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TENSÕES E PERSPECTIVAS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA EM ECOLAS PÚBLICAS ESTADUAIS DE MATO GROSSO DO SUL: AS CONTRBUIÇÕES DOS ESTUDOS CULTURAIS EEEugenia Portela de Siqueira Marques UFGD 1 Valéria Aparecida M. O. Calderoni - SED 2 Introdução Este artigo é resultado de discussões e de aprofundamentos epistêmicos acerca do tema Educação para as Relações Étnico-raciais, desenvolvido no projeto "Educação para as relações étnico-raciais e a descolonização curricular: o ensino da História e Cultura Afro- brasileira e Indígena no Estado de Mato Grosso do Sul de 2012 a 2016”, no âmbito da Universidade Federal da Grande Dourados, no período de novembro/ 2015 a 2016/ FUNDECT/CAPES n° 11/2015 Educa/MS Ciência e educação básica. O referido projeto tem como objetivo ampliar os estudos e pesquisas sobre a implementação da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo escolar das escolas públicas estaduais de Mato Grosso do Sul, por meio da implementação da Lei nº10.639/2003 e nº 11.645/2008. Os objetivos específicos consistem em descrever as políticas de formação docente voltadas para a educação das relações étnico-raciais no MS; discutir os impactos, tensões e desafios da implantação da nº10.639/2003 e nº11.645/2008 no currículo escolar; identificar os materiais pedagógicos produzidos pelos municípios que subsidiem a formação inicial e continuada de professores e o trabalho dos docente; mapear os projetos pedagógicos que objetivam a valorização e o respeito à diferença étnico-racial; analisar as legislações estaduais no sentido de identificar propostas de diferenciação curricular ou pedagógica para atendimento às diferenças; identificar e analisar, nos documentos curriculares locais (Projeto Político Pedagógico, entre outros), mecanismos propostos a perspectiva de educar para a diferença 1 Docente do Ppgedu da Faculdade de Educação da Universidade Federal a Grande Dourados. Líder do GEPRAFE. Chefe do Núcleo de estudos Afro-brasileiros -NEAB-UFGD. 2 Doutora em Educação pelo Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da UCDB, linha 3 Diversidade Cultural e Educação Indígena

TENSÕES E PERSPECTIVAS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA … · conhecimentos das legislações e os desafios para a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

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TENSÕES E PERSPECTIVAS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA E CULTURA

AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA EM ECOLAS PÚBLICAS ESTADUAIS DE

MATO GROSSO DO SUL: AS CONTRBUIÇÕES DOS ESTUDOS CULTURAIS

EEEugenia Portela de Siqueira Marques – UFGD1

Valéria Aparecida M. O. Calderoni -

SED2

Introdução

Este artigo é resultado de discussões e de aprofundamentos epistêmicos acerca

do tema Educação para as Relações Étnico-raciais, desenvolvido no projeto "Educação para

as relações étnico-raciais e a descolonização curricular: o ensino da História e Cultura Afro-

brasileira e Indígena no Estado de Mato Grosso do Sul de 2012 a 2016”, no âmbito da

Universidade Federal da Grande Dourados, no período de novembro/ 2015 a 2016/

FUNDECT/CAPES n° 11/2015 – Educa/MS – Ciência e educação básica.

O referido projeto tem como objetivo ampliar os estudos e pesquisas sobre a

implementação da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo escolar das

escolas públicas estaduais de Mato Grosso do Sul, por meio da implementação da Lei

nº10.639/2003 e nº 11.645/2008.

Os objetivos específicos consistem em descrever as políticas de formação

docente voltadas para a educação das relações étnico-raciais no MS; discutir os impactos,

tensões e desafios da implantação da nº10.639/2003 e nº11.645/2008 no currículo escolar;

identificar os materiais pedagógicos produzidos pelos municípios que subsidiem a formação

inicial e continuada de professores e o trabalho dos docente; mapear os projetos pedagógicos

que objetivam a valorização e o respeito à diferença étnico-racial; analisar as legislações

estaduais no sentido de identificar propostas de diferenciação curricular ou pedagógica para

atendimento às diferenças; identificar e analisar, nos documentos curriculares locais (Projeto

Político Pedagógico, entre outros), mecanismos propostos a perspectiva de educar para a

diferença

1 Docente do Ppgedu da Faculdade de Educação da Universidade Federal a Grande Dourados. Líder do

GEPRAFE. Chefe do Núcleo de estudos Afro-brasileiros -NEAB-UFGD. 2 Doutora em Educação pelo Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da UCDB, linha 3 – Diversidade

Cultural e Educação Indígena

A perspectiva metodológica deste caminho investigativo assenta-se numa

abordagem de pesquisa de natureza qualitativa, como procedimento recorreu-se a um

questionário aplicado aos docentes, coordenadores pedagógicos e gestores participantes da

pesquisa. Neste artigo analisaremos algumas respostas do questionário, no que se refere aos

conhecimentos das legislações e os desafios para a implementação das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais.

As ferramentas teóricas epistemológicas e as contribuições dos estudos culturais

Os Estudos Culturais desde a sua origem com Hall (1972), estão conectados a

um modo de produção de análise cultural, pois, a “cultura” é uma categoria-chave para análise

de nossas relações sociais. O foco analítico de suas produções é gerado em torno de três

conceitos epistêmicos: cultura, poder e identidade. As análises culturais reservam-se a pensar

sobre os artefatos e práticas culturais, procurando (re) ver o quanto essas têm contribuído para

constituição de identidades e a representação de diferentes grupos culturais, analisando como

se constroem os significados num processo cultural. Segundo Hall (1997, 2003) devemos dar

centralidade a cultura. O autor afirma que:

[...] que não é que ‘tudo é cultura’, mas que toda prática social depende e

tem relação com o significado: conseqüentemente, que a cultura é uma das

condições constitutivas de existência dessa prática, que toda prática social

tem dimensão cultural (HALL, 1997, p.33).

Consequentemente, segundo o autor, a cultura é uma das condições

constitutivas de existência desta prática e “[...] que toda prática social, tem dimensão

cultural”. Ele ainda corrobora ao argumentar que, “[...] não que não haja nada além do

discurso, mas que toda prática social tem seu caráter discursivo" (HALL, 1997, P. 33).

Respaldados pela questão cultural que pauta nesse campo de saber, na

compreensão das sociedades e as nossas relações sociais com os povos colonizados a partir

das analises culturais, entendemos que há necessidade de revisar, ressignificar e construir

nosso entendimento do que seja cultura na contemporaneidade. Rompendo, assim, com a

visão elitista da cultura, torna-se possível perceber as relações de poder, ser e saber, pois a

“[...] cultura ocidental eurocêntrica que se autodeclara instituidora de padrões em todas as

dimensões da vida humana, governa os desejos e os sonhos e ainda invoca para si as

credenciais de magnanimidade” (COSTA, 1999, p. 65). E como nos faz pensar Bhabha (2003,

p. 65), “nenhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na

relação do Eu com o Outro”.

Discussões pertinentes sobre as Leis n° 10.639/2003 e n° 11.645/2008

Segundo dados do CENSO do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -

IBGE/2010, o Brasil é considerado o segundo maior país negro do mundo, com 96.795.294

habitantes que se declaram negros.

A população indígena, computada pelo quesito cor ou raça corresponde a

aproximadamente 818 mil pessoas, excluso deste cômpito 78,9 mil pessoas que se declararam

de outra cor ou raça, mas se consideravam indígenas de acordo com tradições, costumes,

cultura e antepassados, entre outros aspectos, esta população totalizaria em torno de 896,9 mil

pessoas.

Tendo como referência a população brasileira, em 2010, que era de pouco mais

de 190 milhões de pessoas, pode-se dizer que quase metade desta população é preta ou parda,

acrescido ao número significativo de indígenas, teríamos mais da metade da população

brasileira se autodeclarando não branca. Esses dados possibilitam problematizar o tratamento

dado aos saberes destes povos, tratos de "minorias" com seus saberes subalternizados.

Os dados são pertinentes quando levamos em conta que há um número

considerável de alunos indígenas, pretos/pardos significativamente grande, o que nos permite

refletir sobre as questões epistêmicas que envolve os conhecimentos da história e cultura dos

povos africanos, afrodescendentes e indígenas.

Se considerarmos os dados do CENSO/IBGE/2010, há uma questão a se

pensar: Porque os movimentos negro e indígenas tiveram que lutar para que nos espaços

escolares os processos culturais da história e cultura dos povos indígenas e afrodescendentes

fossem garantidos? Tal provocação é para que percebêssemos que ainda vivemos em um

contexto social e cultural marcado pela colonização e subalternização dos povos colonizados

na perspectiva eurocêntrica dominante.

Nosso olhar sobre os povos africanos e indígenas estão construídos com as

marcas culturais e sociais em decorrência de como foram ordenados no mundo, com ele

posicionamo-los como os “outros”, como “os diferentes”, e este posicionamento decorre

através do poder que é “outorgado” pela cultura ocidental, pelos colonizadores (BHABHA,

2003).

Salientamos que muitas imagens e discursos produzidos pelos ocidentais sobre

os povos indígenas e africanos foram utilizados para assegurar e garantir a construção de um

processo colonial no Brasil, esses discursos foram usados para justificar a subalternização a

que estes povos foram e são submetidos.

Ressalta-se que as construções discursivas passaram a ser utilizadas como uma

maneira de assegurar a dominação e afirmar uma "realidade"3 de mundo. Costa (1999),

argumenta que a “[...] cultura ocidental eurocêntrica que se autodeclara instituidora de

padrões em todas as dimensões da vida humana, governa os desejos e os sonhos e ainda

invoca para si as credenciais de magnanimidade” (p.65). Como afirma Dayrell (1996, p. 141):

Nessa perspectiva, nenhum indivíduo nasce homem, mas constitui-se e se

produz como tal, dentro do projeto de humanidade do seu grupo social, num

processo contínuo de passagem da natureza para a cultura, ou seja, cada

indivíduo, ao nascer, vai sendo construído e vai-se construindo enquanto ser

humano...

O contexto e os processos de colonização, as relações de identidade e

diferença, precisa ser revisto, não mais a partir de um único referencial, não mais

considerando ou partindo de uma classificação hierarquizada, construída pelo único modelo

cultural, o hegemônico, o ocidental. Segundo Bhabha (2003, p.21- 22):

As diferenças sociais não são simplesmente dadas à experiência através de

uma tradição já autenticada; elas são os signos da emergência da

comunidade concebida como projeto - ao mesmo tempo uma visão e uma

construção - que leva alguém para “além” de si para poder retornar, com um

espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente.

3 Apresentar os discursos de uma realidade una, são [...] marcas do eurocentrismo que pode ser entendido como

“um universalismo, pois propõe a todos a imitação do modelo ocidental como a única saída aos desafios do

nosso tempo” (Mata 2014, apud Amin, 1988, p. 8).

Na busca por uma educação intercultural contra hegemônica, pela

desconstrução das amarras discursivas colonialistas e pelo fortalecimento identitário,

construiu-se um movimento social com pressupostos e objetivos não eurocêntricos. Esse

movimento contestava a estrutura social e cultural marcada epistemologicamente por uma

base eurocentrada, como ele viu-se a possibilidade de educar nas escolas para as relações

étnicos raciais.

O processo de dominação europeia impôs e legitimou epistemologias centradas

numa única lógica, contudo a resistência da cultura indígena e africana presentes nas relações

sociais permaneceram, apesar de silenciadas no currículo ou subalternizadas. As

reivindicações do Movimento Negro e Indígena sempre tensionaram os debates sobre

educação e currículo escolar, entendendo-o como uma política educacional voltada para a

afirmação das diferenças e afirmação das identidades.

Por que precisamos dessas leis?

Contextualizando historicamente, somente em 2003, foi promulgada a Lei

10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e prevê o ensino da história e

da cultura afro-brasileira no currículo da educação básica. E em 2008, essa Lei é alterada para

a Lei 11.645/2008, que mantém o ensino da história e da cultura afro-brasileira e acrescenta o

ensino da história e da cultura dos povos indígenas, garantindo pela força de uma lei que a

diversidade cultural e a identidade do povos brasileiro fosse trabalhada no currículo escolar,

pois até então prevalecia apenas os conteúdos geopolíticos.

Revisitando o contexto em que se deu a promulgação das leis nº 10.639/2003 e

11.645/2008, observamos que em dezembro de 1996, foi sancionada a Lei 9394/1996, Lei de

Diretrizes e Bases da Educação – LDBEN/1996. A LDBEN/1996 instituiu as Diretrizes e

Bases da Educação Nacional. Reporta em seu texto modificado as Emendas Constitucionais

nº 14/96, nº 53/2006 e EC nº 59/2009.

A Lei nº 10.639/2003 é fruto do Projeto de Lei n º 259/99, proposto na Câmara

dos Deputados pelo então Deputado Federal pelo (PT/MS), Eurídio Benhur Ferreira, ativista

do Movimento Negro de Campo Grande (Grupo TEZ Trabalho - Estudos Zumbi) e, pela

Deputada Federal Ester Grossi (PT/RS). Foi aprovada em 1999 e somente promulgada em 9

de janeiro de 2003, sofrendo dois vetos sob a alegação de ser as propostas inconstitucionais.

Foram retirados do texto original os trechos que faziam menção ao percentual de "[...] dez por

cento de seu conteúdo programático anual ou semestral à temática africana e afro-brasileira e

a proposta quanto aos cursos de capacitação para professores ligadas ao movimento afro-

brasileiro e às universidades” (PEREIRA; SILVA, 2016, p.8)

O artigo 26 LDBEN/1996 passa a ser redigido:

Art. 1º A Lei n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts.

26-A, 79-A e 79-B:

"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se

obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da

África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação

da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e

política pertinentes à História do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de

todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História

Brasileiras.

§ 3º (VETADO)"

"Art. 79-A. (VETADO)"

"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da

Consciência Negra’."

Com a tensão dos movimentos indígenas e indigenistas em 2008, a Lei 11.645

traz a alteração para a LDBEN que a partir de sua aprovação passa a ter a redação:

Art. 1º O art. 26-A da Lei n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a

vigorar com a seguinte redação:

Art. 26- A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino

médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e

cultura afro-brasileira e indígena.(Grifos nossos).

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos

aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da

população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o

estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos

indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o

índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas

contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história

do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos

povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o

currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de

literatura e história brasileiras.” (NR)

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

As legislações supracitadas possibilitam perturbar a naturalidade da forma

como as relações sociais e culturais estão postas e arrumadas em nossa sociedade

ocidentalizada, afinal sem esse arcabouço jurídico, a história e a cultura dos povos que estão

presentes em nossa história e formação identitária, ainda estariam sendo ignoradas e

silenciadas. Assim, ocorreu um deslocamento epistêtmico que rompeu com a lógica

monocultural.

Segundo Bhabha (2003, p. 65) “[...] nenhuma cultura é jamais unitária

em si mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu com o Outro”. Os processos

coloniais vividos fizeram com que a hegemonia européia imperasse no Brasil. Bhabha (2003)

chama a atenção para o fato da diversidade cultural em nosso país ser um legado de tradições

colonialistas.

Com as referidas leis, busca-se uma alternativa de educação numa

perspectiva intercultural e decolonial, para que se possa combater às desigualdades sociais, os

preconceitos, o racismo e a hierarquização de saberes, provocados pela colonialidade ainda

vigente em nossa sociedade.

Tensões e Perspectivas nos dizeres dos docentes

Neste artigo, problematizamos as tensões e perspectivas de ações pedagógicas

voltadas para as leis nº 10.639/2003 e nº11.645/2008, promulgadas com o intuito de valorizar

a cultura afro-brasileira e indígena. Pois, precisamos conhecer os processos coloniais vividos,

colocar para abolir as tensões e conflitos da colonização e colonialidade ainda vigentes para

poder valorizar a ancestralidade desses povos e suas culturas.

Com as análises de nossas ações pedagógicas, podemos afirmar que as Leis nº

10.639/2003 e nº 11.645/2008, trazem para a escola uma série de questões que antes eram

silenciadas, provocam a discussão da diversidade e diferença cultural para comunidade

escolar. Entretanto, precisamos provocar o entendimento sobre as diferenças culturais

existentes em nossa sociedade e a dificuldades de se respeitar a alteridade das culturas

diferentes.

Esteban (2009, p. 1), ao discutir a escola pública, contribui afirmando que

A Escola Pública torna-se um lugar significativo na experiência dos sujeitos

subalternos que se hibridizam em seu movimento de adaptação e resistência

às expectativas do outro, em seu esforço para identificar-se com o discurso

hegemônico e nele adquirir sentido. Porém, a hibridização, a ambivalência,

presentes no discurso subalterno, atuam no sentido de que a conformação

aos discursos do outro seja matizada pelo desacordo quieto, estranho, velado,

produzindo alguma deformação, nem sempre compreensível, mas

freqüentemente sentida: uma rasura, uma inconformidade.

Percebemos que passados mais de uma década após a promulgação da Lei

10.639/2003, que é orientada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das

Relações étnico-raciais, a estrutura curricular na formação inicial de professores e os

programas de formação continuada não rompeu com a colonialidade e nem possibilitou a

desconstrução epistemológica das imposições da lógica hegemônica eurocêntrica, conforme

identificamos nos dizeres quando analisamos as falas dos professores participantes da

pesquisa, em resposta ao questionamento: O que você sabe sobre a lei nº 10639/2003?

De acordo com a professora P- 474, "A Lei 10.639/03, alterada pela Lei

11.645/08, torna obrigatório em todas as escolas, publicas e particulares, do ensino

fundamental ao ensino médio o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana e

indígena".

Até o momento de construção desse artigo a pergunta foi respondida por 153

profissionais que atuam na educação, entre professores, gestores e coordenadores

pedagógicos, dos quais 88% responderam que conhecem a legislação em tela, contudo

algumas respostas merecem ser problematizadas, como por exemplo: "Trata-se da

obrigatoriedade de desenvolver projetos que relatem e retrate a história de tal povo", argumenta o

professor - P. 96 (2017). Já o professor -P 153 (2017) nos diz: "Que os professores deveriam trabalhar

com a cultura africana e afro-brasileira no desenvolvimento das atividades". Ou ainda, nos

deparamos com afirmações como: “Absolutamente nada" afirma o P-51 (2017).

Trata-se de professores que se encontram em sala de aula e lidam em seu fazer

pedagógico com os sujeitos culturais diferentes. Ou seja, não tendo conhecimento sobre a

4 Como forma de disciplinar o entendimento e manter o anonimato dos participantes, as escolas e os entrevistados serão identificados como: P- referindo-nos a Professor, e o número a seguir refere-se a sua posição

na ordem do questionário, esta é alienatória . Esse padrão é extensivos aos demais.

história e cultura do povo africano, afro-brasileiro e indígena seguem marcando as identidades

dos alunos com as representações e estereótipos (re)produzidas pela colonialidade,

prevalecendo no currículo escolar a hegemonia curricular europeia.

A questão da colonialidade se sobressai, especialmente, quando os

questionamos: Quais as dificuldades para implementação da Lei 10.639/03 nas escolas de

um modo em geral?

Os desafios que enfrentados para que possa, de fato, implementar a Lei estão

relacionados: 1. a falta de um projeto/plano de trabalho para as escolas que

servisse para melhor esclarecer os professores sobre a Lei; 2. políticas

públicas voltadas para a formação de professor; a desigualdade social que

gera um preconceito mais forte; 3. resistência por parte de alguns

professores, 4. falta de livros. ( P – 147, 2017).

A descontinuidade de políticas de governo são fatores que afetam as políticas

de diversidade de um modo em geral, apesar das legislações alterarem a LDBEN/1996, ou

seja, trata-se da Lei que rege a educação no país, nota-se na fala da entrevistada que não há no

estado de Mato Grosso do Sul, capacitação ou programa de formação continuada voltada para

a Educação das Relações étnico-raciais, nos últimos 10 anos, apesar de identificarmos que no

Plano Estadual de Educação, a meta 7.37 dispõe que:

Contribuir para a implementação das respectivas diretrizes curriculares

nacionais, por meio de ações colaborativas com fóruns de educação para a

diversidade étnico-racial, conselhos escolares, movimento social negro,

lideranças educacionais indígenas e com a sociedade civil, na vigência deste

PEE-MS. (PEE-MS,2017. Disponível em <http://www.sed.ms.gov.br/wp-

ontent/uploads/sites/67/2015/05/pee-ms-2014.pdf. Acesso em 07 de Mai. de

2017).

Na fala da professora P-106 (2017), percebemos que o preconceito também se

efetiva, possivelmente pela ausência de conhecimentos. Segundo a professora,

Acredito que as maiores dificuldades são o preconceito com a cultura

africana, ranços dos longos anos de escravidão no Brasil. A demonização das

religiões e tradicionais africanas [...] contribuem para a disseminação do

preconceito e dificultam a abordagem do tema em sala de aula e na escola

(P-106).

É necessário salientar que a ausência na formação inicial da docente poderá ser

sanada por meio de formação continuada, para tanto é imprescindível que as Secretarias de

Educação promovam cursos, seminários, workshops, oficinas que possam potencializar o

trabalho pedagógico. É possível também buscar a realização de parcerias com a Universidade

e os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e indígenas, que possuem essa finalidade.

Outra afirmação que se trata das dificuldades para implementação da Lei

10.639/03, que merece nossa atenção, pois segundo a P-140 (2017), os temas culturais "[...]

só é tratado em novembro em sua data" - P. 140. Outro entendimento errôneo é reduzir os

conhecimentos dos povos africanos e indígenas na condição de folclórico, somente como algo

exótico. Este entendimento aparece na fala da P-135, ela nos diz: "No tempo para desenvolver

o trabalho, uma vez que apresentações artísticas demandam preparação e ensaios" - P.135

(2017). Os saberes dos povos africanos e indígenas devem ser colocados no cotidiano da

escola, como saberes curriculares necessários a nossa formação, mesmo porque estão nos

dizeres e fazeres de nossos alunos, entretanto não são legitimados.

As falas dos docentes revelam que a escola trabalha apenas no dia 20 de

novembro, em comemoração ao Dia da Consciência Negra, em homenagem à morte de Zumbi

dos Palmares, o famigerado “DIA DE...” ou o Currículo turístico, conforme alerta Santomé

(1995, p. 174-175). E no caso dos indígenas a comemoração ainda de forma estereotipada se

repete anualmente nas escolas no dia 19 de Abril, “Dia do índio”.

Entendemos que a discussão sobre os conhecimentos dos povos africanos e

indígenas não devam se restringir a um só dia, não esteja restrita à sala de aula, à escola, ao

professor e a uma dada faixa etária, mas sim que ela permeie todos os dias e diversos lugares,

para que isso se efetive, cabe à gestão da escola garantir sessões de estudos e reconstrução do

Projeto Político Pedagógico e Proposta Pedagógica da escola, a fim de que possam

coletivamente ressignificar a prática pedagógica.

Santomé (1995) nos alerta para o tratamento dado à diversidade cultural no

sentido de não cairmos em uma proposta de trabalho do tipo Currículos turísticos. Segundo

autor “[...] as culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários – ou marginalizados que não

dispõem de estruturas importantes de poder costumam ser silenciadas, quando não

estereotipadas e deformadas para anular suas possibilidades de reação” (1995, p. 161). Dentre

alguns tratamentos dados a currículo escolar, o tratamento souvenir seria quando entre o total

de unidades didáticas só se trabalha uma pequena parcela da temática, ou seja, “[...] só uma

pequena parte serve de souvenir dessas culturas diferentes” (p.173), partes naturalmente

escolhidas e definidas a partir de nossos parâmetros e interesses. Outra abordagem

apresentada pelo autor e que bem se apresenta na fala do docente é o de desconectar a

abordagem da diversidade, que se manifesta através da dedicação de determinadas datas - “O

Dia DE ...” - sendo a diversidade trabalhada em um determinado dia e ou uma determinada

disciplina, sendo que “no restante dos dias do ano letivo, essas realidades são silenciadas...”

(p.173).

Ao pensar sobre os desafios postos à formação das relações étnicos raciais na

escola, estes levam-nos a pensar sobre o caráter monocultural da escola, sobre as visões de

cultura, educação, que não dão conta dos desafios encontrados em uma sala de aula “tomada”

por diferentes grupos sociais e culturais inegavelmente presentes. Entretanto, concordamos

com Costa (2007), quando esta argumenta:

Mas o que me move e me apaixona, hoje, é a convicção de que estamos

começando a trilhar novos e diferentes caminhos, e que estes podem nos

levar a descobrir espaços cotidianos de luta na produção de significados

distintos daqueles que vêm nos aprisionando, há séculos, uma naturalizada

concepção unitária de mundo e da vida (COSTA, 2007, p.14).

Neste trabalho nos propusemos a pontuar as tensões e conflitos para se

trabalhar com a diversidade e diferenças na escola, mas também acreditar que começamos a

trilhar novos e diferentes caminhos (COSTA, 2007), nos preocupamos em solicitar dos sujeitos

que vivenciam tais conflitos como poderiam ser criadas políticas públicas para amenizar a

questão, segundo os entrevistados torna-se necessário:

As escolas, os professores precisam de material didático e cursos de

formação nessa área para que possam trabalhar este tema. Muitas vezes os

professores são criticados por trabalhar a temática de forma errada, estão

reproduzindo preconceitos, mas a verdade é que estamos pouco preparados

para o assunto. Precisamos de subsídios, materiais, cursos, orientação enfim,

senão nunca vamos conseguir mudar a realidade (P -62. 2017).

O grupo indígena do Mato grosso do Sul, o segundo maior da federação em

contingente populacional e nunca citados nos livros didáticos, somente no

período colonial vimos vagamente e de forma generalizada algo sobre essa

temática ...Não existem nas escolas materiais adequados para que possamos

realizar um trabalho de qualidade. Deveriam disponibilizar documentários,

livros paradidáticos e talvez houvesse a necessidade desses assuntos tornar-

se disciplinas específicas a fim que seja realmente cumpridas. (P-6, 2017).

Os deslocamentos epistêmicos trazidos pelas legislações são fundamentais para

que a educação intercultural se efetive na escola, por meio de uma pedagogia crítica e

decolonial, entretanto, precisamos pensar nas questões epistêmicas que envolvem a formação

docente.

Considerações finais

A inserção da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo escolar

resulta das reivindicações dos Movimentos Sociais e Intelectuais que apontaram para a

necessidade imperiosa de ressignificar o currículo, dar visibilidade e reconhecimento da

presença das diferenças negra e indígena no espaço escolar.

As orientações para que as universidades ofereçam disciplinas voltadas para

essas temáticas, nos cursos de licenciaturas, representaram, sem dúvida, um avanço

significativo. Contudo, verificamos pelas falas dos docentes, que estes não participam de

capacitação ou formação continuada, isso demonstra que o sistema de ensino estadual de

Mato Grosso do Sul não está cumprindo as determinações legais, tampouco o Plano Estadual

de Educação.

As reflexões advindas dos Estudos Culturais possibilitam problematizar os

processos colonialistas e ir além da contemplação da diversidade, pois elas nos tencionam a

rever o entendimento sobre as diferenças culturais que permeiam as práticas pedagógicas nas

instituições escolares.

A análise das falas dos professores investigados indica que estes vivenciam

uma tensão constante, que os desafiam a atuar numa perspectiva intercultural, contudo

verificamos que apesar da maioria reconhecer a necessidade de trabalharem para promoção da

educação das relações étnico-raciais, estes precisam de uma formação para o trabalho com os

saberes africanos e indígenas na escola, sem abandonar o entendimento de que também

podem buscar alternativas individuais para garantir que a História e Cultura Afro-brasileira e

Indígena sejam ensinadas.

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currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-

brasileira, e dá outras providências). Disponível em <

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as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a

obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Disponível em <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em 07 de Mai. de

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