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Teatro Nacional São João - tnsj.pt Noite de Guerra no Museu do... · reflexos de ouro. De costas, ... sala à outra, e sentir aquela dor sem nome do Museu vazio. ... no pátio da

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Teatro Nacional São João25 abril – 18 maio 2014

tradução Mário Barradas 

cenografia e figurinos Marta Carreiras desenho de luz José Carlos Nascimento música/sonoplastia Rui Rebelo multimédia Aurélio Vasques execução de guarda ‑roupa e acessórios Maria Gonzagaadereços Teresa Varelaassistência de encenação Anna Eremin, Elsa Valentimapoio ao movimento Natasha Tchitcherovainvestigação/apoio à dramaturgia Teresa Gonçalves 

interpretação Adriana Moniz Velha IAnna Eremin Estudante; S. GabrielCarlos Malvarez Toureiro; Anão; Decapitado; BurroElsa Valentim Velha IIJorge Silva Autor; Maneta; S. MiguelJosé Peixoto Frade; BodeMiguel Raposo Cego; Miliciano INuno Nunes Fuzilado; Adónis; Miliciano IIPatrícia André Maja; VénusRui M. Silva Amolador; Rei; Marte; Velha III

coprodução Teatro dos Aloés, TNSJ

estreia 19Mar2014 Recreios da Amadoradur. aprox. 1:45 M/12 anos

qua‑sáb 21:30 dom 16:00

NoChE DE GuERRA EN El MuSEo DEl PRADo (AGuAFuERTE, EN uN PRóloGo y uN ACTo), 1956 de Rafael albeRti

encenAção José Peixoto

o TnSJ É MeMBRo dA

NOITE DE GUERRA NO MUSEU DO PRADOÁgua ‑forte, em um Prólogo e um Ato

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Tempos Sombrios

Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui ‑me porque faço parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.John Donne(Citado por Ernest Hemingway em Por Quem os Sinos Dobram)

Noite de Guerra no Museu do Prado (Água ‑forte, em um Prólogo e um Acto) é a homenagem de Rafael Alberti, cheia de reconhecimento e gratidão, às mulheres e aos homens que, vivendo em tempos sombrios, encontraram a força, a coragem, a generosidade e a energia para lutar pelos altos valores da liberdade, da justiça, da fraternidade, da democracia até ao sacrifício da própria vida.

JoSÉ PeixoTo

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É a memória e a evocação de um exilado que, vinte anos depois, revive a sua participação no salvamento das obras do Museu do Prado dos ataques fascistas do levantamento de 18 de Julho contra a República eleita democraticamente.

Mas a memória do cerco e da resistência do povo de Madrid de 1936 conduz‑‑nos rapidamente a equivalente situação de luta contra as tropas francesas em 1808, que Goya tão fortemente registou. E enquanto os milicianos da República levantam barricadas e transportam os quadros para as caves, as figuras dessas obras saem das pinturas para se juntarem generosamente aos resistentes, partilhando dos seus anseios, do seu ardor combativo, do seu humor, da sua coragem. Cruzam ‑se memórias e realidades, mas é sempre o mesmo povo que enfrenta as tropas e que continuará a maior força na luta pela liberdade e pela transformação do mundo.

O nosso espectáculo pretende ser também uma homenagem aos que em Portugal lutaram durante 48 anos contra o fascismo, ao povo que saiu à rua para se juntar ao Movimento das Forças Armadas e ao próprio MFA, que nos devolveram a Liberdade e nos permitiram a Democracia. Queremos homenagear também o Movimento do Teatro Independente, que lutou para que o teatro pudesse ser livre, também uma arma contra o fascismo e pela Democracia.

Pessoalmente, não poderei deixar de evocar Mário Barradas, meu Mestre, que continuamente lutou pela transformação da realidade teatral no nosso país, e primeiro encenador deste texto em Portugal. De igual modo quero manifestar a minha gratidão aos Bonecreiros, minha porta de entrada para o teatro profissional, que nunca se cansaram de lutar pela liberdade. E a minha homenagem vai também para os meus companheiros de trabalho, os que encontrei quando me iniciei, que me guiaram e me ajudaram nesta difícil profissão, mas também aos de hoje, que continuam essa mesma luta.

O nosso espectáculo pretende ser ainda um exorcismo contra a guerra, um alerta contra os inimigos que estão outra vez à nossa porta, que querem destruir a sociedade que construímos, a Constituição que Abril nos legou, para que não voltemos mais aos tempos obscuros dos senhores da opressão.

E nestes 40 anos de Abril apetece ‑me gritar bem alto: “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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Num entardecer de novembro de 1936 fui ao Museu do Prado.Geralmente, antes da guerra, fosse primavera, inverno, outono ou verão,

só o visitava de manhã. Das dez à uma. Quase nunca depois do almoço. Conservava dos quadros, das obras ‑primas da nossa pintura, uma lembrança como que de tanque soalheiro, de água funda à plena luz, de espelho. Conhecia as salas de memória, a antiga ordem das obras, bem como a mais recente, posterior às últimas reformas do Museu. Sem semicerrar os olhos, como um aluno que trauteia a tabuada, posso ainda repetir de cor a disposição dos quadros de Goya, Velasquez, El Greco, Rafael, Ticiano, Tintoretto… É possível que me engane nos Rubens, ou que confunda algumas telas do piso térreo com as dos corredores que conduzem às escadas. Até hoje tive o orgulho – talvez tolo – de conhecer o Museu tão bem como o poema que costumava recitar nos comícios, ou como as páginas do meu último livro. Até hoje…

Naquela tarde, fizeram ‑me entrar por uma porta que nunca tinha visto ou pela qual jamais imaginara poder entrar. Uma lanterna de mineiro lançava um círculo de luz sobre os degraus de uma dessas escadas sinistras que descem a uma cave ou às masmorras mais profundas.

– É Alberti – disse uma voz.– E a sua companheira.Ia comigo María Teresa León. Pouco a pouco, dois milicianos foram ganhando

forma na obscuridade. Saímos para um pátio. O mais velho usava um gorro cinzento com uma estrela vermelha. Pistola à cintura. O mais jovem tinha uma boina quadrada e as mãos enfiadas nos bolsos de um casacão cor de cinza.

– Venham por aqui, camaradas.Outra escadaria umbrosa levou ‑nos a um átrio circular, onde tropecei de

imediato na ponta de qualquer coisa.A lanterna de mineiro iluminou uma pesada moldura cujo rebordo emitia

reflexos de ouro. De costas, uns sobre os outros, foram surgindo os quadros, apoiados contra as paredes em largas filas. Ao acaso, como quem abre um livro, fiz incidir a luz entre duas telas. Uma era A Imperatriz de Portugal, de Ticiano; a outra não se conseguia ver. Um calafrio percorreu ‑me a espinha ao ir adivinhando, ao ver surgir daquela penumbra fria, amontoados, mas com essa ordem especial que a pressa lhes conferira, quatro séculos – os maiores, sem dúvida – da pintura universal.

Prosseguimos.Todo o Museu do Prado tinha descido às caves para se proteger dos bárbaros

e incultos trimotores alemães. As janelas baixas tinham sido tapadas pelo lado

A minha última visita ao Museu do PradoRAfAel AlBeRTi*

* El Mono Azul, n.º 18,

Madrid, 3 de maio de

1937.

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de dentro com chapas metálicas e sacos de terra. Pelo lado de fora não tinham vidraças. Mais de cinco mil quadros, entre os quais centenas de obras ‑primas, acumulavam ‑se ali, como que mortos de medo, ombro com ombro, trémulos no seu refúgio. Arregalei os olhos ao pensar nas salas desertas, na imensa galeria central despovoada. Quis subir, quis vê ‑las, presenciar o espetáculo terrível, único, insuspeitado, de uma das maiores pinacotecas do mundo de paredes subitamente despidas, paredes que tantas maravilhas tinham sustido. Poucos homens, poucas pessoas de Madrid, uma cidade quase sitiada, poderiam viver tal experiência, percorrer os pisos de ponta a ponta, de uma sala à outra, e sentir aquela dor sem nome do Museu vazio.

Subimos outra escada, misteriosa, desconhecida.No átrio da entrada, antes da grande galeria, erguia ‑se um imenso andaime,

uma despojada armação de madeira que subia até à cúpula. Entre as traves e as vigas entrecruzadas que compunham aquela construção improvisada, via ‑se a estátua em bronze do imperador Carlos V com Francisco I acorrentado a seus pés. Era o grupo escultórico de Leone Leoni. Através da cúpula de vidro, o céu escurecia. Uma bomba incendiária atravessara ‑a, estilhaçando ‑a.

– As madeiras começaram a arder – disse o miliciano mais velho. – Mas este e eu conseguimos apagar as chamas.

Prosseguimos.A longa galeria central, mais interminável do que nunca, lembrava uma

rua depois de uma batalha. Erguiam ‑se, ao centro, duas imensas barricadas; defendiam, ocultas sob elas, as duas mesas de pedra sustentadas por leões, um presente do papa Pio V ao infante D. João de Áustria. A madeira do soalho, cujo odor a cera misturado com o do verniz dos quadros me tinha perfumado tantas manhãs inesquecíveis, estava agora escondida sob uma espessa camada de terra juncada de cacos de vidro. Fazia frio. As claraboias do teto, pelas quais costumava descer, uniforme, uma suave luz zenital, também estavam partidas. Como janelas cegas, as silhuetas dos quadros desaparecidos marcavam as paredes. Com o olhar, à medida que avançava, fui evocando os títulos: aqui, a Visão de São Pedro de Alcântara, de Zurbarán; em frente, o São Bartolomeu, de Ribera; mais além, As Fontes de Aranjuez, de Juan Bautista M. del Mazo; a seguir, os Murillos, os Herreras… Vi as goteiras de zinco que escoam as águas da chuva esburacadas pelas bombas lançadas no intuito de incendiar os Goyas, os Velasquez, os El Grecos… Trinta e quatro fogueiras rodeavam o edifício, cercando ‑o de luz a meio da noite. Desse modo não haveria erros de pontaria. Os aviões de Hitler tinham consciência da sua missão; sabiam perfeitamente que ali não havia soldados ou paióis a mandar pelos ares. Uma grande bomba de duzentos quilos caiu no meio do passeio, abrindo uma cratera de mais de dez metros de diâmetro. Desde a fonte de Neptuno até à praça de Atocha explodiram em cacos as vidraças das casas. Uma das belas fontes de taça junto ao Jardim Botânico, em frente à estátua de Murillo, rolou pelo asfalto, desfazendo ‑se em mil bocados. O céu ia ‑se toldando, funesto, manchado ao longe pelas altas plumas de fumo que se desprendiam dos bairros bombardeados. Algumas estrelas, surgindo timidamente entre os telhados e as torres, anunciavam ‑nos a eminente visita noturna dos aviões.

Descemos de novo à cave. Na sala de restauro esperava ‑nos o subdiretor do Museu. Diante dos milicianos e de vários carpinteiros e outros trabalhadores dissemos ‑lhe, mostrando ‑lhe a ordem escrita:

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– O Ministério da Instrução Pública e das Belas Artes autoriza María Teresa León a evacuar de imediato, com o seu acordo, as obras que sejam mais importantes e cujo estado de conservação o permita.

O rosto dos milicianos iluminou ‑se de alegria.Quanto mais cedo as obras saíssem de Madrid, mais descansados ficariam

todos, e com mais alento para escutarem com menor sobressalto o zumbido diário dos motores inimigos.

Dois dias depois daquela visita ao Museu do Prado, no pátio da nossa Aliança de Intelectuais Antifascistas, dormiram até às três da madrugada As Meninas de Velasquez e o Retrato Equestre de Carlos V de Ticiano. Os dois enormes caixotes, fixos com barrotes de ferro aos lados do camião que deveria transportá ‑los, e fortemente unidos um ao outro com traves de madeira entrecruzadas, davam forma a um alto e estranho monumento, que teve de ser coberto com grandes lonas para proteger os quadros da humidade e da chuva.

Milicianos armados do 5.º Regimento chegaram à meia ‑noite, de automóvel, para escoltarem a expedição. Dois motoristas da coluna motorizada voluntariaram ‑se para vigiar a estrada e ir abrindo caminho à histórica marcha.

– Camaradas! – dissemos ‑lhes momentos antes da partida, no meio da mais completa escuridão. – O Governo da República e o seu Ministério da Instrução Pública e das Belas Artes confia m‑vos esta noite duas das mais valiosas obras‑‑primas do nosso tesouro nacional. Os defensores de Madrid defendem o seu Museu. Amanhã, o mundo inteiro saudar ‑vos ‑á como os verdadeiros salvadores da cultura.

Os veículos arrancaram. Segundos depois, aqueles motoristas, aqueles jovens milicianos que talvez nem soubessem ler, na escuridão, a coberto da névoa, transidos de frio, saíam lentamente de Madrid em direção a Leste…

Quanto a mim, depois da evacuação de As Meninas, não quis voltar ao Museu do Prado.

Tradução Rui Pires Cabral.

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Alberti – 1936 ‑39

Num entardecer de Novembro de 1936 fui ao Museu do Prado.[…] Pouco a pouco, dois milicianos foram ganhando forma na obscuridade. […] A lanterna de mineiro iluminou uma pesada moldura cujo rebordo emitia reflexos de ouro. De costas, uns sobre os outros, foram surgindo os quadros, apoiados contra as paredes em largas filas. […] Todo o Museu do Prado tinha descido às caves para se proteger dos bárbaros e incultos trimotores alemães. As janelas baixas tinham sido tapadas pelo lado de dentro com chapas metálicas e sacos de terra. Pelo lado de fora não tinham vidraças. Mais de cinco mil quadros, entre os quais centenas de obras‑‑primas, acumulavam ‑se ali, como que mortos de medo, ombro com ombro, trémulos no seu refúgio. Arregalei os olhos ao pensar nas salas desertas, na imensa galeria central despovoada. Quis subir, quis vê ‑las, presenciar o espectáculo terrível, único, insuspeitado, de uma das maiores pinacotecas do mundo de paredes subitamente despidas, paredes que tantas maravilhas tinham sustido. […]A longa galeria central, mais interminável do que nunca, lembrava uma rua depois de uma batalha. Erguiam ‑se, ao centro, duas imensas barricadas; defendiam, ocultas sob elas, as duas mesas de pedra sustentadas por leões, um presente do papa Pio V ao infante D. João de Áustria. A madeira do soalho, cujo odor a cera misturado com o do verniz dos quadros me tinha perfumado tantas manhãs inesquecíveis, estava agora escondida sob uma espessa camada de terra juncada de cacos de vidro. Fazia frio. […]

Começo por estes excertos do texto que Rafael Alberti publicou no n.º 18, de 3 de Maio de 1937, da Revista El Mono Azul: “A minha última visita ao Museu do Prado”. O poeta é, desde o início da Guerra Civil em Julho de 1936, animador

luíS VARelA*

* Encenador

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e activista na frente cultural do “bando republicano”, o governo legítimo da República Espanhola instaurada em 1931 que faz frente ao “bando sublevado”, os golpistas militares monárquicos e fascistas liderados por Franco. Das muitas tarefas que incumbiram a Alberti na Madrid cercada dos anos 36 ‑37 interessa aqui destacar a operação de protecção, salvamento e resgate das obras mais valiosas do Museu do Prado, perigosamente expostas aos ataques e bombardeamentos aéreos dos falangistas de Franco apoiados pela aviação de Hitler, em que participou com a sua companheira María Teresa León. A missão de ambos era seleccionar as mais valiosas obras do fundo do museu, que haviam de ser poucos dias depois retiradas de Madrid e transportadas para uma zona de Espanha menos fustigada pelo fogo dos golpistas e depois para França.

Quanto a mim, depois da evacuação de As Meninas, não quis voltar ao Museu do Prado.

Nesses anos do cerco de Madrid, Rafael Alberti – poeta andaluz já consagrado em 1925 com o Prémio Nacional de Literatura pela seu primeiro livro Marinero en tierra, amigo e companheiro de Federico García Lorca, fundador com ele, Pedro Salinas e outros do grupo que viria a ser conhecido por “la Generacíon del 27” – desdobra ‑se em recitais de poesia pelas fábricas e oficinas, pelas frentes de combate, pelas barricadas, incitando operários e milicianos a baterem ‑se pela liberdade e a República contra a ameaça fascista.

E escreve e faz representar teatro. Não o teatro de raiz e inspiração rural e popular como tinham sido as primeiras tentativas a partir de 1924 (Ardiente y fria, madrigal dramático, e La novia del marinero são referidas em Marinero en tierra como obras teatrais em preparação), nem o teatro de inspiração vicentina, calderoniana e bíblica como El hombre deshabitado (1929), a sua primeira grande peça levada a cena. Não. Nestes tempos de guerra, de resistência, Alberti escreve teatro de urgência, escreve Radio Sevilla. E no centro de Radio Sevilla a paródia das arengas radiofónicas de Queipo de Llano:

[…]o “speaker”:Atenção! Rádio Sevilha.Queipo de Llano é quem ladra,quem muge, quem escarra,quem zurra, a quatro patasRádio Sevilha!

queipo:(Depois de tossir, com voz de bagaço.)Senhores!Aqui um salvador de Espanha.Viva o vinho! Viva o vómito!Esta noite bebo Málaga.(Bebe um copo.)Segunda bebi Jerez;(Bebe outro.)

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terça, Montilla e Cazalla,(Outro.)quarta, Chinchón, e na quinta,bêbado, todas as cavalariçasde Madrid, todas as estrebarias,afofando os bonicos,me darão, pela manhã,o seu macio leito […]

Num registo bem diferente, mas movido também pela urgência da acção artística, escreverá Alberti em 1938 uma Cantata de los héroes y la fraternidad de los pueblos para ser recitada em Madrid, no dia 20 de Novembro, num sarau de adeus e de homenagem aos voluntários estrangeiros, as Brigadas Internacionais que combateram ao lado da República contra Franco, organizado pela Aliança dos Intelectuais Antifascistas e dirigido por María Teresa León.

Na sequência da vitória do “bando sublevado” em 1939, Alberti e María Teresa León tomam o caminho do exílio, primeiro em França, depois Chile e Argentina, mais tarde Roma.

Brecht – 1937

Fugido ao nazismo desde o fim de Fevereiro de 1933, exilado na Dinamarca, Bertolt Brecht viaja no Verão de 1937 até Paris para participar no Congresso Internacional dos Escritores, cujo tema principal é a Guerra Civil de Espanha e o envolvimento dos intelectuais antifascistas nessa causa. Com ele viajam Karin Michaelis, sua anfitriã na Dinamarca, e a jovem actriz dinamarquesa Ruth Berlau. Muitos tomam a decisão de integrar as Brigadas Internacionais e juntar ‑se à frente de combate ao lado dos republicanos. É essa a decisão de Ruth Berlau. Brecht não é dos que pegariam em armas para ir combater na frente. Escreve um curto poema de amor e inquietação que a sua amante há ‑de ler “ao acordar e ao deitar”.

Para ler ao acordar e ao deitar

Aquele que eu amoDisse ‑meQue precisa de mim.

É por isso queTenho cuidadoReparo onde ponho o péTenho medo dos pingos da chuvaNão vá algum atingir ‑me.1

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E escreve, para ser rapidamente ensaiada e estreada em Paris numa encenação de Slatan Dudow, uma peça de teatro que a sua mulher, Helene Weigel, e outros profissionais e amadores de teatro no exílio hão ‑de representar em acções de solidariedade e mobilização para o apoio à causa legítima da República Espanhola: As Espingardas da Senhora Carrar.

Nesta peça simples em um acto, escrita em palimpsesto sobre Cavalgada Para o Mar de J.M. Synge, está em debate o princípio da neutralidade, a recusa da tomada de partido, na guerra que opõe a República aos militares golpistas. A acção decorre numa aldeia de pescadores na Andaluzia. O fundo sonoro permanente da acção é o ribombar dos canhões ao longe. Logo no início da peça ouve ‑se na telefonia dos vizinhos um discurso do general Queipo de Llano, transmitido a partir de Rádio Sevilha.

[…] Ouve ‑se ao longe um comunicado da rádio: “Atenção, atenção! Aqui fala o Excelentíssimo Senhor General Queipo de Llano!” Depois ouve ‑se alto e claramente através da noite a voz do General, na rádio, que faz o seu discurso nocturno ao povo espanhol.voz do general: Um dia destes, meus amigos, teremos de vos falar a sério. E será de Madrid que o faremos, embora aquilo que tenhamos então à nossa volta já não se pareça nada com Madrid. […]2

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(em pano de fundo) Picasso – 1937

26 de Abril de 1937. Aviões alemães bombardeiam a simbólica vila basca de Guernica. Massacre. Um dos muitos desastres da guerra.

Menos de uma semana depois, Pablo Picasso, a residir em Paris, inicia o quadro que será o símbolo da Guerra Civil de Espanha: Guernica. Demorará pouco mais de um mês a concluí ‑lo. Adquirido pelo Governo da República, o quadro será exposto no Pavilhão da República Espanhola da Exposição Internacional de Paris de 1937.

Alberti ‑Brecht – 1955 ‑56

(do lado de Alberti)Nos primeiros vinte anos de exílio, Alberti tinha ‑se confirmado como um grande poeta da língua espanhola. Tinha publicado poesia com regularidade: em 1941 Entre el clavel y la espada, Pleamar em 1944, A la pintura em 1948, Coplas de Juan Panadero em 1949, Retornos de lo vivo lejano em 1952, Baladas y canciones del Paraná, em 1953…

A produção teatral de Alberti no exílio foi mais escassa. De 1939 a 1955, seis peças, das quais apenas três estritamente originais: El Adefesio (Fábula del amor y las viejas, en tres Actos) em 1944, La Gallarda (Tragedia de vaqueros y toros bravos,

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en un Prólogo e tres Actos) em 1944 ‑45 e Un tema peligroso (Breve suceso de nuestra época en dos cuadros) em 1954. São conhecidas duas encenações de peças de Alberti durante este período e no espaço curto de dois anos (1943 ‑44) pela companhia da encenadora e actriz catalã Margarita Xirgu, exilada também na Argentina.

1955. À aproximação da efeméride dos vinte anos do início da Guerra Civil de Espanha, Alberti escreveu Noche de guerra en el Prado. Começaria assim, quase decalcando passos do texto de 1937 “A minha última visita ao Museu do Prado”:

Cenário único: Sala grande, central, no Museu do Prado, completamente vazia. Marcados nas paredes, de diferentes tamanhos, vêem ‑se os vestígios dos quadros, que já foram retirados para as caves. O sobrado está coberto de areia. Aqui e além, espalhados, sacos de terra. Meio coberta por estes, uma grande mesa do século XVI. É uma noite de guerra em Madrid, durante os dias mais graves de Novembro do ano de 1936. Ao abrir o pano não se adivinha nada do que está em cena. Ouvem ‑se tiros de canhão, ao longe. De uma porta do fundo, no escuro, avançam duas lanternas de luz amarelada…

(do lado de Brecht)No Berliner Ensemble, fundado em 1949, Brecht tinha assegurado a direcção artística da encenação de Egon Monk de As Espingardas da Senhora Carrar em 1952. No ano seguinte, tinha sido difundida na televisão pública da RDA uma versão dessa encenação especialmente gravada para o efeito.

Brecht tinha a intenção de repor a peça na programação do Berliner Ensemble em 1956 para assinalar os vinte anos do início da Guerra Civil. Procurava uma segunda obra sobre a Guerra Civil para completar o programa.

(o encontro)Alberti deslocou ‑se a Berlim em Janeiro de 1956 para assistir ao Congresso dos Escritores Alemães. Foi o momento para um encontro com Brecht.3 Brecht e Helene Weigel receberam Alberti, María Teresa León e Erich Arendt, futuro tradutor da peça. Desse encontro saía a possibilidade de Noche de guerra en el Prado integrar o espectáculo que o Berliner Ensemble previa para Novembro desse ano, depois da introdução de algumas alterações sugeridas por Brecht: desde logo a mudança do título para Noche de guerra en el Museo del Prado; depois, a introdução de um Prólogo que permitisse um melhor enquadramento da acção e ao mesmo tempo aproximasse a estrutura da obra das normas do teatro épico.

María Teresa León deu conta do encontro no seu livro de memórias:

Erich Arendt falou a Brecht da peça de teatro de Rafael: Noite de Guerra no Prado. Brecht interrompeu ‑o: “Melhor dizendo: Noite de Guerra no Museu do Prado. Em atenção a alguns espectadores, há que precisar onde se situa exactamente o drama”. Rafael descreveu a peça. Brecht interrompia ‑o constantemente com ideias magníficas. “Vejo uma cenografia acinzentada, desenhada, gravada.” Divertiam ‑no as ousadias linguísticas que Arendt lhe ia traduzindo. “As personagens não têm de falar com um papel cor ‑de ‑rosa nos lábios”, disse. Depois foi buscar um livro com gravuras de Goya. Rafael indicou ‑lhe as suas preferidas. Brecht chamou a secretária. “Tome nota do seguinte: Erich Arendt entregará a primeira versão desta peça em Maio.”4

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A morte de Brecht em Agosto terá feito abortar o projecto mas a peça encontrou a sua forma definitiva5 na sequência desse encontro: Noche de guerra en el Museo del Prado (Aguafuerte, en un Prólogo y un Acto), editada pela primeira vez em Buenos Aires, ainda nesse ano, nas Ediciones Losange.

(pequena pausa) Digressão sobre o tempo no Acto único e no PrólogoCreio que não existe nenhum vestígio do texto da peça escrita em 1955 tal como ela foi lida por Alberti a Brecht naquele encontro de Janeiro de 1956. Partamos de que seria o texto tal como o conhecemos menos o Prólogo.

Assim, na primeira versão da peça, as primeiras palavras proferidas, verdadeiras ordens, são as de um Maneta a coordenar a instalação duma barricada na sala grande, central, do edifício do Museu do Prado. Está lançada a acção. E entre a quarta e a quinta fala facilmente adivinhamos que esta decorre no tempo da Guerra da Independência Espanhola e que o agressor, o invasor, é Napoleão. Estamos em 1808.

Primeira surpresa: fala um Fuzilado. Depois, outra surpresa e outra: o Amolador tem uma faca enterrada no peito até ao cabo e conta como lha espetaram depois de o garrotarem; o Toureiro, outra figura, conta como foi mortalmente atingido por uma bomba; o Decapitado traz na mão a cabeça que “continua a gritar e gritará até ao fim do mundo”. São espectros em acção. E as figuras/espectros são gente do povo de Madrid: também Velhas bruxas, uma Maja, um Cego, um Frade… Entre eles, um jovem Estudante.

Uma bomba mais poderosa faz tremer as paredes do museu e do escuro instalado revelam ‑se, dentro de “um raio de luz opaco que deixa no escuro a barricada”, Vénus e Adónis, figuras atemporais do Amor… Mais adiante, entram em cena duas figuras de um outro tempo: Dois Milicianos do tempo “real” da acção: Novembro de 1936.

E de novo voltarão as figuras de obras da colecção do Museu do Prado (que é disso que se trata): de 1808, tiradas de quadros, desenhos e gravuras de Goya, de episódios da história mais antiga de Espanha (Velasquez), da mitologia pagã (Ticiano, Rubens) ou cristã (Fra Angelico) atemporal… e de novo o plano do “real” com os Dois Milicianos da Guerra Civil… e sempre o jovem Estudante.

E a peça, depois de uma cena esperpêntica de execução simbólica da mulher de D. Carlos IV, a Rainha María Luísa, a grande puta, e do seu amante, Don Manuel Godoy, o chouriceiro, a grande braguilha da rainha, pelos espectros do povo de Madrid de 1808, e no cúmulo da violência dos bombardeamentos aéreos do Museu do Prado, termina com o Decapitado a declamar uma quadra de Antonio Machado:

Madrid! Madrid! Como o teu nome soa!Quebra ‑vagas de todas as Espanhas!Estremece a terra e o céu atroa!E tu sorris como chumbo nas entranhas!6

Só por si, o Acto único já confronta o espectador actual com uma complexa sobreposição de camadas temporais e ficcionais (a camada atemporal dos episódios mitológicos, a camada dos episódios da história de Espanha anterior a 1808: Filipe IV e Sebastián de Morra…), a dum tempo ficcional de 1808, das

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figuras de Goya e da Guerra da Independência Espanhola (a mais presente em termos de acção dramática), a dum tempo “real” da acção que seria o de Novembro de 1936 (o tempo dos Dois Milicianos mas provavelmente também o tempo do Estudante que viajaria entre a “actualidade” e a fantasia de 1808, o jovem Alberti de quinze anos que conhecia de cor todos os recantos do Prado, ponte afectiva entre dois universos) e finalmente a da sua própria realidade, pedra ‑de ‑toque e referência primeira de toda a leitura do teatro.7 Nisto, e na consequente profusão de registos, do mais lírico do episódio de Vénus e Adónis ao mais rude de algumas das cenas populares de 1808, passando pelo carnavalesco do “processo” de María Luísa e Godoy, a peça Noite de Guerra no Museu do Prado já seria de uma extrema modernidade.

O Prólogo, acrescentado em 1956, deveria – suponho eu, entregando ‑me ao exercício de adivinhar o que poderia ser a expectativa de Brecht quando o sugeriu – introduzir nesta complexa construção lírica algum recuo que permitisse, vinte anos depois, num contexto político europeu e mundial de Guerra Fria, com a ditadura franquista, como a salazarista, a perdurar para além do imaginado no fim da Segunda Guerra Mundial, um juízo distanciado sobre a terrível Guerra Civil de Espanha e alguma pedagogia política.

Se é narrativo/épico pela comunicação directa do Autor (Alberti, com certeza, cristalizado num novo presente de 1956) com os espectadores, iniciada com um formal “Boas noites, minhas senhoras e meus senhores” e encerrada com um desconcertante “Perdoem ‑me um esquecimento involuntário. Não lhes disse o meu nome. Se acaso lhes interessa poderão encontrá ‑lo no cartaz, no programa, dando título ao acto que vão ver representar dentro de momentos”, não é só, não é tanto, para convidar a lançar um olhar interrogador sobre os acontecimentos de Novembro de 1936, mas mais para introduzir um novo registo autobiográfico, o da evocação nostálgica desse passado vivido vinte anos antes.

Da combinação dialéctica do grande lirismo do poeta ‑pintor Alberti com a realidade dos acontecimentos dessa jornada, do registo predominantemente épico do Prólogo com o registo predominantemente dramático do Acto único, da multiplicação de camadas temporais, da sobreposição da Guerra da Independência e dos seus heróis populares à Guerra Civil, resulta uma peça justamente considerada como um dos expoentes máximos do teatro político espanhol do século XX.

Mário Barradas – 1971 ‑74

(antes de Abril)Entre 1969 e 1972, Mário Barradas frequentou, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, a École Supérieure d’Art Dramatique du Théâtre National de Strasbourg (TNS).8 No seu segundo ano de formação (1970 ‑71), participou num trabalho dirigido pelo director da Escola, Pierre ‑Etienne Heymann, sobre a peça Noite de Guerra no Museu do Prado. Os saberes aí construídos foram logo nesse Verão de 1971 partilhados, no quadro de uma oficina de formação, com os jovens estudantes do TEUM – Teatro dos Estudantes da Universidade de Moçambique, que deixara dois anos antes. Entre eles estava José Peixoto:

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Quando o Mário voltou já não era o mesmo. […] Os exercícios que nos propunha para a nossa formação eram algo novo, nada tinham a ver com os anteriores. Os textos sobre os quais trabalhávamos eram de outra natureza. Eram como os exercícios para aprender a ler da Mãe Gorki/Brecht. Eram comprometidos com uma realidade social, vislumbravam uma estética e um projecto político […].Trabalhámos Noite de Guerra no Museu do Prado, que para nós foi uma revelação formal, e o Medida por Medida que levámos a cena era de outro Shakespeare, o que tinha lido os Escritos de Brecht.9

Em Junho de 1972, Mário Barradas rumou, não a Maputo, onde o esperavam os estudantes do TEUM, mas a Lisboa, para dirigir o trabalho final dos alunos do primeiro ano da Reforma Pedagógica do Conservatório Nacional (a Reforma “Perdigão”) e para, a partir de Outubro desse ano, integrar a Comissão da Reforma e dirigir a Escola de Teatro do Conservatório.

Menos de um ano depois, iniciava uma colaboração com Os Bonecreiros que havia de resultar na encenação de dois dos mais marcantes espectáculos de teatro feitos em Portugal no período final do fascismo: A Mosqueta, de Angelo Beolco, o Ruzzante, em Maio de 1973, e A Grande Imprecação Diante das Muralhas da Cidade, de Tankred Dorst, em Janeiro de 1974. Subversivos os dois, jogavam no limite do tolerável pela censura do regime: o primeiro, apontando um caminho para o que poderia ser em Portugal um teatro popular que acompanhasse a estética do théâtre populaire francês de Jean Vilar ou dos precursores dos teatri stabili italianos, Giorgio Strehler e Paolo Grassi; o segundo, no Goethe‑Institut de Lisboa e com a protecção e cumplicidade desafiadora do seu director, Curt ‑Meyer Clason, desvelando a lógica da guerra imposta aos jovens portugueses desde 1961.

Os espectáculos seguintes dos Bonecreiros dirigidos por Mário Barradas haviam de contemplar, é fácil supor, uma terceira direcção de trabalho por ele considerada basilar para um projecto de teatro popular de qualidade: os clássicos da dramaturgia portuguesa (Gil Vicente, Garrett…).

(25 de Abril) A Revolução dos Cravos veio libertar os grupos de teatro do espartilho da censura e veio convocar o Teatro para uma participação efectiva no processo de transformação da sociedade portuguesa. Não é de espantar que os “grupos independentes” tenham deitado mão, com carácter de urgência, de um repertório diferente daquele que podiam projectar no contexto da ditadura. Um exemplo elucidativo da rápida resposta dada pelos profissionais de teatro à nova realidade política e social é o do Teatro da Cornucópia: tinha estreado em Março de 1974 um espectáculo com duas peças de Marivaux (A Ilha dos Escravos e A Herança) e estreou em Julho O Terror e a Miséria no III Reich, de Bertolt Brecht.

Os Bonecreiros decidiram montar Noite de Guerra no Museu do Prado, encenado por Mário Barradas. A estreia teve lugar no dia 13 de Agosto na Sociedade Nacional de Belas Artes.

Dois excertos do programa do espectáculo esclarecem bem as razões da escolha: uma parte do texto assumido pelo grupo e um passo do texto retirado da Historia del Teatro Español: Siglo XX, de Francisco Ruiz Ramón.

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[…] Os Bonecreiros, grupo de actores associados, cuja honra é serem, em Julho de 1974, o que eram antes do 25 de Abril, e em o serem com a coerência do mesmo projecto e funcionando da mesma maneira, pensaram que o seu trabalho mais imediato deveria ser a evocação precisamente de um daqueles momentos da História em que os perigos reais se apresentaram nos seus moldes mais cruentos.Por rigor, por disciplina ideológica, por solidariedade internacionalista, por entenderem que, hoje como ontem, seria um erro mortal subestimar a força do adversário.Em Julho de 1974, em Portugal, Os Bonecreiros evocam um Alberti que, no exílio, em 1956, continuava a resistir. Um Alberti que resistia evocando a luta sem tréguas de 1936, um momento do combate popular, através do qual se evocam os mesmos homens e mulheres que, em 1808, lutavam pela independência do solo que era o deles. Um momento do combate, que o povo aparentemente perdeu. Um momento perdido de um combate de que o povo será afinal o único grande vencedor definitivo.O espectáculo dos Bonecreiros quer ser um abraço activo de solidariedade, e também uma chamada de atenção, um alerta, e um apelo à vigilância.

Noite de Guerra

no Museu do Prado,

1974 (da esquerda

para a direita: Mário

Barradas, Ângela

Ribeiro, Mário

Jacques, Inês Palma,

Fernanda Alves,

Fernando Barreira,

Maria Emília Correia

e Luís Alberto)

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Noite de Guerra no Museu do Prado é a melhor peça do teatro político de Alberti e, ao mesmo tempo, um valiosíssimo exemplo de teatro popular autêntico, não adulterado por nenhuma forma de fácil didactismo – tumor habitual de boa parte do teatro político – nem de “populismo” – solução espúria de muito teatro dito popular – nem de lirismo – fórmula gratuita de muito teatro poético. […]

O espectáculo acabava com todos os actores (Ângela Ribeiro, Fernanda Alves, Fernando Barreira, Inês Palma, José Gomes, José Peixoto, Luís Alberto, Maria Emília Correia, Mário Barradas e Mário Jacques) de pé em cima dos sacos de areia das barricadas do Prado, a cantarem A Internacional. Tinham passado pouco mais de três meses desde o 25 de Abril. Portugal festejava a Liberdade. Mas todos tinham presente que a ditadura franquista continuava a subjugar o povo espanhol e que, uns escassos meses antes, a 11 de Setembro de 1973, militares fascistas tinham perpetrado um dos mais violentos golpes contra um governo legítimo e uma República: o martirizado Chile.

Depois de uma curta série de representações em Lisboa, o espectáculo, formalmente muito despojado e austero, foi apresentado em itinerância em teatros, casas do povo, sociedades recreativas e ao ar livre. A última representação terá sido a de Évora, realizada no quadro do 4.º Festival de Teatro de Amadores de Évora organizado pela Sociedade Operária de Instrução e Recreio Joaquim António de Aguiar, em 14 de Dezembro, no Teatro Garcia de Resende.

Mário Barradas, que, além de encenar, fazia o papel do Autor no Prólogo e do Amolador no Acto único, havia de regressar a Évora duas semanas depois para lançar um novo projecto teatral: a 2 de Janeiro de 1975 começava a aventura do Centro Cultural de Évora. Richard Demarcy e Teresa Motta criavam A Noite do 28 de Setembro.10

José Peixoto – 2014

O primeiro contacto que tive com o TALM [Teatro de Amadores de Lourenço Marques] e com o seu dinâmico director e encenador [Mário Barradas] foi através da Dra. Ana Maria Branquinho, professora de dia e actriz à noite, que me convidou para assistir no Teatro Avenida à exibição de O que diz sim e o que diz não de Brecht, esse autor maldito, proibido na metrópole mas, não sei como, possível de levar a cena na colónia.[…] A seguir ao espectáculo conheci o Mário. Descobri que era açoriano como eu e tinha casa na rua paralela àquela em que eu habitara durante algum tempo em Ponta Delgada. Nunca nos tínhamos visto, mas a paixão que ele punha em tudo o que fazia ou de que falava era galvanizante e mobilizador e foi fácil tornar ‑me seu amigo. […]11

José Peixoto acompanhou Mário Barradas passo a passo depois do 25 de Abril: participou no elenco de Noite de Guerra no Museu do Prado em 1974. Não demorou a juntar ‑se ao Centro Cultural de Évora para fazer comigo e com o Fernando Mora Ramos As Duas Caras do Patrão, de Luis Valdez, depois Luz

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nas Trevas, de Brecht, que encenei, e depois, ainda em 1975, o papel de Matti em O Proprietário Puntila e o seu Criado Matti de Brecht, a primeira grande produção do Centro Cultural de Évora, em que Mário Barradas encenava e fazia o papel de Puntila. Voltou a Évora em 1985 para montar, a convite do Mário, a Farsa de Inês Pereira. Em 1988, partilhou com Barradas e José Martins a experiência do lançamento do Centro Dramático Intermunicipal Almeida Garrett, no Teatro da Malaposta, em Loures. Foi ainda José Peixoto que, em 2008, levou Mário Barradas a fazer o papel de Dom Egidio numa co ‑produção do Teatro dos Aloés, do Cendrev e do Teatro Nacional D. Maria II para a montagem de A Guerra de Carlo Goldoni, que Peixoto encenou.

O regresso de José Peixoto a Rafael Alberti e a Noite de Guerra no Museu do Prado, a inclusão deste texto na programação do Teatro dos Aloés no ano dos quarenta anos do 25 de Abril, é seguramente um assumido gesto político. E é, eu sei, uma sentida homenagem do discípulo ao mestre. E o espectáculo, nas citações formais da montagem de 1974 como na sentida emoção que o atravessa, não consegue, porque não quer, escondê ‑lo.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

1 Minha tradução da tradução francesa de Gilbert Badia e Claude Duchet, in brecht, Bertolt, Poèmes,

vol. 5, Paris, L’Arche, 1967.

2 brecht, Bertolt, As Espingardas da Senhora Carrar, tradução de João Lourenço e Vera San Payo

de Lemos, in Teatro, vol. 4, Lisboa, Cotovia, 2006, pp. 218 ‑219.

3 Era o segundo. O primeiro encontro tinha ocorrido em 1932, quando o comunista espanhol

empreendeu uma viagem pela Europa que o levaria até Moscovo. Em Berlim tinha tido então

a oportunidade de se encontrar com o dramaturgo e com Erwin Piscator.

4 león, Maria Teresa, Memoria de la melancolía, Madrid, Castalia, 1999.

5 Entenda ‑se, para a primeira edição, em Buenos Aires, nesse mesmo ano de 1956. Mais tarde,

em 1973, a pedido de Ricard Salvat, Alberti veio a escrever uma nova sequência, um diálogo entre

Goya e Picasso, para incluir na encenação que o catalão fez em Janeiro de 1974 em Roma.

6 ¡Madrid, Madrid!, ¡qué bien tu nombre suena / rompeolas de todas las Españas! / La tierra se

desgarra, el cielo truena, / tu sonríes con plomo en las entrañas. (Escrito em 7 de Novembro de 1936.)

7 “Os pontos de vista resultam da evolução da sociedade”, cito de cor Brecht em A Compra do Latão.

8 No seu último ano de permanência, o seu estatuto (aluno) foi completamente alterado: o director

da Escola não hesitou em atribuir ‑lhe as funções de professor assistente. (Foi nesse ano, meu primeiro

ano de Escola, que conheci o Mário.)

9 peixoto, José, “O Mário e o teatro em Lourenço Marques. Breve memória de um discípulo”,

in número especial de Adágio, Mário Barradas, um homem no teatro, Évora, Cendrev, 2006, pp. 20 ‑21.

10 Mário Barradas ainda havia de voltar por duas vezes a esta peça de Alberti: em 1977, no quadro

do seu trabalho como pedagogo com o Grupo III da Escola de Formação Teatral do Centro Cultural

de Évora; e em 1982, no CITAC (com este espectáculo, o CITAC participaria em 1983 na 9.ª edição

do Festival de Teatro de Amadores da S.O.I.R. Joaquim António de Aguiar, em Évora).

11 peixoto, José, “O Mário e o teatro em Lourenço Marques. Breve memória de um discípulo”,

in número especial de Adágio, Mário Barradas, um homem no teatro, Évora, Cendrev, 2006, pp. 18 ‑19.

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Valeriano Bozal, na “Introdução” a Ejercicios de la Violencia en el Arte Contemporáneo (2006), afirma que, nos primeiros anos do século XIX, as gravuras de Francisco Goya agrupadas na série Os Desastres da Guerra e algumas obras de pintores franceses, tais como Jacques Callot, Théodore Géricault, Eugène Delacroix ou Honoré Daumier, marcam duas alternativas distintas para a representação da violência. Assim, “enquanto os artistas napoleónicos legitimam [a violência] na sublimação do herói e de uma nova era que nasce, Os Desastres chamam, sobretudo, a nossa atenção para a desumanização que produz” (Bozal 2006: 17).

De uma maneira bastante perspicaz, Bozal convoca duas linhagens para o entendimento da representação artística da violência: uma que reforça o sacrifício agónico do herói ou da figura retratada, fazendo sobressair as suas características heróicas face à sobrevivência ou à co ‑existência com situações ou eventos adversos; outra que serve a denúncia de acções violentas, lembrando o processo de desumanização que a violência e a fruição estética da representação da violência produzem.

O gesto de Rafael Alberti em Noite de Guerra no Museu do Prado é duplo. Por um lado, esta peça pode ser facilmente entendida como um libelo contra a guerra e contra a desumanização que esta produz. Mas, por outro lado, é também um manifesto de exaltação à resistência e à luta, sublimando os resistentes como heróis.

Rafael Alberti, poeta de Cádiz, nascido em 1902, foi um autor multifacetado. Cultivou várias formas e sensibilidades poéticas, desde uma poesia de tom declaradamente popular a versos de cariz mais erudito, alternando entre o surrealismo e a militância política. Sobre los angéles (1929), uma obra de pulsão surrealista, onírica e desolada, é, geralmente, tida como a sua obra ‑prima. Poeta en la calle (1938) reúne os seus textos mais explicitamente políticos. Na prosa, merecerá destaque o livro autobiográfico La arboleda perdida (1959). No teatro, Noite de Guerra no Museu do Prado (1956) há ‑de ser a sua obra mais aclamada.

Obra de dimensão ecfrástica, Alberti convoca como personagens algumas figuras de telas patentes no Museu do Prado, de autores como Goya (Maneta, Fuzilado, Amolador, Estudante, Maja, Toureiro, Frade, Cego, Velhas, Decapitado, Burro, Bode, Procissão de aleijados e Povo de Madrid), Ticiano (Vénus, Adónis e Marte), Velasquez (Anão e Rei), Fra Angelico (Arcanjo S. Gabriel), de um retábulo anónimo de Arguis (Arcanjo S. Miguel) e, também, “personagens actuais” (Miliciano 1 e 2). Noite de Guerra no Museu do Prado é apresentada como se de uma tela se tratasse. Assim, é subintitulada “Água ‑forte, em um Prólogo e um Acto”. “Água ‑forte” é, com efeito, uma modalidade da técnica de gravura, usada, por exemplo, por Goya na célebre

Resistir – ontem como hojeRui PinA coelho*

* Professor,

dramaturgista e

investigador teatral

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série – já aqui citada – Os Desastres da Guerra, um conjunto de oitenta e duas gravuras realizadas entre 1810 e 1815, onde se mostram as crueldades cometidas durante a Guerra da Independência Espanhola (1808 ‑1814), onde os espanhóis se opuseram ao avanço das tropas de Napoleão. Mas Alberti faz cruzar esta resistência anti ‑napoleónica de 1809 com a resistência anti ‑franquista, situando a acção dramática em Novembro de 1936 e partindo de um acontecimento alegadamente verídico: em plena Guerra Civil, de modo a protegerem os quadros dos bombardeamentos franquistas, os milicianos republicanos terão guardado algumas telas na cave do Museu. É esse gesto – honesto, corajoso, teimosamente inútil se considerarmos a bruteza da guerra – que é evocado no texto de Alberti e são essas as telas que ganham vida e que servem para construir uma bela elegia à resistência e à luta contra a opressão, “dedicada aos heróicos defensores de Madrid”.

O espectáculo de José Peixoto amplia o gesto de Rafael Alberti e erige uma declaração de solidariedade a todos os resistentes – os de todos os tempos e de todos os lugares. E, tal como o gesto de Alberti, é um acto honesto, corajoso, teimosamente inútil se considerarmos a bruteza dos tempos que correm.

De tom épico, popular, implicado, o espectáculo de José Peixoto faz balançar o seu destinatário entre um (teatro) passado e um (teatro) presente. Este jogo de deslocação temporal na busca do interlocutor do espectáculo é, parece ‑me, a marca mais impressiva deste espectáculo. Efectivamente, é a segunda vez que Peixoto aporta a este texto – fez parte do elenco do importante espectáculo

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de 1974 (foi “Toureiro”, “Burro” e “Anão”), com encenação de Mário Barradas para Os Bonecreiros – Teatro Laboratório de Lisboa, com estreia a 12 de Agosto de 1974, o primeiro espectáculo desta histórica companhia após a Revolução dos Cravos. Sente ‑se, por isso, a evocação nostálgica de um teatro e de um país passados, que parecem esfumar ‑se cada vez mais nos vapores do esquecimento e da indiferença e que, face às novas forças invasoras, prepotentes e barricadas na sua ignorância, importa não perder já de vista. Mas o espectáculo não se radica exclusivamente nesta nostálgica revisitação do passado. Aponta, também, vitalmente, ao presente. E este presente, para além das rimas mais imediatas com a situação política na actualidade, revela ‑se mais substantivamente na energia juvenil do elenco. Com efeito, este espectáculo reedita uma equipa criativa alicerçada na encenação de José Peixoto, na cenografia e figurinos de Marta Carreiras e, principalmente, na juventude e brilhantismo do elenco – fórmula que resultou plenamente no maravilhoso e premiado espectáculo Os Juramentos Indiscretos, de Marivaux (Teatro dos Aloés/TNSJ, 2012). Assim, para além de José Peixoto e Jorge Silva (que, com Elsa Valentim, constituem a espinha dorsal do Teatro dos Aloés), repetem no elenco os jovens actores Carlos Malvarez e Nuno Nunes, aos quais se juntam Adriana Moniz, Anna Eremin, Miguel Raposo, Patrícia André e Rui M. Silva. Assim, balanceando ‑se entre o passado – que vai da resistência espanhola face às forças napoleónicas de 1808 à resistência portuguesa anti ‑fascista, passando pela Guerra Civil de Espanha – e as manifestações que têm andado pelas ruas e praças portuguesas no presente, Noite de Guerra no Museu do Prado é um espectáculo que descobre na vitalidade do jogo expressivo dos actores a maneira mais certeira de interpelar um Portugal ocupado e sitiado. E a este Portugal reivindica a necessidade de continuar a resistir.

Marta Carreiras instala a cena num “Museu do Prado” em plena guerra, como se a guerra tivesse – literalmente – franqueado as portas do museu. Há barricadas construídas com sacos de areia, grandes caixotes onde se transportariam as obras de arte, paletes de madeira, tudo dando a impressão de um espaço cercado e onde se sente a ameaça de rebentamento a qualquer instante (que o som persistente de tiros de canhão ao longe vai prenunciando). Mas o que domina o desenho do espaço deste espectáculo são as longas tiras de plástico transparente (ao fundo e no lugar das pernas) que vão emprestando ao cenário uma volatilidade e uma permeabilidade à luz extraordinárias, prestando ‑se a adquirir colorações bastante diversas. Assim, se no início estas tiras de plástico são bom sinal de que aquela sala de museu está sob uma qualquer condição provisória, precária, são depois um meio óptimo para ajudar a “pintar” o cenário de acordo com cada obra evocada, tentando reconstituir os matizes pictóricos de cada tela.

A vibração juvenil das interpretações e a volatilidade do cenário emprestam ao espectáculo uma dinâmica notável, que vai sendo acrescentada pelas intervenções musicais, em especial as de âmbito coral. São estas intervenções que vão revelando de maneira mais substantiva o tom épico e a herança brechtiana que anima o espectáculo. É uma herança que é assumida por Alberti – e que é inata em José Peixoto. Com efeito, o encenador tem sido um dos mais persistentes exploradores do legado brechtiano na dramaturgia da segunda metade do século XX em diante, em autores como Brian Friel ou

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Athol Fugard, para citar somente os mais recorrentes no repertório do Teatro dos Aloés. Neste espectáculo, Peixoto continua um trabalho de discussão política e de interpelação do real, servindo ‑se, para isso, frequentemente de um repertório popular e de forte capacidade de comunicação, como são – por razões diferentes – Os Juramentos Indiscretos, de Marivaux, e esta Noite de Guerra no Museu do Prado. São textos populares no sentido que Brecht emprestava ao termo: “O nosso conceito de carácter popular da arte refere ‑se a um povo que não só participa plenamente no desenvolvimento histórico como se apodera dele, o acelera, o determina. Referimo ‑nos a um povo que, fazendo a História, se transforma a si mesmo e, consigo, o mundo. Um povo combativo implica um conceito combativo popular” (Brecht 1973: 10). São, por isso, textos necessários, fundamentais, que tratam de amor e de política, respectivamente (precisa e curiosamente, os temas que, segundo Alain Badiou em Éloge du Théâtre (Badiou 2013: 78), têm sido os temas exclusivos do teatro, na tragédia e no teatro épico). São textos que reagem contra o avanço da barbárie e que resistem.

À violência da guerra nas ruas de Madrid, os milicianos respondem com um gesto honesto, corajoso, teimosamente inútil. Resistem. À violência com que os nossos governantes vão tratando as artes e o país, responde Peixoto com um gesto igualmente poético e “inútil”. Contudo, dizer que a arte é uma forma de resistência não é dizer pouco. Nestes tempos em que a arte aparece tantas vezes remetida a um papel decorativo, excedentário, sem real impacto na cidade ou nas nossas vidas colectivas, pugnar pela não ‑obsolescência da arte não é tarefa menor. E é precisamente isso que fazem Alberti e Peixoto.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

Referências bibliográficasbadiou, Alain (2013), Éloge du Théâtre. Paris: Flammarion.

brecht, Bertolt (1973), “O carácter popular da arte e arte realista”, in Teatro e Vanguarda. Lisboa:

Editorial Presença.

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ficha técnica tnsj

coordenação de produção Maria João Teixeiraassistência de produção Maria do Céu Soares, Mónica Rochadireção de palco Rui Simãodireção de cena Pedro Guimarãesluz Filipe Pinheiro (coordenação), Abílio Vinhas, Adão Gonçalves, José Rodrigues, Nuno Gonçalvesmaquinaria Adélio Pêrasom António Bicavídeo Fernando Costa

APOIOS tnsj

apoios à divulgação

agradecimentos tnsj

câmara Municipal do PortoMr. Piano/Pianos – Rui MacedoPolícia de Segurança Pública

ficha técnica teatro dos aloés

apoio técnico Jochen Pasternacki, Mário Cruz Pereira produção executiva Anabela Gonçalves, Daniela Sampaio

apoios teatro dos aloés

agradecimentos teatro dos aloés

AcT – escola de Atores | Augusto Banza | cláudia Sofia Sousa, eliana ferraz, Jéssica Marina, Miguel Mateus, Soraia Pereira (estagiários) | isabel cartaxo (Museu nacional do Teatro) | ivan coletti (cabelos e maquilhagem) | João Pratas (Rn Trans) | José Manuel Rainho, Vítor Mendes (escola de Toureio José falcão) | nuno Rebelo (Pastelaria ninfa) | Rita Barradas, Tânia Tadeu (everything is new) | Rui A. Pereira (apoio design gráfico) | Jean Paul Bucchieri

o Teatro dos Aloés é uma estrutura financiada por

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não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espetáculo. o uso de telemóveis ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os intérpretes como para os espectadores.

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