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ANO VII • N� 46 • NOVEMBRO/DEZEMBRO 2006EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS

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A crescente vigilância feita por câmeras e outros meios tecnológicos põe em discussão os limites da busca da

segurança diante da necessidade de preservar a privacidade das pessoas

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Vigilância eletrônica, 24 horas por dia, não émais parte da ficção imaginada no passado. Oarsenal tecnológico de controle vai além dos“olhos ele trônicos” e inclui radares que fla -gram e foto gra fam motoristas desres pei tandoregras de trânsito, sensores que apontamfurtos de mer cadorias em lojas, leitores digitaise de íris que servem de senhas para a aber turade portas, cruzamento de informações ban -cárias e fiscais que denunciam sonegação deimpostos, identifi cação biométrica de suspeitode crimes e até mo ni toramento via satélite depresos em liberdade condicional. Nes te ritmo,falta pouco para ganhar espaço a ima ginada“identidade uni versal”, que seria usada pararastrear, instan taneamente, qualquer cidadão,onde quer que ele esteja.

Diante desta situação, estaria o mundo dehoje ficando mais parecido com aqueleimaginado no final da década de 1940 peloescritor inglês George Orwell, em seu clássico1984? Na obra, assim como na sociedade queparece estar em construção, nenhum localestaria a salvo da vigi lância permanente.

Introduzidas com grande expectativa comoar mas para aplacar a crescente violênciaurbana, as tecnologias de monitoramentotambém po dem revelar um lado muitonegativo, se gundo a análise de algunsespecialistas. Do ponto de vista jurídico, apreocupação é evitar que os métodos de con -trole se expandam a tal ponto que possamcom prometer liber dades individuais egarantias asse guradas cons ti tucionalmente.

Na mira das lentes

Recentemente, a prefeitura de São Paulo – aexemplo do que vêm fazendo outras cidadesde vários países – instalou um conjunto de 35câmeras eletrônicas na região central da ca pital.Os equipamentos permitem captar deta lhes dediversas ocorrências cotidianas. De acordo comas informações da adminis tração municipal, aescolha dos locais para a insta lação das câmerasobedeceu a critérios que levam em conta fato -res como a grande movi mentação das pessoas,número de incidentes registrados e o fato de o

lugar ser um ponto histórico ou turístico. Tudoem nome da segurança.

As regiões abrangidas pelos “olhos ele trônicos”são observadas permanentemente a partir deuma central da Guarda Civil Metro politana, ca -paz de acionar imedia ta mente as unidades depa trulhamento, tanto da própria GCM, quantoda Polícia Militar, que estiverem próximas aolocal e que precisem intervir. A intenção dasautoridades paulistanas é fazer do sistema umareferência para outras cidades do Brasil, pelacobertura da área observada, qualidade dasimagens, capaci dade de aproxi mação para verdetalhes da cena e inter venção imediata.

Além das ruas, os cidadãos modernos vivemcercados de câmeras em muitos outros lu -gares, como elevadores, portarias de prédios,bancos, supermercados e estações de metrô,para citar alguns exemplos bastante conhe -cidos. Trata-se de uma tendência mundial.

Um estudo do Comissariado de Informaçãodo Reino Unido, divulgado no início de no -vembro, mostrou que aquele país está setrans formando numa “sociedade de vigilância”,com cada habi tante sendo filmado por cercade 300 câmeras todos os dias. O Comis -sariado é um órgão inde pendente, respon -sável por proteger a priva ci dade do pú blico eajudar os cidadãos a terem acesso ainformações oficiais. Ainda de acordo comeste levan tamento, o Rei no Unido tem4,2 mi lhões de câmeras de circuitofecha do (uma para cada 14habitantes), que vigiam os cidadãosnas ruas, nos meios de transporte eem estabe lecimentos públicos ecomerciais.

“Em muitas cidades brasileiras,tam bém se torna cada vez maisdifícil encontrar um local que nãoseja vigia do. Neste caso, não hácomo negar que as pessoas sentemum aumento da sensação de segu rança,mas, por outro lado, a priva cidade di mi nuina mesma proporção”, co menta SergioCruz Arenhart, procu rador da Re pública no

Paraná e procu rador regional dos Direitos doCida dão. Segundo ele, os contro la doreseletrônicos são um mal neces sário dasociedade moderna, mas isso não significa quetudo possa ser permi tido sob o pretexto dasegurança. “É fato que o conceito de intimi -dade é relativo, varia de acordo com a cultura

Novembro/Dezembro 2006 • RT Informa4

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Sergio Cruz Arenhart: “A questão é ter claro ondedeve haver expectativa de intimidade e onde não”

Privacidade num mundo de vigilância constanteCom câmeras e diversos aparatos tecnológicos de monitoramento por todos os lados, a

sociedade moderna se vê diante da constante necessidade de refletir até que ponto pode

abrir mão de determinados direitos individuais em prol da segurança da coletividade.

Araú

jo

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e o tempo, mas é importante não se esquecerde que a privacidade é funda mental para odesenvolvimento das pes soas e deve serrespei tada. A questão é saber em que es paçose si tuações deve haver uma expectativa deinti mi dade e em quais não deve existir, já quea vigi lância eletrônica tornou-se uma rea lidade.Creio que as discussões deve rão cami nharneste sen tido”, acrescenta.

Num artigo intitulado “A Era do Controle:intro dução crítica ao Direito Penal ciber né -tico”, publicado pela Revista dos Tribunais háquase três anos, o jurista Túlio Lima Viannaabordou a preocupação com o uso des me -dido das tecno logias de vigilância. Ele apontaque o argumento central dos defensores dolongus oculus estatal é a ausência do direito àprivacidade em locais públicos. Afinal, se al -guém pode ser observado por outras pes soas,não haveria por que almejar privacidade.“Evidentemente, trata-se de um so fisma, poiso grau de observação de um sistema de vigi -lância eletrônica é infinitamente superior àvisão do mais observador dos transeuntes.Não se pode comparar a visão humana comcâmeras onipresentes, na sua maioria ocultasna paisagem urbana, permitindo aos agentespúblicos verem sem serem vistos. Não bas -tasse a visão privile giada das câmeras estra te -gicamente posicionadas, a gravação das ima -gens permite sua reprodução com zoom ecâmeras lentas, por infinitas vezes, inclusivepara terceiros”, analisa.

Na opinião de Vianna, doutor em Direito doEstado e professor de Direito Penal na PUC-MG, o mesmo sistema utilizado para avigilância pode ameaçar direitos civis quandousado com fins políticos. “As câmeras cer -tamente não filmarão somente crimes e cenasdo cotidiano, mas tam bém greves, manifes -tações políticas e uma série de outras ameaçasaos interesses de quem, mais tarde, terá aposse destas imagens e o poder de analisar e

julgar as condutas filmadas. Daí, sob o singelopretexto de repressão da criminalidade, nãofaltará muito para a repressão ideológica epolítica”, argumenta. Ademais, segundo ele, na -da garante que o uso das câmeras irá efeti -vamente reduzir globalmente os índices decrimi nalidade. “É provável que haja um des -locamento dos focos de delinqüência parabair ros pobres, zonas rurais e o interior dasresidências”, acrescenta.

Motivos para preocupação não faltam. Naava liação do professor Bismael Batista deMoraes, mestre em Direito Processual e ex-presidente da Associação dos Delegados dePolícia do Estado de São Paulo, a constantevigilância cria proble mas que vão além da sim ples redução da pri vacidade. “Vivemosuma espécie de ‘neurótica fobia coletiva’, quenos induz a considerar os mui tos controlesótico-eletrônicos como válidos, mas é precisocau tela”, afirma. Ele tem se preocupado espe -cial mente com a questão do direito de defesa,ga ran tido constitucionalmente. “Para o ‘impu -ta do’, ‘suspeito’, ‘apontado’, ‘fotografado’ ou‘fla grado’, a ampla defesa desaparece ante aver dade da máquina. Ninguém pode, face asevi dências ele trô nicas, usar do princípionemo tenetur se dete ge re(ninguém é obri ga do a fazerprova con tra si mesmo)por que o au tuado (sur -preen di do) não temper guntas a res -ponder”, diz. Emoutras palavras, a penaestá previa mente se ladapelo apa rato tec no ló gico.“Os direi tos in divi duais ousubje tivos do acusado sucum bem,por força de um ato ad mi nistrativo da auto ri dade pú blica”, diz.

Controle sem abusos

O temor de alguns especialistas acerca do usoinapropriado das tecnologias de vigilância éreforçado também por ocorrências até pito -rescas que vieram a público. No ano passado,por exemplo, o TST-MG condenou uma em -presa a indenizar um dos seus funcionáriosque movera uma ação contra a iniciativa dacom panhia de instalar câmeras de vigilâncianos banheiros masculinos. Nos EstadosUnidos também ganhou repercussão o casode uma escola de ensino médio do Tennesseeque havia instalado o mesmo tipo deequipamento no vestiário feminino,registrando as garotas do time de basqueteseminuas. As imagens, captadas por umacâmera sem proteção, fica ram registradas narede de computadores e foram parar nainternet, dando margem para muita polêmicaà respeito do quanto se pode deturpar o usoda tecnologia sob o pretexto original decuidados com a segurança.

O contínuo desenvolvimento tecnológicodeverá alimentar ainda mais a discussão. É ocaso dos novos programas existentes nainternet capazes de captar, via satélite, imagensde qualquer região do planeta. A tecnologia,ainda embrionária, já permite localizar ruas e casas. “Se nós, cidadãos comuns, podemosaces sar esses sites e capturar essas imagens, oque mais aqueles que liberaram estes recursospodem acessar que nós ainda não sabemos?”,questiona Arenhart. “Não devemos criar umaparanóia, mas é preciso ter garantias de que atecnologia seja usada para preservar osindivíduos, os cidadãos de bem, e não parapre judicá-los. Assegurar esta condição, porém,não é uma tarefa fácil”, considera.

O advogado criminal e diretor do InstitutoBra sileiro de Ciências Criminais, Theo Dias,também avalia que sempre haverá uma tensãoentre os meios usados para promover a se -gurança contra a criminalidade e os direitosindividuais. “Observo que, hoje em dia, a socie -dade está mais disposta a renunciar a certasliberdades em nome da sensação de segu -rança, mas isso não quer dizer que se tornouaceitável qualquer tipo de invasão à inti mi -

dade”, comenta. Segundo ele, ascâmeras fa zem parte do que na

Inglaterra se denominouprevenção situacional, por

meio da qual se lançamão de instrumentosarquitetônicos, urbanís -ticos e tecnológicospara reduzir as opor -

tunidades de ocorrênciade crimes. “As câmeras ins -

taladas em locais críticos po -dem ser decisivas tan to para coibir

delitos, quan to para facilitar a inves ti gaçãoquando eles não pu derem ser evi tados. Creioser acei tável, do ponto de vista legal, ainstalação desses equi pamentos em aero -portos, ruas e outros locais públicos, onde aspessoas pos suem uma reduzida expectativade intimidade. O direito à privacidade é umbem jurídico que deve ser preservado, masque admite restrição na ponderação comoutros direitos”, analisa.

Por outro lado, Dias defende que a segurançanão deva ser buscada “a qualquer preço”.Como apontado pelos outros profissionaisouvidos pelo RT Informa, ele concorda quesempre haverá o risco de abuso. “Mas isso nãoimpede o uso da tecnologia. Os desvios é quedevem ser combatidos”, enfatiza. “As es -tratégias de luta contra o crime devem estarde acordo com as regras do Estado De -mocrático de Direito. Devemos estar cons -cientes dos riscos de um Estado ou de umasociedade ‘paparazzo’, em que se barganhaprivacidade por uma pre tendida ‘segurança’.O objetivo de contenção do crime não sealcança a qualquer custo, com a abolição dasfronteiras que devem separar o crime do

É quase inevitável deixar de fazer uma associação entre a crescente vigilância nos

dias atuais com a ficção do Big Brother imaginada há

mais de seis décadas

Bismael Batista de Moraes: “O direito de negar,como parte da defesa, desaparece diante daverdade da máquina”