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Edição 12 – Dezembro de 2016
TEM ORIXÁ NO SAMBA: A UMBANDA NA PRODUÇÃO CULTURAL DE CLARA
NUNES DOS ANOS DE 1970
VARGAS, Monique Francielle Castilho1
RESUMO: Neste trabalho procuro analisar como a religiosidade de matriz africana, com maior
abrangência a Umbanda são representadas nas músicas interpretadas e nas performances da cantora
Clara Nunes, em videoclipes e apresentações em programas de televisão na década de 1970 e sua
associação com temas dos movimentos antirracistas do período.
Palavras-chave: Umbanda; Religiosidade; Samba; Movimento Negro.
ABSTRACT: In this work I analyze how the religions of African matrices, especially Umbanda,
are represented in the songs' interpretations of the Brazilian singer Clara Nunes, in video clips and
performances in television's programs in the 1970's and their relations to the anti-racist movement
of this period.
Keywords: Umbanda; religion; samba; black movement.
1. INTRODUÇÃO
Cotidianamente entramos em contato com elementos das mais diversas culturas e, dentro
deste contexto, as religiões de matriz africana se fazem presente, mesmo que de maneira implícita,
pois muitas vezes as pessoas não têm consciência de que estão tendo este acesso. Consequência
disso são os símbolos, experiências e valores religiosos que ultrapassaram os portões dos terreiros
de Candomblé e tendas de Umbanda sendo temas de músicas, teatros e obras de arte. Dentro desta
perspectiva, a música popular brasileira, mais especificamente o samba é um importante meio de
divulgação deste universo religioso.
O samba, ritmo musical afro diaspórico que no início do século XX tomou conta do cenário
musical, transformou-se em sinônimo de música tipicamente brasileirai, ritmo que representou o
Brasil mundialmente, é um importante difusor do imaginário religioso do Candomblé e da
Umbanda. Considerando o fato de que particularidades do universo religioso de matriz africana são
1 Licenciada em História pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS. Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC (área de concentração História do
Tempo Presente). Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudo Afro-Brasileiro - NEAB/UDESC. Docente da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS (Unidade de Amambai). E-mail: [email protected].
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apresentadas em letras de samba, analisar-se-á a trajetória artística de Clara Nunes na década de
1970, pois esta foi uma das maiores interpretes deste período, marcando época no mercado
fonográfico brasileiro.
Clara Nunes foi a primeira cantora a vender mais de cem mil cópias de disco, cujo
repertório são referências intensas as religiões de matriz africana (BAKKE, 2005, p. 86). Para tanto,
considera-se pertinente este trabalho musical vislumbrando uma construção positiva sobre as
religiões de matriz africana no âmbito nacional. Especificamente a religião umbandista será objeto
de análise a partir dos sambas interpretados pela cantora elencada acima.
2. CLARA NUNES: A GUERREIRA
Neste primeiro momento, acredita ser pertinente esboçar, embora que suscintamente a
trajetória artística de Clara Nunes, pois, assim facilitará a compreensão do leitor para entender a
relação da carreira e repertório da cantora que se relaciona intimamente com a cultura de matriz
africana principalmente no que tange a religiosidade. Sua carreiraii esta dividida em momentos
distintos, pois até chegar ao samba transitou por outros gêneros musicais os quais não lhe renderam
muito sucesso.
Clara Nunes é natural de Paraopeba, interior de Minas Gerais e aos dezesseis anos, mudou-
se para Belo Horizonte. Foi nessa cidade que iniciou sua carreira artística, num concurso de
calouros promovido pela Fábrica de rádios e televisões ABC, chamado "A voz de ouro ABC", em
1960. Aos dezessete anos venceu a fase regional desse concurso, conseguindo assim um emprego
na Rádio Inconfidência, onde apresentava um programa chamado "Clara Nunes convida".
Em 1963, devido o sucesso na rádio Inconfidência, iniciou um programa de variedades na
televisão, na emissora TV Itacolomi. Lá ela debatia as notícias de Belo Horizonte e entrevistava
artistas conhecidos nacionalmente. Essa experiência na televisão ajudou a consolidar a carreira local
da cantora. Além de lhe proporcionar os primeiros contatos no Rio de Janeiro, pois José Messias,
um de seus entrevistados convidou Clara para uma participação em seu programa na TV
Continental; já em 1965, foi convidada por Milton Miranda, diretor artístico da Odeon, para realizar
um teste no estúdio da gravadora, sendo aprovada, mudou-se para o Rio de Janeiro.
Considerando essa descrição acima sobre o início da carreira de Clara Nunes, podemos
imaginar que seu sucesso foi repentino devido sua bela voz, no entanto, tal interpretação é
equivocada, pois antes de conquistar visibilidade e o conhecimento nacional a cantora tinha um
repertório que se encaixava no gênero musical de maior sucesso da época que era o bolero.
Edição 12 – Dezembro de 2016
A cantora fazia o que os produtores da gravadora Odeon lhe recomendavam, porém,
mesmo com um investimento em marketing fundamentado para os padrões da época, tais como: a
aparição em programas de auditório de sucesso, a gravação de seu primeiro Long Play (LP) solo,
em 1966 A voz adorável de Clara Nunes, o perfil artístico de Clara Nunes elaborado pela gravadora
não conquistou o público, e o sucesso ainda demoraria a acontecer.
Seguindo aquilo que os produtores da Odeon queriam, Clara Nunes transitou por diversos
gêneros musicais tais como: bolero, romântico, jovem guarda, no entanto, nenhum desses levou a
cantora ao sucesso nacional que se pretendia. Mas em 1968, com a ajuda do cantor e compositor de
samba brasileiro Ataulfo Alves, conseguiu convencer os diretores da gravadora a deixá-la gravar
samba, um gênero musical que até então se encontrava em baixa no mercado fonográfico; havia
perdido seu espaço para o iê-iê-iêiii
entre os anos 50 e toda a década de 1960.
Com o consentimento da Odeon, Clara gravou em 1968 a música “Você passa eu acho
graça”, composição de Ataulfo Alves e Carlos Imperial. Com relação às gravações anteriores, esta
canção a fez experimentar certo sucesso, no entanto, não alcançou o êxito que a gravadora
almejava.
No ano de 1968 e início de 1969, a carreira de Clara Nunes não foi muito prodigiosa,
oscilou entre sucessos e fracassos. A cantora não conseguia alcançar uma imagem pública
consistente, tampouco conquistar um público devoto (fã) de seu trabalho artístico (BAKKE, 2005,
p. 87).
3.EU SOU A TAL MINEIRA: FILHA DE ANGOLA DE KETO E NAGÔ
O destino da carreira de Clara, no final do ano de 1969, começou a se alterar; entretanto,
essa mudança não esta relacionada apenas as transformações de sua vida profissionais, mas também
da sua vida pessoal. Nasceu em uma família católica, realizou todos os sacramentos, que um
católico praticante faz na infância e início da adolescência (batismo e primeira comunhão),
inclusive participava do coral da igreja cantando ladainhas em latim.
No entanto, aos 14 anos de idade, teve o primeiro contato com a religião espírita
kardecista por influência das irmãs que seguiam a religião. Em 1965, quando se mudou para o Rio
de Janeiro conheceu a Umbandaiv
que anos mais tarde tornou-se praticante, conforme declaro: “(...)
eu sou espirita é, mas mais da linha do, do é o candomblé com umbanda chama-se traçado é o
nagô (...) sou, sou filha de santo. Quando fui à África em 69, lá eu voltei muito impressionada, lá
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tive a oportunidade de conhecer muita coisa de visitar lugares assim sagrados e conhecer os rituais
e da minha volta, então eu já voltei muito inclinada, tanto a música e a religião também é lógico”
(entrevista concedida a Rádio Jornal do Brasil em 1978 – acervo particular da pesquisadora).
Quando Clara Nunes retorna da viagem à África, inspirada pela cultura africana, com a
ajuda de Adelzon Alves radialista, projeta uma carreira diferenciada. Apresentou o novo projeto a
Odeon, porém a gravadora não concordou de imediato, pois a proposta era audaciosa, uma vez que
o repertório da cantora seria mudado radicalmente. No entanto, Clara insistiu e o projeto foi
considerado pelos diretores da Odeon.
Início de 1970 foi o divisor de águas da carreira de Clara Nunes, deixando o bolero, ritmo
que não conseguiu transformá-la em uma artista nacionalmente conhecida, para emergir no samba.
Neste momento, a imagem da cantora também foi recomposta. Agora em suas apresentações
aparecia com roupas e ornamentos que representavam uma cultura de matriz africana.
Especificamente a Umbanda era reverenciada o que impulsionou a ganhar o rótulo de “Cantora da
Macumbav”.
Evidenciando esta nova aparência artística de Clara Nunes, a qual vinculava sua imagem a
tradições culturais de matriz africana a antropóloga social Rachel Rua Baptista Bakke diz:
Os símbolos utilizados para articular a obra da cantora com o universo cultural afro-
brasileiro, e mais tarde brasileiro, foram essencialmente retirados do candomblé e da
umbanda, e apareciam nas músicas que cantava, nas suas performances em shows, e nas
reportagens de jornais e revistas que, ao divulgarem elementos da vida cotidiana e íntima de
Clara, revelavam para um público maior o estilo de vida do povo de santovi.
Neste contexto, suas roupas de apresentação eram predominante brancasvii
, salvo algumas
vezes que aparecia com as vestes de algum orixáviii
especifico, como por exemplo, no videoclipe
gravado no ano de 1979 da música “Conto de Areiaix
”, onde aparece com a indumentária de
Iemanjáx, além de sua expressão performática que também faz alusão a entidade.
Considerando a performance corporal é importante ressaltar que Clara Nunes fez curso de
expressão corporal e dança afro. Experiência esta de extrema importância e eficácia simbólicaxi
de
construção da realidade que concretiza aquilo que o artista quer expressar. Sobre a performance
artística Ruth Finnegan explica:
Nesse momento encantado da performance, todos os elementos se aglutinam numa
experiência única e talvez inefável, transcendendo a separação de seus componentes
individuais. E nesse momento, o texto, a musica e tudo o mais são todos facetas
simultaneamente anteriores e superpostas de um ato performatizado que não pode ser
divididoxii
.
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As palavras da autora confirmam que compreender uma canção, não se resume apenas na
interpretação do texto escrito. Em outras palavras, o historiador que tem como documento de
pesquisa canções, cujo objetivo é construir uma narrativa histórica de determinado período, precisa
encontrar um método de análise que ultrapasse a compreensão da letra, pois limitar-se a tal
abrangência é obter um discurso simplista, não aprofundado.
Uma vez que, discutimos música devemos ter consciência que estamos falando de artistas
e, a maneira com que eles apresentam seu trabalho desvenda muitos indícios que estão ausentes na
palavra escrita. O textoxiii
, muitas vezes não nos revela nada, por isso a importância de considerar
texto, música e performance intrincados um ao outro.
O texto de Ruth Finnegan como suporte teórico, ajuda compreender a importância da
performance elaborada pela cantora Clara Nunes, uma vez que seu objetivo era consolidar
oralidade e representação atrelados a prática religiosa umbandista.
Uma canção – ou poema oral – tem sua verdadeira existência não em algum texto
duradouro, mas em sua performance: realizada em um tempo e espaço específicos através
da ativação da música, do texto, do canto e talvez também do envolvimento somático, da
dança, da cor, de objetos matérias reunidos por agentes criadores [...] uma canção, que em
termos de sua letra e melodia escritas poderia parecer a “mesma”, porém, pode ser
realizadas de diferentes maneiras em diferentes performances [...]xiv
.
Assim sendo, pode-se elucubrar a possibilidade que se Clara Nunes não tivesse unido o
texto escrito, ao gênero musical (samba) e sua bela voz a toda uma interpretação performática,
talvez não tivesse alcançado o sucesso. Considerando sua trajetória artística elencada acima,
permeada de dificuldades para conquistar o reconhecimento desejado. Enquanto a cantora era
apenas uma bela voz, não conseguiu ter um público cativo, nem visibilidade de âmbito nacional.
Além dos elementos da cultura africana somada a sua interpretação performática, Clara
Nunes, nas inúmeras entrevistas concedidas, declarava espontaneamente o seu pertencimento a
Umbanda. Também afirmava que tinha prazer em cantar as coisas que faziam parte da sua
religiosidade e que sua crença norteava toda sua representação artística.
As declarações da cantora passaram a despertar a curiosidade das pessoas, levando-as a
conhecer a religiosidade de matriz africana (Umbanda e Candomblé). Outro aspecto importante
com relação ao trabalho artístico de Clara Nunes refere-se a uma questão de âmbito social, ou seja,
a cantora conseguiu mostrar a cultura africana de maneira positiva, uma vez que esta ainda era
caracterizada e assimilada como inferior por ser algo que pertence ao povo negroxv
.
A cantora trouxe visibilidade à cultura africana, em especial para a religiosidade. Uma
cultura marginalizada pela sociedade passou a ser exaltada por todas as classes sociais brasileiras,
Edição 12 – Dezembro de 2016
pois na década de 1970, conquistou reconhecimento nacional, e por consequência disso a grande
maioria da população sabia entoar no mínimo um trecho de algum samba gravado por Clara Nunes.
Isto pode ser percebido nas palavras de Bakke:
No período entre 1969 e 1974, Clara Nunes, junto com Adelzon Alves, construiu e
consolidou uma imagem artística que a associa fortemente à Umbanda e ao Candomblé.
Gravou os LPs Clara Nunes; Clara, Clarice e Clara; Clara Nunes: Brasília e Alvorecer,
com o qual quebrou um antigo tabu do mercado fonográfico brasileiro que dizia que mulher
não vendia discos, com a marca de aproximadamente 400 mil cópias vendidas, números
semelhantes aos de Roberto Carlos, considerado o "Rei das vendagens” xvi
.
Nesses discos foram gravados inúmeros sucessos, porém o que interessa são as canções
que apresentam letras que fazem referência a uma africanidade, sendo assim, seguem o título das
canções localizadas com a temática: “Aruandê... aruanda”, “Ê Baiana”, "Misticismo da África ao
Brasil", “Festa para um Rei Negro”, "Ilu Ayê", "Tributo aos orixás", "Morena do Mar",
"Homenagem a Olinda", "Recife e Pai Edu", "Sindorerê", "Nanaê, Nanã Naiana" e "Conto de
Areia". O conteúdo dessas canções, além de trazer a religiosidade de matriz africana de maneira
enaltecedora, descrevia a miscigenação entre Brasil e África como algo positivo e enriquecedor para
a reconfiguração da identidade brasileira.
4. NEGRO ENTOOU UM CANTO DE REVOLTA PELOS ARES
A população brasileira da década de 1970 assistiu um processo de transformação intensa
que atingiu todas as esferas que conduzem sociedade. Houve alterações nos costumes e
comportamentos de todas as classes sociais, influenciados pelos novos meios de comunicação e
expressãoxvii
. A televisão, o rádio, as revistas semanais e os jornais; pelo menos um deles estava
presente na vida dos brasileiros, mesmo daqueles que pertenciam aos seguimentos sociais mais
carentesxviii
.
Contudo, os fundamentos culturais de matriz africana, apareciam nos meios de
comunicação e expressão de formas estereotipadas que, reforçavam a marginalização do ser negro
na sociedade do inicio do século XX; ainda carregando assimilações do período escravista
(BRUGGER, 2008, p. 20). Essas representações balizadas pelo racismo influenciaram os
descendentes de africanos a se organizar enquanto movimento social para defender sua cultura e
fazer valer o projeto de promoção de igualdade racial (CARDOSO, 2008, p. 15).
Os movimentos organizados por negros perpassam toda a história do nosso país, contudo,
na clandestinidade, em consequência dos fundamentos que a escravidão dos povos africanos
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acontecia no Brasil. O fundamental para essas primeiras organizações era conquistar a libertação do
regime escravo. Um exemplo legítimo de organização foi a quilombagemxix
. É na década de 1970,
movimentos engajados na luta antirracista começaram a aparecer no cenário politico e social
brasileiro.
Deste modo, como muitos interpretam o movimento negro que se formou na década de
1970 a 1980, não tinham como objetivo único resistir o racismo; os interesses envolvidos iam além.
O primeiro intuito era conscientizar a população negra da existência de desigualdades raciais e da
necessidade de lutar contra a discriminação, em seguida promover políticas públicas geradoras de
melhores oportunidades aos negros nas áreas da educação, saúde, economia e cultura.
Apoiado em todos esses objetivos, em 7 de julho de 1978 constituiu-se o Movimento
Negro Unificado (MNU), movimento de resistência negra que realmente se organizou enquanto
proposta política, considerando as palavras de Cardoso:
O MNU dava origem ao protesto negro, movimento de rua, de mobilização e de agitação
política que marcará as organizações anti-racistas brasileiras das décadas de 1970-1990.
Uma estratégia centrada na denúncia do racismo, na exigência do respeito à diferença
cultural e racial, demonstrações do orgulho negro e defesa de suas origens africanas e nas
lutas anti-escravistas. Este movimento dirá não às políticas de assimilação cultural e de
branqueamento da populaçãoxx
.
Das inúmeras formas de resistência utilizadas pelos afrodescendentes, encontraram no
samba um campo fértil para dar voz ao movimento negro que estava se consolidando na década de
1970, daí a relação dos sambas interpretados pela cantora Clara Nunes como uma das formas
utilizadas na luta antirracistas. Uma vez que, o samba é um ritmo musical afro diaspórico, segundo
Mussa e Simas que dizem:
A expressão samba é, provavelmente, derivada do quimbundo di-semba, umbigada –
elemento coreográfico caracterizador do samba rural em todas as suas variantes. Até o final
do século XIX era comum a utilização do nome samba para designar todas as danças
populares brasileiras derivadas do batuque africano. Posteriormente, a denominação passou
a definir um gênero musical de compasso binário, derivado dos batuques do Congo e de
Angola, e a sua dança correspondentexxi
.
O samba se alastrou com tanta força em nosso país que, quando se fala de cultura
brasileira, logo vem à cabeça de boa parte da população a seguinte afirmação: “Brasil, terra do
samba”, ideário tão consistente que é difundido em outros paísesxxii
.
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5.VEM DESDE O TEMPO DA SENZALA: O SOM QUE A TODO MUNDO EMBALA
As considerações sobre a carreira de Clara Nunes tem como objetivo elucidar que o
reconhecimento nacional conquistado pela cantora esta intimamente atrelado a uma exaltação de
africanidade dentro da perspectiva de diásporaxxiii
negra, ou seja, sua identidade artística que lhe
trouxe o sucesso foi construída com ênfase em práticas culturais de matriz africana.
Considerando a maneira como aconteceu a diáspora negra é que justifica e se compreende
a escolha do título deste artigo “Rainha do mar”, pois boa parte do trabalho artístico de Clara Nunes
concentrou-se em apresentar as consequências geradas por este acontecimento (diáspora) que
mudou profundamente o que se concebia por cultura brasileira.
O trabalho da cantora em questão e a concepção que a diáspora esta sendo abordada nesta
pesquisa, tem o intuito é descrever como as divindades da religiosidade de matriz africana, os orixás
e entidadesxxiv
são representados não apenas nas músicas interpretadas por Clara Nunes, mas em seu
trabalho artístico como um todo, pois como já elencado acima letra, música e performance estão
intimamente entrelaçados, sendo assim, é necessário articula-los dentro do mesmo contexto para
apresentar uma analise fundamentada e consistente.
Cabe ressaltar aqui, antes de iniciar a reflexão acerca das músicas, que o adjetivo
“guerreira” atribuído a Clara Nunes é por consequência dos seus dois orixás de cabeça Ogum e
Iansã, santos guerreiros. Ogum é orixá guerreiro, guardião dos ferros desbravador de estradas e
caminhos, além de corajoso e aventureiro é amante da liberdade. Já Iansã é guardiã dos raios e das
tempestades, mulher guerreira, valente e corajosa. Considerando a obra Mitologia dos Orixás de
Reginaldo Prandi, os dois elencados acima são marido e mulher.
Grande parte do repertório de Clara Nunes a partir da década de 1970 são sambas que
expõem peculiaridades da Umbanda e do Candomblé ou expõe ações da luta antirracista da
população de descendência africana. Neste artigo não serão abordados todos os sambas
interpretados pela cantora, selecionaram-se aqueles considerados mais relevantes que abarcam o
contexto que se pretende analisar, assim sendo, segue a seleção abaixo:
A canção Canto das Três Raças, um sucesso da cantora, gravado no ano de 1976, que não
trata da religiosidade em si, mas, trata da formação cultural do Brasil é seguramente um hino para o
movimento negro na luta antirracista, pois descreve a luta dos povos africanos contra os
aviltamentos que vivenciaram durante quase quatro séculos de escravidão e, por último a
discriminação racial que ainda está presente no cotidiano da população negra. Para tanto, seguem os
versos da canção:
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Ninguém ouviu/ Um soluçar de dor/ No canto do Brasil/ Um lamento triste/ Sempre ecoou/
Desde que o índio guerreiro/ Foi pro cativeiro/ E de lá cantou/ Negro entoou/ Um canto de
revolta pelos ares/ No Quilombo dos Palmares/ Onde se refugiou/ Fora a luta dos
Inconfidentes/ Pela quebra das correntes/ Nada adiantou/ E de guerra em paz/ De paz em
guerra/ Todo o povo dessa terra/ Quando pode cantar/ Canta de dor/ E ecoa noite e dia/ É
ensurdecedor/ Ai, mas que agonia/ O canto do trabalhador/ Esse canto que devia/ Ser um
canto de alegria. Soa apenas como um soluçar de dorxxv
.
Se analisar minuciosamente esta composição musical, podemos identificar que esta é de
uma riqueza imponente para o ensino de história, pois, não apresenta apenas fatos históricos que
envolviam os povos oriundos da África, mas, em poucos versos narra vários acontecimentos que
marcaram a história de nosso país. Esta música, escrita durante a ditadura iniciada em 1964, foi
usada como protesto, pois difundia a luta pela liberdade.
Como a prática de escravização estava difundida em toda sociedade, não importava a
“classe” social, a quantidade de dinheiro e ocupação, não havia grupos que defendiam o fim da
escravização, pelo menos no início da colonização brasileira. Então seu “soluçar de dor” não era
ouvido. No entanto, pode-se observar na letra da música que “o negro” não passou sempre se
lamentando. No início ninguém o ouvia ou importava-se com sua dor, depois ele se fez ouvir,
quando “entoou um canto de revolta pelos ares no quilombo dos Palmares”.
As formas de resistência das populações africanas e afrodescendentes, as fugas em massa,
formação de quilombos, rebeliões e revoltas estão presentes nos versos da canção. Também é
possível interpretar os conflitos abertos e as resistências individuais, como banzo, práticas de
suicídios, além das negociações que fizeram para tornar seus dias menos penososxxvi
.
Seguindo ao final da letra da canção, “soa apenas com um soluçar de dor”, que persiste
com o canto do trabalhador. Assimila-se que aquela população escravizada lutou pela sua liberdade,
transformou-se na população brasileira, que vivendo “de guerra em paz, de paz em guerra”
mantiveram sua resistência. Agora trabalhadora, no entanto, vítimas de preconceito étnico racial.
Enfim, Canto das três raças, é uma canção que evidencia os desafios da luta antirracista da
população afrodescendente, relacionando um passado escravista com um presente não escravo,
porém marginalizado, devido o estigma da escravidão que carregam e que sempre a população, por
ter uma mentalidade colonizada por ideais eurocêntricos faz questão de ressaltar (APPIAH, 1997, p.
13).
Com relação a performance de Clara Nunes, quanto apresenta-se cantando “Canto das
três raças”, esta é composta por movimentos que representam danças africanas, aprofundando-se
na analise dos gestos reproduzidos pela cantora, mesmo a letra não citando o nome, tampouco
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saudação específica de um determinado orixá, a dança é a representação dos movimentos feitos
pelos filhos de santos quanto incorporam Oxóssixxvii
ou entidades que pertencem a falangexxviii
deste
orixá, os caboclos.
Outro aspecto importante é a roupa branca, cor da veste utilizada pelos filhos de santo da
Umbanda durante o ritual. Os pés descalços também fazem parte do contexto religioso e, os colares
no pescoço de Clara Nunes que, na realidade não são simplesmente colares, são guiasxxix
que, no
caso da cantora na maioria das vezes aparecia usando guia de Oxalá, representada pelas contas
brancas e a de Iansã que se apresenta com contas de cores vermelha, amarela e branca.
Algo que também chama a atenção são os cabelos de Clara Nunes, que antes de se
consagrar no samba apresentava-se liso e quase sempre amarrado, agora como uma cantora
reconhecida como a “deusa dos orixás”, suas madeixas aparecem com bastante volume e sempre
solto. Considerando toda a indumentária artística, essa mudança nos cabelos traz como objetivo
ressaltar e enaltecer a negritude, em outras palavras, transparecer suas origens africanas.
Fechando a discussão de “Canto das três”, Clara Nunes, quando era questionada sobre
essa canção dizia: “penso que a música não tem fronteira, é universal, a música é sentimento é
amor, e não precisa entender o idioma que eu esteja cantando, o importante é a emoção. Tem uma
música que eu canto que se chama canto das três raças, eu gosto muito dessa música, porque ela
resume toda a formação da música popular brasileira que foi a junção das três raças, do índio, do
negro e do branco que formou o brasileiro e a música popular brasileira que fala de sentimento, de
amor e de alegriaxxx
”.
A segunda música que acredita ser pertinente a abordagem é “Guerreira”, traz Clara
Nunes com sujeito presente no texto musical, além de vários versos terem sido utilizados como
subtítulos do presente trabalho, para tanto, segue a letra a ser analisada:
Se vocês querem saber quem eu sou/ Eu sou a tal mineira/ Filha de angola, de ketu e nagô/
Não sou de brincadeira/ Canto pelos sete cantos não temo quebrantos porque eu sou
guerreira/ Dentro do samba eu nasci/ Me criei e me converti/ E ninguém vai tombar a
minha bandeira/ Bole com o samba que caio e balanço o balaio no som dos tantãs/ Rebolo
que deito que rolo/ Me embalo e me embolo nos balangandãs/ Bambeia de lá que bambeio
nesse bamboleio que eu sou bambambam/ Que samba não tem cambalacho vai de cima em
baixo pra quem é seu fã/ Eu sambo pela noite inteira/ Até amanha de manhã/ Sou a Mineira
Guerreira/ Filha de Ogum com Iansã/ Salve Nosso Senhor Jesus Cristo Epa Baba Oxalá/
Salva São Jorge Guerreiro Ogunhê, Ogum meu pai/ Salve Santa Bárbara Eparrei minha
mãe Iansã/ Salve São Pedro Kaô Kabeci lê Xangô/ Salve São Sebastião Okê arô Oxossi/
Salve Nossa Senhora da Conceição Odô-Fiabá Iemanjá/ Salve Nossa Senhora das Graças
Ora eieiei Oxum/ Salve Nossa Senhora de Santana Nanã Burokê Saluba Vovó/ Salve São
Lázaro Atotô Obaluaiê/ Salve São Bartolomeu Arrobobô Oxumarê/ Salve o povo da rua/
Salve as crianças/ Salve os Preto-Velhos/ Pai Antônio, Pai Joaquim d'Angola, Vovó Maria
Conga/ Sarava/ E Salve o Rei Nagôxxxi
.
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Nessa canção o sujeito é a própria Clara Nunes e a letra é assimilada como uma
apresentação que a cantora fala quem é e, para que veio. Diz pertencer tanto a angola quanto a keto
e nagô, que são, na verdade, os dois grandes modelos de culto seguidos tanto pelas tendas de
Umbanda como terreiros de Candomblé no Brasil, o modelo angola baseado nas tradições bantas, e
o modelo keto/nagô na iorubá.
Sendo assim, seguindo a lógica da letra da canção, a cantora seria uma herdeira da cultura
de matriz africana no Brasil. Com o seu ofício, levaria os costumes de origem africana pelos sete
cantos, ou seja, para todos os lados, sem temer quebrandoxxxii
, pois estaria protegida pelos seus
orixás de cabeça que são Ogum e Iansã que apresentam características de valentia como destacado
anteriormente.
Clara Nunes ao gravar essa canção, buscava transparecer em âmbito nacional que era por
excelência uma cantora de samba, isso aparece explicitamente nos seguintes versos: “Dentro do
samba eu nasci/ Me criei e me converti/ E ninguém vai tombar a minha bandeira”. Ao considerar
que a cantora alcançou sucesso a partir do momento que passou a cantar sambas, estes versos fazem
sentido. Por fim, esta canção descreve sua conversão à Umbanda como religião, tanto na vida
pessoal como no sentido artístico adotando elementos da religiosidade de matriz africana a fim de
construir uma identidade artística.
A letra desta canção pode ser concebida como um ensinamento sobre as ressignificações
religiosas com relação aos santos católicos e os orixás, algo que foi comum como manifestações de
resistências dos negros a escravidão. Clara Nunes, na música “Guerreira” reverência com suas
respectivas saudações os orixás mais importantes do panteão ioruba e seus respectivos
correspondentes da religiosidade cristã.
Encerrando a discussão dessa canção, importante destacar que foi produzido um
videoclipexxxiii
, cujo cenário é a natureza. A cantora aparece de branco e fazendo as performances já
mencionadas acima e atrás dela a imagem que se tem é uma bela cachoeira. Enfim, a intensão do
videoclipe é evidenciar uma nacionalidade miscigenada para artista, além de demostrar a ligação de
Clara Nunes com a natureza, lembrando que orixás são concebidos como forças e defensores da
natureza.
Outra música interpretada por Clara Nunes que, não se pode prescindir uma analise
minuciosa, considerando a perspectiva que o presente trabalho pretende seguir, é Tributo aos
Orixás, esta ilustra a presença da religiosidade de matriz africana no trabalho da cantora, pois está
reverenciando os orixás, além de descrever a diáspora no sentido de deslocamento, abaixo seguem
os versos da canção:
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Agô-iê, Agô-iê, Agô/ Mutumbá, Mutumbá/ Pai maior,oni-babá!/ Trazidos por navios
negreiros/ Do solo africano para o torrão brasileiro (bis)/Os negros escravos/ Que entre
gemidos e lamentos de dor/ Traziam em seus corações sofridos/ Seus Orixás de fé/ Hoje tão
venerados no Brasil/ Nos rituais de Umbanda e Candomblé/ Neste terreiro em festa/ Entre
mil adobás prestamos nosso tributo aos Orixás/ Ao rei das matas: Okê bamboclim!/ Ao
vencedor das demandas: Guarumifá!/ À cacarucaia dos Orixás: Saluba!/ À grande guerreira
da lei: Eparrei!/ Nos rios e nas cachoeiras: Alodê!/ Ao dono da pedreira: Caô,Caô !/ À
rainha do mar: Adofiaba mamãe!/ E ao curandeiro das pestes: Atotô!/ Agô-iê, Agô-iê, Agô/
Mutumbá, Mutumbá/ Pai maior, oni-babá!xxxiv
Começando pelas três primeiras frases da música, é uma saudação a Oxalá. Neste contexto
é importante destacar como esse orixá é concebido pelo universo umbandista. Oxalá é considerado
e cultuado como o maior e mais respeitado de todos os orixás do Panteão Africano de origem
yorubana (nagô), simboliza a paz, é o pai maior das nações africanas que o cultuam, esta acima dos
demais orixás, considerando o imaginário religioso da Umbanda.
Segundo a mitologia dos orixásxxxv
, ele é calmo, sereno, pacificador, é o criador, portanto
respeitado por todos os orixás e nações que seguem os preceitos religiosos de origem yorubana.
Importante destacar que em muitos tendas de Umbanda ele se apresenta na imagem de Jesus Cristo,
porém a acepção é ressignificada. Em outras palavras, apresenta-se em uma imagem de origem
cristã, porém o sentido atribuído é diferentexxxvi
. Sendo assim, Oxalá só esta abaixo do Deus único
Zambi que é onipresente e irrepresentável.
Agora que se apresentou brevemente quem é Oxalá, voltamos para a letra; a canção se
inicia com a palavra “agô-iê agô”, esta é uma expressão de origem africana, especificamente
iorubana que significa pedir licença ou permissão para realizar algo; já a segunda expressão
“mutumbá” também de mesma origem, traz como significado pedir a benção, em seguida aparece
“Pai Maior oni-babá”, babá, é papai em iorubano.
Sendo assim, a interpretação presumível do inicio da música é um pedido de licença e
proteção ao Pai Oxalá, pois relacionando ao ritual religioso umbandista, nenhuma giraxxxvii
inicia-se
sem pedir a licença e a benção deste orixá, é Oxalá que dará a firmezaxxxviii
e o amparo necessário
para a realização dos trabalhos.
Os versos que vem logo após, é uma alusão perfeita da trajetória histórica dos povos
africanos, o primeiro descreve como ocorreu a diáspora negra enquanto deslocamento e, a condição
social que os negros assumiriam em terras brasileiras, em seguida, “ que entre gemidos e lamentos
de dor”, apresenta o estado de espírito que estes se encontravam. “traziam em seus corações
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sofridos seus orixás de fé”, demonstra que mesmo retirados de seu local de origem, a religiosidade
estava presente em seu imaginário.
Ainda refletindo sobre essa parte da música, o verso “hoje tão venerados no Brasil nos
rituais de Umbanda e Candomblé” evidencia a resistência cultural, pois aparece descrita
explicitamente a vitalidade religiosa que foi concretizada fora do território africano, neste caso
assimilando a diáspora como contatos e resignificações culturais, ou seja, compreendendo a cultura
como algo que ultrapassa territórios, ou na concepção de Homi Bhabha está para além das
fronteiras.
Outro ponto significativo presente na palavra escrita da música é o verso “neste terreiro
em festa”, traz como interpretação que o ritual religioso da Umbanda é algo prazeroso para os filhos
de santo, ou seja, estão participando porque gostam e desejam estar ali prestando seus tributos aos
orixás, o próprio nome da música contempla esta afirmação.
Ainda neste contexto, a palavra “adobá”, não aparece por acaso, esta significa a reverência
representada na forma de gestos que, consiste em se curvar até o solo e deitar-se com a cabeça em
direção ao reverenciado; ela só é executada dentro do espaço do terreiro ou tenda. Este é um gesto
realizado pelos iniciados para aqueles que possuem cargos significativosxxxix
, também se faz quando
os orixás e entidades se manifestam na gira.
Os demais versos se concentram nas saudações especificas de cada orixá, mesmo não
aparecendo o nome deles, estes estão sendo reverenciado, quando se fala “ao rei das matas: Okê
bamboclim!”, a alusão que está sendo feita é para Oxóssi, pois aqui também considerando a
mitologia dos orixás e logicamente o imaginário religioso, este é o orixá guardião da fauna e da
flora, representado pela Umbanda na forma de caboclo indígena que tem conhecimento das ervas
medicinais e que protege todos os animais da floresta.
Ogum o vencedor das demandasxl
e guerreiro também é reverenciado na canção,
“Guarumifá!” é um termo específico para saudar e homenagear esse orixá. “Cacarucaia dos
orixás: saluba!”, esta se referindo a Nanã, a mãe ancestral, antiga, “cacarucaia” significa velha e
“Saluba” é a expressão especifica utilizada para saudá-la.
Ainda na letra da canção aparece à veneração por Iansã que é “Eparrei”, esta é a deusa dos
raios, dos ventos e das tempestades, a grande guerreira. Mamãe Oxum, também é saudada na
expressão “Alodê”, a deusa da beleza e fertilidade que guarda os rios e as cachoeiras. Xangô, orixá
guardião das pedreiras e senhor defensor da justiça igual os demais é lembrado, pois além de
constar na música aquilo que ele rege, aparece a saudação especifica usada para idolatra-lo
“Caô,Caô”.
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Completando a analise da letra desta canção, aparece a frase “Adofiaba mamãe!”, que para
os adeptos ou aqueles que conhecem a Umbanda, sabem que a expressão está se referindo a
Iemanjá, a guardiã dos mares, das praias, das águas salgadas. Importante ressaltar que para os
umbandistas as águas salgadas tem o poder de purificar, ou seja, levar embora todas as energias
negativas que estavam com a pessoa.
Por último aparece à expressão “Atotô”, essa é a saudação especifica de adoração à
Obaluaiê, o protetor dos doentes, que trabalha pela saúde e o bem estar das pessoas, além de ser o
orixá do perdão e da misericórdia, pois considerando a religiosidade em questão essa é a cura maior.
Por fim, como uma boa gira a música termina saudando Oxalá, em outras palavras, todos os rituais
umbandistas se iniciam e se fecham saudando e pedindo a benção e a proteção do Pai Maior.
A performance preparada por Clara Nunes na apresentação desta música é algo elaborado
com maior intensidade. A cantora buscava representar um pouco dos gestos de cada orixá exaltado
na música, além de se apresentar com a roupa de um dos orixás femininos especifico; na maioria
das vezes caracterizada de Oxum, vestido amarelo ou de Iemanjá, que poderia ser um vestido
branco ou azul claro.
6.CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sucinta abordagem realizada trouxe em evidencia que a africanidade vinculada a Clara
Nunes foi um projeto artístico idealizado por Adelzon Alves e produzido pela gravadora Odeon, no
qual o objetivo era transformar a cantora reconhecida nacionalmente. A cantora buscou o prestígio
cantando diversos ritmos, como bolero, romântico e jovem guarda, e não obteve o sucesso esperado,
por isso, mesmo com a resistência inicial da gravadora, insistiu na ideia de Adelzon Alves e entrou
para o universo do samba no final do ano de 1969.
Fugindo dos padrões tradicionais das demais cantoras de samba da época, Clara Nunes
não apenas cantou sambas exaltando a religiosidade de matriz africana, e algumas músicas que
também apresentavam versos que evidenciavam as lutas antirracistas do movimento negro da
década de 1970. A cantora sempre que aparecia em público estava caracterizada com as vestimentas
dos filhos de santo da Umbanda, além da performance desenvolvida que estava atrelada as danças
de origem africana ou movimentos específicos dos orixás.
Portanto, a cantora é considerada uma das maiores propagadoras da cultura
afrodescendente na década de 1970. De certa forma conseguiu através dos sambas que interpretou
tirar a religiosidade de matriz africana do campo marginalizado, dando visibilidade para a Umbanda
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e o Candomblé em todos os meios sociais, em outras palavras, mesmo aqueles que não
frequentavam terreiros puderam conhecer algumas peculiaridades dessas religiões.
i Ver: NAPOLITANO, Marcos. História e Música: História Cultural da Música Popular. 3ª Ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005. p. 17. ii A entrevista que Clara Nunes concedeu a Rádio Jornal do Brasil: especial guerreira 09/1978 – (acervo particular da
pesquisadora), disponível no endereço eletrônico: http://www.youtube.com/watch?v=WA8lWaoRS78 e reportagens
diversas sobre vida e obra serviram de base para construir essa pequena narrativa sobre a cantora. iii
Rock'n'roll brasileiro. iv Religião de matriz africana que se formou no Brasil que reúne elementos das três culturas, a saber: africana, indígena
e europeia objeto central de analise deste trabalho. v Designação pejorativa atribuída aos vários cultos mágico-religiosos de matriz africana.
vi BAPTISTA, Rachel Rua. Tem Orixá no Samba: Clara Nunes e a presença do candomblé e da umbanda na
música popular brasileira. Dissertação de Mestrado, 2005. Universidade de São Paulo - Ciência Social (antropologia
social), p. 88 vii
Cor predominante das vestimentas dos filhos de santo da Umbanda. viii
Os deuses considerados forças da natureza cultuados pelas religiões de origem africana da nação iorubana que estão
presentes nos cultos de Umbanda e Candomblé no Brasil. ix
Fonte: videoclipe que faz parte do acervo particular da pesquisadora, disponível no endereço eletrônico:
http://www.youtube.com/watch?v=fk8DdpNKWPc x Orixá mulher, rainha do mar é a guardiã dos mares, das praias, das águas salgadas.
xi BOURDIEU, Pierre. Linguagem e Poder Simbólico. In: Economia das Trocas Linguísticas. (O que falar quer dizer).
São Paulo: Edusp, 1996. xii
FINNEGAN, Ruth. O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance? In: Palavra Cantada: ensaios sobre
poesia, música e voz/organizadoras: Claúdia Neiva de Matos, Elizabeth Travessos, Fernanda Teixeira de Medeiros –
Rio de Janeiro 7 Letras, 2008, p. 24. xiii
Ibid., p. 15-43. xiv
Ibid., p. 23-24. xv
BRÜGGER, Silvia. M. J. . Mestiçagem e afro-descendência na música de Clara Nunes. In: IX Congresso
Internacional da Brazilian Studies Association - Brasa, 2008, Nova Orleans. anais do IX Congresso Internacional da
Brazilian Studies association - Brasa. Nova Orleans, 2008. xvi
BAPTISTA, Rachel Rua. Tem Orixá no Samba: Clara Nunes e a presença do candomblé e da umbanda na
música popular brasileira. Dissertação de Mestrado, 2005. Universidade de São Paulo - Ciência Social (antropologia
social), p. 90. xvii
MORIN, Edgar. Cultura de Massa no Século XX: Neurose. Tradução de Moura Ribeiro Sardinha – 9. Ed. – Rio de
Janeiro: Fourence Universitária, 2005, p. 7. xviii
Ver: MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: O caso da Editora Abril. Tese apresentada ao
Departamento de Doutorado em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP, 1997.
xix
Segundo Clóvis, quilombagem é o movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos
que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional. Movimento de mudança social
provocado, ele foi uma força de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos níveis –
econômico, social e militar – e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse
substituído pelo trabalho livre (1989, p. 22). xx
Ibid., p. 19 xxi
MUSSA, Alberto. SIMAS, Luiz Antonio. Samba de Enredo: História e Arte. – Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p.12-13. xxii
NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: Utopia e Massificação (1950-1980). 3ª Ed., 2ª reimpressão. – São
Paulo: Contexto, – Repensando a História, 2008. xxiii
Embora a definição do termo seja muito mais complexa, no contexto que se apresenta no texto seu sentido será
atribuído ao deslocamento normalmente forçado de grandes massas populacionais originárias de uma zona determinada
para várias áreas de acolhimento distintas e, contatos e ressignificações culturais. xxiv
Seres transcendentais que fazem parte do panteão da Umbanda tais como: marujos, caboclos, boiadeiros, baianos,
preto-velhos etc... xxv
Composição de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, 1976.
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xxvi
Para saber sobre as práticas de negociações entre senhores e escravizados, ver: REIS, João José; SILVA, Eduardo.
Negociação e conflito: resistência negra no Brasil escravista. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. xxvii
Representa o orixá da força da luta, do trabalho, da providência e da afirmação positiva. xxviii
Agrupamentos de espíritos afins que possuem a mesma energia que Oxóssi. xxix
Colares usados pelos médiuns durante as giras e, em alguns casos no dia-a-dia que servem para proteger os filhos de
santo de energias negativas. As cores vão variar de acordo com cada orixá ou entidade. xxx
Transcrição da fala de Clara Nunes retirada da última entrevista de Clara Nunes à Marília Gabriela- TV mulher
acervo particular da pesquisadora, disponível no endereço eletrônico:
http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&nr=1&v=t8rjuao3spc xxxi
Composição de Paulo César pinheiro e João Nogueira, 1978 xxxii
Esta palavra no contexto da música se apresenta com o significado de feitiço, bruxaria ou sortilégio. xxxiii
A fonte analisada é do acervo particular da pesquisadora, também encontra-se no seguinte endereço eletrônico:
http://www.youtube.com/watch?v=lvMtqeWvBRo xxxiv
Composição de Duarte, Noca e Tavares, 1972. xxxv
Ver: PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Companhia das Letras, 2001. xxxvi
Essa ressignificação, não é recente, teve início muito antes da formação da Umbanda. Nas primeiras décadas da
escravidão brasileira, africanos com o intuito de resistir à imposição da religiosidade europeia, cultuavam imagens de
santos católicos, atribuindo um significado peculiar com base na religiosidade africana. Sobre o assunto ver mais em:
MATTOS, Regiane Augusto de. História e Cultura afro-brasileira. – São Paulo: Contexto, 2007. xxxvii
Nome do ritual umbandista. xxxviii
Considerando o imaginário umbandista, está palavra apresenta-se no sentido de força e proteção. xxxix
São cargos significativos dentro do terreiro ou tenda de Umbanda: Chefe de terreiro ou Babalorixá como alguns
chefes gostam de ser chamados, Ogan (confirmado que canta e toca os pontos) e médiuns antigos (incorporam orixás e
entidades). xl
Trabalhos e ações de energias negativas realizadas com a intenção de causar o mal na vida das pessoas.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ribeiro; revisão da tradução Fernando Rosa Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
BAKKE, Rachel Rua Baptista. Tem Orixá no Samba: Clara Nunes e a presença do candomblé e da
umbanda na música popular brasileira. Dissertação de Mestrado, 2005. Universidade de São Paulo
- Ciência Social (antropologia social) 112 p.
BARROS, José D´Assunção. O campo da história: Especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ:
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BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Tradução: Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e
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falar quer dizer). São Paulo: Edusp, 1996.
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CASALI, Rodrigo. Quando os baianos se pintaram de Dourado (S): aspectos das práticas religiosas
umbandistas da cidade de Dourados- MS. Dourados – MS: UFGD, 2006 Dissertação (mestrado) -
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Edição 12 – Dezembro de 2016
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SÁ JUNIOR, Mario Teixeira de. A invenção da alva nação umbandista: a relação entre a produção
historiográfica brasileira e a sua influencia na produção dos intelectuais da Umbanda (1940-1960).
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação de História da UFMS, 2004.