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Rui Resende · 2014-04-15 · em tornar-se diplomata e apenas palrar com o passante solitário. Quando tal sucedia fazia falar o incauto visto que um homem não conversa com a boca

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Rui Resende

Antologia Policial

Lisboa, 2014

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Ficha técnica

Título: Antologia Policial

Autor: Rui Resende

Editor: Rui Resende

Capa e contracapa: Postais russos antigos

Fotos: Portugal entre o rio Douro e Tejo

Composição e coordenador: Rui Resende

Execução: Gráfica Digital

Tiragem: 25 exemplares

ISBN: 978-989-97112-5-9

Depósito Legal: 374041/14

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Um crime no Natal

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I

ang-Ho deslizava o pano molhado sobre o balcão

do estabelecimento, limpando as nódoas que os

habituais clientes do snack-bar “Lhu-Lhu” descuidadamente

tinham feito, enquanto expressavam os seus ajuizados pontos de

vista, sobre os escândalos em foco nesse dia gelado de Dezembro.

O chinês raramente tomava partido nas discussões pois há muito

que aprendera que a única forma de manter a clientela consistia

em tornar-se diplomata e apenas palrar com o passante solitário.

Quando tal

sucedia fazia falar o

incauto visto que um

homem não conversa

com a boca seca.

O oriental gostava

desta época de

Inverno, sem moscas e

sem calor, diferente de

Moçambique de onde

regressara refugiado há uns anos com a esposa. O snack-bar

“Lhu-Lhu” situado nas Avenidas Novas fornecia-lhe o dinheiro

mais do que suficiente para o seu sustento. Possuidor da filosofia

oriunda dos antepassados chineses, e da racionalidade de

cinquenta e seis anos, a persuasão da sua palavra acabava por

triunfar em qualquer meio aonde se encontrasse inserido. Apenas

não compreendia como a sua estimada esposa gastava tanto

dinheiro em compras durante o Natal.

Enquanto enrugava a testa apreensivo, o som de quem bate

com os nós dos dedos na porta e um nariz esborrachado na

W

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transparência do vidro vislumbrou-se da rua no meio da escuridão

da noite. Naquele momento já nada havia a fazer, o inspector

Novais da Brigada de Homicídios abria a porta entrando com a

autoridade de quem não conhecia negativas.

- O estabelecimento já encerrou. Queira retirar-se senão

chamo a polícia.

Gracejando Wang-Ho cumprimentava o amigo, porém como

era de esperar, o agente da Brigada de Homicídios replicou da

mesma maneira.

- Como vai a drogaria? Continua a envenenar o pessoal? Os

clientes conseguem sair de pé ou continuam a retirar-se aos saltos

nas ambulâncias?

O inspector Novais sentou-se ao balcão e puxou do cachimbo

sem o acender.

- A propósito traga aquela garrafa de mistela a que dá o nome

de “Gordon’s”

- Berbicacho.

Com um murmúrio Wang-Ho retirava uma garrafa de rótulo

amarelo de uma prateleira detrás do balcão.

- Esta é a dos amigos, importada directamente de Inglaterra.

Algum crime?

Almeirim – Cidade que se

situa ao Norte do Rio Tejo

é uma cidade tipicamente

Ribatejana.

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- Um caso curioso, de fácil resolução, relato-lhe porque gosta

de desvendar crimes.

Bebendo um trago do líquido do copo o inspector Novais fez

um esgar e inquiriu.

- Que veneno é este?

- Gin puro, um néctar que não está habituado.

O chinês encostou-se ao balcão enquanto com os dedos

penteava a farta cabeleira.

- Aonde é que as peças do puzzle não encaixam? Não me

engana, só aqui vem quando os casos são complicados.

O polícia deu outro

gole, pousou o copo e fixou

Wang-Ho.

- Um professor morreu

com a faca na barriga.

O oriental agarrou um

pano e retomou a sua

actividade interrompida

pela inoportuna chegada do

inspector Novais, que

medindo as palavras continuou.

- Existe algo de estranho neste caso. O crime desenrolou-se

num prédio antigo aonde toda a vizinhança se conhece. O

professor Coutinho, um pedagogo de poucas palavras só vivia

para os seus livros não se metendo na vida alheia. Aparentemente

as relações com os vizinhos limitavam-se aos bons dias e boas

tardes. Até ao momento não se vislumbra nenhuma razão para

alguém o desejar ver morto.

Um guarda que se encontrava na zona impediu a saída dos

inquilinos que na sua maioria descansavam após o regresso dos

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empregos, tendo o crime ocorrido ao fim da tarde. Após

revistarmos todas as casas constatamos o desaparecimento da

arma do crime. As análises laboratoriais aos possíveis objectos de

a constituírem mostraram-se infrutíferas.

Ninguém de fora entrou no prédio levando-nos a concluir

existir um vizinho prestidigitador neste caso fazendo desaparecer

a arma do crime.

Discretamente Wang-Ho começou a reunir os ingredientes

para a refeição denominada “Prato do dia” que surgiria fumegante

no dia seguinte.

- Aprecia Chop-

Suey de frango?

O inspector Novais

fingiu não o ouvir.

Conhecia bem o amigo,

e sabia que ele

continuaria a insistir

para ele almoçar algo

que ele não apreciava

particularmente.

Lentamente levantou-se e dirigiu-se para a porta voltando-se em

seguida.

- Quero que esteja pronto amanhã de manhã para me

acompanhar. Gosto imenso da sua companhia.

O oriental tentou replicar, porém o inspector já descia a

calçada com as mãos enterradas no sobretudo castanho e o

cachecol enrolado como uma cobra no pescoço.

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II

m amanhecer gelado e solarengo havia surgido

naquele dia. Fora do escritório do inspector Novais,

as pessoas continuavam a sua azáfama ininterrupta pelos

estabelecimentos comerciais barafustando as elevadas quantias

que os comerciantes pediam de maneira inocente. O aquecimento

central realizara o milagre de tornar acolhedor o ambiente. Aliás,

a sala decorada de maneira sóbria, mas elegante parecia passar

despercebida às quatro pessoas sentadas em confortáveis maples

castanhos.

O inspector Novais tossiu mais uma vez arranjando tempo

para pensar.

- Ora em síntese, o senhor chama-se Tito Gromicho e vive no

andar com a sua esposa Helena Gromicho. Casaram há pouco

tempo, e pouco ou nenhum, convívio possuía com o professor

Coutinho.

Um homem ainda novo de camisola de lã verde e botas de

couro, concordou.

- Exacto. Nem eu nem a minha mulher possuíamos motivo

para matar o senhor professor. Nesse dia entravamo-nos a ver

U

Ribatejo – É uma província

de enorme extensão,

compreendendo uma

grande parte da região

Norte do Rio Tejo e ainda

dois municípios a Sul.

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televisão e só nos apercebemos de que algo anormal acontecia

quando surgiram dois guardas acompanhados de um investigador

fazendo perguntas acerca da terrível ocorrência.

O detective olhou de relance para Wang-Ho entretido a

admirar uma natureza morta. Este quadro, único na sala reflectia o

temperamento do agente da brigada de Homicídios. Uma pessoa

simples e modesta.

- A senhora confirma as palavras do seu marido?

O inspector Novais

observava agora uma mulher

morena e esbelta de vestido

creme esfregando as mãos

nervosas. Helena Gromicho

não hesitou em responder e

as suas palavras brotaram em

torrente.

- Claro. Tito e eu

ficámos muito chocados.

Trabalho num centro

comercial e o meu marido é

agente de seguros. Nunca

nos metemos em problemas

e os mesmos nunca nos procuraram até ao momento.

- Minha senhora neste momento todos são suspeitos.

Desconfia de alguém que tenha cometido o crime?

Helena Gromicho acalmou-se, acentuando as palavras.

- Não gosto de acusar ninguém, mas julgo que os nossos

vizinhos de baixo não se davam às mil-maravilhas com ele. O

senhor Manuel Lino não via com bons olhos a amizade da

senhora Sílvia Lino com o professor Coutinho. Ultimamente as

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discussões do casal tornaram-se particularmente violentas, com

frequência o senhor Manuel Lino saia de casa batendo com

estrondo a porta. Realço o facto de ambos morarem ao lado do

professor e não quero que esta conversa saia destes aposentos.

O agente da polícia endireitou-se na cadeira e retorquiu.

- Minha senhora, garanto-lhe que nenhuma palavra

transpirará desta sala. A propósito, o senhor Tito Gromicho sabe

se o professor possuía alguma vida dupla para além das aulas que

leccionava?

Tito Gromicho respondeu com a capa de calma até aí

mantida.

- Retirando o tempo a ensinar,

raramente saia para tomar um café

numa leitaria aqui perto regressando

em seguida.

- Vi-o umas duas ou três vezes

durante o percurso que faço para

comprar o jornal. Costumo sair

agora menos à noite ao invés de

antigamente, devido a ver agora mais televisão. Sabe que também

um homem casado vai-se tornando comodista. Deseja fazer-me

mais alguma pergunta?

Tito Gromicho aparentava medir melhor as palavras que a

sua nervosa esposa. O inspector Novais desligou o gravador

mantido ligado durante a entrevista e levantou-se.

- Obrigado, meus senhores. Agradeço a vossa colaboração e

desculpem a maçada, contudo todos os dados são fundamentais

para a resolução do caso.

Wang-Ho parecia acordar naquele momento, na sua

compenetração cometeu a indelicadeza de não se levantar

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enquanto o casal Gromicho saia rapidamente pela porta do

gabinete acompanhados do inspector Novais. Só passados alguns

segundos o oriental se levantou e foi endireitar o quadro

delicadamente. Regressando ao sofá não se sentou pois

cumprimentou um sujeito hercúleo com grandes entradas no

cabelo, vestindo jeans, acompanhado de uma loura oxigenada que

entravam acompanhados do agente da Brigada de Homicídios.

O casal Lino que penetrava no gabinete, a julgar pela maneira

de vestir, certamente não mantinham contacto com a alta

burguesia. A mão linfática da Sra. Sílvia Lino que foi dada a

apertar ao chinês contrastava com a sanguínea manápula do Sr.

Manuel Lino. Wang-Ho admirou-se com a possibilidade de haver

discussões entre aquele pedaço de rocha e aquela borboleta de mil

cores. Não havia dúvida, a Sra. Sílvia Lino não prendava pelo

bom gosto. Até o oriental, apesar de possuir um tacanho sentido

de moda, notou que aquela blusa azul não condizia com os

sapatos verdes. Sapatos verdes, que horrível mau gosto possuem

os latinos.

Santarém - Cidade muito

antiga, havendo vestígios de

ocupação humana do século

VIII, antes de Cristo. Foi

conquistada por D. Afonso

Henriques, primeiro rei de

Portugal durante a noite.

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Após as apresentações o inspector Novais dirigiu-se ao

assunto, não sem ter apreciado a careta cómica do estarrecido

amigo.

- Sr. Manuel Lino, queira desculpar o incómodo dado ao

senhor e sua esposa, mas é necessário responderem-me a algumas

questões. Quantas pessoas vivem na sua casa e o que faziam na

altura em que se deu o crime?

O detective começava o inquérito após todos se sentarem. O

inquirido colocou as mãozorras em forma de prece e prontificou-

se a responder.

- No meu lar vivem

quatro pessoas. Habito

com a minha mulher, com

a minha filha Susana e a

minha sogra Albertina

Serena. Na altura da

ocorrência da tragédia

encontrava-me a jogar às

cartas com a minha

mulher. Susana e a minha

sogra lavavam a roupa à entrada do edifício num tanque lá

existente. Não ouvi nada por causa do barulho da televisão dos

nossos vizinhos de cima.

O detective recostou-se para trás na cadeira e perguntou

enchendo o cachimbo com tabaco comprado em contrabando.

- Existe perfeita harmonia no vosso lar? Pensava que o

professor Coutinho possuísse inimigos?

Manuel Lino mexeu-se pouco à vontade respondendo

cautelosamente.

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- As únicas discussões existentes lá em casa são comigo e a

minha sogra, coisas sem importância. Quando ao professor

Coutinho tinha-o na mais elevada consideração não vislumbrando

motivo para a sua infame morte.

O inspector Novais puxou algumas fumaças do seu cachimbo

“Made in China” para o não apagar, a conversa tomava um rumo

interessante. Dirigiu-se à Sra. Sílvia Lino que não largava com os

olhos o marido.

- Minha senhora, gostava de confirmar as palavras do seu

marido e ao mesmo tempo agradecia que me referisse algo mais

sobre o professor Coutinho.

Um lampejo de dureza

apareceu no rosto de marido

que soube disfarçar

rapidamente.

- Pouco ou nada tenho à

acrescentar às palavras do

meu esposo.

A Sra. Sílvia Lino

mostrava-se pouco segura de

si, a sua defesa de falar o menos possível mostrava-se periclitante.

Uma intervenção repentina do Sr. Manuel Lino aliviou-a.

- Senhor inspector, eu sou mecânico, a minha mulher é

empregada de limpeza numa farmácia, pouco nos metemos na

vida alheia. O professor Coutinho era uma pessoa reservada,

estacionava muito em casa, sempre preparando as suas aulas,

saindo normalmente a seguir ao jantar. Não sabemos o que lhe

dizer mais.

- Qual o destino do professor nas suas saídas nocturnas?

- Não sei.

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O inquirido sentia-se pisar terreno inseguro e continuou.

- Constou-me ir a reuniões de um agrupamento político.

Desconheço qual, o motivo e o que fazia lá. Habitava o prédio há

poucos anos e penso ter alugado a casa após ter cumprido o

serviço militar no ultramar.

O inspector Novais dirigiu o olhar para Wang-Ho que ainda

observava os sapatos da Sra. Lino. Não duvidava do estado de

choque do chinês.

Saltitando os dedos no braço da cadeira inquiriu para acabar a

conversa.

- Senhor Manuel Lino, quem pensa ser o assassino? Suspeita

de alguém?

- Várias pessoas parecem-me plausíveis de serem potenciais

homicidas. O Sr. Xavier Martins, meu vizinho de baixo, saia

muitas vezes à noite como acontecia com o professor. É um

sujeito muito enigmático, sendo vendedor de castanhas, possui no

entanto uma casa ricamente recheada e apesar da profissão

modesta leva uma vida próxima do luxo. Tudo para mim é muito

estranho.

Sintra – É uma vila que

tem-se recusado ser

cidade apesar de ser o

segundo mais populoso

município de Portugal.

É Património Mundial

da UNESCO.

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O habitante do prédio aonde tinha decorrido o homicídio

esforçava-se por coordenar as ideias.

- O Sr. Xavier Martins, que eu saiba, foi o único vizinho a

deslocar-se a casa do professor Coutinho. Outro presumível

assassino poderá ser o senhor Tito Gromicho.

- Acha possível?

- Reparei que a partir de certa altura o professor e o Sr.

Gromicho começaram-se a detestar sem aparente motivo. Quanto

aos outros casais nossos

vizinhos são pessoas que não

se metem na vida de ninguém.

O casal Gregório, sujeitos de

meia-idade, são bancários

vindos para o nosso prédio há

meses, o Senhor e Sra. Calado,

os que descobriram o cadáver

do professor na escada,

habitam o rés-do-chão, sendo

reformados e muito gentis.

O inspector Novais olhou

para o relógio. O inquérito

chegara ao fim. Enquanto

fechava a porta após se despedir do casal Lino compôs a gravata.

- Que me diz a isto tudo?

O chinês não respondeu de imediato. Fez primeiro uma careta

antes de retorquir.

- São horríveis.

O oriental olhava a moderna alcatifa e nem notou a expressão

de espanto do inspector Novais que vestia já a gabardine.

- O casal Gromicho ou Lino?

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- Os sapatos.

III

O “Irish Coffee” é um dos muitos pubs dispersos em Lisboa

fervilhando ao fim-de-semana de indivíduos sequiosos de algo

que os faça sair da rotina diária e da labuta. O ruidoso ambiente

transforma-se por completo quando surgem os primeiros acordes

de violas e batutas, companheiras

inseparáveis das vozes quentes

cantando doces e românticas

melodias brasileiras.

O guarda José Fragoso

aproximou-se cautelosamente da

mesa aonde um sujeito alto de

gestos amplos falava

calorosamente com um oriental

que olhava as paredes do bar sem

mostrar aparente interesse pelo

falatório do interlocutor.

- O senhor inspector dá-me

licença que eu continue a dizer o que penso?

O guarda José Fragoso não possuía naquele momento à

paisana a segurança que tinha de quando envergava o uniforme da

Polícia de Segurança Pública. Um autoritário “ faça o favor” saiu

da garganta do inspector Novais terminando com o monólogo até

aí mantido com estoicidade e persistentemente pela autoridade.

- Bebe alguma coisa, guarda Fragoso?

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O detective não esperou pela resposta e chamava já o criado

que naquele intervalo passava perto acorrendo solicito aos

múltiplos chamamentos. Voltando-se novamente para o agente da

polícia apresentou o oriental.

- Este é o Sr. Wang-Ho, que me auxilia neste caso.

Um breve e recíproco inclinar de cabeças foi suficiente para a

apresentação. O inspector olhou o rosto redondo do polícia e

indagou.

- O senhor encontrava-se de serviço na esquina do prédio

aonde ocorreu a morte. Pode-me relatar o que se passou nessa

tarde?

O guarda Fragoso

continuava pouco à

vontade.

- Senhor inspector,

eu pouco acrescento ao

meu relatório que foi

escrito. A esquadra

recebeu um telefonema

anónimo de um homem

afirmando a existência de um crime. Ao princípio pensamos

tratar-se de uma brincadeira de mau gosto, contudo existem tantos

loucos que fui destacado para a esquina do prédio que fica

pertíssimo da esquadra. Nessa altura acabava uma ronda perto do

edifício como normalmente, costumo fazer. Seriam cerca das

dezanove horas. Ainda vi o Sr. Manuel Calado a sair do prédio

em alvoroço chamando-me.

- E depois?

- Entrei e reparo no professor Coutinho com uma ferida perto

do coração sangrando abundantemente. Desmaiada perto do

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defunto, com a malinha de mão a servir de travesseiro, encontro a

Sra. Rita Calado. O calor do corpo e a maneira como o

assassinado ainda sangra denunciam um crime realizado há pouco

tempo. Ordeno que ninguém se abeire do cadáver e o Sr. Manuel

Calado impede a saída dos inquilinos enquanto eu pelo rádio

informo o meu superior do que se está passando.

- Depreendo que o Sr. Manuel Calado esteve perto de si. Li

no seu relatório que a maioria dos vizinhos, ou quase totalidade,

se mantiveram no prédio. Quem se encontrava ausente?

- Frente ao prédio a menina Susana Lino, filha do casal Lino,

e a senhora Albertina Sereno lavavam a roupa da família num

grande alguidar sobre o tanque. A senhora Deolinda Gregório

conversava com a Sra. Albertina Sereno.

- Considera impossível a ligação dessas senhoras ao crime?

- Não tenho a certeza. O crime ocorreu depois de o professor

entrar no edifício e no espaço de tempo decorrido até ao apelo do

Sr. Manuel Calado. No entanto elas são testemunhas uma da

outra.

Serra de Sintra

– Este local

possui um

micro-clima

com vegetação

única no país.

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- Considera possível a fuga do assassino por qualquer janela

que dá para o beco existente ao lado do prédio?

O guarda José Fragoso pensou um pouco antes de responder.

- Existem três hipóteses visto que apenas três apartamentos

darem para o referido beco. No rés-do-chão a senhora Rita Calado

e o senhor Manuel Calado certamente notariam um homem

entrar-lhes em casa e sair pela janela. No primeiro andar vivia o

professor Coutinho, no entanto a fechadura não apresenta

vestígios de ter sido forçada. O segundo andar é suficientemente

alto para se saltar e o Sr. Alberto Gregório afirma que nenhum

ruído anormal lhe

chamou a atenção.

- Além da Sra.

Rita Calado e do Sr.

Manuel Calado mais

ninguém contactou o

cadáver antes do

piquete de

investigação chegar?

O agente da

Brigada de Homicídios presenciava atentamente o amedrontado

guarda.

- Ausentei-me por momentos e reapareci após a comunicação

para a Central da Polícia, pois afastei-me do edifício para o

exterior de forma a ter rede para o meu rádio. O Sr. Xavier

Martins observava o cadáver, as senhoras recearam entrar no

patamar, contudo vi olharem curiosas do lado de fora do prédio

pela porta entreaberta da escadaria. Todos os outros inquilinos

permaneceram nas respectivas residências.

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Os sons das cordas das violas renasciam, um sujeito barbudo

e franzino começou a choramingar um amor perdido no sertão

brasileiro. As conversas morriam num murmúrio, as luzes

começavam a focar o artista.

IV

Uma corpulenta senhora de idade segurando vigorosamente a

mão de uma adolescente penetrou tempestivamente no gabinete

do inspector Novais. Sentando-se antes de a convidarem e a sua

voz soou forte dando largas ao seu génio.

- Chamo-me Albertina Serena, fui convocada para

comparecer aqui com a minha neta através de um aviso-

notificação.

O inspector Novais coçou a orelha e fungou significando tais

indícios um sinal negativo na apreciação. No entanto

cumprimentou a idosa cortesmente e iniciou o interrogatório.

- A senhora segundo testemunhas encontrava-se na rua

durante o trágico acontecimento.

Sintra – Durante o império

romano o imperador

concedeu a esta povoação

o mais alto estatuto que se

dava a uma cidade, o ser

“Municipium Civium

Romanorum”.

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Albertina Sereno não deixou que o detective acabasse a frase,

uma metralha de palavras invadiu o aconchego da sala.

- Lavava umas camisas com a Susana, conversava com a Sra.

Deolinda Gregório, e subitamente aos gritos, o Sr. Manuel Calado

chamou por um guarda. Eu não sou curiosa, mas dirigi-me até à

entrada do prédio pois poderiam necessitar do meu auxílio. Não

entrei para a Susana não ver o macabro espectáculo. Nada mais

posso acrescentar.

O agente da Brigada de Homicídios depressa compreendeu a

ineficácia do diálogo. A sensibilidade de Susana Lino contrastava

com a da sua avó. Apesar

dos anos rudes e da vida

difícil, em que decorriam os

anos da juventude, mantinha

a pele branca e um rosto

suave emoldurado pelos

cabelos negros ondulados.

Uns olhos castanhos

amendoados apararam a

pergunta do detective.

- Confere tudo o referido pela sua avó?

- A minha vovó lavava a roupa enquanto eu brincava com

uma pirâmide de tijolos ao lado do tanque da roupa. Não consegui

ver nada.

- Costumam ir muitas vezes para esse local?

- Sim, sempre que lavamos a roupa.

A moça dividia o seu olhar pelo inspector e por Wang-Ho.

- Quem acha com perfil de assassino do professor Coutinho?

Alguém lhe desejava mal?

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A voz dura da senhora Albertina Serena ecoou como uma

ferroada.

- O único com instabilidade mental para cometer um

homicídio seria o meu genro.

- Qual a razão?

- Os seus estúpidos ciúmes em relação à minha filha.

V

O velho edifício necessitando urgentemente de obras de

pintura surgia imponente

frente ao jardim de árvores

despidas e de clareira de

relva. Pela primeira vez

Wang-Ho acompanhado do

inspector Novais penetrava

na escadaria, cena da

tragédia de há uma semana.

Uma tabuleta suja pela

idade anunciava “Professor Rufo – Astrólogo”.

Uma dama roliça respondeu solícita à chamada de uma

campainha.

- Sou o inspector Novais, gostaria de falar com o Sr. Manuel

Calado.

Afastando-se, a interlocutora acedeu a dar passagem

conduzindo ambos os amigos a um escritório em penumbra aonde

um velhote calvo escrevia numa sólida secretária de mogno.

Distintamente vestido, o dono da casa possuía longos dedos,

sinónimo de sensibilidade, terminando em unhas ovais traindo

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uma natureza cardíaca. Rugas espelhavam na testa as vicissitudes

e contrariedades da vida. Da sua mão brotava uma caligrafia

redonda que analisada por qualquer técnico em grafologia este

concluiria o possuidor dotado de uma timidez disfarçada. Os

olhos melancólicos levantaram-se para acolher os visitantes.

- Senhor Manuel Calado, agradecia a sua compreensão para o

inquérito que lhe vou fazer.

O dono da casa recostou-se na cadeira e aguardou que as suas

visitas se sentassem chamando a esposa para se sentar num

cadeirão de baloiço.

O detective acendeu, após consentimento, uma cigarrilha

fazendo um círculo de fumo no ar.

- Os senhores viram o

professor Coutinho

gravemente ferido ao fim da

tarde do dia sete de

Dezembro. Ele respirava na

altura?

- Muito dificilmente e

não disse nada depois da

nossa aproximação.

Manuel Calado olhava a esposa que se mantinha imóvel e

atenta ao diálogo.

- Não repararam em nada de estranho digno de constar no

relatório da investigação?

Pela primeira vez os lábios da senhora Rita Calado abriram-

se para murmurar.

- Eu mal vi o corpo desmaiei logo.

O agente da Brigada de Homicídios observava o casal

enquanto dava voltas à cigarrilha.

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- O professor Coutinho expirara ou não? Os senhores

contradizem-se.

A voz firme do astrólogo elevou-se.

- Se a minha mulher desmaiou logo ao ver o professor não

pode emitir qualquer opinião válida.

- Quem acha com motivos suficientes para assassinar o

professor Coutinho?

A mesma voz autoritária encheu a sala.

- Cumpre aos senhores solucionarem o caso.

Wang-Ho que se mantivera calado até ao momento tomou a

palavra de maneira calma.

- Os senhores saiam na

altura. Para onde iam?

- A Rita não gosta de

cozinhar, saiamos para

jantar num restaurante

barato chamado “Távola

Redonda”.

- O professor recebia

muitas visitas?

- Muito raramente pois costumava sair após o jantar. Houve

uma altura em que apenas o visitava o Sr. Xavier Martins, nosso

vizinho do lado.

- Sabe o motivo desses encontros?

- Sinceramente não sei.

O inspector Novais e Wang-Ho despediram-se do casal e

tocaram à campainha de Xavier Martins.

A porta abriu-se surgindo um rosto grosseiro que se agitou ao

ver o crachá apresentado pelo polícia.

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Luxuosas carpetes e ricos móveis povoavam as salas da casa.

Quadros originais ornamentavam as paredes daquele quarentão

vestindo de forma simples um roupão sobre um pijama.

- Senhor Xavier Martins, encontramo-nos aqui para

desvendar quem assassinou o professor Rui Coutinho. Sabe quem

poderia ser?

O indivíduo coçou a cabeça, a pergunta surpreendera-o tanto

como a visita inesperada. Calmo convidou os investigadores a

sentarem-se com um gesto amplo.

- O professor Coutinho prendava por ser um vizinho

agradável não litigiando com ninguém.

- Qual o motivo das suas conversas com o professor? Se não

responder, como pretendo, abrirei um inquérito aos seus negócios

e penso que não brindará pela impecabilidade.

- Possuo uma pequena reforma e costumo vender bugigangas.

Não oculto nada.

- Penso que vende contrabando.

O detective levantou-se como a fingir finalizar a conversa.

- Calma inspector. Realmente, eu faço negócios um pouco

escuros, mas não assassino ninguém. Tentei convencer o

professor Coutinho a auxiliar-me porém, ele apenas vivia para

Serra de Sintra e castelo –

Castelo, palácio, palacetes,

casas senhoriais, mosteiros,

tudo isso podemos

encontrar nesta região de

rara beleza.

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política. Por causa da política sei que ele se zangou com o Sr. Tito

Gromicho e até posso indicar o local aonde poderá confirmar as

minhas palavras.

- Depreendo pelas suas palavras que para si o homicida será o

Sr. Tito Gromicho?

- Sem querer levantar um falso testemunho é mesmo isso que

eu penso. Lamento não ajudar mais.

Xavier Martins levantava-se indicando a porta a Wang-Ho e

ao detective. Os investigadores saíram e subiram as escadas

dirigindo-se para o domicílio do casal Gregório. Poderiam após

esta entrevista julgar os

dados existentes e tirar

conclusões. Alberto e

Deolinda Gregório

aparentavam a classe

média preocupada apenas

com os seus assuntos

pessoais. Vestiam roupa

de luto, sóbria e viviam

numa casa sem grandes

ornamentos, mas acolhedora.

Após as apresentações sentaram-se em sofás confortáveis

num ambiente harmonioso e agradável.

- O Sr. Alberto Gregório importava-se de me relatar o que

faziam na tarde do crime?

- A minha mulher conversava na rua com a Sra. Albertina

Serena e com a menina Susana Lino, enquanto eu lia uma obra de

Leão Tolstoi.

- Como tomaram conhecimento da morte do professor

Coutinho?

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- A minha esposa quando o guarda entrou na sala e viu o

cadáver. Eu notei movimento desusado na escada e fui averiguar

o motivo.

O inspector voltou-se para a Sra. Deolinda Gregório.

- Confirma as palavras do seu marido?

- Sim. Agradeço possuirmos um agente de autoridade

permanentemente à nossa porta pois dá-nos muito mais

segurança.

- Quem pensa ser o

assassino?

- Todo o ser humano

é um potencial assassino,

basta uma razão

suficientemente forte que

mentalmente ultrapasse as

consequências do seu

acto.

VI

O inspector Novais

levou o guardanapo aos

lábios, encheu o copo

com vinho verde e colocando os talheres sobre o prato dignou-se

a olhar para o chinês risonho que se deliciara a vê-lo comer.

- Wang-Ho, este Chao-Min é impecável. Se não estiver

envenenado virei aqui mais vezes.

- O inspector Novais acaba de saborear massa chinesa frita

com legumes e carne de porco.

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O polícia bebeu outro trago do néctar fermentado no Norte de

Portugal e sorriu.

- Neste momento afirmo que descobri o criminoso.

O surpreso chinês retirou um prato sujo da mesa enquanto o

detective o fixava.

- O assassino do professor Coutinho é o Sr. Manuel Lino

Wang-Ho enrugou a testa, incrédulo, e o detective ousou

sorrir.

- Três suspeitos do crime surgem no drama. Primeiro Tito

Gromicho levanta-nos as suspeitas ao esconder a zanga. Não se

quer comprometer e isso

leva-o a mentir. A esposa

encobre-o e isso consiste no

único sinal contra ele. Não

foi por acaso que juntei os

casais nas entrevistas. Se em

vez de um, houvesse dois

implicados no assassínio, a

mulher remeteria para o

marido a defesa e ficaria

submissa.

- Possivelmente, a não ser que seja autoritária.

- O segundo suspeito é o Xavier Martins que nos confessa ser

um contrabandista com motivos para silenciar o professor

Coutinho. Analisando bem o caso, não teria qualquer vantagem

em envolver a polícia dando-lhe uma publicidade nociva para os

seus negócios ilícitos.

- Concordo.

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- Finalmente o Manuel Lino possui o motivo para o

assassínio, surge-lhe um espaço de tempo oportuno para os seus

fins. A sogra e a filha não se encontram em casa, a esposa não o

dissuadirá, comete o crime, porém não conta com os vizinhos e

isso ser-lhe-á fatal.

O detective goza o triunfo e o chinês olha-o espantado.

- Parabéns inspector, e a arma do crime?

- Os médicos legistas certamente se enganaram e uma das

facas analisadas foi a utilizada pelo criminoso.

Wang-Ho enchia um copo de aguardente de medronho.

Agarrou um pacote e

entregou-o ao amigo.

- Feliz Natal,

inspector. Aqui está uma

lembrança.

- Obrigado.

O sorriso dos lábios

do investigador

profissional

transformou-se numa

careta de assombro quando ao desembrulhar o embrulho viu-se

diante de um punhal de mato ensanguentado metido dentro de um

plástico. Os olhos dirigiram-se interrogativamente para o chinês

que distraia-se com o galheteiro de azeite.

- O inspector enganou-se. As suas teorias prendam pela falta

de racionalidade e ao contrário do que diz os criminosos

contavam com a curiosidade da vizinhança não havendo qualquer

mulher submissa a um homem, mas justamente o inverso. A

prova será a sua ilibação.

- Não entendo.

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- O primeiro facto estranho no caso surge com o telefonema

para a esquadra a requisitar o polícia sabendo a maioria dos

inquilinos haver um guarda perto acabando uma ronda. Parecia

que alguém se antecipava ao próprio crime, que iria suceder, e

pretender interditar a saída e entrada no prédio dos habitantes o

mais cedo possível. O segundo facto invulgar relacionava-se com

o desaparecimento da arma.

- É o próprio assassino a dar nota para a esquadra do crime?

- Após o surgimento do guarda e tendo em atenção que

ninguém saiu do prédio só restava uma hipótese, o lançamento da

arma. Muitos podiam arremessar o punhal, contudo apenas a Sra.

Deolinda Gregório se encontrava em poder de a receber sem

testemunhas.

- Sem dúvida.

- A Sra. Albertina Serena e Susana Lino olham para a escada

na altura da entrada do agente que fazia a ronda. Ambas

testemunham-se uma à outra e o polícia confirma-nos estar a ser

observado ilibando-as. A Sra. Deolinda Gregório possui o tempo

necessário, enquanto o guarda entra na escada, de recolher o

punhal que lhe envia o seu marido através da janela do beco.

Rapidamente mete-o entre os tijolos aonde Susana Lino costuma

brincar. Ela sabe que o casal Gromicho e Albertina Serena

Sintra – Existem testemunhos

de que Sintra já era habitada

há 5 mil anos, tornando-se de

um dos pontos arqueológicos

mais importantes de

Portugal.

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testemunharão contra Manuel Lino, sabendo dos ciúmes dele e

encontrou nele o bode expiatório.

- Ela acaba por ser cúmplice no homicídio.

- Se o caso for descoberto ela tem testemunhas que não

cometeu o crime, contudo está envolvida no mesmo.

O inspector Novais perdera o apetite.

- Mas qual o motivo?

- Quando vi o casal Gregório de luto interroguei-me qual

seria a razão? Porque motivo haviam vindo à pouco tempo para o

prédio?

- Qual foi?

- O motivo, encontrei-o

na morte do filho Armando

Gregório na guerra do

Ultramar. O capitão de

pelotão aonde o Armando

Gregório militava era o

professor Coutinho. O ódio ao

que consideravam ser

responsável pela morte do único filho aumentou ao longo dos

anos, não descansando enquanto não surgisse a vingança.

Sintra – Caminho

para o convento dos

Capuchos. Um

paraíso idílico na

serra.

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- O marido foi quem lhe atirou o punhal?

O chinês não precisou de responder, olhava os últimos

clientes do snack-bar saírem apressados levando lembranças nos

braços e amor nos corações.

Um petiz brincava com uma pistola de plástico apontando

para o inspector Novais, contudo retirou-se rapidamente para

junto da mãe ao observar melhor o rosto zangado do polícia.

A árvore de Natal acendia e apagava as luzes sem parar.

FIM

Sintra – Um mundo

de fantasia

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A Safira do Imã

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I

Sol deitava-se por detrás de um mar prateado.

Paisagem calma e convidativa à meditação. O

inspetor Novais com ar risonho e o sobrolho carregado observava

o seu inseparável amigo chinês, apreciando o olhar inexpressivo

do oriental.

- Inspector ... apesar do meu espírito racional, a minha

religião possui dogmas ...

- Claro, Wang-Ho. Mas não respondeu ao meu desafio ... no

princípio dos tempos já

havia clonagem, pois

Eva foi gerada a partir

de uma costela de

Adão. Não é verdade?

O oriental suspirou

desalentado antes de

responder:

- Estamos no meio

de uma discussão

bizantina, comparável à do sexo dos anjos.

O agente da Brigada de Homicídios de Lisboa atreveu-se a

soltar uma gargalhada, apreciando a atrapalhação do

companheiro. O rádio ligado dava péssimas notícias de futebol ao

chinês: o Belenenses perdia com o Sporting. Isso agravou o seu

estado de espírito.

O inspetor preparava-se para lançar uma concha ao mar,

descuidadamente colocada pela maré no areal da praia da Costa

da Caparica, quando um indivíduo queimado pelo Sol

O

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timidamente se acercou dos dois amigos. O olhar do

desconhecido dirigiu-se para o sorridente inspetor Novais.

- Mister Novais?

Uma voz com acentuado sotaque estrangeiro interferiu no

diálogo, até aí mantido pelos dois investigadores. E sem aguardar

por uma resposta, continuou o monólogo:

- Mister Novais, necessitamos urgentemente dos seus

serviços.

O agente da Brigada de Homicídios da Polícia Judiciária de

Lisboa não se chegou a levantar para cumprimentar o forasteiro,

devido à prontidão com que o interlocutor se sentou ao seu lado.

O silêncio do detective encorajou o recém-chegado a continuar:

- Chamo-me Ibn Jubbai, e sou o assessor do imã Hanbal.

Conhecedor dos seus dotes de detetive, e enaltecida a sua

inteligência por um nosso amigo comum, o imã resolveu procurá-

lo e certamente foi Deus que me encaminhou até si.

O inspector Novais desviou o olhar do mar e respondeu

pouco convencido:

- Amigos dos meus amigos, meus amigos são.

O desconhecido de rosto bronzeado pareceu ignorar o adágio

e continuou a expressar-se de modo atabalhoado:

Queluz – Esta cidade está

situada perto de Lisboa e o

seu nome deriva do árabe

que significa “ Vale das

amendoeiras”. Possui o 3ª

palácio mais visitado do

país.

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- Mister, podemos combinar já os vossos honorários?

O interpelado pareceu descer do castelo de nuvens em que

havia mergulhado e inquiriu:

- Houve algum crime? Não passo de um mero investigador

criminal.

- Chamo-me Ibn Jubbai, nasci no Líbano, aonde conheci o

imã Hanbal. Com ele travei uma relação de profunda amizade. O

senhor inspector, apesar de ler muitas vezes nos jornais assuntos

de imãs, desconhece o seu significado, não?

- Desconheço por completo o verdadeiro significado da

palavra, para além de

saber que se trata de um

chefe dos muçulmanos.

- Após a morte do

profeta Maomé travou-se

uma luta política entre

Ali, o genro do profeta, e

os Omíades. Este conflito

político-social deu

origem a um importante

cisma no Islamismo. O partido chiita veio a desenvolver uma luta

política visando a tomada do califado. As ideias chiitas vieram a

triunfar no Irão e em Marrocos, e ao mesmo tempo que apoiam o

nacionalismo em diversas regiões, servem-se do

descontentamento de diversos extratos sociais em muitos países

árabes.

Desde o século VII os crentes desta doutrina acreditam que

os seus chefes, os imãs, são descendentes de Ali, o genro do

profeta. E graças a esta convicção destacam-se, auferindo enorme

influência religiosa e política.

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O inspector Novais encolheu os ombros e exclamou:

- Por favor, seja mais breve!

O estrangeiro pareceu ignorar a observação e o olhar

começou a acompanhar algumas gaivotas voando ao sabor do

vento, no céu azul.

- Mas como dizia, a minha profunda amizade pelo imã

Hanbal dá-me a oportunidade de acompanhá-lo nas múltiplas

viagens que ele faz por todo o mundo. Nesta última, porque eu

conheceço relativamente bem a vossa língua, acompanhei-o uma

vez mais a Portugal, país com importantes influências nos campos

artístico e cultural no Oriente.

Ibn Jubbai visivelmente

mais calmo, continuou:

- A viagem correu

muito bem e ancoramos na

baía de Cascais, local de

sonho, e digno dos melhores

da Europa para férias. O imã

Hanbal possui um belo iate

e passamos a maior parte do

tempo nele, com as suas duas esposas, o seu sobrinho

Muhammad-Razi que conduz o barco, e um servo do imã, Mansur

al Karki.

Ontem, uma safira que ornamentava a capa do Alcorão do

meu imã, desapareceu do quarto da cabine, durante a noite. Após

buscas infrutíferas, chamamos a polícia. Depois de um

interrogatório, culpam-me de ser o gatuno...

O inspector Novais começava a encarar Ibn Jubbai com a

mesma curiosidade com que se deparou o primeiro europeu, ao

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avistar um rinoceronte em terras africanas. Permanecendo

impassível ao se aperceber do final do relato, ousou perguntar:

- Senhor Ibn Jubbai, mas como lhe posso ser útil? Eu

investigo crimes e não roubos.

- Mister, juro-lhe a minha inocência e o imã Hanbal aguarda

os senhores no seu iate.

II

tarde quente escaldava a pele dos três homens

sentados na lancha da Polícia Marítima, enquanto se

dirigiam da baía de Cascais para o barco fundeado ao largo.

Wang-Ho admirava a perícia da condução do guarda costeiro

encarregado de transportá-los para o enorme iate do imã Handal,

um dos muitos chefes do ramo dos chiitas. Finalmente

interrompeu o monólogo interminável do detective que não se

tinha calado desde que entrara no barco.

- Caro inspector pode-me fornecer mais detalhes sobre este

caso?

A

Queluz – Está provado

que já era ocupada por

habitantes desde o IV

Milénio AC.

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- Wang-Ho, aceitei este trabalho devido a minha grande

curiosidade nele. Além da conversa que mantivemos com o

assessor Ibn Jubbai, apenas confirmei que, durante o

interrogatório levado a cabo por um meu colega da polícia, Ibn

Jubbai não confessou o furto, contudo, existem várias evidências

contra ele, além dos testemunhos dos demais ocupantes do barco

...

- Nesse caso, aonde escondeu a safira?

- Não sabemos.

A pequena lancha aproximou-

se do iate, e um sujeito forte

recebeu-os, quando acostaram

naquela embarcação digna das mil e

uma noites. Braços robustos

ajudaram os visitantes a serem

içados por uma escada de corda.

Prontamente o anfitrião

encaminhou o grupo para junto de

um indivíduo vestido de modo

oriental, que de imediato foi

reconhecido pelos amigos como o

imã, e que impassível fumava haxixe sentado no chão, de pernas

cruzadas. Ao encarar os visitantes dignou-se com gesto largo e

estudado a indicar dois bancos forrados em pele de camelo,

estrategicamente colocados à sua frente, ao mesmo tempo que se

expressava em péssimo português.

- Alá é grande, sejam bem-aventurados por terem acedido ao

meu pedido de me visitarem no meu barco. Chamo-me Hanbal,

calculo estar na presença do venerado mister Wang-Ho e do

respeitado mister Novais.

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O inspector Novais tossiu e enquanto se assoava, inquiriu:

- Imã Handal desculpe-me, mas não aguento o cheiro desse

cannabi. Pode-nos relatar em que circunstâncias, desapareceu a

safira?

O chefe religioso desviou o olhar do cachimbo de água,

ricamente ornamentado, para os olhos lacrimejantes do detetive.

- Considero este caso estranho, alguém se apoderava de uma

safira e deitá-la-ía ao mar?

- Intrigante mesmo. Foi o que disseram as testemunhas?

- Não. Disseram que ouviram apenas o barulho de um objeto

deitado ao mar, depois de

verem Ibn Jubbai. No

entanto os mergulhadores

nada encontraram

posteriormente, não sei o

que se possa ter passado.

- Na última segunda-

feira, quando ia rezar a

primeira das minhas cinco

orações, de manhã, ao ler

algumas passagens do Alcorão como faço habitualmente, dei por

falta da safira. A encadernação do meu Alcorão contém algumas

pedras preciosas como topázios e safiras. Destacava-se uma das

safiras pelo tamanho e beleza, possuindo para mim um caráter

especial, pois doou-ma um velho budista que acreditava no seu

extraordinário poder, e que a usando, o dono da pedra ficava

protegido por Deus, ao mesmo tempo que compreenderia sinais

que para outros seriam inacessíveis.

- Qual a sua reação após dar conta do seu desaparecimento?

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- Depois de constatar a falta da safira, ordenei o

comparecimento imediato do piquete da polícia que revistou o

barco e nos interrogou a todos, concluindo ter sido Ibn Jubbai

quem roubou a pedra. Devido a grande amizade e estima que lhe

nutro, impedi a sua detenção, mas proibi os residentes do meu iate

de lhe dirigirem palavra até ao momento. No entanto, queria uma

investigação mais conclusiva, e por isso os chamei.

- O Sr. Ibn Jubbai havia sido anteriormente protagonista de

algum acontecimento menos atípico? Já tinha antes cometido

algum delito?

- Comigo foi sempre

muito íntegro, um

modelo de conduta,

depositava nele a maior

confiança, até agora.

Conheci-o no Líbano e

ele tem-me

acompanhado nas

diversas viagens pelo

mundo, desconheço o

passado dele até nos conhecermos em Beirute.

- O Sr. Ibn Jubbai droga-se?

- Fuma haxixe como grande parte dos cidadãos do Líbano,

mas com muita moderação.

- A safira tinha seguro de roubo?

- Não, nunca pensei que a roubassem.

- Notou algo de estranho durante a noite?

- Jantei com as minhas esposas, despedi-as e tranquei a porta

como sempre o faço. Depois fiz a minha ùltima Salat ou oração,

fumei o meu cachimbo de água, como o faço normalmente.

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Costumo permanecer o dia nesta cabine que é sempre aonde passo

o tempo, aqui almoço, janto, rezo e guardo tudo o que me

acompanha nas viagens inclusive o livro sagrado. Pela 1:00 h da

madrugada ouví um estrondo, e vi que me tentavam arrombar a

porta, mas não conseguiram.

- Quem tem a chave desta cabine?

- Apenas eu e o meu sobrinho Muhammad-Razi.

O inspector levantou-se e abriu um pouco a porta da cabine

para sair um pouco de odor que se espalhava pelo recinto, depois

dirigindo palavra a Wang-Ho lamentou:

- Adoraria a presença de um dos nossos amiguinhos do

Centro de Investigação e Controle de Droga, e do Gabinete

Coordenados do Combate à droga neste local.

Wang-Ho não respondeu, pois fixava atentamente o imã e o

servo que durante a conversa se mantivera impassível, com os

braços cruzados em atitude de desafio. O detective continuava o

interrogatório:

- O imã Hanbal, dorme sozinho nesta cabine?

- Sim, durmo. Todos dormem em cabines separadas exceto as

minhas duas esposas, que permanecem numa mesma cabine. Para

além das cabines apenas existe a sala de comando, que é onde o

Queluz – O palácio de

Queluz é um dos últimos

palácios do estilo rococó

construídos na Europa.

Data do século XVIII.

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piloto conduz o barco. Todas as cabines têm uma janela de vigia

para cada lado do barco. Estão sempre fechadas à chave e cada

um dos ocupantes guarda a sua própria chave.

- Quem normalmente conduz o barco?

- Como acabei de dizer há pouco, o meu sobrinho

Muhammad-Razi, e quando ele está cansado a minha esposa

Fátima. Por isso cada um tem uma chave da cabine de comando.

- O barco não tem nenhum outro compartimento?

- Uma pequena arrecadação aonde se guarda a bagagem

suplementar, apenas eu tenho a

chave dela bem como o meu

servo Mansur al Karki que,

como vigia o barco durante a

noite, acaba por descansar e

dormir durante grande parte do

dia.

- Pode relatar como foi a

noite na véspera do roubo?

Notou algum acontecimento

fora do comum?

- Uma noite vulgar. Jantei

com as minhas duas esposas

aqui na cabine que me serve de quarto e sala de jantar. Quando

acabei de jantar, minha mulher Zaynab pediu-me para lhe

emprestar o telemóvel porque pretendia falar com o pai, também

ele imã, um homem piedoso por quem tenho muito apreço, e que

vive no Líbano.

- Saiu da cabine para fazer o telefonema?

- Não, e eu aproveitei também para falar com ele, para lhe

perguntar como estavam as coisas por lá.

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- Ninguém mais tem telemóvel?

- Não, o único existente é o meu. Quando alguém necessita

de fazer uma chamada pede-me o telemóvel.

O colosso Mansur Al Karki parecia calmo perante a

persistente análise do chinês, denotando uma indiferença

enervante que se quebrou quando o inspector Novais o

interrogou:

- O senhor também se encontrava neste iate no dia do roubo

da safira, senhor…?

- Mansur al Karki.

Como o seu chefe

religioso, Mansur exprimia-se

dificilmente em português

arrastando as palavras, no

entanto continuou a

responder:

- Nessa noite, depois do

jantar, vigiei o barco andando

pelo convés apreciando a bela

noite de luar. Após ter

fumado um ou dois cigarros

fiquei a ler um livro e a vigiar

o barco, até o Sol raiar.

- Acompanha o imã Hanbal sempre?

- Desde há três anos que sou o seu servo mais dedicado e ele

me honra em ser o meu chefe, deixando-me acompanhá-lo para

todo o lado. Amo-o como todo o bom muçulmano deve amar o

seu pai espiritual, mantendo a minha “Din” inalterável, ou seja, a

minha ação de seguir o Caminho ordenado pela Shari’s, cujo

sujeito principal se insere na pessoa de Alá.

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- Na noite do roubo nada se passou de modo a lhe chamar a

atenção?

- Sim. Muhammad Al Razi sobrinho do imã. Surpreendeu-me

o fato dele transportar uma lanterna e, depois de me ver, a ter

escondido num dos bolsos do blusão. Depois voltou para a cabine

dele.

- Mais algum acontecimento que se lembre e que achasse fora

de comum nesse dia?

- Pareceu-me ter visto vagamente Ibn Jubbai, o assessor do

imã, passar ... e posteriormente

ouví o barulho de algo caír no

mar

- Que horas seriam?

- Não sei precisar.

- Em que local ouviu esse

barulho?

- Penso que seria junto à

popa do iate, o local aonde ele

se dirigiu.

- Nada mais ouviu de

estranho?

- Pela uma hora da madrugada ouvi como que a arrombarem

algo, mas depois dei uma volta pelo barco e nada encontrei que se

notasse arrombado.

- Viu o Sr. Ibn Jubbai antes ou depois de ouvir esse

arrombamento?

- Penso que terá sido antes, não me recordo.

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III

uas mulheres esbeltas aproximavam-se do grupo

falando em árabe, e trajavam caftãs. Os olhos negros

e belos achavam-se maravilhosamente pintados. Nos braços,

pulseiras denominadas escravas, pareciam dar ritmo aos andares

felinos.

As pequenas e frágeis Fátima e Zaynab calaram-se ao

notarem a presença dos estranhos, e apressavam-se a regressar à

cabine de onde haviam saído, mas o imã chamou-as em árabe.

Durante as apresentações fitaram interessadas Wang-Ho, que

muito vermelho sentia-se pouco à vontade. O inspector Novais

encarou a esposa do imã mais próxima e inquiriu:

- Como se chama a senhora?

No interrogatório foi obrigatório a intervenção do marido,

devido ao total desconhecimento da língua lusa por parte das duas

damas.

- Chamo-me Fátima e sou a primeira esposa do imã.

- Quais os seus passos no dia anterior ao roubo?

D

Fátima ( Basilica ) – Sua

fama mundial se deve ao fato

de que, em 13 de Maio de

1917, a Virgem Maria ter

aparecido aos pastorinhos, na

forma de Nossa Senhora de

Fátima.

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- Fomos todos às compras a Cascais, depois jantamos com o

meu esposo, eu e a Zaynab, posteriormente regressamos ao quarto

para dormir, de forma a ele poder rezar a ultima oração e fumar à

vontade.

- Notou algo extraordinário nessa noite?

- Vi Ibn Jubbai passar defronte da minha cabine e mais tarde

ouví um barulho de algo a cair na água.

- Que horas seriam?

- Talvez vinte e uma horas, pouco a seguir ao jantar.

- Em que direcção ia ele, antes

de ouvir esse objeto cair na água?

- Penso que para a proa, não me

recordo bem.

- Mais alguma coisa fora de

comum?

- Talvez um ruído pela uma hora

da madrugada, mas não posso

precisar o que tenha sido.

- Sabe se o Sr. Ibn Jubbai tinha

dívidas, de forma a ter de roubar a

safira para as pagar?

- Não sei se tem, todos o estimamos muito, em particular o

meu esposo. No meu caso especial, sempre fui tratada de forma

benevolente. Apesar do Alcorão afirmar que “ nunca serás capaz

de fazer justiça entre as esposas “ e “ se temes não poder fazer

justiça entre as esposas, então casa com uma só” o nosso imã

nunca me favoreceu em desfavor de Zaynab, nem vice-versa,

apesar de que na ética social há uma grande diferença entre os

sexos.

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IV

inspector Novais voltou-se para Zaynab que se

mantivera alheia ao palavreado, olhando o longínquo

voo das gaivotas. Novamente foi necessária a intevenção do imã

para traduzir a conversa.

- Sra. Zaynab, saíram do barco antes de se ter dado o roubo?

- Sim, na véspera, fomos fazer compras pelas lojas de cidade.

- Estiveram sempre juntos?

- Sim, nunca nos separamos porque não sabemos português, o

grupo esteve sempre

unido e nunca nos

afastamos do nosso imã.

- Regressaram de

imediato ao barco depois

das compras?

- Assim foi. Depois

de regressarmos

assistimos, antes de jantar,

a um filme que Fátima

ofereceu ao Ibn Jubbai.

- Assistiram todos?

- Não, o nosso imã não quis assistir pois é um fiel religioso,

não aceita qualquer tipo de imagem humana, o sobrinho

Muhammad Razi também não assistiu ao filme. Talvez o Sr.

Inspetor não tenha reparado, mas nenhuma mesquita tem qualquer

imagem humana, por isso talvez a razão do nosso imã não gostar

de ver filmes com pessoas. De resto todos assistiram ao filme.

- De que género é o filme?

- Chama-se “Colombo”, é um filme histórico.

O

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- Foi comprado num centro comercial em Cascais?

- Penso que não, pois está legendado em árabe.

- Certo, compreendo. Depois de jantar regressou ao quarto?

Zaynab adotou um ar tímido, cuidadosamente estudado

diariamente.

- Sim, conforme Fátima disse. Regressamos e não voltamos a

sair até à manhã seguinte.

- Afirmou no interrogatório parecer ter visto o Sr. Ibn Jubbai

por uma janela do camarote.

- É verdade, lembro-me

vagamente de o ter visto, mas de

forma ténue, em direcção à popa,

- Também ouviu o barulho de

algo a cair à água?

- Efectivamente. Ouviu mais

algum barulho ou ruído nessa

noite?

- Não, Mr. Novais, é tudo do

que eu me lembro.

Delicadamente o inspector

despediu-se da esposa do imã e

saiu do barco, perdido em

pensamentos.

V

o contrário dos restantes elementos, Muhammad Al-

Razi escolhera como local do encontro com o

inspector Novais um lugar fora do iate, demonstrando um notável

A

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grau de independência em relação ao imã. O sobrinho do imã

elegera um sítio requintado e elegante, aonde o pormenor do

criado a esconder a marca de vinho no “libré” não fora

descuidado, ao contrário de muitos pseudo restaurantes de luxo,

espalhados pelo nosso país.

Um Wang-Ho encantado entrou no “Galo de Hong-Kong”

com o inseparável inspetor Novais, imediatamente reconhecendo

um homem de nariz longo e estreito vestido à europeia, que numa

“cabine” se deliciava com um aperitivo regado com vinho verde.

A maneira como que se movia naquele restaurante requintado

traía o costume de visitar amiúde, idênticos antros refinados e

opulentos. Ao notar a aproximação dos interlocutores o sobrinho

do imã fez uma simulação de se ir levantar e num breve aceno

convidou-os a sentarem-se na sua mesa vermelha, com reflexos

oscilantes, provenientes de um candeeiro oriental.

- Chamo-me Muhammad Al-Razi ... mas por favor, queiram

sentar-se. O que tomam?

No retrato fornecido pela Policia de Segurança Pública o

muçulmano parecia bastante mais idoso e magro.

- Obrigado Sr. Muhammad, nós não tomamos nada. Fico

surpreendido por o senhor falar corretamente português.

Minde- Esta vila possui uma

língua própria que se chama

“minderico” e foi

desenvolvida pelos feirantes

para se entenderem em

privado. A vila fica próximo

de Fátima.

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O muçulmano fez um gesto vago para o barman, que num

enorme balcão distribuía bebidas à clientela, maioritariamente

estrangeira.

- Não se admire, senhor inspector, pois costumo vir de férias

a Portugal, gosto de visitar tanto este país e tanto quanto posso. os

muitos amigos que tenho neste local.

- Disseram-me que o senhor, na noite do roubo, andou algum

tempo pelo convés.

Muhammad al Razi manteve a mesma calma demonstrada até

ao momento.

- Gosto muito de passear

durante a noite e adoro

observar o mar prateado

banhado pela Lua. Sou um

sentimental.

- Para isso costuma utilizar

uma lanterna, senhor

Muhammad Al-Razi?

Pela primeira vez

Muhammad al-Razi sentiu-se

inseguro, contudo recompôs-se rapidamente.

- Utilizo-a para subir e descer as escadas que vão do convés

às cabines.

- Considera o senhor Ibn Jubbai o ladrão da safira?

- Deram-no como culpado, pareceu-me o ver pela cabina

dirigindo-se para o convés, no entanto, sinceramente, julgo-o

demasiado tímido e dedicado ao meu tio, para fazer o furto.

- Quem achava com perfil para isso?

O sobrinho do imã coçou o queixo e pensou alguns minutos

antes de responder.

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- Não sei, porém eu inclinava-me mais para o servo Mansur

Al Karki, seria uma pessoa mais ousada e intrépida para arriscar

um roubo.

- Qual seria a pena por roubo na sua pátria?

- Penso que será cortarem a mão ao infrator. O meu imã e tio

constitui a ciência da lei no meu país, castigando os culpados

quase a seu belo prazer. Apesar de castigar de acordo com a lei

muçulmana, o Alcorão tal como a Biblia, prestam-se a inúmeras

interpretações.

- Entendo.

- No entanto a lei

muçulmana é bastante

mais severa. Ao larápio

cortam a mão direita, o

adultério é punido com o

apedrejamento até à

morte, relações

homossexuais com o

enforcamento, etc.

- Acredito.

- Mas é precisamente aqui neste aspecto que acho este caso

muito estranho, Sr. Inspector.

Wang-Ho e o detective aproximaram-se mais de Muhammad

Al-Razi para o ouvirem melhor, porém tiveram de deixar o

barman colocar uma garrafa de Syrah 2005 junto do copo do

muçulmano.

- Conheço o meu tio e imã como poucos. Jamais ninguém

com ele ficaria sem castigo, contudo não vejo motivos para ele

impedir a polícia portuguesa de levar o seu assessor Ibn Jubbai

para a prisão, a não ser que ele desconfie de outra pessoa, ou algo

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... Por outro lado, porque prefere Ibn Jubbai não se entregar,

sabendo que o mutilarão quando regressar, quando aqui em

Portugal, possivelmente nem chegaria a entrar na prisão. Mesmo

que o meu tio Hambal não quisesse ordenar a mutilação, teria de o

fazer para não demonstrar tolerância ou favorecimento a uma

pessoa próxima de si.

Wang-Ho sorriu ao verificar a argúcia do sobrinho do imã e

deixou ele continuar o monólogo:

- Outra coisa que me surpreende é a razão pela qual o meu tio

Hanbal proibiu o Ibn Jubbai de falar com todos. O meu tio é uma

pessoa muito bondosa,

mas com uma astúcia

incomum. É uma velha

raposa do deserto. Não

provam este excelente

vinho? Fabulosa a colheita

deste ano.

O detetive recusou e

levantou-se, ao mesmo

tempo que Wang-Ho,

despedindo-se de Muhammad Al-Razi com um aceno. Ao saírem

do estabelecimento, uma noite quente e estrelada convidava-os a

um passeio.

VI

o escritório do inspetor Novais, invulgarmente

arrumado, Wang-Ho lia em voz alta mais um

dogma da religião muçulmana:

N

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- “ Deveis orar até mesmo sob a direção de um pecador ". O

que pensa disto caro inspector?

O agente da Brigada de Homicídios de Lisboa nem

respondeu, entretido a ler as últimas novidades desportivas. O

oriental deixou de lhe ligar importância e continuou a ler.

- “ Resignação à vontade de Deus nas grandes e pequenas

coisas”. Não há dúvida de que é no dogma que devemos a solução

do problema. Inspector, acha que para o imã o roubo será uma

grande ou pequena coisa?

Lisboa ( Torre de Belém ) –

Lisboa é a capital e a cidade

mais importante de

Portugal. Na área

metropolitana de Lisboa

vivem cerca de 3 milhões de

pessoas que a tornam a 11ª

cidade mais populosa do

continente europeu.

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O policial contrariado, afastou o jornal e olhou para o amigo.

Depois puxou de um papel e entrelaçando-o entre os dedos,

respondeu:

- Wang-Ho. Não faço a mínima ideia se será uma grande ou

uma pequena coisa para o imã. Você pediu-me para ver se algum

cidadão com nacionalidade libanesa ou dos países limítrofes

alugara um quarto no dia anterior ou posterior ao roubo, e que

pedisse informações à Interpol no caso de haver. Efectivamente

encontramos um cadastrado, a polícia francesa já comunicou-me

que o capturaram e aguardam instruções. Qualquer pedido de

extradição passará por um juiz português, e para isso teremos de

apresentar uma razão ao

tribunal.

- O quarto foi numa pensão,

residencial, ou hotel?

- Num hotel de luxo.

- Nesse caso o hóspede teria

uma chave magnética ... com

um pouco de sorte saberemos as

horas de saída e entrada dele no quarto.

- Posso averiguar. Também lhe posso revelar que os

mergulhadores, nada encontraram de especial no fundo do mar, e

que após minuciosa inspeção ao barco, também não encontraram

a safira.

- Inspector, pedi ao senhor Ibn Jubbai para me emprestar o

filme.

- Fez bem, Wang-Ho, o filme “Colombo” é excelente apesar

de não ser recente. Tem também uma excelente música e já o vi,

quando o aluguei num clube de vídeo.

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Wang-Ho balançava a cabeça muito sério, deixando o

inspetor Novais continuar:

- Depois pediu para ter acesso ao novo inquérito feito a Ibn

Jubbai, com um detector de mentiras ligado.

- Alguma conclusão?

O inspector Novais sorriu e acenou com a cabeça.

- Meu amigo, o que parecia ser um simples roubo está se

transformando num puzzle sem sentido. Perante o detector de

mentiras Ibn Jubbai lembra-se de estar com a safira, contudo

afirmou não a ter roubado e a máquina confirmou.

- Por que teve ele com a pedra? Quando? E a razão?

- Lembra-se de ter estado com ela na noite do roubo, contudo

por mais que se esforce não se lembra do motivo. Ele mente.

- Discordo, inspector. Eu acredito que ele pense que teve a

safira e não se possa recordar da razão por que a teve.

Incrédulo e atônito o detetive olhou para Wang-Ho, que

novamente se embrenhava na leitura do Alcorão.

- Inspector, sabia que os muçulmanos rezam cinco vezes ao

dia a Salat ou oração? A primeira é durante a alvorada, a outra ao

Lisboa ( Mosteiro dos

Jerónimos ) – Esta

cidade é também

chamada de “ cidade

global “ devido à sua

importância em

aspectos financeiros,

comerciais, mediáticos,

artísticos, educacionais

e turísticos

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meio-dia, uma a meio da tarde, outra ao crepúsculo e finalmente,

a última, durante a noite.

O detetive voltou-se para o jornal desportivo que estivera

lendo anteriormente à conversa, ignorando por completo o amigo.

VII

uitas dúvidas sobre o caso assaltavam Wang-Ho que

acabou se decidindo por uma breve caminhada pela

marginal. Como não podia

deixar de ser, rapidamente

os seus passos dirigiram-

se para o local mais

próximo do barco, que a

escassos metros se

encontrava ancorado.

Um pescador de boina

branca na cabeça sentado

na muralha agarrava com

força uma cana de pesca, tendo ao lado um cesto de vime.

Sorridente por encontrar companhia, acenou de forma amigável

para o oriental.

- Sente-se amigo, não precisa estar de pé ...

Wang-Ho agradecido, aceitou o convite e sentou-se ao lado

daquele personagem, que parecia retirado de um quadro de

Renoir, envergando uma t-shirt de riscas brancas e negras.

Interessado, inquiriu:

- Como vai a pescaria?

M

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- Má ... como sempre ... o mais importante é não perder a fé.

Adoro pescar, venho para aqui todas as noites. Este passatempo é

o meu hobby predileto.

- Costuma pescar apenas à noite?

- Sim, gosto do sossego noturno, e é quando se pesca mais.

Costumo trazer esta lanterna de petróleo. Belo barco aquele, não?

O recém-chegado moveu a cabeça de leve ao concordar,

olhando de soslaio para o iate do imã. Num sussurro, respondeu:

- Sim, digno das mil e uma noites. E ocupado por indivíduos

estrangeiros.

- Chamo-me Wang-Ho. E como se chama o senhor?

- João, um seu criado, meu

amigo. Sim, transporta árabes.

Wang-Ho olhou surpreso

para o interlocutor.

- Como sabe?

- Andam numa roda-viva

durante a noite, e eu enxergo

daqui. Houve um dia destes

que foi demais, não parava o

movimento. Há cerca de 3 dias afugentaram-me o peixe todo.

- Viu tudo?

- Sim. Pela da hora de jantar, por volta das vinte e uma horas,

saíram dois vultos de uma cabine e entraram ambos noutra.

Passados dez minutos alguém saiu alguém dessa cabine aonde

tinha entrado e foi para outra, só saindo de lá quase pelo raiar do

dia. Pelas vinte e duas horas a outra que tinha ficado sozinha na

cabine afastou-se também dessa cabine, porém demorou pouco

tempo, talvez uns dez minutos e rapidamente voltou a entrar.

- Boa memória. Viu algum vigilante?

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- Aquele barco parece não ter sentinela.

Wang-Ho coçou o queixo surpreso, e deixou o interlocutor

continuar:

Sorrindo pelo interesse que estava a despertar no chinês, o

pescador continuou o monólogo:

- Pelas vinte e três horas, quando costumo merendar, acostou

um pequeno barco e simultaneamente saiu da mesma cabine uma

pessoa, de onde tinham entrado as duas pessoas pela hora do

jantar. Dirigiu-se para o ocupante do pequeno barco, deu-lhe um

rápido aperto de mão, falaram por breves minutos, um voltou à

cabine e o outro regressou a terra.

- Realmente, assim o Sr.

João não podia de forma

alguma pescar. Continue por

favor.

- Pela uma hora da

madrugada ouvi ruído,

contudo não entendi o que

podia ser, apenas originou

que afugentasse a pescaria.

- Dramática essa noite para a pesca. Disse sorrindo Wang-Ho,

porém o Sr. João continuou, com um ar sério, e sem perder o fio

do relato:

- Posteriormente, pelas quatro horas da madrugada, acostou

um pequeno bote com um europeu, ou alguém vestido à europeia.

Entrou no iate e acenou para longe com uma lanterna. Passados

cinco minutos, veio outro pequeno barco que recolheu uma mala

de viagem grande e foi-se embora, para outro iate ancorado.

- Muito interessante, Sr. João.

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- Senhor Wang-Ho, apesar dos meus sessenta e cinco anos,

ainda tenho uma boa memória.

- Estou vendo que sim, excelente.

- Depois o sujeito com a lanterna entrou na cabine. E pelo

raiar do dia, como disse anteriormente, uma das pessoas que tinha

entrado na outra cabine voltou à primeira, aonde inicialmente

tinham entrado duas, a seguir ao jantar.

- Obrigado, senhor João, foi ótimo ter falado consigo.

Esclareceu-me muita coisa.

O pescador olhou estupefato para o companheiro, sem

entender os motivos daquela afirmação. Entretanto, o chinês

olhava para o relógio.

- Já é tarde, e amanhã levanto-me cedo. Uma boa pescaria.

O pescador fez um aceno, puxou a linha e trocou de isca.

Depois olhou para o barco, puxou de uma cigarrilha e começou a

fumar, deitando bolas de fumo para o ar, aonde se mantiveram por

segundos por não haver vento.

VIII

ang-Ho sentado num sofá, baixou os olhos para o

livro que segurava, e lamentou:

- Vocês europeus perdem a razão ao tentarem ser demasiados

racionalistas. Os vossos aparelhos necessitam de cuidadoso

lançamento de dados. O computador não trabalha se os dados que

lançarem não estiverem corretos.

O inspetor Novais ergueu os olhos da mosca que passeava

descuidadamente sobre o tampo da secretária para os olhinhos

oblíquos de Wang-Ho, não o interrompendo:

W

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- Haviam muitas dúvidas neste caso. Em primeiro lugar ...

por que ordenou o imã Hanbal a que Ibn Jubbai nos chamasse?

Sendo o assessor Ibn Jubbai o autor do furto, qual a lógica de ser

ele a chamar-nos? Por que o impediria também de ele falar com

os outros? Para mim só existia um motivo, ou seja, continuava a

confiar em Ibn Jubbai e para manter essa confiança só havia uma

razão: o imã Hanbal sabia quem tinha roubado a safira, por isso

pediu uma segunda investigação. Por outro lado, impediu de ele

falar com os outros para não revelar que sabia quem era o ladrão.

- Queria que descobríssemos o verdadeiro culpado ou

culpada?

- Exactamente ... havendo outro motivo para o imã desejar a

investigação.

A revelação caiu como uma bomba, mas o inspetor Novais

não interrompeu o amigo. Atento, inclinou-se para ouvir melhor.

Carcavelos – Esta povoação

possui uma das maiores e

mais concorridas praias

portuguesas. Pertence ao

concelho de Cascais.

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- Afastada a hipótese de ser o assessor Ibn Jubbai, em quem o

próprio imã continuava a confiar apesar da investigação, quem

mais poderia ser o ladrão? O imã?

- Sim Wang-Ho, podia ser ele.

- Podia efetivamente ser, contudo, a safira não tinha seguro,

logo não haveria qualquer causa relevante para a dar como

desaparecida. Afastei assim a hipótese de ser o imã, considerando

ser ele uma pessoa com fama de piedosa e justa. No entanto, cada

vez me convencia mais que ele sabia quem era o ladrão.

- Assim, restam quatro suspeitos: as duas esposas, o servo e o

sobrinho, não é? Eu inclino-me para o sobrinho rebelde.

- Não, inspector ... o

sobrinho não pode ser ... dando-

se crédito ao pescador que não

viu ninguém sair do barco

durante a noite, mas sim

regressar, às quatro horas da

madrugada, não estaria no

barco quando se deu o roubo.

Por outro lado, não esteve

nunca na cabine do imã, logo não podia ser ele.

- Mas os sinais de luzes com a lanterna? Foram buscar uma

mala ao barco e de certeza foi ele que a entregou. Que continha

ela?

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- Inclino-me para droga, certamente alguma mercadoria ilegal

para ser passada às quatro horas da madrugada. Outro fato que

achei estranho foi a esposa Zaynab e o servo Mansur Al Karki

afirmarem parecer-lhes terem visto o assessor Ibn Jubbai ir a

caminho da popa, e a esposa Fátima, contradizendo, relatar que

ele ia a caminho da proa, e ouvir algo caír na água.

- Realmente são indicações opostas.

- Não é apenas isso. O pescador não viu Ibn Jubbai sair do

camarote, e como podiam ouvir algo cair à água e não ouvirem

qualquer ruído das embarcações a acostarem durante a noite, que

certamente fariam muito

mais barulho.

- Realmente, é

intrigante ...

- Outro fato que me

confundia era o filme e a

inusitada amizade entre as

esposas do imã. Consistindo

o ciúme uma qualidade ou

defeito, particularmente do

gênero feminino, estranhei a profunda amizade entre as duas

esposas do imã. Seria apenas amizade ou encobriam-se uma à

outra? O que encobriam?

- O quê? Eram cumplices de algo?

- A esposa Fátima encobria a relação amorosa que a outra

esposa Zaynab mantinha com o servo Mansur Al Karki.

- Como descobriu que era Zaynab e Mansur Al Karki?

- Bem, teria de ser com o servo Mansur Al Karki porque era

quem podia dormir durante o dia. Lembre-se que o pescador me

disse que nunca viu qualquer vigilante de noite.

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- Podia ser a esposa Fátima.

O oriental ignorou a afirmação do inspector e continuou:

- Após o assessor Ibn Jubbai me haver mostrado o filme que

estranhamente apenas lhe foi oferecido em Cascais, apesar de ter

vindo de barco do Líbano, analisei minuciosamente a bobine e

constatei a existência de células contidas ao longo da fita,

sugerindo o roubo por parte do assessor Ibn Jubbai. Este método

das células utilizou-se para outros fins da indústria publicitária

americana, até a sua proibição. O espectador, sem dar por isso,

inconscientemente fixava na sua memória produtos que não dava

atenção, devido à velocidade da projeção.

- Incrível. Então foi a

esposa Fátima quem roubou?

- Efectivamente.

O detetive levantou-se da

secretária e começou a passear

pelo escritório. Por fim,

interrogou o chinês:

- Mas como fez ela sair a

safira do iate?

- Avisou aos cúmplices através do rádio do barco, lembre-se

que ela e o sobrinho do imã tinham as chaves da cabine de

pilotagem, logo, com acesso ao rádio. O único a ter contato

também com o exterior era o imã, através do telemóvel. O aperto

de mão a que o pescador se referiu, entre um ocupante do iate e

um do pequeno barco que acostou pelas vinte e três horas,

efectivamente não era um aperto de mão, mas sim, Fátima a

entregar a jóia. Depois regressou à cabine.

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- Entendo.

- Após roubar a safira e o fato ser notado pelo imã, saiu com

a outra esposa, e posteriormente avisou aos comparsas para irem

buscar a jóia.

-Wang Ho, efetivamente a polícia francesa avisou-me que os

contrabandistas apanhados por eles têm a safira do imã. Por outro

lado, o gerente do hotel confirma que depois de analisarem a

chave magnética, constatou-se que o contrabandista receptor da

safira entrou no quarto à meia-noite.

- O imã desconfiava do relacionamento da esposa Zaynab

com o servo e quando viu a outra esposa roubar a safira resolveu-

se por uma investigação concludente. Ele não podia castigar o

assessor Ibn Jubbai sabendo que fora a esposa a cometer o furto.

Mas também não aceitava a ideia de que cortassem a mão da

esposa. Ela vai então ser punida pelos tribunais lusos, bem mais

brandos.

- Imagino. Vão ficar em Portugal, o servo Mansur Al Karki e

a esposa do imã, Zaynab, que certamente vão passar a viver juntos

para fugirem à pena que os esperava no país deles. Quanto à

Carcavelos – Esta região

possui uma das regiões

demarcadas de vinhos

mais pequenas da

Europa, e mais famosas

do mundo a par da do

Douro ou do vinho do

Porto.

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Fátima, certamente vai cumprir aqui a pena de prisão e nunca

mais regressará ao seu país.

- Verdade ... O imã fica livre deles e não necessitará de

aplicar as penas por roubo e adultério em familiares.

- E o sobrinho?

- Certamente o sobrinho Muhammad Razi regressará com ele,

pois para os árabes fumarem haxixe é tão natural como os

europeus fumarem tabaco, que deixa resíduos de nicotina nos

pulmões. Quando a policia descobrir a rede de traficantes de

droga, já eles estarão bem longe.

- E o estrondo pela uma hora da madrugada?

- Foi feito por Fátima,

tentando abrir a porta do

esposo, que sabia estar sob os

efeitos do haxixe, só que não

conseguiu arrombar a porta

do imã.

- Mas, para que queria ela

arrombar a porta, se já tinha

inclusive passado a safira aos

cúmplices, pelas vinte e três horas.

- Apenas para o número de suspeitos aumentar. Ela sabia que

o iate estava sem vigilância, que a esposa Zaynab estava com o

servo Mansur Al Karki, que o sobrinho do imã Muhammad Razi

estava fora do barco e que o assessor Ibn Jubbai estava na cabine,

dormindo àquela hora. Tinha todo o caminho livre.

- Realmente, meu amigo. Quer ir comigo beber uma

cervejinha em comemoração?? ... por termos deslindado este

caso?

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- Claro que sim, amigo. Mas, desta vez, paga o inspetor. Com

os honorários com que o imã o vai recompensar por ter

deslindado o caso, até dá depois para me pagar um almoço ...

O detective sorriu, atirou o jornal desportivo para cima de

uma cadeira, colocou o chapéu na cabeça e saiu acompanhado do

amigo.

FIM

Carcavelos – È um dos

locais mais frequentados

de toda a Linha de

Cascais.

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O Técnico do Crime

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I

casa de jantar do apartamento do inspector Novais

tinha o privilégio de reunir “fina flor” do

departamento da “Brigada de Homicídios” da Polícia Judiciária

de Lisboa.

A alegria atingira o auge com a careta de um chinês de cabelo

liso e aparência calma que, assim manifestara o desagrado

proporcionado pelo conduto do jantar.

- Caro inspector, se a minha educação não me obrigasse e

manter-me calado quando me dão um prato tão mal

confeccionado como este, eu…

Uma sonora gargalhada

dada pelos restantes

convidados em uníssono

interrompeu a manifestação de

desaprovação de Wang-Ho.

Divertido, o inspector Novais

acalmou o oriental.

- Este jantar no 1º de Abril foi uma partida arquitectada por

mim, pela primeira vez resolvi fazer um prato chinês.

- A primeira e última se Deus quiser.

Um dos convivas interviera zombeteiro, originando outra

ruidosa gargalhada por parte dos presentes. O anfitrião franziu as

sobrancelhas admirado com o ruído da campainha a soar no hall.

- Quem será a esta hora?

Perante o silêncio dos convidados levantou-se e dirigiu-se

para a porta da rua.

- São dez da noite.

A

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Um dos convidados, um sujeito forte olhou os ponteiros do

relógio da sala e ao ver os olhares interessados dos convidados

dirigidos para o hall exclamou.

- Espero que não venha jantar senão teremos novo caso de

homicídio por envenenamento.

A graça não foi acolhida com o entusiasmo esperado e apenas

sorrisos lhe corresponderam. O inspector Novais regressava com

uma criatura de pele tostada que ao entrar na casa de jantar

cumprimentou em voz baixa os visitantes.

- Que Alá vos conduza pelo interminável caminho da

sabedoria. Gostaria de falar

com o Sr. Wang-Ho.

O chinês levantou-se e

convidou o homem a sentar-

se numa cadeira.

- Sr. Wang-Ho, estive no

gabinete do inspector Novais,

porém como ele se encontrava

ausente um individuo com

barbas informou-me que seria

melhor falar consigo. Deu-me esta morada.

- Porquê?

- O senhor barbudo afirmou que apesar da boa vontade do

inspector o senhor consegue melhores resultados.

Com excepção do agente da Brigada de Homicídios todos os

presentes se riram ao ouvir as palavras do recém-chegado que

continuou imperturbável.

- Como dizia, o senhor consegue melhores frutos do que

qualquer agente da Brigada de Homicídios.

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Desta vez um silêncio sepulcral recebeu esta afirmação,

Rapidamente o inspector Novais riu com gosto das feições dos

seus amigos e trocista, dirigiu-se ao muçulmano.

- Tem razão, Sr. …

- Sameed, Sameed Aziz.

- Sr. Sameed, o Sr. Wang-Ho não é parecido com o senhor

que o recebeu no meu gabinete?

- Muito.

- Calculei isso. Wang-Ho, a pessoa que esteve no meu

gabinete foi de certeza o seu irmão.

O oriental não quis levar a brincadeira mais longe e

perguntou curioso.

- Porque necessita dos meus préstimos?

- Infelizmente ocorreu um crime no meu prédio.

- Porque está tão preocupado?

- Sou o único sem qualquer álibi, Sr. Wang-Ho.

Mafra – Esta vila

pertence ao distrito de

Lisboa e é conhecida

pelo seu palácio-

convento em estilo

barroco.

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II

o chão da cozinha encontrava-se a silhueta a giz do

corpo de Elvira Sanchez. Não havia dúvida da

maneira como a infeliz mulher fora abatida e da crueldade do

assassino.

- Repare Wang-Ho, existem imensos pingos de sangue por

toda a parte. A extinta, depois do homicida a esfaquear

certamente procurou auxílio.

- A cozinha mantém-se como a encontraram?

- Sim. Apenas retiraram o cadáver.

- A faca possuía

impressões digitais?

- Não. O assassino

certamente calçou luvas

desaparecendo sem deixar

rasto.

- Vários tachos e panelas

enchiam os armários em

perfeito desalinho, traindo a familiaridade do assassino.

- Inspector, já mandou analisar os condimentos do cozinhado

da Sra. Elvira Sanchez?

- Não. Parece-lhe assim tão importante o que a infeliz

senhora confeccionava?

O oriental olhava o bom gosto da cozinha. Pratos

ornamentais de Redondo e Caldas da Rainha destacavam-se nas

paredes pintadas com uma tonalidade cor de tijolo. Os móveis

aonde se encontravam os pratos e panelas eram de mogno, o

frigorífico e arca mostravam que a senhora não dispensava nada

para viver comodamente.

N

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- Tudo deve ser devidamente acautelado. Interessa-me saber

o que se tratava e em que fase da confeição ia no momento do

homicídio.

- Curiosidade profissional?

- Procuro pistas.

Uma fila, de garrafas, todas premiadas, em cima dos móveis

mais altos, pareciam uma

muralha aonde estavam

intercaladas diversas

canecas de cerveja

provenientes de diversos

países, contudo na sua

maioria alemãs. Um antigo

quadro em tons vermelhos

da Coca-Cola sobressaia

sobre a porta.

- Wang-Ho, já reparou que ela era muito distraída e

descuidada?

- Refere-se a essa chávena partida sobre o lava-louças da

cozinha?

- Sim.

- Mandou analisar o líquido que continha?

- Ainda não. Aparenta ser leite, talvez o pequeno-almoço

dela.

- Agradecia que confirmasse.

O agente da Briga de Homicídios recolheu cuidadosamente

os cacos da chávena para um saco de plástico transparente antes

de prosseguir;

- De acordo, porquanto o médico-legista pode divulgar a não

existência de produtos tóxicos no corpo da vitima.

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- Tem razão em desconfiar que a xícara com leite fosse a

primeira refeição da dona da casa, veja o resto da torrada.

Inspector, verificou se o resto da casa está em ordem?

O pão mantinha-se negro na torradeira e o aposento ainda

mantinha o cheiro a queimado apesar da nuvem de fumo que

certamente teria surgido se ter dissipado.

- A cama está feita, o quarto arejado e a casa de banho limpa.

- Parece que a falecida afinal não era descuidada.

O inspector Novais

preferiu não replicar e retirou

o seu livrinho de notas.

- Wang-Ho. Existem seis

suspeitos neste prédio. A

porteira Sra. Manuela Correia,

o advogado Nelson Baptista, a

Sra. Luísa Oliveira, a baronesa

Amélia de Cantábria, o

médico Jacinto Albuquerque e

o nosso amigo e cozinheiro Sr.

Sameed Aziz.

- Por quem deseja

começar o inquérito?

- Tanto me faz.

- No momento em que saiam o detective apontou para o

amigo a fechadura da porta para a escada.

- Wang-Ho, observe o estado em que deixaram a fechadura.

- Quiseram rebentá-la, mas o trinco não deslizou.

- Devem ter tentado forçá-la e não o conseguiram.

- A porta foi serrada. Inspector como teria sido possível

serrarem a porta e ninguém ter ouvido nada?

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- Wang-Ho, a porta não foi serrada pelo criminoso, mas sim

pelos bombeiros que acompanharam os polícias

- Excelente, tudo se coaduna com a teoria de que alguém do

prédio cometeu o crime.

III

porta da escada toscamente pintada abriu-se e uma

moça de avental recebeu os dois homens num

corredor sobriamente decorado com gravuras antigas. Sons das

teclas de um piano chegavam da sala ao lado.

- Inspector Novais, agente da Brigada de Homicídios.

Gostava de falar com a Sra. Baronesa Amélia de Cantábria.

Por breves instantes a jovem penetrou na sala de onde

provinham as notas musicais e regressou rápida.

- Queiram entrar, a senhora recebe-os no salão.

A

Mafra ( estátua de D. João V ) – O

palácio-convento foi mandado

construir por D. João V, no século

XVIII. Foi neste convento que

dormiu a última noite D, Manuel

II, o último rei português antes do

seu exilio para Inglaterra.

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A divisão não passava de uma vulgar sala que conhecera de

certeza tempos de maior grandeza. Uma senhora forte sorriu-lhes

e levantou-se da cadeira do piano com a mão estendida.

- Adoro Liszt, apenas ele me consegue prender e elevar-me

para o reino da fantasia.

- Sra. Baronesa nós viemos…

- A Rapsódia Húngara número 5, em Mi Menor, transporta-

me para uma floresta encantada aonde o trinar dos pássaros, o

murmurar dos riachos nos envolve numa melodia deslumbrante.

- Certamente. Como eu dizia,

encontramo-nos aqui porque …

- No entanto para ser franca, a

Rapsódia número 1, em Mi Menor

assume o que considero

intransponível, o êxtase profundo

da alma, a concepção de tudo o

que é belo e autêntico da natureza,

não acham?

O inspector Novais olhou

pesaroso para Wang-Ho, mas este

último com bastante perspicácia

beijou a mão da nobre.

- Exactamente, senhora baronesa. Liszt foi sem sombra de

dúvida, divinal.

- O senhor demonstra ser uma pessoa culta e sensível. Quem

conhece Liszt não pode deixar de possuir sensibilidade e intelecto

para o compreender.

O detective achou ser a altura oportuna de intervir.

- Sra. Baronesa gostaria de lhe fazer algumas perguntas.

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- Com todo o prazer. Acompanham-me num chá?

Desculpem-me não ter biscoitos, contudo adoro barrar as minhas

torradinhas com doce, um velho costume dos tempos em que vivi

em Inglaterra.

Os três sentaram-se a uma enorme mesa aonde a criada

colocou uma toalha de linho. sobre a mesma um bule e algumas

chávenas de faiança bretã.

- Sra. Baronesa, investigo a morte da Sra. Elvira Sanchez.

- Meu Deus, uma tragédia. A única pessoa com correcção

neste prédio. Eu não acredito que

ela não tivesse linhagem.

- A Sra. Elvira Sanchez morreu

às 11 e 15 minutos da manhã.

Aonde se encontrava a senhora?

- A receber o electricista que

veio arranjar o meu televisor.

- Não ouviu nada de especial?

- Não, Sr. Inspector. Um

momento por favor.

A velha dama levantou-se e foi

buscar um livrinho regressando em

seguida.

- Eu sou muito esquecida e a Elvira lembrou-me de eu fazer

um diário para eu não me esquecer de factos importantes e não

existem dúvidas de que realmente dá resultado.

A baronesa folheou o livro de notas lentamente e fechou-o

desgostosa.

- Nada. Realmente não ouvi barulho nenhum, contudo como

sou muito distraída talvez não houvesse dado a importância

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devida a um ruído. Os senhores desejam mais um pouquinho de

chá?

- Não obrigado, minha senhora. A que horas veio o

electricista?

- Eram onze horas aproximadamente. Posso vos dar o

contacto dele para confirmarem as minhas palavras.

- E a que horas se foi embora?

- Seriam umas onze e meia.

O chinês parecia ignorar o interrogatório observando uma

cristaleira coberta de imagens

orientais tendo por cima algumas

fotos enegrecidas pelo tempo. Na

parede, a imagem do Menino Jesus

de Praga sobressia entre quadros

antigos. Desprezando o ambiente, o

polícia mantinha o interrogatório.

- Pensa que haveria alguém que

desejasse a morte da Sra. Elvira

Sanchez?

- Sim.

- Quem?

- O assassino.

O polícia sem alento puxou do cachimbo e preparou-se para o

encher suplicando disfarçadamente a Wang-Ho que este

continuasse o inquérito.

- Sra. Baronesa, alguma vez imaginou existir um assassino

neste prédio?

- Nunca, os factos aparecem por vezes inexplicavelmente,

assim como as pessoas frequentemente praticam actos

considerados como impensáveis antes da sua realização.

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- Discordo minha senhora. Existe sempre o “fio da meada”.

A fidalga fixou o chinês, limpou o canto da boca a um

guardanapo bordado, e concordou com um leve aceno da cabeça.

- Aceito. Liszt apareceu a trabalhar em reuniões da alta

sociedade desde muito novo. Quem sabe se sem esse apoio estaria

impossibilitado da sua

maravilhosa carreira?

- Realmente tem toda a

razão, minha senhora.

Os dois homens despediram-

se da velha dama que os

acompanhou à porta.

- Sr. Wang-Ho, eu gostei

imenso de conversar com os

senhores. Apareçam mais vezes

para falarmos de assuntos mais

agradáveis.

- Ao seu dispor, minha

senhora.

O oriental beijou a mão estendida com elegância e pose,

desceu as escadas acompanhado do agente da Brigada de

Homicídios.

- Reparou, Wang-Ho? Para a anciã a morte da senhora Elvira

Sanchez é menos importante o que as musicas de Liszt?

O oriental permaneceu calado por momentos antes de

perguntar.

- Quem ganhou ontem o jogo do Benfica com a Académica?

- O Benfica, dois a zero.

- Quem morreu ontem?

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- Não sei, Wang-Ho. Porque me pergunta isso? Não costumo

ler as colunas de necrologia dos jornais.

O chinês não respondeu ao inspector e murmurou para

consigo.

- Todos os dias terminam vidas que contribuíram

generosamente para o conforto existente e no entanto

desprezamo-las. Damos mais importância a factos fúteis.

IV

s escadas de

madeira do

prédio aonde morrera a Sra.

Elvira Sanchez, rangiam sob

o peso dos pés dos dois

amigos.

A

Cabo da Guia –

Situa-se a cerca

de 2 Kms de

Cascais.

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- Wang-Ho, espero que a porteira não seja nenhuma

entusiasta de Liszt.

- Como se chama ela, inspector?

- Manuela Correia.

A porta da porteira do prédio não brindava pelo asseio e uma

enorme campainha que em tempos fora branca aparecia grosseira

na parede. Depois de tocarem ouviram passos e um olho espreitou

por um orifício sem no entanto abrirem a porta.

- Que desejam?

- Polícia. Investigo a morte da Sra. Elvira Sanchez.

Ouviu-se o barulho de

uma corrente, e uma

mulher em roupão

apareceu na ombreira da

porta.

- Com quem desejam

falar?

- Com a senhora

Manuela Correia.

- Sou a própria.

Façam o favor de entrar.

Os investigadores penetraram numa salinha muito

desarrumada e cheia de jornais.

- Façam o favor de se sentarem. Bebem uma aguardente de

alfarroba ou um Martini?

- Não, obrigado. Pode-me responder a umas perguntas?

- Com certeza.

- Aonde se encontrava às 11 horas e 15 minutos na manhã do

crime?

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A matrona limpou as mãos a um avental, retirou um lenço e

assoou-se antes de responde.

- No oculista. Preciso de uma graduação maior para as

minhas lentes.

- O oculista situa-se perto daqui?

- Sim, do outro lado da rua.

- Viemos de casa da Sra. Baronesa.

- Ela é uma pelintra.

- Como disse?

- É uma pindérica. Gosta de possuir ares superiores porém

não tem educação, não tem

nenhuma etiqueta e ainda é

arrogante.

A mulher fez uma careta

de desdém enquanto com o

avental fingia limpar um

cinzeiro que apanhara em

cima de uma pequena mesa

de vidro.

- Como dizia, viemos de

casa da Sra. Baronesa e ela afiançou-nos que recebera um

electricista. Por acaso não notou a presença dele?

- Vi um homem sair, seriam umas 11 horas e 30 minutos,

contudo não sei se seria o electricista.

- Conhecia bem a Sra. Elvira Sanchez?

- Pouco.

- Sabe se ela tinha inimizades?

- Ignoro por completo.

O inspector Novais ia ficando desalentado com o caminho do

interrogatório. O chinês olhava atentamente para um quadro de

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uma criança chorando que jazia numas das paredes quase nuas de

ornamentações.

- Qual o inquilino mais antigo do prédio?

- Sem dúvida a baronesa.

- Ultimamente passou-se algo de peculiar aqui no prédio?

- Nada que me parecesse relevante.

- Sabe de algo da vida particular da Sra. Elvira Sanchez?

- Era uma pessoa pacata. De manhã ia às compras

regressando por volta da uma da tarde para almoçar. Depois saia

às 15 horas voltando pela hora do jantar passando depois os

serões a ver televisão.

- Nestes últimos dias

ela recebeu visitas?

- Os sobrinhos que

vivem em Alcobaça.

- Conhece-os?

- Não. Não me dava

muito com ela, por

conseguinte nunca os

apresentou.

A Sra. Manuela Correia levantou-se da cadeira abrindo em

seguida um armário.

- Não bebem uma aguardente da minha terra e não comem

uma “trufa”?

O inspector Novais recusou amavelmente e olhou para aquela

mulher forte com os cabelos em desalinho.

- Não, obrigado. Eu não como doces e não bebo em serviço.

Os dois homens levantaram-se do sofá e dirigiram-se para a

porta, contudo o detective ainda fez uma última pergunta.

- Ouviu arrombarem a porta da Sra. Elvira?

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- Não, senhor inspector.

Os investigadores saíram de casa da porteira e dirigiram-se

para um café.

- Wang-Ho já descobriu alguma coisa?

- Não. Por enquanto está tudo muito confuso.

consultório do Dr. Jacinto Albuquerque encontrava-

se mobilado com requinte para acolher a clientela

endinheirada que servia.

O cardiologista em que a ausência de cabelo era notória

recebeu os

investigadores de

maneira cordial.

- Queiram sentar-se.

A minha enfermeira

explicou-me a razão da

vossa visita.

- Lamentamos ter de o incomodar.

- Não tem importância. Desculpem estar sempre a assoar-me,

há uns dias que estou muito constipado, deve ser um vírus que

anda por aí.

O

Farol da Guia – Possui

um alcance de 18 milhas

náuticas e Trata-se de uma

torre octogonal em

alvenaria.

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- Pode-me dizer aonde se encontrava há dois dias às 11 horas

e 15 minutos da manhã, mais concretamente no dia do crime?

- Nessa manhã estive como normalmente a atender os meus

pacientes. Felizmente possuo uma grande clientela e essa manhã

foi particularmente extenuante e movimentada.

- A que horas abre o consultório?

- Começo a trabalhar às 9 horas da manhã e fecho ao meio-

dia e meia hora para almoçar.

- Mantinha relações de amizade com a Sra. Elvira Sanchez?

- Nenhumas. A única pessoa do prédio com quem falo

amiúde é com a Sra. Luísa Oliveira uma antiga cliente.

- Pode-me provar que

não saiu do consultório nessa

manhã?

- Claro, a minha

enfermeira pode o

comprovar.

- E ela não saiu por um

motivo de expediente.

Os três homens

conversavam numa pequena salinha aonde sobressaiam nas

paredes diversos diplomas, Sentavam-se em pequenas cadeiras de

metal almofadas e no centro uma pequena mesa de madeira esta

pejada de revistas.

- Não. Quer que a chame?

- Não vale a pena. Então a Sra. Elvira Sanchez era apenas sua

vizinha.

- Exactamente. Não era minha paciente.

- Conhece alguém com motivos para cometer o crime?

- Desconheço, eu vivo apenas para os meus enfermos.

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Uma moça de bata branca entrava no consultório sem os três

homens darem por isso. Ao vê-la passar no hall de entrada o

médico chamou-a juntando-se ao grupo.

- Apresento-lhes a Clara que confirma tudo o que tenho dito

até ao momento, de que eu não saí na altura do crime.

A enfermeira concordou com a cabeça.

- O doutor é uma excelente pessoa, seria capaz de se

sacrificar por outrem. Desculpe-me interromper, trago-lhe o

resultado do electrocardiograma feito à Sra. Marramaque.

O clínico recebeu o envelope e manteve-se silencioso por

momentos.

- Não vai bem a Sra.

Marramaque, tem de

tomar maiores cuidados

com a gordura. Junte o

electrocardiograma à

ficha da senhora.

O inspector Novais

fez intensão de se

levantar olhando em

redor da sala.

- Bem doutor, nós vamos andando, contudo gostaria que me

respondesse a uma última questão.

- Faça favor de dizer.

- Aonde vive?

- No andar ao lado. Habito o andar ao lado sozinho pois não

possuo família.

- Obrigado pela sua disponibilidade para nos atender.

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Os dois amigos foram acompanhados pela enfermeira até à

saída do consultório, desceram as escadas e o Sol feriu-lhes os

olhos.

- Wang-Ho, realmente não consigo alcançar o fio da meada.

- Sim, o caso não parece de resolução muito simples.

- A propósito, recebi o resultado da análise ao líquido que

estava na chávena partida.

- A xícara quebrada que se encontrava sobre o lava-louças da

Sra. Elvira Sanchez?

- Sim. A análise laboratorial demonstrou a existência de

“Borax”, uma

substância incolor

muito venenosa

parecida com a água.

- Inspector, pode

arranjar-me um

mandato de busca?

- Vou tentar.

VI

ma moça com olhos azuis-claros, atendeu os

visitantes numa salinha alcatifada e com ar

condicionado.

- Têm entrevista marcada?

- Não, minha senhora. Sou o inspector Novais, agente da

Brigada de Homicídios.

U

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- O senhor doutor Nelson Baptista está ocupado neste

momento.

- Não tem importância. Nós esperamos.

O detective e Wang-Ho sentaram-se em dois sofás de couro a

observarem o bom gosto da sala.

- Wang-Ho, é uma pena se temos de esperar muito tempo

pois geralmente os clientes dos advogados não gostam de polícias

a fazer-lhes companhia.

- Tem razão, inspector. Mas esta jovem mocinha deseja que

nós aguardemos e não temos pressa.

Os dois belos olhos azuis levantaram-se contrariados por

detrás da secretária e desapareceram por uma porta de madeira

envidraçada regressando após breves instantes.

- Podem entrar, o doutor Nelson Baptista espera-os.

Os detectives seguiram a formosa donzela até um gabinete

amplo aonde um sujeito ruivo de barbas escrevia no meio de

imensa papelada. Ao aproximarem-se convidou-os a sentarem-se

em duas cadeiras em frente da secretária maciça em mogno.

Cabo da Guia – Perto

do Farol da Gui

encontra-se um belo

jardim aonde abundam

esplanadas e

restaurantes com uma

bela vista sobre o mar.

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As palavras do advogado Nelson Baptista brotaram-lhe pela

boca com a facilidade de alguém que conhece o terreno em que

pisa.

- Em que lhe posso ser útil, inspector Novais?

- Investigo a morte da Sra. Elvira Sanchez, tem algum álibi?

- A minha secretária jurará em tribunal que no dia do crime

passei a manhã toda aqui no meu gabinete.

- Conhecia a falecida?

- Apenas de vista, cruzava-me com ela na escada.

- Trabalha há muitos anos neste prédio?

- Há cerca de cinco

anos, aproximadamente.

- Conhece alguém com

motivos suficientes que o

levassem a matar a senhora?

- Não. Além disso o

motivo mais fútil poderá

causar um crime.

- Reconheço que assim

é. O senhor habituado a

lidar com criminosos não observou nada de especial nos

inquilinos do prédio que lhe chamasse a atenção.

- Eu não lido com criminosos, para mim qualquer cliente é

inocente e é isso que pretendo provar em tribunal. Lido com quem

precisa dos meus serviços e só me interessa o meu trabalho.

Lamento inspector não o poder auxiliar nesse sentido.

- A recepcionista que nos atendeu também trabalhou aqui na

manhã do crime?

- Sim. Ganha mais do que faz.

- É muito bonita.

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- Trata-se da sua única qualidade, infelizmente.

- Teve muitos clientes nessa manhã?

- Sim. De manhã aparecem sempre mais pessoas do que à

tarde.

- Algum motivo especial?

- Prefiro atender as pessoas de manhã e preparar os casos

para os tribunais da parte da tarde.

- Curiosa maneira de pensar.

- Julga assim, inspector? Realmente o ser humano

transforma-se frequentemente num animal imprevisível.

- Apenas mais uma

pergunta, doutor Nelson

Baptista. Qual o horário

deste consultório?

- Desde as nove ao meio-dia, e das três às seis da tarde.

- Obrigado.

O advogado tocou num botão e os lindos olhos azuis

apareceram à porta.

- Dores, acompanhe estes senhores. Sempre às vossas ordens.

Caneiras – Um

pequena povoação

situada nas margens

do Tejo, perto de

Santarém.

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VII

entrada do restaurante “Jardim do Cairo” contrastava

frontalmente com o ambiente ricamente adornado da

sala, toda decorada com motivos árabes.

- Wang-Ho, já possuo a análise do cozinhado achado no

domicílio da Sra. Elvira

Sanchez.

- Quais os

condimentos?

- Miolo de amêndoa,

açúcar de cana, açúcar

pilé, ovos e água.

- Interessante. Então o

Sr. Sameed Aziz trabalha

neste restaurante?

- Sim. Telefonei-lhe a avisá-lo de que apareceríamos por cá

para jantar e para falarmos com ele.

Um garçon de guardanapo cuidadosamente descaído no braço

acercou-se dos dois homens e inclinou-se respeitosamente

distribuindo dois menus.

- Façam favor de escolher o que desejam.

A lista poderia considerar-se muito variada aonde não

faltavam os típicos pratos árabes e as mais requeridas e saborosas

espécies de cozinha indiana.

- Duas esfihas, por favor. Poderia chamar o Sr. Sameed Aziz?

- Sim. E para beber?

O agente da Brigada de Homicídios começou a ler o menu

dos vinhos, mas sentiu um calafrio ao ouvir o oriental responder

ao empregado.

A

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100

- Bebemos duas águas do Luso.

O criado afastou-se rapidamente e os investigadores

observaram curiosos o balão contendo uma lâmpada eléctrica

minúscula que, acesa transparecia a luz através do papel

vermelho.

-

Um ambiente romântico, Wang-Ho. Preferia sinceramente

estar neste momento com uma loirinha a falar de amor do que

consigo e com o senhor Aziz a investigar um crime.

- Acredito. Repare, o nosso homem aproxima-se.

Sameed Aziz, um homem corpulento e com o rosto sério

dirigia-se para a mesa em passos largos.

- Os senhores dão-me licença?

- Sente-se por favor. Sabe a razão da nossa presença aqui?

- Talvez a terrível morte da Sra. Elvira Sanchez.

- Exactamente. Sr. Sameed Aziz ouviu alguma coisa na

manhã do crime?

O Monte Estoril é uma

localidade junto ao

Estoril, localizada num

local privilegiado desta

bonita Costa.

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Sentando-se o individuo afastou um candeeiro em pele de

camelo que decorava a mesa, desviando-o um pouco para o lado,

- Ouvi uma ou duas pancadas na porta da Sra. Elvira

Sanchez, na altura eu não liguei a mínima importância a esse

facto.

- Frequentava a casa da falecida?

- Ensinei-lhe alguns cozinhados, a ela e à baronesa. Eram

duas grandes amigas.

- Afirmou-me que sentiu duas pancadas. Não ouviu mais

nenhum barulho na escada?

- Não.

- Nem os ruídos feitos

pelos passos dos clientes

dos Drs. Nelson Baptista e

Jacinto Albuquerque.

- Não. Devem ter tido

poucos clientes e de

qualquer forma eu já não

ligo porque estou

habituado ao movimento

na escada.

- Tem álibi?

- Nenhum, como já lhe confessei anteriormente.

- Viu um homem com uma caixa que pudesse ser electricista?

- Prefiro não responder à pergunta pois poderia estar a dar

indícios errados.

- Os inquilinos do prédio normalmente recebiam visitas?

- Sim. Por vezes …

- Quais as mais frequentes?

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- Os primos de Aveiro da Sra. Luísa Oliveira, os sobrinhos de

Faro da Sra. Manuela Correia, o irmão do Dr. Jacinto

Albuquerque e as amigas nortenhas da baronesa.

O inspector Novais puxara do cachimbo e durante o espaço

de tempo em que se calou Wang-Ho aproveitou a oportunidade

para interferir no inquérito.

- Para lhe ser franco não gosto deste tipo de comida servida

no seu restaurante. Podia-me trazer um bife?

O árabe respondeu

consternado.

- Não sabemos fazer

nenhum prato europeu.

O cozinheiro calou-se e

o empregado regressou

trazendo o jantar dando azo

para o Sr. Sameed Aziz se

retirar discretamente.

- Desculpem-me. Tenho

de voltar ao trabalho.

Os dois homens não

responderam, tão

entusiasmados se

encontravam com a

refeição.

- Wang-Ho, parece que afinal gosto de esfihas. Nunca tinha

provado.

- Sempre foi o meu prato oriental predilecto.

- Mas não disse ao Sr. Sameed de que não gostava de comida

indiana e árabe?

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- Apenas quis constatar os seus conhecimentos de comida

portuguesa.

Os dois amigos começaram a saborear as esfihas e em pouco

tempo duas novas garrafas de água mineral repousavam sobre a

toalha imaculada da mesa.

- Se o criminoso for o Sr. Sameed, ele hoje encontrou uma

óptima oportunidade para nos envenenar.

- Beba água salgada ou com mostrada e verá que vomita o

veneno.

- Está muito picante. Wang-Ho, devem ter colocado “piri-

piri” ou malagueta. Já encontrou alguma malagueta perdida no

seu prato’

- As esfihas originais

não costumam ter

malaguetas. Um momento,

achei, só pode ser isso.

O agente da Brigada de

Homicídios inclinou-se

sobre a mesa à procura da

malagueta no prato de

Wang-Ho.

- O que procura, inspector?

- A malagueta que me afirmou ter achado.

- Eu descobri alguma malagueta?

- Mas não afirmou ter encontrado…?

- O assassino, inspector. Descobri o provável homicida.

- Wang-Ho, precisa de provas.

- Será o senhor a dar-me.

- Eu?

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- Sim. Eu vou-lhe fornecer uma morada e nela encontrará a

prova do que procura. O livro de receitas da Sra. Elvira Sanchez,

bastando uma análise química às letras e ao papel para saber há

quanto tempo a receita foi escrita pela dona da casa e se não teria

sido redigida na altura do homicídio.

- A receita?

- Sim, a receita dada pelo assassino, o último prato

confeccionado pela Sra. Elvira Sanchez. O prato que achámos na

cozinha quando inspeccionamos a sala.

VIII

onge de se manter calmo, o agente da Brigada de

Homicídios aguardava um telefonema, deveras

importante, que para ele poderia ser a resolução e conclusão do

caso.

- Wang-Ho, a sua calma impressiona-me. Como pode não

estar nervoso sabendo que a qualquer momento todas as dúvidas

sobre este caso se dissiparão?

L

Caldas da Rainha –

Esta cidade deve a

sua fundação à

rainha D. Leonor que

ficou maravilhada

com as suas águas e

no local mandou fazer

uma povoação com 30

moradores.

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O oriental não respondeu e murmurou.

- Já leu o jornal da manhã? Convém dar uma olhada.

O polícia sentou-se, e começou a ler em voz alta.

- “ Jean Michel apresenta pelas dez horas a sua nova colecção

de vestidos para a presente estação, aonde estarão presentes

conhecidíssimos nomes do nosso meio mundano como… ”

- Inspector, leia a notícia de baixo.

- “ Veneno dentro de cápsula de vitaminas ”? Este artigo?

- Esse mesmo. Leia com atenção.

- “ A diabólica mente

humana não conhece limites para

a perversão. Uma senhora de

quarenta anos faleceu hoje

devido a uma intoxicação ao

tomar cápsulas de vitaminas,

produtos recomendados para

quem toma antibióticos. Um

hóspede da senhora retirou o

conteúdo das cápsulas,

introduzindo nas mesmas,

veneno de uma aranha

denominada viúva-negra. O homicida contava, como veio a

acontecer, que o veneno não fizesse logo efeito dando tempo para

sair do nosso país. As cápsulas das vitaminas apenas quando

chegam ao estômago se dissolvem percorrendo parte do nosso

sistema digestivo inteiras…”.

- Impressionante.

- Wang-Ho, eu não percebo o que tem a ver o jornal de hoje

com o crime.

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- Esse jornal é o matutino do dia do crime da Sra. Elvira

Sanchez, encontrado na cozinha da vítima.

- E então?

- Indica que a Sra. Elvira Sanchez leu a notícia do homicídio

narrado no jornal e temeu pela sua integridade física.

- Não vejo aonde quer chegar.

- Ela partiu a chávena propositadamente pois desconfiava de

que o assassino ou a assassina lhe pusera alguma coisa dentro,

assim estava de sobreaviso

contra uma pessoa de quem não

gostava.

- Então a baronesa fica

ilibada.

- Sim. Porém a baronesa

regressava do desfile de modas

quando foi cometido o crime.

Apresentei o retrato da baronesa

ao electricista que ela me

indicou como tendo estado em

casa dela, e ele confirmou não

ser a pessoa da fotografia quem

o recebeu.

- Nesse caso a baronesa não possui álibi.

- Não. Assim como o médico e o advogado, apesar da

confirmação da enfermeira e da secretária de eles não haverem

saído do prédio. O nosso cozinheiro Sr. Sameed Aziz, e a porteira

Manuela Correia confirmaram que eles não tiveram muitos

clientes.

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- A porteira é a única a ter álibi, apesar de não termos

qualquer informação sobre a Sra. Luísa Oliveira porque ainda não

a interrogámos.

- O álibi da Sra. Manuela Correia perde-se para mim pela sua

fraqueza porquanto torna-se difícil uma testemunha, neste caso o

oculista, confirmar em termos de minutos se a senhora se

encontrava ou não na loja.

- Fabuloso, Wang-Ho. Ninguém possui álibi.

O telefone tocou e o polícia segurou no auscultador. Ao ouvir

as palavras do outro lado do fio as feições tornaram-se vermelhas,

por fim desligou.

- Encontraram o

livro de receitas da Sra.

Elvira Sanchez. Como

previu meu caro Wang-

Ho o livro estava em

casa dos sobrinhos da

Sra. Manuela Correia,

em Faro.

IX

oriental assoou-se antes de começar a explicar ao

inspector Novais o raciocínio seguido.

- O crime foi engendrado de maneira hábil aproveitando uma

oportunidade. A Sra. Elvira Sanchez convidou a Sra. Manuela

Correia para a ensinar a fazer um doce chamado “Queijinhos do

Algarve” para o almoço.

O

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108

Nesse dia os sobrinhos da Sra. Manuela Correia almoçavam

em casa da tia e ela preferiu ir ensinar a receita à Sra. Elvira

Sanchez mais cedo. Eis a razão de apanhar a dona da casa a tomar

o pequeno-almoço. A assassina tentou primeiro envenenar a

senhora entornando dentro da chávena bórax, mas a sorte não lhe

sorriu, a anfitriã desconfiou e entornou o conteúdo no lava-louças.

Porém o destino dela estava traçado, a Sra. Manuela Correia ao

verificar ser mal sucedida a sua primeira tentativa de homicídio

arriscou tudo e espetou uma faca na dona da casa.

- E a fechadura?

- A fechadura foi uma tentativa de confundir as investigações

levando a crer que teria sido uma pessoa de fora o criminoso, a

própria porta confirma ter sido a fechadura destruída depois do

crime.

- Como?

Cascais – É uma

vila portuguesa do

distrito de Lisboa

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- Porque apesar de destruída, o trinco manteve-se no seu

lugar e seria impossível um criminoso entrar em casa.

- Meu Deus, como pode haver mentes tão diabólicas? Vamos

buscar a criminosa?

O oriental levantou-se e acompanhou o agente da Brigada de

Homicídios ao automóvel, em poucos minutos atravessavam a

cidade.

X

urante um

minuto ninguém

respondeu aos vários toques

na campainha da casa de

Manuela Correia.

- Wang-Ho, vamos

arrombar a porta?

Nesse momento algo

parecido com um grito vindo

de um andar superior chamou a atenção aos dois investigadores

que apressadamente subiram as escadas. No último andar uma

porta abriu-se, uma cena macabra deparou-se-lhes como que saída

de um filme de terror, Manuela Correia empunhando uma faca

ensanguentada saía da casa de Luísa Oliveira que jazia no soalho

da sala.

- Que fiz eu?

O polícia desarmou a mulher e correu em socorro da vítima

procurando estancar o sangue. Em voz muito débil a pobre mulher

murmurou enquanto abria dificilmente os olhos.

D

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- Cabeça, operação, irmão Albuquerque…

Na altura em que a senhora expirava nos braços do detective,

o chinês que até ao momento se mantivera calmo segurando a

assassina começou a correr para o polícia, retirou-lhe a pistola do

coldre, descendo as escadas rapidamente seguido do agente

estupefacto por ter sido desarmado.

De rompante Wang-Ho abriu a porta do consultório do

médico.

- Mãos no ar, doutor Jacinto Albuquerque.

O médico demorou a obedecer à ordem pois estava ocupado

com um pequeno aparelho. O inspector Novais manteve-se

cautelosamente à distância

sem compreender o que

acontecia sentindo um

calafrio ao ver Manuela

Correia empunhando

novamente faca e dirigindo-

se para ele.

Um tiro soou no

consultório e nesse preciso

momento a homicida deixou cair a faca e segurou-se cansada à

parede.

- As vossas actividades criminosas terminaram.

- Wang-Ho, ela está ferida?

- Não, inspector. O meu disparo foi dirigido para a caixa do

doutor Albuquerque. Um bom oportunista, este clínico.

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XI

camioneta turística parou, vários passageiros

desceram junto à Boca do Inferno, alheios à bela

ermida, orgulhosa da sua centenária existência. O agente da

Brigada de Homicídios desdobrou um papel e convicto afirmou.

- Sim, utilizaram tricloroetileno. Está no relatório.

- Inspector, eu não lhe disse que os irmãos Albuquerque

utilizaram um gás anestésico para dominar a Sra. Manuela

Correia?

- Tem razão. Segundo me diz, no primeiro crime a culpada

foi a Sra. Manuela Correia pois estava em plena faculdade de

sentidos e actos.

- Exactamente. Ela calculou com antecedência o crime

possivelmente com ciúmes da Sra. Luísa Oliveira.

A

Boca do Inferno –

Situa-se na costa Oeste

da vila de Cascais.

Local muito bonito

com rochas de

natureza calcária.

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- E no segundo caso?

- O mesmo já não sucede no segundo crime. O médico

Jacinto Albuquerque tornou a Sra. Manuela Correia cobaia de

uma experiência, e ao mesmo tempo aproveitou o ensejo para

desfazer-se da inoportuna Sra. Luísa Oliveira.

- Porquê?

- A Sra. Luísa Albuquerque insistia numa relação que ele não

desejava e ele receava que com escândalos ela afastasse a

clientela.

- Como serviu a Sra. Manuela Correia de cobaia?

- Todo o ser humano possui centros cerebrais aonde controla

a agressividade. Estes centros

poderão ser estimulados por

meios químicos ou eléctricos

caindo o indivíduo numa

dependência total e

maioritariamente isenta do lado

subjectivo.

- Deixa de ter vontade

própria.

- Nem mais. Após um estudo profundo em pessoas que em

princípio eram calmas, devido a lesões ou doenças passaram-se a

comportar de modo diferente, vários cientistas chegaram à

conclusão que se fossem colocados eléctrodos nas áreas cerebrais

a agressividade de um paciente poderia ser controlada por um

pequeno aparelho que envia sinais de rádio ao eléctrodo.

- Agora compreendo a reacção da Sra. Manuela Correia ao

assassinar a Sra. Luísa Oliveira, e ao posteriormente procurar

atingir-me na face.

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- Se no primeiro caso o crime foi premeditado, no segundo a

paciente do doutor Albuquerque encontrava-se debaixo do

controle do médico que a dotou de agressividade contra a Sra.

Luísa Oliveira.

- Wang-Ho, então a caixinha que o doutor Jacinto

Albuquerque agarrava quando entrámos no consultório dele servia

para controlar a assassina.

- Sim, deu-lhe um irmão, o doutor Lourenço Albuquerque

conhecido psiquiatra que o auxiliou na colocação dos eléctrodos

nos centros cerebrais da Sra. Manuela Correia enquanto estava

sob os efeitos do gás anestésico.

O inspector Novais

parou defronte de uma

pastelaria.

- Receio Wang-Ho, que

com o enorme avanço da

ciência um dia surgirão

inspectores policiais

encarregados na descoberta

de crimes por disciplinas. Por

exemplo um inspector médico para determinado tipo de crimes,

um vocacionado em engenharia para outro tipo de homicídio, etc.

- Efectivamente, meu amigo. Nessa altura daremos lugar aos

novos.

FIM

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Ritual da morte

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I

e noite, dois candeeiros originavam uma explosão de

luzes no asfalto da estrada principal do pequeno

lugarejo chamado Rondulha. O simples edifício de três andares,

com sótão, engenhosamente se transformara em pensão pelas

mãos hábeis da proprietária, beneficiando da agreste paisagem

acossada pelo ríspido Inverno, naquele ano particularmente

ventoso e frio.

No rés-do-chão a lareira crepitava, alimentada pelos troncos

das velhas videiras cuja

utilidade os proprietários

pensaram haver chegado a

hora de lhes dar outro destino

que não fosse o de apenas

fornecer bagos para

transformação em vinhos de

elevado teor alcoólico.

Na sala aquecida e

iluminada por candeeiros de petróleo distinguia-se uma mobília

rústica composta de uma mesa e várias cadeiras de verga com

dupla função, uma de servirem de assento aos comensais durante

as horas das refeições e outra de repouso enquanto viam a tv.

Os apartamentos dos hóspedes distribuíam-se pelo primeiro e

segundo andares. Cada apartamento compunha-se de um quarto,

de uma casa de banho e de uma salinha simples, mas asseadas,

libertando os inquilinos de manterem relações sociais quando não

desejavam.

D

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A proprietária da pensão recebeu o inspector Novais e Wang-

Ho na sala de jantar convidando-os a despirem as gabardines

encharcadas pela chuva e a beberem uma chávena de chocolate

quente, divindade de deuses naquela noite tempestuosa. As

cadeiras preventivamente colocadas junto à lareira foram

ocupadas enquanto tomavam lugar as apresentações.

O detective, após consentimento da Sra. Isabel Rodriguez,

acendeu o cigarro, recusou uma aguardente e principiou a

conversa enquanto estendia as botas encharcadas em direcção ao

lume.

- Sra. Isabel Rodriguez, pode-me contar o sucedido hoje de

manhã?

A proprietária da pensão

retirou os óculos e enquanto

os limpava com um pano de

feltro amarelo exclamou em

voz grave.

- Senhor inspector, o

sucedido esta manhã

constitui algo que nós

acreditamos jamais suceder connosco, pensamos poder sempre vir

a suceder na casa dos outros, nunca na nossa casa.

- É verdade.

- O Sr. Capitão Erc Sinson, meu hóspede, tardava em vir

tomar o pequeno-almoço como habitualmente, originando natural

apreensão devido à sua idade avançada. Após consultar os meus

clientes resolvi enviar a Sra. Olímpia Militão, minha serviçal,

inteirar-se do que se passava não sendo bem-sucedida no

empreendimento visto não obter resposta às repetidas pancadas

dadas na porta do quarto do capitão.

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O inspector Novais interrompeu.

- Ninguém possuía cópia da chave do alojamento do finado?

- Não, por vontade expressa dele. Unicamente depois de ele

descer para tomar o pequeno-almoço, podíamos limpar os

aposentos dele.

- Muito cauteloso.

- Após discutirmos o que se deveria fazer, os Srs. tenente

Abreu Mercier e o major Paulo Ribeirinho concordaram em entrar

no quarto do capitão. Utilizaram para o efeito uma varanda que

confina com as salas de estar do tenente e do capitão.

- A janela da varanda estava aberta?

- Com efeito. Ao penetrarem na alcova um cenário diabólico

apresentou-se-lhes aos olhos. Sobre a cama no centro do quarto,

em indescritível desordem, postava-se o capitão Eric Sinson

sangrando de um ferimento no ventre provocado pela própria

Paço de Arcos – É

uma freguesia do

concelho de Oeiras,

com cerca de 15.000

habitantes.

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espada. Ao seu lado jazia uma boneca com um alfinete espetado

na barriga, enquanto em todo o aposento se notava o cheiro a

incenso.

- O inspector Novais interrompeu curioso.

- A Sra. Isabel Rodriguez testemunha nesse caso que as

únicas vias de acesso à câmara do capitão seriam pela porta de

entrada para a salinha cuja única chave sempre se encontrou na

posse do capitão ou pela varanda para cuja entrada tornar-se-ia

necessário atravessar o quarto do tenente Abreu Mercier?

- Exactamente. E o quarto não tem janelas.

- Os inquilinos encontravam-se na pousada há muito tempo?

- Quando comprei a

pensão há cinco anos já aqui

todos se hospedavam.

- Tinha passatempos ou

hobbies o falecido?

- Apesar dos seus

sentidos pouco apurados

jogava muito bem xadrês,

entretendo-se à noite com o conde Eduardo de Machado e com o

tenente Abreu Marcier. O resto do dia destinava-o a grandes

passeatas pelos campos vizinhos.

- Sabe se ele possuía fortuna pessoal?

- Desconheço, todavia cobria todas as despesas com a sua

pensão.

- Ouviu algum barulho anormal durante a noite do crime?

- Consegui distinguir um ruído estranho, mas como o capitão

sofria de insónias não dei demasiada importância. Quando das

vigílias ia para a varanda fumar.

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- O inspector batia levemente o cigarro no cinzeiro em forma

de peixe.

- Desconfia de alguém? Alguém que lhe tivesse ódio?

- O capitão era pouco social e não despertava rancores.

- Poderia o assassino ser alguém estranho à casa?

- Não me parece. Durante a noite libertamos um cachorro e

certamente teria ladrado ao ver alguém desconhecido.

II

Sra. Olímpia

Militão

envergando um vestido de

fazenda grossa e calçando

botins em pele penetrou na

sala de jantar compondo o

carrapito debaixo do lenço na

cabeça. A sua vida pacata

raramente possuía motivos de interesse e apreciava aquela ocasião

especial de depor sobre um crime. O detective da Brigada de

Homicídios cumprimentou-a e convidou-a a sentar-se à sua frente.

- Minha senhora, encontro-me aqui com o Sr. Wang-Ho

investigando a morte do capitão Eric Sinson. Pode-me fornecer os

seus dados pessoais e profissionais?

A servente não traia a satisfação de um interregno na lide

diária, pois apesar de ser um assunto mórbido não deixava de ser

interessante.

- Neste lugar aonde trabalho nunca ocorrera nenhum crime.

A

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Notava-se um certo pesar na voz, o inspector Novais fixou-a

interessado.

- Pode-me relatar os seus passos na noite do crime?

- Certamente. Levantei a mesa após o jantar, apaguei a

lareira, tranquei as portas e janelas deitando-me a seguir. Durante

a noite não ouvi nada de estranho, o que não admira, pois levo

uma vida saudável muito diferente dos citadinos.

O inspector Novais e Wang-Ho fingiram não reparar no

gracejo lançado pela camponesa.

- A Sra. Olímpia Militão chamou de manhã pelo Sr. Capitão

Erc Sinson?

- Estranhamos a

ausência dele ao

pequeno-almoço. Ele

era uma pessoa rígida e

cumpridora dos

horários.

- Tomava as

refeições sempre a

horas certas?

- Sim. Dirigi-me aos seus aposentos, chamei-o e bati com

força na porta, mas sem qualquer resposta.

- Nestes últimos dias estranhou alguma atitude do finado?

- Não. Portava-se com dignidade e o respeito habitual apesar

de muito pouco arrumado. Limpava-lhe o quarto, a sala de estar e

a casa de banho de dois em dois dias, aproveitando para arejar o

ambiente, pois o Sr. Capitão, pessoa bastante idosa, tinha sempre

a porta da varanda fechada.

- Como explica que um capitão da marinha procedesse com

tantos cuidados?

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A Sra. Olímpia Militão hesitou antes de responder.

- Penso que devido a ser octogenário.

- Poderia vir de fora da pousada o assassino?

A empregada aparentou escandalizar-se.

- De forma alguma. As janelas e portas da hospedaria

encontravam-se todas encerradas nos trincos naquela noite, pois

sei bem as pestes que vagueiam por este mundo de Cristo.

O polícia agradeceu, despediu-se da funcionária da albergaria

e suspirou desolado com os resultados obtidos.

III

major Paulo Ribeirinho aparentava um bondoso

paquiderme ao entrar na sala de jantar. Uns olhos

meigos e apreensivos fixaram os dois visitantes enquanto o

volumoso corpo se balanceava e com esforço se sentava numa

O

Peniche – É

uma cidade

portuguesa

no centro de

Portugal

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cadeira robusta que rangeu, gemendo de protesto ao suportar o

peso.

- Sr. Major Paulo Ribeirinho, certamente sabe o motivo da

nossa presença nesta casa?

Ao pronunciar as palavras o inspector Novais apreciou a

extrema gordura do major.

O dialogante esforçou-se por falar aparentando enorme

sacrifício para o efeito.

- Os senhores investigam os lamentáveis acontecimentos

sucedidos com o assassínio do meu amigo. Encontro-me ao vosso

dispor.

- Quando veio para esta

casa de forma permanente?

- Dispensaram-me do

activo devido à minha

doença e o médico

recomendou-me a fazer os

menores esforços possíveis

aconselhando-me a vir para

a província.

- Pode-me fornecer um depoimento do sucedido após o

crime?

- Certamente. Ao notarmos a ausência do capitão Eric Sinson

entrei com o tenente Mercier pela porta da varanda, no quarto do

capitão. Ao inverso do resto dos aposentos o quarto encontrava-se

muito desarrumado com evidentes sinais de luta. O capitão

assassinado, certamente pela espada sangrava enquanto, que um

boneco de barro com um alfinete espetado como nos rituais

“vodu”, situava-se a alguns centímetros de distância. Apesar da

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porta que dá para a varanda estar aberta notava-se um forte cheiro

a incenso.

- O capitão tinha inimigos?

- O crime demonstra-o. O capitão prendava por possuir um

feitio e um modo de vida rudes. De manhã antes do pequeno-

almoço levantava-se de madrugada passeando pelos campos

fazendo o mesmo à tarde. Durante a noite jogava xadrez com o

tenente Mercier e bebia ao calor da lareira.

- Qual a sua nacionalidade?

- Panamiana.

- E a do capitão?

- Americana. O

capitão comandava um

navio que percorria o

Atlântico.

- Suspeita de alguém

que o tenha assassinado?

- Não.

O major Paulo

Ribeirinho pesadamente

levantou-se e encaminhou-se para a porta. O agente da Brigada de

Homicídios ainda tomava notas num bloco quando lhe pediu.

- Senhor major, agradecia que ao subir ao seu apartamento

tomasse a liberdade de pedir aos senhores condes a comparência

nesta sala.

Ouviram-se os ruídos do estalar das madeiras da escada e

dois personagens vestidos como se surgissem do século passado

vislumbraram-se na ombreira da porta.

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IV

conde Eduardo de Machado dotado do nariz mais

proeminente alguma vez observado pelo inspector

Novais e por Wang-Ho precedia a condessa Leonor de Machado.

A nobre, era senhora de um corpo desproporcionado constituído

de busto saliente e pernas de bambu, possuindo apesar de tudo

uma majestade estudada anos a fio. Os dois investigadores

beijaram-lhe uma mão pálida ostensivamente apresentada ao

chegar perto do sofá. A estatura enorme da condessa enchia a sala

e a sua voz rouca elevou-se quebrando o silêncio mantido no

momento da sua chegada.

- Comunicaram-me o vosso desejo de fazerem um inquérito

aos trágicos acontecimentos decorridos durante a última noite.

A condessa Leonor de Machado abanava-se com um leque

oriental inspeccionando curiosa Wang-Ho e mostrando natural

desagrado pela cabeleira negra de chinês.

- Senhora condessa, imagina como lamento a necessidade

desta entrevista, mas como deve calcular é importantíssima. Pode-

me fornecer alguns dos seus dados pessoais?

O

Cruz Quebrada - Cruz

Quebrada é uma localidade

da freguesia de Cruz

Quebrada - Dafundo,

concelho de Oeiras, distrito

de Lisboa.

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Um rubor percorreu-lhe as faces ao observar, com relutância,

que Wang-Ho olhava com insistência o leque que se

movimentava sem cessar.

- Vim com o meu marido para esta pensão há cerca de quinze

anos após a venda de uma nossa herdade no Norte de Portugal.

No meu tempo a dignidade mantinha-se diariamente, nos dias

actuais a segurança das pessoas corre perigo como sucedeu com o

Sr. Capitão Eric Sinson, pessoa respeitável apesar de provir de

baixa linhagem e por conseguinte o nosso contacto se reduzir ao

indispensável.

O polícia disfarçou um sorriso e colocou o bloco de notas

temporariamente no bolso.

Depois de um breve

silêncio interrogou.

- Durante a noite algum

ruído lhe chamou a

atenção?

- Não. O capitão Eric

Sinson sofria de insónias e

por isso recomendei-lhe o

meu remédio “Ludromil”. Devido à avançada idade o velhote

passeava por vezes de noite e quando lhe chamávamos a atenção

tornava-se agressivo o que nos levou a julgá-lo como socialmente

indesejável. Apesar do seu aparente vigor físico a sua vista e

demais sentidos encontravam-se aquém da normalidade.

O agente da Brigada de Homicídios desviou a conversa

encarando o conde Eduardo de Machado que timidamente ouvira

o desenrolar do diálogo da esposa com o inspector.

- Sr. Conde Eduardo de Machado pensa que o capitão possuía

inimigos e alguém o ameaçava?

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O marido da matrona afagou a barba rala e inconscientemente

acertou o lacinho discretamente colocado sobre a imaculada

camisa branca.

- O capitão era dotado de um feitio desconfiado, as únicas

pessoas a quem ele dirigia palavra eram à Sra. Isabel Rodriguez e

ao tenente Abreu Mercier. Eles eram os únicos seres vivos que

gozavam da estima dele para além de uns peixes que

ornamentavam a sua sala de estar. Sei da existência de família

pois durante um mês a Sra. Isabel Rodriguez alimentava-lhe os

bichos e ele passava as férias fora da pensão com os familiares.

- Sabe quem são e aonde se encontra a família?

- Não. Os peixes

constituíam a sua segunda

família, todos os animais o

adoravam e ele aos bichos.

Uma vez presenciei violenta

discussão entre o capitão Eric

Sinson e a Sra. Olimpia

Militão após esta última haver

espancado um gato que se refastelara com o peixe do jantar.

- Ouviu alguma discussão do capitão com o tenente Mercier?

- Várias vezes presenciei por causa do jogo, contudo

sinceramente julgo que nenhum desejava a morte do outro.

- Então quem será o assassino?

O conde Eduardo de Machado levantou-se e encolheu os

ombros.

- Não lhe sei dizer, Sr. Inspector.

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V

s aposentos do tenente Abreu Mercier não

prendavam pela arrumação. Livros espalhados pela

sua sala de estar, cartas sobre a mesa, meias desordenadas sobre o

sofá emprestavam uma atmosfera desagradável ao ambiente.

O militar adoptou de início o sorriso que manteve durante

toda a entrevista com o inspector Novais e com Wang-Ho.

- Podem entrar, façam o favor de se sentarem. Não bebem

nada? Um Porto?

Retirou as meias de cima do sofá e puxou duas cadeiras

oferendo-as aos visitantes. O agente da Brigada de Homicídios

agradeceu e foi directo ao assunto da visita.

- Senhor tenente, o seu depoimento pode ser de primordial

importância para o esclarecimento deste caso. Como veio parar a

esta pensão?

- Quando entrei no exército horrorizei-me com a perspectiva

de mais tarde quando me reformasse, vir a viver sozinho. As

pessoas daqui são a minha família.

O

Jamor – Situa-se nas

imediações de Lisboa.

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- Entendo, é um solitário por natureza, nunca pensou casar.

- Como diz. O ser humano como animal social que é

necessita de companhia e por conseguinte passei a viver aqui.

Possuo de igual modo a solidão dos meus aposentos quando a

minha disposição assim o deseja.

- Qual a sua opinião sobre a morte do capitão?

- As circunstâncias a envolvê-la apresentam-se terríveis e

misteriosas, algo de macabro para a compreensão humana. A

violência encontra-se para além da racionalidade.

- O capitão Eric Sinson deixava habitualmente a porta da sala

de estar para a varanda

aberta?

O tenente Mercier

hesitou a responder não

perdendo a compostura

mantida.

- Todos os dias ele

fechava à noite essa

porta.

O inspector Novais e

Wang-Ho levantaram-se e despediram-se do tenente Mercier que

amavelmente conduziu-os à porta. Em frente encontravam-se os

aposentos do capitão Eric Sinson. Após breve hesitação o

detective, acompanhado do amigo encaminhou-se para as escadas,

desceram-nas e saíram da pensão.

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VI

riacho artificial sussurrava por entre pedras húmidas

cobertas por fungos de diversos tons de verde. Dois

homens de sobretudo apreciavam o maravilhoso Jamor, dotado de

beleza irreal e deslumbrante.

O inspector Novais sentado com o seu amigo Wang-Ho sobre

uma enorme pedra brincava com um raminho de uma árvore que

inconscientemente partira.

- Meu amigo desta vez, acertei no criminoso. Todas as pistas

se conjugam com maravilhosa transparência. Quem cometeu o

crime foi o tenente Abreu

Marcier.

Wang-Ho meteu os

dedos da mão por entre a sua

farta cabeleira não

pronunciando qualquer

palavra encorajando o

inspector Novais a continuar.

- Após buscas aos

aposentos do capitão Eric Sinson encontrámos impressões digitais

do tenente na porta da varanda, mais do que aquelas ocasionadas

pela sua passagem no dia a seguir ao crime em que atravessou a

porta para ver o sucedido ao capitão. Múltiplas impressões

digitais aparecem igualmente na sala de estar do capitão.

O inspector Novais observava a fisionomia de Wang-Ho, mas

este continuava imperceptível como sempre.

- Dois outros elementos importantíssimos voltam-se contra

ele. Primeiro apenas o tenente Mercier tinha acesso ao quarto do

capitão pela varanda, ninguém possuindo a chave da porta do hall.

O

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Segundo, como sabia o tenente que o capitão Eric Sinson fechava

todos os dias a porta? Não concorda comigo?

- Não, não concordo.

O chinês olhava as faces rubras e desoladas do detective.

Lentamente a sua voz com sotaque quebrou o silêncio de alguns

segundos.

- Este crime apresenta factos curiosos como o ritual “vodu”.

Um leigo como o senhor aceitaria o ritual como foi apresentado

pelo criminoso com um boneco espetado e cheiro a incenso, mas

o verdadeiro ritual “vodu” não envolve incenso. Perguntei-me o

porquê então do odor?

O oriental parou como

a reflectir antes de

continuar.

- Dois outros factos

apresentavam-se estranhos

neste crime. Primeiro

como seria possível o

quarto ficar em alvoroço

denotando sintomas de

renhido combate quando um dos protagonistas não possui dotes

físicos para tal? Como seria possível também ninguém ouvir esse

combate?

O agente da Brigada de Homicídios concordou com um

pequeno gesto com a cabeça deixando o companheiro prosseguir.

- Segundo facto muito estranho consiste em a Sra. Olimpia

Militão afirmar-nos só arrumar os aposentos do capitão Eric

Sinson de dois em dois dias e o major Paulo Ribeirinho contar-

nos que apenas o quarto se encontrava desarrumado. Comecei a

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raciocinar e com a ajuda do vosso médico legista encontrei a

solução.

- A que conclusão chegou?

- Na noite anterior enquanto os hóspedes se encontram na

sala de jantar a Sra. Isabel Rodriguez tem oportunidade de fazer

um buraco no tubo do esquentador espalhando-se o gás pela casa

de banho. Ela sabe que o capitão não possui os cinco sentidos

bem apurados logo não sentirá o cheiro e não abrindo as janelas

ele desmaiará em poucos minutos. Como o major Paulo

Ribeirinho afirmou o capitão levantava-se muito cedo para

passear antes do pequeno-almoço sendo lógico que todos os

pensionistas dormissem a essa hora beneficiando a criminosa.

- Então foi ela a criminosa?

Wang-Ho ignorou a afirmação do polícia e continuou a sua

narrativa.

- Isabel Rodriguez tem oportunidade e tempo de segurar no

capitão e transportá-lo para o quarto aonde constrói o cenário de

Jamor – O complexo

desportivo do Jamor

abrange inúmeras

modalidades

desportivas

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destruição. Regressa à casa de banho e limpa-a da água deixada

no chão quando do momento da queda do capitão.

- Ela agiu de forma ardilosa.

- Conta com o odor a gás espalhado pelos aposentos e calcula

que com a ausência do capitão os demais inquilinos fiquem

curiosos em saber a razão da falta e queiram saber o que se passa.

Para confundir monta o cenário do ritual “vodu”, abre todas as

janelas, queima incenso para disfarçar o cheiro. Espeta a espada

no capitão e aguarda

os acontecimentos

procedentes.

O inspector

Novais confuso

replicou.

- Mas havia

tantas impressões

digitais do tenente na

porta e na sala de

estar do capitão.

- O tenente

Abreu Mercier ia

muitas vezes jogar

xadrez à sala de estar

de estar do capitão Eric Sinson e para o efeito passava pela

varanda.

- Como entrou a Isabel Rodriguez nos aposentos do capitão e

qual o motivo de lhe desejar a morte?

- Lembre-se da entrevista do conde Eduardo de Machado e

das suas palavras acerca da ida do capitão passar um mês com a

família. Apenas nessa altura ele cedia a chave a Isabel Rodriguez

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para lhe tratar dos peixes. Ele desconfiava da senhora, contudo ela

foi esperta em fazer nesse período uma duplicação da chave dos

aposentos.

- E quanto ao motivo?

- Isabel Rodriguez é de nacionalidade espanhola mais

concretamente nasceu em Cadiz. Numa das viagens o capitão

conduziu embriagado e matou-lhe o único filho e ela jurou

vingar-se. Senhora de fortuna descobriu aonde ele via vivia e

comprou a pensão de forma a melhor cumprir a vingança.

O inspector Novais levantou-se e atirou o pauzinho por uma

ravina, recomeçando a

descer o caminho de saibro

acompanhado do amigo. O

entardecer apresentava-se

maravilhoso com aquele

pôr-do-sol.

FIM

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Indice

Um crime no Natal …………………………… 7

A safira do imã……………………………….. 39

O técnico do crime …………………………... 75

Ritual da morte……………...……………… 115

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