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Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Direito Ano académico 2013-2014 1º Semestre Sociologia jurídica Docente : Pierre Guibentif Sumários (estado em 12 de Novembro de 2013) 17 de Setembro (1) Preenchimentos pelos alunos de um questionário sobre os motivos da escolha da cadeira e sobre conhecimentos em ciências sociais (ver formulário disponível no site da UC, a preencher pelos estudantes que não estiveram presentes nas primeiras aulas). Principal vocação da unidade curricular: fornecer aos estudantes elementos para abordar a seguinte interrogação: qual é o papel das/dos juristas nas sociedades contemporâneas? Interrogação com a qual os estudantes devem confrontar-se tanto no momento de organizar a sua formação, como no momento de tomar decisões sobre a sua carreira profissional. Antecipando a matéria que será tratada durante o semestre evoca-se em a seguinte evolução histórica, que convém ter em conta no momento de abordar a referida interrogação, e cuja análise poderá permitir formulações mais específicas da interrogação de partida: (1) A ciência, a arte e o direito diferenciam-se claramente como três saberes complementares no processo que se poderia qualificar de emergência da subjectividade renascentista. Processo que se pode observar na pintura pela maneira de identificar as pessoas representadas, de tratar o seu olhar, de organizar o quadro em função do olhar de um espectador, e finalmente de assinar o quadro, alguém afirmando- se como um “autor”. (2) Estes saberes vão ser aproveitados e desenvolvidos pelos Estados, que se afirmam progressivamente no espaço Europeu a partir do século XV. Este processo vai beneficiar a estes saberes, que vão receber meios para se desenvolver, mas vai também significar um forte condicionalismo: a ciência, o direito e a arte vão ser postos ao serviço dos Estados. (3) Estes saberes também vão favorecer um pensamento filosófico e político que vai insistir nas capacidades e liberdades da pessoa humana e inspirar as revoluções burguesas que vão dar lugar, a partir do fim do século XVIII, a novas formas de estados, democráticos e republicanos. Em relação a este desenvolvimento, vão surgir mecanismos de formação e informação dos cidadãos: sistemas de comunicação social e de ensino. Estes mecanismos vão favorecer a formação de espaços públicos, assim como, mais tarde, por oposição a estes, esferas privadas. (4) Paralelamente, aproveitando a ciência, o direito e a arte, assim como a

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Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Direito Ano académico 2013-2014 1º Semestre

Sociologia jurídica Docente : Pierre Guibentif

Sumários (estado em 12 de Novembro de 2013)

17 de Setembro (1)

Preenchimentos pelos alunos de um questionário sobre os motivos da escolha da cadeira e sobre conhecimentos em ciências sociais (ver formulário disponível no site da UC, a preencher pelos estudantes que não estiveram presentes nas primeiras aulas). Principal vocação da unidade curricular: fornecer aos estudantes elementos para abordar a seguinte interrogação: qual é o papel das/dos juristas nas sociedades contemporâneas? Interrogação com a qual os estudantes devem confrontar-se tanto no momento de organizar a sua formação, como no momento de tomar decisões sobre a sua carreira profissional. Antecipando a matéria que será tratada durante o semestre evoca-se em a seguinte evolução histórica, que convém ter em conta no momento de abordar a referida interrogação, e cuja análise poderá permitir formulações mais específicas da interrogação de partida: (1) A ciência, a arte e o direito diferenciam-se claramente como três saberes complementares no processo que se poderia qualificar de emergência da subjectividade renascentista. Processo que se pode observar na pintura pela maneira de identificar as pessoas representadas, de tratar o seu olhar, de organizar o quadro em função do olhar de um espectador, e finalmente de assinar o quadro, alguém afirmando-se como um “autor”. (2) Estes saberes vão ser aproveitados e desenvolvidos pelos Estados, que se afirmam progressivamente no espaço Europeu a partir do século XV. Este processo vai beneficiar a estes saberes, que vão receber meios para se desenvolver, mas vai também significar um forte condicionalismo: a ciência, o direito e a arte vão ser postos ao serviço dos Estados. (3) Estes saberes também vão favorecer um pensamento filosófico e político que vai insistir nas capacidades e liberdades da pessoa humana e inspirar as revoluções burguesas que vão dar lugar, a partir do fim do século XVIII, a novas formas de estados, democráticos e republicanos. Em relação a este desenvolvimento, vão surgir mecanismos de formação e informação dos cidadãos: sistemas de comunicação social e de ensino. Estes mecanismos vão favorecer a formação de espaços públicos, assim como, mais tarde, por oposição a estes, esferas privadas. (4) Paralelamente, aproveitando a ciência, o direito e a arte, assim como a

FD-UNL Licenciatura em Direito – Sociologia jurídica 2013-2014 – Sumários – página 2

ordem criada pelos estados e as liberdades reconhecidas aos cidadãos, desenvolve-se uma economia de mercado e assiste-se a um rápido processo de industrialização. (5) Em resposta a tensões entre forças sociais com interesses diferentes, e para facilitar o funcionamento das instituições políticas, formam-se sistemas políticos baseados na competição entre partidos políticos. (6) A industrialização tem graves consequências sociais, que vai obrigar os estados (a) a desenvolver mecanismos de observação dos problemas sociais (investigação social), (b) mecanismos de protecção das pessoas mais vulneráveis (direito social); surgem assim o que se designa por “estados sociais”. (7) A dinâmica de reforço dos mecanismos de governo e de concentração de poderes económicos vai favorecer, ao lado de outros factores, o surgimento de estados totalitários. (8) Derrotados militarmente estes estados totalitários, reforçam os mecanismos susceptíveis de evitar que reapareçam no futuro: neste sentido são reconhecidos internacionalmente os direitos humanos e reforçam-se, em vários estados os mecanismos de protecção contra a precariedade: surge o estado-providência. (8) Depois da II Guerra mundial, ganham progressivamente importância, ao lado dos Estados, grandes organizações: organizações internacionais, empresas multinacionais, ONG; paralelamente, generaliza-se uma preocupação em entender melhor e gerir melhor grandes organizações. Neste contexto, os estados vão cada vez mais desempenhar funções de organizações envolvidas em redes complexas de organizações, procurando manter a sua capacidade de acção neste novo contexto. Os estados-providência tornam-se cada vez mais estados reguladores. A luz desta evolução, a interrogação inicial pode ser substituída por cinco interrogações mais específicas: Qual o papel das/dos juristas (1) nos estados, tendo em conta que os estados estão num processo de profunda transformação? (2) nas organizações, tendo em conta o papel crescente de organizações complexas no desempenho das actividades sociais? (3) no espaço público, na comunicação social, no ensino, nas confrontações políticas, tendo em conta o facto de estas esferas sociais estarem a transformar-se em profundidade devido ao desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação? (4) nas suas relações com a ciência e com a arte, considerando tanto as afinidades originárias entre estas três esferas culturais, como as evoluções diferentes que atravessaram desde o Renascimento? (5) Como poderão as/os juristas situar-se em relação às/aos seus próprios colegas, considerando a diversidade de papéis criada pela complexidade da sociedade contemporânea? Face a esta diversidade dos papéis, ainda se poderá falar “no direito” no singular?

17 de Setembro (2)

Apresentação do docente: lecciona no ISCTE-IUL uma disciplina complementar a esta : sociologia do direito (consultar http://cadeiras.iscte.pt/SDir/); participa nas actividades de várias redes internacionais da especialidade, em particular francófonas e germanófonas, assim como nas actividades do Research Committee on Sociology of Law ( http://rcsl.iscte.pt/ ), que teve os seus últimos congressos em Varsóvia (2012) e Toulouse (3-6 de Setembro de 2013; ver http://2013rcslcongress.sciencespo-toulouse.fr/welcome ). Esta associação internacional tem criado há uns vinte anos um Instituto internacional de sociologia jurídica (http://www.iisj.net/?sesion=1347 ) que ministra um mestrado internacional em direito e sociedade. Em Portugal, coordenador, com a Maria João Leote de Carvalho, dos trabalhos da área temática “Direito, Crime,

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Dependências” da Associação Portuguesa de Sociologia (ver http://cadeiras.iscte-iul.pt/SDir/SDir_doc_APS_Porto_2012.htm ). Apresentação do programa: (a) Objectivos: Objectivo geral, estabelecer pontes entre o direito e as ciências sociais, tirando proveito do facto de existir, nas ciências sociais, um domínio especializado na temática “Direito e sociedade”. (b) Concepção pedagógica: opta-se por centrar o ensino no estudo de cinco autores através dos quais se pode, a partir de percursos concretos, ver melhor como as recentes transformações da sociedade e do direito foram experienciadas e abordadas como objecto de uma reflexão científica. São cinco autores muito lidos e citados, pelo que o seu estudo facilitará no futuro aos estudantes a leitura de trabalhos de ciências sociais pertinentes para aprofundar o conhecimento da realidade jurídica. – (c) material disponível: (i) programa sumário com recomendações de leituras prioritárias; (ii) bibliografia complementar chamando a atenção, em particular, para as revistas da especialidade, e referindo livros e artigos na maior parte acessíveis na biblioteca na FD-UNL, ou no sector “Textos de acesso restrito” da página Web da UC no site da FD-UNL; (iii) a referida página Web, onde poderão encontrar, em particular, um documento reunindo todos os sumários, completados por alguns elementos que não cabem nos sumários oficiais; um conjunto de textos originais dos autores tratados durante o semestre; os exames dos anos anteriores, que poderão facilitar a preparação do exame deste ano. (iv) Convém também aproveitar as numerosas revistas do domínio “Direito e sociedade” disponíveis na biblioteca da FD-UNL. (d) Exame concebido em função do primeiro objectivo pedagógico: um exercício de leitura e de interpretação cuidadosa de um texto em ciências sociais. – Avaliação durante o semestre: em princípio dois testes baseados na leitura de fragmentos de textos dos autores tratados.

24 de Setembro (1)

Recorda-se às/aos estudantes que não estiveram nas primeiras aulas que está à disposição no site da UC um questionário que conviria que preenchessem e devolvessem ao docente. – Primeira introdução geral às ciências sociais e à sociologia. (I) Surgimento das ciências humanas e sociais, entre as quais o direito. Na evolução mais geral evocada na aula anterior, ter em conta em particular duas dinâmicas: (a) Os governantes procuraram desde o século XVI tirar proveito das virtualidades dos saberes especializados, nomeadamente o dos cientistas. No âmbito dos Estados que se formam então, desenvolvem-se progressivamente mecanismos permitindo um melhor conhecimento da colectividade a governar, nos seus diversos aspectos. Desenvolvimento estimulado pela competição – as guerras – entre os Estados. Surgimento da geografia, da economia, da história, do direito, e de primeiros ensaios anunciando o que se chamará mais tarde linguística, demografia, etc. (b) A dinâmica intelectual renascentista, combinada com reflexões sobre as práticas dos Estados conduz aos trabalhos filosóficos que se identificam com o Iluminismo. Estes trabalhos inspiram as revoluções – em particular na América do Norte e em França – pelas quais o Estado deixa de ser pensado incorporado no Rei, passando a ser considerado como emanando do conjunto das pessoas que formam uma nação. O conhecimento que se tinha começado a produzir para reforçar o poder do monarca deveria, nesta circunstância, passar a ser visto como um conhecimento necessário para todos os cidadãos, nomeadamente para lhes dar uma formação adequada para que possam participar na vida política. Estas duas dinâmicas continuam a actuar sobre as ciências sociais na actualidade: ver por exemplo, do lado dos interesses governamentais, as impulsões que

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o “Quadro estratégico Comum da União Europeia para 2014-2020” pretende dar à investigação em ciências sociais em toda a Europa; do lado dos interesses cidadãos, o recente êxito dos “moocs” (“Massive Open Online Courses”). Um momento revelador precisamente da existência destas duas dinâmicas, num momento de transição que conduz a uma mais clara identificação das disciplinas do conhecimento: a criação do Institut no decorrer da Revolução Francesa, entidade na qual se pretendia reunir as principais entidades produtoras das ciências, e que se destinava a coordenar um sistema de ensino dirigido a toda a população (ver Tabela 1). Pode-se sustentar que é nesse momento histórico que se identifica claramente um conjunto de disciplinas como ciências sociais, sob a designação de ciências morais e políticas. A partir desta data, afirmação progressiva, no âmbito das universidades transformadas com a entrada na modernidade (em Portugal: reforma Pombalina), das várias disciplinas das ciências sociais. Tabela 1: Instituto nacional das ciências e das artes (décret du

3 Brumaire an IV, 25 de Outubro de 1795)

Academia Francesa (Richelieu, 1635)

Academia Real de Escultura e Pintura (Mazarin, 1648)

Classe das Belas Artes

Academia Real das Ciências (Colbert, 1662)

Classe das Ciências Físicas e Matemáticas

Academia Real das Inscrições e Medalhas (Colbert, 1663)

Classe das Ciências Morais e Políticas (*) (**)

(*) Seis secções:

- Análise das sensações e das ideias - Moral - Ciências sociais e legislação - Economia politica - História - Geografia

(**) Abolida por Napoleão em 1803; reestabelecida por Guizot em 1832.

Fontes: Encyclopaedia Universalis (“Académies”), Gusdorf, Introduction aux sciences humaines, Paris 1974, p. 276 s., 1978, p. 308 s. (II) Motivos da criação, entre as ciências sociais, de uma disciplina generalista, a sociologia: (1) necessidade de se dotar de instrumentos para analisar as estatísticas sociais, que são produzidos nomeadamente para responder à necessidade de melhor conhecer a gravidade da « questão social »; (2) necessidade sentida de « pensar a sociedade como unidade » face a fenómenos de « desintegração social » (Europa) ou face à nova heterogeneidade do tecido social urbano (Estados Unidos da América).

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24 de Setembro (2)

Motivos da criação da sociologia (cont.): (3) necessidade de criar um contrapeso ao materialismo histórico, interpretação global da realidade social que emana de intelectuais próximos do movimento operário. – A sociologia abordada através da sua evolução histórica (Tabela 2). Observações preliminares: (a) Apresenta-se a evolução da sociologia como disciplina académica, ou seja como dispositivo de produção de conhecimento por uma actividade colectiva devidamente organizada, isto é dotada de mecanismos específicos de formação, comunicação, etc. (cursos universitários, revistas, associações, etc.). Neste sentido, não se inclui aqui Auguste Comte (1798-1867), a quem se atribui o lançamento do termo “Sociologia”, mas que tinha da ciência uma concepção ainda próxima da religião, e que pretendia derivar directamente do seu trabalho de cientista normas que iriam reger a sociedade. Influência de Comte em Portugal, através da obra de Teófilo Braga. Comenta-se a conclusão do Sistema de sociologia publicado por este autor (1884): “A doutrina positiva, como uma synthese da civilisação humana, é a que das numerosas deducções do passado tira as bases da construção, definindo a forma final do regimen da Sociocracia, ponto de convergencia de todos os esforços conscientes.” Contrariamente a ambição “sociocrática” de Comte, os sociólogos consideram dever produzir um conhecimento que permita à sociedade – aos não sociólogos – governar-se melhor a si própria. (b) O quadro servirá de pano de fundo as apresentações de autores que se seguirão. (c) A evolução da sociologia não deve ser analisada como um fenómeno especificamente científico; é reveladora da evolução que conheceu o nosso modo – tanto científico como de senso comum – de olharmos para a realidade social e de nos identificarmos como colectividades.

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Tabela 2: Sociologia

Fundação Émile Durkheim

1858-1917 L’Année sociologique (1896)

Max Weber 1864-1920

Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (1903)

American Journal of Sociology

(1895)

Apagamento / Resistência Escola de Francoforte

Max Horkheimer (1895-1973) Theodor W. Adorno (1903-69) Zeitschrift für Sozialforschung

(1931-41)

Reconstrução Talcott Parsons (1902-79)

Robert K. Merton (1910-2003)

Funcionalismo

Interaccionismo Simbólico Erving Goffman

(1922-1982) Críticas

Michel Foucault (1926-1984)

Jürgen Habermas (1929)

Consolidação Pierre Bourdieu

(1930-2002) Niklas Luhmann

(1927-1998)

Globalização Boaventura de Sousa Santos

(1940) Etapas de evolução (Tabela 2): (i) Fundação da disciplina (lançamento de revistas; criação de cadeiras e departamentos universitários especializados) ligada à preocupação de entender as transformações sofridas pelas sociedades em relação ao processo de industrialização. Exemplares: as obras de Émile Durkheim e Max Weber. (ii) Na Europa, recuo entre as duas guerras, devido à instalação de regimes autoritários pouco compatíveis com o desenvolvimento de uma disciplina marcada pela sua ligação à dinâmica de democratização iniciada com as revoluções burguesas. Algumas iniciativas procuraram resistir a esta evolução políticas, entre as quais a chamada Escola de Frankfurt, que será discutida mais tarde. (iii) Envolvimento da sociologia, como das outras ciências, no esforço de reconstrução empreendido pelos governos depois da II Guerra Mundial; a sociologia torna-se mais “funcional” e especializa-se. Neste contexto, ganha importância, no pensamento sociológico, a discussão de duas oposições: (1) entre uma concepção da sociedade que realça as tensões entre grupos sociais (ver também o motivo marxista de “luta de classes”) e outra que realça a complementaridade entre várias actividades sociais (economia, política, religião, etc.; “diferenciação funcional”; ver Talcott Parsons); (2) entre uma abordagem da realidade social pelos seus grandes componentes diferenciados (também Talcott Parsons) e uma abordagem pelos fenómenos sociais mais imediatos e quotidianos (as interacções; Erving Goffman). (iv) Reacção face aos aspectos “disciplinadores” da etapa anterior; crítica de um conhecimento condicionado pela procura de saber dos governos; apelos à inter- e transdisciplinaridade; (v) normalização progressiva procurando conciliar contribuição construtiva com distanciamento crítico; (vi) fase actual marcada pelos processos ditos de “globalização”. Esta não é apenas um dos grandes temas (além das “sociedades nacionais, que deixam de ser uma referência óbvia); também altera as condições nas quais se faz investigação sociológica: já não são quase exclusivamente os

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Estados que a sustentam, mas também organizações supranacionais (nomeadamente a UE), assim como organizações não governamentais e empresas. Por outro lado, em parte em reacção a esta evolução, os governos dirigem à sociologia solicitações muito mais focalizadas, sujeitando a produção científica a novos condicionalismos.

Tabela 3:

Direito

Sociologia

Fundação Émile Durkheim

1858-1917 De la division du

travail social, 1893 L’Année sociologique

(1896)

Max Weber 1864-1920 Archiv für

Sozialwissenschaft und Sozialpolitik

(1903) Rechtssoziologie, 1911

American Journal of

Sociology (1895)

Apagamento / Resistência

A sociologia jurídica como alternativa ao

positivismo

Archives de philosophie du droit et

sociologie juridique (1931-1940)

Escola de Francoforte Max Horkheimer

(1895-1973) Theodor W. Adorno

(1903-69) Zeitschrift für

Sozialforschung (1931-41)

Franz Neumann, Behemoth, 1944

Reconstrução

Normativismo

Hans Kelsen (1881-1973)

Reine Rechtslehre, 1934

Talcott Parsons (1902-79)

Robert K. Merton (1910-2003)

Funcionalismo

Research Committee on Sociology of Law,

1962 Jean Carbonnier

(1908-2003) Sociologie juridique,

1972

Interaccionismo

Simbólico Erving Goffman

(1922-1982)

Críticas

“Critical Legal Studies” Michel Foucault (1926-1984)

Jürgen Habermas (1929)

“Critical Legal Studies” Richard Abel, Marc

Galanter, etc. Consolidação

Pierre Bourdieu (1930-2002)

Niklas Luhmann (1927-1998)

Rechtssoziologie, 1972

Globalização

Boaventura de Sousa Santos (1940)

(III) No desenvolvimento da sociologia, etapas da sociologia do direito (ver Tabela 3; primeiras etapas): (1) Para os Fundadores da disciplina: capítulo indispensável de uma sociologia geral. (A) Émile Durkheim quer entender a transição das sociedades arcaicas para as sociedades evoluídas. O que as distingue seriam as formas de “solidariedade”: passa-se de uma solidariedade “mecânica” para uma solidariedade “orgânica”, isto é: de uma moral que visa proteger cada um contra agressões dos outros, para uma moral que

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associa compromissos diferentes a diferentes funções sociais, para possibilitar uma complexa divisão do trabalho. Procura observar esta evolução empiricamente, e fá-lo analisando a evolução do direito: principalmente direito penal nas sociedades arcaicas; direito “cooperativo” nas sociedades evoluídas. – (B) Max Weber quer entender a evolução das nossas formas de pensar o mundo, antes da modernidade muito ligadas à religião, a formas de “magia”; agora “racionais”, no sentido em que podemos olhar para a realidade sob vários ângulos: científico, jurídico, artístico, etc., tendo o nosso pensamento perdido o antigo nexo com formas tradicionais de religião. As transformações do direito contribuíram para esta evolução – Racionalização – nomeadamente pela maneira como os juristas se especializaram num saber sobre o direito apoiado cada vez mais nos conteúdos do direito positivo, desligando-o nomeadamente da religião. Transformações favorecidas pela Reforma e pelas necessidades geradas pelo desenvolvimento do comércio e da industria (a seguir dois fragmentos que ilustram o pensamento destes dois autores). (2) Mais tarde, a sociologia foi utilizada por juristas para propor um fundamento do direito alternativo à teoria do direito positivo; com a ambição de apoiar regras sociais num conhecimento científico da sociedade. O que conduziu ao corporativismo e faz parte de evoluções que levaram ao autoritarismo e ao totalitarismo.

1 de Outubro (1)

No desenvolvimento da sociologia, etapas da sociologia do direito (cont.): (3) No âmbito da Escola de Frankfurt: em particular os trabalhos de Franz Neumann (Behemoth, 1944) incidem no direito. – Depois da II Guerra mundial, durante alguns 15 anos, avança-se pouco em sociologia do direito. Os sociólogos entraram num processo de especialização, e não avançam no terreno do direito por este estar reservado às Faculdades de Direito; os juristas evitam a sociologia depois de doutrinas jurídicas inspiradas nela terem-se comprometido com os regimes autoritários. Ver a exigência de Hans Kelsen em voltar a um conhecimento do direito baseado apenas no próprio direito. (4) Sociologia jurídica promovida por juristas conscientes da necessidade de melhor conhecer as realidades sociais para melhor antecipar os efeitos das leis. Entre outros, Jean Carbonnier. Tomam a iniciativa da criação do Research Committee on Sociology of Law nos anos 1960. (5) critical legal studies : num contesto político de forte contestação das instituições reforçadas no pós-guerra para garantir melhores condições ao trabalho de reconstrução, este movimento afirma-se contra uma visão tecnocrática do direito, e insiste na urgência de um trabalho transdisciplinar sobre o direito (6) regresso do direito como objecto de discussões genuinamente sociológicas, apoiadas em resultados de investigações conduzidas por cientistas sociais com longa experiência em matéria de direito (um bom exemplo deste tipo de percurso: Jacques Commaille em França). Esta dinâmica de trabalho empírico cruza-se com os trabalhos de vários sociólogos e cientistas sociais – entre estes os autores tratados na UC – interessados em elaborar teorias mais globais da realidade contemporânea, às quais, no entender deles, deveriam estar particularmente atentas ao papel do direito. Ou seja, cruzam-se e reforçam-se mutuamente abordagens de juristas e de sociólogos, e da investigação empírica e dos debates teóricos. O que cria condições favoráveis para uma dinamização das redes especializadas neste domínio: ver a fundação do Instituto internacional de sociologia jurídica (1989) ou a organização de congressos mundiais de sociologia do direito, nomeadamente em 1991 (Amesterdão) e 2007 (Berlim).

FD-UNL Licenciatura em Direito – Sociologia jurídica 2013-2014 – Sumários – página 9

Tabela 4:

O direito, tema central nas interpretações sociológicas clássicas Correspondência entre formas de sociedade e formas de direito

Sociedade

Direito

Durkheim Divisão do trabalho Direito cooperativo aumenta

traduz alterações da moral social

Weber

Racionalização Profissionalização

Dessacralização

Parsons Sistema Função de integração

Neumann

Conflito Instância de compromisso, sob certas condições

Instrumentalizável, até certo ponto

O direito, tema marginal no desenvolvimento da sociologia no Pós-Guerra O sistema social, constituído nomeadamente pelo direito

A interacção, estruturada nomeadamente pelo direito

Parsons Sub-sistemas sociais Sub-sistema direito: Função de integração

Parsons

Interacções em contextos profissionalizados

As profissões jurídicas entre as leis e as pessoas

Goffman

Interacções em instituições

Adaptação primária / segundária às regras

A sociologia jurídica fundada por juristas

Programar a observação empírica dos factos jurídicos

“Auto-entendimento” do direito Hipóteses juris-sociológicas

Carbonnier e outros

“Panjurismo”

Unidade

Validade

Publicidade

Igualdade

Aplic. dispositivo

Atenção ao “Não direito”

Pluralismo jurídico

(In)efectividade

Knowledge and Opinion about Law

“Justiça de classe”

Efeitos inesperados

Balanço do desenvolvimento da sociologia do direito até aos anos 1970 (Tabela 4) (o período seguinte será abordado em relação aos autores tratados nas semanas seguintes): 1900-1930: a evolução do direito revelou-se como estreitamente ligada a evoluções mais abrangentes das sociedades modernas (crescente diferenciação funcional, racionalização, conflitualidade entre classes, tendências totalitárias; em relação a estas últimas evoluções, ver fragmento 3 de Neumann, a seguir). Anos 1940-1960, na sociologia americana, sem que se dedique um especial esforço de investigação ao direito, tema reservado aos juristas, aprofundamento da análise do lugar do direito nas sociedades modernas: o direito desempenhando um papel importante de mediação entre grandes instituições e as interacções na proximidade, dois planos da realidade social que não se conciliam facilmente (Parsons); regulamentos formais e mecanismos de controlo coexistem com “reacções de defesa”, estratégias de “adaptação secundária” e “vidas clandestinas” (Goffman) (ver os fragmentos 4 e 5 de Parsons e Goffman, a seguir). – Anos 60-70: A sociologia jurídica promovida por juristas no pós-guerra: assente no

FD-UNL Licenciatura em Direito – Sociologia jurídica 2013-2014 – Sumários – página 10

pressuposto que as concepções do direito que são ensinadas nas faculdades dificultam uma percepção adequada da realidade jurídica; consiste em boa medida em negar as principais características do direito tais como ensinadas tradicionalmente, para construir a partir desta negação hipóteses de investigação empírica (exemplo: da afirmação da unidade do direito à hipótese do pluralismo normativo). Para ilustrar esta síntese destas maneiras de analisar o direito, insere-se aqui um conjunto de fragmentos de textos dos autores evocados. Fragmento 1: DURKHEIM, Émile, A divisão do trabalho social, Lisboa, Editorial Presença, 1977 (trad. de De la division du travail social, Paris, publ. orig. : 1893 ; novo prefácio : 1902). [p. 79] « A divisão do trabalho desempenharia um papel muito mais importante do que o que se lhe atribui vulgarmente. Ela não serviria somente para dotar as nossas sociedades de um luxo, talvez invejável, mas supérfluo ; seria uma condição da sua existência. É através dela, ou pelo menos sobretudo através dela, que seria assegurada a sua coesão ; é ela que determinaria os traços essenciais da sua constituição. (…) é preciso verificar a hipótese que acabamos de apresentar sobre o papel da divsião do trabalho. Mas como proceder a esta verificação ? (...) é preciso sobretudo determinar em que medida a solidariedade que ela produz contribui para a integração geral da sociedade. [p. 80] (…) Para responder a esta questão (…) é indispensável começar por classificar as diferentes espécies de solidariedade social. Mas a solidariedade é um fenómeno completamente moral que, por si próprio, não se presta à observação exacta nem sobretudo à medida. Para proceder, quer a esta classificação, quer a esta comparação, é preciso portanto substituir o facto interior, que nos escapa, pelo facto exterior, que o simboliza, e estudar o primeiro através do segundo. Este símbolo visível é o direito. (…) Com efeito, a vida social, por todo o lado onde ela existe de uma maneira durável, tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e a organizar-se, e o direito não é outra coisa senão esta mesma organização, naquilo que tem de mais estável e de mais preciso. A vida geral da sociedade não pode estender-se num certo sentido sem que a vida jurídica para aí se estenda ao mesmo tempo e na mesma proporção. Podemos assim estar certos de encontrar refectida no direito todas as variedades essenciais da solidariedade social.» [Índice :] « Solidariedade mecânica ou por similitudes : (…) As normas que o direito penal sanciona exprimem portanto as similitudes sociais mais essenciais ; por consequência, corresponde à solidariedade social, a qual deriva das semelhanças , e varia com ela. (…) A solidariedade que deriva da divisão do trabalho ou orgânica : (…) Relações positivas ou de cooperação que derivam da divisão do trabalho regem-se por um sistema definido de normas jurídicas que se pode chamar de direito cooperativo. »

FD-UNL Licenciatura em Direito – Sociologia jurídica 2013-2014 – Sumários – página 11

Fragmento 2: WEBER, Max, Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e Sociedade), Tübingen, 1ª

edição 1921 (citado a partir da 5ª ed., Tübingen, Mohr, Siebeck, 1976).

[p. 198] « Efectivamente, uma ordem económica de tipo moderno, sem dúvida, não se poderia realizar sem uma ordem jurídica com características muito especiais, as quais se podem concretizar, na prática, apenas no âmbito de uma ordem ‘estadual’. A economia contemporânea baseia-se em hipóteses [de negócios] adquiridas através de contratos. Existe algum interesse próprio de cada um na ‘lealdade nos contratos’, assim como interesses comuns dos possuidores na protecção recíproca da posse. E ainda hoje os usos e os costumes determinam com alguma força o indivíduo. Mas a influência destas forças sofreu uma extraordinária perda de significado como consequência do abalo, por um lado, das condições ordenadas pela tradição, e por outro lado, da crença no seu carácter sagrado. Os interesses das classes divergem como nunca. A rapidez das transacções exige um direito que funcione de maneira rápida e segura, isto é, com a garantia do mais forte poder de coerção. E, acima de tudo, a economia moderna, em virtude das suas particularidades, aniquilou as outras associações, que sustentavam o direito e as suas garantias. Isto foi a obra do desenvolvimento do mercado. O domínio universal de uma formação social assente no mercado exige (…) um funcionamento do direito calculável, na base de regras racionais. »

(conclusão do capítulo I da Segunda Parte, « A economia e as ordens sociais »)

[p. 513] « (…) em todos os casos, o destino inevitável, em consequência do desenvolvimento técnico e económico, será (…) um crescente desconhecimento, por parte dos leigos, de um direito cuja substância técnica vai aumentar constantemente, ou seja a profissionalização do direito, bem como a qualificação do direito actualmente em vigor como aparato técnico e racional, isto é, susceptível de ser modificado em qualquer altura em função de finalidades racionais, e cuja substância perdeu qualquer carácter sagrado. »

(conclusão do capítulo VII da Segunda Parte, « Sociologia do direito »)

Fragmento 3: Neumann, Franz (1937), “Der Funktionswandel des Gesetzes im Recht der bürgerlichen Gesellschaft” (A transformação da função do direito na sociedade burguesa), Zeitschrift für Sozialforschung, 1937 (cit. a partir da reedição em Demokratischer und autoritärer Staat, Francoforte, Fischer Wissenschaft, 1986. [p. 55] « A teoria e a prática do direito sofrem uma mudança determinante no período do capitalismo monopolístico, que começa na Alemanha com a República de Weimar. Para a compreensão das transformações do direito, deve ter-se em conta não apenas as evoluções estruturais económicas, que já foram descritas muitas vezes. O facto político determinante na República de Weimar é o novo significado do movimento operário depois de 1918. A sociedade burguesa já não podia ignorar a existência de uma oposição de classes e tinha, (…) considerando este facto, que construir de alguma forma uma constituição. A solução técnica aqui foi o contrato, única maneira de se alcançar um compromisso político. (…) [p. 57] « Um sistema contratual apenas pode funcionar se os parceiros contratuais subsistem (…). O partido democrático, no entanto, desapareceu quase completamente na evolução política ulterior. Novos partidos, antes de mais o partido nacional-

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socialista alemão, surgiram e dominaram numericamente os partidos tradicionais. A crise impediu os parceiros contratuais capitalistas em cumprir as suas obrigações contratuais, em particular a manutenção das instituições sociais. (…) [p. 58] Às transformações das estruturas económicas e políticas correspondeu uma viragem radical na teoria e na prática do direito. (…) [p. 62] Um direito natural oculto tinha sido, na realidade, aplicado sem escrúpulos durante todo este período. O tempo de 1918 a 1932 caracterizou-se por uma aceitação quase geral da doutrina do direito livre (Freirechtsschule), pela destruição da racionalidade e da calculabilidade do direito, por restrições ao sistema contratual, e por uma vitória das cláusulas gerais sobre as verdadeiras regras jurídicas. (…) [p. 67] No Estado autoritário, o significado das cláusulas gerais torna-se mais claro ainda. (…) Possibilitam uma aplicação das concepções políticas dominantes também nos casos onde são contraditas pelo direito positivo. Com efeito, na aplicação das cláusulas gerais, o juiz não deve, hoje, recorrer a uma ‘apreciação subjectiva’ ; ‘na aplicação das cláusulas gerais pelo juiz, pelo advogado (…) ou pelo docente de direito, são os princípios do Nacional-Socialismo que intervêm, imediatamente e exclusivamente’ (Carl Schmitt, 1933). (…) Existe unanimidade na literatura nacional-socialista neste ponto : a lei não é mais que a ordem do Führer, pois o direito ‘pre-revolucionário’ apenas tem validade por força da vontade do Führer. » Fragmento 4: Parsons, Talcott (1954), “A Sociologist Looks at the Legal Profession”. [p. 381] “Esta exposição recordou factos bem conhecidos de todos os juristas […]. Referi-os, no entanto, para que fique claro que a profissão jurídica tem um lugar na nossa estrutura social, e que cumpre funções, no âmbito desta, das quais o jurista médio tem apenas uma consciência parcial. Este jurista faz o seu trabalho, no tribunal, representando o seu cliente, etc. de acordo com as instruções deste e sente, justificadamente, que este trabalho também é importante para a sociedade. O ponto essencial a tratar em conclusão é mostrar de que maneira […] estas funções são úteis para a sociedade. Desde que se tenha o cuidado de qualificar adequadamente traços específicos do seu papel e da sua situação, a profissão jurídica partilha características com outras profissões. […] O mais importante é que um membro de uma profissão se encontra entre dois aspectos da nossa estrutura social; no caso do direito entre a autoridade pública e as suas normas, por um lado, e o indivíduo privado ou o grupo cujas condutas ou intenções poderão ou não estar em conformidade ou não com a lei. […] [p. 382] As profissões, neste sentido, podem ser consideradas, sociologicamente, como o que chamamos ‘mecanismos de controlo social’. Podem, como é o caso dos professores, ajudar a ‘socializar’ os jovens, conduzi-los a corresponder às expectativas que são associadas à plena participação, ou, como é o caso dos médico, podem ajudá-las, no caso em que se desviaram, a voltar a pôr-se em acordo [com estas expectativas]. Pode presumir-se que a profissão jurídica faz isto, mas também faz duas outras coisas; primeiro prevenir o desvio, aconselhando o cliente de tal forma que este se mantenha mais em conformidade com as leis, eventualmente arrefecendo os seus ânimos; e, em segundo lugar, nos casos graves, representando o cliente no processo que conduzirá a uma decisão socialmente sancionada sobre o estatuto deste, decisão que determinará se este é inocente ou autor de um crime. [p. 384] […] A sua função em relação aos clientes não é, de modo algum, apenas ‘dar-

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lhes o que quiser’, mas em muitos casos de resistir as suas pressões e levá-los a tomar consciência de aspectos mais graves da sua situação, não apenas com referência ao que poderiam, mesmo com um apoio jurídico muito hábil, sofrer como consequências, mas também com referência ao que a lei lhes permitirá fazer. Neste sentido, o advogado representa uma espécie de amortecedor entre os desejos ilegítimos dos seus clientes e o interesse da sociedade. Neste caso, ‘representa’ a lei, mais do que o seu cliente. [p. 385] […] A conclusão destas considerações de senso comum é que o sociólogo deve considerar as actividades das profissões jurídicas como um dos mecanismos muito importantes pelos quais se mantém um relativo equilíbrio numa sociedade dinâmica e bastante instável.” [Nota de apresentação: “A substância deste artigo foi apresentada no primeiro seminário organizado na ocasião do 50º aniversário da Faculdade de Direito de Chicago, em 4 de Dezembro de 1952.”] Fragmento 5: Goffman, Erving (1961), Asylums. Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates. [Terceira parte: Conclusões] “I. Ideologias oficiais e condutas efectivas Todos os estabelecimentos desenvolvem uma concepção oficial do que os seus membros lhes devem. Mesmo sem atribuir-lhes com precisão uma tarefa específica - como seria o caso para um guarda nouturno – a organização requer uma certa atenção, um certo conhecimento da situação do momento, uma certa disponibilidade para enfrentar acontecimentos inesperados. [...] Estas exigências, abrangentes ou limitadas, revelam - implícitamente mas também de maneira muito desenvolvida e precisa – a concepção que os responsáveis do estabelecimento têm das características do indivíduo para quem legislam. Mas em todos os estabelecimentos sociais existem reacções de defesa face a estas exigências: vemos como os membros recusam o esquema oficial do que deveria ser a sua contribuição para a instituição e do que eles podem esperar por parte desta, e, mais profundamente, como recusam a concepção do mundo e deles próprios com a qual seriam supostos identificar-se. Onde se estava a contar com o entusiasmo, manifesta-se apatia; em lugar de fidelidade e assiduidade, de boa saúde, de uma actividade intensa, encontra-se indiferença, absentismo, doenças mais ou menos imaginárias e uma vasta gama de inactividades. Uma quantidade de pequenas histórias atraiçoam, cada uma à sua maneira, um desejo de liberdade: cada vez que se forma uma sociedade, surge uma vida clandestina.” – Foucault (ver sinopse, em documento separado): primeira abordagem. (1) Observações prévias: (a) influência internacional e actualidade confirmada por várias publicações recentes; (b) Lugar na evolução geral apresentada (Tabela 3): muito ligado à época das reacções críticas às políticas de reconstrução disciplinada do pós-guerra; em particular, recusa qualquer identidade disciplinar: nem filósofo, nem historiador, nem sociólogo. Autor que recusa influências de outros autores e não pode ser facilmente associado a outros autores, enquanto inversamente, numerosos outros autores têm reagido à sua obra. Tem contribuído para a formação de vários investigadores importantes na sociologia do direito, por exemplo Pierre Lascoumes. (2) Percurso: (i) formação no domínio psiquiátrico; adere por algum tempo ao partido comunista, que

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procurava nessa época ganhar apoios junto dos intelectuais e universitários. (ii) Estadias em vários países como responsável de institutos culturais franceses; experiência de regimes políticos exercendo um forte controlo social. (iii) Regresso a França depois de Maio de 68, para participar na criação de uma nova universidade. (iv) Entra no Collège de France; simultaneamente, envolve-se nas actividades de um grupo de defesa dos direitos dos reclusos. Lecciona até à sua morte no Collège de France, mantendo também uma actividade política. Falece com 58 anos; Pierre Bourdieu redige a homenagem publicada então pelo diário Le Monde. Nessa relativamente longa última fase, uma transição menos claramente marcada à primeira vista, mas que já se assinala: à partir de 1978 coopera cada vez mais com colegas fora de França; distancia-se de alguma maneira do mundo intelectual francês. (v) Foucault depois da morte do autor: a obra de Foucault continuou a ter impacto nomeadamente por que se acrescentaram livros novos, organizados por personalidades que tinham trabalhado com Foucault: em 1994 um recolha muito completa e cuidadosamente organizada de todos os artigos e entrevistas publicadas de maneira dispersa durante a vida do autor (Dits et écrits, quatro volumes); a partir de 1997, transcrições das aulas proferidades no Collège de France, no formato de um volume por curso anual.

1 de Outubro (2)

Breve apresentação do Collège de France, onde leccionou Michel Foucault. Uma instituição que não atribui títulos, mas onde os professores dão aulas abertas ao grande público, que devem sempre abordar temas novos. Autores como Foucault, cujas aulas eram consideradas como verdadeiros acontecimentos culturais, contribuíram muito para a reputação desta instituição ( http://www.college-de-france.fr/site/college/index.htm ). quem sucedeu a Foucault no Collège de France foi Pierre Bourdieu (que abordaremos mais tarde). Bourdieu falece em 2002. Sucede-lhe Mireille Delmas-Marty, professora de direito que assumir um ensino dedicado ao tema “Études juridiques comparatives et internationalisation du droit”. A Mireille Delmas-Marty, que se jubila em 2012, sucede Alain Supiot, que lecciona sobre o tema “Etat social et mondialisation : analyse juridique des solidarités”. Recomenda-se, para quem entende o francês, visionar a sua aula inaugural: http://www.college-de-france.fr/site/alain-supiot/index.htm#|m=inaugural-lecture|q=/site/alain-supiot/inaugural-lecture-2012-2013.htm|p=../alain-supiot/inaugural-lecture-2012-11-29-18h00.htm| ). Esta sucessão de cátedras revela a crescente importância que reveste, nas ciências sociais, a discussão do fenómeno jurídico. – (3) Modo de trabalhar de Foucault: privilegia a escrita – “prática discursiva”; faz evoluir o seu próprio pensamento pela redacção de livros. Escrita muito característica, que se distingue claramente da escrita cientifica mais estandardizada (ver exemplos a seguir). Nos seus textos, frequente uso da negação, uma maneira de permanentemente escrever contra o que o leitor ou a instituição no âmbito da qual escreve, espera dele, ou seja uma maneira de se afirmar como sujeito, contra o o papel ao qual poderia ser “sujeitado”. – Nota-se, como nos outros autores tratados, que existe uma coerência entre as principais ideias teóricas do autor e a sua maneira concreta de trabalhar. – (4) A obra, através dos grandes livros: Primeiras investigações, orientadas pelo projecto intelectual central de pensar os “sistemas de pensamento”, além do que podem pensar aqui e agora pessoas individuais; criando as condições de / condicionando pensamentos individuais. Projecto concretizado na (i) História da Loucura, onde Foucault examina a maneira

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como se trataram as pessoas “insensatas” ao longo da história recente da humanidade. Raciocínio subjacente: o que sabemos do tratamento que merecem os “insensatos” orienta as nossas actuais preocupações de aparecer, pelo que dizemos, como minimamente “sensatos”. – Historicamente, a loucura teria sido percepcionada, sucessivamente, na Idade Média, como manifestação do que existe de sobre-humano (divino) ou sub-humano (animal) nas fronteiras da humanidade; na Idade Clássica (~Absolutismo), como desrazão motivando o afastamento da pessoa que será internada numa instituição fechada (grand renfermement); na época recente: doença mental, requerendo análise científica e tratamento. (ii) Em As palavras e as coisas, analisa como se revelam, nas disciplinas intelectuais, maneiras de ordenar o nosso pensamento, que variaram ao longo da história. Idade média: a ordem é-nos revelada pelo próprio mundo; idade “clássica”: a ordem pode ser criada pelo discurso; época recente (desde o século XIX): a realidade revela-se difícil de decifrar; o seu conhecimento deve ser produzido, o que exige que o sujeito do conhecimento – o ser humano – seja ele próprio melhor conhecido, daí o desenvolvimento das ciências humanas. A preocupação científica com o ser humano revela-se assim historicamente datada e poderia deixar no futuro de ter a importância que tem neste momento (1966). Ver a última frase de As palavras e as coisas:

Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, Lisboa, Edições 70, s.d., trad. por António Ramos Rosa de Foucault (1966).

Com os debates que suscitou As palavras e as coisas, Foucault torna-se uma figura pública, cujo nome é associado ao Estruturalismo, corrente de pensamento que sustenta que, para entender a realidade social, é mais importante estudar as estruturas do que os actores. Uma corrente de pensamento que se afirma em particular na confrontação intelectual com o Existencialismo, que teve grande influência no imediato pós-guerra, representado nomeadamente pela obra de Jean-Paul Sartre. Um motivo deste êxito: a afirmação da importância da experiência subjectiva (a existência) corresponde à vontade política generalizada de revalorizar a pessoa humana depois da experiência histórica do totalitarismo. O título Les mots et les choses pode ser lido como aludindo ao título da obra mais representativa de Sartre: L’être et le néant (1943). – Os seus primeiros livros

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dão a Foucault um prestígio que lhe permite entrar no Collège de France. A partir desta posição fortemente legitimada, aplicação de elementos dos raciocínios elaborados nas obras anteriores num domínio muito polémico: as prisões (Vigiar e Punir, 1975). Intenção deste livro: alterar as condições nas quais se debatem os problemas das prisões. Modo de abordar o tema: situar as prisões no contexto de um sistema de pensamento mais amplo. Forte insistência na noção de controlo social (experiência de regimes autoritários na Tunísia, no Leste europeu, na própria França, com uma certa “crispação” do regime político nos últimos anos da presidência de De Gaulle). Tese principal: a prisão passou a ser concebida como um dispositivo “disciplinar” (no seguimento de modos de punição vocacionados sucessivamente para a afirmação violenta do poder do soberano, e, mais tarde, para a educação dos cidadãos), num contexto no qual as estruturas de poder se tornaram, de maneira geral, disciplinares, isto é: assente em mecanismos de apertada vigilância, que (a) permitem um exercício do poder muito melhor focalizado e doseado do que as modalidades anteriores (suplícios, repressões maciças); (b) permitem acumular dados sobre as populações (cujo tratamento dará lugar ao desenvolvimento de ciências sociais), (c) levam cada um a vigiar-se a si próprio, sabendo que é actualmente vigiado. Reveladora desta modalidade de poder: a arquitectura “panóptica”.

8 de Outubro (1)

Visita de Alfons Bora, professor na Universidade de Bielefeld, que nos fala – da Universidade de Bielefeld (http://www.uni-bielefeld.de/ ; uma das muitas Reformuniversitäten criadas no fim dos anos 1960 na Alemanha); papel de Helmut Schelsky. Na Faculdade de sociologia desta Universidade existe actualmente uma unidade “Direito e Sociedade” da qual Alfons Bora é responsável com Michael Huber (http://www.uni-bielefeld.de/soz/las/index.html ). Sobre a sociologia do direito na Alemanha em geral: duas linhas; as/os sociólogos interessados no direito, reunidos numa secção específica da Associação alemã de sociologia (originariamente fundada com a participação de Max Weber); as/os juristas interessados em abordagens sociológicas, reunidos numa associação própria; actualmente colaboração produtiva entre as duas. – Breve apresentação também do Deutscher Ethikrat, do qual Alfons Bora foi membro: entidade criada por lei e trabalhando para o Parlamento e para o Governo Alemão (http://www.ethikrat.org/welcome?set_language=en ), que debate – e promove debate para além do seu âmbito – sobre as questões normativas que levanta o desenvolvimento tecnológico, nomeadamente no domínio biológico.

8 de Outubro (2)

Foucault (cont.): O controlo social, tal como tratado em Surveiller et punir é um tema ainda central no primeiro volume da história da sexualidade. Os dois volumes seguintes da história da sexualidade são publicados oito anos mais tarde e adoptam uma perspectiva radicalmente diferente (Tabela 5): entender como podemos fazer de nós próprios a experiência de sermos sujeitos que pensam. Ou seja, Foucault aborda sucessivamente dois aspectos radicalmente diferentes das nossas sociedades: o desenvolvimento de mecanismos de controlo, por um lado; a importância crescente da subjectividade, por outro. – A mudança no pensamento de Foucault entre 1976 e 1984: Caracterização da mudança na base da comparação entre os dois planos da “História da Sexualidade”. As duas perspectivas sucessivas (pelo “controlo social”, por um lado; pelos “sujeitos” por outro) são, de alguma maneira, complementares. Explicações

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possíveis desta mudança: – resulta do aprofundamento do estudo das práticas de poder: (a) governo pela repressão; (b) governo dinamizador de actividades sociais (governamentalidade; ver texto à disposição dos estudantes), actividades essas animadas pela capacidade que temos de reagir ao governo. Tabela 5

Os dois planos de Histoire de la sexualité

1976 1984

1. La volonté de savoir (1976)

2. La chair et le corps 2. L’usage des plaisirs (1984)

3. La croisade des enfants 3. Le souci de soi (1984)

4. La femme, la mère et l’hystérique 4. Les aveux de la chair

5. Les pervers

6. Population et races

Os volumes publicados são mencionados em bold.

O potencial de reacção às medidas de controlo social, fenómeno que se tornará mais tarde o tema principal das reflexões de Foucault, já surge nas últimas frase de Surveiller et Punir (1975), na expressão “le grondement de la bataille”: Michel Foucault, Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975 :

Michel Foucault, Vigiar e Punir, Petrópolis, Vozes, 2005 (trad. Por Raquel Ramalhete de Foucault, 1975):

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15 de Outubro (1)

Foucault (cont.): Recorda-se a reorientação das reflexões de Foucault, de uma focalização nas tecnologias de controlo social, para o fenómeno da subjectivação pelas reacções ao controlo social. Esta reorientação relaciona-se com a experiência concreta das reacções dos sujeitos às formas de poder. Individualmente nas prisões (veja-se a última frase do livro, que refere o “grondement de la bataille”). Colectivamente em particular no Irão, na Revolução de 1978; Foucault primeiro fascinado, depois preocupado em distanciar-se do regime que progressivamente se instala nesse país. Será duramente criticado pela sua simpatia para com a Revolução. – Chocado pela dureza destas críticas, distancia-se do meio intelectual francês e intensifica os contactos em particular com colegas dos Estados Unidos. O tema da subjectividade – da experiência de ser governado ao governo de si – é bem recebido por essa audiência. O “esquema de pensamento” de Michel Foucault (não uma estrutura rígida e permanente, mas elementos que têm alguma estabilidade no tempo): duas ordens de realidade: os discursos por um lado; as práticas discursivas por outro. Entre estas, duas linhas de trabalho de Foucault: a “arqueologia” (entender as práticas a partir dos sistemas de pensamento); a “genealogia” (entender como surgem sistemas de pensamento a partir de práticas). Por sua vez as práticas poderão ser condicionadas: (a) por dispositivos materiais; (b) por relações de força; (c) pelas relações que cada pessoa humana tem consigo própria. Evolução geral do seu pensamento: dos discursos para as práticas discursivas; nas práticas discursivas: das práticas actuais condicionadas pelo controlo social às possibilidades de se afastar destas práticas. Situação dos quatro textos postos à disposição dos estudantes: “A Verdade e as formas jurídicas” (1973), síntese das aulas no Collège de France na fase da preparação de Surveiller et punir. « La redéfinition du judiciable » (1977): um debate com magistrados; “A governementalidade” (1978): uma aula no CF no momento em que Foucault passa a interessar-se ao governo na perspectivo do fomento das dinâmicas da colectividade; “Que és la ilustración?” (1984) trad. de um artigo publicado nos Estados unidos, baseado numa aula no Collège de France, onde o Foucault aprofunda a ideia da modernidade, época na qual a consciência dos acontecimentos pode ajudar-nos a afastar-nos das normas que se actualizam nestes acontecimentos.

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Michel Foucault e o direito: principal momento em que Foucault aborda o direito: a preparação e o posterior de debate de Vigiar e Punir (um texto dando conta da preparação desta obra: A Verdade e as Formas Jurídicas, 1973, aulas proferidas no Brasil, à disposição dos estudantes). Foucault interessado em temas jurídicos também noutras obras, em relação a aspectos específicos. Na História da Loucura e noutras obras, analisa regulamentações jurídicas como reveladoras de certas práticas. Nas aulas no Collège de France, interesse nos procedimentos de julgamento como momentos de construção da realidade. Mais tarde, aborda o direito ligado às técnicas de governo. Com o “esquema de pensamento” como pano de fundo, cinco reflexões mais gerais sobre o direito no pensamento de Foucault: (1) O discurso jurídico pode ter uma consistência susceptível de condicionar fortemente o pensamento dos juristas em dado momento (veja-se nomeadamente a força da ideia de “código” numa determinada fase da história do direito; mais tarde a ideia do direito como algo que pode ser produzido, que pode ser um produto “de qualidade”; actualmente talvez a noção da pluralidade das ordens jurídicas). (2) as práticas jurídicas são condicionadas (a) por dispositivos materiais constituídos por determinados tipos de processos (pode pensar-se hoje em dia nos processos de avaliação legislativa), mas também hoje em dia, imateriais: as aplicações informáticas de implementação das políticas públicas, a internet; (b) por relações de poder (valerá a pena acompanhar de perto o impacto sobre o direito das actuais movimentos sociais (“indignados”); (c) pelas reacções que podem suscitar nos/nas que neles se encontram envolvidos/as, favorecendo tomadas de consciência de uma subjectividade, de uma capacidade de actuar criativamente como sujeito.

15 de Outubro (2)

Luhmann: (1) Recepção internacional; assinala-se nomeadamente que a tradução de Soziale Systeme (1984), publicada em Abril deste ano 2011, já está esgotada. – (2) Situação no panorama geral (Tabela 3): principais ligações: formação com Talcott Parsons; debate com Jürgen Habermas. Autor que não simpatizou com o movimento estudantil em 1968. Tem-se notado afinidades de conteúdo entre a sua obra e as de Foucault e Bourdieu, o que é notável, pois são obras que se desenvolveram em contextos muito diferentes. – (3) O percurso: biografia (ver sinopse, documento separado): jovem no fim da guerra; inicia vida profissional na fase de intensiva reconstrução da RFA; formação como jurista; tempo nos EUA onde tem aulas com Talcott Parsons; doutora-se em sociologia; entra em sociologia formulando o seu programa de trabalho sob o título “Soziologische Aufklärung” (ver texto à disposição); entra em Bielefeld – universidade recém-criada, característica do esforço voluntarista de formar novas elites para uma nova Alemanha. Permanece aí até se reformar, implementando o seu projecto de investigação: formular uma teoria da sociedade. Apresentação da obra: três fases: livros de ciência da administração; livros de sociologia do direito e de sociologia geral, formulação da sua teoria dos sistemas e realização metódica de um programa de publicações percorrendo os vários sistemas funcionais diferenciados, até abordar – último livro do autor – a própria sociedade. – (4) O procedimento de trabalho: explicação da produtividade do autor: diz não dedicar-se principalmente à escrita de artigos e livros, mas sim ao preenchimento do seu ficheiro de trabalho (Zettelkasten; um pequeno filme sobre este ficheiro, razoavelmente bem realizado, pode ser visionado em http://www.youtube.com/watch?v=7gxXkbEag6k ,

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acessível em Outubro de 2012). Relação entre o funcionamento deste ficheiro e o conceito de sistema social em Luhmann: conjunto delimitado em relação ao exterior, que funciona pela forma como se estabelecem relações internas. – Este trabalho ilustra um componente específico do trabalho científico: a formulação de conceitos, que passa essencialmente pela maneira como relacionamos os conceitos entre si. Algumas ligações internet adicionais: http://www.youtube.com/watch?v=3mXwN1Svay4&feature=related “Niklas Luhmann Gibt es in unserer Gesellschaft noch unverzichtbare Normen ? 1/5“ (Conferência, em alemão, anos 1990) http://www.youtube.com/watch?v=tAwY8P6Rclc&feature=related Entrevista gravada no princípio dos anos 1970, em alemão, mas com imagens interessantes, da casa, do gabinete, etc. (5) As propostas teóricas. Forte influência de Parsons. Breve apresentação da teoria dos sistemas sociais de Parsons: necessidade para qualquer sistema (tanto social como, por exemplo, biológico) de se cumprirem quatro funções: Adaptação, Goal Attainment, Integração, Latent Pattern Maintenance (AGIL). Um sistema mantém-se melhor se cada função é desempenhada por um susbsistema diferenciado. Aplicado à realidade social, este raciocínio conduz Parsons ao seguinte modelo: a acção social é possível porque se diferenciaram o organismo (Adaptação), a personalidade (Goal Attainment), a cultura (Latent pattern maintenance) e os sistemas sociais (integração da acção individual na das colectividades). No plano dos sistemas sociais, determinadas sociedades mantém-se porque se diferenciaram a economia (A), a política (G), a família, a religião e outros subsistemas (L); o direito como um sub-sistema que contribui para a integração (I) da sociedade. Opções teóricas de Luhmann: não se limitar às quatro funções identificadas por Parsons; procurar entender melhor como funciona um sistema, isto é: entender o que é, em rigor, um sistema. Recorda-se que a sua teoria dos sistemas se forma progressivamente. As obras anteriores aos anos 1980 ainda se apoiam em conceptualizações bastante diferentes. A primeira formulação completa encontra-se em Soziale Systeme (1984); vários aspectos da teoria evoluíram ainda nas obras posteriores. Principais elementos da teoria nessa versão mais elaborada: entender os sistemas a partir das suas operações, da maneira como estas se ligam umas com as outras, distinguindo-se das operações de outros sistemas. É este processo que Luhmann designa pelo conceito de “autopoiése”: um sistema existe pelo facto de acontecerem, aqui e agora, operações com certas características. – Quanto aos sistemas sociais, considera que as operações que os fazem existir são comunicações. Luhmann insiste nesta afirmação provocatória: os sistemas sociais não são constituídos por pessoas, mas sim por comunicações. Entre os mecanismos que possibilitam a autopoiése de um tipo particular de comunicação, temos códigos binários: na ciência: verdadeiro/errado; na arte, conseguido/ não conseguido; no direito: Recht/Unrecht; na interacção: presente/ ausente; numa organização: membro/não membro, etc. O conceito de código binário permite formular mais completamente o processo da autopoiése: uma comunicação põe em jogo uma distinção (exemplo: afirma-se algo como verdadeiro); esta afirmação é susceptível de provocar reacções (alguém levanta uma objecção: não, não corresponde à verdade!).

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22 de Outubro (1)

(Realização do primeiro teste de avaliação periódica facultativa)

22 de Outubro (2)

Devido à Conferência de Habermas anunciada para a segunda-feira 28 de Outubro na Fundação Gulbenkian, antecipa-se uma primeira apresentação deste autor (título da conferência "A Democracia na Europa"; mais informações ver http://www.gulbenkian.pt/index.php?object=483&article_id=4456langId=1 ). Situação no panorama geral: na linha da Escola de Frankfurt; debate com Luhmann; relações com os outros autores. – Percurso : No imediato pós guerra, confrontado com fragilidades da democracia na República federal; vontade de melhor entender o funcionamento do espaço público, como dispositivo necessário à democracia. Etapa de trabalho no Institut für Sozialforschung, a chamada Escola de Frankfurt. – Breve introdução a esta Escola: depois da I Guerra Mundial, na qual se revelou a incapacidade do movimento operário de resistir a tendências nacionalistas agressivas, preocupação dos intelectuais críticos em identificar melhor os factores culturais que condicionam o pensamento, e em dotarem-se de um instrumento adequado à prossecução deste objectivo: um instituto de investigação que possa tirar proveito dos avanços das ciências sociais. Max Horkheimer, director a partir de 1930, dá uma formulação mais clara a este objectivo e dinamiza um grupo de investigadores cuja actividade é documentada pela Zeitschrift für Sozialforschung, publicada de 1932-1941. O Instituto instala-se nos Estados Unidos para fugir aos nazis; regressa depois da guerra. A produção intelectual desta escola é portanto profundamente marcada pelas experiências do totalitarismo e das transformações culturais induzidas pela industrialização, experiências que inspiram em particular o livro A Dialéctica da Razão de Horkheimer e Adorno (1948). – Habermas não permanece muito tempo no Instituto, sendo considerado como demasiado radical por Horkheimer. – Primeira grande etapa de construção da obra: Face aos problemas encontrados no espaço público, considera indispensável dotar-se de uma “teoria da actividade comunicacional” como fundamento necessário para qualquer actuação eficaz. Vai dedicar os primeiros vinte anos da sua carreira a este objectivo. O livro dedicado a esta teoria é publicado em 1981. Beneficia em particular da experiência da confrontação com os estudantes contestatários (em 1968, simpatiza numa primeira fase com os estudantes. Mais tarde, qualifica de “Fascismo de esquerda” certos excessos, o que conduz à ruptura com o movimento estudantil. Procura então distanciar-se dos debates públicos), de um debate com Niklas Luhmann, de investigação empírica realizada no Instituto Max-Planck para o estudo das condições de vida na sociedade técnico-científica, que dirige durante cerca de 10 anos com Carl von Weizsäcker. – Segunda grande etapa: procura de meios de melhorar as condições de debate público nas sociedades complexas, primeiro centrando-se no caso da Alemanha; depois abordando a Europa e a sociedade-mundo. Passa a separar duas linhas de publicações: os trabalhos “académicos”, por um lado; e os “escritos políticos” (Kleine politische Schriften), por outro. Trabalho de vários anos, em debate com juristas alemãs e de outros países, sobre o papel do direito nas sociedades modernas. Conduz a Facticidade e Validade (1992: Between Facts and Norms, Droit et démocratie). Discussão das condições nas quais o direito poderia contribuir para melhores condições de comunicação nas nossas sociedades.

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Breve apresentação da teoria da actividade comunicacional: condições nas quais comunicamos evoluíram na modernidade. (a) Por um lado, existem âmbitos nos quais produzimos sentido / damos sentido ao que nos rodeia e ao que nos acontece num processo de comunicação no qual também nós nos identificamos com locutores (tomamos consciência de nós próprios quando já estamos a comunicar; Habermas desgna estes âmbitos de Lebenswelt / Lifeworld ). Por outro lado, existem domínios (sistemas) nos quais os indivíduos deixaram de dominar actualmente os símbolos que mobilizam (não se pode redefinir aqui e agora o sentido das palavras e outros símbolos que utilizamos): na administração e na economia: não se podem discutir os poderes legalmente atribuídos, a não ser em novos processos legislativos; não se discute o valor do dinheiro. O que está em jogo é articular estes dois domínios radicalmente diferentes um do outro. (b) A actividade comunicacional, ao construir a nossa Lebenswelt, constrói quatro componentes em paralelo: os objectos referidos; a relação na qual a comunicação se processa; a pessoa que toma a palavra; a linguagem. Na modernidade, a comunicação diferencia-se em âmbitos especializados, dedicados a debates que incidem mais especificamente num destes quatro aspectos: a ciência (a verdade), o direito e a moral (a justiça), a arte (a autenticidade), a linguagem e a possibilidade da comunicação (a filosofia). – Os dois grandes problemas que as sociedades modernas devem solucionar são, por um lado, a relação entre sistemas e Lebenswelt; por outro lado as relações entre saberes não especializados e saberes especializados.

29 de Outubro (1)

Após primeira abordagem à obra de Habermas, regresso à discussão de Luhmann. Luhmann: Existem diferentes tipos de comunicações, dando lugar a diferentes sistemas sociais. Entre estes: interacções, organizações, sistemas funcionalmente diferenciados, a sociedade-mundo. Mais concretamente, determinados acontecimentos podem funcionar como comunicações pertencendo a diferentes sistemas sociais ao mesmo tempo. Exemplo: o que se diz numa aula; consiste simultaneamente, em formar pessoas, em trabalhar cientificamente (por exemplo aproveitando a situação da aula para aprofundar a questão das diferenças que podem existir entre várias interacções, que se podem processar em paralelo: interacção “difusa” entre o docente e o conjunto dos estudantes; interacção mais focalizada entre o docente e estudantes que lhe dirigem perguntas, interacções entre estudantes, etc. etc.), em implementar disposições organizacionais (a funcionar no âmbito de uma faculdade), em interagir entre pessoas que estão no mesmo momento na mesma sala, em participar, embora muito localmente e modestamente, numa comunicação que tece uma sociedade-mundo. – Entre sistemas diferentes, não pode haver relações imediatas; têm que existir mecanismos específicos de articulação. Pode tratar-se de organizações (uma instituição de ensino intensifica necessariamente, pelo menos nalguma medida, as articulações entre ciência e pedagogia). Pode tratar-se de “estruturas”, elementos comuns às operações de dois sistemas. Fala-se então de “structural coupling”. Exemplo de “Structural coupling” entre diferentes sistemas funcionais: a constituição entre sistema político e sistema jurídico. – Além dos sistemas sociais, Luhmann tem dedicado muita atenção aos sistemas psíquicos. Na perspectiva dele, as operações pelas quais uma consciência existe são percepções. Não existe relação directa entre percepções e comunicações (podemos verificá-lo em muitas ocasiões na vida quotidiana: muitas vezes a comunicação é prosseguida, mesmo que tenha sucedido algo que, na consciência de pessoas individuais, poderá ter sido experienciado como um malentendido. Nunca sabemos exactamente o que os outros

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pensam, e no entanto continua-se a comunicar). Entre sistemas psíquicos e sistemas sociais, tem portanto que haver algum mecanismo de “structural coupling” : um é a língua, que serve para comunicar e para pensar; outra é a noção de personalidade.

29 de Outubro (2)

Breves considerações sobre a leitura segundo a teoria dos sistemas: “simulação” de comunicação pela consciência, num processo de encadeamento relativamente lento de captação de fragmentos sucessivos de texto, cada um devendo, em bons textos, sugerir a necessidade de se passar ao próximo fragmento. Paralelamente a este processo, associações entre os elementos actualizados na leitura e recordações de outras percepções, que vão dar mais substância às ideias sugeridas pela leitura. Processo que pode fazer parte de obrigações organizacionais, e ser conduzido com recurso às distinções produzidas pelos sistemas funcionais (os alunos adquiriram / não adquiriram? determinada noção); Processo que pode ligar-se a comunicações efectivas (reuniões de trabalhos seguindo leitura de documentos. – Os trabalhos de Luhmann sobre o direito: (a) etapas da discussão do direito no contexto do desenvolvimento da obra: (i) ainda na fase em que se mantém próximo do pensamento de Talcott Parsons: Os direitos fundamentais como instituição (1965); (ii) no final da fase de trabalho mais ligado à ciência da administração: Legitimação pelo procedimento, 1969; (iii) durante a fase afirmação como sociólogo: Sociologia do Direito, 1972; (iv) no âmbito do desenvolvimento da teoria dos sistemas: O direito da sociedade; (v) na transição entre (iii) e (iv), uma recolha de artigo A diferenciação do direito (1981). – (b) relações com a sociologia do direito em particular: fornece um manual; participa na Zeitschrift für Rechtssoziologie; intervem no Instituto internacional de sociologia do direito. – (c) evolução da apreciação que faz Luhmann das relações entre sistemas, nomeadamente entre ciência e direito: inicialmente optimista; admite complementaridades; mais tarde muito mais céptico: cada sistema evolui em larga medida de acordo com a sua lógica própria, eventualmente em detrimento dos outros. Apreciação favorecida pela experiência da realidade na semiperiferia, em particular no Brasil. – (d) Grandes temas de trabalho: Principal tese inicial quanto ao direito: uma estrutura necessária nas sociedades funcionalmente diferenciadas, facilitando a produção de novas normas sempre que necessárias, num contexto em que as necessidades de novas normas se tornaram menos previsíveis (as evoluções separadas da economia, da política, da ciência, etc., podem a cada momento gerar problemas de ajustamento que requerem novas normas). Temas mais específicos: (i) Os direitos fundamentais não servem apenas para proteger as pessoas, mas também para diferenciar sistemas e, logo, preservar as sociedades de tendências totalitárias, que correspondem, precisamente, a processos de “desdiferenciação”. (ii) Legitimação pelo procedimento (1969): os procedimentos formalizados facilitam uma aprendizagem colectiva favorável a aceitação do resultado do procedimento, ou seja um conformismo que acaba por ser, na prática, mais importante do que o facto de as pessoas terem sido convencidas por argumentos. (iii) Rechtssoziologie (1972): a positivização do direito. (iv) Em Das Rechts der Gesellschaft (1993), o direito, um sistema funcionalmente diferenciado entre outros, ao lado de outros sistemas funcionais (política, economia, ciência, arte, etc.), ligado a organizações específicas (tribunais, parlamentos, escritórios de advogados, faculdades de direito, etc. etc.); tematizado no âmbito de interacções; e participando, pela maneira como se pode jogar, praticamente em qualquer lugar do mundo, com a distinção “em conformidade

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com o direito / contrário ao direito” (Recht / Unrecht) na realidade de uma sociedade-mundo. (e) Alguns desenvolvimentos da temática Direito como sistema autopoiético, em Das Recht der Gesellschaft e textos dos anos 1990: (i) o que é concretamente o direito segundo esta conceptualização? o universo de todas as comunicações que põem em jogo a distinção “Recht/Unrecht” (envolvendo profissionais ou leigos, em contextos formalizados ou informais), sendo que existe um “núcleo duro” de comunicações envolvendo profissionais e processadas em contextos formalizados, que fornece de alguma maneira modelos às comunicações mais espontâneas, e que garante a continuidade da comunicação jurídica. (ii) Como é dinamizada a autopoièse do direito? Por mecanismos que incentivam a aplicação da distinção “Recht/Unrecht”; entre estes, a noção de justiça, que obriga a uma permanente reapreciação da coerência entre afirmações jurídicas (“Justiça como fórmula de contingência”); por mecanismos que alimentam as comunicações jurídicas com novos conteúdos (a doutrina que ensaia argumentos susceptíveis de serem mobilizados na prática. (iii) Como se lida com a “dureza” da oposição entre “Recht/Unrecht”, que conduz a alternativas tudo / nada? Nomeadamente pela articulação entre organizações que têm que aplicar rigorosamente a lei (os tribunais), e outras nas quais se podem negociar soluções intermédias (ver fragmento em que se baseava o exame de 20 de Junho de 2006). (iv) Como se relaciona o sistema jurídico com outros sistemas? Por mecanismos de acoplamento estrutural: exemplos: a constituição entre direito e política; teorias entre direito e ciência. – (f) Algumas tendências recentes, interpretadas à luz desta conceptualização: (i) o direito talvez esteja a perder importância ao lado de outros sistemas funcionais, nomeadamente a economia. Nada prescreve uma ordem nas relações entre sistemas funcionais e estes podem evoluir de maneira a prejudicar o funcionamento de outros sistemas. (ii) As mudanças nas relações entre organizações e sistemas funcionais. Depois de uma fase histórica de equilíbrio (os organizações sustentam materialmente os sistemas funcionais; os sistemas funcionais fornecem as categorias semânticas requeridas para organizações poderem existir), assistir-se-ia a um progressivo predomínio das organizações. A relevância dada ao tema da “qualidade”, tipicamente um critério organizacional, poderia ser um indicador desta tendência. (iii) Mudanças nas relações entre consciências individuais e sistemas sociais. O direito, segundo Luhmann, teria uma importante função de acoplamento entre as consciências e as comunicações, através da noção de direito subjectivo (que funciona no discurso jurídico, e que pode corresponder a expectativas subjectivas). Luhmann observa indícios de um recuo na utilização da categoria dos direitos. Este recuo poderia implicar uma maior dificuldade em articular consciências individuais com o funcionamento das grandes organizações (a actualidade poderia confirmar esta hipóteses).

5 de Novembro (1)

Comentários ao primeiro teste. Em relação à pergunta 2, apresentação de um quadro sintetizando as periodizações adoptadas por Foucault (tabela 6)

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Tabela 6: História da

Loucura 1961

As palavras e as coisas 1966

Vigiar e Punir 1975

Redéf. Judiciable 1977

XIX-XX Doença mental

Reconstituir a ordem exige investigação

Indivíduo sujeito à coerção

Pluralidade dos poderes

Iluminismo Requalificar o cidadão

Liberdade -lei

Idade clássica

Desrazão (grand ren-fermement)

A Ordem resulta do discurso

Vencer o Inimigo

Poder esmagador

Idade média Animalidade / Manif. satánica / cósmica

A Ordem está nas coisas

Antiguidade clássica

Alta antiguidade

Em complemento às exposições sobre Luhmann, breve apresentação de Teubner (1944), autor que se inspira muito no Luhmann, e que publicou no ano 2012 Fragments of Constitution, uma obra analisando o desafio que representa a constitucionalização de uma sociedade funcionalmente diferenciada, desafio particularmente urgente nestes tempos de crise financeira. Habermas (cont.): Um problema que as sociedades modernas deve solucionar é o da relação entre sistemas e Lebenswelt. Numa primeira etapa, Habermas aborda-a, em vários locais na Teoria da Actividade Comunicacional à luz da tese da “colonização da Lebenswelt”: o domínio dos sistemas estender-se-ia progressivamente, enquanto diminuiria o âmbito onde podemos definir o sentido das nossas experiências. Este tese é ilustrada por Habermas pelos resultados de investigações de sociologia do direito, que observam a tendência em regulamentar cada vez mais domínios da actividade social, nomeadamente a família e o sistema educativo, por normas jurídicas: a chamada “juridicização” (ver o texto de Habermas dedicado a este tema). Numa segunda fase, interessa-se pela maneira como a Lebenswelt “cerca” os sistemas.

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5 de Novembro (2)

Habermas (cont.): Em Facticidade e validade aprofunda, em termos mais gerais, como se relacionam sistemas e Lebenswelt, reconhecendo ao direito um papel crucial : garantir a mediação entre sistemas e Lebenswelt; garantir a coexistência de grupos com formas de vida e experiências do mundo muito diferentes. Pretende identificar de que maneira o direito pode desempenhar estas funções. Em primeiro lugar, pode articular sistemas e Lebenswelt pelo facto de os procedimentos jurídicos formalizados (tomada de decisão administrativa; debate parlamentar) terem lugar sempre no contexto de debates espontâneos. Em virtude desta característica dos procedimentos jurídicos, o direito funciona como um conjunto de “comportas” pelas quais os temas interessando o público podem ser canalizados para as arenas de debate formalizado. – O direito situa-se entre Lebenswelt e sistemas. Com efeito, a sua prática consiste simultaneamente em participar em processos formalizados e em discutir de maneira criativa princípios gerais; o direito participa na formação dos sistemas (direito-medium) e no reforço das condições que permitem uma comunicação na qual os vários interlocutores podem contribuir para a invenção de projectos e significados novos; o direito pode facilitar a expressão de aspirações, do lado da Lebenswelt e a identificação, do lado dos sistemas, dos meios que poderão concretizar estas aspirações. O direito que reúne estas características pode contribuir para a articulação entre Lebenswelt e sistemas, mas em contrapartida, apenas conseguiu alcançar estas características tornando-se mais profissional, sendo por isso mais difícil entender pelo não especialista. Fenómenos semelhantes se verificam com a ciência e com a arte, o que Habermas pôde observar de perto ao passar da posição do cientista à posição de interveniente num debate de política do direito. Nestas condições, o direito poderá contribuir para a integração das sociedades modernas, na condição de ser praticado de acordo com uma determinada concepção. Habermas considera que se podem distinguir hoje três concepções do direito que chama paradigmas: o paradigma formalista, o paradigma providencialista e o paradigma processualista. Habermas procura valorizar o paradigma processualista, que consiste em praticar o direito com particular atenção à noção que os não juristas têm do direito e dos seus direitos, e à efectiva participação das pessoas nos processos que lhes dizem respeito. – Intervenções públicas desde os anos 1990, publicadas nas Kleine politische Schriften. (1) Aplicando a TAC, Habermas preconiza a reunificação da Alemanha pela via da elaboração de uma nova constituição, que cria as condições para um procedimento no qual os Alemães poderão desenvolver uma experiência comum da reunificação. Afinal optou-se pela outra solução: manter o Grundgesetz, os Länder da RDA aderindo a este. O debate não teve lugar. A integração entre as duas partes da Alemanha continua a ser, hoje ainda, um tema sensível. (2) Em 2003, depois da segunda guerra do Iraque, interroga-se sobre as consequências do facto de os Estados Unidos terem actuado sem ter procurado alcançar um entendimento com a comunidade internacional no âmbito do Conselho de Segurança. (3) Trabalhos mais recentes do Habermas incidem no direito internacional. Trata-se dos três textos seguintes: HABERMAS, Jürgen (2004), « Hat die Konstitutionalisierung des Völkerrechts noch eine

Chance ? » [Ainda haverá alguma hipótese de constitucionalização do direito dos povos?], in : Der gespaltene Westen [O Ocidente divido] (2004), pp. 113-193.

– (2005), « Eine politische Verfassung für die pluralistische Weltgesellschaft ? » [Uma constituição política para uma sociedade-mundo pluralista?], Neue Zürcher

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Zeitung, 11-12 décembre 2004, rééd. in: ID., Zwischen Naturalismus und Religion [Entre o naturalismo e a religião], Francfort, Suhrkamp, pp. 324-365.

– (2011), “Transformação da comunidade internacional em comunidade cosmopolita”, cap. III de Um ensaio sobre a constituição da Europa.

Os dois primeiros textos foram elaborados em relação a um processo de reflexão sobre possíveis reformas das Nações Unidas, processo no qual a Alemanha tinha interesse em participar activamente, na perspectiva de um reforço da sua posição institucional. Considera que uma ordem mundial deveria desenvolver-se paralelamente em três planos. (i) Num primeiro plano, deve haver normas de garantia dos direitos humanos básicos e de prevenção dos conflitos armados; estas normas gozam de uma legitimidade suficiente, manifestada pelas reacções da opinião pública às notícias sobre violações graves dos direitos humanos e podem, logo, ser sancionadas eventualmente por meios militares. A organização que assumiria esta função poderia ser a Organização das Nações Unidas, que se deveria concentrar nestas questões, apoiando-se em órgãos onde estariam representados tanto os Estados como os cidadãos. (ii) Num segundo plano, deveriam instituir-se arenas de negociação mundial das grandes opções de desenvolvimento económico, social e ecológico; nestas arenas, deveriam confrontar-se grandes actores da política internacional, isto é: as superpotências actuais assim como blocos de países que deveriam alcançar uma maior capacidade de acção internacional, nomeadamente a Europa. (iii) O terceiro plano é o da formação destes blocos de países, pelo facto de os países que os compõem se experienciarem, tanto ao nível dos governos como ao nível dos cidadãos, como componentes destes blocos regionais, isto é, entidades dotadas de uma coerência interna, e assumindo um determinado papel no plano mundial. O que está em jogo a nível nacional é que os cidadãos adquiram a noção de que a sua participação política no plano nacional tem implicações nos planos regionais e mundiais. Uma das questões mais importantes para o futuro da Europa é desenvolver esta noção entre os cidadãos de todos os Estados-membros da UE. Era esse um motivo central na conferência de 28 de Outubro.

12 de Novembro (1)

Em complemento à apresentação de Habermas, breve introdução à obra de Axel Honneth. Este autor foi assistente de Habermas (publicou com Hans Joas uma recolha de textos de discussão crítica da teoria da actividade comunicacional: Communicative Action, Cambridge, Polity Press, 1991, trad. do alem. ) e é, desde 2001 director do Institut für Sozialforschung, a chamada “Escola de Frankfurt”. Desenvolveu uma teoria do reconhecimento que esteve na origem de uma das mais importantes discussões sobre a justiça social travada recentemente no plano internacional: ver Nancy Fraser / Axel Honneth, Redistribution and Recognition, Londres, Verso, 2003. Apresentação sumária da teoria de Axel Honneth. Duas etapas principais. Primeiro ensaio, fundamentalmente de teoria da sociedade (procurando responder à pergunta: como evolui a sociedade?), A luta pela reconhecimento (1992). Inspirado em Hegel, Honneth sustenta que as reivindicações de reconhecimento se manifestaram em três esferas distintas: o amor (onde uma pessoa pode ser reconhecida como tendo determinadas necessidades); o direito (onde uma pessoa pode ser reconhecida como

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tendo um estatuto igual a outras pessoas); a solidariedade (a divisão do trabalho social, onde uma pessoa é reconhecida pela sua contribuição específica à actividade colectiva). Segundo ensaio, mais de filosofia política (procurando responder à pergunta: como deveria ser concebida uma sociedade justa?), O direito da liberdade. Toma como ponto de partida a noção de liberdade, considerando o consenso que se estabeleceu nestes últimos anos à volta deste valor. As perguntas, nessa base, são: em que consiste à liberdade? como poderá ser garantida? Podem distinguir-se três noções de liberdade: a liberdade como ausência de constrangimento (liberdade negativa / jurídica); a liberdade de agir segundo uma vontade própria (liberdade reflexiva); a liberdade de poder agir numa colectividade, o que requer entendimentos e práticas de coordenação entre as acções de uns e outros (liberdade social). Enquanto as duas primeiras são condições de possibilidade de uma plena liberdade, a terceira é condição da sua concretização. Na medida em que existe na actualidade, é porque se desenvolveu concretamente, através de lutas, em três sistemas de acção: a intimidade (lutas das mulheres, dos mais novos, dos mais velhos, pela liberdade de orientação sexual, etc.); a actividade económica (lutas dos trabalhadores); os processos de formação democrática de vontade politica, sendo que neste domínio se lutou pela consagração, através da confrontação de actores políticos e de pessoas enquanto cidadãos, dos direitos conquistados nos outros sistemas de acção. – Um problema na actualidade é que já nos é difícil experienciar confrontações efectivas de projectos individuais e societais na perspectiva do seu reconhecimento político efectivo, porque as decisões são tomadas em crescente medida fora do alcance directo dos debates políticos nacionais. Segundo Honneth, seria indispensável formarem-se espaços públicos supra-nacionais para voltarmos a este tipo de experiência da liberdade social. – Sobre o Pierre Bourdieu em geral: Actualidade: publicação recente das aulas sobre o Estado (Sur l’État, Paris, Seuil / Raison d’Agir, 2012) proferidas no Collège de France. O seu lugar na cronologia geral apresentada no início do semestre: trabalhou muito na base das obras dos clássicos Durkheim e Weber. Contribuiu para a recepção em França de Goffman, sociólogo americano que se afastava do funcionalismo de Talcott Parsons. Apareceu – e apresentou-se – de alguma forma como um sucessor de Michel Foucault. Colaborou com Habermas em esforços em criar um espaço intelectual europeu. Manifestou nalgumas ocasiões uma nítida hostilidade a Luhmann, preocupado em marcar diferenças entre as suas propostas teóricas e as de Luhmann.

12 de Novembro (2)

Bourdieu – Percurso: (i) investigações sobre meios sociais desfavorecidos (os Kabilos na Argélia; as classes populares e população rural em França). Com a vontade de fazer melhor reconhecer estes meios sociais e as suas diferenças em relação à elite francesa instalada em Paris. (ii) Progressivo reforço dos meios organizados de investigação: retoma a direcção de um centro de investigação, publica um manual de sociologia, lança uma revista, concorre para uma cátedra no Collège de France. Consegue desta maneira formar uma equipa de investigação bem formada e dotada de importantes meios materiais. (iii) Tendo conseguido entrar no Collège de France, manifesta uma grande preocupação em não se deixar condicionar intelectualmente pelo facto de ter alcançado esta posição. Neste sentido, empreende vários trabalhos de investigação agora sobre as elites e sobre os meios sociais onde actuam os que dominam a sociedade francesa: os

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técnicos superiores da função pública, a cultura, a economia, etc. (as duas etapas seguintes serão tratadas na próxima aula). (iv) Na realização de uma investigação sobre a formação de um novo mercado – o mercado da habitação: os franceses são incentivados em comprar e fazer construir casas próprias –, constata os efeitos do endividamento, da desertificação do espaço público, e da degradação das zonas progressivamente abandonadas pelas classes médias, e, mais geralmente, a aparição de novas formas de pobreza. Considerando que o debate publico deste tema não é bem conduzido pela comunicação social, lança um livro destinado a ter uma grande divulgação e a alterar as condições deste debate: não um livro de investigação, mas uma recolha de entrevistas de pessoas que vivem situações de precariedade: La misère du monde (1993). Grande êxito deste livro. Bourdieu aparece agora como um autor político. De notar, em relação à actualidade, que foram políticas análogas de promoção da aquisição de habitação em propriedade própria que estiveram na origem da “bulha” imobiliária que rebentou nos Estados unidos da América em 2008, desencadeando os processos financeiros e políticos que conduziram à crise actual. Confirma-se a pertinência da constatação de Pierre Bourdieu: vale a pena acompanhar as consequências das decisões políticas no muito longo prazo. (v) Últimos anos: por um lado mais intervenções políticas. Por outro lado, livros nos quais procura dar mais coerência ao seu trabalho teórico (em particular as Meditações pascalianas). Neste sentido, ver a contracapa das Meditações pascalianas:

Procedimentos de trabalho: privilegia a recolha de dados empíricos. Para este efeito (a) grandes esforços em organizar metodicamente o seu dispositivo de trabalho (revista; centro de investigação); (b) desenvolve conceitos destinados em primeira linha a orientar o trabalho de observação. (3) Elementos da teoria da sociedade de Pierre Bourdieu. Principalmente dois conceitos: (a) O Habitus: uma maneira de entender a realidade social sem dar uma importância excessiva à subjectividade individual. Actuamos de uma certa forma porque adquirimos reflexos, disposições. Estes reflexos e disposições, por um lado, são adquiridos porque existem dispositivos que favorecem a sua interiorização (família, escola, outros dispositivos de aprendizagem) e mantém-se porque têm uma certa eficácia social (as nossas atitudes são intelegíveis para os outros, o que facilita a interacção). Ao mesmo tempo, a facilidade com a qual as conseguimos reproduzir e a sua eficácia na interacção permitem-nos actuar de maneira eficaz. Ou seja: o habitus simultaneamente condiciona-nos e dá-nos meios de acção. Conceito desenvolvido em particular quando Bourdieu observa as actividades de pessoas que não beneficiaram de uma formação intelectual avançada. (b) Os campos: Bourdieu verifica que existem domínios de actividade diferenciados, e que se diferenciam pelo facto de se travar uma luta, na qual se envolvem pessoas que ocupam posições diferentes, luta essa pela qual se vai definindo progressivamente um objecto (o que está “em jogo” na luta), e pela qual este objecto adquire uma certa relevância social (o que merece que haja luta deve ter um certo valor, na perspectiva dos combatentes como na perspectiva de pessoas

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exteriores). À medida que esta importância é reconhecida, torna-se também mais importante definir quem pode participar na luta: desenvolvem-se então mecanismos de “filtragem” no acesso ao campo, garantindo que entrem no campo apenas os que adquiriram o Habitus adequado as lutas que deverão ser travadas. Exemplos de campos, entre muitos outros, onde Bourdieu e os seus assistentes observam estes mecanismos de importância de um fenómeno conferida pelas lutas às quais dá lugar: a moda, a banda desenhada (na época: a luta entre Tintin e Pilote, jornal onde se publicava Asterix). Conceito desenvolvido precisamente na fase em que Bourdieu estava a posicionar-se de maneira polémica face a outros autores franceses em sociologia, abordando a sociologia como um campo, que teria tudo a ganhar das lutas travadas entre autores. Existe aliás um documentário sobre Bourdieu intitulado “A sociologia, um desporto de combate” (pode ser visionado na internet: http://www.youtube.com/watch?v=nbJFMNmBwro). – (c) Combinando os conceitos de habitus e de campo: a teoria da razão escolástica. Três passos de raciocínio: (i) Temos hoje em dia a possibilidade de olhar para as coisas de uma maneira que podemos qualificar de objectiva. Isto não é mérito tanto das pessoas, mas sim de um “habitus” que as pessoas adquiriram; e este habitus foi adquirido ao entrar e ao manter-se num determinado campo. Exemplo: os cientistas produzem um trabalho que outros poderão considerar como objectivo porque estão em competição uns com os outros, cada um procurando aparecer como mais objectivo que o outro. (ii) Esta razão escolástica tem virtualidades, nomeadamente porque nos permite formular apreciações valorativas baseadas em critérios que procuram ser universais. Mas levanta um problema: afasta-nos da prática. (iii) Deve portanto lutar-se contra esta tendência, e isto, também, por “combates”, nomeadamente entre cientistas e não cientistas (militantes políticos, pessoas directamente afectadas por determinados problemas etc.), isto é, também, pela formação de campos específicos, onde se poderá criar um “habitus” que possa compensar, nalguma medida, os efeitos da razão escolástica. [Nota: são inseridos em documento separado elementos de análise do texto que foi analisado no âmbito do primeiro teste.]