capitalista.

    Contextualizando o argumento, de forma simplista, s para passar a idia: a constituio das elites agrrias se d em um contexto de preos relativos conformados por uma extrao de excedentes por Portugal e pelo controle externo do mercantilismo escravista, em um momento, e pelo capital financeiro e mercantil ingls, em outro.

    No seria de todo equivocado formularmos a hiptese de trabalho de que parte da renda da terra se internacionaliza nas disputas capitalistas no mercado externo. A luta, por exemplo, da oligarquia cafeeira paulista na Repblica Velha pela valorizao do caf pode significar uma melhoria nesta situao. A renda familiar dos proprietrios-dirigentes no se origina apenas de sua condio de produtor agrcola, como tende a ser o caso dos pequenos.

    A conformao originria dos preos relativos das mercadorias, em uma sociedade com elevadssima concentrao de renda, tambm merece um refinamento analtico para o entendimento de nossas razes sociais da excluso social e da fome. Fica, aqui, a hiptese de que na conformao dos preos relativos, os preos do produtos alimentares produzidos pelos pequenos produtores proprietrios, parceiros, colonos e moradores tende a ser insuficiente para a captao da renda da terra, e dos lucros, por estes produtores diretos.

    Esta conformao dos preos relativos, associada origem do mercado de trabalho livre, reforada pela ao do Estado brasileiro no controle exercido nas polticas de preos mnimos dos produtos alimentares. Este mercado torna-se desfavorvel queles em piores condies no mercado ou sem condies de competio na produo de exportao e empresarial de grande porte.

    No contexto das dinmicas capitalistas associadas a diferentes padres de acumulao, a histria social do campons se objetiva na figura do pequeno: da pequena produo, da pequena propriedade, da pequena explorao, do pequeno capital.

    O uso da noo de pequeno pressupe a noo de seu oposto, o grande, oculto nesta formulao. No nvel dos processos sociais no h esta separao: um a contraface do outro. Nestes processos, a vivncia histrica de um padro de

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    dominao e de relaes entre a grande e a pequena propriedade no Brasil tem dado os limites da existncia social do pequeno, bem como tem conformado os limites de sua reproduo.

    Pode-se, tambm, afirmar, como tese geral, que nestes processos as piores condies naturais e de acesso, em termos de utilizao produtiva, foram relegadas apropriao dos pequenos, com efeitos negativos em sua rentabilidade econmica. , tambm, sabido que, no geral, os benefcios das polticas agrcolas e tecnolgicas governamentais tm sido, historicamente, apropriados preferencialmente pelos grandes proprietrios.35

    No contexto contemporneo, a questo ecolgica vai imprimindo novos significados questo da propriedade da terra, redimencionando-a como valorizao e apropriao da natureza. Neste contexto, esta reinterpretao da teoria da renda da terra pode lanar luz ao embate de interesses na apropriao privada da natureza na ordem competitiva e ao carter que pode assumir a territorializao do capital, e do grande capital, na Amaznia.

    Em ensaio anterior onde examino alguns significados da Eco-92 (Cf. Moreira, 1993a), a anlise aponta para uma nova ordem capitalista internacional, associada s revolues tecnolgicas da comunicao, da automao e da engenharia gentica. Esta ltima vertente, se desdobra nas questes dos genomas e dos direitos sobre a biotecnologia, ou seja, a questo da apropriao privada sobre o conhecimento.

    A questo das florestas tropicais e a agricultura na Amaznia ganham um novo sentido na competio intercapitalista. A sustentabilidade, associada a estas discusses, parece apontar para a questo de uma nova adequao tecnolgica e, no, para um questionamento da ordem social no interior destes pases.36 Este processo de reordenao da competio intercapitalista internacional, e nacional, est associado ao problema posto nossa reflexo: campesinato e ecologia.

    Assim, a questo ecolgica, e a questo do desenvolvimento sustentvel, colocam uma indagao: qual o sentido e a significao que se tornar dominante no tratamento da questo camponesa e no trato da agricultura na Amaznia?

    As questes contemporneas da ecologia e do meio ambiente, neste contexto analtico, estariam associadas a um novo paradigma tcnico e a um novo

    35 Ver Moreira (1978; 1981b; 1982; 1991), para aspectos destes processos.36 Ver Moreira (1994a) onde discuto uma percepo dominante sobre a pequena

    produo familiar e a busca de tecnologias adequadas ao desenvolvimento sustentvel destes produtores.

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    ordenamento competitivo, ainda, no claramente explicitados nas esferas produtivas. As expectativas, frente ao futuro, postas pela cincia dos ecossistemas, pela biotecnologia e pelos movimentos ambientalistas tendem a levar a uma revalorizao da natureza e dos direitos de propriedade ela associada.37 Podem colocar novos limites ao uso privado da natureza.

    Este campo sociocultural e a nova ordem capitalista podem abrir espao para uma revalorizao do saber e do fazer campons e, at, a uma ampliao do setor campons no contexto da sociedade. A perspectiva histrica, no entanto, coloca: esta revalorizao camponesa s tende a se viabilizar se a apropriao deste conhecimento significar ganhos nas esferas da acumulao capitalista.

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    37 Este campo incorpora uma nova elaborao da economia: a economia ecolgica, que envolve entre outras questes a elaborao e validao de critrios de medio do valor da natureza.

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    Roberto Jos Moreira professor da UFRRJ/CPDA.

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