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Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH Especialização em História para Professores do
Ensino Fundamental II e do Ensino Médio
ROGÉRIO AUGUSTO SINGOLANI
ANGLERÍA, OVIEDO E ACOSTA: MILHO E BATATA NA CRÔNICA DAS ÍNDIAS DO SÉCULO XVI
Campinas, 2011
ii
Resumo
Originários do Novo Mundo, resultado do intercâmbio ecológico de espécies
produzidas pela expansão marítima europeia do final do século XV, o milho e a batata
tiveram grande importância na dieta europeia, especialmente dos camponeses, durante
os três séculos da Época Moderna.
A relevância desses alimentos para a historiografia contemporânea é, em grande
medida, resultado da condição de alimentos globais que ambas as plantas adquiriram
ao longo das épocas Moderna e Contemporânea, mas também pelas muitas
referências feitas desde os primeiros contatos dos europeus com o Novo Mundo, tarefa
desempenhada por cronistas como Pedro Mártir de Anglería, autor de Décadas Del
Orbe Novo; Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés, autor de Historia General y Natural
de lasIndias, islas y Tierra Firme del mar Oceano; e José de Acosta, autor de Historia
natural y moral de las Índias.
O presente artigo pretende, por meio da análise das obras produzidas por esses
Cronistas das Índias, durante o século XVI, verificar como se deu, por parte dos
europeus, a apreensão do milho e da batata, enquanto alimentos, e que papel
desempenharam na alimentação europeia na Época Moderna, tendo em vista o lugar
social das pessoas que consumiam esses produtos.
Palavras-chave:História - América – Alimentação – Crônica das Índias – Século XVI
Sumário
Introdução 2
A crônica 5
O milho 9
A batata 16
Milho e batata na Europa da Época Moderna 19
Conclusão 22
Bibliografia 25
2
Introdução
Impossível imaginar uma sessão de cinema sem o característico cheiro da
pipoca, parceira insubstituível da Sétima Arte. Tão bem harmonizada que causa ao
paladar aquele mesmo efeito do bom filme, quando é impossível desviar a atenção da
tela, ao mesmo tempo em que são consumidas, automaticamente, porções e mais
porções do cereal, tido pelas sociedades indígenas da América como sagrado.
Ao lado do milho está a batata frita. Preferência culinária entre as crianças e
também entre os adultos, é um dos ícones da modernidade, do fast-food, da sociedade
da velocidade, da transformação e da massificação, tanto das ideias como dos gostos.
Embora para as sociedades americanas não tenha ocupado o mesmo patamar de
sacralidade do milho, a batata possibilitou o surgimento do mundo industrial na Europa
do século XIX.
Originárias do Novo Mundo, resultado do intercâmbio ecológico de espécies
produzidas pela expansão marítima europeia, iniciada no final do século XV, milho e
batata representam, segundo Fernández-Armesto, “o verdadeiro tesouro das Índias”1.
Isso devido à importância que esses alimentos tiveram na dieta europeia,
especialmente dos camponeses, durante os três séculos da Época Moderna, e cujo
impacto no campo demográfico é objeto de análise de historiadores como Michel
Morinneau, que identifica na adoção e cultivo desses alimentos, e de outros, como o
arroz, suporte para o crescimento demográfico europeu verificado no período2.
Para além da Europa, e a partir desse intercâmbio ecológico de espécies
vegetais produzido pela navegação oceânica, principalmente o milho, segundo
Cascudo, alimento introduzido pelos portugueses nas ilhas atlânticas da Costa Africana
a partir do Brasil, durante o século XVI, desempenhou papel fundamental como ração
na tragédia humana que foi o transporte de populações africanas para o trabalho
escravo nas minas e plantações do Novo Mundo3.
1 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Comida: uma história. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 263. 2 MORINNEAU, Michel. Crescer sem saber por quê: estrutura da produção, demografia e rações alimentares. In. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. 3 CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil – vol. I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983, p. 126.
3
A importância dada pela historiografia contemporânea ao milho e à batata é,
em grande medida, resultado da condição de alimentos globais que ambas as plantas
adquiriram ao longo das Épocas Moderna e Contemporânea, mas também pelas muitas
referências feitas desde os primeiros contatos dos europeus com o Novo Mundo, como
descreve Gómara sobre a audiência que Cristóvão Colombo teve com os Reis
Católicos, em 3 de abril de 1493, onde mostrou as novidades que acabara de trazer:
“Presente a los reyes el oro, y cosas que traya del outro mundo. Y ellos y quantosestavam delante, se maravillaron mucho en ver todo aquello...Provaron el axi, especie de los indios, que les quemó la lengua. Ylas batatas, que son dulces (...) Maravillaronse que no uvisse trigo alla. Sino que todos comiesen pan de aquel maíz.”4
A tarefa posterior de descrever, relatar e principalmente apreender o que o
Novo Mundo oferecia à Europa foi levada a cabo por vários cronistas ao longo do
século XVI, tendo como referência um saber baseado, sobretudo, na semelhança,
conforme afirma Foucault5.
A base para a comparação, ou melhor, para a acomodação das coisas do
Novo Mundo à mentalidade europeia era a cultura clássica grego-latina, trazida à
berlinda pelo Renascimento Cultural, ocorrido nos séculos XIV e XV, e representada
pelas ideias humanistas que, no caso da chamada História Natural, indicavam um
processo no qual a observação e a descrição são centrais.
No caso específico das plantas que serviam para alimentação, Flandrin
observa que “o interesse pela alimentação nos relatos de viagens dos séculos XVI, XVII
e XVIII revela claramente a liberação da glutoneria nos tempos modernos”6, ou seja, um
entendimento da alimentação que supera a dietética tradicional, baseada no equilíbrio
humoral ligado à medicina clássica, por outro baseado no gosto, que, conforme o
mesmo autor, resultará no surgimento das cozinhas nacionais em países europeus,
durante a Época Moderna.
4 GÓMARA, Lopez de. HispaniaVictrix. fólio 12, col I. Medina del Campo. 1553. Apud: CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil – vol. I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983, p. 126. 5 FOUCAULT. Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 23. 6 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 553.
4
O presente artigo pretende, a partir da análise das obras Décadas delNuevo
Mundo, de Pedro Mártir de Anglería;Historia General y Natural de lasIndias, islas y
Tierra Firme del mar Oceano, de Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdéz; e Historia
natural y moral de las Índias, de José de Acosta, em suas referências ao milho e à
batata, verificar como se deu a apreensão dessas plantas por parte dos cronistas
europeus e que papel o milho e a batata desempenharam na alimentação europeia na
Época Moderna, tendo em vista o lugar social das pessoas que consumiam esses
produtos.
A metodologia empregada para a produção do presente artigo foia revisão
bibliográfica nas obras dos cronistas já citados, relacionando-as com obras de
referência sobre a história da alimentação, como os textos, alguns já citados, de
Cascudo (1983), Flandrin e Montanari (1983), Carneiro (2003) e Fernández-Armesto
(2004). Para o entendimento do contexto da produção do conhecimento no século XVI,
utilizaremos as obras de Foucault (1999), Theodoro (1992), Pratt (1999) e Mahn-
Lot(1990).
5
A Crônica
Durante o século XVI, a tarefa de relacionar, descrever e relatar as “cosas
nuevas y extrañas” do Novo Mundo foi empreitada de diferentes indivíduos na Espanha:
navegadores, funcionários reais, religiosos, soldados e comerciantes foram
responsáveis pela divulgação no Velho Continente das maravilhas, proezas,
acontecimentos e assombros existentes nas novas terras encontradas. Essa
propagação do conhecimento tornou-se ainda mais patente graças à difusão das
notícias sobre o continente recém-encontrado pela imprensa, que, ao longo dos séculos
XV e XVI, também encontrava-se em franco desenvolvimento. Muitos dos escritos
sobre as Índias Ocidentais ficaram conhecidos como crônicas.
Os chamados cronistas das Índias desempenharam papel importante,
reunindo diários de navegação, mapas, relações, cartas e outros documentos
produzidos durante as primeiras décadas da conquista da América.
Embora o título oficial de Cronista das Índias tenha sido outorgado, em 1596,
a Antonio Herrera y Tordesillas, autor de Historia general de loshechos de
loscastellanosenlasIslas y Tierra Firme del mar Océano que llamanIndiasOccidentales,
publicada entre os anos de 1601 e 1615, um dos primeiros compiladores oficiais dos
documentos das descobertas e conquistas espanholas, porém sem o título de Cronista
das Índias, foi Pedro Mártir de Anglería, autor de Décadas Del Orbe Novo, publicado em
um conjunto de oito livros em 1530. Anglería representa o primeiro momento da crônica
da conquista e colonização espanhola, no qual o foco da narrativa são os feitos dos
bravos e sangrentos castelhanos. Aspectos da religião e do cotidiano, incluindo os
hábitos alimentares, mas principalmente as referências geográficas necessárias à
navegação, são apresentados com brevidade e poucos detalhes, tendo em vista o fato
de Anglería nunca ter estado na América e produzir suas crônicas a partir dos relatos e
documentos que compilou.
A missão de colonizar e principalmente de evangelizar os pagãos do Novo
Mundo, única justificativa para o domínio espanhol7, representou para os cronistas a
7MAHN-LOT, Marianne. A conquista da América espanhola. Campinas: Papirus, 1990, p.89.
6
possibilidade de observação direta e, em alguns casos, da coleta dos relatos das
populações locais, a partir do aprendizado das línguas nativas.
O contato desses novos narradores, alguns religiosos outros não, mas todos
sob autorização oficial, para permanecer no território americano, fez surgir um conjunto
de obras, cujo interesse passou a ser as “IndiasOccidentales”. Assim, as narrativas
passaram a versar sobre a geografia, o clima, a vegetação, os animais, as gentes e
suas crenças e hábitos, e também sobre a história das populações indígenas, assim
como sobre as justificativas relacionadas à presença dos espanhóis na América.
São desse período as obrasHistoria General y Natural de lasIndias, islas y
Tierra Firme del mar Oceano, de Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdéz, cuja primeira
parte foi publicada em 1535, e o conjunto completo da obra publicado entre 1851 e
1855; e Historia natural y moral de las Índias, de José de Acosta, publicada em 1590.
Algumas das crônicas sobre as terras da América, produzidasno primeiro
século do domínio espanhol,as quais representam parte do conhecimento apreendido
pelos europeus sobre o Novo Mundo, são oficiais, ou seja, elaboradas por pessoas, em
geral homens letrados e espanhóis, que desempenharam alguma função religiosa ou
administrativa na colônia e que, portanto, estavam autorizados pela Coroa, tendo em
vista a estrita proibição de estrangeiros em terras americanas, durante os dois primeiros
séculos da conquista8. Como europeus e letrados, eram representantes de um saber,
onde:
“Até o final do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a exegese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las.”9
Imbuídos dessa busca pela semelhança, os cronistas utilizaram o
conhecimento clássico grego-latino, produzindo suas observações sobre a natureza, a
partir de um roteiro que em geral se desenrolava, primeiro, pela delimitação do espaço
geográfico, tendo como referência os oceanos, mares e rios, passava pela
caracterização do clima e do relevo e finalmente pela descrição da flora e da fauna.
8PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC, 1999, pp. 42-43. 9 FOUCAULT. Michel. Op. Cit., p. 23.
7
Tais trabalhos de descrição e observação da natureza foram tão importantes
que, mesmo no século XVIII, em meio ao surgimento de um novo pensamento
científico, baseado na classificação de plantas e animais, os textos de alguns cronistas
que escreveram sobre a América do Sul ainda circulavam na Europa10.
Pedro Mártir de Anglería, autor de Décadas Del Orbe Novo, conforme já
citado, compilou os relatos dos cronistas, mas não esteve na América. Com formação
humanística e grande domínio do latim, Anglería procura recortar e narrar o que de
mais exótico e novo era descrito nos relatos nos quais embasa sua narrativa. Os temas
tratados em suas Décadas são tidos por Las Casas e Oviedo como sendo de pouca
confiança, tendo em vista não serem resultados de uma observação direta.
Sua descrição sobre o milho e a batata faz parte da primeira e da segunda
Décadas e, se comparados aos relatos de Oviedo e Acosta, apresentam-se de forma
menos detalhista. Anglería acredita que Colombo chegou às Índias das especiarias e
relaciona os feitos narrados às fábulas gregas, criando uma atmosfera fantástica que
Foucault, falando sobre o saber europeu do século XVI, descreve como sendo “uma
mistura instável de saber racional, de noções derivadas das práticas da magia e de
toda uma herança cultural”11.
Crítico de Anglería, pela desconfiança na falta da observação direta, e
criticado por Las Casas, devido à formação humanística, considerada precária, tendo
em vista as referências às traduções dos textos grego-latinos, em língua vulgar,
Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdéz é um dos principais Cronistas das Índias,
sendo citado inclusive por Herrera em sua Historia general de loshechos de
loscastellanosenlasIslas y Tierra Firme del mar Océano que llamanIndiasOccidentales.
Conforme já mencionado, é autor de Historia General y Natural de lasIndias, islas y
Tierra Firme del mar Oceano, resultado de sua experiência, iniciada em 1513, de 22
anos vividos na América, onde ocupou cargos administrativos, sempre na região do
Caribe.
Inspirado, sobretudo na obra Naturalis Historia, de Plínio, o Velho, o livro VII
de Historia Genetal y Natural de lasIndias é totalmente dedicado a “laagricoltura, e
10 PRATT, Mary Louise. Op. Cit., pp. 43-44. 11 FOUCAULT. Michel. Op. Cit., p. 44.
8
decirquémanera de pan e principal mantenimientoteníanlosindios, e hay naturalmente
en esta islaEspañola, por laindustria y ejercicio de loshombresdella”12, conforme afirma
o próprio Oviedo no proêmio de sua obra. Observador detido, descreve o mundo que vê
a partir da cultura grego-latina que conhecia, em um exercício de similitude que
Foucault descreve como o de simpatia13.
Escrevendo no final do século XVI, o padre jesuíta José de Acosta, autor de
Historia natural y moral de las Índias, produz uma obra composta de sete livros, sendo o
quarto livro dedicado à descrição de plantas, animais e minerais do Novo Mundo. Como
Oviedo, busca na cultura grego-latina, especialmente em Plínio, o Velho, elementos que
possibilitem apreender por meio das similitudes a natureza que se revela à sua frente.
Conhecedor do latim e falante do quíchua, que aprendeu no Peru, realidade
de onde provêm os elementos para sua narrativa, Acosta compartilha com Oviedo uma
simpática admiração pela natureza do Novo Mundo. Mas, como Las Casas, critica o
processo de evangelização dos indígenas e admira aspectos da cultura dos gentios14,
os quais descreve nos livros V, VI e VII de sua obra, que circulou por toda a Europa e
foi traduzida para várias línguas, tendo influência, segundo Mahn-Lot,“sobre os
aprendizes de antropólogos dos séculos XVII e XVIII”15.
12 FERNÁNDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Historia general y natural de las Indias: Part 1 (1535). Disponível em: http://www.ems.kcl.ac.uk/content/etext/e026-copyright.html. 13 FOUCAULT. Michel. Op. Cit., p. 32. 14MAHN-LOT, Marianne. Op. Cit., p. 107. 15 Idem.
9
O Milho
Quando os europeus chegaram à América, e Cristóvão Colombo recolheu,
entre outras, as primeiras espécies de plantas que posteriormente apresentou nas
audiências com os Reis Católicos, certamente não imaginava a longa trajetória que as
populações do Novo Mundo percorreram para domesticar o milho, alimento que os
cronistas espanhóis, independente do local de onde produziram seus relatos, diziam ser
chamado por essas populações de “maíz”.
Posterior ao cultivo da mandioca e da batata, o milho é contemporâneo do
surgimento da cerâmica16, que, segundo sugere Fernández-Armersto,teve como sua
área inicial de cultivo a atual Guatemala, entre “a metade e o final do segundo milênio
antes de Cristo”17. Ele aponta o final do século IX como o período de migração do milho
da zona tropical da Mesoamérica para regiões ao sul e ao norte, possibilitada a partir de
novas variedades selecionadas pelas populações Americanas18. No final do século XV,
quando os europeus chegaram à América, o milho já era cultivado em todo o
Continente, inclusive em regiões como os Andes, onde as dificuldades de cultivo
resultavam em colheitas meramente simbólicas.
A onipresença do milho como alimento básico das populações americanas e
seu cultivo em áreas onde naturalmente não nasceria são indícios de sua sacralidade19
que, segundo Cascudo, está representada, por exemplo, na expressão popular
mexicana tonacauotl, que significa “nossa carne”, e também nas representações do
Templo Koricancha, em Cuzco20. Citando a tradição dos huichols, da América Central,
Fernández-Armesto indica que:
“Os caules são chamados “chifres de veados jovens”, já que todas as fontes de comida são vistas como semelhantes ao milho, ou são até mesmo concebidas como formas de milho, assim como, no Ocidente, chamamos de “pão” o sustento em geral.”21
16CASCUDO, Luís da Câmara. Op. Cit. p. 123. 17 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 150. 18Ibidem.,p. 263. 19 Ibidem., pp. 60-61. 20 CASCUDO, Luís da Câmara. Op. Cit., pp. 122-123. 21 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 61.
10
O cultivo do milho na América é também resultado do desenvolvimento da
agricultura e, conforme afirma Fernández-Armesto,“por si só não os tenha causado”22,
coincidiu com o desenvolvimento dos Impérios Inca, Maia e Asteca. De fato, o cultivo de
milho requer, além do clima, campos sem vegetação, terra preparada, o trabalho de
muitas mãos para a semeadura, a vigilância atenta durante seu crescimento, evitando o
banquete de pássaros e outros animais, e também um conjunto de técnicas e
equipamentos para o seu preparo. Como grão seco, possibilita a armazenagem e a
criação de estoques que necessitam ser administrados e organizados.
Tendo em vista a estrutura necessária à sua produção, sua presença
frequente e geral como alimento, e todo o simbolismo religioso associado ao seu cultivo
e consumo, não é de admirar que os cronistas espanhóis do século XVI, tendo um
saber baseado, sobretudo, na semelhança23, tenham de imediato associado o milho
(maíz) ao trigo e sua preparação ao pão.
Anglería, em sua obra Décadas Del Orbe Novo, embora sucinto, descreve o
milho como “cierto trigo harinoso, de que tienenmucha abundancia los de laInsubría y
los granadinos españoles”, fazendo supor que “esaclase de trigo lellamanmaíz”24 é a
mesma que existia em regiões da atual Itália (Insúbria) e da Espanha (Granada).
Quando descreve o pão,Anglería também apela para a semelhança, embora não
descreva o preparo, diz apenas “elpanlohacentambién, conpoca diferencia”25. Anglería
escreveu em 1530, não esteve na América e sua crônica é baseada em documentos
referentes às primeiras décadas da presença espanhola no Novo Mundo.
Muito mais detalhista e com um olhar que podemos qualificar como voltado
para a produção, possivelmente resultado dos cargos que ocupou na administração
colonial, mas sem deixar o campo das semelhanças, é o relato de Oviedo, que dedica
todo o livro VII de sua Historia General y Natural de lasIndias, islas y Tierra Firme del
mar Oceano à descrição do trabalho na lavoura e das plantas relacionadas a esse
trabalho. Ele descreve detalhadamente a preparação do terreno para o plantio do milho
no primeiro capítulo do livro, chamando a atenção para a queima da vegetação e sua
22 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 264. 23 FOUCAULT. Michel. Op. Cit. p. 23. 24 ANGLERÍA, Pedro Mártir de. Décadas Del Nuevo Mundo. Madrid: EdicionesPolifemo, 1989, p. 13. 25 Idem.
11
incorporação ao solo, quando justifica essa ação citando o poeta romano que escreveu
sobre agricultura, “Virgilioquiere que elquemaraproveche al tempero de lastierras”26.
No parágrafo seguinte, Oviedo adverte:
“Quiero decir que estos indios, aunque inoren tales preceptos, la Natura les enseña lo que conviene en este caso, y también la nescesidad que hay de desocupar la tierra de los árboles e cañaverales e plantas que de sí misma produce (...)”27
Quando descreve o processo de plantio, avalia que o trabalho indígena segue
os preceitos instituídos pelo autor de Naturalis Historia e do filósofo grego Teofrasto:
“Plinio dice, hablando en la forma del sembrar, estas palabras que agora diré, entre otras reglas que él pone, y en la que estos indios se conforman con él; es aquésta: "Aun es nescesario que con cierto arte la simiente se eche igualmente, e que la mano se concuerde con el paso, y siempre con el diestro pie." (...) Asimismo guardan otra regla los indios, que es de Teofrasto, el cual dice que más fructuoso es sembrar rala la simiente e cobrirla bien, que sembrar mucho y espeso y dejarlo descubierto.”28
Oviedo continua sua descrição tratando da necessidade de manter as aves e
os animais trazidos da Europa afastados da plantação. Mas o que realmente chama a
atenção do cronista e do que fala com admiração é a produtividade do milho,
escrevendo:
“Y este año que pasó de mill e quinientos y cuarenta, cogí yo en un heredamiento mío, a tres leguas y media destacibdad de Sancto Domingo, en la ribera del río de Haina, ciento e cincuenta e cinco hanegas, de una hanega que sembré.”29
Embora utilize a palavra “pan”, Oviedo não associa “maíz” ao trigo, como
Anglería fizera, remetendo o entendimento da palavra a um alimento básico. Descreve
a preparação dos alimentos à base do milho, distinguindo o modo de preparo utilizado
na Ilha de Santo Domingo, de onde escreve, daquele utilizado em terra firme.
Nesse trabalho bastante detalhado de descrição, Oviedo nomeia os alimentos
conforme são chamados pelos índios, como é o caso da descrição que faz do modo de
preparo utilizado nas Ilhas “En esta islaEspañola y enlasotras, comíanloen grano 26 FERNÁNDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Op. Cit. 27 Idem. 28 Idem. 29 Idem.
12
tostado o, estando tierno, sin tostar, cuasiseyendoleche; e cuandoesasítierno,
llámanloector, queriendocuajar o reciéncuajado.”30. Sempre que possível, utiliza como
referência modos de preparo europeus, como no caso da descrição que faz da
preparação de “pan” em terra firme:“E así se hace una manera de pasta o masa, de
lacualtomanunpoco e hacenunbollo de unjeme, e grueso como dos o tres dedos”31. Em
outros pontos da narrativa utiliza as duas estratégias, como quando fala do preparo
utilizado na Nicarágua e no México, “allíusan unas tortas grandes, delgadas e blancas...
este tal pan se llamatascalpachon, y esmuybuenpansabroso”32.
Como no trecho anterior, em outros momentos da narrativa, Oviedo emite
opiniões relacionadas ao gosto, como quando descreve outra maneira de preparar o
mesmo “tascalpachon”, mas “escogiendo para elloel grano más blanco, e
despicanlosgranos, antes que losmuelan, quitándoles una dureza o raspa que
tienenenelpezóncon que estovieron pegados enla espiga o mazorca; e asísalemejor e
más tiernoelpan”33.
Em outra parte da narrativa, Oviedo indica que o preparo do milho vem sendo
transformado pela presença dos europeus:“Los cristianoshan dado muchamejoría a
este pan, cociéndoloenhorno a lamanera de España, e es más sabroso e más lindo
enla vista, asícocido, en roscas o tortas. E hácese asaz buen biscocho dello, para
navegar con ello no muy largo tiempo.”34
O olhar voltado para a produção faz com que Oviedo realize um discurso que
procurou valorizar o milho como alimento para os cavalos, vacas e porcos trazidos da
Europa; para a alimentação de “negros e indiosesclavos de que loscristianos se
sirven”35; como farnel para as viagens oceânicas, ou como alimento para os cristãos, a
partir da utilização de instrumentos europeus, como o forno.
Essa simpatia que Oviedo demonstra pelo milho, conforme afirma Foucault,
“atraindo as coisas umas às outras por um movimento exterior e visível, suscita em
segredo um movimento interior, um deslocamento de qualidades que se substituem
30 FERNÁNDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Op. Cit. 31 Idem. 32 Idem. 33 Idem. 34 Idem. 35Idem.
13
mutuamente”36, fez com que ultrapassasse o entendimento das semelhanças e
sentenciasse:“Como soy amigo de laleción de Plinio, diréaquílo que dicedel mijo de
laIndia, y piensoyo que es lomismo que en estas nuestrasIndiasllamamosmaíz”37,
identificando o milho como o milhete, de origem asiática. É interessante notar que,
diferente de Anglería, que quando de sua descrição sobre o milho acreditava que
Colombo havia chegado às Índias, Oviedo, como o título de sua obra sugere, referia-se
às IndiasOccidentales.
Falando em uma perspectiva de quase um século de domínio espanhol e
escrevendo a partir do Peru, o padre jesuíta José de Acosta desenvolveu uma visão
que não é administrativa ou produtiva, como a de Oviedo, nem tem as mesmas
pretensões de enaltecer a distância os feitos castelhanos, como Anglería. Acosta
produziu uma narrativa dedicada à descrição e à explicação da importância do milho na
alimentação no Novo Mundo. Exercita uma espécie de relativismo cultural que, embora
tenha Deus como inspirador, possibilitou o entendimento do motivo pelo qual Mahn-Lot
o descreve comoum certoprotoantropólogo38. Acosta inicia sua narrativa relativizando a
noção de pão:
“(…)el nombre de pan es allá también usado con propiedad de su lengua, que en el Perú llaman tanta, y en otras partes de otras maneras. Mas la cualidad y sustancia del pan que los indios tenían y usaban, es cosa muy diversa del nuestro.”39
No mesmo parágrafo, Acostaaponta que “así como en las partes del orbe
antiguo, que son Europa, Asia y África, el grano más común a los hombres es el trigo,
así en las partes del nuevo orbe ha sido y es el grano de maíz”40. Descreve as
propriedades do milho, utilizando para tanto os conhecimentos da medicina e da
dietética do mundo grego-latino, caracterizando-o como quente e gerador de sangue, e
aponta alguns efeitos de seu consumo em demasia“suelen padecer hinchazones y
sarna”41, que serão associados, somente no século XX, à pelagra, doença com
36 FOUCAULT. Michel. Op. Cit., p. 32. 37 FERNÁNDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Op. Cit. 38MAHN-LOT, Marianne. Op. Cit. p. 107. 39ACOSTA, Joseph. Historia natural y moral de lasIndias: (1590). Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/obra-visor/historia-natural-y-moral-de-las-indias--0/html/. 40 Idem. 41 Idem.
14
causadas alimentares, resultante do consumo do milho como única fonte de alimento.
Assim como Oviedo, descreve o preparo de alguns alimentos, procurando utilizar o
nome dado pelos índios:“cocido así en grano y caliente, que llaman ellos mote” ou “ella
unas tortillas que se ponen al fuego, y así calientes se ponen a la mesa y se comen; en
algunas partes las llaman arepas”42, mas relacionando o modo de preparo
aoconhecimentoeuropeu.
Acosta menciona a introdução de novos ingredientesao preparo do milho:“y
porque no falte la curiosidad también en comidas de Indias, han inventado hacer cierto
modo de pasteles de esta masa, y de la flor de su harina con azúcar, bicochuelos y
melindres que llaman”43. Mas nãodeixa claroquaismãos, se índiasoueropeias, estão
implementando esta ação.
Mais que no preparo de pão, Acosta se detém na preparação do vinho,
quando descreve os vários modos de se fazer a “azúa, y por vocablo de Indiascomún
chicha”44. Aqui vê semelhança no preparo do milho, deixando de molho e cozido, como
o que “Pliniohaberse usado antiguamenteenEspaña y Francia, y enotrasprovincias,
como hoydíaenFlandes, se usa lacervezahecha de granos de cebada”45.
Acosta também trata do preparo de óleo a partir do milho e, com admiração,
escreve “para pan y para vino y para aceite aprovechaenIndiaselmaíz”, para, em
seguida, citando o Vice-Rei, escrever “dos cosas tenía de sustancia y riqueza elPerú,
que eranelmaíz y elganado de latierra”46.
Acosta termina sua narrativa fazendo referência à descrição do milheto, que
Plínio realiza em sua obra e que Oviedo considera ser o milho ou “maíz”. Para Acosta, a
descrição está presente na obra Naturalis Historia –“todo locual no cuadra”47–, com as
características que percebe no milho. Ao final, como cristão, sentencia:
“En fin, repartió el Criador a todas partes su gobierno; a este orbe dió el trigo, que es el principal sustento de los hombres; a aquel de Indias dio el maíz, que, tras el trigo, tiene el segundo lugar, para sustento de hombres y animales.”48
42ACOSTA, Joseph. Op. Cit. 43 Idem. 44 Idem. 45 Idem. 46 Idem. 47 Idem. 48 Idem.
15
No jogo das semelhanças, o milho desempenhava, para cronistas como
Anglería, Oviedo e Acosta, o mesmo papel que o trigo possuía na Europa, embora,
especialmente os dois últimos tenham feito referências a várias raízes que possuíam
tanta ou maior importância que o milho na alimentação das populações americanas,
sobretudo nas ilhas, nas costas e no altiplano andino. Dessas raízes, principalmente a
“papa” iria desempenhar um papel muito importante na alimentação do Velho
Continente.
16
A Batata
A presença do milho no Continente Americano, do Canadá à Patagônia, é
uma realidade possível de constatar pela arqueologia e pelos relatos dos cronistas
europeus a partir do século XV. A realidade da batata é outra, que não inclui o status de
alimento sagrado nem o título genérico de pão, significando seu consumo como
principal alimento.
A área “natural” de ocorrência da batata-doce, primeira variedade a ser
cultivada, é a região central do litoral do Peru, onde já era cultivada há 8 mil anos. A
batata que conhecemos como “inglesa” é originária nos Andes, e foi cultivada no
entorno do Lago Titicaca há 7 mil anos49.
Oviedo e Acosta, quando escrevem seus relatos sobre o “pan de Índias”,
apontam para o consumo cotidiano de tubérculos, especialmente a “yuca”, mandioca,
nas costas e ilhas do Novo Mundo. Fernández-Armesto apontou para a produção anual
de 30 mil toneladas de batatas na cidade de Tiahuanaco, antes do domínio Inca, e que,
quando da invasão dos espanhóis, eram cultivadas na região dos Andes cerca de 150
variedades de batatas50. Levando-se em conta a resistência à altitude e os dados
relacionados a variedades e produção, é possível especular que, em sua região de
origem, os Andes, a batata tenha constituído alimento mais cotidiano que o milho.
Não é de se admirar que, dentro da lógica das semelhanças, o milho, grão
sagrado e panificável, tenha ocupado o primeiro lugar na descrição das plantas
alimentícias do Novo Mundo, realizada pelos cronistas europeus do século XVI. Oviedo,
que escreve da Ilha de São Domingos, aponta para a existência de dois alimentos
principais no final do século XVI:“aquestepan que llamanmaíz, y qué tal esel que
llamancazabi”51, indicando o consumo da mandioca, com a qual se prepara a “cazabi”.
Acostas trata das plantas alimentícias consumidas nas ilhas caribenhas, escrevendo
“no sé que se usaseantiguamenteelmaíz; hoydíausan más layuca y cazavi, de que
luegodiré”52. Se a descrição do milho necessitou de relações de semelhanças que
49 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 158. 50 Ibidem., pp. 158-159. 51 FERNÁNDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Op. Cit. 52ACOSTA, Joseph. Op. Cit.
17
foram localizadas na cultura clássica grego-latina, com a batata o processo foi outro.
Provavelmente, pela inquestionável condição de raiz, que, como outras consumidas na
Europa, tinha o seu preparo para consumo relativamente simples, sendo basicamente
assadas ou cozidas, depois, é claro, da longa seleção dirigida pela mão do homem, que
separou as raízes venenosas daquelas possíveis de serem consumidas.
Da grande variedade de tubérculos consumidos pelos índios, os cronistas
espanhóis do século XVI, com os quais trabalhamos, descreveram dois que podemos
chamar atualmente de batata: a “batata” e a “papa". Assim, quando Anglería compara o
que os índios chamam de “batata” a nabos da Lombardia e descreve seu sabor como
“manjar de más suavidad y dulzura”53, está se referindo ao que chamamos de batata-
doce. Oviedo compara a “batata” a “gentilesmazapanes”54, referindo-se ao doce feito
com amêndoas e açúcar, e, como Anglería, talvez pela doçura, refere-se à “batata”
como fruta ou “manjar”.
Acosta também trata da “batata”, mas fala, sobretudo, da importância da
“papa” como principal alimento na altitude andina. Acosta chama de “papa” o que
atualmente chamamos de batata “inglesa” e descreve o processo de preparo do
“chuño”, que consiste na desidratação da “papa”, expondo-a ao frio e ao sol.Ele aponta
para a existência de um mercado do produto, durante o século XVI, quando diz que “y
esenaquel reino grancontrataciónla de este chuño para las minas de Potosí”55. Oviedo e
Acosta relatam o transplante de mudas e o cultivo da “batata” na Europa.
Se o consumo de “papa”, “batata” e “yuca” é considerado como corriqueiro
pela descrição de Oviedo, falando de Santo Domingos, e por Acosta, falando dos
Andes Peruanos, e escrevendo sobre a mesma realidade andina, Fernández-Armesto,
citando Murra, afirma que “metade dos índios não tinha qualquer outra coisa para
comer”56, é de se pensar qual motivo teria levado, especialmente os cronistas que
estiveram na América, a dedicar, digamos, uma maior atenção ao milho como o “pan”
do Novo Mundo em detrimento das raízes.
53 ANGLERÍA, Pedro Mártir de. Op. Cit. p. 150. 54 FERNÁNDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Op. Cit. 55 ACOSTA, Joseph. Op. Cit. 56 MURRA, J. V. Farmacioneseconômicas y políticas del mundo andino. Lima, 1975, pp.45-57. Apud: FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Comida: uma história. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 159.
18
Duas respostas são possíveis aqui. A primeira diz respeito à área de
ocorrência. Conforme já citado, a “maíz” ou milho existia em toda a extensão do
Continente Americano, ao passo que a “papa”, por exemplo, era característica do
altiplano andino. A segunda resposta possível está ligada ao jogo das semelhanças em
que“o olhar do europeu sobre a natureza, apesar de procurar o novo (...), realiza-se
enquanto unidade discursiva, estruturando velhas significações.
As referências europeias constituem-se no centro organizador da
descrição”57. Assim, o pão, alimento mais corriqueiro, comum nas mesas de nobres,
burgueses e camponeses, e de maior valor para os ocidentais, preparado a partir de
vários cereais58, é a referência alimentar para apreensão do milho, como também a
longa tradição do preparo das papas e polentas feitas a partir de farinhas variadas e
consumidas pelas populações europeias, desde a Idade Média.
No mais, o fato de o milho ter sido associado a outros grãos consumidos na
Europa, como o milhete (painço), o milho zaburro (sorgo) e o milho miúdo, contribuiu
para a elaboração de um cenário que favoreceu o exercício das similitudes, adequando
a um contexto alimentar já conhecido aquele que se apresentava, o que criou
elementos que favoreceram o detalhamento nas narrativas e a analogia do milho ao
basilar trigo, bem como a incorporação de técnicas de preparo (formo) e a adição de
ingredientes como o açúcar.
57 THEODORO, Janice. América barroca: tema e variações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Editora Nova Fronteira, 1992. Disponível em http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/livros/ab/index.htm. 58 FLANDRIN, Jean-Louis. A alimentação camponesa na economia de subsistência. In. FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, pp. 586-587.
19
Milho e batata na Europa da Época Moderna
As plantas alimentícias do Novo Mundo, entre elas o milho e a batata,
chegaram à Europa junto com Cristóvão Colombo em 1493 e, a partir daí, percorreram
caminhos distintos em relação à sua admissão na dieta do Velho Continente, mas
tiveram trajetórias comuns em relação ao lugar social das pessoas que consumiam
esses alimentos.
O milho foi o primeiro a ser cultivado, aclimatando-se rapidamente,
especialmente na Península Ibérica, em torno de 1520; na França, em 1523; no norte
da Itália, entre 1530 e 1540; e ainda no século XVI, na Polônia59.
Em relação à batata, embora existam referências de seu consumo em 1573
na França e em 1580 nos Países Baixos, é somente a partir do século XVII que passa a
ser amplamente cultivada na Irlanda60.
A dificuldade de identificação desses alimentos na dieta europeia do período
se deve ao fato de serem produzidos em hortas, no caso do milho, ou para alimentação
dos porcos, como no caso da batata, ficando ambos de fora do dízimo e das taxas
senhoriais cobradas e registradas nos arquivos61.
Oviedo, em sua descrição “delpan de maíz”, diz, admirado, que estivera em
Ávila em 1530 e que, na casa onde se hospedou, havia “unbuenpedazo de maizal de
diez palmos de alto lascañas, e algo más e 12 menos, e tangruesas e verdes e
hermosas, como se puede ver en estas partes donde mejor se puedahacer”62.
Em Praga, capital do Reino da Boêmia, durante o reinado de Rodolfo II,
Giuseppe Arcimboldo produziu dois quadros, Vertumnus63 (1590) e Verão64 (1563), nos
quais o milho é retratado.
59 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org). Op. Cit., p. 539. 60 Ibidem., p. 540. 61 Ibidem., pp. 539-540. 62 FERNÁNDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Op. Cit. 63 ARCIMBOLDO, Giuseppe. Vertumnus. 1590. 1 original de arte. Óleo sobre tela. 68 x 56 cm. SkoklostersSlott, Bålsta, Estocolmo, Suécia. Disponível em http://www.wga.hu/frames-e.html?/html/a/arcimbol/. 64 ARCIMBOLDO, Giuseppe. Verão. 1563. 1 original de arte. Óleo sobre tela. 67 x 51 cm. Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria. Disponível em http://www.wga.hu/frames-e.html?/html/a/arcimbol/.
20
Apesar dessas referências ligadas às cortes europeias, o milho foi, sobretudo,
alimento de animais e de camponeses, sendo cultivado nas hortas como já citado e
também nas terras em descanso, denominadas alqueives. Sua inclusão na dieta dos
camponeses ocorre principalmente nas regiões onde havia o cultivo de cereais menos
nobres, como o centeio, e nas regiões onde já havia o consumo do milhete65.
Flandrin aponta para a substituição do trigo-mouro pelo milho, no preparo da
polenta no norte da Itália, e do milhete, na França, a partir do século XVII, na
preparação da milhade ou millasse, uma espécie de torta doce66.
Fernández-Armesto fala da estranheza que o milho causou nas populações
europeias, apontando para os nomes dados ao cereal: milho espanhol, milho-da-guiné,
trigo-de-peru, numa clara alusão ao desconhecimento em relação à sua origem,
desconhecimento este que certamente favoreceu seu cultivo, isento, nas áreas de
alqueive67.
Sobre a batata, Oviedo diz: “Con todo eso, las he yo llevado desde aquesta
cibdad de Sancto Domingo de la isla Española hasta la cibdad de Avila”68; Acosta
escreve:“Algunos de éstos se han traído a Europa, como son batatas, y se comen por
cosa de buen gusto”69. Em ambos os casos, o alimento descrito é a batata-doce, que,
apesar das qualidades exaltadas, geralmente relacionadas à sua doçura, acabou
desaparecendo da dieta do Velho Continente.
A “papa” ou batata “inglesa”, como conhecemos atualmente, descrita por
Acosta como alimento “para sustancia y mantenimiento”70, foi introduzida pela primeira
vez no País Basco e, em 1680, era cultivada na Bélgica. Seu processo de propagação
pela Europa seguiu os conflitos armados dos séculos XVII e XVIII, quando, pelo fato de
ser uma raiz, escapava aos tributos, constituindo praticamente o único alimento71.
Flandrin relata a presença da batata em regiões da França e da Itália, no final do século
65 FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo (org). Op. Cit., p. 539 66FLANDRIN, Jean-Louis.Op. Cit. p. 590. 67 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 256. 68 FERNÁNDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, Gonzalo. Op. Cit. 69ACOSTA, Joseph. Op. Cit. 70 Idem. 71 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Op. Cit., pp. 267-268.
21
XVI, geralmente associada à alimentação dos porcos ou como único alimento dos
camponeses nos períodos de escassez alimentar72.
Seja como único alimento dos camponeses durante os períodos de conflito
ou como ração para animais, as reservas das populações europeias com relação à
batata parecem estar associadas à fama de planta venenosa que o vegetal possuía73.
Seja como for, no último terço do século XVIII, circularam pela Europa diversas receitas
nas quais a batata era preparada como caldo, omelete ou guisado74 e, especialmente
durante o século XIX, a batata fez jus à descrição de Acosta, transcrita acima, quando
sua produção ou sua falta dispensou grandes contingentes populacionais, que foram
convertidos em operários nas nascentes fábricas da Inglaterra, Bélgica e Estados
Unidos.
72FLANDRIN, Jean-Louis.Op. Cit. p. 592. 73 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Op. Cit., pp. 159 e 267. 74FLANDRIN, Jean-Louis.Op. Cit. p. 592.
22
Conclusão
Conforme afirma Foucault, “a semelhança desempenhou um papel construtor
no saber da cultura ocidental” durante o século XVI75. É, sobretudo, a partir das
semelhanças, que os cronistas e compiladores dos séculos XV e XVI realizaram a
tarefa de apreender a natureza do Novo Mundo, e em grande medida, este processo
envolveu a manutenção do mundo europeu, não só em relação à natureza, mas
também em relação às práticas. E o conhecimento oriundo do mundo antigo,
especialmente aquele produzido pela cultura grego-latina e trazido à tona pelo
renascimento, desempenhou papel básico para o reconhecimento e a hierarquização
da natureza Americana, segundo os padrões europeus76.
Ao primeiro momento, em que o novo e o exótico eram explorados e
valorizados, seguiu-se um processo que procurou explicar a natureza e os fazeres dos
habitantes da terra, a partir da contextualização desses elementos ao mundo europeu.
No caso das plantas relacionadas à alimentação, esse processo se deu por meio do
que Fernández-Armesto conceitua de forma geral como intercâmbio ecológico, assim
como em relação específica ao contexto de intercâmbio colombianoEuropa/América dos
séculos XV e XVI, que diz respeito à circulação mundial de espécies, guiada pela lógica
do Mercantilismo, que alterou paisagens e difundiu hábitos e crenças77.
Para que esse processo mais pragmático pudesse acontecer, foi necessário
outro que o precedeu, ligado à compreensão dessa natureza, e, conforme já
mencionado, realizado a partir das similitudes. Desta forma, quando descrevia o cultivo
do milho, um cronista como Oviedo falava mais sobre a agricultura europeia,
transformada em saber por meio das obras de Virgílio, Teofrasto e Plínio, atestando a
perspicácia e sabedoria desses autores tão caros ao conhecimento humanista da
época.
Do mesmo modo, quando trata do “pan de maíz”, Acosta fala sobretudo do
pão, alimento ocidental e sagrado, afinal “las plantas fueron criadas principalmente
75 FOUCAULT. Michel. Op. Cit., p. 23. 76 THEODORO, Janice. Op. Cit. 77 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Op. Cit., pp. 245-277.
23
paramantenimientodelhombre, y el principal de que se sustenta es elpan”78.E, se o pão
éalimento de homens, Acosta atribuía certa humanidade aos índios, procurando relatar
nos livros, quando trata da moral, a história desses povos.
Além da descrição de plantas e processos de preparação de alimentos,
especialmente Oviedo e Acosta fazem referência à incorporação de elementos
europeus ao cotidiano do Novo Mundo e da utilização da natureza americana em prol
dos interesses do Velho Continente. Assim, descrevem a introdução dos animais de
tração como cavalos, bestas e bovinos, a utilização de fornos e a produção de
alimentos voltados ao abastecimento das regiões mineradoras e para suprir as
travessias oceânicas.
Ao mesmo tempo,Oviedo e Acosta relatam a incorporação do açúcar ao
preparo de alimentos nativos, a utilização de técnicas culinárias europeias e, emborase
mostrem maravilhados diante da produtividade da natureza americana, esse processo
de incorporação, regido pela leitura de mundo feita pelo homem cristão, letrado e
humanista da Europa do século XVI, “denega o universo indígena e imobiliza na
memória o padrão cultural europeu”79.
A partir da Espanha, o milho e a batata tiveram uma propagação rápida na
Europa, mas sua inclusão na dieta das populações revelou-se um processo lento,
talvez por ser a alimentação um complexo conjunto de hábitos, ritos e costumes que
vão além das necessidades biológicas80, ou talvez por serem os hábitos alimentares os
menos afeitos a mudanças ou, ainda, pela ausência de documentação que comprove
uma anterioridade maior de sua produção e consumo, tendo em vista o lugar social das
pessoas, especialmente camponeses, que a partir do final do século XVI e durante o
século XVII, passaram a fazer uso desses alimentos.
Apesar de todas as questões que envolvem a adoção ou o desprezo de
determinados alimentos e, embora não exista consenso entre os historiadores, nas
regiões europeias onde milho e batata foram adotados na alimentação, conforme afirma
78ACOSTA, Joseph. Op. Cit. 79 THEODORO, Janice. Op. Cit. 80CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 1.
24
Morineau, houve, quando não um crescimento demográfico, uma recuperação desses
índices, no período que vai do século XVI ao século XVIII81.
Para além das questões relacionadas às dificuldades de comprovação
documental e à leitura dos números, quando do incremento do processo de
urbanização europeu do século XIX, momento da chamada Revolução Industrial, foi a
batata, uma planta do Novo Mundo, o suporte alimentar que possibilitou o fato82.
81MORINNEAU, Michel. Op. Cit., pp. 566-567 82MORINNEAU, Michel. Op. Cit., pp. 570-571.
25
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