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SANTO AGOSTINHO E A INSTRUÇÃO DOS CATECÚMENOS: A
BÍBLIA COMO FONTE FORMATIVA
SOUZA, Mariana Rossetto de (PIC/UEM)1
PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM)2
Este trabalho tem como principal preocupação apresentar a concepção agostiniana de
educação presente na obra “A instrução dos catecúmenos: Teoria e prática da catequese”,
particularmente em sua relação com a Bíblia, que para Santo Agostinho (354-430)
representava a fonte cristã a ser utilizada na formação do homem santificado. Tal estudo
justifica-se quando se considera o papel da catequese na formação do homem cristão, bem
como a importância da Bíblia para o cristianismo. Além disso, vale ressaltar a importância de
Santo Agostinho, considerado o grande mestre cristão, de modo que sua influência chega até
os dias de hoje.
Na busca por esse entendimento, é importante primeiramente contextualizar o
momento no qual a obra “A instrução dos catecúmenos: Teoria e prática da catequese” foi
elaborada, pois isso possibilita compreender a intenção de Santo Agostinho ao escrevê-la. Ele
viveu em um período no qual o Império Romano estava em processo de dissolução e a Igreja
Cristã era a única instituição organizada que tinha condições de assumir o controle daquela
sociedade. A Igreja buscou, a partir dessa situação, direcionar o homem, que estava em crise
em função das transformações que estavam acontecendo.
Santo Agostinho é considerado um dos nomes mais importantes nesse processo de
consolidação da Igreja. Ele busca, com suas obras, fundamentar o ideal formativo cristão,
apontando caminhos para o homem, ao qual atribuía o estado de degradação e afirmando que
ele poderia se regenerar e ser feliz se adotasse a conduta de vida proposta pelo cristianismo.
A temática pedagógica, dessa maneira, está presente na obra agostiniana como um
todo, e dentre elas ganha destaque “A instrução dos catecúmenos: Teoria e prática da
catequese”, tratado teórico e prático no qual Santo Agostinho apresenta o processo de
formação inicial pelo qual o homem deveria passar para que se tornasse cristão. Nessa obra,
1 E-mail: [email protected] 2 E-mail: [email protected]
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Santo Agostinho apresenta a Bíblia como fonte que deveria ser utilizado pelo catequista ao
instruir os catecúmenos na vivência cristã.
Para entender o pensamento de Santo Agostinho no que se refere aos textos tidos
como sagradas pelos cristãos, é importante resgatar alguns fatos de sua vida. Antes de se
converter ao cristianismo, em 386 d.C., ele viveu uma vida que passou a considerar
pecaminosa depois de convertido, pois buscava a felicidade somente na materialidade e nos
prazeres corporais, o que para ele o distanciava de Deus, verdadeira fonte de felicidade.
Aos 18 anos, leu Hortensius, de Cícero, e afirma que a partir dessa leitura foi
despertado para o “amor à sabedoria”, passando a buscar a Verdade (MARROU, 1957). Nessa
busca, voltou-se para a Bíblia, mas decepcionou-se, pois considerou sua linguagem rústica
quando comparada ao estilo ciceroniano:
Em vista disso, decidi dedicar-me ao estudo da Sagrada Escritura, para a conhecer. Vi ali algo encoberto para os soberbos e obscuro para as crianças, mas humilde a princípio e sublime à medida que se avança e velado de mistérios; e eu não estava disposto a poder entrar nela, dobrando a cerviz à sua passagem. Contudo, ao fixar nela a atenção, não pensei o que agora estou dizendo, mas simplesmente me pareceu indigna de ser comparada com a majestade dos escritos de Cícero. Meu orgulho recusava sua simplicidade, e minha mente não lhe penetrava o íntimo (AGOSTINHO, 2008, p. 68).
O que estava ali escrito só começou a se tornar compreensível para ele, em seu sentido
espiritual, a partir do contato que teve com o bispo Ambrósio, em Milão:
Pareceu-me, de bom início, que seus ensinamentos podiam ser defendidos e que as afirmações da fé católica – que eu julgava impotente contra os ataques maniqueus – não eram absolutamente temerárias, principalmente depois de me serem explicados uma, duas e mais vezes, as passagens obscuras do Velho Testamento que, interpretadas no sentido literal, me davam a morte. Assim, interpretados no sentido espiritual muitos dos textos daqueles livros, comecei a repreender aquele meu desespero, que me levava a crer na impossibilidade de resistir aos que aborreciam e zombavam da lei e dos profetas (AGOSTINHO, 2008, p. 116).
Principalmente depois de convertido, Santo Agostinho dedicou-se ao estudo da Bíblia,
tentando compreender a mensagem que ela transmitia: “Ó Senhor, aperfeiçoa-me e revela-me
o sentido desses mistérios” (AGOSTINHO, 2008, p. 259). Buscou apoio nas idéias platônicas
para interpretar a educação ali proposta e com o passar do tempo é que seu pensamento
pedagógico foi assumindo perfil próprio (PEREIRA MELO, 2009).
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A Bíblia passou a representar, em sua concepção, o centro de toda a doutrina cristã, de
modo que ele a considerava “[...] a Suma de toda verdade, a fonte de toda doutrina, o centro
de toda cultura cristã e de toda vida espiritual; sua teologia é diretamente bíblica e sua
catequese não o é menos” (MARROU, 1957, p. 58).
Para Santo Agostinho, era por meio da Bíblia que a Igreja podia fazer-se conhecer e
era ela que possibilitava o conhecimento de Deus, que considerava necessário para a salvação
do homem (MARROU, 1957). Entretanto, acreditava que, apesar de ser acessível a todos
graças à simplicidade de sua linguagem, ela só era compreendida em seu sentido espiritual
pelos que tivessem uma conduta de vida compatível com o cristianismo:
Por isso, persuadido de nossa impotência para achar a verdade só por meio da razão, e que para isso nos é necessária a autoridade das Sagradas Escrituras, comecei a crer que nunca terias conferido tão soberana autoridade a essas Escrituras em todo o mundo, se não quisesses que crêssemos e te buscássemos por elas. [...] Pela clareza da linguagem e sua simplicidade do estilo, ela se abre a todos e, no entanto, estimula a reflexão dos que não são levianos de coração. Recebe a todos em seu vasto seio, mas não deixa ir a ti, por caminhos estreitos, senão um pequeno número; muito mais, porém, do que seriam se ela não tivesse essa elevada autoridade, e não atraísse as turbas ao regaço de sua santa humildade (AGOSTINHO, 2008, p. 125, 126).
Assim sendo, segundo Santo Agostinho, o homem deveria ser instruído na vivência
cristã e essa instrução deveria passar por uma narração completa dos fatos bíblicos. Ele divide
a narração catequética em duas etapas: a narratio, que é a exposição dos acontecimentos
salvíficos, visando despertar a fé do homem, e a expectatio, que é a esperança do homem na
ressurreição (PAIVA, 2005).
A narração, em sua concepção, devia começar pelo início dos tempos, ou seja, com a
criação do mundo por Deus, e chegar até os tempos atuais da Igreja. Entretanto, não havia
necessidade de que todos os fatos fossem explicados detalhadamente, de modo que os
acontecimentos considerados mais admiráveis é que deveriam ser destacados:
Tomemos tudo sumária e globalmente, escolhendo nesses artigos os fatos mais admiráveis, que se ouvem com maior prazer, para apresentá-los como em pergaminhos, desenrolando-os e explicando-os lentamente: não convém subtraí-los imediatamente à vista e sim oferecê-los ao exame e admiração do espírito dos ouvintes. Quanto ao resto, deve ser percorrido rapidamente, e inserido no contexto (AGOSTINHO, 2005, p. 43).
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Esses acontecimentos, para Santo Agostinho, revelavam um mesmo e único desígnio
de amor, presente na pessoa de Cristo (PAIVA, 2005). Dessa maneira, ao narrar os fatos da
Bíblia, o catequista deveria relacioná-los a esse fim buscado pela doutrina cristã que é o amor:
A narração deve começar em Deus criou todas as coisas muito boas e, como dissemos, deve chegar aos tempos atuais da Igreja, apresentando as causas e as razões de cada um dos fatos e atos que narramos; por meio dessas causas e razões, relacionaremos tudo com o fim soberano do amor, de que se não deve desviar o olhar de quem quer que faça ou diga algo (AGOSTINHO, 2005, p. 52).
Santo Agostinho visava fundamentar a fé, provocar a esperança e cultivar o amor e,
utilizando-se da narração dos acontecimentos bíblicos, estimular no homem a confiança na
realização futura (PAIVA, 2005). Em suas palavras: “Por esse amor, portanto, como por um
alvo proposto, pelo qual digas tudo o que dizes, o que quer que narre faze-o de tal forma que
aquele que te ouve, ouvindo, creia e, crendo, espere e, esperando, ame” (AGOSTINHO, 2005,
p. 49).
Para ele, o que foi narrado na Bíblia antes da vinda de Cristo tinha por objetivo
instruir o homem e anunciar o que estava por vir. Santo Agostinho esperava que, a partir
disso, os homens acreditassem que, da mesma forma que os fatos ali prescritos se cumpriram,
mesmo tendo sido escritos antes de acontecerem, o que ali era proclamado para o futuro
também iria acontecer. Com isso, pretendia que os homens vivessem de acordo com o
preceito do amor e perseverassem em uma vida cristã, afirmando que assim, ao serem
julgados por Deus, mereceriam o descanso eterno na cidade celeste, onde poderiam ser
finalmente felizes.
Nesse sentido, a Bíblia aparecia como um referencial formativo, sendo que Cristo
representava o exemplo de como os homens deveriam amar a Deus e ao próximo e o modelo a
ser seguido pelo homem em sua conduta cristã:
Manifestando o Novo Testamento da herança eterna, no qual o homem foi renovado pela graça de Deus para viver uma vida nova, isto é, a vida espiritual, o Senhor Cristo feito homem desprezou todos os bens terrenos para mostrar que deveriam ser desprezados, e suportou todos os males terrenos que mandava que se suportassem, para que nem naqueles se procurasse a felicidade, nem nesses se temesse a infelicidade. E o fez para mostrar como velho o Primeiro Testamento, no qual o povo carnal – exceto uns poucos patriarcas e profetas e alguns santos escondidos – seguia o homem antigo e vivia carnalmente; e desejava do Senhor prêmios carnais, e
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os aceitava como figura dos bens espirituais (AGOSTINHO, 2005, p. 101, 102).
O objetivo da instrução catequética era, portanto, preparar o homem e formá-lo de
acordo com a doutrina cristã. Para isso, Santo Agostinho propunha ao homem um processo de
peregrinação, no qual, seguindo o exemplo do que a Bíblia expressava, deixasse de buscar a
felicidade nos bens temporais - pois em sua concepção eles eram fonte de uma falsa
felicidade, já que eram passageiros - e se voltasse para os bens eternos e imutáveis, sendo que
por meio “dos testemunhos dos Livros divinos, deve-se mostrar-lhe o fim estabelecido para os
que perseveram em tal vida [...]” (AGOSTINHO, 2005, p. 54).
Ele afirmava que se o homem buscasse o aperfeiçoamento durante sua vida poderia
alcançar o descanso eterno prometido pelo cristianismo: “Tu, ao contrário, porque procuras o
verdadeiro descanso prometido aos cristãos depois desta vida, prová-lo-ás, suave e
encantador, ainda aqui entre os pesares amaríssimos desta vida, se acatares os mandamentos
daquele que o prometeu” (AGOSTINHO, 2005, p. 81).
De acordo com ele, quem seguisse essa conduta tinha a possibilidade de encontrar o
que procurava, a saber, o próprio Deus: “Pois cremos o que não vemos a fim de, pelos
próprios méritos da fé, merecermos ver e atingir aquilo que cremos” (AGOSTINHO, 2005, p.
111). Assim, acredita que o homem teria condições de chegar à cidade celeste, onde poderia
encontrar o descanso e a felicidade na contemplação de Deus:
Te exaltarei por tudo o que descobrir em teus livros; que eu ouça a voz de teus louvores. Faz que eu me inebrie de ti, e que eu contemple as maravilhas de tua lei, desde o começo dos tempos, quando fizeste o céu e a terra, até que partilharemos do reino perpétuo de tua cidade santa (AGOSTINHO, 2008, p. 259).
A Bíblia, portanto, representava, para Santo Agostinho, o referencial formativo a ser
utilizado na instrução dos catecúmenos pois, ao relacionar os fatos nela apresentados à
finalidade do cristianismo, que é o amor, o catequista visava educar o homem na conduta
cristã, de modo que ele, a exemplo do que estava ali escrito, deixasse de buscar a felicidade
nos bens temporais e se voltasse para Deus, considerado fonte da verdadeira felicidade. Dessa
maneira, criavam-se as condições para que o homem fosse rumo ao processo de santificação
buscado pelo cristianismo.
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REFERÊNCIAS AGOSTINHO. A instrução dos catecúmenos: teoria e prática da catequese. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Martin Claret, 2008. (Coleção A obra-prima de cada autor). MARROU, H. Santo Agostinho e o agostinismo. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1957. PAIVA, H. V. Introdução. In: AGOSTINHO. A instrução dos catecúmenos: teoria e prática da catequese. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2005. PEREIRA MELO, J. J. Santo Agostinho e a educação como um fenômeno divino. Simpósio de Educação em Santo Agostinho. Maringá: mimeo, 2009.