108
Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur Barrio nas obras Trabalho Processo 4 dias 4 noites e Fortaleza-Lisboa Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio. Orientador: Profº. Antonio Edmilson Martins Rodrigues Rio de Janeiro Setembro de 2005

Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Silvio Alvares Suleiman

O Lirismo Contemporâneo de Artur Barrio nas obras Trabalho Processo 4 dias 4 noites e Fortaleza-Lisboa

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio.

Orientador: Profº. Antonio Edmilson Martins Rodrigues

Rio de Janeiro

Setembro de 2005

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 2: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Silvio Alvares Suleiman

O Lirismo Contemporâneo de Artur Barrio nas obras Trabalho Processo 4 dias 4 noites e Fortaleza-Lisboa

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profº Antonio Edmilson Martins Rodrigues Orientador

Departamento de História-PUC-Rio

Profª Vera Beatriz Cordeiro Siqueira

Co-Orientador Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Artes – UERJ Profª Maria Luiza Sabóia Saddi

Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes – UERJ

Profº Roberto Correa dos Santos Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Artes – UERJ

Profº João Pontes Nogueira Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

PUC-Rio

Rio de Janeiro, 12 de setembro de 2005.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 4: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Todos os direitos reservados. É proibida reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor, e do orientador.

Silvio Alvares Suleiman Graduou-se em Desenho Industrial na Faculdade da Cidade em 1989 e em Educação Artística na Uerj em 2001. Especializou-se em Teoria da Arte: Fundamentos e Práticas Artísticas na Uerj em 1999. Atuou como Coordenador de Exposições da Arte e Cultura do Departamento Cultural da Uerj. Atua como professor do Ensino Fundamental da rede particular de ensino.

Ficha Catalográfica

CDD: 900

Suleiman, Silvio Alvares O lirismo contemporâneo de Artur Barrio nas obras Trabalho processo 4 dias 4 noites e Fortaleza-Lisboa / Silvio Alvares Suleiman ; orientador: Antonio Edmilson Martins Rodrigues. – Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de História, 2005. 105 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. Barrio, Artur. 3. Arte contemporânea brasileira. 4. Instalação. 5. Performance. I. Rodrigues, Antonio Edmilson Martins. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 5: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Agradecimentos

A todos aqueles que de alguma forma contribuíram para a concretização da

presente dissertação e, em especial a:

A PUC-Rio pelo auxilio concedido sem o qual este trabalho não poderia ter sido

realizado.

Artur Alípio Barrio, pela arte.

A Vera Beatriz Siqueira, pela orientação de vida.

A Marcus Alexandre Motta, pelas aulas iniciais.

A Cecília Cotrim, pela orientação inicial.

A Antonio Edmilson Martins Rodrigues, pela paciência e delicadeza.

A Marcos Nascimento de Aguiar, pelo companheirismo.

A Janicy Meruzzi e Erivaldo Pedrosa, pelo ouvido sempre amigo.

A Raul Motta pelo diálogo produtivo.

A Alessandro Bernardo e Lucio André Monteiro de Barros pelo, socorro

imediato.

A Cláudio Eduardo e Bentto de Lima, pela eterna gentileza.

A Jeferson Masson, por me aturar durante a elaboração do texto.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 6: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo.

A Gu, minha sobrinha, pela paciência.

Aos amigos da Escola Parque e dos Colégios don Quixote e QI., que me apoiaram

incondicionalmente.

E, também, ao Museu de Arte Moderna, que prontamente abriu suas portas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 7: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Resumo

Suleiman, Silvio; Rodrigues, Antonio Edmilson Martins. O Lirismo Contemporâneo de Artur Barrio nas obras Trabalho Processo 4 dias 4 noites e Fortaleza-Lisboa. Rio de Janeiro, 2005. 105 pp. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O Lirismo Contemporâneo de Artur Barrio nas obras Trabalho

Processo 4 dias 4 noites e Fortaleza-Lisboa pretende apontar alguns

aspectos da obra deste artista, dando especial atenção à performance

Trabalho Processo 4 dias 4 noites, de 1970, e também às duas instalações

Fortaleza-Lisboa, desenvolvidas respectivamente em 2001 (Galeria Cândido

Portinari, Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e 2004 (XXVI Bienal

Internacional de Arte de São Paulo). O ponto de partida está baseado na

compreensão poética de Barrio, no sentido literário do termo. Tal enfoque se

apresenta intrinsecamente vinculado à maneira peculiar com que lida com a

idéia de indistinção entre arte e vida, visível, inclusive, em sua forma de

escrita. Assim, é a partir dessa premissa que a junção de palavras, como

em IdéiaSituação, espelha o que para Artur Barrio sempre foi uma condição:

a inseparabilidade entre objeto e sujeito. Assim, ganha relevância a

equação “Arte = Vida”, indispensável à compreensão do fazer artístico de

Barrio, capaz de situar sua obra, a um só tempo, como poética individual e

parte integrante do quadro mais geral da produção artística atual.

Palavras-Chave

Artur Barrio; Arte Contemporânea Brasileira; Instalação; Performance.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 8: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Abstract

Suleiman, Silvio; Rodrigues, Antonio Edmilson Martins (Advisor). The Contemporary Lyricism of Artur Barrio in the works Work Process 4 days 4 nights and Fortaleza-Lisboa. Rio de Janeiro, 2005. 105 pp. Dissertation – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. The Contemporary Lyricism of Artur Barrio in the works Work

Process 4 days 4 night and Fortaleza-Lisboa intends to point some

aspects of the work of this Artist, giving special attention to the

performance entitled Work Process 4 days 4 nights in 1970, and also to

the two installations both named Fortaleza-Lisboa, developed respectively

in 2001 (Cândido Portinari gallery, Universidade do Estado do Rio de

Janeiro) and 2004 (XXVI the Biennial International of Art of São Paulo). Its

starting point is based in understanding of the Barrio’s poetical view, in the

literary meaning of the term. Such approach will be closely tied to the

peculiar way it deals with the idea of similarity between art and life, also

visible in his writing. So, it is from this premise that the tack between words

such as “IdéiaSituação” (IdeaSituation) shows what always was a

condition for Artur Barrio: the inseparable relationship between the things

and the person. Thus, the equation "Art = Life" becomes relevant, even

crucial to the understanding of Barrio’s artistry, which is capable to point

out his workmanship both as individual poetics and as a constituting part

of contemporary artistic production.

Keywords

Artur Barrio; Brazilian Contemporary Art; Installation; Performance.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 9: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Sumário

1. Introdução 12

2. Poéticas singulares 17

3. Relendo o Trabalho/Processo 4 dias 4 noites

3.1. A experiência da impermanência 32

3.2. Trabalho/Processo: descrição da memória 35

3.3. Mergulhar o horizonte: para além do Trabalho/Processo 37

4. Sobre Fortaleza-Lisboa

4.1. A linha do horizonte determina o espaço? 63

4.2. Broadway Boogie-Woogie, jangada ready-made 71

4.3. A escolha de Olympia 76

4.4. O reverso do mesmo lado 78

5. Conclusão 85

5.1. Circuitos ideológicos /4 dias 4 noites/ ready-made 87

5.2. No horizonte a mensagem escrita: Fortaleza-Lisboa 92

6. Referências bibliográficas 97

7. Anexos

7.1 Anexo I - Poemas sonoristas e optofonéticos 104

7.2 Anexo II – Fortaleza-Lisboa : texto do artista 105

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 10: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Lista de figuras

Figura 1- CadernosLivros. Col. Gilberto Chateubriand/MAM-RJ. Registro Beto Felício. 13 Figura 2 - 1ª parte da situação T/T,1. 1970. Belo Horizonte. Registro César Carneiro. 18 Figura 3 - Janela...12h...18h...3h...5h..., 1999. Rio de Janeiro: Copacabana. Registro Artur Barrio. 22 Figura 4- Transportáveis. Geradas da performance realizada pelo “Hyenas” documentada por João Machado em vídeo. 23 Figura 5- O Fio de Ariadne...(no tempo como jogo.......de tempo no próprio tempo).....2000. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Registro Marcos Bonisson e Artur Barrio. 25 Figura 6 - Des.Compressão, 1973. Petrópolis. Registro Dóris Mena. 27 Figura 7- Puídas...Esgarçadas...Rotas...(os) ,1981. Paris. Registro Sonia Andrade. 28 Figura 8 - O Galo. Geradas da performance realizada por Antonio Manuel, 1972. Registro Antonio Manuel. 29 Figura 9 - Situação...Orhhhhh...ou...5.000. TE...em...NY...City..., 1969. Salão da Bússola. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Registros César Carneiro e Artur Barrio. 34 Figura 10 - Livro de Carne, 1978-79. Espaço Cairn. Paris. Registro Louis D. Haneuse. 35 Figura 11 - Parede, 1970. Quarto em Copacabana. Rio de Janeiro. Registro Artur Barrio. 40 Figura 12 - 1) De Dentro para Fora, 2) Simples...,1970. Rio de Janeiro. Registro Artur Barrio. 43 Figura 13 - Situação...Cidade... Y... Campo...,1970. Rio de Janeiro. Registro Luiz Alphonsus. 45 Figura 14 - Mensagem – 16- .Mar.,1971. Rio de Janeiro. Registro Artur Barrio. 46

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 11: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Figura 15 - Constantin Guys, Trois femmes pres d’um comptoir, 1860. Petit Palais, Paris. Registro Musées de la Ville de Paris/Pierrain. 50 Figura 16 - Rodapés de Carne, 1978. Garagem 103. Nice. Registro Artur Barrio. 51 Figura 17 - Áreas Sangrentas, 1975. Viana do Castelo. Registro Ursula Zanger. 52 Figura 18 - 4. Movimentos, 1974. Praia do Mindelo, Portugal. Registro Artur Barrio. 53 Figura 19 - Lixo=Eletricidade, 1975. Paris. Registro Artur Barrio. 54 Figura 20 - Situação Ambiente K, 1970. Rio de Janeiro. Registros Luiz Alphonsus e Artur Barrio. 54 Figura 21 - 36 Pontos Sonoros, 1982. Amsterdam. Registros: Maria Strick. 56 Figura 22 - Max Ernst, La Ville entiére, 1935-36. Kunsthaus. Zurique. 58 Figura 23 - Man Ray, Objet\; déjeuner em fourrure (Objeto: desjejum em pele), 1936. Coleção privada. Reproduzida por cortesia de Mme Bürgi. 62 Figura 24 - Artur Barrio Fortaleza-Lisboa, Detalhe da instalação. Galeria Cândido Portinari, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Registro Eires Melo da Silveira. 63 Figura 25 - Artur Barrio Fortaleza-Lisboa Detalhes da instalação, 2001, Galeria Cândido Portinari, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Registro Eires Melo da Silveira. 64 Figura 26 - Jackson Pollock Número 1, 1949. Los Angeles. Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles. 66 Figura 27 - Piet Mondrian, Composição em vermelho, amarelo e azul, 1927. Amsterdã. Stedelijk Museum. 68 Figura 28 - Artur Barrio Fortaleza-Lisboa. 2004, São Paulo. XXVI Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Registro do Autor. 71

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 12: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Figura 29 - Piet Mondrian Broadway Boogie Woogie 1942-1943. Nova York. Museu de Arte Moderna de Nova York. 72 Figura 30 - Artur Barrio Fortaleza-Lisboa. 2004, São Paulo. XXVI Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Registro do Autor. 74 Figura 31 - Édouard Manet, Olympia, Musée D’ Orsay, Paris. 76 Figura 32 - Artur Barrio Fortaleza-Lisboa. 2004, São Paulo. XXVI Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Registro do Autor. 80 Figura 33 - Carl Andre Lament for the Children 1976-1996, 1976 at P.S.1., Long Island City. 80 Figura 34 - Artur Barrio Fortaleza-Lisboa. 2004, São Paulo. XXVI Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Registro do Autor. 82 Figura 35 - Artur Barrio Fortaleza-Lisboa. 2004, São Paulo. XXVI Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Registro do Autor. 83 Figura 36 - Cildo Meireles. Projeto Coca-Cola. Registro fotográfico. Coleção do New Museum of Contemporary Art, Nova York, 1970. 90

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 13: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

1 Introdução

A partir de alguns aspectos da obra de Artur Barrio1, entre vistos na

performance Trabalho Processo 4 dias 4 noites, de 1970, e nas duas

instalações Fortaleza-Lisboa, de 2001 e 2004. Esta dissertação busca

compreender o que pode ser conceituado como a poética de Barrio, no

sentido literário do termo. A idéia de indistinção entre arte e vida - visível,

inclusive, em sua forma de escrita, como espelha a junção de palavras

como em IdéiaSituação – apresenta a condição intrínseca do

pensamento de Barrio: a inseparabilidade entre objeto e sujeito. Da

equação Arte = Vida surgem obras inusitadas que acolhem esferas

específicas – literatura, artes plásticas e performance –, dada visão de

mundo unívoca do artista.

A escolha dessas três obras pode parecer, no mínimo, aleatória, se

for considerado o grande número de intervenções que Barrio desenvolveu

ao longo destes trinta anos, não fossem algumas especificidades. Há algo

de particular em 4 dias 4 noites que não se vê em qualquer outro trabalho

seu: a produção de uma obra fundada unicamente a partir de sua

descrição poética. A performance em questão configura-se sinteticamente

como uma andança solitária do artista por ruas do Rio de Janeiro. Sem

registros visuais e escrita sete anos depois de sua realização, 4 dias 4

noites torna-se refém da memória; pois a cada descrição formulada,

alguns dados novos vão lhe alterando as proporções e os contornos

fenomênicos. São imagens incertas atreladas à mente e à palavra de

Barrio que, a todo instante, podem requisitar para si o estatuto de verdade

provisória.

Por outro lado, aparentando-se distintas, as instalações chamadas

Fortaleza-Lisboa surgem imediatamente vinculadas pelo título, que se

repete como um agente provocador. A sugestão da viagem, feita e refeita

pelo artista, na direção oposta tanto de sua viagem existencial – a

migração do artista de origem lusa para terras brasileiras – quanto da 1Artur Alípio Barrio de Sousa Lopes nasceu na cidade do Porto em Portugal no ano de 1945. Chegou ao Rio de Janeiro em 1955. Estudou na Escola de Belas Artes e começou a registrar seus

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 14: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

13

imigração histórica, realizada pelos colonizadores, e se traduz numa

narrativa poética, fundada na própria condição instável de trânsito. Ainda

mais se for incluído nesse quadro o fato de a travessia ser feita de

jangada, elemento central em ambas as instalações. Para além da

imediata condição familiar que evocam, estas se revelam quase humanas,

acomodadas; mas, ao mesmo tempo, mantendo um dialogo com os

espaços em que se instalaram.

A observação o trabalho de Barrio, revela que a escrita - em sentido

lato – faz parte indistinta de sua poética. E isso se torna particularmente

visível em seus objetos conhecidos como cadernosLivros criados a partir

das próprias obras e/ou como parte integrante delas. Aliás, foram eles, os

cadernosLivros, que apontaram mais incisivamente os rumos literários do

Artista, já que guardaram silenciosamente as expectativas sobre os

escritos, mesmo inexistentes.

Figura-1 CadernosLivros. 1973, 1973 1974, 1978 1978, 1978

O nome cadernoLivro já nos coloca de imediato um problema. Se a

palavra, como aqui nos é apresentada, não faz parte do extenso rol de

vocábulos da língua portuguesa, então ela só pode se constituir como uma

indução poética pensada por Barrio. Se como ponto de partida for tomado

o sentido literal das palavras Caderno e Livro, veremos que o Artista

justapõe dois instantes do fazer poéticoliterário, aproximando o ato de

escritos desenhos em cadernosLivros a partir de 1966.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 15: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

14

registrar idéias e procedimentos (Caderno) à condição de obra terminada

(Livro).

Ao lançar mão de tal acomodação Barrio propõe algo inusitado ao

panorama da Arte, ou seja, que os seus cadernosLivros deveriam ser

tomados como “embriões”2 de seu trabalho, e como capazes de revelar

pensamentos e condutas, devendo, assim, ser vistos a partir dessa ótica

geracional como um ponto de partida. Essa idéia, que lhe ocorreu em

meados dos anos 1960, tomou tal impulso a ponto de tornar-se quase um

imperativo a seu exercício poético, integrando, inclusive, de modo

incondicional os espaços instalativos desenvolvidos até hoje. Esses

registros reúnem conjuntos diferenciados de informações plásticas:

escritos, desenhos, pinturas e colagens de materiais, que vão desde a

fotografia a simples objetos coletados como, por exemplo, alguns pentes

ou até mesmo cachos de seu próprio cabelo.

Antes de retomar ao tema cadernoLivro seria interessante buscar

elos entre a ação poética de Barrio e a História da Arte. E, talvez um bom

exemplo dessa ligação seja a sua própria tradição européia, e mais

especificamente os movimentos dadaísta e surrealista, coloridos por ele,

no entanto, a partir de sua percepção ativa diante dos aspectos

socioeconômicos do Terceiro Mundo.

É fato que a tradição européia inculca nos ocidentais um orgulho por

seus fazeres pictóricos e escultóricos. Ensina também que os

procedimentos de desenvolvimento de tais fazeres, devem partir da

exibição lenta e gradual, como em qualquer processo de criação, para a

definição processual, a fim de demonstrar, de fato, refinamento técnico e

raro saber. Inclusive, aparecem em livros exibições detalhadas dos

diversos caminhos trilhados pelos grandes mestres. Dados capazes de

revelar alguns dos contornos geniais da criação. Isso não quer dizer que

toda forma de produção dependa desse ato revelador, e, muito menos,

que tal atitude não seja válida. Longe disso, o próprio Barrio teria certa

vez, em uma das Fortaleza-Lisboa, revelado seu making-off, a partir de um

vídeo exibido durante todo o período da exposição. Importava ao Artista

2 Depoimento de Barrio no cadernoLivro de 1973.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 16: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

15

pensar a obra em si, porém integrada inexoravelmente à instalação, já que

o vídeo não esclarecia propriamente os traços da obra.

Passando a reboque desse imperativo à memória da criação como

mecanismo didático, como um processo esclarecedor, Barrio não estaria

sozinho, não falo aqui propriamente dos surrealistas, que, aliás, cercaram-

se muitas vezes de um didatismo precioso, mas da grande pintura

americana, desenvolvida em meados do século XX e conhecida sob o

nome de expressionismo abstrato. Nele estariam visíveis os contornos do

desenlace com a modelar tradição européia, aparente na própria conduta

operacional do grupo (se é que houve propriamente um movimento, uma

coesão) em que Jackson Pollock e seu abandonar-se no ato de pintar –

para fazer aflorar os impulsos vitais e assim, reconhecer, sentir a própria

revelação do instante de criação- é o exemplo mais contundente dessa

atitude.

A coerência operacional do discurso plástico de tais artistas não

poderia ter sido mais clara, já que não seria difícil perceber, a partir das

palavras do próprio Pollock de pintar dentro da sua pintura, que seus

mecanismos de criação estariam associados à construção de um novo

referencial de arte, uma imposição quase arquitetônica por que passara

sua poética pollockiana ao ser levantada literalmente da horizontalidade do

solo. É como se a construção de uma forma de “pintura tipicamente

americana”3 surgisse da conquista da própria territorialidade da tela

agigantada. Diferente de um Picasso ou Matisse que, como bons

europeus, já partiriam das paredes e dos cavaletes, Pollock teve que abrir

mão dos pincéis, cuidando, porém, que sua formulação não ofendesse,

mas fundasse uma nova tradição.

Os cadernosLivros de anotações de Barrio são mais tímidos em seus

formatos, assemelhando-se às pequenas cadernetas de anotações que

acompanharam os muitos comerciantes portugueses ao Brasil. Tais

cadernetas devolveriam à lembrança alguns registros acerca de créditos e

dívidas, afirmando a necessidade imperativa de um sistema de controle da

própria memória, o que em Barrio se tornaria um importante

objetoproblema, fundamental para sua poesia, uma vez que

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 17: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

16

cadernosLivros, tal qual o vídeo sobre o making-off, não seriam

propriamente materiais esclarecedores da literariedade da sua criação,

mas, antes, obras em si, capazes de esgarçar, muitas vezes, quaisquer

entendimentos acerca de um encadeamento processual lógico, no sentido

tradicional que a expressão sugere.

Desenvolvidas em 2001 e em 2004 as obras intituladas Fortaleza -

Lisboa fazem parte de uma etapa recente da obra de Barrio e se

fundamentam em diálogos muito específicos com o arranjo físico dos

lugares em que foram instaladas. Mas, além do comprometimento

específico com o local, aparece uma relação nova com o mundo, que se

desenrola como uma espécie superior de aceitação do espaço, e seus

limites e circunstâncias, religando a travessia apresentada com a antiga

sabedoria dos viajantes marítimos, que aparece descrita na primeira de

suas versões: a linha do horizonte determina o espaço. Uma resignação

poética à percepção contemporânea de que, ao proclamarem a união Arte-

Vida, os artistas se arriscam a, ampliar os contornos da Arte e limitar a

dimensão poética da Vida. Adensar o sentido poético da existência parece

ponto de partida essencial para quem, fundindo artista e obra, opta pelo

uso de uma só palavra: SubjetivoObjetivo.

3 Expressão popularizada por Clement Grenberg.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 18: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

2 Poéticas Singulares

Artur Barrio chegou no cenário artístico carioca durante o auge do

regime militar, ou seja, durante os anos de chumbo. O que marcou, no

entanto, sua obra naqueles anos de 1970, não esteve propriamente

vinculado à militância política, mas a incorporação de uma ordem estética

estranha à ditadura, o que implicou, por exemplo, um lançar-se a público

a partir de ações um tanto radicais. Não menos radicais do que os

materiais que viria a utilizar, como metáfora da expressão artística, em

outras performances: papel higiênico, carne, lama, excrementos. O que

logo pareceria, ao gosto público, estapafúrdio: reunir tais elementos a

pretexto de fazer arte, caso a percepção de tal ação não fosse mediada

por uma espécie de reconhecimento a loucura própria aos artistas. No

entanto, Barrio procura, para além disso, reestabelecer a própria

indistinção entre coisas: as artísticas e as não artísticas, as apropriadas e

as inadequadas. Ação que recairia sempre numa escolha valorativa,

tornando o próprio ato de escolher um problema a ser resolvido.

Certa vez o historiador da arte Ronaldo Brito, ao falar da obra de

José Resende lançou a expressão “elegância perversa”4 para

exemplificar a união perfeita derivada da diversidade precária e volúvel

entre os materiais utilizados. Talvez Barrio pudesse se valer de um

adjetivo pinçado do extremo oposto: deselegância bondosa, já que nada

em sua obra parece assumir intencionalmente a dimensão do belo: Barrio

age como se estivesse preparando os espectadores para algo mais

profundo do que a simples observação dos contornos fisicos dos

materiais. Não propriamente de algo transcendental ou alquímico, mas

fundado na própria aceitação histórica, na história dos elementos e sua

vida pregressa, em sua relação produtiva ou improdutiva com o mundo, e,

também na própria diluição de conceitos desgastados, como o de belo e

4 BRITO, Ronaldo. “Certeza estranha”. Em: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contemporânea brasileira, p.84.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 19: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

18

de feio, dentro da arte atual. Não é à toa que o próprio Artista certa vez

teria dito: “A beleza é uma casca de ovo”5.

Compreender o caráter particular da poética de Barrio implicaria

fundamentalmente o entendimento de suas estratégias plásticas. Em

alguns de seus trabalhos, tanto antigos quanto recentes, fica clara a

delimitação de seus processos em partes ou fases. Poderia parecer um

tanto estranha tal distinção de etapas, não fossem elas mais um artifício

para fazer o espectador acreditar e ao mesmo tempo duvidar da própria

ordem processual da obra, ou mesmo de uma certa teleologia.

Figura -2 1ª parte da situação T/T,1 [detalhe da performance 1970].

Nas várias fotografias sobre outra performance Situação T/T,1 Barrio

aparece manuseando o material6 que conformaria o recheio de suas T.E.

(trouxas ensangüentadas). Essas fotos possuem como legenda a frase:

“A realização da 1ª parte da situação T/T,1 (ou preparação das T.E.) teve

lugar na noite de 19 para 20 de Abril de 1970 em Belo Horizonte, Minas

Gerais (BRASIL), é claro”7. Embora as imagens tentem flagrar momentos

da atividade expressiva do Artista, mostrando os instantes em que ele

veste as luvas e recolhe os diferentes materiais para dentro de um saco,

5 MARIA, Cleusa. “A beleza é uma casca de ovo”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 nov. 1989. 6 Artur Barrio recolheu sangue, carne, ossos, barro, espuma de borracha, pano, cabo, facas, sacos, cinzel etc. 7 Catálogo Petrobrás Situação ......ORHHHHH.......... Texto do Artista, p.16.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 20: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

19

sua leitura poderá adquirir colorações específicas se analisadas diante da

“palavra”8 criada por Barrio para a obra, que no catálogo9 as acompanha.

S ITUAÇÃO T/T,1.............................................................(1 PARTE)

OU

14 MOVIMENTOS

1 - (DES)+ DOBRAMENTO DO CORPO EM FUNÇÃO DO QUE SE

VÊ SENDO FEITO -............................AREAMBIENTE....................

2 – PENETRAÇÃO DE UMA DAS MÃO EM (N) + UMA PEQUE-

NA LUVA DE BORRACHA................................................................

AMARELA................ESFORÇO.................PRESSÃO.................DI-

FICULDADES.......................CIRCULATÓRIAS........8........8.............

11 – SONS..............................SOM..........................SOM..................

3 – MANUSEIO DE CARNE EM ESTADO DE DECOMPOSIÇÃO.....

......INÍCIO................................

10........CHEIRO................MEMÓRIA.............TEMPO........................

FUMAÇA................OLFATO........................

4 – ABRIL..................................1970.....................................BARRIO.

10 - .......................................................................................................

8 - ................LI.......................BERD.........................ADE....................

5 – ETC.................................. .....................................................

...................................... ...............................................

7- IDÉIAS..................................ELÉTRICAS........................................

.............................................................................................................

8 – SUORCHEIROSENSAÇÃO..............................ROUPAPEL..........

PELSOBREPEL................................ESFREGANDOROÇANDO.......

...........................PÊLOCOMPLETO.....................................................

MATERIAL UTILIZADO NA PREPARAÇÃO DAS T.E.:

SANGUE, CARNE, OSSOS, BARRO, ESPUMA DE BORRACHA,

PANO, CABO (cordas), FACAS, SACOS, CINZEL, ESPUMA DE BORRACHA, ETC.

Situação T/T,1 (1ª parte) - ou 14 movimentos - tem um tempo de

leitura estranho, dada a sua própria condição de imagem. Sua tentativa de

entendimento pressupõe a passagem por sucessivas etapas: ironizar o 8 Uma dos termos propostos por Walter Benjamin ao referir-se aos escritos dos surrealistas. 9 Catálogo Petrobrás Situação ......ORHHHHH..........Texto do artista, p.16.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 21: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

20

aspecto prosaico do movimento da leitura, ceder à resistência da forma,

deixar que as palavras pulsem ritmadas num bate-estaca desordenado. As

palavras não são pistas elucidativas e sucessivas, que permitam ao leitor

um esclarecimento imediato. Surgem coesas mais por sua indefinição do

que por sua estranha forma textual. A começar pelo movimento lacunar,

marcado à reticências, que convida o leitor a um entendimento pouco

comum. Ritmado pela dúvida, já que a leitura acumulativa das palavras

não supera a crise do entendimento imediato, o conjunto mais desfere um

golpe contra o espectador do que propriamente o acolhe. O texto, que no

senso comum poderia ser objeto de elucidação da obra, torna-se ele

próprio um problema a ser enfrentado.

O espectador diante do inusitado (texto/obra) não estaria apenas

convocado a decifrar de forma usual um palavrório hermético, mas a

decifrar-se. Convocar-se a completar aquilo que ali não está escrito.

Lançar-se à dúvida a partir da própria desconfiança, acreditar-se capaz de

organizar as idéias num todo compreensível (seria incompreensível)?

Tomar como ponto de partida para si a poética do outro.

Tal qual os deselegantes materiais necessitariam dessa re-ligação,

caberia também ao espectador a tarefa de re-conectar elementos visíveis,

artista e mundo, artista e o espectador, espectador e matéria etc.....

Embora exista por norte a declaração de Walter Benjamin de que os

escritos surrealistas são tudo menos literatura, a célebre análise do

romance literário proustiano feita por Gilles Deleuze poderá ajudar na

compreensão dessa forma escrita.

Deleuze afirma que a decepção é um momento fulcral da busca ou

do aprendizado. Faz, assim, menção à literatura como o lugar dessa

dupla decepção: a emanada do texto, menos carregado de realismo do

que o suposto; e a do leitor incapaz que, por sua vez, se esforçaria em

compensar subjetivamente tal decepção em relação ao objeto. Para

Deleuze: Cada linha de aprendizado passa por esses dois momentos: a decepção provocada por uma tentativa de interpretação objetiva e a tentativa de remediar essa decepção por uma interpretação subjetiva, em que reconstruímos conjuntos associativos. 10

10 DELEUZE, Gilles. Proust e os signos, p.34.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 22: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

21

Artur Barrio pareceu entender que, assumir a dimensão crítica da

linguagem escrita, buscando seu entendimento dentro do campo da arte,

significaria não desvelar o sentido guardado pelos signos, mantendo-os,

ainda, mais profundos ao entendimento pelo sujeito que os interpreta,

sendo ele mesmo, o sujeito, capaz de pressentir sua própria insuficiência

nesse movimento de compensação. Nesse sentido, os escritos de Barrio

teriam como seu correlato ativo, dessa tentativa de compensação

contínua e insuficiente pelo sujeito, o desdobramento dos processos em

fases ou etapas.

Por isso mesmo, seria estranho não deixar de perceber que tais

escritos enfrentam o caminho pouco tradicional dos textos literários. São

reticências que mantêm longos e curtos intervalos entre palavras e

números11, delimitados espacialmente por margens regulares sobre o

papel12. Assemelham-se desse modo a matrizes gráficas das obras, pois

se constituem singulares a cada nova criação. São textos que não se

reconhecem exclusivamente como tais. Permanecem em permanente

trânsito entre sua presença como escrita e sua existência como imagem.

Talvez sua aparência explicitamente codificada não cause estranheza e

seu aspecto deliberadamente humano reserve alguma surpresa.

O certo é que a leitura desses escritos traduz uma realidade visual

impensada para a literatura, pois toma de assalto palavras esgarçadas,

agregando-as e colocando-as em intervalos que confundem o sentido

horizontal/vertical da leitura junto à desordenação numérica dos itens

propostos. É como se, diante da ausência de domínio do pensamento e

da lógica da escrita prosaica, as palavras, rapidamente, tivessem que se

travestir de imagens para se engajar no percurso literário. E não fosse

pela faculdade da memória, que lhe concede a feitura, Barrio poderia

estar fadado ao embaraço, diante de um número imenso de lembranças

que clamassem por igualdade, e, muito provavelmente teria aberto mão

daquilo que Baudelaire certa vez evidenciou na pintura moderna de

11 Artur Barrio escreve, fazendo uso prolongado de reticências como aproveitamento do intervalo entre palavras. Segundo o Artista é uma forma a mais de espaços intermediários da realidade. 12 Haussman também se preocupou em expressar tipograficamente o componente fonético, utilizando letras menores e maiores, mais finas ou de traços mais fortes, para dar-lhes o caráter de uma partitura musical. Faz surgir a partir daí, o poema optofonético conseqüentemente, dá o primeiro passo em direção a uma forma de escrita abstrata, completamente independente do objeto.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 23: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

22

Constantin Guys como um exagero útil para a memória humana. Uma

elogiosa menção à liberdade de Guys na escolha e ampliação das

minúcias de uma pintura a partir da “imagem inscrita no seu próprio

cérebro”.13

Com certeza a Paris de Guys possuía um certo cheiro e barulho -

presentes na memória e subtraídas do conhecimento do mundo - levados

para a pintura. Caberia à tela, então, assenhorar-se de um instante

perdido? Da lembrança de um cheiro, de um som? Ativar, ainda que de

forma conturbada, imagens derivadas de uma experiência sensorial?

Não há como negar a presença de muitos odores, sons e texturas

nas coisas produzidas por Barrio desde os anos 1960. Quer dizer: tudo

possui potência olfativa, auditiva e tátil: Um rasgo na parede, por exemplo,

guarda a memória radical de um gesto. E entre as muitas palavras

algumas requisições especiais aos sentidos aparecem poeticamente

escritas em frases como “Gritos Molhados” em Janela.....12l......18h.....3l.....5l...../1999.

Figura - 3 Janela.....12l......18h.....3l.....5l...../1999. [detalhe da instalação, 1999].

A escolha de Barrio pelo manejo sensorial parece ser o ponto focal

na apreensão do sujeito. Daí o interesse na obra passar a requisitar muito

da própria experiência ou inexperiência do espectador, uma quase

repulsa diante do fardo imposto pela própria visão do objeto, como

acontece com os Transportáveis, já que os elementos amarrados - corda, 13 BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. p.30.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 24: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

23

facão, cabo de ancinho, lata etc – parecem assumir uma dimensão

corpórea insustentável. Não se mostram através do enlace com a

surpresa, como nos ready-mades, nem se aproximam do lustro clássico

imposto à matéria, como nas peças de um José Resende. Os

desdobramentos que sugerem são quase barrocos, trágicos mesmo.

Nada mais que uma reunião visceral das cordas e dos elementos que se

agregam e se assemelham estruturalmente a fisicalidade enervada e

óssea do corpo humano: Barrio prefere exibir a trama estrutural do objeto,

livre de qualquer gracejo. Existe, ali, pulsão e até mesmo dor, pelo

desconforto do aprisionamento incondicional das diversas partes

(atributos que falam de sobrevivência) que constituem os Transportáveis.

Em vez de se erguerem diante da revelação divina, preferem restar em

dúvida, ou melhor , acomodarem-se, na aceitação da própria existência

humana. Velázquez?

Figura – 4 Trasportáveis . [detalhes dos objetos e performance].

Talvez o caráter pouco libertatório de um corpo que não vibra em

sua feliz exterioridade, mas que exalta a angústia da própria existência,

afaste a idéia, de que intimamente a obra de Barrio tenha surgido a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 25: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

24

reboque das experiências artísticas de Hélio Oiticica e Lygia Clark,

embora haja alguns pontos de contato entre elas: talvez os próprios

Transportáveis sejam um bom exemplo dessa aproximação, já que nos

fazem lembrar a fecundidade corpórea dos parangolés de Oiticica, o que

não torna, no entanto, a obra de Barrio uma célula pinçada da vertente

neoconcreta, tampouco, sua trajetória não poderia ser compreendida

pelas lentes coerentes e lineares do universo de Clark. Não há um

caminho, mas muitas trilhas, preferindo o Artista se esquivar das teorias,

porque, como ele mesmo declarou: “posso optar pelo ilógico, pelo obscuro

e pelo imponderável”14. E ainda que, como por ironia do destino, tenha

começado a trabalhar muito próximo ao pequeno, e talvez único, passado

moderno que pudemos ter, seu modo de operação poderá ser, melhor

problematizado, a partir da frase escrita em uma das paredes da

instalação O Fio de Ariadne...(no tempo como jogo.........de tempo no

próprio tempo).....2000 .

A quem de interesse....A História da arte (vanguardas de(no) século XX)... é bem mais longa para mim, do que as obras de Hélio Oiticica, Lygia C. e Lygia Pape, que tem como base o construtivismo (....) para terminar, a minha praia é outra.15

Outro dado que parece distanciar a poética de Barrio a de Oiticica e

Clark (já que para ambos o corpo como suporte seria um ponto fulcral de

muitas de suas realizações), é que a vivência do Artista a partir do corpo,

não se transforma necessariamente em doação alheia, mas no

oferecimento de sua própria experiência como um provocador de

incertezas.

14 Catálogo da Exposição na Arte 21Galeria. Não paginado. 15 CANONGIA, Ligia (org.). Em: Artur Barrio. Petrobrás. p.126.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 26: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

25

Figura – 5 O Fio de Ariadne...(no tempo como jogo.........de tempo no próprio tempo).....2000. [detalhe da instalação. Cidade do Porto, 2000].

Barrio entendeu que a melhor maneira de impedir que os objetos e

espaços não se diluíssem em movimentos exteriores a eles, mas, que

convocassem o espectador a um mergulho, estaria justamente, entre

outras questões, principalmente na redução drástica de elementos que

compõem cada instalação ou objeto, visíveis na imposição material:

corda, ancinho, arador, faca, saco, terra, pó de café areia etc. Como não

se esvaem, mas se erguem, não chegam propriamente a provocar no

espectador reações do tipo: Isto eu também faço! Mas justamente a

oposta, Isto eu não faço! Reação esta devida aos ecos provenientes das

vozes e da lembrança dos cheiros (quase sempre silenciosamente

fétidos) que emanam à frente dos objetos e instalações. Assim, tais

cheiros apresentam sua singularidade ali, no momento em que são,

quase sempre, vorazmente execrados.

Ainda cabe a pergunta: afinal, a que imperativos cede a poética de

Barrio? Por que ativar situações estranhas, heterogêneas, buscar o

diálogo com (e a partir de) coisas precárias como carne, lama, lixo, etc? É

certo que poderíamos entender isto a partir da crítica institucional, sobre a

característica central das ações vanguardistas da arte contemporânea.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 27: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

26

Hal Foster chega mesmo a eleger como característica central, do que

chamou de neo-vanguarda, o reendereçamento crítico dos artistas: no

lugar de incidirem criticamente - tal como fizeram os vanguardistas

modernos - sobre a linguagem da arte, incidiriam sobre sua circulação

cultural, sobre o discurso institucional que passou a ser constitutivo de

sua própria existência, seja como fenômeno, seja como conceito. Barrio,

cuja obra desenvolve-se a partir do experimentalismo da década de 1960,

não poderia certamente ficar imune a essa tendência. Mais do que isso,

seu discurso em favor do uso de materiais corriqueiros – e, eventualmente

descartados - assume um tom nitidamente político. Na década seguinte,

por exemplo, manteve-se tensa a sua relação com as Instituições

Artísticas, o que o fez compreender que somente o diálogo com o

processo institucional dá eficácia às suas ações. Daí ficar “contra

categorias de arte, contra os salões, contra as premiações, contra os júris

e contra a crítica de arte etc, tornou-se fundamental.”16 E Barrio posiciona-

se claramente:

Devido a uma série de situações no setor artes plásticas, no sentido do uso cada vez maior de materiais considerados caros, para a nossa, minha realidade, num aspecto sócio-econômico do 3º mundo (América Latina inclusive), devido aos produtos industrializados não estarem ao nosso, meu alcance, mas sob o poder de uma elite que contesto, pois a criação não pode estar condicionada, tem de ser livre. Portanto. Partindo desse aspecto sócio-econômico, faço uso de materiais perecíveis, baratos, em meu trabalho, tais como: lixo, papel higiênico, urina, etc. É claro que a simples participação dos trabalhos feitos com materiais precários nos círculos fechados de arte provoca a contestação desse sistema em função de sua realidade estética atua.Devido ao meu trabalho estar condicionado a um tipo de situação momentânea, automaticamente o registro será a fotografia, o filme, a gravação, etc – ou simplesmente o registro retiniano ou sensorial. Portanto, por achar que os materiais caros estão sendo impostos por um pensamento estético de uma elite que pensa em termos de cima para baixo, lanço em confronto situações momentâneas com o uso de materiais perecíveis, num conceito de baixo para cima.17

Um exemplo desse posicionamento de Barrio está na sua obra

Des.Compressão, desenvolvida na cidade de Petrópolis no Rio de Janeiro

no ano de 1973. Esta obra poderia ser definida segundo as palavras de

Luiz Camillo Osório, como o “conflito e a luta contra o deixar-se

17 BARRIO, Artur. Manifesto contra o júri. Em: Barrio, Rio de Janeiro. FUNARTE, 1978.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 28: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

27

dominar”.18 Ações artísticas mediadas pelas expressões esborrachadas

contra a face plana do vidro. Ato de descompressão não proclamando nos

limites do estiramento muscular mas, na própria invisibilidade como um

mecanismo de contenção. Corpo agônico !

Figura – 6 Des. Compressão. [detalhe da performance, Petrópolis, 1973].

Algum tempo depois em Paris, no ano de 1981, realiza a seqüência

de imagens fotográficas AçãoSituação Puídas... Esgarçadas...

Rotas...(os). Nelas, ampliadas em close, aparecem pormenores de um

corpo vestindo roupas desgastadas pelo uso. E no que tais imagens

poderiam impactar o espectador? A lógica mostraria que houve fragilidade

do pano junto à pele. E mais, que tanto o desfazimento ou a ruptura na

estrutura dos tecidos (com a conseqüente exposição da derme), quanto

às caretas contra o vidro, teriam o corpo como elemento central de

discussão, só que a partir de resultados um tanto diferentes. Em

Des.Compressão o avanço do rosto frente ao objeto, sinaliza o movimento

de retorno, de retrocesso ileso; enquanto em Puídas......Esgarçadas....

18 OSÓRIO, Luiz Camillo. “Força é mudares de vida”: a trajetória de Artur Barrio, p.105.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 29: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

28

Rotas...(os) a situação de esgarçamento de relações resultaria em uma

re-cobertura diferenciada para a pele.

Figura- 7 Puídas...Esgarçadas... Rotas...(os). [registros fotográficos, Paris, 1982].

O corte no tempo não expurgou a possibilidade de comparação. E,

em tais casos, o próprio Artista estabelecera pistas da afinidade entre as

obras. É quase um imperativo: caberá a uma situação dar a ver a outra

situação, caberá a uma idéia, dar a ver a outra idéia, ainda que as

aproximações entre tempo e local possam parecer estranhas.

Tanto em Des.Compressão, quanto em Puídas...Esgarçadas...

Rotas ..(os) a fotografia pôde ajudar na compreensão do instante em que

o corpo afirma sua posição Merleau-Pontiana como sujeito da percepção,

repondo a situação clássica sujeito/objeto justamente para questioná-la.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 30: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

29

E foi justamente utilizando recursos de fotografia e de filme que

outro artista contemporâneo, Antonio Manuel, desenvolvera suas obras.

A afirmação contundente do crítico Mário Pedrosa de que “A arte é a

única coisa que é contra a entropia do mundo (...) é a única maneira de

(...) por os problemas em sua autenticidade final”19 foi dita a partir do

diálogo com obras de Manuel. Pedrosa ainda manteria como norte o

papel privilegiado da arte como instrumento de transformação social,

sendo o artista, então, capaz de revirar o mundo, desvelar a verdadeira

face deste. Um. pensamento ancorado em várias obras, como por

exemplo, O Galo, 1972, - uma instalação e o filme de curta metragem

(16mm em p/b), em esse artista sentou num grande ninho feito de palha,

sobre um monte de areia e conchas, tal qual faria uma ave. O próprio

Manuel teria declarado que:

Esse trabalho tem um sentido existencial, marca a impossibilidade e a impotência. Ao mesmo tempo, revela um lado épico, pois galo possui uma conotação forte, é o que canta e tem uma posição ereta, um sentido de luta constante.20

Figura- 8 O Galo.[detalhe da instalação, 1972.].

Dessa maneira, o objeto artístico de Manuel parte de um discurso

irônico e até mesmo tautológico, quando refaz um ninho com palha etc.,

buscando associação com o galo. O que não deixaria, no entanto, de

imprimir um certo caráter de relutância, tal qual teria feito Barrio, à

situação da época. Assim, ambas reafirmam a tarefa de tocar no ponto 19 Mário Pedrosa, trechos de depoimentos sobre “O corpo é a obra” maio de 1970, em catálogo de exposição publicado pelo Centro de Arte Hélio Oiticica em 1997. p.54. 20 Ibid., p. 55

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 31: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

30

nevrálgico da resistência aos mecanismos de opressão (políticos e

artísticos), procurando evitar o que seria bastante difícil: o engessamento

da obra a colorações datadas.

E embora a geração desses artistas tenha fundado, no Brasil, certa

tradição, como resultado de suas investidas em negar a própria tradição,

ainda pulsam em obras como Des.Compressão e O Galo uma energia

vital, atrelada à poética da rebeldia silenciosa.

Para além do uso de materiais que recusam qualquer ordem de

nobreza ou sofisticação, as manobras dos artistas iniciantes contariam

com estratégias de apropriação do espaço público. T.E, de Barrio, por

exemplo, foi executada em abril de 1970 na cidade de Belo Horizonte.

Num rio/esgoto do Parque Municipal, aos olhos dos espectadores, o

Artista abandonou algumas trouxas ensangüentadas. No mesmo mês, no

Rio de Janeiro, em seu Deflagramento de situações sobre ruas, lançou,

em vários pontos da cidade quinhentos sacos de plástico contendo

refugos.

Desestabilizando o fluxo natural das coisas Barrio encontrava formas

de “lançar as pessoas à experiência da radicalidade de um

acontecimento”.21

Conta o artista sobre Deflagramentos que:

Numa das intervenções, numa rua da Tijuca, um transeunte interessou-se vivamente pelos sacos (objetos deflagradores) e pediu-me um perguntando o que representavam, já que em princípio pensou que eram despachos; respondi-lhe que não, que o que ele tinha nas mãos era Arte, ao que prontamente respondeu que tinha gostado e que, portanto iria levá-lo para casa.22

Apelidos como “dinamite”23, por exemplo, foram utilizados para

qualificá-lo como mentor de ações radicais. Apontado pela crítica como um

desestabilizador de códigos, Barrio lida publicamente com situações de

tensão. Suas intervenções dos anos 1960/70, algumas se apresentando

bastante arriscadas diante do cerco policial, já delimitavam um norte: agir

no plano experimental. Tal engajamento às circunstâncias não se

evidenciaria, no entanto, num confronto direto com a situação política, 21 Catálogo Artur Barrio: A metáfora dos fluxos, p. 40. 22 BARRIO, Artur. “DEFL....Situação....s+...ruas....abril....1970.”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Em: Artur Barrio, p.26. 23 Termo usado por Ligia Canongia no texto “Barrio dinamite.”

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 32: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

31

como define o próprio Artista ao falar da sua obra. Não foi preciso

levantarbandeiras ou nem investir contra multidões, longe disso, sua

resposta ancorou-se numa espécie de silêncio ameaçador, extremamente

sensível à ditadura. É justamente isto que lhe interessava: parecer muito

mais desobediente do que àqueles que se expuseram frontalmente ao

cerco militar, ao fazer de sua experiência imaginativa um campo

testemunhal. Daí a impressão de que sua obra contemporânea possa, a

todo instante, revelar algo de secreto, sobre a repressão militar, ao mesmo

tempo pareça rir dessa mesma promessa. Talvez a resposta silenciosa de

Barrio esteja atrelada a uma espécie de a priori artístico, revelado em algo

que não está mais presente ao término da obra, e que, no entanto,

paradoxalmente, aparece aos olhos do espectador: saber que um certo

gesto persuasivo marcou todo o entorno por ele tocado. E mais, isto se

revela não só na ambiência física das instalações, mas, também, em seus

escritos.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 33: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

3 Relendo o Trabalho/Processo 4 dias 4 noites 3.1 A experiência da impermanência

Ronaldo Brito aponta uma das missões vitais para a arte

contemporânea: a de “construir um lugar insituável, criar uma situação

insustentável. Logrando, porém efetuá-los”.24 Tal afirmativa, para além de

indicar os acordes da arte na atualidade, traz à tona seu acanhamento

frente a uma de suas principais conquistas: a de definir e acolher ações

de vanguarda, tomando o novo como um modelo capaz de provocar

debates.

Partilhando desse enfoque Harold Rosenberg procurou definir o

papel institucional da arte no corpo social de seu tempo. Para ele a arte,

que de certa forma estaria em transformação, teria deixado de ser uma

“atividade marcada pela rebeldia, pelo desespero e pela auto-indulgência

à margem da sociedade”25, para se tornar uma profissão como outra

qualquer. Dentro desse panorama da década de 1960, Rosenberg sentia-

se impelido em lançar o foco investigativo sobre as experiências

modernas da arte da primeira metade do século XX, partindo do

pressuposto de que as mudanças ocorridas no semblante institucional

seriam responsáveis pela alteração do próprio papel da artista na

sociedade e vice e versa.

No prefácio que integra seu livro Objeto Ansioso, a inclusão das

palavras do pintor Josef Albers de que “Angst está morta”26 poderiam

revelar um pouco dessa nova feição da arte. Frase que, segundo

Rosenberg, faria menção à perda da angústia espiritual própria aos

artistas contemporâneos e que, no entanto, poderia estar melhor

relacionada à problemas ordinários do dia-a-dia, coisas como carreira,

aluguel, publicidade e vida afetiva. Prefere assim apropriar-se

24 BRITO, Ronaldo. “Certeza estranha”. Em: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contemporânea brasileira, p.84. 25 ROSENBERG, Harold. “Rumo a uma profissão não ansiosa”. Em: Objeto ansioso, p.16. 2626 Ibid. p.92.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 34: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

32

conceitualmente de outra palavra – ansiedade – que se evidenciaria numa

espécie peculiar de insight, resultante da experiência reflexiva da arte

dentro da vida humana. “Uma qualidade filosófica que o artista percebe

como inerente aos atos de criação em nosso tempo”27 – conclui

Rosenberg.

Tradicionalmente o conceito de criação em arte implica, quase

sempre, a produção de um elemento palpável, colecionável, registro físico

da relação artista/matéria, melhor dizendo objeto artístico. Ele, objeto, diz-

se pertencer ao espaço físico e concebido como coisa, torna-se modelo

de estabilidade e permanência. Sua preservação está ligada à própria

manutenção do fenômeno da criação e, assim qualquer gesto a favor de

sua aniquilação implicaria aquilo que Marcel Duchamp teria assinalado

como “forma de suicídio”28 da arte. Interessou a Rosenberg pinçar tais

palavras da boca de quem justamente teria estimado, certa vez, um

tempo limítrofe de emanação de energia para as obras, cerca de vinte ou

trinta anos, e citado como exemplo a própria morte de uma de suas

célebres pinturas: Nu descendo a escada..

Para Duchamp coexistiriam duas soluções problemáticas e

aparentemente opostas em relação à existência do objeto artístico: deixá-

lo morrer, impedindo assim a perda arrebatadora de seu “aroma ou

exalação estética”29,ou preservá-lo como função prática vital à “distinção

entre estética e história da arte”30. Segundo Rosenberg, Duchamp teria

acertado ao proclamar a presença do objeto como uma função essencial

à sociedade histórica, mas errado ao deixar de prever que a

impermanência desse se tornaria um “artifício estilístico apreciado com

avidez em termos de seus precedentes estéticos” 31.

Em seu livro A História da Arte como a História da Cidade, Giulio

Carlo Argan aponta a História da Arte como a única, entre todas as

histórias especiais, que se realizaria na presença dos eventos, não os

evocando, reconstruindo-os ou narrando-os, mas os interpretando. Toma

27 Ibid. p.92. 28 Ibid. p.92. 29 Ibid. p.89. 30 Ibid. p.93. 31 Ibid. p.97.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 35: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

33

como ponto de partida o pressuposto de que a presença do objeto

artístico é fundamental a sua interpretação.

Se tal afirmação, for válida, toda história da arte contemporânea

deverá se deparar com um novo paradigma: a de tornar-se, em certo

sentido, muito próxima da história política – que se mantém atrelada a um

conjunto de testemunhos, documentos, descrições, juízos etc – ,dada sua

impossibilidade de efetuar-se permanentemente diante do evento. Ou

seja, a experiência frente ao objeto artístico perecível, se houver um,

estará inexoravelmente atrelada a sua vitalidade física. E mais; ainda que

o historiador da arte, tal qual o da ciência, o da filosofia ou o da política,

trabalhe a partir de documentos originais sobre o fato, no caso específico,

sobre a obra de arte, restará a ele, como resultado, muito pouco da força

imediata do objeto.

Argan obviamente não estava considerando relações tão inusitadas

quanto, por exemplo, algumas das desenvolvidas, por Barrio. O que lhe

interessava propriamente era um determinado tipo de arte “que o tempo

não traga e que permanece presente”.32 Afirmação que

contemporaneamente poderá ser melhor compreendida na medida em

que tal presença não esteja, apenas, vinculada à fisicalidade do objeto,

mas a sua própria condição imaterial.

Boa parte do que Artur Barrio produziu, instalações e alguns

objetos, não existe mais. Encontra-se apenas mediada pelas lentes da

fotografia ou por imagens fílmicas. Existe ainda a possibilidade de estar

preservada a partir de um certo refazimento: como o protótipo (sem

materiais perecíveis) das Trouxas Ensangüentadas, que se tornara objeto

de coleção; ou o Livro de Carne, refeito esporadicamente para

exposições. Embora o artista tenha proclamado com certeza sua íntima

relação com elementos passíveis de decomposição, seu maior

enfrentamento diante da impermanência física de uma obra, se deu por

ocasião de 4 dias 4 noites.

32 ARGAN, Giulio Carlo. “A História da arte”. Em: História da arte como história da cidade, p.35.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 36: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

34

Figura - 9 Situação...Orhhhhh...ou...5.000. TE...em...NY...City...[detalhe da performance. Rio de Janeiro, 1969].

Segundo Rosenberg, ao definir um poema por seu efeito psicológico

no leitor, Edgar Alan Poe trouxe a idéia do tempo para dentro da crítica de

arte. Assim Poe escreveria em O princípio poético, de 1876, que “todas as

emoções seriam, por necessidade psíquica, transitórias”33; e que apesar

de materialmente escrito um poema longo seria inexistente. Isto

equivaleria, por exemplo, àquilo que Duchamp teria proclamado diante da

pintura como a provisória capacidade de emocionar. Tanto Poe quanto

Duchamp faziam referência específica ao comportamento psíquico do

leitor ou espectador diante de obras materialmente existentes,

encerradas, de certo modo, dentro de um contexto histórico específico.

Mas qual seria o comportamento desse mesmo leitor ou espectador

diante de uma obra, sem registros visuais e reelaborada a cada nova

declaração do artista, portanto, em permanente estado de criação? É

exatamente aí que 4 dias 4 noites se insere: numa promessa silenciosa

de continuidade.

33 ROSEMBERG, Harold. “Objeto de arte e a estética da impermanência”. Em: Objeto ansioso. p.89.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 37: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

35

Figura -10 Livro de Carne. [detalhe da obra. Paris, 1978/79].

3.2 Trabalho processo: descrição da memória

Em agosto de 1978 Artur Barrio descreve em uma entrevista parte

do processo em que se constitui a obra Trabalho/Processo 4 dias 4

noites:

Esse trabalho processo começou a partir do Solar da Fossa onde eu morava, então saí a pé às cinco horas da manhã passando pela Ladeira dos Tabajaras, Copacabana, Leblon, Ipanema e o MAM, isso sobre todo um desgaste físico que me abriu uma percepção pois com todo esse caminhar a percepção se aguçou incrivelmente. O corpo aí já estava mais condicionado à mente, trabalhando mesmo, o corpo era quase uma máquina.34

Obra inconclusa, contínua, suspensa, introspectiva, escorregadia e,

tomando de empréstimo as palavras de Argan, “precária como o tempo da

própria vida”.35

Antes de tudo, este autor quer ressaltar que nessa obra de Barrio

não são as imagens as responsáveis pelo registro memorial, mas,

simplesmente, uma síntese de ações descritas. A começar pelo título que,

34 BARRIO, Artur. “4 dias 4 noites”. Em: Artur Barrio/ A metáfora dos Fluxos 2000/1968, p 79. 35 ARGAN, Giulio Carlo. “Projeto e destino”. Em: Projeto destino, p. 58.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 38: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

36

simultaneamente, marca e varre para fora da obra um tempo preciso,

parecendo sugerir de imediato o solo movediço em que pretende

repousar. A radicalidade aqui não está no universo inusitado dos

elementos que normalmente acolhe, mas na imaterialidade de seu próprio

pensamento, de impressões surgidas como fragmentos da memória. É

partir delas que Barrio recorre, não a um fato vivido, mas a sua própria

lembrança do fato. E não pode haver nada de errado nessa recuperação

espontânea do acontecido, para quem delibera como ponto de partida

dialogar com tais desdobramentos.

É por meio de depoimentos que Barrio busca problematizar

questões, elaborar o processo que, seguindo uma lógica interna à

existência, se estruturaria como registro no mesmo instante de sua

formulação. Assim, o poeta Barrio não pode prescindir da memória em

seu discurso. Por isso, deve de forma cautelosa, tomar de empréstimo

certa rudeza de narração, quase como num depoimento, para que o

espectador não se ausente da verdade material das palavras,

particularizadas na própria diluição das lembranças já tão mediadas pelo

esquecimento.

Tal mergulho, no entanto, não se esvai em perdas referenciais. Sua

introspecção é pressentida nos escritos, mediados como que à luz da

explosão, capazes de nos clarear a visão por declarar o tempo todo:

escuta! somos palavras! Ecos que não se reverberam em imagens belas,

ou propriamente aterradoras, não se preservam entrelaçadas ao passado,

mas ao presente que a ele sempre retorna, numa tentativa de manter

acesa a idéia de um tempo ambíguo ou espacializado – convertido em

superfície temporal, horizontal, como o chão para o qual Barrio lança seu

olhar poético. Isso que afirma uma espécie de condição que a própria

dinâmica urbana parece impor como mecanismo de sustentação de sua

própria existência: a de se revelar sempre inédita diante de si própria. A

sobrevivência mesma da obra 4 dias 4 noites estaria no limite do

inacabado, embora apresentando uma promessa de conduzir, para além

de seu instante de criação, à uma memória futura.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 39: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

37

Descreve o artista: ...portanto o esgoto estava lá e tendo consciência da estrutura por nós denominada de vida, atravessei-o e saí do outro lado. Agora, não reparei se estava fedendo ou não eu estava pouco ligando, aliás desde o momento que os intestinos têm merda..........e continuei minha caminhada. Quando cheguei a Praça Mauá, de noite, reparei num canteiro de concreto, no interior do mesmo vi milhares de baratas que trepavam formando, uma cruz. Era uma cruz quadrada, quatro ao mesmo tempo, uma procriação fantástica terrível. Depois andei ali perto do Moinho Inglês, haviam uns trilhos e no meio dos mesmos ao longe, vi uma fogueira. Quando cheguei lá, baratas, mil baratas fazendo um som muito estranho como o de pena de pássaros arrastando pelo concreto e ao lado desse cenário uma colônia de mendigos, uns 50, parei e todos me olharam, ninguém me disse nada. Havia um velho que parecia o chefe e havia também uma mulher grávida muito linda...36

Residem nessa vontade deliberada da fragmentação da memória,

vestígios de um artista consciente de que “um acontecimento lembrado é

sem limites, porque é apenas a chave de tudo o que veio antes e

depois”.37

Focalizando tal premissa, Barrio pareceu não só compreender, mas

partilhar das palavras citadas por Walter Benjamin – ao se referir à obra

de Proust – À la recherche de temps perdu – de que a unidade do texto

está apenas no actus purus da própria recordação e não, na pessoa do

autor e, muito menos, na ação. Talvez pudéssemos aproximar esse ato

de recordar de Proust àquele instante máximo de emoção sugerido por

Poe, e que em 4 dias 4 noites poderia ser entendido como uma

revalidação permanente dessa limitação temporal. Ou seja, a de se tornar

permanente a partir da manutenção de sua própria impermanência, algo

capaz de validar-se como que por sua estranha negação.

3.3 Mergulhar o horizonte: para além do trabalho processo

Ricardo Basbaum escreveu, em Dentro D’água, que a experiência

do 4 dias 4 noites poderia ser percebida como uma “adoção das

estratégias de um processamento sensorial fluído líquido (...) radical mergulho ao

avesso, um lançar-se para fora de si numa aventura temporal pela cidade”.38

Em um breve relato Barrio declara que:

36 Idem. p.80. 37 BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. Em: Magia e técnica arte e política, p.37. 38 BASBAUM, Ricardo. “Dentro d’água”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Petrobrás, p.226.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 40: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

38

Dias 4 Noites era uma proposta mental que tinha o corpo como suporte. Era também uma tentativa de enfrentar o medo. Eu tinha receio de andar à noite pelas ruas, ao mesmo tempo queria intervir na paisagem física da cidade, partirpara criações ambientais.39

Deixar-se à deriva. Reunir-se à brisa que corta a quina das ruas, e

como o ar ou a água, precipitar-se contra um conjunto diverso de coisas. Movimento trágico diante da integridade física e mental do corpo. Experimentar, associar, perder o controle. Sair desse outro microcosmo pela restrição do próprio corpo em extinguir-se.

E foi complicado entender esse caminho, para mim, ao menos na época. Eu observei também outro acontecimento, da doença – toda essa brutalidade, da realidade do corpo. E o sair pela cidade também estava ligado ao alimento, ou seja: o deslocamento no espaço, o tempo e a falta de alimento, a falta de grana. Porque eu não tinha dinheiro, não falava. E, numa cidade, é estranho, realmente... a falta de comunicação. A partir de um determinado dado, se você não fala, a coisa fica muito complexa. Acho que foi uma radicalização excessiva. Eu pensava o seguinte: que esse projeto me alimentaria para futuros trabalhos.40

Construtor permanente de formas inusitadas, a busca de Barrio está

atrelada à experiência do imprevisível e a materialização das coisas que

não podem ser medidas pelo conhecimento corriqueiro. Em um de seus

depoimentos sobre a experiência do 4 dias 4 noites, declarou que as

lembranças da cidade surgiam duvidosas e oscilantes, mediavam-se

sempre pela incerteza, ausência ou excesso de imagens a serem

ordenadas a partir de uma narrativa linear. O movimento aguçava seus

sentidos, deslocando-o para um outro lugar e assim por diante. Um

processo meio estranho, sem controle, impulsionado pelo jejum, pelo

esforço físico e ,inicialmente, pela ação da manga-rosa (que fumou

durante três dias, em casa, antes do processo). Apesar do possível risco

de morte, as ações dadas faziam parte de um conjunto de experiências,

continuadas para além daqueles momentos: percepção do presente

transformada em criação futura.

Depois do “4 dias 4 noites”...mas, de uma maneira bem arrogante, e minha idéia era que depois do “4 dias 4 noites”, eu fizesse um trabalho estrondoso. E o que fiz? A “Situação Cidade Y Campo” e depois, a televisão coberta com o lençol, lá em casa, e a “Parede”. Mas hoje quando faço as paredes, é tudo o mesmo alimento daquela época. É um fluir.... 41

39 Idem. p.226. 40 REIS, Paulo; BASBAUM, Ricardo; RESENDE, Ricardo. Panorama da arte brasileira, p.82. 41 Idem, p.87.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 41: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

39

O lugar de excelência da arte de Barrio ainda é a cidade, melhor, o

seu apartamento na cidade. Processo contínuo e irrefreável, o movimento

circulatório agora é interior, e as paredes internas seriam membranas de

um “núcleo”, de onde partira o artista para sua aventura errática pelo Rio

de Janeiro.

Foi importante para o Artista pensar a cidade, o apartamento, a sala

etc., como partes de um esquema orgânico nuclear. Notar que tal

sistema passa a redefinir a noção de lugar a partir contornos fisionômicos

instáveis. Apartamento, sala, cidade como referências aparentemente

desordenadas e convulsas: cambiáveis. Uma relação labiríntica que levou

Barrio a reordenação lógica de núcleos. Cidade, sala, apartamento,

paradoxalmente, são indistinções.

E as paredes? Certamente pretende desdobrá-las. Mas, não como

uma manobra de conflito entre o espectador e seu norte gravitacional,

como em Serra. Sua meta é agravar o movimento fugaz de introspecção a

partir de cada detalhe manuscrito (ou na ausência de): uma palavra, uma

frase, um texto, um desenho, uma fissura, um rasgo, um rombo.

Barrio opera condutas, instala eixos imaginários que se preservam a

luz do novo diálogo, proposto entre a própria geometria das paredes, teto

e chão. Promove ações exemplarmente visíveis na desordenação do

sentido de palavras e desenhos, nas agregações de materiais inusitados

e nas marteladas que imprimem o traço de um fazer arcaico, ainda

presente na confecção de grande parte da arquitetura ocidental atual.

Portanto revela! Expõe todas as regras a partir de sua contrafação,

tornando paradoxalmente o espaço refém de sua própria espacialidade.

Lógica que praticamente suprime - e prevê para si uma certa

reflexão do espectador. São paredes que têm como tarefa lutar contra

imperativos verticais, assemelhando-se por sua estranheza ao próprio

chão, valendo-se, em alguns momentos, de suporte para o pouso de

elementos (inclusive aqueles que por sua qualidade material jamais

conjugariam a delicadeza de um certo repouso vertical). E mais, já que

nenhum dos objetos colados são convocados a forçar-se e/ou a forçar a

estrutura física dos espaços, Barrio abre mão do gesto simulador de

tensão, ao tornar a própria tensão um gesto.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 42: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

40

Parede (1970) faz parte de um conjunto de obras desenvolvidas sob

o efeito quase imediato do Trabalho/Processo 4 dias 4 noites e que,

segundo o Artista, tomaram um rumo bastante diferente da produção por

ele esperada, já que não ecoaram de forma bombástica.

Figura -11 Parede. [registro fotográfico. Rio de Janeiro, 1970].

Desenvolvida na sala do apartamento do artista, a obra acolhe um

conjunto inusitado de coisas, entre elas a projeção formal específica da

luz do sol sobre a superfície da parede. A l ista de materiais é

extensa: pão com pregos s/ pano s/ madeira; espelho

quebrado s/ veludo negro; agulha hipodérmica, pano e sangue

s/ cartão; alf inete e laminas de barbear s/ veludo; rolo de

papel higiênico amarrado por barbante s/ nó; duas pequenas

placas de madeira pressionando pedaço de bombril, amarrados por

um fio; reflexo solar s/ parede (através de um vidro transparente).

A exposição acima talvez não deixe dúvidas. Há uma preocupação

evidente com o processo de trabalho, ou melhor, com o

trabalho/processo, como prefere chamar. Já que ao sobrepor

cautelosamente materiais, buscou enfatizar suas relações junto à

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 43: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

41

verticalidade da superfície, requerendo, por exemplo, seu próprio olhar

estranho diante do alfinete e duas lâminas de barbear sobre um pedaço

de veludo.

O alcance visual dos elementos é mediado por lentes fotográficas

específicas. O olho que as fita, não deixa escapar certa escolha no

enquadramento, que privilegia e implica a subtração do próprio espaço

arquitetônico. Barrio eleva a imagem a uma espécie de redução

sinedóquica da sala e da cidade, varrendo para além da cena qualquer

pormenor relativo ao espaço físico do ambiente.

Mantém o foco de interesse sobre os elementos conjugados. Prevê

um inusitado e comuníssimo encontro entre sol, parede e objeto. É como

se a energia tivesse por um instante deixado de mediar apenas o

quantitativo luz para, dramaticamente, contar um pouco de sua própria

impossibilidade de vir a constituir-se objeto e, ironicamente, trazer à tona

a máxima Baudelairiana: “Pintura é luz, pintura é sol”42.

Frase que sugere de imediato colorações impressionistas que; para

o pintor viajante Èdouard Manet - também amigo de Baudelaire - estaria

visível na gênese do movimento; tendo sido inclusive uma de suas

pinturas, Lola de Valência , motivo de inspiração para uma

quadra famosa daquele escritor.

Nas palavras do ensaísta Antonio Bento, Manet teria sido

o primeiro pintor contemporâneo a perceber que “a sombra na

arte acadêmica seria apenas o trompe-l ’oeil do sol”43. Engano

dispersado por Barrio ao flagrar, por força da mecânica fotográfica, o

instante da rápida passagem do sol sobre a parede. E num instante de

pouso, por fina ironia, viria a conjugar o verbo objetificar.

Tal qual o sol que por deslocamento projeta-se, por força da própria

condição de transladar-se, iluminando distintamente parte da superfície

vertical, Barrio, estaria de modo muito f i l trado lançando o foco

sobre a experiência vivida durante o 4 dias 4 noites. Toma,

portanto o movimento solar como modo duvidosamente

contínuo de apreensão do mundo, ele também a se mover.

42 HADDAD, Jamil A. “Prefácio” Em: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal, p.35. 43 Idem, p.35.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 44: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

42

Entre as obras citadas pelo artista está a 1) De Dentro para Fora, 2)

Simples... (TV coberta por um lençol branco), elaborada no ano de 1970,

em sua própria casa. ‘TV coberta...’ É uma obra intimista que não possui o

caráter participativo e imediato do entorno urbano, tal qual

Situação...Cidade...y...Campo... Concentra-se no segundo da imagem

fantasmagórica, conjugando o velar e o desvelar: imagem coberta,

imagem translúcida. Produção de imagens filtradas pelo lençol, incertas,

inseguras, porém vivas e dinâmicas. Barrio retoma a discussão a respeito

da reciclagem da materialidade e da função das coisas.

A partir desse deslocamento de funções, o Artista convoca o

espectador a uma nova territorialidade visual em um “processo de

consciência do olhar e de materialização do momento de descoberta.”44

Descreve o Artista:

É como se o pensamento estivesse dominando a visão, mas nem por isso o fenômeno deixa de se expressar numa sintaxe perfeita aos nossos olhos. O que me atrai nesse processo é a tentativa de materialização do pensamento da visão.45

Barrio convida o espectador a essa tentativa, quando desenvolve

ainda no ano de 1970 (na cidade do Rio de Janeiro) a obra

Situação...Cidade...y...Campo.... Ali estão reunidos oito pacotes de bisnaga,

amarrados, dispostos sobre uma estrada que divide em duas a lagoa de

Marapendi situada entre o Mar e a Montanha. A mesma cidade em que se

deslocara meses atrás, em 4 dias 4 noites, acolhe os amarrados de pães,

tomados como volumes expressivos. Os conjuntos são espalhados em

partes de uma trajetória que se inicia em Copacabana, passa

por Ipanema, Leblon, Av. Niemeyer, Barra da Tijuca e encerra-se

em Jacarepaguá. De imediato, expostos ao ar livre, tais amarrados

prometem se desmaterializar diante do descampado que parece

acolhê-los, antevendo aos olhos do espectador seu próprio fim. Se

pensados como esculturas, talvez pudessem exprimir uma dolorosa

condição para a estatuária, tomada, quase sempre, como modelo exemplar

de resistência histórica: a de ceder à potência destrutiva da cidade.

44 DOCTORS, Marcio. “A Ordem é Ousar”. Em: A metáfora dos fluxos, 2000/1988, p. 53. 45 Ibid, p. 51.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 45: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

43

Figura -12 1)De Dentro para Fora 2)Simples...[registro fotográfico. Rio de Janeiro, 1970].

Amolecidas diante da chuva ou esfoladas pelo vento, as massas de

pão devem ceder a uma certa lógica estrutural repousada na fragilidade

de sua própria matéria.

Espalhadas de forma estratégica, quase como pólos de atração

deixam-se subtrair da cena como que por absorção. Lembrando ogivas de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 46: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

44

massa amarradas, os pães solicitam uma certa compreensão de seu

mosaico formal. Para entender tal agrupamento o espectador deverá

travar embate com sua própria estranheza diante da cena, tomando como

questão crucial às qualidades estéticas da matéria. Não se trata, na

realidade, de uma escultura feita de pão, mas do próprio alimento tornado

hiper visível. Isso resultaria ainda na aceitação da forma liberta a partir da

suposição certeira de que o pão, antes condenado à ingestão humana,

não alcançaria como obra um lugar permanente. Tal manobra pareceu

contar a história do objeto artístico a partir de seu próprio fim. Barrio sabe,

inclusive, que a cena com pães seria acolhida como uma imagem

mediada pela incerteza da fotografia. O que equivaleria em duvidar da

própria imagem como elemento veraz. Por isso relacionar imagem e

palavra torna-se tarefa desafiadora.

Situação...Cidade...y...Campo... é mais um título singular

que merece atenção. Longe de especular sobre prováveis

implicações simbólicas dentro da obra, coisa, aliás, que o Artista rejeita,

a conjunção das palavras Cidade/Campo podem sugerir caminhos

muito precisos na efetivação desse processo. Argan certa vez

escrevera que, na atualidade, “o protagonista da experiência

estética passa a ser o ambiente enquanto espaço em que os

indivíduos se inserem e vivem”.46 Não seria errado lembrar

que no ano de 1970, bairros como Barra da Tijuca e

Jacarepaguá possuíam feições quase inabitadas, se

comparadas aos dias de hoje. Não foi à toa que, ao deliberar partir do

burburinho febril de Copacabana rumo aos descampados, Barrio estaria

pontuando de forma inversa as ‘escolhas’ feitas em 4 dias e 4 noites,

momento em que acolhera a cidade tornando-a universo de distante

introspecção.

46 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna, p.589.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 47: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

45

Já em Situação...Cidade...Y...Campo... é a face exterior e plural da

urbe que deverá acolher um consciente dinamismo operacional. De uma

forma ou de outra, o Artista pareceu aqui eleger a cidade como o “outro

no sentido mais amplo, com que se defronta o si”47, aproximando-se da

suposição de Argan de que é a Arte, tal qual a Arquitetura, no presente,

que constrói e manifesta o espaço da vida social.

Figura -13 Situação...Cidade... Y... Campo... [registro fotográfico. Rio de Janeiro, 1970].

A obra Mensagem 16 fala de energia. Reunião singular de

elementos sobrepostos (uma tesoura sobre um espelho de metal cromado

sobre um espelho com moldura vermelha/descascada). Considerados

como peça única, dispostos/colocados por vários locais, Mensagem-16-

.Mar. foi realizada em 1971 logo depois do 4 dias 4 noites. Diferente de

Situação...Cidade...y...Campo..., a matéria aqui é resistente. Não se trata

de enfrentar o drama de sua própria dissolução, mas de imprimir sobre

bueiros e pedras a marca de sua presença invisível.

47 Idem, p.589.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 48: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

46

Em Mensagem- 16-.Mar. a reflexão sol é inevitável diante não só

dos espelhos, mas reticente no brilho opaco e enferrujado da tesoura.

Ação desenvolvida: deslocar o objeto, dispondo-o/colocando-o sobre

locais como bueiros e pedras. Aproveitamento de energia solar,

Figura -14 Mensagem – 16- .Mar.[registro fotográfico, Rio de Janeiro, 1971].

aproveitamento de energia elétrica, para rever o horizonte da cidade

clamando por suas entranhas.

Talvez a leitura imagética dos bueiros cariocas jamais fosse

reivindicada. O drama do esgoto é melhor entendido, quando se opta

pela visão jornalística do fato. E o que isto sugere? Certamente

proximidade e distanciamento. Apenas o esquecimento de que abaixo do

solo mediam-se tecnologia e excremento é capaz de colocar em

suspenso a vergonha das entranhas humanas.

É mais que necessário, prever um tempo ambíguo, marcado pela

espacialidade horizontal. Trazer para si momentos singulares preservados

na disjunção visual que lhes é preservada.

Não há sequer empatia pela lembrança de misteriosos túneis e

galerias, tal qual acontece em certos lugares da Europa. Talvez pelo

excessivo esgueiramento da cidade em favelas que trazem, na maioria

das vezes, seus esgotos a céus abertos, e, como um organismo em

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 49: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

47

depressão sempre revela em sua superfície traços de seu desequilíbrio, a

cidade carioca não se apresenta distante. Aguarda convulsivamente um

certo ajuste de contas entre a promessa de progresso e progresso da

promessa.

Reunir obras. Colecionar-se a si próprio em instantes. Tratá-las

como um conjunto. Forçá-las a desvelar uma certa compreensão do corpo

e do espaço, tomados quase que pelo avesso.

Para o artista provocar palavras como IdéiaSituação,

Trabalho/Processo e ObjetivoSubjetivo significa atravessar a fenda aberta

a partir de sua contramão, passar por obras e retomá-las por palavras, e

vice e versa. É quase um imperativo: construir um processo para entender

o processo. Assim, ativar relações físicas entre o corpo do espectador e a

obra, entre o próprio corpo do Artista e a obra, entre extensões de solo

verticais e horizontais também o é.

Caberia averiguar então o motivo de tantas aproximações, ou seja:

O artista vivencia a cidade como fundo pictórico. E dentro desse suporte,

coloca outros menores e outros mais. O corpo humano também é assim.

É sempre possível reduzí-lo a uma palavra, tornando-o mais que um

arcabouço sistemático e visceral. Mas, a reunião de coisas, sempre

implicará a supressão de outras. Barrio norteia-se, agregando um

conjunto de obras. Estas acolhem elementos. Busca o Artista perceber a

cidade em sua relação esparsa com o entorno tal qual o fez em 4 dias 4

noites. Uma relação que pode estar ancorada na produção de energia -

sol, eletricidade, esgoto - e nas formas filtradas por onde essas energias

podem ser percebidas: reflexo do sol na parede, no espelho e na tesoura,

pedra aquecida, imagem velada na TV, pão em decomposição, tampo do

bueiro etc. Mostra ele a cidade vista por suas entranhas, descrita pelo véu

dramático do limite da resistência física. Suas imagens, surgidas de um

estranho ofuscar da lembrança, tornam-se, sem possibilidade de defesa,

reféns. Perdida a falsa esperança de um acordo com a integridade da

memória, retoma-se a crença ilusória de que, as débeis imagens

integrariam, de bom grado o campo das singularidades febris da alma

humana. E o que isto significaria? Apenas que, de certo modo, tudo o que

pareceria sem sentido continuaria perdido.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 50: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

48

Tal estranha conclusão deixa sem sabor as certezas que existem nas

lembranças. Haveria, no final das contas, a sensação de que tanto faz re-

lembrar hoje ou amanhã. Ou melhor, de que vale muito mais a pena olhar

continuamente, e isto implicaria o retomar pensamentos o estabelecer

critérios diante de si próprio.

O herói de Proust, protagonista de No caminho de Swann, por

exemplo, extraiu do interior de sua xícara de chá todos os pensamentos

fundidos à fumaça e ao líquido que de lá emanava. Já a escritora Rosalind

Krauss, certa vez, contou que ao ser acompanhada de amigos a um

concerto de música, pudera experimentar a sensação de desligamento do

ambiente, ao reparar na figura de um homem que tocava silenciosamente o

trombone. Manteve-se por instantes isolada de tudo o mais a seu redor, por

uma fenda aberta na realidade contínua do espaço.

Excluídos pelas cenas impróprias, falta ao espectador o desespero

para retirá-las dos olhos, aceitá-las pelo mistério no qual se vê incluído.

Viriam, de certo, muitos desapontamentos, das pulsões invisíveis, ou

melhor, viriam delas prazer e dor. À paixão que inclui tais perdas e tais

ganhos, podemos entre outras formas dizê-la Arte. E se o espectador

acredita, poder repousar nela as orquestrações da memória, isto significa

que tais objetos movediços parecem ali se ativar, assim como as muitas

lembranças diante das viagens ainda por fazer.

Mas a viagem de 4 dias 4 noites jamais será superada. Com certeza é

o Rio de Janeiro, perdido, descontínuo, mediado pela exaustão do sujeito, o

lugar para tal embarque. Um Rio ainda paisagem. Não aquela enquadrada

no esquema ilusório da felicidade e da conquista dos muitos álbuns de

fotografia e dos cartões postais, mas, algo próximo à realidade expressiva

de um lugar sem pátria.

Talvez muito próximo e numa certa contramão, Baudelaire já

houvesse proclamado as cores da cidade parisiense por lentes muito

específicas: caberia ao dandy a responsabilidade de figurar “instantes

reveladores da poética cotidiana”48, e, ao artista, o equacionar em um só

instante a dupla dimensão do belo, imutável e circunstancial. E foram

48 SIQUEIRA, Vera. “A enciclopédia mágica de Castro Maya”. Em: Castro Maya anfitrião. p. 26.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 51: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

49

justamente a transitoriedade e a fugacidade percebidas nas linhas de

Constantin Guys que fizeram do artista baudelariano o responsável pela

apreensão mundana da Paris do final século XIX. A experimentação urbana

de Guys estaria em consonância com aquilo que para Baudelaire

significava a fusão entre sujeito e mundo, sujeito e cultura, natureza e

cultura. E, para tanto, investir-se incisivamente a favor dessa maneira de

sentir as coisas, tornar-se-ia fundamental àqueles que apostavam na

experiência subjetiva como forma de expressão.

Talvez por um desvio de consciência, ou melhor ainda, por uma

extremada conscientização de que seu fazer implicaria sempre na posterior

formulação de conceitos, Barrio silencia-se diante de 4 dias 4 noites, pelo

menos por um tempo, um longo tempo. É que a cidade ainda persistiria em

sua memória, com suas paredes, ainda que, mais tarde, diante de uma

filtragem maior, resistissem o moinho, a viela, a cruz, os bueiros e os

esgotos e também as baratas e a grávida. Talvez o tempo fornecesse

elementos menos sujeitos à narrativa e mais propensos a uma colagem.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 52: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

50

Figura - 15 Constantin Guys. Três mulheres junto a um balcão, [pena e aguada com aquarela, 25X18 cm, Paris, 1860].

Mas Barrio não relata sua experiência pela cidade a partir de eixos

propriamente desconectados, já que ele próprio confere um certo tom

narrativo a seus depoimentos. É importante ressaltar que, não é possível

contar definitivamente com apenas uma narrativa, mas com muitas. O

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 53: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

51

Artista percebeu que só a distância poderá ajudar-lhe nessa tarefa. Mas

que reservas o tempo traria para um Rio de Janeiro colado na memória?

Memória pouco dignificante para uma cidade, descrita por baratas e

esgoto. É certo que Barrio não partiria obviamente dos ícones da cidade,

aliás haveria uma cidade, ou simplesmente um lugar do Terceiro Mundo?

É fato que para Barrio a cidade de Nice pode ser malcheirosa. Cabe

em seu interior - livre do véu impressionista - lixo e carne. Não um pedaço

de carne mole e sem vida, desprendido de um corpo qualquer. Tampouco

seria uma matéria cercada de grandiloqüência e asco, como a carcaça do

Boi esquartejado, pintada por Rembrandt, ou o vigor da massa corporal

edificante de um Marat assassinado de Jacques-Louis David.

Silenciosamente, a carne de Barrio será agregada, espremida, forçada a

integrar-se ao corpo físico de uma garagem (galeria alternativa) em Nice,

na França, até tornar-se provosoriamente parte estrutural daquela cidade.

Figura -16 Rodapés de Carne. [detalhe da performance. Nice, 1978].

É que o Artista compreenderia que qualquer afirmação óbvia do tipo,

veja bem do que somos feitos, poderia colocar tudo a perder. Barrio,

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 54: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

52

prefere, portanto a razão estrutural, dos rodapés e portões e,

principalmente, dos livros

É a partir daí que pretenderá trazer à tona o corpo carnal imaginário

dos elementos aparentemente sem vida, dotar-lhes de algo que sua

própria visibilidade lhes tomou como que por negociação à sobrevivência.

Mapeados de forma inusitada, não só os escombros cariocas ou a

garagem em Nice, mas outras cidades, como, por exemplo, em Viana do

Castelo (Áreas Sangrentas/1975), Paris (Lixo=Eletricidade/1976) e

Amsterdã (36 Pontos Sonoros/1982) foram convidadas ao diálogo.

Figura -17 Áreas Sangrentas. [detalhe da performance. Cidade do Porto, 1975].

Já em Áreas Sangrentas, do ano de 1975, a carne (peixe)

dimensionava o trabalho das vendedoras de pescado para além de um

ponto específico, como já evidenciado antes em outra obra, a .4

Movimentos do ano de 1974. Áreas Sangrentas foi desenvolvida no ano

de 1970, em Portugal, e conjugou-se em duas partes: 1ª evidenciando a

vida dessas vendedoras e apontando suas relações vitais, que passariam

pelo mar e pela venda do peixe; 2ª promovendo um debate público,

televisionado, com as vendedoras e alguns possíveis compradores.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 55: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

53

Nas palavras de Sheila Cabo, essa obra poderia ser compreendida

como a “instituição de um espaço de vivência para a arte que se localize

em primitivas relações de troca”.49

Figura -18 .4 Movimentos. [registro fotográfico, Praia do Mindelo, 1974].

Para criar Lixo=Eletricidade, Barrio reuniu, em um recanto da cidade

de Paris, objetos, como uma escada e latas de lixo, acumulando entre

eles restos de material descartados pela sociedade de consumo. A

imagem fotográfica de Lixo=Eletricidade apresenta um recorte da Cidade

Luz, introspectiva e sem brilho, denunciada na presença discreta e

ambígua de uma instalação. Haveria uma certa dificuldade em redizer

Paris a partir de tantas sobras, até porque existiria para Barrio uma Paris?

O lugar congela-se em imagem fotográfica, como um espaço qualquer,

sem a extremada estranheza das imagens radicais de Barrio, até por isso

essa obra parece caminhar na contramão, no silêncio. O importante é que

ali guardado na feição intransferível do lixo, reside uma matéria vibrante,

exibida quase que de passagem; imagem rápida como a energia, que

ninguém percebe. Lixo=Eletricidade é uma espécie de vírgula entre

palavras/obras de Barrio, é força vital, contínua e, tal qual 4 dias 4 noites, interminável.

49 CABO, Sheila. Barrio: “A Morte da arte como totalidade”. Em: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contemporânea brasileira. p.101

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 56: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

54

Figura -19 Lixo=Eletricidade Lixo=Eletricidade. [registro fotográfico, Paris, 1975].

Figura - 20 Situação Ambiente K. [registro fotográfico, Rio de Janeiro, 1970].

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 57: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

55

Lucilla Saccá define Situação Ambiente K como: “Sensualidade

escancarada e por vezes inquietante da vida íntima e doméstica”50,

registrada em foto a partir da reunião de dois instantes distintos: um

externo e outro interno. Na situação externa, ocorre captação de energia, derivada do

acoplamento de alguns materiais, como lixo, pão, saco de terra, tijolo etc. Na situação

interna, closes de uma moradia em franca desarrumação. E nada poderia ser tão

dramático quanto as imagens de um banheiro em que são exibidos o vaso

sanitário e pias sujos e, mais precisamente, um chuveiro antigo, junto a

um registro de água, acoplado a uma parede branca parcialmente

azulejada).

Não foi prerrogativa de Barrio utilizar a imagem íntima do chuveiro.

Também o Cinema valeu-se do instante particular do banho ao pretender

tornar visível à sociedade, a visão desoladora de sua própria forma de

vida moderna. Um bom exemplo é a famosa cena do chuveiro dirigida por

Alfred Hitchcock em Psicose, de 1969, no momento em que a

protagonista é assassinada a facadas. O lugar para o evidente prazer se

evidenciaria eminentemente suspeito, tornando-se quase um emblema do

problemático otimismo americano, diante da experiência de emancipação

da mulher e do caráter punitivo que a própria situação requerera; já que a

personagem em fuga refugiava-se provisoriamente em um motel, na

estrada, após um roubo. Em outro filme, A lista de Schindler51, de Steven

Spilberg, de 1993, a cena em que apresenta um progressivo close de um

chuveiro mantém em suspenso o expectador diante da possibilidade do

provável banho (de algumas das prisioneiras de um campo de

concentração nazista) tornar-se risco de morte à gás.

Nada disso, no entanto, suplantaria a possibilidade de uma cena

fotográfica, exibir como gesto de doação apenas à materialidade de um

banho por vir. O que na fotografia usual poderia ser sedução e

mecanismo de compreensão do ato emancipatório moderno: água

encanada, água potável, cena marcante, torna-se em Barrio impacto

50 SACCÀ, Lucilla. “Barrio: ecos de revolta”. Em: Artur Barrio: A metáfora dos fluxos 2000/1968. p.111. 51 O filme apresenta a história de Oscar Schindler, membro do partido nazista, que salvou a vida de mais de 1100 judeus durante o holocausto. Vencedor do Oscar no ano de 1993, com sete premiações.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 58: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

56

visual, mediado pelo flagrante seco da imagem, que em vez de exibir a

experiência de circulação física da água, propõe duvidar da assimilação

criativa do próprio gesto, e, ironicamente convidar o espectador a pensar

relações entre o objeto, o artista, a fotografia, e sua própria experiência de

espaço físico, de convivência, de memória etc.

Tão introspectiva quanto a solidão do chuveiro - e distante do

impacto mortal da cultura cinematográfica - é a solitária 36 Pontos

Sonoros de 1984. Nela, Barrio provoca ruídos emitidos pelo sopro de uma

concha em exatamente 36 pontos diferentes da cidade de Amsterdã. A

idéia de solidão não está propriamente ancorada na presença da unidade

física do artista, mas na possibilidade da cidade vir a se calar diante do

silêncio estapafúrdio de uma concha soprada e do burburinho energético

de uma cidade. Na imagem de um mapa contendo uma parte de

Amsterdã, que acompanha as fotografias do Artista durante a execução

da obra, aparecem marcados os pontos em que Barrio teria produzido os

sons. A partir dele (mapa) poderia ser pensada, de modo mais eficaz, a

dinâmica sonora interior da cidade. Talvez o movimento orgânico de

inspiração/expiração que envolve a produção do som em instrumentos de

sopro, não esteja apenas visível no assoprar da concha, no movimento

físico de expansão e expulsão do ar, mas, no próprio movimento de

expansão do Artista dentro da malha urbana, em contrapartida à retração

do ruído junto à sonoridade pública.

Figura -21 36 Pontos Sonoros. [detalhe da performance, Amsterdam, 1982].

É fato que a cidade de Barrio não é propriamente marcada pela

geografia encantadora ou pela grandiloqüência arquitetônica. Ela está

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 59: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

57

visível, nos mecanismos de relacionamento entre os homens e o mundo.

Talvez até por isso as cidades de Barrio surjam diante dos olhos do

espectador por meio de fragmentos, muito pouco estranhos, se levada em

conta sua aproximação com a própria “condição estranha”52 do espectador.

A dificuldade em reunir partes da cidade num todo imediato realça a

própria idéia de seu estilhaçamento. Em vez de uma extremada localização

de pontos peculiares e registros evidentes desse ou daquele marco urbano,

o que é buscado pelo Artista é uma completa agregação de sua experiência

a partir de matrizes expressivas. O registro fotográfico em Barrio, quase

sempre, possui um efeito cortante. É que as entranhas são acessos que

dispensam a metáfora do enceramento e do polimento das superfícies,

como forma de imprimir a marca inevitável e traumática de uma pegada na

limpidez pictórica do reflexo. Eis a cidade! Imensa. Contida. Que se

estabelece num rodapé, num canto, numa esquina, numa parede, pela

carne crua, pelo lixo, pelo papel higiênico, pelo chão. Barrio não quer

costurá-la, pelo contrário! Ela deve ser entendida em sua suspensão. É um

paradoxo. Gesto cego pelo exagero de contrários. Paisagem urbana,

tornada um mapa, pontuado pela dissolução do espaço, não um espaço

ampliado na imaginação para além da paisagem, mas em sua própria

retração a condição mínima de lixo.

Desse mundo, em que tudo se extingue, a superfície não pode ser

decantada sem que dela surja algo decomponível. Logo a cidade reverbera-se ao

esconder seus refugos e, enxergá-la, dependerá de muitos espelhos, já que ela se afirma

diante de uma falsa revelação, de um marco, de uma bela paisagem etc. Está sempre ali ou

acolá, como um fragmento, mas, sempre, passível de ser estilhaçada.

Max Ernst, um dos integrantes do grupo surrealista, pinta no ano de 1927, em óleo

sobre tela, A cidade Inteira, um dos muitos exemplos de um conjunto maior de

mesmo nome. Nela, a escritora Briony Fer perceberia qualidades visíveis

de uma cidade labiríntica, oposta a concepção moderna de cidade

defendida por Le Corbusier e que, segundo a mesma autora, poderia ser compreendida

como “Um local primevo, dominado por luxuriantes mas ameaçadoras formas de

vegetação. É uma visão desoladora da cidade em ruínas, assombrada pelo passado”.53

52 CANONGIA, Ligia. (org.). Artur Barrio. Petrobrás, 2002. Declaração do artista, p. 261.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 60: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

58

Figura – 22 Max Ernst, A cidade inteira. óleo sobre tela, 60x81 cm. Kunsthaus, Zurique ,1935-36].

Sensação de passado assombrando o presente que foi relacionada

por Ernst às memórias da infância. Como exemplo, o artista descreve que

“em casa, na cama, a criança acha que o familiar – o painel de madeira

de imitação - toma as formas estranhas e assustadoras daquela

fantasia”.54 Imprimindo então, um aspecto social àquelas imagens

fantasiosas, Ernst figurou a cidade como um local de fantasias da

infância: “Uma extensão do lar, uma vez que nela também se

desenvolvem relações simbólicas e psíquicas”55. Pulsão surrealista

melhor compreendida a partir daquilo que Walter Benjamim qualificaria

como “iluminação profana”.56 Superação autêntica e criadora da

iluminação religiosa (para além da propedêutica das drogas), “de

inspiração materialista e antropológica”.57 Explicação semelhante seria

apontada por Argan, ao mencionar a fotografia de Man Ray, e afirmar que

53 BATCHELOR, D.; FER, Briony; WOOD, Paul. “Essa liberdade e essa ordem: a arte na França após a primeira guerra mundial. Em: Realismo, racionalismo, surrealismo: a arte no entre-guerras. p.196. 54 Id., Ibid. 55 Id., Ibid. 56 BENJAMIN, Walter. “O Surrealismo”. Em: Magia e técnica arte e política. p. 23. 57 Id., Ibid.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 61: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

59

é a partir do desligamento de toda cultura, civilização e sociedade que o

homem conquistaria a autenticidade do próprio ser:

“O mecanismo psicológico é fácil: a realidade é sempre igual a si mesma, não faz sentido tentar mudá-la; reage-se ao tédio descombinando as combinações habituais, rompendo gratuitamente os esquemas normais”58.

Os relatos de André Breton nos romances Nadja e L’Amour Fou

partilham dessa mesma experiência particular. Escreve Breton:

“Num fim de tarde no ano passado (...) nas coxias laterais do Palácio Elétrico, uma mulher nua, que deve ter entrado vestindo apenas se sobretudo, vagava, lívida, de uma fileira de cadeiras a outra.59”

Ainda que o sonho seja eleito como o lugar de excelência para a

experiência integral do surrealismo, tanto Breton quanto Krauss

exemplificavam um tipo de experiência de mundo compartilhado, aquilo

que em 4 dias e 4 noites tornava-se elevado à enésima potência.

Unificada na dimensão do silêncio, sem demandas reativas, tudo se

reverteu para uma experiência solitária do corpo com o entorno. “Visto de

fora, eu era simplesmente uma pessoa comum andando pela rua”60 –

comenta Barrio.

Nesse sentido merece destaque a brancura evasiva das páginas do

cadernoLivro criado a partir dessa situação, refletida em ato de profunda

lucidez, se tomada como medida aquilo que Luiz Camillo Osório definiu

como o “limite da perda de si”61 e a posterior inviabilização em recriar a

experiência, torná-la obra. A impossibilidade de reagir frente à ilogicidade

é, em certo sentido, o que mais lhe atrai 4 dias 4 noites. Sem estar

congelada em uma forma ideal, a atuação torna-se coisa estranha,

qualifica-se menos como uma nova visão de arte e mais como um

processo longo, “mais longo do que deveria ser, afirma o Artista”.62

E o que significaria um tempo expandido para além de sua exata

58 ARGAN, Giulio Carlo. “A época do funcionalismo”. Em: Arte moderna. p.481. 59 KRAUSS, Rosalind. “Um plano de jogo: os termos do surrealismo”. Em: Caminhos da escultura moderna. p.141. 60 REIS, Paulo; BASBAUM,Ricardo; RESENDE, Ricardo. Panorama da arte brasileira 2201. p. 82. 61 Entrevista com Artur Barrio 20, de julho de 2001. 62 Declaração de Artur Barrio em entrevista sobre o Trabalho/Processo 4 dias 4 noites.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 62: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

60

medida? A saturação do corpo a ponto de inflar-lhe os órgãos pelos

poros? Metáfora que por acerto ou risco poderia aproximar-se da

experiência expandida da energia a partir de um núcleo gerador, no caso

do 4 dias 4 noites, do corpo para o espaço.

Nenhuma outra ação, compreendida como movimento sobre a urbe,

poderia ter resultado em melhor experiência de modernidade quanto em

Baudelaire, ao definir a cidade como o lar do homem moderno e, logo, o

lugar para seu drama psíquico. Acolhimento que logo tomaria feição

específica, já que a cidade, aqui decantada, não é mais a Paris desejada

por Breton, mas os arredores de um Rio de Janeiro perigoso. Cidade

como suporte, local para o desenvolvimento de estratégias de superação

e enfrentamento da arte institucional – “ Abro mão de meu

enquadramento como artista”63 – e da produção do consumo – “O

trabalho não é recuperado, pois foi criado para ser abandonado e seguir a

sua trajetória de envolvimento psicológico”64.

É certo que imagens chegam até a superfície da consciência;

recordações visíveis, ligadas a um odor que se confunde. Aí está o

grande ponto de interrogação?

“Não houve um pré projeto, desde os deflagramentos, não havia isso, o carro ia. O que eu queria colocar é justamente que todo o processo dos 4 dias 4 noites foi algo completamente inconsciente, sem um entrave da razão. “65

Artur Barrio percebe que o risco está atrelado à inteligência e a

sensibilidade humanas. Para ele a idéia, que é o motor da atividade

SURREALISTA/CONCEITUALISTA, para ser eficaz, teve que se

disfarçar, tentando reconstruir o entendimento humano.

Escreve ele certa vez o seguinte: Não é estranho, também, que se conceda tanta importância a selvagismo da mirada (ou seja “o saque”, na medida em que esta participa no selvagismo de todo o ser, no enfermo mental ou artista oceânico.66

63 BARRIO, Artur. “Lama/Carne Esgoto” . Em: Artur Barrio. Catálogo do artista. São Paulo, Petrobrás, 2002, p.146. 64 Idem. p.146. 65 Declaração de Artur Barrio em entrevista sobre o Trabalho/Processo 4 dias 4 noites.

66BARRIO, Artur. “Surrealismo e conceitualismo”. Em: Em: Artur Barrio A metáfora dos fluxos 2000/1968. p.66.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 63: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

61

“Um exemplo disso é a celebração da loucura de Nadja por Breton,

que acaba por interná-la num hospício”67(...) “a histeria é um estado

mental mais ou menos irredutível que é caracterizado pela subversão das

relações entre o sujeito e o mundo da moralidade, ao qual ele se opõe,

fora de qualquer sistema de delírio.”68 Então, escreve em um de seus

cadernosLivros: “A menina melindrosa chorou, quando soube que sua

babá tinha ido embora e não mais lamberia a sua bocetinha na hora de

dormir.”69 “Mas eu chamo de segmento no sentido em que os trechos

surgem uns a partir dos outros. Eu tinha consciência de que um segmento

tinha terminado; mas, o próximo, eu não sabia qual era. Uma paranóia

associativa.”70

Não fora por acaso que o Livro de Carne surgira no ano de 1979,

revelando contornos jamais desenvolvidos pela natureza. É acentuada a

dramaticidade do objeto, embora o espectador não saiba ao certo por que

sensação optar: nojo, estranheza, desejo etc. Como a carne se apresenta

morta e deve morrer uma segunda vez, de apodrecimento, a visão do

objeto, lembra as mazelas e aflições da própria condição carnal.

Em uma fotografia que integra o catálogo sobre sua obra, aparece

uma imagem de aspecto incomum, quase grotesca, da peça dilacerada

pela faca afiada, que em vez de revelar peles ou rugas, mostra o interior

visceral da carne. Excesso focal que no passado aparecera em algumas

imagens fotográficas de artistas surrealistas. Daí o contato com tais obras

parecerem marcar frontalmente a poética de Barrio, tendo sido

certamente Man Ray e seus ready-mades modificados fontes de

inspiração para Barrio na confecção de suas Trouxas Ensangüentadas. O

próprio Objet: déjeneur en fourrure de Meret Oppenheim, fotografado por

Ray em 1936, que “reproduzia o efeito do arranjo comum dos objetos à

mesa”71, estaria próximo e para além daquilo que o Livro de Carne, em

acordo com a proposta surrealista, pretenderia: “chocar e confundir as

67 BATCHELOR, D.; FER, Briony; WOOD, Paul. “Essa liberdade e essa ordem: a arte na França após

a primeira guerra mundial. Em: Realismo, racionalismo, surrealismo: a arte no entre-guerras. p.212. 68 Id., ibid. 69 Declarações de Artur Barrio. 70 Idem. 71 BATCHELOR, D.; FER, Briony; WOOD, Paul. “Essa liberdade e essa ordem: a arte na França após

a primeira guerra mundial. Em: Realismo, racionalismo, surrealismo: a arte no entre-guerras. p.176.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 64: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

62

expectativas convencionais”72. Isto é, fazer o espectador olhar para o

objeto ordinário como se estivesse contaminado por pedaços desejosos

de pêlo e carne.

Figura-23 Man Ray, Objeto: desjejum em pele. [registro fofotgráfico, Coleção particular, 1936].

Embora continue tentando até hoje filiar-se à coisa nenhuma, e

ainda que o surrealismo lhe tenha sido uma espécie de ancoradouro - o

Trabalho/Processo 4 dias e 4 noites teria fornecido conclusões

necessárias,

e com certeza caras aos olhos de Freud, como, a impossibilidade de

revelar os atos do próprio inconsciente, promovendo, quem sabe, uma

resposta contundente ao grupo surrealista europeu. Talvez seja por isso

mesmo que o aparente desarranjo de suas propostas artísticas seja tão

marcado. E não existiria nenhuma incoerência em tal deliberação, já que

a obra de Barrio faz parte de um processo de continuidade/fragmentação.

Prossegue o artista: “Quando mais tarde, nos anos 1980, surge a pintura,

eu pinto73”.

72 Idem, p.176. 73 Declaração de Artur Barrio em entrevista sobre o Trabalho/Processo 4 dias 4 noites.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 65: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

4 Sobre Fortaleza-Lisboa 4.1 A linha do horizonte determina o espaço?

Uma espécie de desubstancialização parecia tomar conta da Galeria

Cândido Portinari naquela época, em 2001. O local já se anunciava

estranhamente marcado pela ausência de identidade enquanto espaço de

exposições. Um certo ar de provisoriedade. Artur Barrio pareceu

compreender que essa característica marcante, longe de ser um

problema, seria o ponto de partida para pensar o próprio caráter

transitório da obra Fortaleza-Lisboa.

Figura - 24 Fortaleza-Lisboa. [detalhe da instalação, Rio de Janeiro, 2001].

Naquela ocasião, em que pude observar de perto a montagem da

instalação, momento decisivo para a compreensão desse fazer não de

todo revelado na aparência final da obra, percebi um artista que refletia

rumos e condutas à medida que tocava os acordes de sua criação. Barrio

opta por iniciar a montagem do trabalho despejando lentamente meia

tonelada de sal grosso no piso desgastado da Galeria Cândido Portinari.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 66: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

64

O chão embaçado, que trazia as marcas das muitas passagens de cera e

das diversas tentativas de retirá-la, assistia ao ato de ser ser recoberto

pela vontade do artista. É como se os primeiros ecos emanados de dentro

do oceano não pudessem ultrapassar meia légua sequer daquelas

paredes; e a solidão local fosse atenta aos barulhos produzidos por conta

do arremesso do sal contra o chão e painéis, do interior daquela ilhota

cega do circuito de arte carioca.

O Artista estica o braço, eleva e pousa no espaço vazio uma

lâmpada de 15watts que ficará permanentemente acesa sobre o sal. Ela

está engastada num longo cabo elétrico, como que num chicote, que sobe

e desce da parede esquerda e termina no chão, traçando um desenho.

Junto ao canto direito de quem entra, ao fundo, uma pequena jangada

desce pendurada a partir do teto, até altura aproximada dos olhos de um

adulto. No espaço anterior, numa espécie de ante-sala, algumas pranchas

mostram imagens gráficas contendo anotações e reproduções de fotos

que apontam para o processo de elaboração da obra. Nas costas do

painel que delimita o espaço expositivo, só perceptível após a entrada e já

no movimento de retorno ao começo, Artur Barrio escreve uma frase em

branco sobre o fundo negro? “A linha do horizonte determina o espaço.”

Figura - 25 Fortaleza-Lisboa. [detalhes do vídeo, Viagens. Rio de Janeiro, 2001].

Durante a montagem da instalação, certa vez, o artista caminhou

trazendo consigo o chicote que enlaçava a lâmpada, em direção à

pequena jangada pendurada. Da jangada surgiam sombras enigmáticas

que pareciam descarnar a estranha alvura dada àquelas paredes. Era

como se, por um instante, na infância, os castiçais nas mãos das

crianças, que aguardavam o retorno da luz elétrica, fossem propagadores

de torções e justaposições das coisas, dadas a partir da ação mágica da

luz das velas. Foram poucos sacos de sal (cerca de uns cinco ou dez) que

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 67: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

65

sobraram da meia tonelada que Barrio despejou ao solo, enquanto era

filmado pela equipe responsável pela elaboração do vídeo sobre o

making-off daquela instalação que mais tarde seria incorporado a ele. No

dia da filmagem, um certo abafamento tomava conta da Galeria Cândido

Portinari. O ar quente do local pedia pressa a todos que acompanhavam a

ação lenta e meticulosa de recobrimento do chão que, ao final do

percurso, viria a exibir uma nova “pele”, levemente ondulada, opaca mas

cristalina.

Orientado pela ação sobre o piso no momento do espalhamento

proporcional do sal, Barrio passa a presenciar o espaço, levado por uma

andança sistemática. Como se ao optar pelo recobrimento do solo, tal

qual um lavrador, estivesse obrigado a travar contato com cada palmo de

terra, até que cada um lhe guardasse certa intimidade. No entanto,

paradoxalmente, a experiência de percurso é acelerada; avessa mesmo a

contemplações e a lentas especulações. O certo é que, ao fim da ação, o

chão negro torna-se quase todo tomado pelo sal grosso. A galeria, tal

qual um prisma cristalino, dá-se a ver branco, de forma maravilhosamente

estranha, quase asséptica, não fosse o pacto de Barrio com a possível

fealdade das coisas e do local.

Foi articulando a pintura de dois mestres modernos, Pollock e

Mondrian, que o historiador e critico de arte Robert Kudielka escreveu um

artigo intitulado Abstração como Antítese. Nele a discussão se assentou

no território da abstração pictórica pós 1910 e pretendeu apontar os

“equívocos decorrentes da identificação sumária ou dogmática do

figurativismo como arte objetiva e da pintura abstrata como arte não

objetiva”.74 Estabelecidos os acordes iniciais dessa ampla discussão,

Kudielka trouxe à tona a pintura neoplástica de Mondrian e a action-

painting de Pollock de modo a contrapô-las. Tarefa aparentemente fácil se numa primeira

visada forem aproximados certos aspectos, imediatamente óbvios nas duas

pinturas, como as relações de escala e as deliberações sobre

manutenção expressiva do gesto. Só que, para além das concepções

triviais que separariam um Mondrian construtivo de um Pollock destrutivo,

74 KUDIELKA, Robert. “Abstração como antítese”. Revista Novos Estudos CEBRAP, nº 51, p.16.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 68: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

66

Kudielka refaz o percurso, invertendo essa visada de forma incisiva ao

afirmar: Mondrian destrói e aniquila, Pollock constrói e ordena.

Figura - 26 Jackson Pollock. Número 1. [esmalte e tinta sobre tela 160x259, Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, 1949].

Certa vez o próprio Mondrian teria declarado sobre sua pintura:

“Assim, forma, volume, superfície e linha devem ser destruídos e não

expressos. Isso é indispensável para o conjunto da obra e para os

elementos que a compõem”.75 Enfáticos, os conceitos de destruição e

aniquilação irritam diante do texto, cada vez que a lembrança aponta para

uma assepsia construtiva. Em contrapartida, Kudielka propõe, também,

devolve um Pollock afirmativo:

Eu procuro deixar que ela venha. Apenas quando perco contato com o quadro o resultado não me satisfaz. Do contrário, existe a pura harmonia, um fácil dar e receber, e o quadro fica bom.76

A concretização do projeto/idéia de Barrio desperta curiosidades. É

que ao tangenciar a tela Mondriana, estaria levantando uma dobra poética

junto aos construtivistas, mas a partir de uma via muito particular. A partir

daí, muitas seriam as razões que levariam seus críticos a repensar o

diálogo entre o integrante ativo da de Stjil e o Artista da Cidade do Porto,

75 Ibid., p. 23. 76 Ibid., p.30.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 69: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

67

deixando em suspenso a pergunta: que pontos de contato levariam Barrio

a se aproximar de Mondrian? Que paralelos uniriam, coisas tão diferentes

quanto uma pintura e uma instalação de Barrio como, por exemplo,

Fortaleza-Lisboa de 2001 e Composição em vermelho, azul e amarelo de

1927, feita por Mondrian?

Certamente que a aproximação entre tais formalizações não estão

visíveis em suas aparências imediatas. Barrio está trazendo à superfície

questões que vão além do plano da pintura e poderiam ser mais bem

compreendidas diante da análise acurada das duas instalações.

Em Fortaleza-Lisboa de 2001 tudo o que haveria para ver estaria

imediatamente pontuado sobre o espaço usual da caixa prismática da

galeria. No entanto, há algo de específico nessa reedição das instalações

que levaria o espectador para além das costumeiras ocupações do

espaço por Barrio. A tensão entre as duas superfícies (teto e chão) se faz

sentir de imediato. Acumulando muito sal, o chão passa a desenvolver um

papel lapidar dentro do espaço monótono da galeria: literalmente um mar

de sal, com todas as impertinências que a mobilidade horizontal da água

poderia nos oferecer.

Trata-se de uma obra de grande diversidade, sustentada por uma

rede balanceada de relações entre os próprios elementos acolhidos (sal,

jangada, cabo e lâmpada) e as superfícies aos quais se agregam. Tarefa

nada fácil para quem acostumara-se a ações radicais de maceração de

paredes. Em Fortaleza-Lisboa – 2001, uma certa cautela em sua

utilização (livres dos costumeiros escritos) permitiu apenas a uso de uma

das paredes, a do lado esquerdo de quem entrava na galeria, ao

sustentar o prego de apoio para longo cabo de energia que subia rente,

até mais da metade da parte inferior, e descia alimentando a lâmpada

acesa sobre o sal.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 70: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

68

Figura - 27 Piet Mondrian, Composição em vermelho, amarelo e azul. [óleo sobre tela, 61x40cm. Stedelijk Museum, Amsterdam, 1927].

Embora a exterioridade luminosa de Fortaleza-Lisboa – 2001,

elegante e introspectiva, diferisse em aspecto de muitas de suas outras

instalações, Barrio não cederia mais uma vez àquilo que teria, certa vez,

qualificado como a busca do mais fácil, ao se referir às insistentes

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 71: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

69

apropriações simbólicas feitas, de modo geral, pelos críticos. Daí a

reunião dos elementos parecer incapaz de sustentar qualquer narrativa

que não fosse direcionada a sua própria inter-relação com o espaço.

É que nesse balanceamento de tensões entre superfícies e coisas, o

plano tridimensional vai sendo conquistado simultaneamente pelo rápido

entendimento do todo e das partes que o delimitam. Como se o jogo da

compreensão estivesse amarrado tão somente nessas relações literais

entre superfícies (paredes, teto, chão, sal) e linhas (cabo e lâmpada, fios

e jangada pendurada), varrendo para fora da obra quaisquer outras

reverberações. Sensação de dúvida e decepção.

O certo é que o espectador não contemplaria Fortaleza-Lisboa –

2001, assim como não o faria com uma tela clássica de Mondrian. É

porque Barrio, cauteloso, sabe dos riscos que a sua obra estaria

submetida se qualquer passo a mais fosse dado. Daí o caráter límpido e

branco da instalação deixar quase de lado o esquema tradicional de suas

construções, a não ser pela presença daquela frase escrita, arrastada, à

giz sobre um dos painéis negros, surpreendentemente visíveis a partir do

movimento de retorno à saída contendo a já conhecida inscrição: “A linha

do horizonte determina o espaço”.

De imediato a afirmação, curiosa, parece sugerir ao campo da

instalação algo aparentemente traumático, já que a imagem da linha do

horizonte está supostamente atrelada a um determinado momento da

história da pintura. Algo problemático, se não fosse trazido, de novo, ao

diálogo pela leitura de Robert Kudielka sobre a linha do horizonte em

Jackson Pollock. Ao comparar duas obras do pintor americano, Number

31 (one) e Autumn rhythm escreve esse autor:

Embora absolutamente equivalentes, os espaços do quadro não são todos

homogêneos. Em Autumn rhythm, as divisões isoladas são mais uma vez enfeixadas numa cadência ternária, claramente visível na metade superior do quadro. A dissolução desse tríptico latente no terço inferior do quadro revela, por sua vez, uma semelhança com Number 31 (one)- semelhança essa que talvez constitua a diferença mais importante entre a ordem pictórica clássica de Pollock e a concepção corrente da composição all over. Um e outro quadro são claramente ponderados para que haja uma diversidade qualitativa entre a parte inferior e a superior. A inversão comprova, nesse caso, que, embora a composição seja trabalhada em seu contorno, ela não pode de modo algum ser virada de ponta-cabeça. A zona situada logo abaixo do eixo central, onde a gravitação começa a ter grande relevância plástica , pode lembrar a tradicional linha do horizonte, mas

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 72: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

70

só porque, de facto, ela é sua contrapartida imediata; não o limite remoto de nosso campo de visão, mas a confirmação do campo de tensão físico em que se situa o observador.77

A última frase da citação acima poderia ser perfeitamente aplicada a

Fortaleza-Lisboa – 2001 se não fosse sabido que por trás dela estão

pinturas e não espaços instalativos. No mais, a frase de Barrio sobre o

horizonte quase que assumida, também, como pintura, devolve ao

espectador de forma inusitada, o ancoradouro visual que já havia sido,

simultaneamente, criado pela tensão entre os planos superior e inferior e

preterido por sua própria conjugação com o todo. A tensão surge

imediata, como se o novo dado obrigasse o espectador a domar o espaço

justamente quando sua compreensão parecia pronta. É como se ele

estivésse que olhar outra vez para um Mondrian por outras lentes,

ancoradas, para além de Duchamp, na própria sabedoria popular.

4.2 Broadway Boogie-Woogie, jangada ready-made

Em um dos recentes e-mails enviados pelo Artista, contendo

algumas de suas orientações, esse declarou ter estado propenso a

utilizar, na vela da jangada que integraria sua última versão de Fortaleza-

Lisboa, a de 2004, esquemas geométricos e cromáticos semelhantes aos

das pinturas de Mondrian. Tal idéia, abandonada em seguida, foi

retomada como um projeto do acaso. Ocorre que, por ocasião de sua

estada em Fortaleza, Barrio teria avistado de seu hotel, situado em frente

à praia do Mucuripe, a jangada que integraria mais tarde o projeto/idéia,

vinda do mar com “a vela do estilo Mondrian, pronta”78. E, Barrio compra a

jangada.

Uma das últimas pinturas de Mondrian Broadway Boogie Woogie, foi executada

entre os anos 1942/43, após sua visita à cidade de Nova York. A tela se assemelha de

modo rarefeito à vista superior de uma cidade, traduzida pelo aspecto cifrado, do ritmo

sincopado do jazz. Broadway vista do topo?

77 Ibid., p.32 78 Declaração de Barrio a partir de e-mail enviado pelo próprio.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 73: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

71

Figura-28 Fortaleza-Lisboa. [detalhe da instalação. São Paulo, 2004].

Talvez tais aproximações poderão ser melhor compreendidas a

partir das palavras de Mel Gooding, ao afirmar relações visíveis na

poética de Mondrian com a música e ritmos, como o jazz e o foxtrot. De

sua terra natal, um rigor intelectual e moral relacionado ao clima espiritual

da Holanda, refletida no próprio controle da natureza (paisagem feita pelo

homem e “dominada pela geometria da linha reta e do ângulo de 90, da

horizontal e da vertical”79). Conta Gooding que o próprio Mondrian

montava suas telas como se fossem objetos, projetando-as assim no

espaço real. Tomando a afirmação de Ferreira Gullar em seu texto

Teoria do não-objeto de que “a moldura perde sentido”80quando a pintura

abandona radicalmente a representação, abre-se o caminho em direção

ao desenlace dessa mediação entre obra e mundo, desde as colagens

cubistas até os fragmentos de Schwitters, o que para Gullar teria a

mesma intenção: confundir objeto e obra de arte.

79 Idem, p. 26. 80 GULLAR, Ferreira. “Teoria do não-objeto.” Em: Literatura comentada. São Paulo. p.143.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 74: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

72

Figura-29 Piet Mondrian Broadway Boogie Woogie [óleo sobre tela 127 x 127cm. Museu de Arte Moderna de Nova York, 1942/43].

Tal evocação, a quebra de limites, já aparecia visível em Mondrian

que, embora “comprometido com a pintura de cavalete como uma

atividade essencialmente filosófica” 81, avistaria um certo idealismo

utópico na certeza de que a beleza da arte, transferida para o ambiente,

abriria mão da própria pintura como veículo de expressão. Arte,

arquitetura e design reunidos, em total harmonia ambiental.

Ao lançar dados contendo verdades constantes, no que se refere à

universalidade das formas como “expressão do imutável” 82, Mondrian

81 GOODING. Mel. “Abstração no mundo: construtivismos.” Em: Arte abstrata. p.52. 82 GOODING, Mel. “A abstração e o invisível.” Em: Arte abstrata. p.30.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 75: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

73

estaria ampliando o leque de incertezas quanto ao implante positivo

dessa própria ordem estética. Algo visível, por exemplo, nas palavras

taxativas de Kudielka de que Mondrian destrói.

A proposta do projeto expansionista do grupo (ao qual Mondrian

pertencia) reunido em torno da revista De Stijl, (fundada em 1917 na

Holanda) parece ocupar hoje uma posição destacada, e embora um tanto

lacunar, dentro da História da Arte, o que, segundo as palavras de

Ronaldo Brito, poderia ser entendido como “uma jóia do pensamento

idealista”83- adequada a uma “sociedade paternalista e autoritária”84,

“negação da subjetividade – tomada apenas e tão-somente como terreno

do confuso e do informal”85.

No pano curvo que conforma a vela da jangada, aparecem coloridas

em azul e vermelho, partes costuradas formando planos verticais e

horizontais, assemelhadas às imagens dos construtivistas. Parecendo

duvidosos de sua própria evidência artística, o traçado rijo das superfícies

coloridas ganha outra consistência diante do vento a lhe inflar as

entranhas. O aspecto geral da jangada sugere reverência, algo próximo

àquilo que Rodrigo Naves citara ao falar de uma obra de Amílcar de

Castro: “Combinação de civilidade e deleite, de adestramento e

satisfação”86: Em suma, uma certa compreensão topográfica e planar,

derivada da instabilidade daqueles que vivem na superfície do mar, quase

que por antítese e a propósito dela.

83 BRITO, Ronaldo. “De Stijl. Em: Neoconcretismo”. p.18. 84 Idem, p. 19 85 Id., ibid. 86 NAVES, Rodrigo. A forma difícil. p. 225.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 76: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

74

Figura-30 Fortaleza-Lisboa. [detalhe da instalação. São Paulo, 2004].

A vela, resistente à pressões ordenadoras, reivindica certa

problemática ao se mostrar positivamente presente ao cerne popular.

Quase como um ícone da relutante sobrevivência de algumas das

populações nordestinas propõe a si mesma a seguinte tarefa: fazer

coincidir a dureza, vital à sobrevivência popular, aos contornos rígidos do

pensamento ‘erudito’. Talvez até por tal inusitado, a jangada pareça um

tanto, cenográfica no espaço de exposições da bienal. E nada poderia ser

melhor: assemelhar-se falsa para ressaltar a veracidade da própria arte.

Num certo sentido a jangada era o que havia de mais verdadeiro naquele

lugar. Não porquê apenas conduzida poeticamente por Barrio daqui para

ali, vida e arte ou vice e versa, mas porque exibiria dentro do núcleo

artístico oficial, um diálogo refeito na periferia da própria instituição.

Em certo sentido a jangada se assemelhava à trajetória de Barrio no

que concerne à arte. Metamorfose do pano branco que forma a vela da

jangada. Evidência de novas formas. Um correlato da sabedoria popular

que não só cria, mas toma de empréstimo como que por afeição, a

imagem. Melhor dizendo, o esforço formalizador dos artesãos em tornar a

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 77: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

75

experiência metamórfica do sobre as águas num ancoradouro muito

distante da impessoalidade construtiva. Permitiu o artista, num instante de

visão deixar que Mondrian viesse à tona. Paradoxalmente do mar.

Lentamente trazido pelo olho que fita contemplativo o horizonte. E num

instante, o ready-made torna-se reconhecível. Barrio olha, julga o objeto,

retira-o do mar para o centro internacional da arte.

4.3 A escolha de Olympia

É preciso retomar Manet, o artista viajante que por força da

curiosidade, aporta na Baía de Guanabara em meados do século XIX.

Sua viagem em direção ao novo mundo não é inédita, diante da simpatia

dos pintores viajantes pelas cores inusitadas dos diferentes povos. Um

certo olhar sempre atento a exotismos locais, que também marcaria a

pintura de Manet.

Trata-se mais especificamente da tela Olympia (1865), trazida à luz

da imagem e conduzida ao apedrejamento pela crítica francesa quando

levada a público. O inusitado que aqui se coloca não está no clamor

negativo da crítica, nem na discussão entre as origens das figuras – do

oriente ou do ocidente - mas no direcionamento futuro que tal obra

pareceu apontar. Entre suas várias descrições, incluindo aquelas que

tentavam agregar perjúrios às figuras que aparecem no quadro - os

adjetivos foram muitos e mostraram-se espalhados em mais de setenta

textos feitos pela crítica na ocasião - uma delas parece singular e

fundamental. E a feita por T.J. Clark ao citar uma frase conclusiva de

Baudelaire, abreviada em uma carta a Manet : “O quadro de uma mulher

nua com uma negra e um gato”.87

Baudelaire levava de assalto para a tela palavras que ecoariam

como três marteladas diante das revelações diáfanas da luz na pintura. O

que poderia incomodar mais a fatura naturalista que ser alçada, ainda que

de modo muito sutil, como uma bela colagem da pintura?

87 CLARK, T.J. “A escolha de Olympia”. Em: A Pintura da vida moderna. p.148.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 78: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

76

Figura-31 Édouard Manet, Olympia, [óleo sobre tela, 130x190 cm, Musée D’Orsay, Paris, 1863].

Manet guardaria sintonia com aquilo que ele próprio classificara

como a pintura da vida moderna: sinais visíveis da modernidade que não

surgiriam apenas da fluidez cromática que quase iguala o todo ao fundo

escuro e manchado que envolve as figuras, escuro e manchado; mas na

deliberada frontalidade do nu. É como se Manet, ao agrupar os três

elementos de forma tão pragmática junto ao meio pictórico, cobrasse do

espectador uma resposta impossível. Um dizer aquilo que não há. E

Baudelaire foi o primeiro a não conseguir falar dessa franqueza

perturbadora de Olympia.

Talvez um dos problemas da obra, na época, não tenha sido o fato

de ser uma cortesã a retratada, mas de mostrar a tela uma excessiva

integração à dinâmica de seu tempo. Tomada de empréstimo. O fato é que

a pele da mulher possui colorações semelhantes a do pano sob seu corpo

e mantém-se luminosamente voltada quase para fora da tela, como se pudesse

adentrar a qualquer momento no campo físico do espectador. Enquanto isso negra

e o gato retraem-se quase diluídos diante do fundo escuro, fundo que conecta os

elementos e estabelece uma distância entre criação e objeto de arte, o que no contexto

contemporâneo se aproximaria do coeficiente artístico de Duchamp.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 79: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

77

Ao tentar decifrar o ato de criação, Duchamp designou ao público a

tarefa de contatar a obra de arte ao mundo exterior, decifrando e

interpretando suas qualidades intrínsecas. Segundo ele, isto aconteceria

porque existiria uma lacuna a suprir, uma vez que durante o ato criador:

O artista passa da intenção à realização, através de uma cadeia de reações totalmente subjetivas.(...) O resultado deste conflito é uma diferença entre a intenção e a sua realização, uma diferença de que o artista não tem consciência.88

Parece um ato taxativo. Olympia intriga, como jangada vinda do mar,

como um objeto do mundo. Como recusa-se a ser.

4.4 O reverso do mesmo lado

A última etapa do projeto/idéia Fortaleza-Lisboa, pensada

atualmente como uma única obra, foi desenvolvida em 2004, para XXVI

Bienal Internacional de Arte de São Paulo. Diferindo da instalação de

2001, na UERJ, em que a galeria se destinava totalmente àquela obra, na

Bienal, com pouco espaço para respiração, a instalação nasceria com

uma tarefa a cumprir de imediato: a de manter-se de pé diante das

interferências de outras obras expostas. Não fosse Barrio complacente e

muitas vezes partidário de tal problemática, Fortaleza-Lisboa/2004

poderia comprometer-se diante desse fato.

Sem os mesmos ecos das edições anteriores, principalmente a

comemorativa do Brasil 500 anos em 2000, a XXVI Bienal Internacional

de Arte de São Paulo tentou tomar fôlego mediante a promessa, pouco

contestada e um tanto desgastada, de ideais de liberdade, que parecem

espelhar-se tanto na gratuidade do acesso público, quanto no fundamento

curatorial, que levou o espectador, em vários momentos, a ter a sensação

de estar diante de uma livre parafernália enlouquecida.

Diferente e ainda assim indistinta da Fortaleza-Lisboa/ 2001, esta

não se revela completamente de imediato. Carece que seja rodeada de

modo a que o espectador possa decifrar lentamente todas as ondulações

88 DUCHAMP, Marcel. “O Ato criador”. Em: BATTCOCK, Gregory. A nova arte. p.73.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 80: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

78

que promove. De uma jangada, agigantada em sua posição no interior do

prédio da Bienal, aparentando-se a um marco urbano, partem quatro

braços sugeridos por cordas, que terminam ancoradas em estruturas de

madeira em formato de cruz. Próximos da jangada e em direção

diametralmente oposta, um sofá velho e empoeirado e uma vitrine

(contendo cadernosLivros e material da exposição anterior Fortaleza-

Lisboa) dialogam com o barco de mais de quatro metros de altura. Tanto

ele quanto o sofá estão sobre um “tapete” de areia que delimita sua área

sobre o chão negro.

É tentadora a proposta de pensar tais instalações como partes

específicas de um único processo, como uma obra em construção, e do

mesmo modo avaliá-las como elementos distintos, atrelados

forçosamente pelo título. Diferente da montagem de 2001, a Fortaleza-

Lisboa de São Paulo teria que, como tarefa primordial, tornar-se

impositiva diante do conturbado entorno. Daí a sensação de difusão da

obra, para além de sua área de ocupação, estar paradoxalmente

ancorada na contenção da areia sob a jangada e o sofá, formando um

desenho sobre o chão, contornando os elementos. Barrio pareceu

perceber que a expansão da areia, tal qual a do sal grosso em 2001,

poderia surtir um efeito delimitador diante da espacialidade do pavimento

térreo da Bienal.

Há em Fortaleza-Lisboa um chão marcado. Um chão de praia,

preservado nas pegadas que o mar não apagou. As impressões deixadas

pelos passantes no sal e na areia, não mais descrevem pistas precisas

sobre os diversos rumos. São registros que, duvidosamente, contam a

história do movimento dos corpos humanos dentro da obra, um indício de

que ali teriam ocorrido deslocamentos reveladores. A estranha certeza de

que quanto menos se identificam pegadas e direções, mais movimentos

houve. Poderiam assemelhar-se, em certo sentido, a uma das tarefas primordiais

da arte: a de serem desenhos?89 Talvez, se a crença for de que o desenho pode revelar

mais do que sua simples descrição do visível a partir da qualidade do traço.

No caso das instalações de Barrio o chão, tomado como matriz de

89 CALDAS, Waltércio. “Desenhar” ..Em: CANONGIA Ligia (org.). Waltércio Caldas 1985/2000. p.126.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 81: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

79

impressão, poderia revelar marcas da gestualidade do artista? Seria tal

revelação resultante da equação precisa entre a obra estática e o

espectador em movimento? Então, imaginar o quanto o visitante de uma

instalação de Barrio teria caminhado sob as camadas de sal e de areia

seria interessante? Que trajetória teria o fixado mais? Que pontos de vista

teriam sido requisitados à compreensão da obra? Os solos de sal grosso

e de areia poderiam ser pensados poeticamente como correlatos físicos

de um mar revolto [no caso do sal grosso] ou de uma praia abandonada:

nenhuma certeza diante de uma clareza excessiva. É como se a

verificação minuciosa de alguns detalhes fizesse sentido diante da

compreensão clara e ampliada do conjunto. Partes específicas de

movimentos singulares num todo indivisível e cambiante. Sal e areia

permitem acender a chama do apagamento daquilo que, em certo

sentido, teria sido mapeado pelos passos do espectador. E, ainda assim,

haveria um gesto maior, uma vontade do Artista de que tal acontecimento

fosse compreendido em sua agregação. Gesto também escultórico, que

se instala em camadas invisíveis de sensações, curiosidades,

desentendimentos, que o Artista pareceu querer buscar no silêncio tópico

da matéria. Uma linhagem da escultura diferenciada pelo agregar invisível

do deslocamento dos corpos. Seria, então, uma metáfora de viagem?

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 82: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

80

Figura-32 Fortaleza-Lisboa. [detalhe da instalação. São Paulo, 2004].

Figura - 33 Carl Andre. Lament for the Children. [detalhe da instalação. Long Island, 1976].

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 83: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

81

A deliberação desse recobrimento do solo indica a repetição de um

gesto histórico da escultura: o ímpeto primitivo em cobrir e empilhar. O

que nas palavras de David Batchelor, ao referir-se à obra de Carl Andre,

seria caracterizado como “um senso profundo quase primitivo de (...)

relação com o passado”.90 Batchelor conta que Andre teria levado para a

escultura experiências do trabalho na Pensylvania Railroad na Inglaterra,

e de sua visita aos sítios pré-históricos de Stonehenge e Avebury.

Experiências que reuniriam jornadas emblemáticas de naturezas opostas:

uma seria “um confronto no mais alto grau com a modernidade”91, ao

passo que a outra representaria “um ponto de contato com o passado

arcaico”92. Ou seja, Andre teria buscado caracterizar sua obra dentro de contingências contemporâneas e passadas, de forma a demolir a

distinção entre diferentes modos de temporalidade. Procura esta que

estaria justamente no centro de discussão de um dos fundadores da arte

moderna: Charles Baudelaire.

Escrito por Baudelaire em 1863 o livro O pintor da vida moderna,

nas palavras de Batchelor seria:

em parte um apelo aos artistas para fundir “o efêmero, fugidio, o contingente” de sua modernidade com o “eterno durável” das tradições herdadas, de modo a salvar a arte do duplo destino do academicismo mortal ou da ilustração sem vida. 93

Ainda segundo Batchelor, Graig Owens teria citado tal dupla

destinação como “uma característica-chave do impulso alegórico nas

artes modernista e pós-modernista”94/ em uma coexistência de estados

qualitativos, quantitativos e contrários. Um tipo de experiência para ser

mostrada na arte contemporânea, sem nenhuma contradição visível. E,

entre as duas e única Fortaleza-Lisboa, isso também ocorreria.

Impulsionadas, não só pelo título, as formas desenvolvidas para os

diferentes espaços do Rio de Janeiro e de São Paulo submetem-se, ao

mesmo tempo que também submetem o entorno a sua vocação plástica,

sugerindo distinção e aproximação, pistas que a todo momento poderiam

90 BATCHELOR, David. Minimalismo. p.60. 91 Idem. 92 Id., ibid 93 Idem. p.62. 94 Id., ibid.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 84: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

82

enganar ao espectador. Daí as provocações da matéria, se estabelecidas

comparações entre os elementos que integram as duas instalações,

parecerem a todo instante aproximar-se e se afastar. Relações entre o sal

que aparece muito e a areia que se revela pouca; a escala, reduzida da

primeira jangada e real da segunda, bem como sua forma de

posicionamento, delicadamente suspensa a partir do teto ou

vigorosamente presa ao chão; a escolha na distribuição visual dos

cadernosLivros, ordenados nas paredes ou amontoados dentro da vitrine;

a luz fraca e o desenho frouxo do cabo de energia, na primeira versão; a

feérica luz-ambiente e as tensas cordas da segunda; a presença única do

objeto jangada, centralizando o olhar do espectador, contra a presença do

sofá e da vitrine, dispersando a visão; a frase sobre a linha do horizonte,

organizando o posicionamento das pessoas no ambiente da galeria

carioca, versus a verticalidade impregnante da grande jangada da Bienal.

F igura - 34 For ta leza-L isboa. [deta lhes da ins ta lação. São Paulo, 2004] .

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 85: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

83

Figura - 35 Fortaleza-Lisboa. Detalhes da instalação. São Paulo, 2004].

Não gratuitamente as Fortaleza-Lisboa percorrem caminhos

bipolares, ainda que poeticamente assentadas em bases históricas.

Coube ao Artista um movimento inusitado diante do colóquio obrigatório

com o mar dos navegadores portugueses. Resolver junto à História a

possibilidade traumática de trazer as águas para o interior asséptico de

uma galeria de arte. Manobra que resultaria em revirar as dobras do

oceano para terra. Em tornar sólida a salinidade da água do mar. Tornar

tátil a linha do horizonte. Ação enfrentada ao equacionar escrita e

desenho. Em vez de um horizonte à trompe-l’oeil a mediação fica por

conta daquela frase marcante:

A LINHA DO HORIZONTE DETERMINA O ESPAÇO.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 86: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

5 Conclusão

Desde o momento em que Barrio definiu rumos precisos para o solo

de sua atuação, o olho esquerdo, o da arte, voltou-se para o direito, o da

vida, e vice-versa, por força da indistinção dos olhares. Procurado e

achado, o Artista transgressor estaria pronto. Restava torná-lo parte de

um capítulo da arte brasileira.

Se, atualmente, nos deixássemos levar apenas pela sombra

marcada do Barrio antiinstitucional, teríamos que olhá-lo como alguém

que joga o jogo da arte, do lado de fora, de um dentro que não mais

existe. Até porque não haveria espessas camadas a atravessar para

quem de imediato ergueu a clava da experiência sob o toque genial de

Duchamp. Afinidade que mais tarde apareceria proclamada pela voz da

crítica e em suas próprias palavras ao mencionar, por exemplo, seu

ready-made do acaso95.

Para Barrio realizar obras que retornem ao diálogo com a fatura

visceral das décadas de sessenta e setenta, é uma forma de trazer, sob

novas colorações, o pulsar febril da radicalidade de certas ações:

Nos meus 53 anos achei que tinha terminado essa experiência, de que um trabalho não poderia ter conexão com um outro, em termos de aparência ou o que fosse, era isso o que eu procurava (...) hoje meus trabalhos têm certa relação com algumas coisas realizadas nos anos setenta, nos anos sessenta.96

Parece truque do campo do aprendizado. Retomar como medida de

segurança sua própria trajetória, reavaliar percursos, e trazendo à tona

questões relevantes. Sim, Barrio pretendia unicizar-se pela ruptura com o

contexto de arte. Abrir novos caminhos. Resistir a todos os

enquadramentos. Tarefa ainda no horizonte.

95 Referência à jangada que integra Fortaleza/Lisboa de 2004. 96 Catálogo da exposição na Galeria Arte 21. Entrevista com o artista. Não paginado.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 87: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

86

Acho que a única maneira da arte que está sendo feita aqui no Brasil ter uma presença maior nesse painel internacional seria com uma força de rompimento estético com todos os padrões vivenciados ainda hoje em dia.97

Situação...Ohhhh, realizado no Salão da Bússola (MAM, Rio de

Janeiro, 1969), possui como registro imagens fotográficas que junto ao

título não deixam dúvida. A repugnância quanto ao manuseio das trouxas

ensangüentadas não é menor do que àquela revelada diante dos

mecanismos de controle que guardavam a nação naqueles anos de

chumbo. Daí, a arte marginal tornar-se preservada pelo foco da exclusão,

cabendo ao artista arremessar, de forma radical, contra a porta de entrada

do MAM as cartas que já haviam sido escritas pelas muitas vanguardas

do século XX (surrealismo, dadaísmo, construtivismo, De Stijl) sobre e

sob a luz da discussão da morte da arte. Para Sheila Cabo, Barrio é

alguém que:

sabedor da impossibilidade da vitória da obra como um todo no universo desagregado e desagregador de seu tempo, gera, negando e afirmando a arte nos seus fragmentos, a própria integridade que a possibilita viver.98

A palavra integridade em Barrio parece ser um norte. Quando se fala

da desestruturação do real racional; quando se mantém de pé diante da

impossibilidade de tornar sua obra permanente; quando alçou para seu

próprio corpo o risco de esgotamento, como em 4 dias 4 noites. Coisa,

aliás, que sublinha a igualdade entre o corpo e objeto a partir de

imperativos muito precisos: desregular a função e a natureza da arte.

Afirmação que toca o cerne de questões arraigadíssimas na arte, e que

em Barrio parecem, de imediato, suspender a figura do Artista do território

comum quando, por exemplo, aponta forçosamente, sua noção

contemporânea do relacionamento obra e público. Uma Noção que pode

ser melhor compreendida a partir da afirmação contundente de que “o

espectador não faz a obra”99. Frase recente, e no entanto, reveladora de

contornos, diametralmente opostos à interação efetiva entre sujeito

97 Id., ibid. 98 CABO, Sheila. “Barrio: morte da arte como totalidade”. Em: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contemporânea brasileira. p.99. 99 BARRIO, Artur. “A insubordinação de Artur Barrio.” Em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 88: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

87

(espectador) e objeto(obra) marcada em alguns dos seus trabalhos

anteriores. É que Barrio, agora toma como medida o abandono da

“tradição milenar pitagórica”100 que coloca a obra como o centro de um

processo construtivo mediado pela observação do espectador e ampliada

em solo moderno pelo manejo do tato.

No entanto, o corpo, vale seu próprio, ainda é um suporte que têm

como virtude poética assenhorar-se de sua própria fragilidade. Qualidade

marginal-guerreira, que o Artista ironicamente instaura nos registros

fotográficos que incluem a memória dos processos. O fato é que, deixaria

em suspenso uma pergunta, ao declarar, em entrevista ao curador Afonso

Henrique da Costa, ser o primeiro e talvez o único no Brasil a tocar a

clave da arte efêmera sob a ótica marcada da decomposição orgânica dos

materiais, uma poética que qualificaria como relação simultânea e

indistinta do “nada como o nada e do tudo com o nada”101; deixaria em

suspenso uma pergunta: Eis a pergunta:

Você me considera então o que? Um terrorista poético?Um artista?Um louco?Um alucinado?Ou um comediante que quer sacanear todo mundo?102

5.1 Circuitos ideológicos /4 dias 4 noites/ ready-made

Certos críticos e historiadores têm como mote avaliar percursos

artísticos tomando por base certa evolução. Talvez por força da herança

cultural ainda atrelada a linearidade do contar histórias, aprende-se que

um artista começa trabalhando, assim, de uma determinada

maneira,depois, de outra. Exemplo disso é a fala marcante, na História da

Arte, que aponta para a tamanha coerência linear e formal de Lygia Clark,

colocando sua obra como modelo passível de ser lido ao revés.

Cabem perguntas: Teriam os artistas um percurso linear a seguir?

Estariam inexoravelmente, de alguma forma, atrelados a fases artísticas?

100 Id., ibid. 101 Id.,ibid. 102 Id.,ibid.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 89: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

88

Seja lá como for, as perguntas surgem para todos, e Barrio não ficou

isento de ter, durante certo tempo, sua imagem associada à radicalização

e à marginalidade dentro da arte. É como se a crítica esperasse sempre

por uma nova trouxa ensangüentada, ou olhasse para a produção dele

por entre as entranhas do Livro de Carne. Barrio ficou idealizado como

artista-marginal, mas apenas no imaginário. E, quando as coisas

mudaram de forma, diga-se de passagem no cerne do âmbito

institucional, percebeu-se que a crítica, capaz de vibrar diante dos novos

trabalhos é a mesma que conserva uma certa nostalgia do Artista das

décadas de sessenta e setenta.

Talvez tais constatações não sejam propriamente um problema,

naquela época Situação T/T,1 e Situação...Orhhhhh foram realmente

pontuais à resistência, ao meio institucional e, conseqüentemente à

ditadura militar, ainda que de modo bastante indireto. E mesmo que

ocupem esse lugar dentro da História da Arte, tais obras não foram um

ponto de partida para que o artista seguisse militância política alguma.

Barrio declara:

Fiz Arte Social e descobri que o meu engajamento, como o engajamento de todo artista, é perigoso para a arte. Porquê quando a esquerda chega ao poder o artista vira um artista oficial. E quando percebi isso tive um choque muito grande. Ser um artista de sucesso me soou estranho e contraditório, e na Europa passei a trabalhar apenas em espaços alternativos.103

Certamente que tal engajamento poderia vir a ser problemático, se

tornado, para além de sua poética, a própria cela. Como exemplo as

palavras de Luci Lippard, no texto, O Dilema, são claras: “Não há razão

para que um artista saia da Arte para política”104.

Lippard pareceu estar convencida de que tal junção arte/política

seria uma forma de admitir uma estrutura de falsos valores. Uma

possibilidade de encerramento poético dentro de uma determinada

moldura. Na verdade, estaria, também, apontando os desvios que

poderiam levar artistas a diluírem sua arte, usá-las para “outro propósito

103 MARTINS, Alexandre. “Barrio de mal com a arte social”. O Globo, Rio de Janeiro, 10 mar.1988. 104 LIPPARD, Lucy. BATTCOCK. Gregory (org.). “Antiarte e crítica”. Em: A nova arte. p. 184.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 90: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

89

que não sua razão inicial de existir”105. No entanto, não se furta a afirmar

que atos legítimos de protesto foram cometidos, ao citar como exemplo a

retirada de trabalhos de exposições.

Pelo que se leu acima, pareceria sugestivo concluir que aos olhos de

Barrio as palavras de Lippard não estariam propriamente expurgando a

aproximação entre arte e política, mas os mecanismos e prováveis danos

que envolveriam tal operação, ficando no ar a questão: existiriam limites

precisos para que a arte não viesse a se desviar daquilo que Lippard

consideraria como a razão de sua existência?

O aparente caráter de desvio que arte brasileira (ou parte dela)

passa a tomar durante as décadas de sessenta e setenta, não nascera do

bojo repressivo e político como algo inusitado para a arte. A negação aos

mecanismos institucionais de veiculação e dos materiais utilizados, já

havia sido apontada pelo dadaísmo ao qual Barrio se refere como um

norte, por Andy Warhol, Roy Lichtenstein e pela própria corrente

conceitual. Tal apego em negar a função e o valor da arte – inclusive,

para outras formas de expressão: cinema, teatro, poesia e música – cairia

como luva, e bomba, dentro da efervescência instaurada pelo AI-5, em

1968. Dos artistas que puderam permanecer no país, restou o

abrandamento de qualquer referência ao social. E nesse momento junto

ao grupo composto por Cildo Meireles, Antonio Manuel, Luiz Alphonsus,

Guilherme Magalhães Vaz e Thereza Simões, Barrio toma como poética –

e de modo muito particular – o seguinte dever: Desestruturar códigos de

conduta no ”exercício de viver a Invenção de comportamentos e

linguagens até o limite máximo.106”

O Projeto Coca-Cola (1970) de Cildo Meireles é um bom exemplo da

conjugação de engajamento e arte, que toma, como lugar de ação, os

mecanismos de circulação.

Enviado à exposição Information107, o projeto de Cildo integrava uma

prática conhecida como Inserções em Circuitos Ideológicos. Nela, o artista

105 Idem, p.187. 106 CABO, Sheila. “Barrio: Morte da arte como totalidade”. Em: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contemporânea brasileira. p.99. 107 Mostra Internacional de arte ocorrida nos meses de abril e maio de 1970 no Museu de Arte de Nova York.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 91: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

90

utilizaria determinada mercadoria para a veiculação de diversas

ideologias, apostando na própria lógica de circulação comercial. Práticas

que trariam implícitas a noção de meio circulante, “como no papel moeda,

e na embalagem retornável, como a garrafa de bebida.”108 Inserções em

circuitos ideológicos enviada a Information constava de dois projetos

descritos pelo artista da seguinte forma:

Projeto Coca-Cola: gravar nas garrafas informações, opiniões

críticas e devolvê-las à circulação.

Projeto Cédula: gravar nas cédulas informações, opiniões críticas e

devolvê-las à circulação.

Figura 36 - Cildo Meireles. Projeto Coca-Cola. [registro fotográfico.Coleção do New Museum of Contemporary Art, Nova York, 1970].

108 HERKENHOFF, Paulo. Ensaio. Em: Cildo Meireles. p. 48.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 92: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

91

Para o catálogo da exposição Cildo Meireles escreve o texto

“Cruzeiro do Sul” em que aponta a característica principal do processo:

Fazer o caminho inverso dos ready-mades, Atuar no universo industrial. Não mais o objeto industrial colocado no lugar da arte, mas o objeto de arte atuando no universo industrial.109 Também Barrio expôs uma de suas obras na Information,. Mais

tarde, em entrevista, declara:

Eu mandei um trabalho [“Situação T/T1”, 1970], umas fotografias do registro, e eles ampliaram para 1 metro, 1,5 metro, colocaram nas paredes e também mostraram o filme de 16 mm feito em Belo Horizonte. (...) Eu não fui à exposição porque não houve interesse... nem tinha meios, nem sabia falar ‘I don’t love you’.

Parece possível entender a dificuldade que rege a compreensão do

Trabalho/Processo 4 dias 4 noites e a recusa violenta do Artista em não

ter sido registrado por foto ou filme. Essa obra muito e nada tímida, se

observada a partir de uma importante declaração de Barrio, poderá

revelar algo mais além do que já foi mencionado anteriormente.

Eu achava que esse trabalho o “4 dias 4 noites” estava sendo captado pelo MoMA

(Information). Então todo o processo de trabalho, digamos assim, estaria sendo transmitido para essa exposição. E isso eu nunca comentei.110

Ao tecer tal afirmação Barrio estaria elevando sua experiência ao

grau máximo e possível de impermanência, se verificado como ponto de

interesse, apenas o canal mental aberto entre o Artista e o MoMA. Um

magnetismo por Clark e Oiticica, ampliados por Barrio, de forma

impensada, já que o corpo físico estaria convertido em pura reverberação

sensorial. Pensamento revertido em fragmento de ação no mundo, tal

qual os materiais verdadeiros de Rosenberg111.

Talvez aqui estivesse registrada a máxima Arte=Vida – e

venha daí uma certa relutância do Artista em propor um objeto

concluso chamado 4 dias 4 noites, e de até mesmo descrever

109 HERKENHOFF. Paulo. “Um gueto labiríntico: A Obra de Cildo Meireles” Em: Cildo Meireles. São Paulo, Cosac & Naif, s/ data. p. 48. 110 Declaração de Artur Barrio em entrevista sobre o Trabalho/Processo 4 dias 4 noites. 111 Cita como exemplo, terra, pedra, madeira, carne etc.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 93: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

92

imediatamente o Trabalho/Processo. E se a indistinção entre Sujeito e

Objeto também aqui é um norte, talvez Information pudesse colorir-se

como um imenso ready-made da instituição, tomado de assalto ao 4 dias

4 noites, vindo por um canal aberto ao pensamento e de encontro ao

processo.

A lógica do Artista revela o caráter ampliado a que pretende.

Informação à distância. Evocar a forma ostensiva pelas quais as

coincidências afirmam seu rumo, fazem espocar aqui e ali, mesmo à

distância, idéias afins. Declara Artur Barrio: “De certa maneira, o trabalho

feito para o MoMA é esse, o 4 dias 4 noites112”

5.2 No horizonte a mensagem escrita: Fortaleza-Lisboa

No catálogo sobre Fortaleza – Lisboa feito para a exposição que

ocorrera em 2001 na Galeria Cândido Portinari, na UERJ, Barrio

desenvolve um texto especialmente para aquela instalação. (Anexo II)

Antes de passarmos aos escritos é necessário observar as palavras

de Max Ernst em Sobre o frottage, de 1936:

Olhando atentamente para os desenhos assim obtidos, as partes escuras e as de suave penumbra, fui surpreendido pela intensificação sutil de minhas faculdades visionárias.113

Embora o conjunto desenvolvido por Barrio não se assemelhe a um

desenho, não há como não percorrer tal agrupamento sem ter a sensação

de que surjam massas nucleares clamando todas por imediata atenção.

Um conjunto estelar que também se assume na dureza de um bloco

constituído por palavras e pontos.

O movimento vocabular trêmulo, de lá para cá e vice-versa, é

abrandado pela linearidade das margens, que lhe confere um caráter

programático, como se o texto pudesse adentrar em qualquer área que

lhe desse por convite a proporção. Assim, trazer Ernst para a escrita de

112 Declaração de Artur Barrio em entrevista sobre o Trabalho/Processo 4 dias 4 noites. 113 CHIPP, H.B. Teorias da Arte Moderna. p.434.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 94: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

93

Barrio é deixar que as palavras surjam quase como aparições. Palavra

por palavra o texto vai sendo lido no estilhaço que atrái a atenção do leitor

num seu particular pulsar. A massa mais densa, que inicialmente acolhe a

visão, logo é diluída pelas áreas pontilhadas que arejam o conjunto.

As idéias em palavras, muito próximas da poética Dadá (Anexo I),

parecem imersas dentro dos limites estabelecidos no papel. Poesia ou o

blefe, como diria Walter Benjamin, a ordem em Barrio é:

Propor uma trama que magnetize o espectador a ponto de forçá-lo

recorrer a sua própria ingenuidade, trazendo-o para dentro do vasto e

compacto jogo de palavras.

Os pontos de contato com os surrealistas e dadaístas são muitos.

Além da aproximação física com a poesia optofonética de Haussmann e

sonorista de Man Ray, a poética de Francis Picabia também teria lhe

inspirado a utilizar a noção tanto de linguagem quanto de arte visual como

sistemas de representação distintos mas relacionados; e da forma

clássica e quase matemática de Kurt Schwiters, “capaz de absorver

conteúdos inconvenientes tão veementes como Lessing e Goethe jamais

os tinham imaginado114”.

Relacionar, aqui, linguagem e arte visual significa investir a favor de

um sistema que se constrói introspectivo e particular. Cada palavra

necessita de tempo, de respiração, de digestão. As idéias vão se

somando liricamente, reunindo a experiência à lembrança de algumas

sensações e do desencadear da memória numa singular e evidente

dureza textual. Ao final, mantendo um certo afastamento do bloco de

palavras, integrado quase como a assinatura do autor, Barrio propõe a

seguinte frase.

_______a linha________do horizonte____determina_______o espaço_________

A frase é afirmativa, não há dúvida. Mas Barrio prefere fraturá-la,

ampliá-la em intervalos. O que talvez lhe confira certa dúvida, quanto a

sua própria horizontalidade, já que a linha também não mais remete o

espectador a coisa alguma. Vista como um todo, ela pode parecer 114 RICHTER, Hans. dadá: arte e antiarte. p.193.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 95: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

94

reveladora das muitas incertezas do homem. Barrio pareceu compreender

que a própria noção objetiva de espaço – qualificada por Panofsky e

citada por Crristopher Wood como “objetivação do subjetivo”115

(passagem da objetividade artística para o campo fenomenal, proclamada

pela linha do horizonte) – deveria ser elevada a condição imediata de

trompe-l’oeil . Daí a própria diluição do conjunto nos convidar ao

movimento de retorno à leitura. E aqui cabe aproximar instalação e texto.

À falta excessiva de uma ordenação comum e cotidiana, obcecada

pela presença fantasmática da métrica tradicional. Talvez, logo de início, a

sensação de sentir as palavras seja percebida a marteladas. Forma que o

rasgo das paredes teria recolhido para dentro do útero, ao preferir a lisura

da malha textual à visibilidade aflitiva da marca da pancada. A opção

pelo destaque de algumas palavras, escritas em caixa alta,

conseqüentemente estabelece sua hierarquia, diante da recusa em domar

as oscilações do mar. Apropriação das palavras. Informação! Lê-se

primeiro, não exatamente nessa ordem:

.....SOZINHO NO OCEANO SALGADO SEM NADA MAIS DO QUE O EU DISSOLÚVEL.......

ALTITUDE AZIMUTE RETA PONTO

VAGAS ONDULANTE VENTO(S)

Essa frase inicial revela um corpo consciente de sua fragilidade

diante da imensidão do oceano. Sujeito poético que retoma a filosofia de

Merleau-Ponty, quando busca localizar-se no espaço mundano da água a

partir de sua própria consciência perceptiva. Não há como priorizar um

norte, mediar dia e noite. Trava-se o embate da razão e da consciência,

sem denominar vencedores. As primeiras palavras não permitem

quaisquer dobras – ALTITUDE, AZIMUTE, RETA, PONTO. Buscam

solucionar o logro da visão a partir de eixos impossíveis para quem está

dentro do mar. Metáfora de oceano que logo reconduz ao espaço fictício

da Galeria Portinari, à possibilidade de instaurar o inquérito a favor da

autoridade da razão. Coisa que é imediatamente levada à suspensão 115 PANOFSKY, Erwin. A perspectiva como forma simbólica. p.15.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 96: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

95

diante da devolução de palavras incertas como VAGAS, ONDULANTE,

VENTO(S).

Em alguns momentos ocorre uma inexplicável sensação que o texto

de Barrio poderia ser penetrado, tal qual camada de chocolate para o

irresistível mergulho do dedo, mas o caráter escultórico é o da água, o de

espelhar o outro sem deixar-se marcar. Por isso o texto convida ao

mergulho, mas não se abre em brechas; é liso, porém penetrável; não há

fissuras visíveis em sua superfície, embora isso não signifique um

anteparo à introspecção.

O modo de aparição é discreto diante da experiência do olhar. A

epiderme vai se revelando, lentamente, incômoda diante de sua pouca

lisura. O chão da poesia é também o chão da galeria, aliás são todos os

chãos por onde Barrio caminha: espaço ondulante sobre espaço fixo

aparente, pele dada ao inverso, tal qual a ordem poética, que ao

espectador só faz problematizar. Coexistência tensa e paradoxalmente

pacífica desse duplo incerto: interior exterior, dentro e fora, obra e mundo,

sobre ou sob as superfícies de terra, de sal grosso, de areia, de pó de café

etc. Chão que permite e sustenta a linha do horizonte sob o giro a 360 ,

tornando-se panorama.

O poema de Fortaleza-Lisboa é claro diante de si mesmo. O corpo

se desloca. Nada é impossível ou improvável a partir da territorialidade

horizontal que antecede, acolhe e dramatiza o próprio movimento humano

em sua obra. Extensão marcada no chão poético em que pretende

repousar e sistematicamente transformar a experiência junto ao solo em

situação limite.

Um bom exemplo estaria em Rodapés de Carne; quando os nacos de

matéria orgânica foram comprimidos sobre os rodapés da garagem em

Nice configurando-se, sob pressão, em extensão horizontal. Nada mais

improvável, para um pedaço de carne, do que retomar o caminho em

direção a sua própria dissolução, ver-se obrigado a “integrar” à estrutura

física de uma construção.

A síntese dessa horizontalidade, no entanto, requer a ampliação do

pensamento, e, para além das paredes, também os cadernosLivros

possuem tal curvatura ao conjugar a um só tempo dois núcleos de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 97: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

96

pensamento: como embriões de um processo e como o próprio processo.

Uma certa qualidade do ser/estar que enfatiza e vincula a obra a uma

espécie de verdade original.

Como exemplo dessa horizontalidade embora um tanto reservada em

sua feição simbólica, Lament for the Children, do norte americano Carl

Andre, pode ser um indício plástico dessa averbação de território, marcada

pela pontuação de um sistema de pensamento lógico. Uma aproximação

que toca a horizontalidade de Barrio e logo é lançada ao espaço pelo reino

das filiações poéticas. É que o solo em Barrio é gerador de energia, pólo

de expansão, matriz de impressão. Recusa frontal do encerramento da

lógica operacional.

Isto não significa, entretanto, que tal medida aconteça no bojo de um

fazer criativo inerente ao macrocosmo e estabelecido como antídoto à

gratuidade. É quase um imperativo a sua poética: estabelecer modos de

ação e de percepção do mundo. Talvez a frase ....SOZINHO NO OCEANO

SALGADO SEM NADA MAIS DO QUE O EU DISSOLUVEL..... possa ajudar a essa

compreensão. Enfim, em Fortaleza-Lisboa a fala é convidativa, e, sem

dúvida, ficando claro que a linha do horizonte determina o espaço maior

dessa leitura, cabe ao solitário navegante marcá-la como ponto focal de

interesse. Horizonte, que sob a luz do panorama, faz-se reconhecer no

instante do giro corporal. Algo que a superfície terrestre não pudera tomar

plenamente de assalto (com raríssimas exceções), por força de sua

própria geografia e natureza, e a grande cidade fizera questão de eliminar

da cena.

Propõe, a obra portanto, de FORMA silenciosa, tomar.........o

deslocamento físicoverbal humano............................ como medida para a

sua POÉTICA. Movimento ................genético que REGULA............ a

nossa permanência humana sobre o solo TERRESTRE...................

Enfim, propor à LINHA DO HORIZONTE, um pacto contemporâneo:

para a solidão do mar, fazer caber o giro. Para a introspecção da cidade,

fazer caber a trilha.

Tragamo-na de volta.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 98: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

6 Referências bibliográficas

ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. Rio de Janeiro: Editora Ática, 2000. _____.“A época do funcionalismo”. Em: Arte moderna, São Paulo: Cia das Letras, 1996. _____. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995. _____. Arte e crítica de crte. Lisboa: Editorial Estampa, 1988. ARTE 21 GALERIA. Artur Barrio. Catálogo de exposição. Rio de Janeiro: 2005. Não paginado. BARRIO, Artur. Entrevista concedida a Cecília Cotrim; Glória Ferreira; Luis Camillo Osório e Ricardo Basbaum. Rio de Janeiro, março de 2001. Texto não publicado. _____. Artur Barrio A metáfora dos fluxos. 2000/1968. Catálogo de exposição. São Paulo: Paço das Artes, 2000. _____. “Manifesto”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____. “As Formas de atuação”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____. “Lama/carne esgoto”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____. “Manifesto contra o júri”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____. “O Jogo de xadrez”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____. “Se o corpo é o suporte”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____. “Em relação aos aspectos: rótulos/ escolas e possibilidades”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____. “A crítica de arte não tem o saber”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 99: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

98

_____. “Da qualidade técnica do registro ou precariedade”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____. “QWERTYUIOPÇLKJHGFDSAZXCVBNM?;^+”¨?$4_&’0ª”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____. “4 dias 4 noites”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. _____.“Manifesto Contra o Júri”. Em: Artur Barrio, Rio de Janeiro. FUNARTE, 1978. BASBAUM, Ricardo. “Dentro d’Água”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. BASUALDO, Carlos. “Contra a Eloqüencia: Notas Sobre Barrio, 1969- 1980”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. BATCHELOR, D.; FER, Briony; WOOD, Paul. “Essa liberdade e essa ordem: a arte na França após a primeira guerra mundial. Em: Realismo, racionalismo, surrealismo: a arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac & Naif edições Ltda, 1998. BATCHELOR.D. Minimalismo. São Paulo: Cosac & Naif Edições, 1999. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1996. _____. As Flores do mal. Trad. Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. BENJAMIN, Walter. “O surrealismo”. Em: Magia e Técnica Arte e Política. São Paulo, Editora Brasiliense,1987. _____. “A imagem de Proust”. Em: Magia e Técnica Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense,1987. _____. Peinture et Graphisme. Em: Dossier: Le dessin la part de L’ocil. Publié avec le concours du Ministére de la Communauté Française. Presses de l’Académie Royale de Beaux-Arts de Bruxelles, 1990. BRETON, Andre. Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2004. BRITO, Ronaldo. “Desvio Claro” Em: CANONGIA Ligia (org.). Waltércio Caldas 1985/2000. Rio de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil, 2001.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 100: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

99

_____.Certeza Estranha. Em: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte Contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Marca d’Água Livraria e Editora Ltda, 2001. _____. Neoconcretismo. São Paulo: Cosac & Naif Edições,1999. _____. Fato Estético e Imaginação Histórica. Em: PAIVA, Márcia de; MOREIRA., Maria Ester (coord.). e LIMA. Luiz Costa (curad.). Cultura Substantivo Plural. Catálogo de exposição. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil – São Paulo: Ed.34, 1996. CABO, Sheila. “Barrio: Morte da Arte como Totalidade”. Em: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Marca d’Água Livraria e Editora, Ltda, 2001. CALDAS, Waltércio. “Desenhar” . Waltércio Caldas. Em: CANONGIA Ligia (org.). Waltércio Caldas 1985/2000. Rio de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil, 2001. CANONGIA, Ligia. “Barrio dinamite”. Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. CENTRO DE ARTE HÉLIO OITICICA. Antonio Manuel. Catálogo de exposição. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1997. CHIPP, H.B. (org.). Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes,1999.

CLARK, T.J. “A Escolha de Olympia”. Em: A Pintura da vida moderna. São Paulo: Cia das Letras, 2004. CLEUSA, Maria. “A beleza é uma casca de ovo”. Em: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro: 7 nov.1988. COTRIM, Cecília. Em: FRANCO, Irley (org.). Fluxos poéticos: arte e vida. O que nos faz pensar nº16. Cadernos do Depto. de Filosofia da PUC-Rio. Rio de Janeiro, 2003. DANTO, A. “Arte sem paradigma”. Em: Arte e Ensaios. Rio de Janeiro: Revista de Pós-graduação em Artes Visuais EBA-UFRJ, 2000. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. _____.Théorie de la dérive. Em: Internationalle situacioniste, nº2, dezembro de 1958. DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Ed Forense Universitária, 2003.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 101: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

100

DUCHAMP, Marcel. “O Ato criador”. Em BATTCOCK, Gregory (org.). A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva,1986. FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990. _____. A Realidade figurativa. São Paulo: Editora Perspectiva,1993. FRASCINA, Francis; HARRISON, Charles; PERRY, Gill. Primitivismo, cubismo e abstração: começo do século XX. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1998. FRY, Roger. Visão e forma. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. GALERIA CÂNDIDO PORTINARI. Fortaleza Lisboa. Catálogo de exposição. Rio de Janeiro: UERJ, 2001. GOODING. Mel. “Abstração no mundo: construtivismos”. Em: Arte Abstrata. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. _____. ”A abstração e o invisível”. Em: Arte abstrata. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. GULLAR, Ferreira. Etapas da arte contemporânea. Rio de Janeiro. Editora Revan, 1998. _____. “Teoria do não-objeto.” Em: Literatura Comentada. São Paulo: Nova Cultural, 1988. HADDAD, Jamil. “Prefácio”. Em: As flores do mal. São Paulo: Abril Cultural, 1984. HERKENHOF, Paulo. “Um Gueto labiríntico: A Obra de Cildo Meireles” Em: Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naif, [19-?]. _____. “Ensaio”. Em: Cildo Meireles. São Paulo, Cosac & Naif, [19-?]. KAPROW, Allan. “O legado de Jackson Pollock” . Em: O percevejo n°7. Rio de Janeiro: UNIRIO, 1999. KRAUSS, Rosalind. “Um plano de Jogo: Os termos do surrealismo”. Em: Caminhos da escultura moderna, São Paulo: Martins Fontes, 1998. KUDIELKA, Robert. “Abstração como antítese”. Revista Novos Estudos CEBRAP, nº 51, julho de 1998.

LIPPARD, Lucy. BATTCOCK. Gregory (org.). Antiarte e crítica. Em: A nova arte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1986.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 102: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

101

MARTINS, Alexandre. “Barrio de mal com a arte social”. O Globo, Rio de Janeiro: 10 mar, 1988. MERLEAU-PONTY , Maurice. “A dúvida de Cézanne. Em: Os pensadores, São Paulo. Abril Cultural,vol. XLI, 1975. _____.“O olho e o espírito”. Em: Os pensadores, São Paulo. Abril Cultural,vol. XLI, 1975.

_____. O Visível e o invisível. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. NAVAS, Adolfo Monteiro. “A Constelação de Artur Barrio” Em: CANONGIA, Ligia (org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. NAVES, Rodrigo. A Forma difícil. São Paulo, Editora Ática, 1996. OSÓRIO, Luiz Camillo. “Força é mudares de vida”: a trajetória de Artur Barrio”. A metáfora dos Fluxos. 2000/1968. Catálogo de exposição. São Paulo: Paço das Artes, 2000. PANOFSKY, Erwin. A Perspectiva como a forma simbólica. Lisboa: Editorial Presença, 1980. PROUST, Marcel. No caminho de Swan. Rio de Janeiro: Victor Civita, 1982. REIS, Paulo; BASBAUM, Ricardo; RESENDE, Ricardo. Panorama da arte brasileira 2001. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2001. READ, Herbert. História da pintura moderna. São Paulo: Círculo do Livro, 1974. REGO MONTEIRO, Ivana. Experimentação ocasional de Tunga: a instauração da obra de arte, 2002. (dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). RICHTER, Hans. dadá, arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes,1993. ROSENBERG, Harold.”O objeto de arte e a estética da impermanência”. Em: Objeto Ansioso. São Paulo: Cosac & Naif, 2004. _____.”Em busca do objeto ansioso” Em: Objeto ansioso. São Paulo: Cosac & Naif, 2004. _____. “Rumo a uma profissão não ansiosa”. Em: Objeto ansioso. São Paulo: Cosac & Naif, 2004. _____. “Desestetização”. Em BATTCOCK, Gregory (org.). A Nova arte. São Paulo: Perspectiva,1986.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 103: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

102

SACCÀ, Lucilla. “Barrio: Ecos de revolta”. Em: CANONGIA, Ligia (org.).Artur Barrio. Rio de Janeiro: Petrobrás, 2002. SIQUEIRA, Vera. “A enciclopédia mágica de Castro Maya”. Em: Castro Maya Anfitrião. Rio de Janeiro: Museus Castro Maya, 1997. TASSINARI, Alberto. O Espaço Moderno. São Paulo: Cosac & Naif, 2001. WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac & Naif Edições, 2002.

Mídia Eletrônica Filmes Psicose. Direção Alfred Hitchcock. Paramount Pictures. (EUA) 1960. A Lista de Schindler. Direção Steven Spilberg. Universal Studios Entertaiment, .(EUA) 1993. Vídeos Experiência nº 05. Direção Roberto Duarte. Rio Arte, Rio de Janeiro, 1991. Viagens. Produção e Direção-Silvio Correia Lima Realização COPSOM/CTE/UERJ, Produção e distribuição- UERJ Vídeo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2001. E-mail BARRIO, A. Publicação eletrônica [mensagem pessoal] – Mensagem recebida por [email protected] em 8 de abril de 2005. Sites ALZUGARAY, Paula: A insubordinação de Artur Barrio. Entrevista com o Artista. Disponível em < http://p.php.uol.com.br> s/d. FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Informações sobre as Bienais internacionais de São Paulo. Disponível em < http://bienalsaopaulo.globo.com>. s/d. ITAÙ CULTURAL. Coordenação cultural de Renata Bittencourt. Desenvolvido pelo Instituto Itaú Cultural, 2002 Apresenta textos e bibliografia sobre a obra de Barrio. Disponível em <http://www.itaucultural.org.br/> s/d. PAPADOPOULOS, Alexandos. Artur Barrio: diretrizes. Desenvolvido pela RioArteCultura. Disponível em < http://www.rioartecultura.com> s/d.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 104: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

103

SARZI, Regilene. Artur Barrio: Documentar é fundamental. Disponível em < http;//tvtem.globo.com> Visita em 05/02/2003.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 105: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

104

7 Anexos

Anexo I

Raoul Haussman, Poema optofonético, 1918 Christian Morgerstern, Poema sonorista Man Ray, Poema sonorista, 1924

Kurt Scwitters,excerto da partitura da “Sonata primordial”, 1924-25

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 106: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

105

Anexo II

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310344/CA
Page 107: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 108: Silvio Alvares Suleiman O Lirismo Contemporâneo de Artur ...livros01.livrosgratis.com.br/cp040450.pdf · A Jocely de Paula Azevedo e Matias Ramos de Azevedo, pelo companheirismo

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo