SILVA, José André Fernandes Da - As Provas Da Existência De Deus Nas Meditações Metafísicas De Descartes - Cap. 03 - As Provas Da Existência De Deus

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    3- As Provas da Existncia de Deus

    3.1-A primeira prova da existncia de Deus pelos efeitos

    3.1.2- A via do senso comum

    A Terceira Meditao comea com a seguinte recapitulao:

    Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos osmeus sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisascorporais, ou, ao menos, uma vez que mal se pode faz-lo, reput-las-ei como vs ecomo falsas; e assim, entretendo-me apenas comigo mesmo e considerando meuinterior, empreenderei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais familiar amim mesmo. Sou uma coisa que pensa, isto , que duvida, que afirma, que nega,que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer e noquer, que tambm imagina e que sente. Pois, como notei acima, conquanto as coisasque sinto e imagino no sejam talvez absolutamente nada fora de mim e nelasmesmas, estou, entretanto, certo de que essas maneiras de pensar, que chamosentimentos e imaginaes, somente na medida em que so maneiras de pensar,residem e se encontram certamente em mim. E nesse pouco que acabo de dizer,creio relatado tudo o que sei verdadeiramente, ou, pelo menos, tudo o que at aquinotei que sabia.1

    Logo aps a recapitulao, Descartes enuncia pela primeira vez nas Meditaes aregra geral de clareza e distino. O Cogito, pela maneira como foi descoberto, trouxeconsigo as caractersticas de clareza e distino de onde tirada a possibilidade da regrageral de clareza e distino. Todo o problema consiste em que o Cogito nada mais queuma exceo, pois os conhecimentos matemticos, que tambm so claros e distintos, pelahiptese do Deus Enganador so deixados de lado. Mesmo o Cogito, quando passa de uma

    intuio atual para uma intuio rememorada, ou seja, quando deixamos de atentar para aimpossibilidade de no pensarmos no momento em que duvidamos disto, fazendo dissouma intuio, mesmo ele sucumbe diante da dvida universal. Com isso, o objetivo das

    Meditaes, daqui em diante, passa a ser o de universalizar o critrio de clareza e distinoatravs da refutao da hiptese do Deus Enganador.

    1 AT. IX. Pg. 27.

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    Como a nica coisa que resta de indubitvel o pensamento, no h outro caminhoque o de analisar seus modos. Num primeiro momento, Descartes divide os pensamentos

    em, de um lado, imagens das coisas ou idias, de outro, vontade ou afeces. O termoimagem no deve ser tomado, aqui, ao p da letra, mas num sentido analgico. As idiasseriam representaes das coisas, como de forma anloga um reflexo no espelho representauma imagem de um objeto, ainda que, dependendo da curvatura e espessura do espelho aimagem acabasse por deformar o objeto que ficaria totalmente dessemelhante a ela. Assim,o termo imagem seria utilizado para designar analogicamente, ou mesmo de formametafrica, a funo representativa da idia e no simplesmente uma imagem sensvel

    impressa na imaginao pelos corpos que seria, por isso mesmo, a cpia fiel destes corpos.Saindo um pouco da ordem das Meditaes, vale lembrar aqui o que Descartes afirma naDiptrica sobre as sensaes. Ele diz que um determinado som como uma determinada luzteriam como causas os mesmo objetos, na viso mecanicista da Diptrica, simplesmovimentos de partculas que, portanto, no tm nada a ver com a idia que eu tenho dosom ou da luz mas so simplesmente causas ocasionais destas idias, devido unio daalma ao corpo.

    A esse respeito interessante observar a discusso que Descartes tem com Hobbes,que no admite outra origem para as idias que os objetos sensveis. Vejamos algumas palavras de Hobbes nasTerceiras Objees :

    Quando eu penso em um homem, eu me represento uma idia ou umaimagem composta de cor e de figura, da qual eu posso duvidar se ela tem asemelhana de um homem ou no. Ocorre da mesma forma quando eu penso nocu. Quando eu penso em uma quimera, eu me represento uma idia ou umaimagem, da qual eu posso duvidar se ela o retrato de qualquer animal que noexiste, mas que pode existir, ou que tenha existido outrora, ou bem que jamais tenhaexistido. E quando algum pensa em um anjo, algumas vezes a imagem de umaflmula se apresenta a seu esprito e outras vezes a de uma jovem criana que temasas, da qual eu penso poder dizer com certeza que ela no tem de forma alguma asemelhana de um anjo, e portanto, que ela no de maneira nenhuma a idia deum anjo; mas, crendo que h criaturas invisveis e imateriais que so os ministrosde Deus, ns damos a uma coisa que ns cremos ou supomos o nome de anjo,embora a idia sob a qual eu imagino um anjo seja composta de idias das coisasvisveis.

    Acontece o mesmo com a idia de Deus, de quem ns no temos nenhumaimagem ou idia...2

    2 AT. IX. Pg. 140.

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    Por ser um modo da substncia pensante, a idia s pode ser entendida como uma percepo imediata de algo, ou seja, a conscincia de algo, da mesma forma que a figura e

    o movimento enquanto so considerados modos da substncia corporal s podem ser entendidos atravs da extenso. Uma figura sem extenso impossvel, da mesma maneiraque uma idia sem conscincia. No o conjunto de cores, odores e diversas outrassensaes que me do uma idia, ao contrrio, o ato de perceber as sensaes que caracterizado como uma idia, pois sem a conscincia e a percepo, isto , sem a aointelectiva do esprito no h idia.

    Voltemos ento ao curso daTerceira Meditao .

    Descartes afirma que tomados apenas em si mesmos nem as idias nem a vontade podem ser falsos, pois a falsidade estaria no juzo, ou seja, no julgar que as idias que estoem mim correspondem exatamente aos objetos exteriores dos quais elas se originariam.Como j foi dito, enquanto uma simples modificao do pensamento as idias e a vontadeno do ocasio ao erro.

    Neste ponto da Terceira Meditao, Descartes ainda est insistindo no caminho dosenso comum. Na verdade, ele quer mostrar que no h nenhuma possibilidade de ir dascoisas exteriores s suas idias pois o mundo exterior ainda est inacessvel. Assim, eleapresenta a famosa diviso das idias.

    Ora, destas idias, umas me parecem ter nascido comigo, outras ser estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo. Pois, queeu tenha a faculdade de conceber o que aquilo que geralmente se chama uma coisaou uma verdade, ou um pensamento, parece-me que no o obtenho em outra parteseno em minha prpria natureza; mas se ouo agora algum rudo, se vejo o sol, sesinto calor, at o presente julguei que estes sentimentos procediam de algumascoisas que existem fora de mim; e enfim parece-me que as sereias, os hipgrifos etodas as outras quimeras semelhantes so fices e invenes de meu esprito. Mas

    tambm talvez eu possa persuadir-me de que todas essas idias so do gnero dasque eu chamo de estranhas e que vm de fora ou que nasceram todas comigo ou,ainda, que foram todas feitas por mim; pois ainda no lhes descobri claramente averdadeira origem. E o que devo fazer principalmente neste ponto considerar, notocante quelas que me parecem vir de alguns objetos localizados fora de mim,quais as razes que me obrigam a acredit-las semelhantes a esses objetos.5

    As razes que, segundo Descartes, o senso comum utiliza para julgar que existemobjetos exteriores e conformes s minhas idias so duas: a primeira e mais fraca seria a

    5 AT. IX. Pg. 29.

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    inclinao natural6 que sinto e que me faz julgar que estes objetos existem, inclinao queno se sustenta neste momento pois no uma intuio clara e distinta como fora

    anteriormente oCogito . A segunda razo a ordem de aparecimento destas idias queindependeria da minha vontade, isto , o fato de eu sentir calor agora e logo aps sentir friono depende de minha vontade. Descartes dir que nos sonhos tambm existe aindependncia das sensaes em relao vontade, podendo existir uma faculdadedesconhecida que poderia ser a causa de minhas sensaes e no os pretensos objetosexteriores.7 E, por ltimo, aquilo que seria o principal argumento, mesmo que existissemcoisas exteriores que fossem as causas das sensaes, no se segue necessariamente que as

    idias seriam semelhantes a estas causas, elas poderiam ser apenas as causas ocasionaiscomo fora exemplificado acima.

    Vemos que h neste ponto uma advertncia na aplicao do princpio de causalidadee no princpio de semelhana entre a idia e a realidade atual8que seria a coisa existentefora do intelecto. Em primeiro lugar, o senso comum atribui de forma indiscriminadaexistncia aos objetos exteriores ao pensamento. Desta forma, todas as nossas idias teriamuma origem exterior ao pensamento. Em segundo lugar, ele considera as idias comocpias fiis das coisas exteriores. Estas posies se fundamentariam na suposio de quens teramos um acesso privilegiado s coisas a partir do qual ns julgaramos nossasidias.

    No caso de Descartes, por tudo que implicado na Dvida Universal, ns no temosacesso privilegiado s coisas chamadas exteriores. Na verdade, o conceito deexterioridade que o senso comum induz das sensaes, no contexto cartesiano, serexplicitado a partir do critrio de clareza e distino. Por exemplo, ser o critrio de clarezae distino que estabelecer que o corpo, isto , a idia de extenso, uma substncia e

    6 Vale lembrar aqui que no plano do homem concreto a inclinao natural fundamental para a conservaoda vida.7 Este argumento se sustenta no conhecimento parcial obtido pelo Cogito, embora seja um conhecimentoevidente. Assim, eu posso supor uma faculdade desconhecida, ou seja, uma parte de mim mesmo que me desconhecida, pois eu ainda no posso me considerar nica e exclusivamente como uma natureza pensante e, por isso, que sempre tm conscincia.8 Descartes contrape a realidade atual ou formal que seria o objeto exterior ao pensamento realidadeobjetiva que seria o objeto mental que s existiria no entendimento. H, na filosofia de Descartes, duasdistines importantes entre sujeito e objeto. A primeira seria a distino entre o sujeito pensante e o objetoexterior ao pensamento, isto , extramental; a segunda distino seria entre o sujeito pensante e o objeto pensado, ou seja, um objeto mental. A primeira distino problemtica enquanto a segunda no , pois estase d dentro do pensamento, que uma realidade imediata e indubitvel.

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    portanto que ela, embora seja uma idia, se liga a algo que exterior/distinto dasubstncia pensante. A existncia exterior representadana idia para o pensamento.

    Assim, a distino entre o pensamento e corpo operada dentro do pensamento peloentendimento. O grande problema passa a ser que o nico critrio que tenho para distinguir no interior do pensamento a existncia exterior de qualquer ente, digo, este critriomesmo est sob suspeita.

    3.1.3- A realidade formal e objetiva da idia

    Se no posso pressupor a existncia das coisas exteriores a mim, isto , afirm-lasatravs de um juzo de existncia, tenho forosamente que me deter na simples anlise dasidias. A questo da vontade e do juzo, que seriam os hospedeiros do erro mencionadoaqui, somente ser analisada a partir daQuarta Meditao em diante. Proceder por ordem partir das coisas conhecidas para as desconhecidas e assim evitar o erro. As idias passam,ento, a ser analisadas no segundo sua origem inata, adventcia ou fictcia, mas sim emrelao ao seu carter especfico de ser percepo ou conscincia de algo,independentemente deste algo ser real ou fictcio, natural ou apenas mental, verdadeiro oufalso segundo um juzo existencial que alis foi provisoriamente suspenso.

    Aqui, chegamos ao ponto fundamental da primeira demonstrao cartesiana daexistncia de Deus. Considerando as idias apenas do ponto de vista formal, como o prprio pensamento considerado em sua identidade, no percebemos nenhuma diferenaentre elas. Tanto a idia de um pgaso quanto a idia de Deus no diferem enquanto ambosnecessitam da minha capacidade perceptiva sustentada pela prpria substncia pensante. Neste sentido, sua realidade ou seu ser causado pela substncia pensante.

    Alm da forma da representao, que o prprio pensamento, existe o contedo darepresentao, que aquilo que distingue um pensamento do outro e que explica suasmodificaes. A realidade objetiva da idia nada mais que este contedo que apresentado pelo e ao meu pensamento como um objeto mental.9 Neste aspecto, a idia doPgaso bem diferente da idia de Deus. Em que se fundamenta essa diferena objetiva? A

    9 Conferir o livro de Raul Landim, Evidncia e Verdade no Sistema Cartesiano , em especial o captulo sobrea teoria das idias, que explica muito bem diversas noes relativas idia.

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    diferena est na quantidade de realidade objetiva que h em cada idia. Por exemplo, aidia de uma substncia contm mais realidade objetiva que a idia de um acidente. Pelo

    mesmo motivo a idia de uma substncia infinita traz mais realidade objetiva que a idia deuma substncia finita. A distino nos contedos das idias leva Descartes a exigir umarazo para isto, ou seja, leva-o a buscar a causa dessa diferenciao que ocorre no interior do pensamento. Descartes apresenta neste momento as condies de aplicao do princpiode causalidade:

    Agora, coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos tantarealidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: pois de onde que o efeito

    pode tirar sua realidade seno de sua causa? E como poderia essa causa lhacomunicar se no a tivesse em si mesma?Da decorre no somente que o nada no poderia produzir coisa alguma,

    mas tambm que o que mais perfeito, isto , o que contm em si mais realidade,no pode ser uma decorrncia e uma dependncia do menos perfeito. E esta verdadeno somente clara e evidente nos seus efeitos, que possuem esta realidade que osfilsofos chamam de atual ou formal, mas tambm nas idias onde se considerasomente a realidade que eles chamam de objetiva...10

    A aplicao do princpio de causalidade crucial para a primeira demonstraocartesiana. No entanto, esta aplicao gerou uma srie de problemas para Descartes. Logo

    nas Primeiras Objees e Respostas que tiveram como interlocutor o telogo holandsCaterus, um legtimo representante da escolstica, a primeira objeo recebida foi sobre anecessidade de se buscar uma causa para a realidade objetiva alm da substncia pensante.Vejamos a objeo de Caterus:

    Pois eu vos suplico, que causa uma idia requer? Ou, diga-me o que aidia? Se eu compreendi bem, a coisa mesma enquanto ela objetivamente noentendimento. Mas o que ser objetivamente no entendimento? Se eu entendi bem terminar ao modo de um objeto o ato do entendimento, o que com efeito no seno uma denominao exterior, e que no acrescenta nada de real coisa. Pois, damesma forma que ser visto no em mim outra coisa que o ato que a viso tendesobre mim, ser pensado ou estar objetivamente no entendimento terminar e reter em si o pensamento do esprito; o que se pode fazer sem nenhum movimento emodificao na coisa, isto , mesmo sem que a coisa exista. Por que ento buscareia causa de uma coisa que atualmente no existe de forma alguma, que no senouma simples denominao e um puro nada?11

    10 AT. IX. Pg. 32.11 AT. IX. Pg. 74.

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    Descartes responde da seguinte maneira:

    Estar objetivamente no entendimento, diz ele, terminar ao modo de umobjeto o ato do entendimento, o que no seno uma denominao exterior, e queno acrescenta nada de real coisa, etc. Onde necessrio observar que emrelao coisa mesma, enquanto ela existe fora do entendimento, verdadeiramente uma denominao exterior que ela seja objetivamente noentendimento; mas que eu falo da idia que no existe jamais fora do entendimentoe a respeito da qual ser objetivamente no significa outra coisa que existir noentendimento maneira que os objetos tm o costume de existir. Assim, por exemplo, se algum pergunta o que acontece ao sol quando ele objetivamente noentendimento, se responde muito bem que no lhe acontece nada seno umadenominao exterior, a saber, que ele termina ao modo de um objeto a operao demeu entendimento: mas se perguntamos da idia do sol o que ela , e que seresponda que a coisa mesma pensada enquanto ela objetivamente noentendimento, ningum entender que o sol mesmo, enquanto que estadenominao exterior est nele. E a existir objetivamente no entendimento nosignifica terminar sua operao ao modo de um objeto mas existir no entendimentode modo como seus objetos tm o costume de existir; de tal maneira que a idia dosol o sol mesmo existindo no entendimento, no em verdade formalmente, comoele existe no cu, mas objetivamente, isto , maneira que os objetos costumamexistir no entendimento: maneira de existir que em verdade bem mais imperfeitaque aquela pela qual as coisas existem fora do entendimento; todavia no um puronada, como eu j disse.12

    Os trechos acima mostram que Caterus no admite uma existncia real para a idiaou, na terminologia da escola, uma existncia atual. Para ele, a idia somente pode ser considerada como um ser de razo e que por isso no necessitaria de nenhuma causa. ParaCaterus a idia me apresenta a coisa em si mesma e , por isso, no precisa de causa alguma. No h o que colocar em questo no conhecimento de uma pedra, por exemplo, no h anecessidade de se perguntar se idia da pedra corresponde verdadeiramente um ser atualmente existente que seja a prpria pedra ou, ao contrrio, se no poderia acontecer deque idia da pedra no correspondesse nada de real mesmo que sua idia me aparecessecomo a representao de algo. Um exemplo desta preocupao cartesiana a idia de calor.Ser a idia de calor originada pelo prprio calor considerado como um ser real ou seruma idia que me representa a ausncia de frio, que no seria um ser real e positivo?Assim, ela teria origem no nada, ou, como do nada nada se origina, ela seria uma idiafictcia, ou seja, inventada por mim mesmo e tendo por causa o meu prprio pensamento.

    12 AT. IX. Pg. 82.

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    Como, na filosofia de Descartes, as coisas s se tornam conhecidas como reaismediante suas idias, ser pelo princpio de causalidade que poderei saber se as idias que

    tenho em meu pensamento so representaes de coisas reais ou apenas modos subjetivossem nenhuma realidade objetiva. Aliado ao princpio de causalidade tambm necessrio o princpio de correspondncia, pois no basta assegurar que existe algo que a causa deminha realidade objetiva mas tambm preciso que este algo seja proporcional minharealidade objetiva.

    Acima, ns falamos que a diferena de graus de realidade objetiva que vai exigir uma causa. Como isso ocorrer? Em realidade, at aqui tudo o que apareceu como real e

    verdadeiro teve como causa a substncia pensante.E Descartes continuar neste caminho pois o nico possvel segundo a ordem das

    razes. Contudo, a anlise detalhada nos graus de realidade objetiva das diversas idiascontidas em mim descobrir uma determinada idia cujo grau de realidade objetiva togrande que ultrapassa minha capacidade formal de caus-la. Que contedo poderia ser este? Nenhum outro seno aquele que me representa uma substncia infinitamente perfeita.

    3.1.4- A realidade objetiva da idia de Deus

    O problema ser encaminhado da seguinte maneira por Descartes:

    Mas enfim, que concluirei de tudo isso? Concluirei que se a realidadeobjetiva de alguma de minhas idias tal que eu reconhea claramente que ela noest em mim nem formal nem eminentemente e que, por conseguinte, no posso, eumesmo, ser-lhe a causa, da decorre necessariamente que no existo sozinho nomundo, mas que h ainda algo que existe e que a causa desta idia; ao passo que,se no se encontrar em mim uma tal idia, no terei nenhum argumento que me possa convencer e me certificar da existncia de qualquer outra coisa alm de mimmesmo; pois procurei-os a todos cuidadosamente e no pude, at agora, encontrar nenhum.13

    Doravante, todas as realidades objetivas sero analisadas com o intuito deidentificar sua causa. Passa-se ento, como foi dito anteriormente, a uma nova diviso dasidias, desta vez no em relao a sua origem mas simplesmente a partir de seus graus deser. E o Cogito ainda aqui oferece um suporte para a hierarquizao das realidades

    13 AT. IX. Pg. 33.

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    objetivas. Assim, o quanto mais a substncia pensante no puder por hiptese ser a causa deuma determinada idia mais realidade objetiva esta idia tem.

    A importncia do Cogito se revela na medida em que ele uma noo primitiva.Sendo uma noo primitiva, ele no pode ser composto por outras idias, ao contrrio, asoutras idias que podem ser compostas pelo pensamento.

    Primeiramente, considero haver em ns certas noes primitivas, as quaisso como originais, sob cujo padro formamos todos os nossos outrosconhecimentos. E no h seno muito poucas dessas noes; pois, aps as maisgerais, do ser, do nmero, da durao etc., que convm a tudo quanto possamosconceber, possumos, em relao ao corpo em particular, apenas a noo da

    extenso, da qual decorrem as da figura e do movimento; e, quanto alma somente,temos apenas a do pensamento, em que se acham compreendidas as percepes doentendimento e as inclinaes da vontade...14

    Nesta passagem, Descartes no menciona a idia de Deus. Contudo ela tambm uma noo primitiva e, como veremos, a mais simples e primitiva de todas. Seguindo essemtodo, todas as idias sero remetidas s idias primitivas que so: a alma, o corpo eDeus.

    Seguindo a ordem do texto, a primeira excluso efetuada acontece entre as idias

    que me representam outros homens, animais e anjos. Todas essas idias podem ser compostas por outras idias: as idias das coisas corporais e de Deus.

    As idias das coisas corporais se dividem em dois gneros: idias obscuras econfusas e idias claras e distintas. No rol das idias obscuras e confusas encontramos todasas qualidades sensveis como a luz, as cores, os sons, os odores, os sabores, o calor, o frioetc. Estas idias tm to pouca realidade objetiva, ou seja, representam to pouca realidadeque eu duvido se realmente elas so representativas ou so apenas falsas idias. A definio

    de idia dada justamente pelo seu papel representativo: se eu encontro idias que merepresentam falsos objetos, isto , modos do pensamento como se fossem coisas existentesfora do pensamento, ento elas no seriam em sentido estrito idias mas apenasmodificaes da substncia pensante. Desta forma, estas idias no tm um grau derealidade suficiente que no possa ser causado pela prpria substncia pensante.

    14 OE, Carta a Elisabeth de 21 de maio de 1643.

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    No rol das idias claras e distintas das coisas corporais encontramos a extenso emcomprimento, largura e profundidade, a figura, que a limitao desta extenso, a situao

    destas figuras e sua movimentao; alm disso, encontram-se as noes de substncia,durao e nmero. Destas idias, as de substncia, de durao e de nmero, por serem togerais e se encontrarem tambm em mim, podem por hiptese ser causadas pela substncia pensante. Quanto s idias da extenso, da figura, da situao e do movimento, embora noestejam contidas formalmente na substncia pensante, pois esta no extensa, ainda sim poderiam estar nela contidas eminentemente.15 O que Descartes quer dizer aqui que,sendo uma realidade atual, isto , existindo em ato e no no intelecto de algum, a

    substncia pensante pode ser a causa eminente at mesmo da idia da extenso, pois umaidia no pode causar indefinidamente outras idias e, desta forma, por princpio16, a idiade extenso pode at ser referida a outras idias mas em algum momento ela ter que sereportar a uma realidade existindo em ato. Ora, a nica realidade que existe em ato nomomento a substncia pensante, logo, ela pode ter sua existncia tirada do pensamento.

    Excludas as idias corporais, Descartes se empenha em verificar se a idia de Deustambm pode ser atribuda substncia pensante. Logo de incio, Descartes adianta queesta idia representa a idia de uma substncia infinita que no pode ser causada por umasubstncia finita e que por isso existe algo que a causa desta idia, ou seja, Deus. Todavia,a discusso no to simples, principalmente se levamos em conta as objees feitas pelosadversrios de Descartes. Em linhas gerais, a defesa cartesiana se empenhar em mostrar que a idia de Deus uma idia simples e no composta como queria Hobbes e que, por isso, deve ser causada por umares infinita.

    3.1.5- A defesa da idia de Deus

    As mesmas etapas que serviram para destituir as outras idias de qualquer valor objetivo sero aplicadas idia de Deus. Se a idia de substncia est presente na idia da

    15 Uma causa contm formalmente seu efeito quando homognea a este, isto , tem um grau de realidade proporcional ao efeito. J a causa eminente deve ter uma realidade superior ao seu efeito. Cf. o Axioma IV daExposio Geomtrica.16 Axioma V da Exposio Geomtrica.

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    substncia pensante, no poderamos pelo mesmo argumento que fora usado contra arealidade da substncia corporal excluir a substancialidade de Deus? Para Descartes, no.

    Pois, se eu posso ser, por hiptese, a causa eminente da idia da extenso, no posso ser damesma maneira a causa eminente da idia de Deus ou, em outras palavras, a causa darealidade objetiva da idia de Deus cujo grau de realidade infinito. Uma substncia finitano pode ser a causa da idia de uma substncia infinita. Aqui entra em ao o axiomaenunciado anteriormente que diz queo que mais perfeito, isto , o que contm em si maisrealidade, no pode ser uma decorrncia e uma dependncia do menos perfeito. E maisimportante ainda o que vem enunciado logo aps este axioma: E esta verdade [o axioma]

    no somente clara e evidente nos seus efeitos, que possuem essa realidade que os filsofos chamam de atual ou formal, mas tambm nas idias, onde se considera somente a

    realidade que eles chamam de objetiva. Aceitando estes princpios, podemos concluir que aidia de Deus ou causada por uma idia que tenha mais realidade objetiva que a sua ou causada por umares , isto , uma realidade atual que tenha no mnimo a mesma perfeiocontida objetivamente na idia. Mesmo sabendo que existir em ato mais perfeito queexistir no entendimento, quando se trata da realidade objetiva da idia de Deus, pelo seugrau de realidade objetiva ser infinito, exige-se uma realidade existindo em ato que tambmseja infinita. A idia de Deus ultrapassa a capacidade finita do pensamento, tendo comoexplicao uma outra realidade atual, que o prprio Deus.

    A impresso que temos aqui que, admitindo a existncia da idia de Deus deve-seadmitir necessariamente sua existncia atual. O prprio Descartes confirma esta impressoquando faz a seguinte afirmao nas Segundas Respostas:

    Em segundo lugar, quando dizeis:Que temos em ns prprios um fundamento suficiente para formar a idia de Deus , nada dizeis em contrrio minha opinio. Pois eu mesmo afirmei em termos expressos, ao fim da MeditaoTerceira:Que esta idia nasceu comigo, e ela no me vem de outra parte seno demim mesmo . Confesso tambmque poderamos form-la, embora no soubssemosque h um soberano ser , mas no se efetivamente no existisse um ente assim; pois,ao invs, advertique toda fora de meu argumento consiste em que no poderiaocorrer que a faculdade de formar essa idia existisse em mim, se eu no tivesse

    sido criado por Deus. 17

    17 OE, Segundas respostas, pg. 212.

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    Para Descartes, a idia do infinito anterior idia do finito. A prpria idia quetemos de ns mesmos derivada da idia de Deus, embora s tenhamos um conhecimento

    claro disso aps meditarmos bastante. A idia do infinito o arqutipo a partir do qual podemos compreender a prpria noo da substncia pensante enquanto um ser finito, queduvida, que se engana, que pode aumentar seu conhecimento indefinidamente, etc. NasRespostas a Caterus, ao explicar o porqu de tentar provar a existncia de Deus por suaidia e no como So Toms, que segue a via das coisas sensveis at Deus, Descartesafirma que, em primeiro lugar, pela idia de Deus que eu obtenho o conhecimento deDeus, pois segundo as leis da verdadeira lgica, no se deve jamais perguntar sobre uma

    coisa se ela ou existe antes de saber o que ela . Em segundo lugar, esta mesma idiaque me fornece a ocasio de examinar se eu existo por mim ou por outrem e, alm disso, ela que me faz conhecer meus defeitos. Por fim, esta idia que me faz conhecer que huma causa para o meu ser e que esta causa contm toda sorte de perfeies, ou seja, o prprio Deus.

    Continuando a objetar contra si mesmo, com o objetivo de fortalecer ademonstrao, Descartes pergunta: a idia que temos de Deus no poderia ser materialmente falsa? Tambm no, pois uma idia materialmente falsa seria uma idia queme representaria uma entidade indeterminada, ou seja, um objeto indistinto ou confuso. Emsentido estrito, para Descartes s existe um tipo de falsidade, que seria a falsidade formaldo julgamento. Assim, se eu tenho a idia de um unicrnio, por exemplo, esta idia s seriafalsa se eu afirmasse sua existncia atual atravs de um juzo. Sem o julgamento, a idiano poderia ser falsa. Contudo, no caso das idias sensveis, pela sua prpria natureza, nsno teramos ordinariamente a possibilidade de saber se elas seriam representaesadequadas dos objetos exteriores. Seria uma falsidade inerente ao prprio sentimento. Por

    princpio, os sentimentos, como por exemplo, o calor, o frio, a dor, nos dariam ocasio para julgar erradamente; entretanto, mesmo com a obscuridade das idias sensveis, temos namaioria dos casos os meios para julgar adequadamente, principalmente quando se trata dos juzos que tm como conseqncia a conservao de nossa sade e no o conhecimento daessncia de determinado ente. Por exemplo, embora o sentimento do calor de uma fogueirano me faa conhecer clara e distintamente o objeto que a causa deste sentimento, nem se

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    aquele sentimento tem alguma semelhana com seu objeto, mesmo assim o sentimento mefornece informaes fundamentais para a conservao do meu corpo.

    Essa questo tratada detalhadamente naQuarta e Sexta Meditaes . Todavia, nocontexto que estamos analisando, que o da Terceira Meditao, a falsidade material daidia de Deus no tem justificao. O grau de distino da idia de Deus impossibilita estatese, pois seu contedo de tal forma positivo que no existe nenhum contedo que possanaturalmente estar misturado a ela. Assim, toda mistura e confuso que poderiam estar representados sob este nome, na verdade, seriam composies arbitrrias efetuadas atravsde falsos juzos. Segundo Descartes, nada podemos subtrair e adicionar idia de Deus, ou,

    na terminologia de Descartes, ns no podemos torn-la falsa por uma fico ou por umaabstrao do entendimento; por fim, sua distino em relao s outras idias maior atque a distino existente entre o pensamento e o corpo.18

    Outra objeo importante colocada pelo prprio Descartes a daincompreensibilidade da idia de Deus. A idia do infinito a razo formal da idia deDeus, assim como o pensamento a razo formal da substncia pensante. A razo formalaqui equivale ao atributo essencial pelo qual uma coisa conhecida como completa, ou sejacomo uma substncia. A infinitude e incompreensibilidade de Deus, longe de serem umobstculo ao seu conhecimento, so a razo pela qual Deus conhecido. Embora esteconhecimento no contenha todas as propriedades divinas e infinitas, o que justificado pela prpria natureza finita do entendimento, ele um conhecimento completo, no sentidode que ele no produzido por uma preveno ou precipitao do esprito e nem derivadode alguma noo mais completa.

    Nas respostas s instncias de Gassendi, Descartes afirma que a palavracompreender significa alguma limitao e que, por isso, no deve ser aplicada a Deus que infinito.

    Compreender Deus seria aos olhos de Descartes encerr-lo em limites arbitrrios.19 Umasdas conseqncias mais importantes da tese da incompreensibilidade a tese da livrecriao das verdades eternas. Esta tese prope que Deus criou com uma indiferenaabsoluta as verdades eternas, o que quer dizer que ele poderia ter feito de outra maneira o

    18 Cf. Carta ao Abade de Launay.19 OE, pg. 289.

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    que ele fez. Bem antes de escrever as Meditaes Metafsicas , Descartes j mencionavaesta tese ao seu amigo, o Padre Marin Mersenne.

    Mas eu no deixarei de tocar na minha Fsica diversas questes metafsicase, particularmente, estas: que as verdades metafsicas, as quais vs nomeais eternas,foram estabelecidas por Deus em sua inteira dependncia, assim como todo o restodas criaturas. Com efeito, falar de Deus como de um Jpiter ou de um Saturno e osujeitar ao styx e ao destino dizer que estas verdades so independentes dele. Notemas, vos peo, assegurar e publicar por toda parte que foi Deus quem estabeleceuestas leis na natureza, da mesma forma que um rei estabelece as leis em seu reino.Ora, no h nenhuma em particular que no possamos compreender se o nossoesprito se porta a consider-las, e elas so todasmentibus nostris ingenitae, assimcomo um rei imprimiria suas leis no corao de todos os seus sditos se ele tambm

    tivesse esse poder.(...)Dir-se- a vs que se Deus estabeleceu essas verdades, ele poderia mud-las

    como um rei faz [em] suas leis, ao que necessrio responder que sim, se suavontade pode mudar; mas eu as compreendo como eternas e imutveis e eu julgo omesmo de Deus. Contudo, sua vontade livre: sim, mas sua potncia incompreensvel; e geralmente ns podemos assegurar bem que Deus pode fazer tudo o que ns podemos compreender, mas no que ele no pode fazer aquilo quens no podemos compreender, pois seria uma temeridade pensar que nossaimaginao tem tanta extenso quanto sua potncia.20

    O exemplo utilizado por Descartes aqui no gratuito. Ao contrrio, o exemplo domonarca serve para caracterizar de que maneira temos que conceber Deus. Nas SextasRespostas, Descartes assevera que no h ordem, lei, razo de bondade ou razo de verdadeque seja independente de Deus, pois se existisse algum bem ou alguma verdade queservisse de orientao para a sua criao ento ele no seria completamente indiferente. interessante notar que se a doutrina das idias inatas tem uma conotao fortemente platnica, a doutrina da livre criao das verdades eternas no tm nada a ver com Plato. ODeus cartesiano um monarca absolutista diferente do Demiurgo platnico que um

    arquiteto. O bom s bom porque foi criado por Deus, e o mesmo acontece com aquilo que verdadeiro. A vontade de Deus totalmente indiferente, isto , absolutamente livre.Deus est acima do bem e do mal. Todo tipo de necessidade inerente ao intelecto, sejamoral, lgica, ontolgica, so conseqncias da criao divina e no pressupostos a essamesma criao.

    20 Carta a Mersenne de 15 de abril de 1630.

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    Os telogos dasSextas Objees tambm perguntaram por qual gnero de causaDeus criou as verdades eternas. Descartes responde que os gneros de causa sendo

    estabelecidos por aqueles que talvez no pensassem nesta forma de causalidade, isto , nalivre criao das verdades eternas, no seria surpresa se acontecesse deles no teremnenhum nome para este tipo de causalidade, contudo, para Descartes, eles deram um nome:causa eficiente. Aqui, h uma meno implcita aos antigos, que, embora tenham pensadonum tipo de causalidade chamado de eficiente no conceberam a noo de criao.

    A noo de causa eficiente a noo fundamental para entendermos tanto a criaodas criaturas quanto para concebermos o conceito de causa sui , isto , Deus enquanto causa

    de si mesmo. No ser sem problemas que Descartes lanar mo deste tipo de causalidaderelacionado causa sui; no entanto, s na segunda prova que veremos esta noo.

    A ltima objeo colocada por ocasio da primeira prova a seguinte: do fato de percebermos que nosso conhecimento aumenta indefinidamente no poderamos esperar atingir um grau infinito de conhecimento? Assim, esse poder potencial de conhecer ad infinitum poderia ser a causa da idia de Deus. Para Descartes, esta objeo tambm no levada em conta, pois um infinito em potncia bem diferente e menos perfeito do que uminfinito atual, que o caso de Deus. Ademais, pela distino que Descartes faz entre aquiloque indefinido e o que infinito, a graduao crescente no meu conhecimento s pode ser entendida como uma graduao indefinida, pois sempre poderei conhecer mais algumacoisa. Tudo onde h ausncia de limites, no por essncia, mas pela capacidade finita doentendimento em atingir esses limites, deve ser entendido como indefinido. Assim, ocaso, por exemplo, da extenso do universo e da divisibilidade da matria. O fato de noconseguir perceber a existncia de tomos quer dizer que, para a fsica considerada comoum conhecimento humano realmente no existe tomos, entretanto, quando considerada a

    onipotncia de Deus no vejo nele a mesma impossibilidade que vejo no meuentendimento. Tudo isso se baseia no princpio de que Deus pode fazer tudo aquilo queconcebemos sem contradio mas no que ele no possa fazer aquilo que concebemoscomo contraditrio. Vale ressaltar aqui que a imutabilidade de Deus garante as leis da fsicae a prpria lgica; assim, o fato dele ter estabelecido esta leis o fundamento paraassegur-las como imutveis e eternas. Por fim, Descartes acrescenta que uma idia no pode ser causada por um ser em potncia, que em realidade no existe, mas apenas por um

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    ser existindo em ato. O nico ser que, at ento, existe em ato um ser finito, como ocaso da substncia pensante, portanto, ele no pode ser a causa da idia de um ser infinito.

    Assim, deve-se ter como verdadeira a existncia de mais um ser existindo em ato: Deus.Aps a defesa da idia de Deus como a idia do infinito cuja realidade simples serve

    para compor tudo que concebo de claro e distinto na prpria substncia pensante e que por sua perfeio no pode ser forjada pelo entendimento mas causada pelo prprio infinitoexistindo em ato, Descartes tentar explicitar melhor a causalidade eficiente de Deus,atravs da considerao de um outro efeito de Deus: a substncia pensante que tem a idiado infinito.

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    3.2- A segunda prova da existncia de Deus pelos efeitos

    A segunda prova, ainda no contexto da Terceira Meditao, comea com a seguintequesto:

    E por certo nada vejo em tudo o que acabo de dizer que no seja muito fcilde conhecer pela luz natural a todos os que quiserem pensar nisto cuidadosamente:mas, quando abrando um pouco minha ateno, achando-se meu espritoobscurecido e como que cegado pelas imagens das coisas sensveis, no se lembrafacilmente da razo pela qual a idia que tenho de um ser mais perfeito que o meudeva necessariamente ter sido colocada em mim por um ser que seja de fato mais perfeito.

    Eis por que desejo passar adiante e considerar se eu mesmo, que tenho essaidia de Deus, poderia existir, no caso de no haver Deus. E pergunto de quemtirarei minha existncia?21

    Descartes diz nas respostas a Caterus que esta prova no apresenta nenhuma novarazo mas apenas serve para explicar melhor a maneira de provar a existncia de Deus por sua idia. Se na primeira prova, Descartes infere a existncia de Deus a partir de sua idia,agora o objetivo mostrar que, enquanto uma substncia finita, eu no poderia ter a idiade Deus sem que ele existisse. Da a pergunta sobre a causa, no mais da idia de Deus,mas da faculdade de produzir esta idia, ou seja, da prpria substncia pensante que tem aidia de Deus. Na prova anterior, a batalha era para provar que a idia de Deus no inventada pelo esprito, enquanto que, aqui, o esforo demonstrar que a impossibilidadede ser causa de si a razo da impossibilidade de ser causa da idia de Deus, e por isso, acausa dessa idia no pode ser um ser finito mas sim um ser infinito, ou seja, Deus.

    Antes de entrar na argumentao seguida naTerceira Meditao , vamos mais umavez s objees de Caterus, que, ao meu ver, elucidam o motivo pelo qual Descartes

    escolhe as provas mencionadas acima.Aps citar o trecho daTerceira Medit ao no qual Descartes argumenta que se fosse

    o autor de seu ser no lhe faltaria perfeio alguma e, assim, ele seria Deus, Caterus faz aseguinte colocao:

    Eis a certamente, no meu entender, a mesma via que segue So Toms, queele chama de via da causalidade da causa eficiente, a qual tem extrado do Filsofo,

    21 AT. IX. pg. 38.

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    embora nem So Toms nem Aristteles estavam preocupados com as causas dasidias.22

    Descartes, sem criticar abertamente Aristteles e So Toms, responde que no pretendeu tirar seu argumento de uma srie de causas eficientes observadas nas coisassensveis por duas razes: em primeiro lugar, porque ele entendia que a existncia de Deusseria bem mais evidente que qualquer coisa sensvel; em segundo lugar, porque percorrer uma srie infinita de causas eficientes no tempo, no o poderia levar a qualquer conhecimento salvo o conhecimento da prpria imperfeio do entendimento finito. ParaDescartes, o fato de eu no conseguir compreender uma srie de causas eficientes que se

    estenda indefinidamente no me d o direito de exigir uma causa primeira. Ele utiliza oexemplo de uma quantidade finita na qual ns poderamos conceber divisesindefinidamente, e nem por isso, poderamos exigir a existncia de tomos.

    Aqui, o que chama a ateno que no caso das idias a causalidade no poderia gerar uma srie indefinida, pois necessariamente se chegaria a uma idia primeira ou padro. Jem relao s coisas sensveis, a impossibilidade de se chegar a um termo inviabilizaria autilizao do recurso da causa eficiente. Descartes chega mesmo a dizer que foi justamente para evitar entrar numa causalidade infinita que procurou apoiar seu raciocnio sobre aexistncia de si mesmo pois, segundo ele, nada pode lhe ser mais conhecido.

    Etienne Gilson, conhecido intrprete da filosofia de So Toms, chama ateno parao fato de Descartes modificar o sentido verdadeiro da prova tomista da existncia de Deus pela causa motriz. Segundo Gilson, esta prova consiste em demonstrar que num instantequalquer do tempo, seja finito ou infinito, todo movimento requereria uma srie atual decausas, cujo nmero seria necessariamente finito porque, se no fosse assim, no haveriauma causa primeira, nem uma causa intermediria, nem um efeito. Ora, se o efeito existe,

    tambm necessrio existir a causa.Gilson classifica a atitude de Descartes como uma distrao voluntria, pois o

    desconhecimento da tese tomista seria inverossmil, j que em alguns momentos Descartesutilizava com desenvoltura a estrutura bsica desta prova, como o caso do argumento quemostra a impossibilidade de se recorrer a causas intermedirias de minha existncia, como

    22 AT. IX. Pg. 75-76.

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    meu pai, o pai do meu pai, etc; provas intermedirias que exigiriam um mesmo tipo decausa: a causa primeira e total. Gilson menciona a resposta de Descartes a Gassendi:

    Quando negais que tenhamos necessidade do concurso e da influnciacontnua da causa primeira para sermos conservados, negais algo que todos osmetafsicos afirmam como muito manifesto, mas em que as pessoas pouco letradasno pensam amide, porque dirigem seus pensamentos apenas s causas que sechamam na Escola secundum fieri , isto , das quais os efeitos dependem quanto sua produo e no s que se chamam secundum esse , isto , das quais os efeitosdependem quanto sua subsistncia e sua continuao no ser. Assim o arquiteto acausa da casa, e o pai, a causa de seu filho, quanto to-s produo; eis por que,uma vez estando a obra acabada, ela pode subsistir e permanecer sem essa causa;mas o sol a causa da luz que procede dele e Deus a causa de todas as coisas

    criadas, no somente no que depende de sua produo, mas mesmo no que concerne sua conservao ou sua durao no ser.23

    Na opinio de Gilson, a substituio que Descartes faz da impossibilidade de umaregressoad infinito atual nas causas materiais pela impossibilidade desta mesma regressono tempo, evita um embate com So Toms. Para So Toms possvel uma regressoad infinito no tempo, o que no admitido uma regresso atual das causas materiais. ParaGilson, ao defender uma divisibilidade atualmente infinita da matria, Descartes entrariaem conflito com So Toms.

    Todavia, o sentido mais profundo da segunda prova, para Gilson, justamenteacomodar a novidade cartesiana apresentada na primeira prova sob uma roupagemaparentemente escolstica. Assim, o fato de exigir a causa eficiente de um ser, de umasubstncia, e no mais, como na primeira prova, de uma idia, soaria com mais suavidadeaos ouvidos daqueles que partiam sempre do sensvel para se chegar a Deus. Porm,embora a forma pudesse se assemelhar ao tratamento utilizado na escolstica, o contedoera bem diferente, pois o que faz com que a causalidade eficiente no se perca

    indefinidamente a existncia a priori da idia de Deus neste ser cuja existncia est emquesto, ou seja, a existncia da idia de uma causa primeira. Realmente, Descartes falarexplicitamente, ao final das primeiras respostas, que os novos argumentos que utilizaraento traziam as mesmas razes que j teria adiantado, sendo sua finalidade acomodar aquelas verdades diversidade dos espritos.

    23 OE, Quintas respostas, pg. 265.

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    Voltando ao curso da Terceira Meditao, Descartes se pergunta se no poderia ser,ele mesmo enquanto uma substncia pensante, a causa de seu ser. Ao que responde que

    pelos axiomas:quem pode o mais pode o menos e algo mais difcil criar ou conservar uma substncia que criar ou conservar seus atributos ou propriedades ; se eu tivesse o poder de me criar, ou seja, de criar uma substncia, teria por conseqncia o poder de criar quaisquer atributos, mesmo aqueles que vejo na idia de Deus. de se notar que fora dombito metafsico, o prprio Descartes advertir sobre a utilizao do primeiro axiomacitado. Ele menciona o exemplo de um rei que tem o poder sobre pessoas mas que no otem sobre animais, considerando o homem mais perfeito que o animal. Outro exemplo

    utilizado o da gerao de um ser humano que no o habilita a gerar por exemplo umamosca.

    Passamos ento ao principal argumento da segunda prova, que tirado dadescontinuidade do tempo ou da durao de um ser. Na Exposio Geomtrica, ele aparececomo o axioma II que diz:o tempo presente no depende daquele que imediatamente o

    precedeu; eis por que no necessria uma menor causa para conservar uma coisa do que

    para produzi-la pela primeira vez . Esta doutrina, alis, exposta anteriormente no Le Monde . No contexto deste tratado, o que est em jogo a fundamentao metafsica dasleis da fsica. Pela criao contnua, ou, o que o mesmo, pela conservao perene damatria em movimento, e o que mais importante, atravs de uma ao sempre imutvel,Deus conserva a mesma quantidade de movimento total na natureza.24 A cada instante,Deus mantm sua ao, que, no caso das partculas da matria, faz com que a tendncia deseu movimento seja sempre retilnea. A mudana de direo acontece pelo choque comoutros corpos que tm a mesma tendncia inicial retilnea. Descartes faz uma distinoentre a quantidade do movimento, que seria a mesma sempre e sua direo, que seria

    diversificada pelos objetos encontrados na sua trajetria. Descartes chega mesmo a fazer uma comparao com a nossa vontade, que seria conservada sempre numa direo reta por Deus, isto , do ponto de vista moral, numa boa vontade, mas que, ao encontrar obstculosem seu caminho, se desviaria, da mesma forma que um corpo muda de direo quandocolide com outro.

    24 Cf. Carta a Mersenne de 26 de abril 1643.

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    As teses da descontinuidade do tempo e da identidade entre a ao de criar e a deconservar oferecem a vantagem de prescindir de uma srie causal infinita, como no caso de

    uma investigao na rvore genealgica de uma pessoa. Assim, pergunto pela causa de meuser no instante atual de minha existncia, o que me remete aos axiomas que sustentam aaplicao do princpio de causalidade:

    1- Se no posso me conservar ou me criar, devo minha existncia atual a outro, poisdo nada, nada se origina. 2- Deve haver ao menos tanta realidade na causa quanto no seuefeito. 3- Logo, tenho que ser causado, no mnimo, por uma substncia pensante que tenhaa idia de Deus; contudo, uma tal substncia sendo finita como eu, no pode me conservar,

    pois se ela pudesse conservar uma outra substncia pensante ele tambm poderia seconservar, e assim, ela seria Deus.

    Com isso, sempre que pergunto pela causa da conservao de minha existncia acabo por evitar uma srie que v at o infinito, desembocando sempre num ser que tem o poder de se conservar: Deus. Veremos que esta mesma espcie de causalidade desempenhar um papel fundamental no argumento ontolgico.

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    3.3. O argumento ontolgico

    O argumento ontolgico, cujo nome foi tornado famoso por Kant, tem longa histriana filosofia desde Santo Anselmo. Nosso interesse, entretanto, ficar restrito anlise desteargumento nas Meditaes Metafsicas de Descartes. Embora possamos em algumasocasies mencionar autores como Kant e Santo Anselmo, pretendemos nos deter nasobjees dos interlocutores de Descartes nasObjees e Respostas , pois entendemos queestas ajudam mais a entender o conjunto das provas da existncia de Deus que o objetodesta pesquisa.

    O argumento ontolgico surge no contexto daQuinta Meditao . Nesta meditao,Descartes procura demonstrar que as essncias das coisas corporais, que nada mais so queas idias matemticas, so verdadeiras. Assim, se a idia da extenso, mesmo sendonaturalmente considerada clara e distinta, era colocada em dvida porque o critrio declareza e distino ainda no estava assegurado; agora, aps a veracidade divina ser estabelecida naTerceira Meditao , ela ter de volta seu estatuto de verdade eterna eimutvel. Antes de passarmos ao argumento ontolgico vejamos as concluses maisimportantes daQuarta Meditao.

    Na Quarta Meditao, o problema colocado foi o seguinte: como posso me enganar se no fui criado por um Deus enganador? A resposta ser tirada da atividade conjunta deduas faculdades: o entendimento e a vontade. Tomadas separadamente, no h motivos parao erro. Tanto a vontade como o entendimento so criaes divinas e, portanto, tm umestatuto garantido aps aTerceira Meditao . Todavia, o uso conjunto dessas faculdadesno de responsabilidade divina. Desta forma, o fato de ter uma vontade infinitaformalmente e um entendimento limitado possibilita o erro como uma privao. Uma

    privao significa a falta de um bem que pela minha prpria natureza eu no deveria conter.Uma substncia finita no pode ser perfeita, tendo por conseqncia em algumas ocasies oerro. O erro algo relativo atividade humana, ao julgamento. Por isso, em diversasocasies, Descartes questiona se determinada idia simples ou composta arbitrariamente pelo juzo. pelo mesmo motivo que o juzo deixado de lado naTerceira Meditao,tendo por meta deixar o entendimento por si s intuir a idia de Deus, evitando por issouma composio arbitrria. Certamente quando, naSegunda e Terceira Meditaes,

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    Descartes afirma a existncia doCogito e de Deus h a utilizao da vontade. No entanto,nestes casos a vontade coagida a dar seu consentimento.

    Assim, todo o processo da dvida pode ser entendido como um meio de descobrir idias que sobrevivem a um julgamentoa contrario, invertendo a ordem que, no sensocomum, iria da vontade ao entendimento, e que, aps o esforo metafsico, vai doentendimento vontade. As verdades matemticas e o argumento ontolgico iro se beneficiar das concluses estabelecidas naQuarta Meditao, como podemos ver nacitao abaixo e na discusso do argumento ontolgico.

    E o que, aqui, estimo mais considervel que encontro em mim umainfinidade de idias de certas coisas que no podem ser consideradas um puro nada,embora talvez elas no tenham nenhuma existncia fora de meu pensamento, e queno so fingidas por mim, conquanto esteja em minha liberdade pens-las ou no pens-las; mas elas possuem suas naturezas verdadeiras e imutveis. Como, por exemplo, quando eu imagino um tringulo, ainda que no haja talvez em nenhumlugar do mundo, fora de meu pensamento, uma tal figura, e que nunca tenha havido,no deixa, entretanto, de haver uma certa natureza ou forma, ou essnciadeterminada dessa figura, a qual imutvel e eterna, que eu no inventeiabsolutamente e que no depende de maneira alguma de meu esprito; como parece pelo fato de que se pode demonstrar diversas propriedades desse tringulo, a saber,que os trs ngulos so iguais a dois retos, que o maior ngulo oposto ao maior lado e outras semelhantes...25

    O critrio de clareza e distino funciona, ao mesmo tempo, como um critriouniversal de verdade e, tambm, como a premissa maior do argumento ontolgico.Colocado em forma pelo prprio Descartes nas Primeiras Respostas o argumento ficouassim:

    Premissa maior: o que ns concebemos clara e distintamente pertencer natureza, ou essncia, ou forma imutvel e verdadeira de qualquer coisa, pode ser dito ou afirmado

    com verdade desta coisa. Premissa menor: ns concebemos clara e distintamente que pertence natureza

    verdadeira e imutvel de Deus que ele exista.Concluso: ns podemos afirmar com verdade que ele existe ou ao menos que a

    concluso legtima.

    25 AT. IX. Pg. 51.

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    Aps a formalizao, Descartes adianta que a premissa maior no se pode negar poisse est de acordo, aps as provas daTerceira e Quarta Meditaes , que tudo o que ns

    concebemos clara e distintamente verdadeiro. Resta ento a premissa menor onde estariatoda a dificuldade. Na verdade, segundo Descartes, so duas as dificuldades.

    A primeira dificuldade acontece porque ns estamos acostumados a distinguir, emtodas as coisas, a existncia da essncia, fazendo com que no percebamos que em Deusessa distino no existe. Em resposta, Descartes diz que a existncia possvel est contidaem todas as coisas que ns concebemos clara e distintamente e que, por outro lado, aexistncia necessria est contida exclusivamente na idia de Deus. Complementando a

    resposta, ele revela que ainda que concebamos todas as outras coisas como existentes, nose infere disso que elas existam, mas unicamente que elas podem existir, pois no necessrio que sua existncia atual esteja unida s suas outras propriedades. Com a idia deDeus acontece exatamente o contrrio, isto , a existncia atual concebida clara edistintamente unida s outras propriedades.

    A segunda dificuldade se d por no distinguirmos cuidadosamente o que pertence verdadeira e imutvel essncia de uma coisa daquilo que lhe atribudo nica eexclusivamente pela fico do nosso entendimento. Desta maneira, ainda que percebamos bastante claramente que a existncia pertence essncia de Deus, pelo fato de nosabermos se sua essncia imutvel ou se ela foi unicamente feita e inventada pelo nossoesprito, ns no conclumos da que Deus existe. Em resposta, Descartes adverte que necessrio tomar cuidado, pois as idias que no contm verdadeiras e imutveis naturezasmas so nica e exclusivamente feitas e compostas pelo entendimento, podem ser divididas pelo prprio entendimento, no por uma abstrao ou restrio do pensamento mas por umaclara e distinta operao, de maneira que as coisas que o entendimento no pode dividir por

    uma tal operao, sem dvida, foram compostas e inventadas por ele. Descartes chegamesmo a dar alguns exemplos como o de um cavalo alado, um leo atualmente existente eum tringulo inscrito num quadrado. Nestes casos, posso clara e distintamente conceber umcavalo sem asas, um leo que no exista e um tringulo que no esteja inscrito numquadrado, o que um sinal de que todas estas idias foram compostas e inventadas por mim. De outra forma acontece com a idia de um triangulo quando tento pens-la emseparado de sua propriedade que diz que seus trs ngulos so iguais a dois retos. Quando

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    penso num triangulo com seus ngulos maiores ou menores que dois retos, este pensamentona verdade no pode ser concebido clara e distintamente, o que quer dizer que esta

    propriedade a essncia do tringulo e que, por isso, imutvel.Se recordarmos o exemplo do pedao de cera naSegunda Meditao , lembraremos

    que, j naquela ocasio, a nica propriedade que no poderia ser pensada clara edistintamente separada da cera era a sua extenso, pois a extenso nada mais que a propriedade essencial da cera, ou seja, aquilo que permanece imutvel sob todas asmodificaes das qualidades sensveis que, ao serem pensadas clara e distintamenteseparadas da extenso, no so propriedades essenciais da mesma, sendo atribudas

    composio com o esprito.Para Descartes, a recusa em considerar a existncia atual como uma propriedade

    essencial de Deus faz com que o argumento ontolgico tenha a aparncia de um sofisma, oque fez Descartes quase desistir de coloc-lo nas Meditaes. Explica-se, assim, por queeste argumento a ltima prova da existncia de Deus. Ele o argumento mais complexo,transformando os outros dois em argumentos preparativos, pois ele necessita de umconhecimento claro e distinto da natureza infinita e incompreensvel de Deus, o que s possvel aps os argumentos das Meditaes anteriores. Vejamos uma passagem das

    Primeiras Respostas, que retrata bem a unidade dos trs argumentos.

    Porm, se ns examinarmos cuidadosamente, a saber: se a existnciaconvm ao ser soberanamente potente e qual espcie de existncia, ns poderemosclara e distintamente conhecer, em primeiro lugar, que, ao menos, a existncia possvel lhe convm como a todas as outras coisas das quais temos em ns qualquer idia distinta, mesmo quelas que so compostas pelas fices do nosso esprito.Em seguida, porque ns no podemos pensar que sua existncia seja possvel semque, ao mesmo tempo, conhecendo sua potncia infinita, ns no conheamos queele pode existir por sua prpria fora; conclumos da que realmente ele existe e que

    existiu por toda eternidade, pois bem manifesto pela luz natural que o que podeexistir por sua prpria fora existe sempre e, assim, ns conhecemos que aexistncia necessria est contida na idia de um ser soberanamente potente, no por uma fico do entendimento, mas por pertencer verdadeira e imutvelnatureza de tal ser o existir; e tambm ser fcil conhecermos que impossvel queeste ser soberanamente potente no tenha em si todas as outras perfeies que estocontidas na idia de Deus, de maneira que de sua prpria natureza e sem nenhumafico do entendimento elas estejam todas juntas e existentes em Deus...26

    26 AT. IX. Pg. 94.

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    Etienne Gilson, em uma de suas obras sobre a relao entre a filosofia de Descartese a filosofia escolstica27, sustenta que Descartes, ao intercalar a potncia infinita entre a

    essncia e a existncia de Deus impe uma transformao sem precedentes no argumentode Santo Anselmo. Segundo este comentador, da necessidade esttica de uma essncia passa-se a uma relao dinmica de causalidade. Alm de ter a existncia atual como uma propriedade essencial, pode-se perguntar ainda o porqu disso, desembocando finalmenteem uma ltima razo que seria a razo positiva de no necessitar de causa ou, dito de umaforma mais cartesiana, sua potncia infinita a causa pela qual ele no necessita deconservao.

    Gassendi acusar Descartes de fazer uma comparao inexata ao colocar no mesmo plano uma propriedade, como caso da soma dos ngulos do tringulo serem iguais a doisretos, e a existncia, no caso da idia de Deus. um raciocnio anlogo ao seguido por Kant. Tanto Gassendi como Kant se recusam a considerar a existncia como uma propriedade ou um atributo que possa analiticamente estar contido no sujeito. Na filosofiade Kant, s atravs de um juzo sinttico que se apie na intuio sensvel, eu possoconferir existncia a um ser.

    Para Descartes, como se trata da ordem que vai do conhecer ao ser, o que eu puder,clara e distintamente, isto , atravs de uma distino real, pensar separadamente, poderrealmente existir separado. Um exemplo fundamental desta prioridade intelectual naatribuio da existncia real s coisas o fato de que mesmo experimentando uma uniosubstancial entre o corpo e o esprito, mesmo assim, por conceber, isto , pensar distintamente a idia do corpo e a idia do esprito, eu devo admiti-los como realmenteseparados. Devemos tambm lembrar aqui aSegunda Meditao , na qual Descartes atesta a possibilidade se pensar apenas enquanto uma substncia pensante, o que garante sua

    existncia naquele momento exclusivamente como um pensamento. O fato de que paraGassendi a dvida universal inconcebvel se explica justamente pela recusa em aceitar o pensamento puro como critrio de verdade das coisas.

    Desta maneira, por conter entre suas propriedades essenciais a existncia atual, Deusexiste necessariamente. Como vimos h pouco, a conseqncia mais fundamental de sua potncia infinita a de ser causa de si prprio. Qual o sentido desta noo?

    27 tudes sur le rle de la pense medievale dans la formation du systme cartesien. Pg.226.

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    Nas respostas a Arnauld, Descartes diz que a considerao da causa eficiente o primeiro e principal meio, para no dizer o nico, que ns temos para provar a existncia de

    Deus.28 Contudo, num trecho anterior deste mesmo texto, Decartes faz uma ressalva aodizer que a causa eficiente no deve ser tomada no mesmo sentido que aplicado s coisascriadas mas no sentido de uma causa formal.29 Alm desta distino, Descartes propeoutra: aquilo que existe por si , existe por uma causa formal; o que existe por outrem ou por outro , existe por uma causa eficiente. No entanto, aqueles que consideram apenas o sentidousual da causa eficiente facilmente acabam por no atribuir causa a Deus; ento o termo

    por si tomado negativamente, como existindo sem causa. Essa interpretao acaba por

    impossibilitar a prova da existncia de Deus pelos efeitos que se baseia justamente nacausalidade eficiente.30

    Segundo Descartes, necessrio mostrar que entre a causa eficiente propriamente ditae o existir sem causa h um meio termo que existir pela essncia positiva de algo . Para oautor das Meditaes , o conceito de causa eficiente pode se estender a esse meio termoassim como se pode estender o conceito de um polgono retilneo, que tem um nmeroindefinido de lados, ao conceito de um crculo. Toda a dificuldade se encontra em restringir o conceito de causa eficiente ao sentido usual que diz que ela deve necessariamente preceder o efeito no tempo. Se, tomarmos a causa eficiente apenas como aquilo que produzo efeito, ento poderamos aplic-la a Deus. Porm, h uma ressalva. A causa eficiente nose distingue apenas temporalmente do efeito, mas tambm logicamente. Por isso, dizDescartes, o recurso causa eficiente no caso de Deus analgico tendo que ser completado pela causa formal. S atravs da conjugao destas duas causas ns podemosconceber positivamente a existncia de Deus.

    A unidade das provas da existncia de Deus atingida portanto na unio da causa

    eficiente causa formal. Atravs da primeira, eu chego a existncia de Deus atravs de seusefeitos, atravs da segunda, atinjo sua existncia por sua essncia.

    28 AT. IX. Pg. 184.29 AT. IX. Pg. 182.30 AT. IX. Pg. 185.

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