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“A Formação do Conceito de Direitos Humanos” Juliana Neuenschwander Magalhães

Tese de Doutorado - Juliana - Formação DH.pdf

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  • A Formao do Conceito de Direitos Humanos

    Juliana Neuenschwander Magalhes

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    Hilrio Meekes, o.f.m., que fala a lngua

    dos anjos.

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    Sumrio

    Introduo ................................................................................................................................ 5

    Captulo 1. Humanitas ........................................................................................................... 15 1.1 Um conceito fssil

    1.2 Gregos/barbarum 1.3 Humanitas e Roma 1.4 Humanitas/divinitas 1.5 Pessoa 1.6 Humanitas e direito: uma preadaptative advance?

    Captulo 2. Humanitas cvica..................................................................................................89 2.1 O Homem na estratificao: sdito e cidado 2.2 Superior/inferior: a diferena rei/sdito 2.3 Superior/inferior: a diferena nobre/plebeu 2.4 Superior/inferior: a diferena cidado/no-cidado 2.5 Ius e Potestas: a aproximao estrutural e semntica de direito e poltica 2.5.1 Aequalitas 2.5.2 Proprietas 2.5.3 Libertas

    Captulo 3. Natureza humana dos Direitos Humanos ........................................................146 3.1 A natureza moral do homem como natureza poltica

    3.2 Soberanos/sditos 3.3 Tirano/povo 3.4 Catlicos/protestantes

    3.4.1 Direito de resistncia 3.4.2 Direito de tolerncia 3.4.3 Paradoxos: resistncia e tolerncia

    3.5 A natureza humana e a natureza dos direitos: o indivduo e a pessoa 3.6 Direitos naturais e fundao do absolutismo poltico

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    Captulo 4. Estrutura e funo de um paradoxo: Direitos Humanos ..............................221 4.1 A diferenciao da Economia: a propriedade como direito humano 4.2 A diferenciao da Poltica: a liberdade como direito humano 4.3 A diferenciao do Direito: a igualdade como direito humano 4.4 Paradoxos: universalidade e contingncia dos direitos humanos

    Consideraes Finais .........................................................................................................

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    Introduo

    WAS STECKET DAHINTER?1

    O que caracteriza o Ocidente a retrica do universalismo. Os postulados desta forma enunciados so supostos como aplicveis a todos sem exceo e sem diferena. O

    universalismo ignora as distines do prximo e do distante. Ele incondicionado e abstrato (...) Ora, na medida em que nossas possibilidades de ao se acabaram, a distncia entre as pretenses e a realidade no cessa de aumentar. O limite da hipocrisia objetiva encontra-se

    franqueado: ento que o universalismo revela-se uma armadilha moral

    Hans Magnus Enzensberger

    1 O que se esconde por detrs?

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    Direitos Humanos uma expresso que, na linguagem contempornea, tornou-se

    usual. Poder-se-ia mesmo dizer que o uso tornou essa uma expresso banal, trivializada, inflacionada. O discurso dos direitos humanos auto-legitimante, auto-evidente2, auto-referente, auto-reciclvel. A tradio pensou esses direitos fundados na prpria natureza do homem. Direitos humanos, na viso que ainda hoje majoritria, so entendidos como direitos que os homens tm em funo da natureza que os distinguiu enquanto homens. Nessa viso, os direitos, tanto quanto os homens, so portadores de uma natureza: fundar-se-iam, portanto, naquilo que por natureza eles guardam em comum com os homens.

    Ocorre que, se os direitos so to naturais quanto os homens, estranho que no tenha ainda sido objeto de surpresa o fato de que os direitos no podem, como os homens, serem tocados, vistos, percebidos, que possam ter sua realizao observada. O drama dos direitos humanos que deles se pode apenas falar, por eles se pode clamar, reivindicar. Nesse falar, precisamente, consiste a sua caracterstica universal. Mas no possvel, em parte alguma,

    perceber a extenso de sua realizao como concretizao. O horizonte da realizao dos direitos humanos ou percebido como infinito ou, tragicamente, como mnimo. Por isso, paradoxalmente, os direitos humanos so percebidos, apenas, na medida em que so objeto e tema de reivindicao: o que ocorre, quase sempre, nas condies em que esses so negados ou violados.

    Observar essa realidade dos direitos humanos consiste, em nossa opinio, na nica forma de se evitar as velhas retricas universalista, que facilmente adquire o contorno, como mencionou Enzensberger na epgrafe acima, de uma armadilha moral. Por isso, ao invs de reconstruirmos uma noo de direitos humanos, procurando fugir de armadilhas desse tipo para, depois, novamente nelas nos enredarmos, procuraremos oferecer uma outra resposta, diferente. Ao invs de evitarmos os paradoxos dos direitos humanos, iremos assumir os direitos humanos como sendo, em sua constituio, paradoxal.

    A partir de tal assuno, consideramos que uma observao das diversas verses do paradoxo dos direitos humanos hoje, possivelmente, a forma mais radical3 de se levar a srio esses direitos. Uma observao sociolgica da semntica social que forjou a idia de

    2 Conforme a Declarao de Independncia dos Estados Unidos da Amrica do Norte: We hold these truths to

    be self-evident, that are men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness. 3 No sentido que Karl Marx emprestou ao termo.

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    direitos humanos permite inferir que nem mesmo aquela noo de natureza humana, que justificou filosoficamente a moderna inveno dos direitos , por sua vez, natural.

    O que significa natureza? Autores antigos, como Fenelon, j elogiavam autores ainda mais antigos, como Virglio e Homero, porque neles la nature se montre partout, partout lart se cache soigneusement4. Por natureza se indicava, aqui num sentido positivo, a totalidade dos seres e das coisas no universo. Natureza, para o homem grego , como disse uma vez Heidegger, tanto o cu quanto a terra, a pedra como a planta, tanto o animal quanto o homem, assim como a histria humana enquanto obra dos deuses e dos homens; enfim, e em primeiro lugar, os prprios deuses, enquanto tambm eles esto submetidos ao destino.5 Essa concepo de natureza, como veremos, j no a mesma que depois foi construda pelo pensamento cristo, quando esse fraturou a ordem cosmolgica com uma profunda diferena qualitativa, aquela que estabeleceu a diviso do mundo entre criador e criaturas e que, distinguiu, dentre essas ltimas numa escala de seres - o homem. O universo foi visto como manifestao da natureza, mas no mais de uma natureza qualquer, e sim natura ars Dei. Essa foi uma concepo tambm diversa daquela que, mais tarde, como veremos, identificou a idia de natureza dos homens com a natureza dos direitos. Aqui, a palavra natureza j adquirira uma outra conotao, sendo utilizada em referncia a apenas uma parte do universo, suscetvel de ser considerada independente do resto: natureza como o conjunto das caractersticas prprias de uma classe de seres, os homens.

    Este foi o uso que correntemente a expresso natureza humana encontrou no sculo

    XVII e XVIII, em que seu sucesso realizou-se juntamente com a difuso do termo direitos humanos. A expresso natureza humana passou a significar, ento, o gnero humano

    enquanto formador, na natureza, de um rgne distinct, ao qual pertencem gnralement tous les hommes qui ont une me spirituelle et raisonnable.6 A razo, faculdade humana e no mais exclusivamente divina, foi dessa forma concebida como a nota distintiva dos homens em relao aos demais seres. No pensamento naturalista daquele tempo, o homem encontrou sua especificidade, enquanto natureza humana, ao lado da tambm natureza de Deus, da natureza dos anjos e, tambm, da natureza dos animais. A palavra natureza passou ento a ser utilizada para designar principalmente a infinidade de seres e coisas do mundo em sua singularidade, ou seja, em suas particulares e diferentes naturezas... Como diria bem mais

    4 MERCIER, Roger. La rehbilitation de la nature humaine. Seine : Edition la Balance, 1960, p. 12.

    5 HEIDEGGER, Lepoca dellimmagine del mondo, in Sentieri interrotti, Firenze, 1968, pp. 89-90, apud

    Milano, Persona in Teologia, Napoli: Edizione Devoniane, 1984, p. 16. 6 MERCIER, Roger. op. cit., p. 13.

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    tarde Michel Foucault, o homem foi uma inveno do sculo XVII, uma recentssima criatura fabricada pela demirgica do saber.7

    Se uma noo do homem natural no , ela mesma natural, nossa pergunta : como se tornou plausvel a construo segundo a qual a natureza dos direitos seria a mesma natureza dos homens? Por que no a dos anjos, ou a dos animais? A natureza dos direitos no , evidentemente, a mesma dos homens. A natureza dos homens quis que eles fossem homens, e no esttuas de pedra, esculpidas para a eternidade dos direitos humanos. Os homens amam e tm raiva, so inteligentes e estpidos, graciosos e vulgares, tm coragem e sofrem com o medo, experimentam a alegria e a dor; so lcidos e, em sua lucidez, insanos... Como, ento, foi possvel ser sustentada a tese segundo a qual os homens so interpretados como homens porque tm, naturalmente, direitos, ao passo que esses direitos se deixam fundar na natureza humana dos homens, exatamente, porque esses so sujeitos de direitos? Como fundar de maneira plausvel a noo de direitos humanos a um s tempo universal e plural?

    Essas so perguntas particularmente relevantes, hoje. Nenhuma poca recorreu tanto idia de direitos humanos quanto a nossa. Na poltica e no direito, na economia e na educao, na arte e na cincia, muito se produziu em nome da humanidade dos homens. Crianas foram escola, ainda que estas fossem instituies segregadas; regimes polticos despticos foram derrubados, ainda que para isso fosse feita a guerra e, posto que no h guerra sem vidas ceifadas, homens fossem mortos. Falou-se em crimes contra a humanidade e, tambm, em inimigos da humanidade.

    Raras vezes, no entanto, procedeu-se a uma reflexo: o que a sociedade indica como sendo a humanidade na qual se funda a noo de direitos humanos? Quando a sociedade - e, portanto, a poltica, o direito, a arte, a economia etc - refere-se noo de humanidade, ela est indicando a si mesma ou aponta para problemas de seu ambiente? Como se construiu uma semntica social em torno do termo humanidade, at que essa servisse, enquanto sinnimo de natureza humana, de base para a fundao dos direitos humanos? E como esta semntica no apenas refletiu, como tambm tornou possvel, mudanas estruturais na sociedade? E, finalmente, qual a realidade da humanidade dos homens?

    Na tentativa de encontrar respostas para essas perguntas, procuraremos ao longo dessa pesquisa refazer o percurso semntico-evolutivo do conceito de direitos humanos. Os autores costumam apontar os sculos XVII e XVIII como o momento do nascimento da

    7 Prima della fine del XVII secolo, luomo non esisteva, come non esistevano la potenza della vita, la fecondit

    del lavoro, o lo spessore storico del linguaggio. una creatura recentissima quella che la demiurgica del sapere fabbric con le sue mani, meno di duecento anni or sono. FOUCAULT, Le parole e le cose, p. 332, apud MILANO, cit., p. 18.

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    moderna concepo de direitos humanos. Nesta pesquisa, no estamos interessados em descrever o processo histrico de fundamentalizao e, conseqentemente, de constitucionalizao daqueles direitos, assim como, tampouco, estamos interessados em catalogar tais direitos ou at mesmo indicar como aquele elenco inicial foi acrescido por sucessivas geraes de direitos declarados...

    Nossa pesquisa volta-se para a observao dos problemas sociais que foram resolvidos mediante a inveno da moderna noo de direitos humanos. Se olharmos para os problemas sociais que se pretendeu solucionar atravs das solenes declaraes de direitos humanos, veremos que tais problemas remontam a uma poca muito anterior quela em que foram concebidos como humanos os direitos (ainda que, ento, aqueles fossem problemas que se apresentavam e se deixavam resolver de maneira diversa). Os direitos humanos foram uma resposta para o problema tipicamente moderno da diferenciao funcional dos sistemas poltico e jurdico. A modernidade da sociedade moderna consiste, precisamente, na diferenciao funcional dos sistemas sociais, com o abandono das referncias estratificatrias que caracterizavam a sociedade que a precedeu. Esse passo se tornou visvel na cincia e na economia, no direito e na poltica, na moral, na religio, na educao, na arte... Para distinguir-se das formas de sociedade precedentes, a sociedade funcionalmente diferenciada se autodenominou moderna.8

    O conceito de moderno pode ser entendido apenas como uma estratgia da autodescrio da sociedade que consiste em deslocar a referncia desta sociedade, para a construo de sua identidade, desde o passado at o futuro. Para a nossa pesquisa, no entanto, importante considerar qual a mudana estrutural que a noo de moderno, no sentido moderno do termo, veio marcar. Essa diferena estrutural que faz da sociedade moderna algo diferente das sociedades que a precederam ocultada pelo deslocamento temporal do passado para o futuro. Sempre nessa direo, a sociedade contempornea acaba por apontar o futuro em relao quele futuro que, outrora, se denominou moderno. O futuro do futuro, desse modo, acaba por ser descrito mediante um outro rtulo, ps-modernidade. Ps-moderna, se ensina, a sociedade que j no capaz de se reconhecer nas certezas oferecidas pela razo,

    8 Observamos, com Luhmann, que a palavra "moderno" no , por sua vez, moderna. Isso parece soar paradoxal

    e, na realidade, paradoxal. Na verdade, a semntica da palavra antecede a mudana estrutural que essa, na "modernidade", veio mais tarde indicar. Uma observao desta semntica traz a constatao de a expresso modernus conheceu, na Antigidade e na Idade Mdia, um uso retrico: "la distinzioni antiqui/moderni serviva allora solo per distribuire lode e biasimo, mentre l'attribuzione a questo o a quello veniva lasciata all'autore e ai suoi intenti retorici". Com o surgimento da imprensa e a decorrente conscincia das transformaes sociais, a distino antigo/moderno passou a referir-se sociedade ou a partes desta, principalmente no que diz respeito s cincias e s artes. A sociedade passou a descrever a si mesma a partir desta distino, sendo que, se na antigidade e no perodo medieval o antigo era percebido como o lado positivo, na modernidade o valor positivo da diferena antigo/moderno identificado com o outro lado, moderno. Cf. LUHMANN, Osservazione sul moderno, Roma, Armando Editore, 1995, p. 11.

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    que j no capaz de se garantir em relao ao futuro, que j no pode se autodescrever mediante as categorias da modernidade: liberdade, propriedade, direitos humanos, soberania...

    Fala-se em ps-modernidade, paradoxalmente, exatamente para apontar a no-realizao da modernidade. Mas como se pode falar de um ps de algo que no existiu? Por isso, no vemos sentido em se falar j em uma ps-modernidade e nem entendemos que, na atualidade, haja uma revoluo estrutural capaz de nos obrigar, tambm, a usar de uma nova categoria semntica para descrever essa sociedade. certo que, hoje, as caractersticas da sociedade moderna tornaram-se mais visveis do que h quinhentos anos atrs, quando o processo de diferenciao funcional apenas se iniciava. O fato de que nessa sociedade existam distncias regionais que no so podem ser reconduzidas diferena cento, ou que no podem ser atribudas to somente s distines de classe, sem que, com isso, se incorra no risco da hiper-simplificao, apenas um sinal desse fato. Da mesma forma, apenas porque essa uma sociedade global possvel falar-se em globalizao, por exemplo, como um processo que evidencia, paradoxalmente, aquelas diferenas regionais. Tudo isso revela o fato de que, nessa sociedade, no h um princpio garantidor da incluso generalizada de todos (os homens) em todos os sistemas sociais. Nem mesmo quando se pretende fazer isso mediante o apelo aos chamados direitos humanos.

    II

    A difusa iluso de uma ps-modernidade obriga-nos, no entanto, a iniciar nossa discusso pelo ltimo captulo da histria dos direitos humanos. Essa uma longa histria, na qual conquistas semnticas no s refletiram como consentiram, na sociedade, profundas mudanas estruturais. Como se ver, evitaremos indicar um momento em que teve origem a idia de direitos inatos dos homens. Recordaremos passos, passagens e instantes que, por sua particular relevncia ou por mero acaso, foram delineando, ao longo dos sculos, a estranha idia de que o direito uma expresso da humanidade do homem. O momento grandioso desse sonho foi aquele da realizao das Revolues, no contexto das quais os direitos humanos exerceram sua fora desestabilizadora das antigas hierarquias, da velha ordem dos privilgios. Depois, adormeceram os direitos humanos nas molduras das declaraes penduradas nas paredes dos gabinetes e reparties.

    Por certo que os direitos dos homens tornaram esses mais prximos dos direitos; mas tambm verdade que, em nome de seus inatos direitos, tantos homens perderam qualquer direito... O ltimo captulo da histria dos direitos no relata a fora transformadora ou

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    revolucionria deles, no fala de como o sonho da condio humana como condio de iguais teria se tornado possvel. Aqui se escreve, ainda, a luta de uma cincia do direito por seus fundamentos, na tentativa desesperada de salvar seus antigos princpios, numa sociedade que j no se reconhece nesses princpios e que, por isso, ainda que a modernidade no tenha passado de um projeto inconcluso, se declara ps-moderna.

    Na viso de muitos, a sociedade ps-moderna globalizada, o que significaria que dominada pela economia.9 Globalizao a palavra da moda. Sob esse rtulo se recolhem as perplexidades dos juristas e dos socilogos, habituados a pensar o direito e a poltica como um produto dos Estados nacionais.10 Para eles, a globalizao uma espcie de chave com a qual se pretende abrir os mistrios do presente e do futuro11. O fato de ser uma palavra "de moda" fez com que globalizao, mesmo tendo surgido para supostamente apontar algo novo, esteja j desgastada pelo uso excessivo e pouco rigoroso que dela se tem feito. Hoje j h um certo cansao da idia de globalizao. Esse certo "cansao" da expresso reflete o fato de que globalizao , na verdade, um termo vazio de novidade, na medida em que o fenmeno a que se refere no , de fato, novo. E, como j observou Raffaele De Giorgi, as modas conceituais so idnticas s demais: inundam o mercado, do segurana aos consumidores, gratificam por seu ineditismo e so fugazes12.

    A nova moda culpar a globalizao pelas mazelas sociais e, principalmente, pelos assustadores nveis de excluso social observveis na sociedade contempornea.13 A globalizao entenda-se a transnacionalizao dos mercados transformaria a excluso num fenmeno, tambm, transnacional. Para alm das diferenas internas aos Estados, so agora os prprios Estados (e com eles, sua populao) os excludos da sociedade global. A contrapartida do discurso da globalizao a reivindicao universal (e tambm global?)

    9 Essa no , como j acenamos acima, uma viso da qual compartilhamos.

    10 Gnther Teubner chega mesmo a dizer que a globalizao est matando o pai da soberania e tornando o

    paradoxo visvel. TEUBNER, 'Global Bukowina': Legal Pluralism in the World Society", in: Global Law without a State. Edited by Gunther Teubner. Singapore, Sydney: Dartmouth, 1997. 11

    "(..) una sorta di chiave con la quale si vogliono aprire i misteri del presente e del futuro". BAUMAN, Dentro a globalizzazione, Roma-Bari: Laterza, 1998, p. 3. A diferena entre o passado e o futuro, em perspectivas desse tipo, frequentemente marcada pelo fenmeno da transnacionalizao dos mercados que, por sua vez, teria levado constituio de formas poltico-jurdicas que dispensam a idia de soberania dos Estados. A conseqncia seria o aparecimento de formas no centralizadas de exerccio do poder, de ausncia de um comando da economia e, tambm, de formas no centralizadas de produo do direito, dentro e fora do Estado. 12

    DE GIORGI, Direito, democracia e risco, Porto Alegre: Srgio Fabris Editor, 1998, p. 38. 13

    As opinies dos autores que hoje tratam do tema oscilam entre aquelas em que "'globalizzazione' vuol dire tutto ci che siamo costretti a fare per ottenere felicit", e outras onde "la globalizzazione la causa stessa della nostra infelicit". Neste passo, Bauman aponta o surgimento de uma "lite global" , que vive uma experincia da no territorialidade do poder e que passa a vida "em movimento", enquanto os que esto abaixo da "pirmide" social estariam condenados ao imobilismo, "gaiola do Estado", do estar sempre o mesmo e no mesmo lugar. A elite global, "grazie alla nuova 'incorporeit' del potere espressa nella forma principale del potere finanziario, (...) diventano davvero extraterritoriali anche se, con il corpo, continuano a restare 'al loro posto' ". BAUMAN, Dentro la globalizzazione, Roma-Bari: Laterza, 1998, pp. 20-26.

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    pelos Direitos Humanos. No contexto de uma sociedade globalizada, o direito e, particularmente, os direitos humanos, conclui o discurso terico de maior circulao, cumprem um papel fundamental: os direitos so vistos como o corretivo para as desumanidades do mercado, para a desintegrao social supostamente promovida por um sistema econmico que, comandado pela lgica do capital, faz menos da humanidade dos homens.

    Direitos Humanos parece ser uma resposta adequada, portanto, tanto para o problema de se encontrar para uma sociedade que se reconhece global uma referncia universal, quanto para o problema de se fundar o direito e a poltica para alm do Estado nacional. O processo de positivao do direito, associado ao processo de organizao da poltica atravs do direito, que se iniciou no sculo XVI, aparentemente encontra-se superado por novas formas de produo do direito e de organizao do poder que prescindem da referncia dimenso propriamente estatal. O que se conheceu sob o rtulo positivao correspondeu, na verdade, apenas ao processo de crescente visibilizao do carter positivo do direito. O constitucionalismo, ao mesmo tempo a realizao e o declnio da Filosofia do Direito Natural, representa o ponto de chegada deste processo que, desde o sculo XVI, progressivamente foi-se impondo na Europa e Amrica: primeiro com a transcrio dos costumes do reino, depois com a permisso do rei para derrogar esses mesmos costumes e, depois finalmente, a de que este pudesse dispor do direito explicitamente na forma da lei, assim como o povo o fazia enquanto costume. s constituies escritas seguiram-se as codificaes que, no contexto do reconhecimento do carter histrico e positivo do direito, pretendiam substituir a ordem do direito natural pela ordem, tambm esta reputada perfeita, dos cdigos. De um lado, afirma-se que todo direito direito positivo (deixa de ter sentido pensar-se o direito como natural) e, de outro, assenta-se que todo direito positivo direito legislado, ou seja, posto legitimamente pelo Estado.

    O direito positivo moderno foi progressivamente liberando-se dos condicionamentos externos, naturais, capazes de construir externalizaes, ou seja, autolimitaes.14 Depois de ter se referido natureza e vontade de Deus, no contexto da descoberta da necessidade de um fundamento para a positividade do direito e de um fundamento para a "estatalidade" da poltica, que foi preparada aquela noo jurdica-poltica de soberania que, desde o sculo XVI apoiou uma concepo poltica da fundao do direito: do direito do direito dizer aquilo que direito e aquilo que no direito. certo que o sentido da soberania foi-se deslocando desde a afirmao do "direito como ordem do soberano" at a afirmao do "direito como

    14 DE GIORGI, Direito, democracia e risco, Porto Alegre, Srgio Fabris Editor, 1998, p. 155.

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    soberano", no contexto do Estado de Direito (Rechtstaat), assim como certo que teorias comprometidas com um modelo de cincia pura atacaram desde o incio do sculo XX o dogma da soberania para oferecer, como sucedneo desse, um novo dogma: norma fundamental.15 Essa, tambm, uma precria explicao acerca da gnese do direito a partir do prprio direito: se todo o direito direito positivo, assume desde o incio Kelsen, como pode ser o fundamento do direito uma norma que, por sua vez, no positiva? Embora seja evidente que, na Teoria Pura do Direito, o problema da fundao do direito tenha deixado de ser uma questo ontolgica para tornar-se um problema epistemolgico, o paradoxo permanece, por detrs daquela diferena entre ontologia e epistemologia, evidente.16

    A evidncia do carter artificial de um direito puro como objeto de uma teoria tambm pura do direito apontou para a necessidade de, mais uma vez, buscar-se por um fundamento para o direito. O desafio da doutrina jurdica do final do sculo XX consistiu em buscar explicar a fundao do direito tendo em vista tanto as fronteiras do jusnaturalismo como tambm aquelas do positivismo jurdico: de um lado, a excessiva abstrao da realidade e, de outro, o desprezo pela instncia material, com o abandono das questes de justia e interpretao. Tornava-se necessria uma resposta a um s tempo ps-positivista e no

    jusnaturalista. Nesse quadro inscreveram-se diversas teorias, que no sero objeto de anlise em nossa pesquisa, mas que em comum tm o fato de apontarem para o carter fundacional da noo de direitos humanos.

    Essas teorias trataram de reconstruir o discurso clssico dos direitos, em Ronald Dworkin, por exemplo, a partir da experincia do constitucionalismo liberal norte-americano e, em Habermas, mediante uma reelaborao em chave discursiva do sentido dos direitos humanos. A "tese dos direitos" a resposta oferecida por Ronald Dworkin tanto ao positivismo quanto ao utilitarismo, simultaneamente. Enquanto Dworkin concebe os direitos desde uma perspectiva tanto moral quanto poltica e jurdica,17 Habermas v o direito, na forma reflexiva da ao comunicativa, como o mecanismo que alarga e transforma as relaes concretas existentes entre pessoas naturais na relao abstrata de mtuo reconhecimento

    15 A soberania como dogma foi combatida por Kelsen j em 1920 (Problem der Souvernitt, trad.it. Il

    Problema della sovranit, Milano: Giuffr, 1998), antes da inveno da norma fundamental como resposta jurdica para o velho problema da fundao do direito. 16

    Sobre o paradoxo da norma fundamental em Kelsen, ver Luhmann, para quem Kelsen mais uma vez lana mo de uma referncia externa ao direito para fundar o prprio direito, desta vez no sistema da cincia. LUHMANN, Die Rckgabe des zwlften Kamels in TEUBNER, Gunther (Org.), Die Rckgabe des zwlften Kamels, Stuttgart: Lucius & Lucius, 2000, p. 10. 17

    Para Dworkin, a constituio funde questes jurdicas e questes morais, fazendo com que a questo da validade das leis dependa de complexas questes morais, como o problema de se estabelecer se uma determinada lei respeita a igualdade inata de todos os homens. DWORKIN, I diritti presi sul serio, Bologna: Il Mulino, 1982, p. 266.

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    destes como sujeitos de direito.18 O medium direito, na viso de Habermas, pressupe a anterioridade dos direitos, ali interpretada essa anterioridade no no sentido jusnaturalista dos sculos XVII e XVIII, mas na forma de se traduzir a autonomia privada dos cidados como sinnimo de liberdade comunicativa.19

    Essa fundao discursiva dos direitos humanos, no contexto da pesquisa que aqui apresentamos, consiste to somente na mais nova e sofisticada verso da tentativa de se reconduzir a um princpio fundante o paradoxo da unidade da diferena entre direito e poltica. Esse paradoxo, ocultado, reaparece sob a forma de um outro paradoxo: direitos humanos.

    Esse paradoxo, no entanto, apresenta um grande potencial operativo, porque consente ao direito realizar operaes que, sem o recurso aos direitos humanos, no seriam possveis. Todavia, as teorias dos direitos humanos por si s no esto em grau de oferecer garantias quanto humanidade de sua utilizao. Essas garantias no podem ser oferecidas, tampouco, por uma anlise sociolgica dos direitos humanos. Essa no , por isso, nossa pretenso. Mas a sociologia encontra-se em condies de, ao olhar de uma forma no dogmtica para os direitos humanos, observando como esse smbolo circula no sistema, propor alternativas s teorias tradicionais.

    18 HABERMAS, Fatti e Norme, Milano: Guerini, 1996, p. 266.

    19 Junatamente a Klaus Gnther, Habermas entende a liberdade comunicativa como a possibilidade

    mutuamente pressuposta no agir orientado ao entendimento de tomada de posio seja quanto s declaraes da contraparte seja quanto s implcitas pretenses de validade que com tais declaraes postulam um reconhecimento intersubjetivo. HABERMAS, Fatti e Norme, Milano: Guerini, 1996, p. 145.

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    Captulo 1

    Humanitas

    A formao do conceito de Direitos Humanos, ou seja, da noo de que existem direitos ligados condio humana dos homens, uma idia que se afirmou apenas aps os sculos XVII e XVIII, nas condies dadas pela modernidade da sociedade. O interesse por uma investigao desse tipo remete, portanto, a uma compreenso da sociedade moderna e da funo que o direito humano, nessa sociedade, vieram cumprir. Como hiptese de partida para uma investigao acerca da formao semntica dos Direitos Humanos, assumiremos a convico de que a histria dos direitos humanos e das sucessivas e cada vez mais generosas geraes desses direitos corresponde tentativa de atravs do direito enfrentar-se o drama maior de uma sociedade que, porque pretendeu uma universal incluso de todos os homens, tambm praticou uma forma universal de excluso social. Isso significa que, a contrrio do que as teorias tradicionais afirmaram, a apologia dos direitos humanos nada mais reflete que o agudo mal estar moderno em face da excluso social.

    Partimos, nessa pesquisa, da constatao de que, muito antes que a idia de humano coincidisse com a noo de direito, o apelo humanidade do homem serviu para estabelecer critrios de incluso e, portanto, tambm de excluso social. Considerando tal fato, assumiremos uma abordagem dos direitos humanos como mecanismo de incluso e, portanto, tambm de excluso social. Nesta direo, procuraremos verificar como a inveno dos direitos humanos refletiu e permitiu novas formas de incluso (e, portanto, tambm de excluso) social.

    Mas, nesse passo, surge uma outra curiosidade, dado que os direitos no incluem, mas permitem margens de excluso: a de saber porque uma referncia de incluso generalizada dos homens na sociedade tornou-se, para esta, necessria. Aponta-se, com isso, uma linha investigativa sobre a funo dos direitos humanos. Se os direitos humanos expressam os mecanismos de incluso dos homens na sociedade, mas no esto em condies de, por si s, inclu-los, isso ento significa que eles expressam, sobretudo, as formas tolerveis de excluso social numa sociedade em que se afirmou, atravs do sistema jurdico, a incluso generalizada. A funo dos direitos, portanto, no aquela com base na qual eles

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    supostamente se afirmaram. outra. Esconde-se por detrs das afirmaes da igualdade, da liberdade, da humanidade...

    Nossa hiptese a de que, na modernidade, os direitos humanos consistiram numa referncia comum poltica e ao direito, interessados em indicar uma fundao onde no h uma fundao. No sculo XVIII, juntamente com a noo de soberania popular, a noo de direitos humanos foi o sucedneo da referncia tradicional de ambos esses sistemas a um s fundamento, qual seja, a noo absoluta e jurdica-poltica de soberania. Como veremos, as diferenas entre direito e poltica, j ento visveis, justificam a referncia concomitante aos conceitos de soberania popular e direitos humanos.

    Esses conceitos nem sempre so coincidentes em suas implicaes semnticas e estruturais; muitas vezes, de fato, manifestaram-se como conceitos antagnicos: e isso at o ponto em que, mediante o apelo noo de direitos humanos, tornou-se possvel, inclusive, reconhecer a irrelevncia da soberania. Mas esses antagonismos so obscurecidos enquanto dura a plausibilidade destes conceitos para a soluo da legitimidade da poltica e da validade do direito. De um lado, a afirmao de uma soberania popular mostrou-se adequada para uma fundao da poltica num soberano que, afinal, nada decide: o povo20. De outro, a construo dos direitos humanos como pano de fundo para a fundao do prprio direito, transformou-se numa explicao aparentemente convincente sobre o nascimento da legitimidade a partir da legalidade e, tambm, de uma legalidade que pudesse ser afirmada, simultaneamente, como sinnimo da prpria legitimidade. Essa construo, evidentemente, no encontra embaraos no fato de que as pessoas, efetivamente, no sejam todas livres, iguais e proprietrias... Ocorre que, na verdade, no h antagonismo ou contradio entre direitos humanos e soberania popular. Conforme veremos ao longo de nossa investigao, o que h so dois conceitos que pretenderam, de maneira diversa, solucionar mediante uma referncia nica dois distintos problemas: aquele relativo fundao do sistema poltico e aquele relativo fundao do sistema jurdico. So conceitos que procuram oferecer fundao a sistemas que no conhecem um princpio fundador, porque se produziram a si mesmos. So, portanto, invenes, assimetrias, que visam ocultar o paradoxo da autofundao dos sistemas sociais e, mais especificamente, do direito e da poltica. Por isso, acabam eles mesmos, soberania popular e direitos humanos, revelando-se conceitos paradoxais.

    20 Essa realidade no impede, no entanto, que a democracia tambm seja uma realidade. Sobre a semntica da

    soberania popular, nosso trabalho Histria semntica do Conceito de Soberania: o paradoxo da soberania popular. Tese de Doutorado orientada por Raffaele De Giorgi e Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2000.

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    Por isso, funcionalmente a noo de direitos humanos anloga quela desempenhada por outros conceitos que, outrora, serviram de fundamento para o direito e para a poltica: natureza, Deus, razo, soberania... Mas, se anloga, no idntica. O que significa: atravs dos direitos humanos so indicados e solucionados problemas tanto iguais quanto diversos daqueles que se pretendeu resolver, no passado, com aquelas referncias (Deus, natureza, razo) e, no presente, com o concomitante apelo noo de soberania popular. Esses problemas esto relacionados, conforme indicamos acima, com a expectativa tipicamente moderna de que, atravs do direitos, possam ser solucionadas as questes ligadas excluso/incluso social.

    Nossa investigao consiste numa tentativa de reconstruo da semntica que, atravs da noo de direitos humanos, refletiu o apelo incluso generalizada dos homens na sociedade como necessria para a fundao do direito e da poltica na modernidade. Neste percurso, seguiremos a formao de um conceito que veio refletir problemas sociais que, atravs dele, encontraram uma soluo. A soluo jurdica da afirmao dos direitos uma construo tipicamente moderna, porque s a modernidade ofereceu as pr-condies que tornaram possvel o reconhecimento e, portanto, tambm a efetivao (ainda que esta tenha se dado, sobretudo, por negao) dos direitos.

    Os problemas sociais que os direitos vem resolver no so, por sua vez, tipicamente modernos: so problemas que, de outras formas, j se manifestavam tambm em outros momentos da evoluo social. Neste passo, essa investigao poder trazer considervel contribuio se olhar, tambm, para os conceitos fsseis que possibilitam identificar, tambm na sociedade antiga e medieval, a construo de solues para a incluso e, portanto tambm da excluso, social. Tal foi o caso do conceito de humanitas, da diferena entre gregos e brbaros, entre senhores e escravos, fiis e infiis, nobres e servos, soberanos e sditos, ricos e pobres... Nosso percurso terico, seguir esses guias fsseis como um fio condutor, capaz de oferecer uma orientao na trilha da construo dessas diferenas.

    Partiremos da noo de humanidade. Humanidade um conceito que, como veremos, se deixou sedimentar como pressuposto e produto do processo de diferenciao social. um conceito que, embora se expresse na forma de uma unidade, se deixou construir a partir de diferenas. A afirmao da humanidade requereu a indicao daquilo que, a cada poca, fosse considerado seu contrrio: a no-humanidade, o lado negativo, sombrio, excludo... A histria semntica da construo da idia de humanidade revela esse jogo de construo de diferenas, de reentrar de diferenas nas diferenas, o jogo no qual formas tornaram possvel a

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    produo de novas formas.21 Nesse jogo de diferenas que produzem diferenas, de formas nas quais reentram formas, a sociedade foi afirmando sua identidade em relao ao seu ambiente, ou seja, foi-se diferenciando como um sistema social distinto de seu ambiente.

    O modo como a humanidade dos homens foi descrita na evoluo social , na verdade, um problema relativo ao modo como a sociedade refletiu esse seu processo de auto-identificao. Isso at o ponto em que a diferena entre sociedade e humanidade foi assinalada como sendo no uma diferena, mas uma unidade. Paradoxalmente, foi precisamente quando a sociedade descreveu a natureza dos homens como nica, indivisvel (e o homem foi, finalmente, representado como individuum) que a sociedade descreveu-se como resultado da vontade dos homens: e isso sem que a ningum causasse surpresa que, no obstante as vontades fossem concorrentes, o mundo no fosse exatamente como pensado.

    A noo do homem como indivduo , como notrio, uma construo da modernidade. Integra aquela gama de idias que, nas palavras de Raffaele De Giorgi na bela apresentao da edio italiana de Vertrauen, so perversas porque produzem cegueira com sua excessiva luminosidade.22 Esses conceitos ocultam o fato de que processos de auto-identificao que os homens fazem de si mesmos no so resultado da natural racionalidade desses, mas constituem uma operao social. So processos de diferenciao social, mediante o qual se construiu no apenas a humanidade dos homens, mas tambm a diferena entre os homens e a sociedade. Aquilo que a sociedade chamou de humanidade dos homens (Menschenlichkeit) no um dado da natureza, porque no existe fora da sociedade. Na natureza existem homens, mas no as virtudes humanas, ou a racionalidade dos homens. O ser do homem um produto da imaginao social. Enquanto isso, a natureza humana encontra sua existncia, enquanto interioridade e conscincia, apenas no ambiente da sociedade. Essa interioridade e conscincia so, tragicamente, inacessveis comunicao. Ou seja, aquilo que a sociedade diz sobre a humanidade dos homens no apenas uma inveno social, como tambm irrelevante, para a sociedade, que essas descries correspondam ou no realidade dos homens. Atravs de observaes, a sociedade imagina como so ou deveriam ser os homens, desta forma construindo identidades e diferenas, realizando operaes sociais. Foi mediante esse processo de auto-identificao e, portanto, de autodiferenciao que a sociedade (e no os homens) construiu sua prpria identidade. O homem, enquanto conscincia, permaneceu excludo da sociedade, recluso em sua

    21 Utilizamos a expresso forma, aqui, no sentido preciso em que Niklas Luhmann e Raffaele De Giorgi

    tomaram de George Spencer Brown, utilizando-o na Teoria della Societ. LUHMANN & DE GIORGI, Teoria della Societ, Milano: FrancoAngeli, 1993, p. 17. 22

    DE GIORGI, Presentazione delledizione italiana in LUHMAN, Niklas. La Fiducia. Bologna: Il Mulino, 2002, p. XI.

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    interioridade. A sociedade, enquanto comunicao, continuou a falar do homem em sua indivisibilidade, em sua individualidade, em sua conscincia e necessidades...

    1.1 Um conceito fssil

    Uma pesquisa como a nossa no fruto, apenas, de uma curiosidade histrica. Nossa expectativa que de as reflexes que aqui desenvolvemos possam contribuir para uma descrio da estrutura e da funo dos direitos humanos na sociedade atual e, com isso, produzir novas direes para a prpria realizao dos direitos humanos. Uma nova modalidade de observao dos direitos humanos parece-nos imperativa.

    Nosso interesse no o de atravs da descrio das diferentes compreenses dos direitos humanos, alcanarmos um novo conceito: atual, inovador, ps-moderno, modisch. Mediante nossa reconstruo da histria semntica da noo de direitos humanos, queremos to somente descrever operaes sociais; e, atravs deste tipo de observao, verificar as mudanas estruturais e semnticas que o recurso aos direitos humanos consentem sociedade.

    A partir da deconstruo23 da histria semntica da palavra humanidade, ns intentamos reconstruir o processo de condensao do moderno conceito de direitos humanos. Esse conceito, entre os sculos XVII e XVIII, forjou na associao da natureza humana com a natureza dos direitos, uma fundao para a fundao do direito e da poltica na modernidade. Essa referncia aos direitos humanos como fundao do sistema poltico e jurdico consagrou-se, naquele perodo, como um mecanismo de incluso social dotado de pretenses de hegemonia. Mas tambm anteriormente a idia de humanidade esteve subjacente a todos os modelos includentes e excludentes que a sociedade construiu para si mesma, ainda que no fosse referida noo de direitos.

    Muito antes que surgisse a noo tipicamente moderna de direitos humanos, a expresso humanidade j era invocada, seja no terreno jurdico, poltico ou religioso. De maneira que a evoluo semntica da noo de humanidade muito nos revela sobre o sentido atual dos direitos humanos: humanidade uma palavra que, em sua trajetria, forjou diferentes conceitos, dentre esses, o de direitos humanos. Os vrios sentidos que se condensaram em torno da palavra humanidade refletiram, como veremos, os mecanismos

    23 Deconstruction draws attention to the fact that differences are only distinctions and change their use value

    when we use them at different times and in different contexts LUHMANN, Deconstruction as Second-Order Observing in: New Literary History, 1993, 24, p. 764.

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    de incluso e excluso social experimentados em diferentes momentos da evoluo da sociedade.

    Essas compreenses mudam e, com isto, mudam tambm os significados da expresso humanidade, neste sentido apresentada como um conceito histrico. E, como disse uma vez Luhmann, conceitos histricos so conceitos que fazem diferena na histria, que movem a histria. Isso no quer, apenas, dizer que estes so conceitos que surgem historicamente ou so conceitos que "fazem diferena na histria", mas significa, sobretudo, que essa diferena torna-se parte de seu sentido.24 Isso significa que, se a idia de direitos humanos, assim como as noes de humanidade, se deixaram conduzir pelas mudanas estruturais da sociedade, elas tambm permitiram que, mediante o recurso a tudo aquilo que inspiraram, a sociedade promovesse, por sua vez, novas transformaes sociais. Em torno dos conceitos sedimentam-se sentidos, que se transformam como expresso de uma modalidade da descrio social, na medida em que se modifica, tambm, a prpria sociedade. Nesta direo, podemos falar em uma evoluo histrica da semntica do conceito de humanidade e de direitos humanos. Podemos observar como a sociedade, ao descrever a si mesma, lanou mo da noo de humanidade.

    Observar essa semntica, como ela se construiu e como ela evolui, fundamental para a compreenso do significado desse conceito, dado que qualquer definio de "conceitos histricos" como direitos humanos pode abranger, apenas, parte daquilo que significam. Para que o conceito de direitos humanos possa ser compreendido de uma forma mais abrangente, necessria uma compreenso da situao histrica em que se tornou necessria, para que a sociedade descrevesse a si mesma, a inveno de tal conceito.25 Mais especificamente, necessrio olhar de perto o problema social especfico que, mediante a introduo de tal conceito, se pretendeu resolver, ou seja, qual sua funo.

    O termo humanidade foi utilizado, na Antiguidade, para designar tanto a prpria condio humana como as qualidades a ela inerentes, como a caridade (Menschlichkeit). At o sculo XVIII, a expresso humanidade foi utilizada para apontar qualidades dos homens, oscilantes a cada poca e, at mesmo, discrepantes entre si. Foi justamente quando

    24 Assim explica Luhmann a propsito de um outro conceito histrico, o de Estado: "() the notion of the state

    became an historical concept. By this term I mean not only a concept that has been used in history. Historical concepts are concepts that make a difference in history. They thereby move history. This historical difference, then, becomes part of their meaning. The state is, in fact, the modern state" LUHMANN, Essays on self reference. New York: Columbia University Press, 1990, p. 168. 25

    O que se d, tambm, com o conceito de Estado. Para uma compreenso deste, importante observar-se "the situation in which something like 'the state' became necessary, that is, the situation in which a formula for the self-description of the system had to be invented, given the only alternative: that the political system will not operate at the required level" . LUHMANN, Essays on self reference. New York: Columbia University Press, 1990, p. 168.

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    essas qualidades exprimiram-se como sinnimo de faculdades jurdicas, isto , de direitos, que o substantivo humanidade adquiriu um sentido tambm quantitativo, passando a ser empregado no sentido de totalidade dos homens (Menschheit)26. Hodiernamente, a expresso utilizada nesses dois diferentes sentidos que, como veremos, na verdade acabaram por consistir, ambos, em componentes da noo de humanidade. Se o sentido qualitativo de humanidade afirmou-se mediante a distino da natureza humana daquilo que, por no ser humano, indicado como diversa - a animalidade (Tierheit) ou a natureza divina (Gottheit) - o aspecto quantitativo do termo passou a ocupar maior espao, exatamente, quando o apelo noo de natureza j no produzia consenso e, portanto, sentido.

    Essa passagem relevante para a construo de nossa hiptese. Aponta para a convergncia entre generalizao e juridicizao do termo. Vista como qualidade jurdica, a humanidade encontra-se presente em todos os homens ou, pelo menos, em todos aqueles que meream serem tratados como tais. Revela, tambm, a ambigidade do termo, sua extrema flexibilidade e, portanto, sua absoluta no-naturalidade. Mesmo quando empregada como sinnimo de natureza humana, a palavra humanidade denotou distintas qualidades nos homens.

    No uso antigo e medieval, essas eram qualidades indicadas em contraposio natureza dos animais ou de Deus, de onde humanidade do homem correspondeu a certeza de que estes, enquanto homens, poderiam se diferenciar tanto dos animais (positivamente) quanto de Deus (negativamente)27. Contemporaneamente, humanidade foi sinnimo de um ideal tico, para o qual os homens se autodeterminariam. Nesse caso, a evoluo da noo de humanidade veio traduzir as transformaes na compreenso que os prprios homens tm do significado de sua humanidade, ou seja, da idealidade de sua condio humana. Assim que o termo acabou por adquirir, neste segundo percurso semntico, uma dimenso propriamente normativa que, posteriormente, estaria presente na associao desse ideal com o contedo dos direitos.

    At meados do sculo XVIII, tanto no sentido de essncia quanto no sentido histrico de idealidade, a palavra humanidade encontrou sua significao num contexto que era fortemente dominado pela religio. Para o cristianismo, a natureza essencial do homem poderia ser conhecida apenas em Jesus Cristo. Nesta viso, o homem foi visto como nada

    26 BRUNNER, Otto; CONZE, Werner e KOSELLECK, Reinhardt. Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches

    Lexikum zur politisch-sozial Sprache in Deutschland. Stuttgart: Keelt-Cotta, Band 4, 1979. p. 1063. 27

    Von diesem Begriff Menschheit als der natrlichen Bestimmtheit des Menschen ist Menschheit als die Bestimmung des Menschen zu unterscheiden Idem, ibidem, p. 1063.

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    mais sendo que uma imperfeita criatura de Deus28. A partir do sculo XVII, o giro antropolgico imps uma noo de humanidade desvinculada da religio, onde esta apareceu como sinnimo de auto-determinao e, portanto, da subjetividade dos indivduos. Neste momento, o conceito penetrou mais incisivamente no discurso jurdico-poltico como um princpio regulador da poltica e do direito. Por bvio, j anteriormente, e mesmo na Antiguidade, fez-se um uso poltico-jurdico do conceito de humanidade. Mas apenas no sculo XVIII a noo de humano foi invocada como princpio fundador do direito e da poltica. Na mesma poca, iniciou-se a utilizao do termo como um substantivo coletivo, que veio substituir noes mais antigas como cristandade para designar a totalidade dos homens.

    No sculo XIX, o termo humanidade j havia se mundanizado, perdendo sua significao qualitativa para se tornar um termo capaz de expressar, exclusivamente, o significado coletivo de totalidade dos homens. Nossa pesquisa orientar-se- por esses diferentes momentos, nos quais poderemos observar que aquilo que foi indicado como uma unidade, a humanidade, permitiu a introduo de novas diferenas.

    1.2 Gregos/Barbarum

    O mundo grego no conheceu expresso equivalente quela que, em Roma, exerceu uma funo determinante nas transformaes das instituies polticas-jurdicas: humanitas. No mundo romano, a expresso humanitas surgiu como sua criao autnoma, ainda que o impulso para a formao da palavra tenha se dado a partir da filosofia grega29. Isso porque o homem visto como ideal uma criao grega, traduzida numa noo de educao como um processo consciente, conforme observa Werner Jaeger: Os gregos viram pela primeira vez que a educao tem de ser tambm um processo de construo consciente. Constitudo de modo correto e sem falha, nas mos, nos ps e no esprito, tais so as palavras pelas quais um poeta grego dos tempos de Maratona e Salamina descreve a essncia da virtude humana mais difcil de adquirir.30 Desse sentido da formao do homem

    28 (...) die Wesennatur des Menschen nur in Jesus Christus gewusst und nur durch ihn verwirklicht gesehen hat,

    bedeutet Menschheit insofern dann das Menschsein als eine unvollkommenen Gottesgeschpfes Idem, ibidem, p. 1064. 29

    Cf. SCHULZ, Fritz. Principios del derecho romano. 2a ed. trad. Manuel Abelln-Velasco. Madrid: Civitas, 2000. pp. 211-212. 30

    JAEGER, Werner. Paidia, So Paulo: Martins Fontes, 1989, pp. 09-10.

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    grego que se revestiu a palavra humanitas desde o tempo de Ccero: tal a genuna paidia grega, considerada modelo por um homem de Estado romano.31

    Os gregos conheceram helenos e brbaros, senhores e escravos, cidados e estrangeiros, mas no assinalaram os respectivos lados positivos de tais distines (helenos, senhores, cidados) como uma unidade, uma totalidade, passvel de ser representada por um conceito como humanidade . Para tais fins utilizaram-se, simplesmente, da palavra grego, ou seja, utilizaram-se exclusivamente da referncia positiva da diferena entre gregos e no-gregos para assinalar a unidade desses dois lados. Por um lado noo de grego correspondia ao ideal do homem cultivado, que depois os romanos identificaram com a palavra humanitas. Mas a noo de grego equivalia, desta forma, no totalidade dos homens, mas apenas a uma parcela desses: o que significava, em contrapartida, que os no-gregos no eram homens.

    Contemporaneamente, a qualificao que os gregos fizeram de si mesmos deu-se por meio da indicao de sua diferena em relao aos no-gregos.32 Conforme observa Reinhart Koselleck, a qualificao de si mesmo e dos demais inerente sociabilidade cotidiana dos homens33.

    Niklas Luhmann e Raffaele De Giorgi indicam isto como uma forma de auto-observao do processo de comunicao34. A auto-observao permite a continuidade da prpria comunicao e, nesta, a primeira das diferenas a ser observada , possivelmente, a diferena entre Ego e Alter. Apenas a partir desta diferena possvel comunicar sobre a comunicao, identificando-se, a um s tempo, quem comunica, sobre o que se comunica e quais so os destinatrios da comunicao. Ego e Alter so conceitos que indicam as posies comunicativas e, portanto, tambm a possibilidade de participao no processo de comunicao: ambos participam da comunicao, e isso mesmo quando nela se constri uma diferena que permite afirmar Ego como superior, mais virtuoso, forte ou corajoso que Alter (e, portanto, mais adequado ao exerccio de alguns papis sociais). A diferena Ego-Alter corresponde construo de um primeiro mecanismo de incluso (e, via de consequncia, tambm de excluso) social. O fato de que a compreenso da comunicao, na atualidade, tem

    31 JAEGER, Werner. Paidia, So Paulo: Martins Fontes, 1989, p.10.

    32 Segundo Moses FINLEY, os gregos levaram mais de mil anos at encontrarem um nome que lhes fosse

    prprio: Dans nos jours, ils en portent deux. Dans leur propre langue, ils sont des Hellnes, leur pays sappelle lHellade. Graeci est le nom que leur donnrent les Romains e qui fut plus tard adopt de faon gnrale en Europe () Le histoire de ces dnominations est trs obscure () De mme, toute spculation reste vaine sur la date de lapplication dun nom unique tous les Grecs . FINLEY, Moses. Le Monde dUlysse, Paris: ditions la Dcouverte, 1986, p. 18. 33

    Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado. Para uma semntica de los tiempos histricos. Barcelona, Buenos Aires, Mxico: Ediciones Paids, 1993. p. 205. 34

    LUHMANN, Niklas & DE GIORGI, Raffaele. Teoria della societ. 7ed. Milano: FrancoAngeli, 1993. p. 117.

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    como central a categoria sujeito mesmo quando se fala em intersubjetividade obscurece a compreenso de que Ego e Alter no so sujeitos (mas sim posies comunicativas) e participam da comunicao se, e apenas se, cada qual deles , simultaneamente, ambos35. O que significa: a identidade de Ego se deixa construir, apenas, em relao a Alter; da mesma forma que Alter Alter, apenas, em relao a Ego. A observao da construo da identidade do homem grego, atravs da observao de como eles h seu tempo se auto-observaram, revela a plausibilidade deste ponto de vista.

    Como os gregos, ento, construram sua diferena em relao ao resto do mundo, ou seja, em relao quilo que foi identificado como no grego? Essa diferena foi desenhada no espao do mundo que, na viso grega, identificava-se com a noo de physis. Na viso do mundo como natureza que tinham os gregos, existiam homens e no-homens, homens e animais. O homem foi indicado como diverso dos animais e, ambos, animais e homens, foram indicados com partes de um mesmo universo, de uma mesma natureza. Aristteles indicava a particularidade dos homens em relao, de um lado, aos animais, a partir de uma concepo da natureza poltica da agregao dos primeiros (o que obviamente refletia a primazia da Polis na sociedade grega: o homem como zoo politikon); de outro, diferenciava os homens em relao a outros homens que eram, na verdade, no homens: brbaros, mulheres e escravos. A noo de natureza, enquanto perfectibilidade, assinalava assim o lado homem, enquanto que a natureza corrompida manifestava-se ou como animalidade, barbarismo ou condio feminina. Em relao aos brbaros, os gregos afirmaram sua identidade, que no era ainda vista como individualidade mas como um ideal a ser construdo, em relao a homens que, por balbuciarem, serem grosseiros e rudes, no mereciam ser chamados (e tratados como tais) de homens. A identidade do homem grego, do homem da velha Europa, afirmou-se assim como sinnimo de logos, ou seja, razo. 36

    Desta forma, a identidade dos gregos foi construda em relao aquilo que os gregos mesmos indicaram como sendo deles distinto: os brbaros. A marca dessa distino colocava em relevo uma caracterstica negativa daqueles que ento se chamou brbaro; brbaro foi

    35 Idem, ibidem, pp. 117-118.

    36 Ao mesmo tempo em que a razo foi identificada com a natureza dos homens, essa - como de resto a noo

    de natureza em geral - foi assimilada como sendo algo corruptvel. Segundo Luhmann, dessa forma Aristteles escondeu um paradoxo, colocando em seu lugar uma idia ambivalente. possvel conhecer a natureza apenas em sua natureza, no em sua corruptibilidade. Das hatte dann zur Bestimmung des Menschseins durch Vernunft gefhrt. Vernunft wurde dabei als Natur des Menschen begriffen und Natur, wie alle Natur, als korruptionsanfllig. Aristoteles hat hier eine Paradoxie versteckt in einer strategisch placierten Ambivalenz: Man knne die Natur nur an ihre Natur, nicht an ihren Korruptionen erkennen. Die Natur kann also natrlich und widernatrlich sein. Deshalb bleib die Theorie des Menschen und der Stadt eine in Physik und Metaphysik rckversicherte Ethik, also gebunden an das Normschema von konform/abweichend. LUHMANN, die Tcke des Subjekts und die Frage nach den Menschen in Soziologische Aufklrung 6. Die Soziologie und der Mensch. Darmstadt: Westdeutscher Verlag, 1985, p.155.

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    considerado aquele que fazia bar-bar, ou seja, aqueles que balbuciavam, aqueles que, por falarem outra lngua que no o grego, no eram gregos.37 Os gregos, nesta viso, eram o lado positivo da distino grego/brbaro. A humanidade grega, ainda que aos gregos faltasse a palavra, constitua-se na unidade da diferena entre helnicos (Ego) e brbaros (Alter). Durante os sculos IV e V a.C, este par de conceitos desempenhou o papel de indicar a universalidade dos homens como a unidade da diferena entre os homens, ordenados em grupos espacialmente separados. Os distintos lados gregos e brbaros - no se tratavam de contrrios38, ainda que a diferena revelasse, sem dvida, uma assimetria39. Essa assimetria, na realidade, corresponde indicao de um destes lados helnicos como sendo positivo e, outro brbaro como sendo negativo.

    Essa diferena entre gregos e brbaros, hierarquizada mediante a indicao da supremacia do lado positivo, era uma traduo da forma de diferenciao social prevalecente nas altas culturas da pr-modernidade, em que as hierarquias permitiam a identificao de um centro (polis) e uma periferia (campo, estrangeiro). A afirmao dos gregos como lado positivo tornava possvel a seleo dos brbaros como aqueles que ocupavam a periferia da sociedade. Nessa direo, o trao negativo do conceito de barbarum se deixava revelar no apenas no fato de que estes40 eram indicados como no-gregos, estrangeiros, mas tambm naquelas negativas referncias: se a princpio brbaro era aquele que balbuciava, no podia falar ou compreender a lngua grega, depois esses passaram a serem descritos como tambm covardes, cruis, grosseiros e glutes, de forma que o conceito de brbaro, inicialmente colocado como negativo, arrastava consigo outros traos negativos... Isso reforava a auto-representao dos gregos, por sua vez, como um povo educado, com seu idioma e sua arte, sua cincia e sua vida poltica.41

    37 CHAUVOT, Alain. Opinions romaines face aux barbares au sicle IV Ap. J.C., Paris : De Boccard, 1998, p.

    8. 38

    Para Koselleck, os lados so contrrios e assimtricos: Llamaremos asimtricas a aquellas coordinaciones desigualmente contrarias y que slo se aplican unilateralmente KOSELLECK, Op. cit. p. 205. 39

    Quando Koselleck fala em conceitos assimtricos, entende que estes e nvolvem dois lados que se excluem reciprocamente Pares de conceitos assimtricos deste tipo, prossegue, serviram para tentar abarcar o conjunto de todos os homens; so conceitos binrios de pretenso universal: e tais so os conceitos opostos de helnicos e brbaros, cristos e pagos, homem e no-homem ou, ainda, super-homem e infra-homem. Idem, ibidem, p. 207. 40

    Le culture sviluppate pre-moderne poggiano su forme della differenziazione che, in luogo decisivo della struttura, possono prendere in considerazione le disuguaglianze e trarne vantaggio. Se sono pienamente sviluppate, quelle culture utilizzano tanto la differenziazione stratificatoria, quanto la differenziazione centro-periferia. In virt delle acquisizione alle quali sono pervenute, esse possono essere definite come societ della nobilt o anche come societ cittadine: tuttavia, questi caratteri che esprimono prominenza interessano rispettivamente, solo una piccola parte della popolazione. LUHMANN, Niklas e DE GIORGI, Raffaele. Op. cit., p. 275. 41

    Buckhardt descreveu con moderada simpatia lo barbaramente que los helenos se trataron a s mismos tanto en lo justo de su juicio sobre s mismos como en lo que no corresponda o era ideal Cf. KOSELLECK, Op. cit., p. 213.

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    Como observa Koselleck, essas diferenas entre gregos e brbaros eram remetidas como se v em Aristteles - peculiaridade que faltava aos estrangeiros: a fundao da polis como uma organizao de cidados, oposta monarquia oriental, na qual se reuniam os helnicos em toda sua pluralidade, e da qual estavam, naturalmente, excludos os brbaros. Ou seja, na polis grega, helnicos so os includos, e brbaros aqueles que, preferencialmente, situam-se na periferia da sociedade. Neste passo a polis desponta, no mundo grego, como a representao da sociedade daquele tempo, ou seja, como a unidade da diferena entre gregos e brbaros, na qual somente os primeiros esto includos, precisamente porque os estrangeiros esto excludos. Esta diferenciao entre gregos e brbaros produziu, na cultura grega, muitas outras distines. Por exemplo, a diferena entre a guerra feita por gregos e gregos e aquela entre gregos e brbaros. Qualquer disputa entre gregos era tida como uma disputa entre irmos, uma guerra civil - stasis e, portanto, como uma enfermidade a ser evitada ou conduzida com a mxima moderao. J a guerra contra os brbaros polemos justificada por sua prpria natureza, devendo tender sua aniquilao42.

    Outro exemplo, ainda, a diferena que os gregos faziam entre homens livres e escravos. Na Poltica, Aristteles naturaliza de tal modo a diferena entre gregos e brbaros, que conclui que os brbaros so escravos por natureza, ao passo que os gregos, criadores da politeia pela arte de sua inteligncia e fora, esto determinados a domin-los43. Essa naturalizao da diferena grego/brbaro como uma diferena no apenas espacial, mas sobretudo qualitativa, permitiu que esta funcionasse na polis grega como critrio de incluso e excluso, tambm, no interior da cidade44. No centro, ou seja, na cidade, foi reproduzida a diferena centro/periferia. Isto fez com que os brbaros, ainda que vivessem na polis, continuassem a estar na periferia da sociedade. Mediante esta duplicao da diferena centro/periferia, tornou-se possvel, tambm, a consolidao de um centro no centro: a nobreza. Enquanto na periferia da polis todos so igualmente brbaros, na polis existem nobres e no-nobres e, tambm, os brbaros. Os brbaros so, aqui, o terceiro excludo; reduzidos a uma condio prxima da animalidade, estes so verdadeiras ferramentas animadas, adequadas ao trabalho escravo: a slave is an animate tool, and a tool is an inanimate cave .

    42 As, en virtud del dualismo asimtrico deba fundarse un espacio interior poltico y proteggerlo frette a la

    totalidad do mundo exterior. Cf. KOSELLECK, Op. cit., p. 213. 43

    Segundo Aristteles, barbarian and slave are the same in nature", de um lado; de outro, os gregos so both spirited and intelligent; hence it continues to be free and to have very good political institutions, ando to be capable of ruling all mankind. Politics, 1252b, 1327b. 44

    Koselleck aponta Aristteles como sendo o responsvel pela introduo da diferena dentro/fora no mundo grego: (...) Aristteles introdujo la separacin de dentro y fuera que caracteriz, en primer lugar espacialmente, la oposicin entre helenos y brbaros, para la fundamentacin del sistema interno de gobierno KOSELLECK, Op. cit., p. 214.

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    A utilizao da diferena grego/brbaro envolveu na Antiguidade, tambm, a dimenso temporal. Na literatura da poca, freqentemente relatada a proximidade dos costumes gregos dos tempos primitivos com os costumes brbaros de ento45. Neste quadro, a diferena entre brbaros e gregos adquiriu relevncia na auto-observao que os gregos faziam de si mesmos, ao se diferenciarem, tambm, em relao a seus antepassados primitivos, tambm eles incultos, se comparados ao homem grego da poca clssica. A prpria idia de educao, de formao, pressupunha essa distino em relao ao passado. Assim, olhar para o passado tornava tambm evidente a artificialidade da distino entre gregos e brbaros. Se, em outros tempos, tambm os gregos foram brbaros, tornou-se difcil sustentar uma tese naturalista com base na diferena dos costumes. Se os costumes se alteram ao longo do tempo, esses j no servem como critrio diferenciador, dado que no podem ser naturalizados, ou seja, no podem ser interpretados como physis.

    A diferena foi salva, ento, mediante a introduo de uma assimetria em relao ao tempo: o lado dos gregos marca o tempo presente, ao passo que os brbaros indicam, em relao queles, o passado. A diferena aparece como uma diferena temporal, capaz de indicar diferentes estgios culturais. Nesse sentido, gregos poderiam ter sido brbaros, assim como os brbaros poderiam vir a se tornarem gregos: fala-se de cultura e de barbrie. No apenas essa maior conscincia da historicidade da prpria cultura grega, mas tambm a sua expanso fez com que a diferena grego/brbaro fosse perdendo sua relevncia.

    O expansionismo exigiu, tambm, uma expanso da noo de pertinncia. J alguns sculos antes que surgisse a idia de uma ordem poltica universal, Digenes cunhou a expresso cosmopolitas, capaz de superar aquela bipartio tradicional entre gregos e brbaros. Nas vises posteriores cosmopolita, defendidas sobretudo pelo pensamento estico, a condio de grego ou brbaro desaparece ante a condio de cosmopolitas. Na vises tradicionais, gregos e brbaros eram posies auto-excludentes, pois ningum poderia ser grego e brbaro a um s tempo (embora um gnero pudesse ter sido, no passado, o outro). O expansionismo do mundo grego tornou perfeitamente plausvel, com o cosmopolitismo, com a concepo segundo a qual um cidado grego poderia, tambm, ser cidado do cosmos. Reforando o enfraquecimento da distino, Alexandre promoveu a fuso de gregos e

    45 En es poca los helenos habran participado de la toquesdad y sencillez de las costumbres brbaras: aparecer

    vestidos en el combate, llevar armas en la paz y salir a corso, comprar a las mujeres, escribir con mal estlo, privilegiar al acusador en el proceso, elegir voluntariamente a un gobernante desptico (...) KOSELLECK, Op. cit., p. 216.

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    brbaros. Como conseqncia, os gregos passaram a se identificar como a unidade de uma pluralidade46.

    Sob Alexandre, a humanidade experimentvel e sua organizao poltica pareciam quase coincidir47. O horizonte desta nova unidade descrito como homonoia e, mais tarde, concordia de todos os homens. A antiga diferena entre gregos e brbaros passou a ser aplicada de forma horizontal e qualitativa para indicar como grego qualquer pessoa educada (grego ou no grego) e como brbaro o resto, notadamente aqueles que no falavam grego corretamente, aqueles que balbuciavam... As caractersticas diferenciadoras, neste uso, j no so mais caractersticas naturais, ou ainda, naturalizadas. Sequer a situao espacial relevante.

    A dicotomia permaneceu, apenas, como um critrio hbil a diferenciar, na universalidade dos homens, aqueles educados dos grosseiramente brbaros. Neste uso, houve mesmo onde se indicasse o lado positivo da distino como sendo o dos brbaros: na escola cnica, por exemplo, o ideal a ser perseguido o do homem brbaro, simples, no cultivado, prximo da natureza e, tambm, da sua natureza. J o pensamento estico bateu-se contra a concepo aristotlica da diferena entre gregos e brbaros, afirmando ser esta uma contraposio antinatural, mas manteve a diferena naquilo que servia para sua prpria auto-identificao. Ao mesmo tempo em que rechaava os costumes ou o idioma como critrios contingentes de diferenciao, Plutarco definia as virtudes como gregas e a perversidade como brbara48. A nova unidade foi representada, pelo estoicismo, como cosmos. Na Cosmpolis estavam includos tanto gregos quanto brbaros, tanto homens livres quanto escravos. Os dualismos, neste quadro, adquiriram uma funo diversa, pois no se tratava de antagonismo ou contraposio, mas de conceitos complementares, conforme se pode observar, j no contexto romano, sob a influncia do pensamento de Stoa: Marco Aurlio tinha, enquanto Antonino, por ptria Roma; enquanto homem, sua ptria era o cosmos49.

    De toda sorte, a dicotomia grego/brbaro passou a desenhar-se no horizonte de um mundo que, de uma forma ou outra, fazia as contas com a descoberta ou seja, o reconhecimento de sua pluralidade. A distino original perde sua fora de convencimento, para depois ser reutilizada em outros contextos. A pluralidade do mundo exigiu o reconhecimento de que, para alm dos gregos, outros povos poderiam tambm ser cultos e

    46 As guerras persas, escrevem Luhmann e De Giorgi, resero i greci consapevoli della loro identit sia prima che

    dopo una identit appunto, che unisce la pluralit delle citt. LUHMANN, Niklas e DE GIORGI, Raffaele. Op. cit., p.244. 47

    KOSELLECK, Op. Cit., p. 217. 48

    Cf. KOSELLECK, Op. cit., p.218. 49

    MARCO AURLIO, Comm., 6, 44, apud KOSELLECK, Op. cit., p.220.

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    educados. Da reformulao da originria distino entre gregos e brbaros ocuparam-se sobretudo os romanos que, da perspectiva tradicional grega, eram considerados brbaros. A tarefa dos filsofos de Roma, como Ccero e o prprio Marco Aurlio, consistiu tanto numa relativizao da diferena grego/brbaro - seja mediante a reivindicao da condio de grego por parte dos romanos, seja mediante estratgias que afirmavam uma origem grega para Roma quanto, tambm, no estabelecimento de uma nova tripartio, gregos/romanos/brbaros. Essa ltima foi a soluo encontrada por Marco Tlio Ccero que, neste passo, afirmou que a diferena entre gregos e brbaros ou era meramente nominal e, portanto, nada significava, ou servia simplesmente para indicar os costumes, sendo ento os romanos iguais aos gregos50. Um tertius genus desta forma surgia, e a trade "romanos, gregos e brbaros" tornou-se usual.

    1.3 Humanitas e Roma

    A palavra que pudesse expressar a unidade da diferena entre gregos e brbaros para alm da referncia especfica Grcia enquanto unidade poltica , como j acenamos acima, um produto da cultura romana: humanitas. No contexto romano, o termo surgiu com um sentido, a princpio, exclusivamente qualitativo. evidente a inspirao grega para a formao da palavra: aquelas qualidades positivas que eram identificadas como necessariamente gregas, em contraposio aos traos necessariamente negativos dos brbaros, agora passam a receber um nome capaz de desloc-las da referncia Grcia como unidade poltico-cultural.

    Com o termo humanitas os romanos pretenderam, primeiramente, exprimir a dignidade prpria do homem, aquilo que o faz distinto e superior s outras criaturas do mundo51. Na utilizao ento corrente, o termo humanitas, enquanto expresso de uma unidade, remetia a uma diferena, na medida que veio indicar o comportamento amvel e valioso dos homens de alguns homens. Aqui se revela a ambigidade do termo, j em suas origens. Se, de um lado ele surgiu com uma conotao qualitativa (dignitas), de outro lado aquela qualidade designada como humanitas foi identificada no com a totalidade dos homens, mas mais uma vez com uma determinada totalidade de homens, aquela que se inscreve no espao social da civitas romana. Isto revela um elemento quantitativo do termo.

    50 CCERO, Rep., 1, 58.

    51 certo que, aqui, no est sequer esboada a noo do homem enquanto individuum que, como veremos,

    uma construo tipicamente moderna.

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    De fato, mesmo na utilizao aparentemente exclusivamente qualitativa da palavra humanitas, os aspectos qualitativo e quantitativo acabaram por se fundirem, e a humanidade do homem pensada a partir da totalidade da civitas.

    Nossa hiptese, neste passo, que a inveno do termo humanitas permitiu, no mundo romano, a reutilizao da diferena entre greci e barbari, agora desenhada como a diferena humanum/barbarum. A civilizao romana, ao se representar como modelo de uma civilizao fundada sobre sua auto-suficincia, apropriou-se da diferena para produzir diferentes nveis de incluso e, portanto, tambm de excluso. Em face de Roma existiu uma barbrie em diversos nveis e, sobretudo, com diversos rostos (interna e externamente). Os brbaros orientais foram descritos, em suas caractersticas (preguiosos) de maneira diversa dos ocidentais, tidos como grosseiros. Esta reutilizao permitiu que Roma, por exemplo, justificasse suas incurses em territrios brbaros como uma empresa civilizatria, o que pressups a compreenso da barbrie como um estado, ou uma condio natural capaz de ser transformada.52 No sculo IV, quando a presena brbara em Roma era crescente, expresses como semibrbaro tornaram-se correntes, da mesma forma em que passaram a ser usuais expresses como cair na barbrie ou sair da barbrie.53 Os brbaros eram, nesta tica, vistos como romanos em potencial.

    Em algumas situaes, a reutilizao da diferena grego/brbaro em Roma mostrou-se muito mais feroz do que jamais poderiam pensar os prprios gregos. A novidade da (re)utilizao romana da diferena, sob o pano de fundo da idia de humanidade, foi a de que aquelas qualidades que se passou a indicar como humanitas so essenciais e, portanto, necessrias condio humana do homem. A utilizao da diferena nessa perspectiva permitiu que, interpretados como bestas, homens fossem jogados s feras. A humanidade do homem era tida como derivada do conjunto de qualidades que receberam o nome de humanitas, de modo que os brbaros no eram apenas os no-romanos; estes eram, tambm, no-humanos. Aqui h tanto a ressonncia da identificao da humanidade com costumes e valores, j presente na noo de grego, quanto h a desumana tendncia em se negar a qualidade de humano a alguns homens.

    claro que, como observamos acima, tambm no pensamento grego o escravo (mais que o brbaro) foi representado como no-humano, sobretudo quando se tratava de justificar a escravido como no sendo, por sua vez, barbrie. Na viso romana, a interposio da noo

    52 Cf observa Chauvot, Csar referiu-se com muito menos frequncia aos galeses como brbaros do que aos

    teutnicos ou bretos, criando a imagem dos celtas assimilveis, enquanto Ccero os indicou como os mais tpipicos representantes da brbarie. CHAUVOT, Op. cit., p. 11. 53

    CHAUVOT, Op. cit., p. 479.

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    de humanidade veio reforar aquela convico aristotlica de que nem todos os homens so humanos. Mas, diferentemente de Aristteles, no pensamento romano a animalidade dos brbaros no foi tratada como uma condio natural necessria destes: despontava, a contrrio, como uma ausncia daquela nova noo de humanidade, na qual o homem desempenhava um papel ativo. Na direo desta convico, foi fundamental o influxo do estoicismo em Roma. E isso mesmo que, diferentemente dos filsofos de Stoa (que rejeitavam com veemncia a escravido, indo de encontro ao argumento aristotlico), autores como Marco Tlio Ccero tenham tolerado a escravido. certo que Ccero raramente referiu-se humanidade do homem em contraposio animalidade dos animais (ou de outros homens), preferindo conferir quele termo um sentido exclusivamente tico. Mas, ainda que j no pensamento sofista do sculo IV a.C fosse encontrada a mxima a divindade fez todos livres, no fez ningum escravo , quando o assunto era escravido, o autor da Repblica furtou-se a aplicar diretamente a palavra humanitas, que j lhe era to cara naquele tempo, ao escravo e sua relao com seu senhor.

    Por outro lado, Ccero teve o mrito de ter chamado ateno, atravs de sua noo de humanidade, para a fora criadora dos homens54, projetando a humanidade destes como produto de sua formao tica e intelectual. neste sentido que emprega a palavra humano no Orador, quando desaconselha o abuso na utilizao do gnero retrico que chama de circumscriptio, tpico dos tribunais e do Forum, face ao perigo de que aquele que dele se utilize perca o senso do humano . A qualidade da humanidade atributo dos homens de alta cultura, ou seja, da nobreza. Resta evidente que, na Repblica romana, o termo humanitas foi utilizado com uma funo estratificatria, qual seja, a de diferenciar a aristocracia dos demais estratos sociais. Atravs do apelo humanidade tornou-se possvel uma distino na distino, e os romanos, tanto quanto os gregos haviam realizado com a distino gregos/brbaros, desfrutaram desta possibilidade para a construo de uma sociedade aristocrtica. O conceito de humanitas vale, portanto, apenas para a ordem social romana; os que fora dela vivem, ou no possuem o complexo de qualidades conhecidas como humanitas, permanecem sendo chamados de barbaren 55. Ser homem no era reputado uma condio natural, mas sim a imagem da perfeio projetada pelos romanos, de acordo com os ideais aristocrticos, como um homo novus. O homo novus descrito por Ccero56 aquele que, por

    54 Cf. BRUNNER, Otto; CONZE, Werner e KOSELLECK, Reinhart. Op. cit. p. 1065.

    55 Cf. BRUNNER et alli, Op. cit., p. 1065.

    56 Nas Tusculanae disputationes, Ccero busca apontar as qualidades ideais do homem: But what is there in man

    better than a mind that is sagacious and good? The good of such a mind then we must enjoy if we wish to be happy; but the good of the mind is virtue: therefore happy life is necessarily bound up with virtue. Consequently all that is lovely, honourable, of good report, as I have said above, but I must say it again, it seems, with rather

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    possuir certos atributos, pode ser chamado de homem57. Nas suas Noctes Atticaes, tambm Aulius Gelius emprega o termo humanitas no sentido de eruditionem institutionemque in bonas artes, aquelas que servem para o aperfeioamento da personalidade, ensinando os homens a tratarem com benivolentia seus vizinhos58. Essa idia de humanidade, antes vista como patrimnio exclusivo de apenas um grupo reduzido de homens de alta cultura, passou progressivamente a estender-se a outros mbitos. E isto tanto para permitir tambm s mulheres um tratamento humano, quanto para radicalizar na concepo de que alguns homens mereciam serem expulsos da ordem e, portanto, ser tratados como no-humanos.

    No campo do direito, a idia se difundiu, adquirindo tanto a conotao de clementia, quanto o carter de justificativa para a crudelitas. A influncia da idia de humanidade permitiu, por exemplo, uma mudana na forma de regulao do casamento. O direito romano conheceu dois tipos de matrimnio: o matrimnio cum manu e o matrimnio livre, em virtude do qual a mulher no se submete ao marido. O matrimnio livre poderia ser convertido aps um ano59, por usucapio, em matrimnio cum manu. A noo de humanidade, durante o perodo republicano, serviu para se afastar a aplicao da usucapio naquele caso: pouco respeitoso dignidade humana aplicarem-se normas criadas para as coisas... E, assim como no caso do matrimnio, outros institutos do direito romano foram, paulatinamente, humanizados: em matria de sucesso, permitindo-se a realizao de testamentos entre os cnjuges ou, ainda, com a humanizao da relao entre pais e filhos. No direito privado, a influncia da noo de humanidade se fez sentir em mandamentos como respeitar aos demais, exercitar o prprio direito com moderao, prestar ajuda aos pobres e aos fracos, no se valer do rigor da lei a no ser para usar a indulgncia, no especular com as palavras e com as formas, e sim interpretar os negcios jurdicos segundo seu contedo e inteno ... No campo do direito penal, a influncia da humanitas permitiu a limitao da pena morte, desde a Lei das XII Tbuas conhecida como o nico desfecho possvel de um processo penal pblico60, inspirando tambm a regra segundo a qual s aquele que for culpado

    more expansion, is full of joys; but seeing that is clear that happy life comes from unceasing fulness of joys, it follows that it comes from rectitude. CICERO, Tusculanae disputationes, V, 67-68. 57

    (...) appelari ceteros homines, esse solos eos qui essent politi propriis humanitatis artibus. CCERO, Da Repblica, 1, 28. 58

    Cf. HONIG, Richard M. Humanitas und Rhetorik in sptrmischen Kaisergesetzen. Gttingen: Verlag Otto & Co, 1960. p. 28. 59

    La manus se adquira por usucapin, a no ser que la mujer interrumpiera esta usucapin mediante la ausencia durante tres noches de la casa conyugal. SCHULZ, Fritz. Op. cit., p. 214. 60

    En el tempo posterior a las XII Tablas, la pena de morte est notablemente limitada, y a partir del siglo II a. C. Esto sucede claramente por influencia de la idea de humanitas. Haba, escribe CCERON, hombres esforzados que pensaban poder renunciar a la pena de muerte. Es cierto que sta no fue abolida formalmente, pero de hecho no se aplic nunca sino al homicidio y a la alta traicin, e incluso aqu slo raramente; en su lugar se impusieron penas pecunirias y la excluson de la comunidad (aquae et ignis interdicitio). Bajo el Principado la pena de muerte recobra vigor; el tribunal consular-senatorio y el del emperador no slo condenaban a muerte, sino que

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    pode ser castigado. No processo penal, o influxo da idia de humanitas consentiu ao acusado as garantias frente ao poder dos governantes, com a exigncia de que no fosse praticada a tortura contra o acusado e as testemunhas.

    Finalmente e com maior dificuldade, a idia de humanitas repercutiu tambm na regulao da escravido. Na literatura greco-romana, observe-se o exemplo de Ccero, apenas raramente a humanitas invocada como motivo contrrio escravido. O escravo, na ordem jurdica da Repblica romana, ocupava uma posio nica, no comparvel nem dos homens dotados de humanitas e, tampouco, a dos animais. O direito, enquanto negava ao escravo a capacidade jurdica de direito privado, afirmava sua capacidade penal, podendo o escravo cometer tanto delitos pblicos quanto delitos privados e podendo este, portanto, ser submetido a um processo penal pblico. A condio jurdica do escravo envolvia tanto a negao da capacidade deste para casar quanto, curiosamente, sua capacidade para herdar (desde que com a autorizao de seu dono). Fato que, diferentemente do que j ocorria em outros campos61, e mesmo no que diz respeito ainda que modestamente - ao tratamento jurdico dispensado s mulheres, o conceito de humanitas pouco repercutiu na discusso romana sobre a escravido.

    Essa situao se modificou um pouco na poca do Imprio, quando a reivindicao de humanitas alcanou mais incisivamente aquela discusso. Sneca clamou, ainda que no pela abolio da escravido, por mais humanidade nas relaes entre senhor e escravo, viso essa que foi aquela acolhida pelo pensamento cristo dos primeiros tempos. A literatura traz exemplos interessantes deste novo ponto de vista: Amigos, tambm os escravos so homens, tambm eles beberam do mesmo leite que ns, ainda que o destino lhes tenha maltratado62. Paralelamente diminuio do nmero de escravos e da perda de sua importncia econmica, essas transformaes no discurso jurdico traduzem, tambm, modificaes no modo como os escravos eram efetivamente tratados. o caso da deciso de Cladio, quando este declarou livres escravos que haviam sido abandonados por estarem velhos ou doentes, e tambm quando puniu como crime de homicdio a morte de um escravo nestas condies (sendo que Constantino, finalmente, catalogou como homicdio o assassinato de escravos).

    Nos sculos seguintes a Cristo a palavra humanitas prosseguiu seu percurso evolutivo, sendo utilizada sobretudo no sentido tico e filantrpico de perfecto sublimis

    hacan ejecutar la pena. Pero jurdicamente estos casos son excepcionales, y bajo Trajano, Adriano, Antonino Pio y Marco Aurelio, tal debi suceder tambin de hecho. Slo en el siglo tercero lleg la muerte a ser pena ordinaria para los crmines muy graves, aunque se aplic tambin a delitos menores Idem, ibidem, p. 225. 61

    Ver SCHULZ, Op. cit, pp. 211-242. 62

    PETRONIO, Cena Trimalc., 71, 1 Amici, inquit, et servi homines sunt et aeque unum lactem biberunt, etiam si illos malus fatus oppresserit apud SCHULZ, Op. cit., p. 239.

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    naturae humanae. Nesta concepo, humanitas era um conceito que condensava muitos outros: dignitas, honestas, lepos, facetia, aequinamitas, comitas, benignitas, clementia, hospitalitas, munificentia, liberalitas, constituindo-se no ncleo dos ideais imperiais, ou na expresso concentrada da reivindicao de soberania pelo Imperador. Nos sculos II e III d.C., humanitas uma qualidade auto-evidente do titular do poder, sendo que o Imperador se auto-intitula a incarnao da humanitas63. E, enquanto que, na codificao de Justiniano, o termo humanitas como sinnimo de divinitati exerceu uma particular importncia poltica, no discurso jurdico a conotao da palavra permaneceu aquela de aequitas, conforme a usavam j os juristas do perodo clssico (Gaio, Juliano, Ulpiano, Papiniano etc). Assim que o termo humanitas transformou-se no Leitmotiv das construes jurdico-polticas da poca, traduzindo a preocupao do governo com o bem-estar dos sditos.

    Nem sempre, no entanto, as decises traduziam, exatamente, aquilo que os juristas clssicos chamaram de humanidade. Muitas decises do perodo clssico foram desta forma revertidas durante o Imprio, adquirindo um sentido contrrio sob o apelo, tambm, idia de humanidade. Schultz descreve esta situao em matria de contratos. Os ideias traduzidos como humanitas justificaram, na Repblica, um maior apego ao rigor formalista, como reflexo da crena clssica na fora educadora de um ordenamento claro e constante. No periodo ps-clssico essa orientao se modificou, atenuando-se o rigor formalista e passando a se atribuir maior importncia vontade do que sua declarao. Isto explicado, por Schultz, como resultado da influncia do cristianismo e da idia de solidariedade humana. Assim que, ao serem revertidas as decises clssicas, a estas eram acrescentadas frmulas como sed mellius est..., sed benignius est... 64.

    Ao mesmo tempo, tambm neste contexto de progressiva humanizao do direito romano, a diferena humano/brbaro continuou a exercer seu papel excludente. Em relao aos brbaros, ou peregrinos, a noo de humanidade manifestou-se como a proverbial clemencia romana nas relaes entre estes e os romanos. Diferentemente dos gregos, que tinham por prtica aniquilar os povos brbaros, posto que esses por eles eram indicados como sendo sua prpria negao, os romanos quando conquistavam um territrio deixavam que os povos que nele viviam permanecessem com seu direito, sua lngua, sua cultura, enfim, sua autonomia. No se tratava, na verdade, de um reconhecimento da condio do brbaro de includo na sociedade romana. O brbaro permanecia brbaro, confinado em seu territrio cultural; ou seja, no interior da sociedade romana, a condio de brbaro era motivo para o estabelecimento de situaes assimtricas. Assim que o repdio pena de morte no alcanou

    63 BRUNNER, Otto; CONZE, Werner e KOSELLECK, Reinhardt. Op. cit. p. 1065.

    64 Cf. SCHULZ, Op. Cit., p. 231.

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    os peregrinos, e sob Augusto, chegou-se a executar num s dia trezentos homens, naturalmente todos eles peregrinos65. Ao mesmo tempo, o termo brbaro, antes aplicado para todo aquele que fosse no-romano, era raramente utilizado para fazer referncia a alguns no-romanos em particular, como era o caso dos persas ou outros povos que viviam em centros urbanos.66

    Ao contrrio do que possa parecer, nada disto foi reputado como contraposto noo tica de humanidade da Repblica. No sculo III a palavra humanitas foi usada por Tertuliano e outros no mais no sentido estritamente tico, mas para indicar o genus humanus, homines (sentido este em que tambm foi empregada no sculo IV e incio do sculo V por Martianus Capella e, no sculo VI, por Ennodius, Boetius, Fulgentius, Cassiodor e Mutianus). Na realidade, aquela compreenso permitiu com que fossem negados, queles que no fossem portadores das qualidades designadas como humanitas, a condio de homem. Os homens sem qualidades, neste passo, aproximam-se da animalidade (e podem ser jogados aos lees!). A fora desta idia exerceu um papel central no direito penal do final da Antiguidade. Em primeiro lugar, serviu de base para que o aparato protetor das leis penais no alcanassem o brbaro, sendo exclusivo do cidado romano. Isto refletia aquela que, afinal, era a nica finalidade do processo penal: a excluso do criminoso, ele mesmo (independentemente de nascido ou no em Roma) considerado um