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Saúde e Ambiente nos debates do II Encontro Brasileiro de Agricultura
Alternativa (1984)
Júlia Lima Gorges Brandão
Doutoranda- PPGHCS
Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz
Introdução
Este trabalho é parte de minha pesquisa de doutorado, que busca analisar a
história da agricultura orgânica no Estado do Rio de Janeiro, no período de 1980 a 2010.
O Estado do Rio de Janeiro (sobretudo as cidades serranas de Petrópolis e Nova
Friburgo) é considerado um dos pioneiros na produção de alimentos orgânicos em todo
o Brasil. Este tipo de cultivo tem início na década de 1980, sendo, por esse motivo, este
período o recorte inicial da pesquisa em questão. Já o ano de 2010, recorte final, diz
respeito à criação do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas, mecanismo que possibilitou
a ampliação dos espaços de comercialização de alimentos orgânicos no estado, criado
por parcerias entre sociedades civis, como a ABIO (Associação dos Agricultores
Biológicos do Estado do Rio de Janeiro) e a prefeitura do Rio de Janeiro.
A realização do II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa, realizado na
cidade de Petrópolis, em 1984, reuniu milhares de pessoas que debatiam o cenário
agrícola nacional e defendiam o cultivo de alimentos de forma natural, sem o uso de
agrotóxicos e adubos químicos. O encontro foi um importante marco para a difusão da
agricultura orgânica no estado do Rio de Janeiro e, por esse motivo, será foco desta
comunicação.
O início do cultivo de alimentos orgânicos no Estado do Rio de Janeiro não
representa um caso isolado. Este evento esteve relacionado a um cenário nacional e
internacional de ideias que questionavam o modelo agrícola hegemônico, difundido
através da chamada Revolução Verde, inserida no âmbito de projetos de
desenvolvimento, orquestrados pelos países desenvolvidos e liderada pelos EUA após a
Segunda Guerra Mundial, com a promessa de levar melhores condições econômicas aos
países mais pobres do globo. Tais projetos estiveram relacionados à Guerra Fria, disputa
político-ideológica entre Estados Unidos e União Soviética, na busca da hegemonia
mundial. O advento do desenvolvimento pode ser compreendido enquanto um
mecanismo no qual os Estados Unidos buscaram exercer sua influência e garantir o
alinhamento e a adesão do maior número de países aliados.
A Revolução Verde pode ser definida enquanto um grande processo, difundido
ao longo do século XX, que engloba a mudança tecnológica desenvolvida para o
chamado “Terceiro Mundo” e incluiria o melhoramento técnico da produção agrícola,
através de novos métodos, incluindo a mecanização do campo, uso de adubos químicos
e agrotóxicos. A Revolução Verde estabeleceu uma distribuição de sementes no
chamado terceiro mundo, tendendo não somente a uma homogeneização genética, que
se diferenciava da variedade agroecológica e social das agriculturas nas quais se inseria,
e, além disso, tais métodos levaram a uma marcada uniformização dos sistemas de
cultivo, cada vez mais induzidos à mecanização, à irrigação e ao uso de fertilizantes de
origem industrial. (PICADO, 2014, p. 491). A Revolução Verde levou a novas técnicas
e novos insumos, que se propunham a substituir antigas práticas agrícolas, o que teria
gerado uma “desarticulação ecológica” entre estas técnicas e a natureza. Nascia a
chamada agricultura convencional, que, ao mesmo tempo em que possibilitou um
grande aumento na produção de alimentos, resultou em uma ampla dependência em
relação aos insumos comerciais. Este modelo agrícola teria “conquistado” o apoio de
especialistas do campo da agronomia, surgindo diversos projetos de pesquisa para o
desenvolvimento de técnicas neste sentido. Diversos países criaram linhas de crédito
rural condicionado ao uso de agroquímicos, apoiados por órgãos públicos ligados aos
governos e a organismos internacionais, dentre estes o Banco Mundial o Banco
Interamericano de Desenvolvimento e a Agência Nacional para a Agricultura e a
Alimentação. (OLIVEIRA, 2010).
Desta forma, no Brasil, assim como em diversos outros países, sobretudo da
América Latina e Ásia, métodos modernizantes da Revolução Verde foram amplamente
aceitos e incentivados por diferentes governos. Entre os anos de 1950 a 1970, o Brasil
adotou uma política de modernização da agricultura, baseada nos preceitos da
Revolução Verde, cujo financiamento foi iniciativa direta do Governo Federal, através
de isenção de impostos para a instalação de fábricas, além de crédito rural, que visavam
claramente incentivar o uso de agrotóxicos. (FRANCO; PELAEZ, 2016: 215). Cabe
ressaltar que, neste período, no âmbito da Guerra Fria, os EUA buscavam intervir na
América Latina e em outros continentes a partir de uma “ideologia de modernização”,
através de créditos supervisionados, programas em agricultura, saneamento, entre outros
projetos de origem filantrópica que auxiliaram na manutenção dos interesses norte-
americanos na América Latina. Neste período, sobretudo a partir do Governo de
Juscelino Kubitschek, havia um projeto de racionalização da agricultura, que visava unir
ciência, técnica, indústria e comércio em programas específicos que buscavam
aperfeiçoamento e modernização dos métodos de cultivo. Foi dada grande ênfase à
assistência técnica, no intuito de promover a educação adequada ao trabalhador rural e a
melhoria de conhecimentos técnicos pelos grandes fazendeiros. Defendia-se por parte
do governo uma maior integração entre indústria e agropecuária, a modernização da
agricultura e a manutenção das grandes propriedades rurais. Neste sentido, foi
promovida a expansão do sistema agromercantil, a partir da intensificação do uso de
fertilizantes e tratores. (SILVA, 2009).
Durante a Ditadura Militar (1964-1985), destaca-se a criação do Programa
Nacional de Defensivos Agrícolas (1975), inserido no II Plano Nacional de
Desenvolvimento, claro incentivo à produção de agrotóxicos, proporcionando recursos
financeiros para a criação de empresas nacionais, além do incentivo de empresas
multinacionais no país. Somado a isto, o marco regulatório existente até então (1934)
era defasado e pouco rigoroso, favorecendo o rápido registro de agrotóxicos, alguns,
inclusive já proibidos em outros países. (PELAEZ; TERRA; SILVA, 2010: 28).
Este cenário, de grande incentivo e difusão de métodos modernizantes para a
agricultura trouxe, claramente, muitos problemas de ordem econômica, social e
ambiental nos locais onde foram inseridos. Frente à constatação destes problemas, teve
início uma série de movimentos e protestos, em diversas partes do mundo (incluindo o
Brasil) na defesa de novas atitudes em relação à natureza e à forma da humanidade
relacionar-se com ela. Destaque é dado à publicação em 1962, do livro Primavera
Silenciosa, da norte-americana Rachel Carson, cujo conteúdo é um alerta, conhecido a
nível mundial, do cenário de degradação ambiental a partir do uso de substâncias
químicas nos Estados Unidos. As décadas de 1960 e 1970 trouxeram uma maior
conscientização de uma crise ambiental. Neste momento surgiam protestos variados,
expressos no cinema, em movimentos culturais como o hippie, movimentos estudantis
etc. É desta época a fundação de duas grandes organizações não governamentais
(ONGs) que se destacam até então pela defesa da proteção da natureza mundial: o
Greenpeace e a WWF (World Wide Fund for nature). Já os anos 1970 trouxeram uma
institucionalização internacional das práticas ecológicas, o que envolveu autoridades e
dirigentes de diversos países, incluindo os mais ricos. Destaca-se a realização da
Conferência de Estocolmo, em 1972, que reuniu 113 países, incluindo o Brasil, e nele
foram sistematizados vários discursos relacionados à necessidade de rever o modelo
desenvolvimentista. (DUARTE, 2005).
O surgimento da ecologia enquanto uma disciplina científica e a promoção de
um movimento ecologista surgido a partir da década de 1970 também são de grande
relevância. A “ideologia ecologista” exprimia a ideia de que o homem era parte da
natureza, estabelecendo uma relação de igualdade com as outras formas vivas. Foi
estabelecida uma visão sistêmica de mundo, onde todos os elementos do mundo,
incluindo as sociedades humanas, interagiriam em uma rede de relações. Assim,
natureza e sociedade se fundem numa totalidade. A partir da premissa de que o homem
é parte integrante da natureza, a ecologia tornou-se atuante, militante, no sentido de
posicionar-se contra os sistemas econômicos vigentes - o capitalismo e o socialismo -
que teriam a mesma finalidade: o crescimento econômico a qualquer preço. Os ecólogos
demonstravam preocupações com o caráter esgotável dos recursos naturais da terra e da
fragilidade de seus equilíbrios, considerando-a um grande ecossistema. Era necessário
impedir a “pilhagem” desses recursos naturais, pois isto comprometeria o equilíbrio do
grande ecossistema “Terra”. (ACOT, 1990).
É, portanto, neste cenário, que no Brasil se inicia um movimento de agricultura
alternativa, onde atores das mais diversas formações e de diversos estados buscaram
promover uma significativa mudança nos processos produtivos brasileiros. Destaca-se a
categoria profissional dos engenheiros agrônomos, cuja atuação foi pioneira na
elaboração de uma visão crítica sobre os processos de modernização da agricultura. Tais
atores estavam mobilizados pelo cenário internacional de ideias ecologistas e atuaram
em prol da realização de eventos que reunissem ideias afins e, de forma atuante,
propunham-se a atrair a atenção da sociedade civil para os problemas enfrentados pela
agricultura brasileira, que afetavam diretamente o meio ambiente e a saúde humana.
O II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa e os debates sobre saúde e
ambiente
O II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa, realizado em Petrópolis,
entre os dias 2 e 6 de abril de 1984, fez parte de uma série de quatro eventos, os
Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBAAS), promovidos pela Federação
das Associações de Engenheiros Agrônomos do Brasil (FAEAB) em parceria com as
associações estaduais de engenheiros agrônomos e da Federação dos Estudantes de
Agronomia do Brasil. O primeiro evento, intitulado I Encontro Brasileiro de Agricultura
Alternativa, foi realizado em Curitiba, no ano de 1981. Já o III Encontro Brasileiro de
Agricultura Alternativa foi realizado em Cuiabá, em 1987. O último, o IV Encontro
Brasileiro de Agricultura Alternativa, foi realizado em Porto Alegre no ano de 1989.
(LUZZI, 2008).
O I EBAA teve fundamental atuação da Associação dos Engenheiros
Agrônomos do Estado de São Paulo (AEASP), cuja direção fora assumida na década de
1970 por um grupo crítico em relação ao modelo agrícola hegemônico à época, calcado
na modernização do campo. A partir da atuação desta associação, o movimento
espalhou-se, chegando então à FAEAB. Assim, o I EBAA foi iniciativa de um grupo
progressista da Federação Brasileira, junto a alguns intelectuais críticos da agricultura
moderna, como o ativista José Lutzenberger. (LUZZI, 2008).
O II EBAA foi promovido a partir do apoio de instituições como o BANERJ, o
CNPq, a EMATER-Rio, a EMBRAPA, a PESAGRO-Rio, a Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro e a Prefeitura de Petrópolis. O evento foi amplamente noticiado nos
jornais da época, como o Jornal do Brasil, O Fluminense, Tribuna da Imprensa, Jornal
do Commercio e demais jornais locais de diversos estados, que davam conta da
participação e fala de palestrantes, bem como dos problemas e novas técnicas agrícolas
apresentadas por estes. Um exemplo é a reportagem do Jornal do Brasil do dia 5 de abril
de 1984 intitulada: “Rio coibirá excesso de agrotóxico em alimento”. A matéria aponta
que os hortigranjeiros produzidos no estado do Rio de Janeiro viriam a ser analisados
em laboratório, para garantir que não fossem comercializados com níveis de agrotóxicos
acima do permitido. Caso fosse detectada uma dosagem maior, a venda de determinado
produto poderia ser proibida. Foi o que teria afirmado o secretário de desenvolvimento
agropecuário, Elias Camilo Jorge durante o evento. (Jornal do Brasil, 1984, 1º caderno,
p. 7).
O público participante, cerca de 1800 pessoas, contou com a presença de
técnicos, agricultores, ambientalistas, intelectuais, estudantes e secretários e
representantes de diversas cidades e estados brasileiros, que se reuniram no Palácio
Quitandinha, buscando debater novos rumos para a agricultura brasileira. Além de
Lutzenberger, o evento contou com a presença de notórios atores brasileiros e
estrangeiros, como Ana Maria Primavesi, Johanna Dobereinger, Pinheiro Machado,
Claude Aubert, Ernst Goestch etc, cujos nomes vinham se destacando nos cenários
nacional e internacional no
movimento de agricultura
alternativa.
Destaca-se também a participação de jovens estudantes de agronomia, sobretudo
da Universidade Rural do Rio de Janeiro, que se engajaram em ações práticas para a
promoção da agricultura alternativa no Estado do Rio de Janeiro, sobretudo nas cidades
de Petrópolis e Nova Friburgo1. O evento, inclusive, teve papel importante para a
mobilização desses jovens, visto que muitos se conheceram e mantiveram contato,
fundando, por exemplo, em 1985, a já mencionada Associação dos Agricultores
Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (ABIO), na cidade de Nova Friburgo. A
fundação da ABIO está diretamente relacionada ao impulsionamento da prática de
agricultura orgânica, inicialmente em Nova Friburgo e, posteriormente, em diversas
outras cidades fluminenses.
Ao longo do evento, diversos atores palestraram e debateram temas pertinentes à
situação agrária do país. Defendia-se que a agronomia e a agricultura brasileira
dispunham de tecnologia suficiente para produzir alimentos sem venenos,
1 Foram os chamados “novos rurais”, jovens derivados dos grandes centros urbanos, que se voltaram para
cidades menores buscando iniciar o cultivo de alimentos de forma natural. Apresentavam um forte
pensamento crítico em relação ao cenário agrícola brasileiro e buscaram organizar-se em cooperativas e
associações, afim de estimular a prática a antigos agricultores que produziam alimentos de maneira
convencional (com o uso de agrotóxicos e adubos químicos). Destacam-se as criações: da Coonatura, primeira cooperativa do estado do Rio criada por consumidores que buscavam estimular a prática da
agricultura orgânica, criada em 1979; e da ABIO (Associação dos Agricultores Biológicos do Estado do
Rio de Janeiro), criada em 1985, na cidade de Nova Friburgo, com o objetivo de promover e apoiar a
agricultura biológica. Tais instituições tiveram papel atuante na disseminação da prática orgânica em todo
o Estado. A Coonatura, que chegou a ter 2000 associados, teve fim no início da década de 2000, devido à
problemas de administração interna. Seu legado foi a conversão e adesão de centenas de agricultores aos
métodos orgânicos de produção. Já a ABIO tornou-se a maior certificadora de alimentos orgânicos do
estado do Rio, além de participar ativamente dos debates que antecederam a formulação da legislação
orgânica brasileira, decretada em 2003 e vigente até os dias atuais.
Folheto do II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa realizado em
Petrópolis, em 1984. Fonte: Rede Agronomia. Disponível em:
http://agronomos.ning.com/profiles/blogs/encontro-brasileiro-de-agricultura-
alternativa?overrideMobileRedirect=1. Acesso em 25 de setembro de 2019.
independentemente da escala de produção. Neste contexto, a chamada agricultura
alternativa, cuja essência estaria baseada em princípios técnico-científicos, apresentava-
se claramente enquanto uma forma de resistência ao modelo agrícola, subordinado aos
interesses de grandes multinacionais produtoras de agrotóxicos, fertilizantes e
maquinário agrícola.
O discurso de abertura do evento, presidido pelo então presidente da FAEAB,
Luiz Carlos Pinheiro Machado, se deu em tom crítico, apontando os diversos
“fracassos” da chamada agricultura convencional. Foi defendida uma agricultura
sustentável, que produzisse alimentos e matérias primas “sadias”, oferecesse
lucratividade ao agricultor e não prejudicasse o meio ambiente. Pinheiro Machado segue
falando dos impactos sociais da disseminação do modelo agrícola hegemônico,
apontando que este teria levado à perda da autonomia do povo enquanto nação, devido à
intervenção de órgãos internacionais, como o FMI, em assuntos internos do país. Além
disso, teria levado à inflação e à carestia, contribuindo para a situação de miséria do
povo brasileiro. Ênfase também é dada aos problemas de ordem ambiental, como, por
exemplo, o aumento considerável de pragas após a inserção de agrotóxicos nas lavouras,
a destruição de recursos naturais, processos de desertificação etc. Finalizando seu
discurso, Machado defende que as modificações de que necessitaria o panorama
agrícola seriam soluções políticas, apontando a necessidade de eleições diretas em todos
os níveis de governo e uma Assembleia Nacional Constituinte que consagrasse os
princípios do exercício das liberdades democráticas. Cabe ressaltar que, àquele
momento, era forte o movimento denominado “Diretas Já”, que reivindicava eleições
presidenciais diretas no país, após 20 anos de ditadura militar.
O evento seguiu com mais de 30 discursos de participantes brasileiros e
estrangeiros, que trataram dos mais variados temas. Muitos destes discursos traziam
falas críticas ao cenário agrícola brasileiro, destacando as desigualdades no campo, a
desnutrição do povo brasileiro, a inserção de métodos agrícolas que não eram
condizentes com as realidades locais, os impactos ambientais, sociais e biológicos do
uso de agrotóxicos e adubos químicos. Tais falas permitem observar o caráter crítico do
movimento ecologista do período. Muitos adeptos deste movimento adotavam um
posicionamento radical, desejando não somente alterar os métodos de produção
agrícola, mas defendiam alterações sociais.2 Tal posicionamento pode ser analisado na
fala do engenheiro agrônomo Francisco Graziano Neto:
A questão agrária e a ecológica são faces da mesma moeda. O mesmo
processo de transformação – a expansão do capitalismo dependente do campo
– gera, por um lado, a concentração de terra, a miséria dos “boias-frias”, a
crise de alimentação, e por outro, a destruição dos solos, o descontrole das
pragas, as contaminações e intoxicações, a morte da natureza.
A tecnologia reflete a estrutura de poder existente na sociedade, que advém
do jogo dos interesses sociais. Generalizar uma tecnologia alternativa
significa (exige) novas relações de poder, uma nova sociedade. Nossa luta
deve ser por uma agricultura e uma sociedade alternativas e não apenas uma
tecnologia alternativa. Senão, o risco é continuar a exploração dos
trabalhadores e dos pequenos agricultores: será uma exploração ecológica.
[...] Transformar a sociedade é atuar politicamente, participar ativamente do
jogo político maior da sociedade, não comportando acomodamentos nem
alienação. [...] É preciso maior competência e seriedade no movimento atual:
não basta empunhar bandeiras. É preciso uma compreensão maior das
questões ecológicas. Nós queremos é a redenção deste país, para construir
uma nação soberana e justa. (Anais do II Encontro Brasileiro de Agricultura
Alternativa, 1985, p. 211).
As consequências negativas geradas pelo modelo agrícola hegemônico à saúde e
ao meio ambiente foram argumentos centrais para diversos discursos apresentados no II
EBAA. A ênfase dada a esses pontos não era novidade àquele momento: tanto saúde,
como ambiente estavam em evidência nos debates internacionais, enquanto se debatia
os impactos das políticas de desenvolvimento postas em prática após a Segunda Guerra
Mundial. Defendia-se uma relação harmoniosa entre saúde, economia e ambiente, a fim
2 Como apontou Viola (1985), o ecologismo deste período criticava o utilitarismo não apenas nas relações sociais, mas também nas relações sociedade/natureza. Este movimento caracterizou-se pela busca de
intensa mobilização social e coletiva, abrangendo interesses universais, que ultrapassariam as fronteiras
de classe, sexo, raça e nação. Este movimento abrangeria grande parte da humanidade, com exceção
daqueles que ocupariam posições dominantes, portadores da lógica “predatória-exterminista” do mundo
contemporâneo. O movimento ecológico propunha um novo sistema de valores aparado no equilíbrio
ecológico, onde estariam incluídas a justiça social, a não violência e a solidariedade com as gerações
futuras. O autor aponta que a maioria dos ecologistas seriam favoráveis a um desenvolvimento
ecologicamente equilibrado, o qual incluiria a utilização prudente da maioria das tecnologias
contemporâneas, com rejeição apenas daquelas predatórias.
de superar os problemas cada vez mais evidentes relacionadas à pobreza e à
desigualdade social. Naquela mesma década seria cunhado o termo “desenvolvimento
sustentável”, definido como “o desenvolvimento e as ações do presente sem
comprometer a capacidade de enfrentar as do futuro”. (BOROWY, 2013: 2). No
conceito de desenvolvimento sustentável estariam incluídas as concepções de saúde,
que englobaria, além da ausência de doença, fatores econômicos, como emprego, renda,
padrões de vida; aliado aos fatores ambientais, como o acesso à água limpa, ar puro,
proteção contra desastres naturais etc. (BOROWY, 2013).
O uso de agrotóxicos foi ponto amplamente debatido, sendo diretamente
associado a diversos problemas ambientais e relacionados à saúde humana. O discurso
de Reinaldo Skalisz, engenheiro agrônomo da Secretaria de Agricultura do Paraná, por
exemplo, traz diversas argumentações sobre o uso dessas substâncias, além da
constatação da gravidade de sua aplicação. O autor trata do alto poder de dispersão dos
agrotóxicos, afirmando terem sido encontrados resíduos de DDT a milhares de
quilômetros de distância das regiões onde foram aplicados. Além disso, aponta a
ocorrência constante de desastres ecológicos, como a matança de peixes, pássaros, a
contaminação de alimentos etc.
A contaminação da população por uso de agrotóxicos também esteve presente
em diversos discursos. José Santiago, engenheiro agrônomo, consultor em agricultura
orgânica, trata estas substâncias como veneno. Aponta a contaminação em várias
instâncias da vida social, dentre elas o leite materno, contaminado em alto grau com
organoclorados; o leite que os brasileiros bebiam diariamente; a manteiga, o queijo, o
óleo, o sangue dos trabalhadores rurais, todos os brasileiros teriam organoclorados em
seus fígados. Além disso, em seu discurso, Santiago expõe os danos diretos e indiretos
causados pelo uso destas substâncias ao solo: acidificação do solo, perda da fertilidade e
erosão.
Àquele momento (1984), já se alarmava o alto índice de uso de agrotóxicos no
Brasil. Adilson Paschoal, engenheiro agrônomo de São Paulo, inicia seu discurso
apontando a posição do Brasil entre os cinco países que mais utilizariam agrotóxicos no
mundo. A razão para este cenário, segundo Paschoal, seria, em primeiro lugar, a política
governamental e a ação de empresas do setor agroquímico, que influenciaria desde o
agricultor até o profissional nas universidades. Em segundo lugar, o modelo
agroindustrial, caracterizado pelas monoculturas e adubação química, geraria pragas e
acentuaria os danos que elas causam, exigindo assim o uso de agrotóxicos, em um ciclo
“inexorável” que não teria fim. A partir deste ciclo, surgiria, segundo o autor, o
argumento, defendido pelas grandes multinacionais do ramo, de que não seria possível
fazer agricultura sem o uso desses produtos. Paschoal ainda afirma:
A verdade, que está na procura das causas que explicam o aparecimento das
pragas e que levam o técnico a aconselhar e o agricultor a usar agrotóxicos,
fica oculta na perigosa rotina da aplicação desses produtos, combatendo-se
sempre os efeitos, permitindo-se que os fatos geradores de espécies daninhas
continuem a agir criando pragas para os agricultores, resíduos tóxicos para os
consumidores e capital para as multinacionais. (Anais do II Encontro
Brasileiro de Agricultura Alternativa, 1985, p. 121).
Paschoal segue afirmando não se poder prescindir do uso de agrotóxicos, pois o
sistema agroquímico teria sido planejado exatamente para se fazer uso deles, como um
fator indispensável para um “sistema extremo de simplificação e instabilidade
ecológicas”.
A contaminação de alimentos por agrotóxicos seguiu sendo destacada por
participantes do evento. Antônio Figueiredo, professor da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro apontou:
É preciso que alguém se preocupe em alertar o consumidor brasileiro, este
órfão massacrado pela desinformação e abandonado à sua pouca sorte.
Alguém precisa dizer-lhe como proteger-se do perigo onipotente e
onipresente.
Quem lhe garantirá que o leite que compra para seus filhos não está
enriquecido com microorganismos variados ou temperado com defensivos
agrícolas ou desinfetantes industriais? Ao invés disto, tentam confundi-lo
oferecendo-lhe leites sofisticados, obviamente mais caros, talvez jorrados de
“tetas douradas”.
Quem lhe dirá que o pão de cada dia, “fofinho”, “branquinho”, tão atraente,
traz na sua massa tantas coisas estranhas à sua composição?
Quem lhe dirá que os cereais, legumes e verduras do dia-a-dia trazem
consigo uma gama de agrotóxicos que, livremente, são vendidos,
pulverizados e inalados pelas esquinas do nosso país?
[...] (Anais do II Encontro Brasileiro de Agricultura Alternativa, 1985,
págs. 149 e 150).
Além de o evento contar com diversos discursos críticos ao cenário agrícola
brasileiro, muitos palestrantes apresentaram suas pesquisas acerca de métodos naturais
de produção, ambientalmente sustentáveis e que promovessem a justiça social no
campo. Dentre esses métodos estavam o manejo integrado e o controle biológico de
pragas na agricultura; adubação verde; sistemas diversificados de produção; inseticidas
naturais; adubação orgânica, dentre outras técnicas que demonstravam ser possível uma
agricultura natural.
Ao final do encontro, fora elaborada a Carta de Petrópolis, um protocolo de
intenções assinado por 24 secretários de 11 estados3, que estiveram presentes no evento.
O protocolo trazia reivindicações como: o apoio à pesquisa, visando a difusão do uso de
alternativas agropecuárias adequadas à realidade nacional; assegurar o diagnóstico de
problemas eco toxicológicos, disponibilizando tais informações à sociedade através de
um boletim; promover a participação dos estados na elaboração de uma legislação que
visasse a qualidade ambiental e social; criar e implantar legislações estaduais
pertinentes ao controle do uso de agrotóxicos e biocidas, que pudessem respeitar as
particularidades regionais.
Considerações Finais
O movimento de agricultura alternativa, deflagrado também no Brasil a partir do
final da década de 1970, exprimiu ideias ecologistas disseminadas em diversos países,
cujo norte era uma dura crítica ao modelo desenvolvimentista que se disseminava pelo
mundo, à custa de graves impactos de ordem social e ambiental. No Brasil, tal
3Participaram do evento representantes dos seguintes estados brasileiros: Espírito Santo, Goiás,
Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do
Sul, Santa Catarina e São Paulo. Informações retiradas dos Anais do II Encontro Brasileiro de Agricultura
Alternativa, Rio de Janeiro, 1985, p. 305 e 306.
movimento se apresentou com forte oposição às estruturas políticas e sociais, buscando
promover mudanças estruturais nos processos produtivos nacionais. Defendia-se uma
produção autônoma, ambientalmente sustentável e que fosse capaz de diminuir as
desigualdades existentes entre grandes e pequenos produtores. Ênfase era dada ao papel
que as ciências naturais, sobretudo a agronomia, teriam na formulação de teorias e
métodos para a disseminação de uma agricultura natural.
Assuntos debatidos amplamente em nossa sociedade atual já eram apontados
àquele momento, e, embora o movimento de agricultura alternativa, incluindo a
orgânica, tenha crescido consideravelmente desde então, o cenário agrícola brasileiro
apresenta muitas continuidades, como a liderança mundial no uso de agrotóxicos, a
desigualdade no campo, contaminação do meio ambiente por meio do uso excessivo e
não seguro de aditivos químicos, dentre outros problemas que, infelizmente, seguem
caracterizando o modelo agrícola de nosso país.
Fontes documentais
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https://aba-agroecologia.org.br/download/anais-do-ii-encontro-brasileiro-de-agricultura-
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