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Segurança Internacional (Celso Amorim)
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uma grande alegria para mim estar entre os jovens. Isso um fatorde inspirao para que o pensamento no se esclerose. tambm
uma honra proferir esta Aula Magna em um dos principais centros
de Relaes Internacionais no s do Brasil, mas da Amrica do Sul.
Ao lado de outras instituies, como a Universidade de Braslia, o
Instituto de Relaes Internacionais da Pontifcia Universidade Ca-
tlica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) teve um papel de destaque na
criao e consolidao deste campo disciplinar no Brasil. O Instituto
reconhecido pela produo de conhecimento de qualidade sobre
nossa insero internacional e tambm pelo estmulo reflexo crti-
ca sobre o panorama mundial.
***
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
* Texto recebido em 11 de outubro de 2013 e aprovado para publicao em 22 de outubro de 2013.
Este texto uma verso revisada da Aula Magna proferida para os cursos de graduao e ps-gradua-
o do Instituto de Relaes Internacionais da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro
(IRI/PUC-Rio), em 11 de outubro de 2013.
** Ministro de Estado da Defesa da Repblica Federativa do Brasil desde agosto de 2011.
CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 35, no 1, janeiro/junho 2013, p. 287-311.
Contribuio Especial
Segurana
Internacional: Novos
Desafios para o
Brasil*Celso Amorim**
Vivemos uma poca pontuada por incgnitas e paradoxos. Uma am-
pla redistribuio do poder mundial, de efeitos em princpio positi-
vos, convive com tendncias preocupantes de desestabilizao. Dois
fatos que vieram a pblico na semana passada sugerem as dificulda-
des que alguns desses processos colocam para certas categorias com
as quais estamos acostumados a pensar o mundo.
Na segunda-feira, dia 30 de setembro de 2013, um escritor alemo de
origem blgara, que se encontrava em Salvador da Bahia, foi impedi-
do de embarcar em um voo com destino a Miami. Embora seu visto
estivesse aparentemente em ordem, ele teve que retornar diretamente
para a Alemanha. Na ausncia de maiores explicaes, essa deciso
foi atribuda ao fato de haver ele organizado, h algumas semanas,
um abaixo-assinado contra o monitoramento de dados de cidados
alemes pela Agncia Nacional de Segurana dos Estados Unidos
(VICTOR, 2013).
Um dia antes desse episdio, o Ministro da Defesa britnico declarou
que a Gr-Bretanha construir uma capacidade especfica de con-
tra-ataque no espao ciberntico e, se necessrio, de ataque no espa-
o ciberntico, no marco de um amplo espectro de capacidades mili-
tares (FORRESTER, 2013). Essa afirmao foi considerada, pelo
Financial Times, a primeira vez que uma grande potncia faz um pro-
nunciamento pblico e formal nesse sentido (BLITZ, 2013).
Embora os dois fatos sejam bastante distintos, a linha que separa o
monitoramento de dados e a guerra ciberntica tnue. De acordo
com as informaes disponveis, o nmero de ocorrncias de inter-
ceptao eletrnica e telefnica alcana a casa das dezenas, ou cente-
nas, de bilhes. J as ocorrncias conhecidas de ataque ciberntico,
como os que se abateram sobre a Estnia em 2007 e sobre o programa
de enriquecimento nuclear iraniano entre 2009 e 2010, so muito me-
nos numerosas (ao que se saiba).
Celso Amorim
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
O monitoramento de dados e a guerra ciberntica tm em comum o
emprego de instrumentos de altssima tecnologia para atividades que
importam em graves violaes de soberania. Quando o objeto do mo-
nitoramento vai alm da mera observao, e visa a tomada de conhe-
cimentos tecnolgicos, a fronteira entre a espionagem e a guerra fica
ainda mais difcil de ser determinada. Conceitualmente, no haveria
diferena, salvo talvez no que diz respeito a danos imediatos, entre
um ato de espionagem, de busca de informaes econmicas e tecno-
lgicas, e um ataque tradicional para a obteno de um recurso eco-
nmico.
O monitoramento e a guerra ciberntica podem alvejar tanto pases
tidos como hostis ou como ameaas imediatas quanto pases amigos
e aliados. J sabemos que esse foi o caso na interceptao de dados.
No se pode excluir que o mesmo ocorra com ataques cibernticos,
provenientes de qualquer quadrante. Essas duas atividades ilustram
em tons muito fortes alguns dos novos desafios da segurana interna-
cional.
No estou falando de algo abstrato. Recentemente, nossos cidados,
nossas empresas, nossa rede de postos diplomticos e mesmo a Presi-
dncia da Repblica foram alvos de intruso. E a justificativa de
combate ao terrorismo, oferecida para a coleta de informaes, ri-
gorosamente infundada e descabida. Em vista disso, e da ausncia de
explicaes e compromissos adequados, a Presidenta Dilma Rous-
seff adiou sua visita de Estado a Washington.
A reao do Brasil teve tambm uma dimenso multilateral. Cito as
palavras da Presidenta na abertura da 68a
Assembleia Geral das Na-
es Unidas, no ms passado: Este o momento de criarmos as con-
dies para evitar que o espao ciberntico seja instrumentalizado
como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos
ataques contra sistemas e infraestrutura de outros pases
(DISCURSO..., 2013).
Segurana Internacional: Novos Desafios para
o Brasil
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
O desafio aqui no apenas poltico, mas tambm analtico da a
importncia da participao da universidade nessa reflexo. A ciber-
ntica tem sido tratada por muitos autores como uma nova dimenso
da guerra, para alm das dimenses terrestre, naval, area e espacial.
Tambm se fala na ciberntica como um vasto espao sem fronteiras,
comparvel ao mar: um domnio onde no se podem traar limites fi-
xos, que serve como rota de transporte e como depsito de recursos.
A informao seria o principal recurso transportado e depositado na
dimenso ciberntica.
Como em outras reas, caso por exemplo do meio ambiente, este tem
sido um campo propcio para a tese de que os Estados perderiam es-
pao para atores privados ou no governamentais. preciso tomar
com um gro de sal, porm, as teses que anteveem um declnio do
Estado e a ascenso de atores no estatais no campo ciberntico. Nos
episdios recentes a que aludi, foram aes de Estado que desperta-
ram preocupaes em todos ns.
Os armamentos cibernticos podem ser usados para multiplicar a
destrutividade de armamentos convencionais ou para facilitar o seu
uso durante um conflito. A infraestrutura crtica de um pas pode ser
afetada de muitas formas pelos ataques cibernticos, desde reas sen-
sveis da soberania nacional at reas que podem desorganizar a vida
da sociedade, como os sistemas bancrio, meteorolgico, eltrico ou
hospitalar. Embora seja uma ameaa cronologicamente nova, a guer-
ra ciberntica parece incorporar-se com rapidez antiga lgica do
sistema de Estados.
David Rothkopf (2013), editor da revista Foreign Policy, j sugeriu
estarmos entrando em uma nova poca de conflito, que chama em in-
gls de Cool War, em oposio Guerra Fria, ou Cold War. Segundo
ele, a Cool War tem dois sentidos. Por um lado, menos fria do que
a Guerra Fria, pois os ataques cibernticos podem ser desfechados
constantemente contra os Estados-alvo, sem que essa ao ofensiva
Celso Amorim
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
resulte necessariamente na ecloso de uma guerra convencional. Por
outro, essa guerra cool, ou descolada, no sentido que os jovens
usam o termo, pois emprega equipamentos de ltima gerao e mate-
rial humano tambm de ltima gerao.
A esse propsito, possvel traar um paralelo entre os armamentos
cibernticos e os veculos areos no tripulados, conhecidos em in-
gls como drones: ambos so equipamentos de altssima tecnologia,
que geram poucos riscos humanos e polticos para o atacante; e am-
bos so passveis de serem empregados com certo grau de sigilo. Na
verdade, os drones potencializam uma ameaa que j existia com os
bombardeios a grandes altitudes, ditos de preciso. (Um exemplo
que se notabilizou durante a Guerra do Kosovo, no final dos anos
1990, foi um ataque que se destinava a destruir um comboio militar
srvio, mas que, na verdade, vitimou uma caravana de cidados koso-
vares, que a OTAN se havia proposto a proteger.)
Essa assimetria tecnolgica em favor dos pases desenvolvidos nes-
ses novos domnios militares enfraquece as restries polticas ao
emprego da fora e incentiva a impunidade dos agressores. Nos dias
de hoje, um dos principais fatores de desestmulo guerra receber
os corpos embrulhados dos seus concidados (os body bags). Quan-
do se faz uma guerra distncia, esse desestmulo natural contra o
emprego da fora tende a desaparecer, ou pelo menos a diminuir mui-
to. A banalizao da violncia por parte dos detentores dos arma-
mentos de ponta uma ameaa a se temer.
Esse seria o sentido mais apropriado e tambm o mais inquietante
que se poderia dar expresso guerra assimtrica, frequentemente
empregada na literatura especializada de forma altamente seletiva
para designar as ameaas priorizadas pelos pases desenvolvidos,
provenientes de grupos terroristas, pirataria e crimes transnacionais.
Em tudo isso h uma ideia de que o conflito entre os Estados seria
algo do passado.
Segurana Internacional: Novos Desafios para
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
No caso especfico dos ataques cibernticos, caberia uma indagao
(que fao com esprito acadmico): no seria este o momento para se
pensar em um tratado universal de proibio do primeiro uso de
armamentos cibernticos por qualquer pas, isto , um tratado de
no first use? Aqueles que esto familiarizados com a problemtica
nuclear sabem que h muito tempo existe essa proposta de se chegar a
um acordo sobre o no primeiro uso das armas nucleares. Se nada for
feito, o risco que corremos, diante da escalada contnua de arsenais
ofensivos que, em algum momento, venha a ser proposto um trata-
do que congele as disparidades do poder militar ciberntico, nos mol-
des do que ocorreu com o Tratado de No Proliferao Nuclear (que
distingue entre os haves e os have-nots).
Do ponto de vista da estabilidade internacional, o monitoramento de
dados e a guerra ciberntica representam graves fatores de desestabi-
lizao. Os desafios colocados pela intruso revelam o emprego de
tecnologias militares novas para a perseguio de objetivos estratgi-
cos antigos pelas principais potncias.
Essa dinmica de competio exacerba padres de conflito e tem re-
percusso para o conjunto do sistema internacional. Os casos do es-
critor blgaro-alemo que embarcava para a Amrica do Norte e do
cidado brasileiro David Miranda, detido durante passagem pela
Gr-Bretanha, atestam o recrudescimento das barreiras ao livre fluxo
de pessoas e os abusos contra a liberdade cometidos em nome da se-
gurana nacional. E a criao de aparatos globais de intruso e ataque
refora o poderio estratgico das principais potncias e acirra a pol-
tica de poder.
***
Esses novos fatores de instabilidade da segurana internacional se
juntam a outros, presentes h mais tempo no panorama global, como
a existncia de grandes estoques de armamentos nucleares, as dispu-
tas de natureza econmica, como a competio por recursos naturais.
Celso Amorim
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
Em seu conjunto que no me proporei a inventariar , so esses os
motivos de inquietao que contrastam com o auspicioso processo de
redistribuio do poder mundial, que mencionei en passant, a multi-
polaridade.
Talvez a principal incgnita desse processo se refira possibilidade
de que ele conduza a uma ordem multipolar em que a nota dominante
seja a cooperao. Ou, em outras palavras, uma multipolaridade sub-
metida a regras efetivamente multilaterais.
Este , desde logo, um valor pelo qual devemos trabalhar.
A despeito da viso otimista sobre a prevalncia da cooperao sobre
o conflito na poltica internacional, que emergiu ao final da Guerra
Fria, o conflito segue sendo uma caracterstica do relacionamento
entre os pases. Como o demonstra a sombra da conflagrao interes-
tatal lanada sobre o ambiente at ento neutro da ciberntica (ao me-
nos na aparncia), o conflito no s persistente como pode ter con-
sequncias tangveis para o bem-estar e a segurana da populao.
Essa viso realista (no sentido acadmico da palavra) deve ser bem
compreendida. Martin Wight (1978, p. 294) encerra seu clssico li-
vro Power Politics com uma frase lapidar: O realismo pode vir a ser
algo muito bom: tudo depende de significar o abandono de ideais ele-
vados ou de expectativas ingnuas. Um realismo que no perca o
contato com o idealismo apropriado para a reflexo sobre os dile-
mas de nossa presena em um mundo em transio.
Todos conhecem bem o fato de que o esgotamento da ordem bipolar
da Guerra Fria gerou o que foi chamado por uns de momento unipo-
lar, e por outros de iluso unipolar. No incio do sculo XXI, e es-
pecialmente na esteira dos atentados de 11 de setembro, a unipolari-
dade conheceu seu auge.
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
Ao contrrio do que pretenderam alguns de seus idelogos, a prima-
zia da superpotncia remanescente no gerou estabilidade no siste-
ma. Como a invaso do Iraque em 2003 demonstraria, a extrema con-
centrao de poder que levou um Ministro do Exterior da Frana,
ainda nos anos 1990, a criar o neologismo hiperpotncia era fonte
de instabilidade em nvel global. At porque era um incentivo ao uso
fcil da fora.
O estmulo aos elementos incipientes da multipolaridade foi a res-
posta que o Brasil e outros pases procuraram oferecer aos riscos do
desequilbrio unipolar. A oposio clara guerra do Iraque e a defesa
da integridade do sistema multilateral das Naes Unidas refletiam,
sobretudo, no nosso caso, a preocupao com aspectos ticos e de de-
fesa do direito internacional. No deixou de conter, tambm, elemen-
tos da busca de um melhor equilbrio do poder mundial.
Da um esforo de articulao com alguns pases que tinham posio
igual ou parecida com a nossa nesse tema to central para a paz e a se-
gurana. To logo assumiu o governo, em 2003, o presidente Lula as-
sociou-se aos presidentes Jacques Chirac, da Frana, e Gerhard
Schrder, da Alemanha, dois lderes da oposio guerra. Eu mes-
mo, como Chanceler, procurei unir minha voz de outros ministros,
como Igor Ivanov, da Rssia, Joschka Fischer, da Alemanha, e Do-
minique de Villepin, da Frana, todos crticos da ao unilateral con-
tra o Iraque. (Nossas posies com a China nesse caso no divergiam,
mas a China tinha uma atitude mais voltada para seu interesse mais
prximo at ento, pelo menos. Sua atitude, por isso, era menos
propositiva que a Alemanha, a Frana e a Rssia.)
Em outras reas, como o comrcio internacional, os pases em desen-
volvimento buscaram trabalhar pela reduo das desigualdades. Por
meio de uma coalizo de pases em desenvolvimento criada pelo Bra-
sil o G20 , defendemos com vigor a liberalizao do comrcio
agrcola no marco da Rodada de Doha da Organizao Mundial do
Celso Amorim
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
Comrcio e impedimos que um acordo ditado pelos interesses exclu-
sivos dos Estados Unidos e da Unio Europeia fosse imposto aos de-
mais. Na esteira da reunio ministerial de Cancun, de agosto de 2003,
pases como ndia, Brasil e, mais recentemente, a China passaram a
dividir a mesa de negociao com as duas superpotncias do
comrcio.
Criou-se, assim, uma espcie de multipolaridade nas negociaes
comerciais. Embora as negociaes da Rodada de Doha ainda no te-
nham podido ser concludas, estou seguro de que o resultado final de
qualquer acordo global de comrcio no poder mais ser atingido
sem que os interesses dos pases em desenvolvimento sejam levados
em conta, como ocorria no passado. Vi recentemente, no noticirio,
que o compromisso de eliminao total dos subsdios exportao,
que o G20 obteve na reunio ministerial de Hong Kong, em novem-
bro de 2005, ainda uma baliza nas negociaes sobre o futuro da
Rodada de Doha.
Desejo destacar duas iniciativas em que pases emergentes cooperam
diretamente em favor de um mundo mais multipolar, e creio que es-
sas iniciativas tm muito a ver com as preocupaes do Instituto de
Relaes Internacionais. A mais visvel delas o agrupamento
BRICS, composto por Brasil, Rssia, ndia, China e frica do Sul.
Como sabido por todos, os BRICS na poca, ainda sem a frica
do Sul foram reunidos pela primeira vez em uma nova sigla por um
economista do Goldman Sachs em 2001. A passagem de uma sigla
do mercado financeiro para um grupo poltico que busca um papel
central na construo de um mundo menos sujeito hegemonia no
um fato banal. Para aqueles que gostam de filosofia, eu dizia que ele
deixou de ser um grupo em si e se tornou um grupo para si.
No bvio mobilizar as estruturas polticas ou burocrticas de pa-
ses do peso e da estatura de Brasil, Rssia, ndia e China (os membros
originais) em torno de novas iniciativas. No caso do ento BRIC, o
Segurana Internacional: Novos Desafios para
o Brasil
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
primeiro gesto foi do Ministro russo Sergei Lavrov, que me props
que articulssemos um encontro margem da Assembleia Geral de
2006. Esse encontro, realizado em uma sala acanhada do prdio da
ONU, foi um primeiro ensaio, j que o representante chins se limi-
tou a ler uma declarao. Quanto ao indiano, no era o titular da pasta
do Exterior. Quem compareceu foi o Ministro da Defesa, Pranab
Mukherjee, que mais tarde se tornaria, sucessivamente, Ministro do
Exterior, da Fazenda e Presidente, mas que, poca, no se engajou
profundamente na discusso.
No ano seguinte, 2007, ofereci um almoo de trabalho na residncia
da ento Representante Permanente do Brasil junto s Naes Uni-
das, Embaixadora Maria Luiza Viotti. Foi a que os ministros toma-
ram a deciso, sujeita a consultas posteriores, de realizar uma reunio
em um dos pases-membros do grupo, o que obviamente elevaria o
seu perfil.
A primeira reunio de chanceleres ocorreu em Ecaterimburgo, em
2008. No ano seguinte, 2009, realizou-se, tambm na Rssia, a pri-
meira cpula presidencial. Esta foi seguida, em 2010, pela cpula
presidencial em Braslia. A partir da, as reunies vm ocorrendo
anualmente.
Ao longo desse processo, os assuntos abordados multiplicaram-se e
aprofundaram-se, passando a envolver, entre outros, temas sobre
economia, energia e clima. Os comunicados conjuntos dos BRICS
contm importantes formulaes tambm sobre temas relativos paz
e segurana, e referem-se tambm concretamente a situaes de cri-
ses, como as da Sria, Lbia e Palestina, que no podem ser desconhe-
cidas pelas demais potncias. de se notar tambm que, a partir de
2008, os BRICS passaram a se coordenar de forma muito efetiva no
mbito do G20 Financeiro.
A despeito de diferenas pontuais importantes (a mais notvel delas
se refere reforma do Conselho de Segurana), a consolidao dos
Celso Amorim
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
BRICS representou o fim da poca em que duas ou trs potncias oci-
dentais, membros permanentes do Conselho, podiam reunir-se em
uma sala, acertar sua posio e ento fazer declaraes em nome da
comunidade internacional. Hoje creio que isso mais difcil tanto
na rea econmica, quanto na poltica.
Na econmica, eu mesmo vivi um episdio curioso, porque, quando
comearam essas articulaes sobre o G20 Financeiro, eu fiz uma
palestra na Sciences Po e disse que o G8 estava morto.1
Fui criticads-
simo por todos os jornais nacionais. Trs ou quatro meses depois, o
Presidente dos Estados Unidos disse com palavras talvez mais sua-
ves a mesma coisa, ao afirmar que o G20 tinha se tornado o principal
rgo da governana econmico-financeira do mundo.
To visveis quanto as iniciativas dos BRICS, entretanto, so seus
crticos. De um lado, costumam argumentar que a heterogeneidade
de seus membros dificulta o empreendimento de aes conjuntas.
Essa heterogeneidade realmente existe em vrios aspectos: dois so
membros permanentes do Conselho de Segurana, os outros trs so
aspirantes a essa condio; alguns tm armas nucleares, outros as re-
cusaram explicitamente. Mas tambm existem afinidades e, sobretu-
do, interesses comuns. A recente deciso de criao de um banco de
desenvolvimento do grupo parece-me eloquente a esse respeito.
Tambm tm sido importantes as discusses em outras reas, por
exemplo sobre o uso de moedas nacionais em comrcio. preciso
lembrar tambm que, embora com composio um pouco diferente
(sem a Rssia), um grupo semelhante, o BASIC, tem um papel deci-
sivo nas negociaes sobre o clima.
De outro lado, alm dos crticos que apontam para a heterogeneidade
dos BRICS e dizem que ele no pode funcionar, h os crticos que
acreditam que o grupo funciona, mas de forma negativa. Esses crti-
cos costumam apontar o grupo, com certo alarmismo, como um eixo
de oposio ao Ocidente. No avaliam bem as situaes em que os in-
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
teresses de um pas se ligam ao interesse mais amplo de proteo do
sistema. Foi esse, por exemplo, na minha opinio, o caso do papel
construtivo desempenhado pela Rssia ao propor a eliminao do es-
toque de armas qumicas da Sria e afastar os riscos de um ataque uni-
lateral imediato quele pas.
O trabalho pelo reequilbrio do poder mundial no se faz com a re-
nncia a ideais caros ao Brasil. O Frum de Dilogo IBAS a melhor
prova disso. (No falarei aqui sobre a integrao da Amrica do Sul,
que objeto de um esforo crucial nesse sentido.) O IBAS uma ali-
ana entre ndia, Brasil e frica do Sul, fundada na identidade demo-
crtica, multicultural, multitnica e multirracial desses trs grandes
pases do mundo em desenvolvimento. Comeou a ser articulado j
no dia 2 de janeiro de 2003, durante um encontro que mantive com a
ento Ministra do Exterior da frica do Sul, Nkosazana Zuma. Seis
meses depois, em junho daquele ano, nossos trs pases formaliza-
ram sua aliana com a Declarao de Braslia.
Os pases do IBAS caracterizam-se pela capacidade de combinar a
defesa firme do princpio da no interveno com a sensibilidade
para o apelo universal dos direitos humanos, nos mais variados temas
(direitos civis e polticos, sociais, culturais etc.). Isso se deve expe-
rincia histrica de cada um deles na luta contra o colonialismo, o au-
toritarismo e o apartheid. Essa singularidade do IBAS uma das ra-
zes pelas quais cuidei sempre, em meu tempo na chefia do Itama-
raty, de preservar a identidade do IBAS em relao identidade dos
BRICS.
Logo que foi criado o IBAS, houve grande interesse da Rssia e da
China (e tambm da Unio Europeia) de manter um dilogo com esse
grupo. Naquela poca, ainda chamvamos o IBAS de G3, e havia a
ideia de transform-lo em um G4 (com a Rssia) ou um G5 (com
Rssia e China). O IBAS ganhou muita legitimidade, embora menos
proeminncia na mdia. A criao dos BRICS foi, em certo sentido, a
Celso Amorim
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
entrada da Rssia e da China no IBAS. Por isso mesmo o esforo de
manter a identidade do IBAS.
Desde sua criao, nossas sociedades vm entabulando um dilogo
sustentado em vrias reas. O capital negociador do IBAS pode ser
especialmente til em situaes de transio democrtica como algu-
mas das que hoje assistimos, e em outras situaes de crise no mun-
do. Costumo citar, como exemplo disso, o fato de que os pases do
IBAS foram os nicos pases em desenvolvimento no islmicos
convidados para a Conferncia de Annapolis de 2007 sobre a paz no
Oriente Mdio. Os prprios Estados Unidos tiveram a percepo so-
bre esse potencial negociador dos trs pases, e evidentemente no os
convidaram sem o apoio da Palestina e o consentimento de Israel.
O equilbrio entre a vertente mais pragmtica do BRICS e o vetor hu-
manista do IBAS indispensvel. E falando de um ponto de vista
acadmico ajuda a aproximar o realismo do idealismo, maneira de
Martin Wight.
***
A criao de uma multipolaridade com o sustentculo poltico-jur-
dico do multilateralismo o objetivo ltimo de grupos como o IBAS
e o BRICS. Um multilateralismo sem o esteio da multipolaridade
pode ser puramente ilusrio, e se limitar a refletir, no plano normati-
vo, uma situao de desequilbrio unipolar. Foi o que se viu no in-
cio dos anos 1990.
O risco de uma multipolaridade sem a ncora multilateral tem sido
ilustrado nos ltimos anos pelo desrespeito aos princpios da carta da
ONU no encaminhamento das crises da Lbia e da Sria. No primeiro
caso, o mandato de estabelecimento de uma zona de excluso area
para proteo da populao civil lbia foi invocado para justificar, em
ltima instncia, a derrubada do regime. No caso da Sria, as ameaas
de ataque militar unilateral, de consequncias imprevisveis, s no
Segurana Internacional: Novos Desafios para
o Brasil
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Contexto Internacional (PUC)Vol. 35 no 1 jan/jun 20131 Reviso: 08/07/2013
se concretizaram por um misto de circunstncias parlamentares e di-
plomticas.
A multipolaridade se presta, s vezes, a concepes enviesadas de
multilateralismo. Um professor da Sciences Po forneceu exemplo de
uma delas, em artigo publicado curiosamente no comeo deste
ms no Moscow Times. De acordo com seu raciocnio: Quanto
maior o nmero de pases com o poder de bloquear ou vetar iniciati-
vas internacionais, tanto mais difcil se torna o multilateralismo e
menos motivados os pases dominantes a cooperar (LADI, 2013).
Essa passagem evoca, de certa forma, o conceito, corrente nos anos
1990, de multilateralismo afirmativo. Este consistia, em traos ge-
rais, na legitimao multilateral praticamente automtica, pelo Con-
selho de Segurana, de iniciativas quer da superpotncia, quer de al-
guns de seus aliados e por ela endossadas.
Hoje, esse automatismo parece cada vez mais difcil. Diante dessa di-
ficuldade, h aqueles que argumentam que a existncia de consenso
entre alguns membros do Conselho de Segurana poderia justificar
uma ao unilateral por uma coalizo dos dispostos (coalition of
the willing). Um scholar norte-americano de Relaes Internacio-
nais defendeu h pouco, nas pginas do New York Times, essa atitude,
a propsito do bombardeio Sria, argumentando que a interveno
humanitria, mesmo que unilateral, seria no s legtima, mas tam-
bm legal, tendo em vista uma suposta evoluo do direito interna-
cional na matria (HURD, 2013).
De modo menos radical, mas com efeitos similares, o Ministro do
Exterior francs, Laurent Fabius, props, citando o Presidente Fran-
ois Hollande, uma frmula pela qual o consenso de trs membros
permanentes aliado, naturalmente, maioria dos votos seria sufi-
ciente para desencadear uma ao. Sugeriu, para tanto, um cdigo
de conduta pelo qual os membros permanentes do Conselho de Se-
gurana renunciariam ao uso do veto em situaes de morticnio em
Celso Amorim
300 CONTEXTO INTERNACIONAL vol. 35, no 1, janeiro/junho 2013
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massa (FABIUS, 2013). Fabius teve, ao menos, o bom senso de ex-
cluir dessa proposta situaes em que interesses nacionais vitais de
um dos cinco membros permanentes estivessem envolvidos. Claro
que, ao mesmo tempo que revela bom senso, revela o interesse pr-
prio desse pas-membro permanente do Conselho de Segurana de
no ver os seus interesses afetados ainda que se d uma situao tr-
gica, como a que ele mencionou.
No sou avesso a interpretaes criativas da Carta da ONU. Eu
mesmo propus algo que iria na linha da flexibilizao do veto. Mas,
nesses casos que mencionei, o que importa destacar so as resistn-
cias ainda existentes, nos dois lados do Atlntico Norte, concepo
de uma ordem multipolar assentada em uma governana global efi-
caz e reformada.
Essas reflexes no so estranhas aos desafios colocados pelas novas
tecnologias soberania nacional dos Estados. Sem o lastro de centros
independentes nas relaes internacionais, ser muito difcil articu-
lar iniciativas de normatizao do emprego das tecnologias de teleco-
municao e informao, de ntido uso dual. Uma multipolaridade
com o sustentculo multilateral tem muitos mritos em si mesmo.
Um deles que propiciaria melhores condies para que as novas
tecnologias militares de intruso sejam objeto de regulao interna-
cional, sem as assimetrias do passado.
***
Estamos acostumados a pensar o Brasil como um pas pacfico. E, de
fato, motivo de orgulho que, exceo da Segunda Guerra Mundi-
al, na qual fomos levados a participar por atos de agresso direta, s
tenhamos ido guerra h quase 150 anos atrs. Mas ser um pas pac-
fico no significa ser um pas passivo, para o qual tudo serve e qual-
quer coisa est bem. O Brasil tem uma vocao de defender com vi-
gor seus interesses, mas tem tambm uma vocao de ser um pas
provedor de paz. Isso algo mais que ser um pas pacfico.
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o Brasil
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Prover a paz significa adotar uma postura ativa frente s grandes
questes internacionais, e estar disposto a, dentro das possibilidades,
contribuir concretamente para a soluo das controvrsias. Uma or-
dem internacional baseada em uma melhor distribuio do poder en-
tre diferentes pases e regies ser mais aberta nossa influncia em
favor da paz.
Esta a viso que tem inspirado a insero internacional do Brasil
nos ltimos dez anos. E tambm minha viso pessoal que, estou
ciente, contrasta com outras vises a respeito da insero internacio-
nal do Brasil.
Poderia identificar ao menos duas outras perspectivas. A primeira o
isolacionismo, uma tendncia sempre forte em um pas de dimenses
continentais, afastado de outras grandes massas territoriais do plane-
ta, onde se situa a maioria das situaes de conflito. Essa perspectiva
de que no conosco, no da nossa conta, nos levaria, em lti-
ma instncia, a uma atitude de desinteresse em relao s grandes
questes da vida internacional. Eu mesmo, como Embaixador na
ONU, comentando a presidncia de um comit sobre o Kosovo que
coube ao Brasil exercer, recebi, de Braslia, a seguinte observao:
Mas o Kosovo muito longe do Brasil; a antiga Iugoslvia muito
longe do Brasil.
E eu me lembrei, a propsito se me permitem uma excurso liter-
ria , de um livro de John dos Passos, Manhattan Transfer, que me
impressionou muito. O livro se passa em torno do incio da Primeira
Guerra Mundial. Um dos seus captulos comea assim: Sarajevo. A
palavra ficou engasgada na sua garganta (DOS PASSOS, 1953, p.
217). Sarajevo era uma palavra totalmente desconhecida, mas estava
impressa em uma manchete de jornal e marcava o comeo da Grande
Guerra. Obviamente, os problemas do Kosovo, nos anos 1990, no
conduziram a nada similar, mas imaginar que esses problemas esto
distantes do Brasil ignorar a natureza global do mundo em que vive-
Celso Amorim
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mos hoje. E ignorar a histria mais remota, caso da Primeira Guerra
Mundial, que no chegou propriamente s nossas costas, mas envol-
veu o pas economicamente.
A segunda perspectiva sobre a insero internacional do Brasil a da
autolimitao, segundo a qual a presena externa do Brasil deve ob-
servar os limites traados por outras potncias. O pas no poderia, ou
no deveria, almejar participar da poltica global, a no ser marginal-
mente. Esta perspectiva, que tenho chamado de um crculo de giz
que ns traamos ao nosso prprio redor, se traduz em algumas ideias
bastante difundidas.
Uma delas o conceito de potncias mdias, que em certo momen-
to teve o sentido positivo de acentuar certo grau de proatividade, mas
que pode ser empregado em um sentido restritivo das possibilidades
de atuao de um pas com nossas dimenses e caractersticas.
Outra a doutrina da ausncia de excedente de poder, proposta origi-
nalmente no contexto dos anos 1980, e que seguiu sendo empregada,
em contexto histrico diverso, para justificar uma postura acanhada
ou mesmo omissa no tabuleiro poltico internacional. Essa perspecti-
va da ausncia de excedente de poder invoca vrios tipos de argu-
mentos, inclusive a existncia de desigualdades sociais internas, que
impediriam uma atuao internacional mais ativa. Esse argumento
desconhece que, por um lado, muitas dessas desigualdades esto sen-
do enfrentadas com sucesso, e que, por outro, algumas das solues
para os problemas do nosso desenvolvimento passam por uma atitu-
de ativa de defesa de nossos interesses pela criao de uma multipo-
laridade em fruns como a OMC, o FMI etc.
A doutrina do excedente de poder assume tambm formas mais sutis:
o caso daqueles que ressaltam a insuficincia dos meios militares, o
chamado poder robusto, e sugerem que o Brasil concentre sua pro-
jeo externa no chamado poder brando. Esta, entretanto, uma
falsa contradio.
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o Brasil
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A ideia de que o Brasil deva adotar uma poltica externa independen-
te e uma poltica de defesa robusta encontra antecedentes respeit-
veis. Nenhum mais representativo do que o Baro do Rio Branco.2
H 105 anos, em 1908, ele defendia o fim do ciclo de intervenes e
inimizades do Brasil com os Estados vizinhos, e dizia:
[...] o seu interesse poltico [do Brasil] est em
outra parte. para um ciclo maior que ele
atrado [...] entretendo com esses Estados [vizi-
nhos] uma cordial simpatia, o Brasil entrou re-
solutamente na esfera das grandes amizades in-
ternacionais, a que tem direito pela aspirao
de sua cultura, pelo prestgio de sua grandeza
territorial e pela fora de sua populao. (RIO
BRANCO, 1908)3
Dois anos antes, em 1906, o Baro j lembrava que a postura pacfica
do Brasil devia ser respaldada por capacidades adequadas de defesa
militar:
Nosso amor paz no motivo para que per-
maneamos no estado de fraqueza militar [...].
Temos de prover pela nossa segurana, de velar
pela nossa dignidade e pela garantia dos nossos
direitos que s vezes s a fora pode dar. (RIO
BRANCO, 1948, p. 103-104)
Em outras palavras, o Baro do Rio Branco acreditava no Brasil, e
no apenas como uma potncia mdia ou uma potncia sem exceden-
tes de poder. Ele queria inserir o Brasil no mundo, e um dos objetivos
explicitados da poltica de paz e de dilogo na Amrica do Sul era
justamente poder ter a liberdade para se movimentar no tabuleiro
mundial. Participar desse ciclo maior implicava estar pronto para
defender os prprios interesses e compreender que ser pacfico no
significa ser desarmado tampouco passivo.
Hoje, possvel reunir essas diretrizes na ideia de uma grande estra-
tgia brasileira, que combina poltica externa e poltica de defesa
Celso Amorim
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com o objetivo de prover a paz. Do ponto de vista da poltica externa
e aqui falo naturalmente de minha experincia , prover a paz signifi-
ca acompanhar, promover e, quando possvel, contribuir para o equa-
cionamento pacfico de controvrsias.
Foi o caso, por exemplo, quando o Brasil e a Turquia negociaram, por
solicitao, entre outros, do Presidente Barack Obama, um acordo de
construo de confiana com o Ir, em maio de 2010. Embora os
Estados Unidos tenham depois por motivos outros, que no me
cabe questionar, mas aos quais os objetivos de poltica interna no
eram estranhos se voltado contra a negociao e trabalhado para
que ela no prosperasse, o sucesso que esses dois pases emergentes
tiveram em obter um acordo com o Ir que nenhuma outra potncia
havia logrado demonstrou a efetividade que novos atores podem
emprestar ao anacrnico processo poltico do Conselho de Seguran-
a (mesmo no formato dos cinco membros permanentes mais a Ale-
manha, o P5+1).
Longe de ser um fracasso, o acordo tem sido frequentemente citado
inclusive por uma ex-assessora direta da Secretria Hillary Clinton
(que foi contra o acordo), a professora de Princeton Anne-Marie
Slaughter como uma referncia til para a soluo dessa controvr-
sia. Notei, alis, com agrado que um pesquisador brasileiro tenha
percebido a semelhana estrutural entre a Declarao de Teer, pa-
trocinada por Brasil e Turquia, e as atuais tratativas levadas a cabo pe-
los Estados Unidos junto ao Ir.
Temos uma presena significativa em operaes de paz, no Haiti, no
Lbano, e hoje um general brasileiro comanda a Monusco, a maior
misso de paz da ONU, na Repblica Democrtica do Congo. Esta
tem sido uma dimenso importante que rene poltica externa e pol-
tica de defesa, em perfeita sintonia.
Do ponto de vista mais estrito da defesa, o Brasil um provedor de
paz por meio da cooperao em nosso entorno estratgico e com ou-
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tros pases emergentes. A Amrica do Sul nossa rea primordial de
cooperao, onde buscamos construir confiana, desenvolver proje-
tos industriais conjuntos e estimular uma identidade regional de de-
fesa, tanto no mbito da Unasul quanto bilateralmente. Para que o
Brasil se projete no ciclo maior da poltica mundial, de que falava
Rio Branco, deve estar cercado por um cinturo de paz e boa vontade
na Amrica do Sul.
Tomei conhecimento, por isso, com muita satisfao do livro organi-
zado pelo professor Kai Kenkel (2013), com participao da profes-
sora Monica Herz, sobre a cooperao especificamente sul-americana
na rea de misses de paz. E gostaria de dizer que o Brasil est estu-
dando participar da Brigada Cruz del Sur, uma grande iniciativa
criada por Chile e Argentina, que poderia se tornar uma Brigada
ABC ncleo, quem sabe, de uma futura Brigada da Unasul.
Outra rea prioritria para a poltica de defesa o Atlntico Sul, onde
cooperamos com nossos vizinhos da orla ocidental da frica por
meio da Zona de Paz e Cooperao do Atlntico Sul (Zopacas), e de
uma rede crescente de acordos bilaterais. No estamos falando de
algo abstrato: estamos falando da participao concreta do Minist-
rio da Defesa em uma rea que at recentemente era quase exclusiva-
mente tratada apenas pela diplomacia. Nesta prxima semana, por
exemplo, abre-se em Salvador da Bahia um seminrio sobre vigiln-
cia martima organizado pela Marinha brasileira, em cooperao so-
bretudo com o Itamaraty, naturalmente voltado para os pases-mem-
bros da Zopacas.
O Atlntico Sul tem uma histria e uma dinmica prprias. No nos
convm importar rivalidades que foram tpicas do Atlntico Norte ou
que justificaram a formao de alianas militares. Tanto mais que a
principal dessas alianas a OTAN tem extrapolado o seu mandato
original, seja no que se refere rea de cobertura geopoltica, seja no
tipo de ao que empreende, passando da legtima defesa (que era sua
Celso Amorim
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motivao original) para operaes que seriam na verdade de segu-
rana coletiva. Estas, por sua vez, vm tendo seu sentido ampliado,
com a invocao da responsabilidade de proteger.
interessante notar, a esse respeito, que o prprio tratado que estabe-
leceu a OTAN reconhece a responsabilidade primria do Conselho
de Segurana em matria de paz e segurana internacional. Assim,
aes unilaterais como o bombardeio da Srvia, em 1999, seriam,
nos termos da prpria carta da organizao, ilegais.
Queremos o Atlntico Sul sempre livre da introduo de armas nu-
cleares e outras armas de destruio de massa e da presena de orga-
nizaes militares estrangeiras. Temos trabalhado estreitamente com
nossos vizinhos de alm-mar para incrementarmos nossas capacida-
des conjuntas de vigilncia e exercermos as responsabilidades que
temos na proteo do Atlntico Sul. Tem sido crescente o nmero de
convites para que o Brasil participe de aes conjuntas relativas ao
Golfo da Guin, alm de outras tradicionais, como a Manobra Naval
IBSAMAR, do IBAS.
A poltica de defesa tambm prov a paz ao estar pronta para dissua-
dir foras hostis que possam pretender ameaar ou agredir nossa so-
berania. Para esse fim, o Brasil est levando a cabo uma srie de pro-
gramas, inclusive nas reas estratgicas do submarino de propulso
nuclear e da defesa ciberntica, com o objetivo de criar as capacida-
des necessrias para desestimular a interferncia em sua soberania.
A necessidade de fortalecimento de nossas defesas cibernticas
(como tambm a do espao areo, e outros), dispensa maiores co-
mentrios. Mas vale enfatizar que s teremos segurana nesse campo
se desenvolvermos tecnologias nacionais, tanto em hardware quanto
em software, suscetveis de evitar a existncia dos chamados back-
doors.
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No que tange ao programa de submarinos, nunca demais recordar
que se trata de um navio com a propulso nuclear, em absoluto acor-
do com nossas obrigaes de no proliferao, a comear pela proi-
bio de uso da energia nuclear para fins militar inscrita na Constitui-
o Federal. Por isso mesmo, o nosso Acordo Quadripartite com a
Agncia Internacional de Energia Atmica menciona explicitamente
a propulso nuclear como um uso legtimo.
Esse programa representar um salto aprecivel e indispensvel
em nossa capacidade de vigiar e proteger nossas vastssimas guas
jurisdicionais e as riquezas que elas encerram. Muitas das resistn-
cias ao nosso submarino nuclear provm daqueles que no desejam
que o Brasil d este salto, e, sob variados pretextos, defendem que a
nossa Marinha se limite a ser uma frota de navios-patrulhas. Esse tipo
de navio , obviamente, essencial. Mas no suficiente para enfren-
tarmos as ameaas de hoje e do futuro, tanto as assimtricas, quanto
as tradicionais. Isto , tanto a pirataria, o trfico de drogas etc., quan-
to a possibilidade de que mesmo rivalidades entre terceiros possam
chegar s nossas costas, como ocorreu na Segunda Guerra Mundial.
***
Uma defesa robusta significa termos Foras Armadas aprestadas,
modernas e integradas. Significa tambm termos homens e mulheres
altamente qualificados, inclusive com conhecimentos tecnolgicos
de ponta.
Ao contrrio de cem anos atrs, tempo do Baro do Rio Branco,
quando o Brasil comprava do exterior praticamente todos seus prin-
cipais equipamentos de defesa sem a capacidade de nacionalizar sua
produo, hoje o desenvolvimento de capacidades autnomas na in-
dstria de defesa um objetivo fundamental de nossa poltica. A
Estratgia Nacional de Defesa, cuja segunda edio foi lanada no
ano passado e agora acaba de ser apreciada pelo Congresso Nacional,
Celso Amorim
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define trs reas prioritrias desse esforo: a nuclear, a ciberntica e a
espacial.
A consolidao e a expanso de nossa base industrial de defesa so
uma das prioridades do governo da Presidenta Dilma. Uma das suas
peas legislativas mais importantes foi a Lei 12.598, de maro de
2012, que criou os conceitos de Produto Estratgico de Defesa e de
Empresa Estratgica de Defesa. Eles permitiro privilegiar de ma-
neira correta as empresas nacionais nesse campo.
A autonomia absoluta neste campo, como em outros, obviamente
inatingvel. A cooperao, bem concebida e realizada, pode nos per-
mitir saltos. J falei da cooperao com os vizinhos. A diversificao
de parcerias externas indispensvel para o xito desse esforo. Por
isso importante para o Brasil ter o submarino em cooperao com
um pas, ter a defesa antiarea em cooperao com outro, e assim por
diante.
O esforo de desenvolvimento de nossas capacidades de defesa a
contraparte necessria das aes externas em prol de um mundo mais
equilibrado e multilateral. esse o sentido de uma grande estratgia
que conjuga poltica de defesa e poltica externa com o objetivo de
prover a paz.
Notas
1. O texto preparado para o evento pode ser encontrado em Amorim (2011).
2. Desenvolvi esse tema em Amorim e Feldman (2012).
3. Onde se l amizades, hoje talvez pudssemos dizer relaes.
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Celso Amorim
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