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GRAGOATÁ ISSN 1413-9073 Gragoatá Niterói n. 24 p. 1-260 1. sem. 2008 n. 24 1 o semestre 2008 Política Editorial A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e Literatura.

Texto Betania Mariani

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GraGoatá

ISSN 1413-9073

Gragoatá Niterói n. 24 p. 1-260 1. sem. 2008

n. 24 1o semestre 2008

Política Editorial

a revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e Literatura.

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Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense Direitos desta edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-008 Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21)2629-5288 – http://www.editora.uff.br – E-mail: [email protected]

Organização:Projeto gráfi co:Capa:Editoração:Supervisão Gráfi caCoordenação editorial:Periodicidade:Tiragem:

Reitor:Vice-Reitor:Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação:Diretor da EdUFF:Conselho Editorial:

Conselho Consultivo:

Laura Cavalcante Padilha e Lucia HelenaEstilo & Design Editoração Eletrônica Ltda. MErogério MartinsJosé Luiz Stalleiken MartinsKáthia M. P. Macedoricardo Borges Semestral500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Ana Pizarro (Univ. de Santiago do Chile)Cleonice Berardinelli (UFRJ)Célia Pedrosa (UFF)Eurídice Figueiredo (UFF)Evanildo Bechara (UERJ)Hélder Macedo (King’s College)Laura Padilha (UFF)Lourenço de Rosário (Fundo Bibliográfi co de Língua Portuguesa)Lucia Teixeira (UFF)Malcolm Coulthard (Univ. de Birmingham)Maria Luiza Braga (UFRJ)Marlene Correia (UFRJ)Michel Laban (Univ. de Paris III)Mieke Bal (Univ. de Amsterdã)Nádia Battela Gotlib (USP)Nélson H. Vieira (Univ. de Brown)Ria Lemaire (Univ. de Poitiers)Silviano Santiago (UFF)Teun van Dijk (Univ. de Amsterdã)Vilma Arêas (UNICAMP)Walter Moser (Univ. de Montreal)

© 2008 by

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

APOIO PROPP/CAPES / CNPqUNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

G737 Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense.— n. 1 (1996) - . — Niterói : EdUFF, 2008 – 26 cm; il.

Organização: Laura Cavalcante Pàdilha e Lucia Helena Semestral ISSN 1413-9073.

1. Literatura. 2. Lingüística.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Letras. CDD 800

Roberto de Souza SallesEmannuel Paiva de andradeHumberto Machado FernandesMauro Romero Leal PassosMariangela Oliveira (UFF) – PresidenteLívia de Freitas Reis (UFF)Eneida Maria de Souza (UFMG)Solange Vereza (UFF)Silvio Renato Jorge (UFF)José Luiz Fiorin (USP)Leila Bárbara (PUC-SP)Lucia Helena (UFF)Vera Lúcia Soares (UFF)Regina Zilberman (PUC-RS)Laura Padilha (UFF)Cláudia Roncarati (UFF)

Editora fi liada

à

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Sumárion. 24 1º semestre 2008

GraGoatá

Apresentação ..................................................................................... 5

ARTIGOS

O começo do fim ..............................................................................13Silviano Santiago

Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa .....31Benjamin Abdala Junior

Duas viagens, um destino, Moçambique ...................................45Regina Zilberman

Uma língua de viagens, transgressões e rumores .................... 61Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües ..............................71Bethania Mariani

Outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões .....................89Margarida Calafate Ribeiro

Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes ............. 101Márcio Seligmann-Silva

Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária ....................................................................... 119Roberto Vecchi

Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho ...131Sheila Kahn

O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa ........................................... 145Charlotte Galves

Agruras da ficção contemporânea .............................................. 165Silvia Regina Pinto

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Narrar é resistir? ............................................................................ 179Denise Brasil Alvarenga AguiarOs velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água, versões e construção de identidade ...........................................191Lúcia BettencourtQuando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura brasileira contemporânea ........203Regina DalcastagnèUma conversa entre macacos: percalços de um diálogo entre a África e o outro .....................................221Lucia Helena

ENTREVISTAO peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento numa entrevista com José Eduardo Agualusa sobre o Brasil e Angola ............................................................... 237Maurício de Bragança

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apresentação

a Revista Gragoatá, em seu vigésimo quarto exemplar, foca-liza, comparativamente, ou mesmo em separado, os paradigmas culturais que nosso momento histórico permite visualizar como os mais importantes na construção das identidades matizadas que as literaturas e artes do continente africano e brasileiro apresentam, no cenário da globalização. Os elos entre os dois mundos são muito evidentes, ou assim se pensa, quase como um lugar-comum. Serão mesmo transparentes os nossos pa-rentescos e o que também nos separa? Conhecem, os brasileiros e os outros, o que se denomina hoje “Brasil”? É auto-evidente esta significação? E a África, ao ser relacionada ao Brasil, é sempre a de “expressão portuguesa”? Haveria possibilidade de nos “encontrarmos” inscritos na África de “expressão inglesa”, “francesa” etc, na história comum da exclusão? Estas e outras questões se tornaram candentes, em alguns dos textos que nos foram enviados.

Brasil e África são dois cantões do planeta que se tan-genciaram pela ocidentalização promovida no Renascimento e motivada pelo expansionismo europeu do século XV. Suas inter-relações e, principalmente, as contradições políticas e os enigmas do continente africano e da vida brasileira têm sido objeto de análise, desde os anos de 1990, no século XX, com a projeção dos estudos culturais e a re-leitura dos cânones de nações concebidas, pela classificação econômica dominante, como emergentes. Em que pese o significado desse adjetivo, as nações ditas em emergência (no duplo sentido de que emergem e de que estão em estado de emergência) sempre surpreendem pelas complexas redes culturais – de origem popular ou culta – surgidas tanto no Brasil, quanto na África e que nada ficam a dever, em importância para o pensar, se relacionadas às matrizes de outras paisagens.

Da África se moveu, para o então chamado Novo Mundo, um conjunto de habitantes de localidades que hoje compõem inúmeros países: Costa do Marfim, Congo, Angola, Moçambique e outros, para, em nossas terras, conhecerem a dor do exílio, o conseqüente desterro e a marca da desagregação provocada pela prática escravagista. ainda assim, os representantes de um povo removido, à revelia e em circunstância adversa, para outros rincões, produziram subsídios que, surgidos do entrechoque de tradições, foram capazes de ultrapassar séculos e a própria condição subalterna, para constituir elementos magníficos de

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nossa música, dança, culinária e, até, de manifestações religiosas aclimatadas no Brasil.

a discussão dos elos e dissensos, as descobertas em comum dessas duas culturas, literaturas e artes, além da dívida brasi-leira para com a contribuição dos africanos que para cá vieram na condição desumana de escravos fazem parte das intenções que nortearam os objetivos das coordenadoras desse número ao pensar em seu título – “Brasil e África: trajetórias, rosto e destino” – e em sua ementa. Esta consiste na discussão da literatura, po-lítica e ideologia no cenário do neoliberalismo e no enfoque das articulações entre essas nações e suas narrativas, na estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. Pensou-se também em focalizar o Brasil e a África, enquanto autônomos, em suas diferentes literaturas e formas de expressão e de lingua-gens produtoras de paradoxos, identidades, dilemas e problemas. Interessava à nossa ementa, também, a articulação da África e do Brasil consigo mesmos, e entre si, ou com outros países, de outros universos culturais na cena do mundo pós-colonial que, necessariamente, envolve a Europa e outras expressões lingüís-ticas. O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas foi mais um aspecto incluído no temário que sugerimos ao leitor, bem como a comparação de suas literaturas com as demais artes. Outra opção que se observa na ementa oferecida é a da discussão de perspectivas da crítica e da teoria, no Brasil e na África, seja no estudo da própria literatura e das demais artes, seja no exame específico de textos voltados à produção do conhecimento. No campo da lingüística e do estudo de línguas, acentuou-se a preocupação com o tratamento das línguas em contato e da política lingüística. Finalmente, a ementa também deu abertura para uma reflexão histórica, antropológica e filosó-fica da cultura brasileira e africana contemporâneas, no exame das relações entre estas, sua literatura, suas crises e utopias, em sua singularidade, ou em conjunto.

Se o estudo da questão brasileira, na Gragoatá 24, parece não demandar explicação, pois se faria evidente (evidência da qual sempre se deve, em bom termo, duvidar), a presença de sua articulação com a África e desta com a América como um todo e, também, com a Europa, como ocorre em mais de um artigo publicado neste número, revela uma forma de contraposição de olhares através da qual se busca retomar a teia de silêncios e apagamentos tramada pelo olhar branco-ocidental, hegemônico na cultura colonizadora letrada, apesar da heterogeneidade de nossa formação. Um tal olhar já se antecipava na epopéia ca-moniana, quando os navegantes portugueses, ao se depararem com o outro, o desconhecido, perguntavam a si mesmos: “Que gente será esta? (em si diziam) / Que costumes, que Lei, que rei teriam?” (I, 45).

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Se a legenda da diferença faz parte do paradigma forma-dor de nosso encontro cultural, o leitor poderá agora conferir a natureza desse painel, no vasto exame dos elementos que deram sustentação ao processo colonial e à sua reversão, seja do âmbito lingüístico, do político-cultural, seja no da literatura. Um pai-nel foi tecido a várias mãos, pelo texto de nossos convidados e dos que se interessaram pelo tema, e nos enviaram sua valiosa contribuição. Neste, o espaço da reflexão crítica se espraiou por questões como o trauma, a violência, o preconceito racial e os intertextos de variada extração e efeito, para que pudéssemos levar a cabo, nesta edição, compreender e pensar “Brasil e África: trajetórias, rosto e destino”.

É com imenso prazer que passamos ao leitor os textos que resultam do percurso trilhado pelos intelectuais que se uniram a nós na busca de elaborar mais um número da Revista Gragoatá, periódico que se tem caracterizado como uma das formas mais atuantes da contribuição, ao público em geral, da Pós-graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense.

O texto de abertura, de Silviano Santiago, intitula-se “O começo do fim”. Importante pensador da cultura brasileira, seu autor busca apresentar nova e suplementar interpretação para um conceito-chave do movimento Modernista – o de antropofa-gia, na versão de Oswald de Andrade. Considerando relevante para o tema deste número refletir sobre um conceito que, du-rante oito décadas foi responsável por importante bibliografia em que se salientaram aspectos beligerantes de culturas colo-nizadas em relação aos colonizadores, Santiago pondera, ainda, que essa interpretação, apesar de pertinente do ponto de vista social e político, negligencia qualidades básicas do trabalho de arte escrito nas margens da cultura ocidental, em particular aquelas que deveriam despertar no leitor a premência de um pensamento utópico, em que a paz, a esperança e a alegria se tornariam os valores.

O artigo de Benjamin Abdala Júnior, “Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa”, discute as redes comunitárias que tais literaturas tecem, pelo que nelas se revela uma tendência à supranacionalidade. Esta, para o crítico, se faz tão importante quanto o resgate, nas produções artístico-verbais, das especifi-cidades nacionais que nelas se resgatam. O texto reforça o fato de que há uma forte relação entre o processo literário africano e o brasileiro. Isso se justifica, segundo o autor, por que, desde o século XIX, se estabeleceram redes de identificações entre o nosso país e os africanos de colonização portuguesa. Tais identificações vão do âmbito político (cf. o caso angolano, no século XIX) até a busca de outras formas de modelização literária, ressaltando-se, dentre elas, as interlocuções com o modernismo brasileiro, com o

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romance nordestino de 1930 e com o projeto estético-ideológico de Guimarães rosa.

O texto “Duas viagens, um destino, Moçambique”, de regina Zilberman, procura analisar as visões divergentes que europeus e africanos têm sobre a expansão do mar português, para o que retoma O naufrágio do Sepúlveda, de Jerônimo Corte real (1594) e O outro pé da sereia, de Mia Couto (2006). O artigo demonstra a existência de dois distintos modos de recuperação da história marítima portuguesa, nas malhas da ficção literária. De um lado, a visão européia do século XVI sobre os “cafres, que roubar tem só por ofício” e sobre os heróis – mesmo que fracassados – que “se vão da morte libertando”, como proclama Camões. De outra parte, a autora analisa a leitura, a contrapelo, do moçambicano Mia Couto para quem fica clara a “estratégia dos portugueses para enfraquecer o reino” do Monomotapa. resgata-se, assim, o avesso de uma história que só muito re-centemente começa a ser contada pelo olhar dos, até 1975, ven-cidos. Um artigo que serve de excelente ponte para o encontro de África e Brasil.

No texto “Uma língua de viagens, transgressões e rumo-res”, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco faz uma espécie de balanço sobre a questão do uso da língua portuguesa nos países africanos colonizados por Portugal, mostrando as diferentes faces que a língua transplantada pelo colonizador adquiriu nos diversos países que hoje têm o português como sua língua oficial. Percorre, ainda, o caminho que vai da imposição ao uso consentido e, em certa medida, revolucionário do português que acaba por se fazer, ele mesmo, um instrumento voltado contra o processo de colonização, no momento em que subleva o tecido lingüístico. Para comprovar esse uso “clandestino” da língua, repetindo José Craveirinha, a ensaísta busca exemplifi-car seu ponto de vista com vozes literárias africanas. Estas, ao inverterem os paradigmas colonialistas, enriquecem a língua do colonizador, por atravessá-la com outros saberes e sabores, alargando, com isso, o sentido das viagens que tal língua ainda será capaz de fazer.

Em “Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües”, Bethania Mariani reflete sobre a atualidade lingüística do Brasil e de Moçambique, tomando, como ponto de partida do artigo, o fato de que tanto na África quanto em nosso país, houve uma tentativa de apagamento da memória dos sujeitos locais, no processo de colonização portu-guesa. Discute, a seguir, partindo da memória histórica constitu-tiva das duas formações sociais, de um lado, a legislação referente à política de línguas e de outro, as relações, nem sempre muito visíveis, entre as línguas e a política econômica. assim, analisa a legislação portuguesa referente ao uso do português nas co-lônias e, em seguida, tendo em vista a descolonização política

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e lingüística, enfatiza as relações entre lingüística e economia, problematizando o valor econômico das línguas.

O artigo “Outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões”, de Margarida Cala-fate Ribeiro, discute o enfrentamento do poder e de suas relações existentes nos textos de Paula Tavares, demonstrando que tal enfrentamento tem como alvo não apenas o sistema colonial em si, mas a língua que o sustenta e mesmo o neocolonialismo que subsiste em tais relações, na angola independente. o artigo demonstra a subversão do discurso poético de Paula tavares, que se quer, ao mesmo tempo, um “pronunciamento” feminino e epistemológico. Por tal “pronunciamento” a poeta põe em xeque não apenas os conhecimentos impostos pelo colonizador, mas a própria tradição local, que também busca perpetuar o pa-triarcado e a sua violência contra a diferença sexual e sua lógica opositiva. O texto afirma, em todos os sentidos, a possibilidade teórica de se valorizarem outros conhecimentos e outros poderes, sempre deixados à margem pela colonialidade hegemônica.

Em “Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes”, Márcio Seligmann-Silva propõe uma reflexão sobre o gesto tes-temunhal de sujeitos que sobreviveram a situações radicais de violência e/ou catástrofes e para os quais a narração do trauma se faz gesto de sobrevivência e mesmo de renascimento. Para comprovar sua hipótese, o autor levanta uma série de aporias que marcam o testemunho, tentando comprovar que ele “só existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade”. Traz à cena do artigo, ainda, a questão da política da memória e sua importância para o gesto de narrar o trauma. Por fim, analisa obras pontuais que resgatam, respectivamente, o genocídio dos armênios (1915-16); o dos tutsis, em Ruanda (1994), chegando ao Brasil e, em especial à música popular brasileira que, de distintas e/ou camufladas formas, resgata o trauma causado pela violência da ditadura civil-militar.

Em “Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária”, Roberto Vecchi, partindo de uma série de re-flexões sobre a força do poder na representação literária, discute a impossibilidade de fala do subalterno, ou o seu silenciamento, na série histórica da literatura brasileira. Depois de reforçar seu quadro teórico, convocando Spivak, Gramsci, Said e outros, o autor analisa duas obras pontuais dessa mesma literatura bra-sileira – Os sertões, de Euclides da Cunha e A menina morta, de Cornélio Pena. Em tais criações, para ele, se projeta uma espécie de contra-história problematizadora dos vazios e silenciamentos da história oficial brasileira e dos lugares de força por ela criados. O texto discute, portanto, a problemática dos subalternos que, apesar de se localizarem na margem da história, acabam por ganhar voz e um “corpo grafemático”, nas malhas da ficção.

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Em “Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialis-mo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho”, Sheila Kahn começa por apresentar a questão do pós-colonialis-mo em Moçambique. a seguir, recupera a postura adotada por João Paulo Borges Coelho, em relação ao que se passa na nação recém-independente, postura esta que ele evidencia não apenas em sua obra romanesca, mas também em entrevista concedida à ensaísta e por ela em parte transcrita no artigo. Por fim, propõe a leitura de três romances do autor – Visitas do Dr. Valdez; Crônica da Rua 513.2 e Campo de trânsito –, demonstrando como Borges Coelho dá voz aos “calados”, pelo que tenta resgatar a história igualmente barrada dos que, em silêncio, viveram as transições por que passou o país em construção.

No texto “O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa” de Charlotte Galves, a autora, seguindo caminho proposto pela pesquisadora Margarida Petter, centraliza a dis-cussão nas variedades angolanas e moçambicanas do português, por entender que elas abrem caminho para a reflexão de como e porquê as línguas africanas interferiram no português do Brasil. o artigo se divide em duas grandes seções, começando por pro-mover a releitura do debate da questão por ela proposta, para o que resgata a série histórica desse mesmo debate. Na segunda seção, discute os efeitos do contato entre as línguas africanas e o português, comparando, a seguir, as vertentes africanas e brasileiras da língua e levantando as evidências que comprovam a consistência de sua hipótese.

O artigo “Agruras da ficção contemporânea”, de Sílvia Regina Pinto, focaliza a literatura produzida no Brasil em sua interface com o mundo de hoje, marcado por uma transformação radical em que afloram crises talvez sem precedentes, revelando que ela demonstra e questiona a mudança profunda que vem ocorrendo em todas as áreas de atividade, em especial a cultura, a estética, os valores éticos, as noções de tempo e espaço e as fronteiras entre o público e o privado. O ensaio procura mostrar como a ficção contemporânea vem tematizando e discutindo sua própria estranheza, tentando uma articulação entre linguagem e realidade, no esforço incansável para um confronto do eu com o outro que, muitas vezes, é ele mesmo, e deixando claro que a ficção se torna necessária até para que o real exista. Equipado de instrumental teórico que lhe permite ampla reflexão, este ensaio oferece uma possibilidade fundamental de pensar o Brasil de hoje em sua literatura e através dela.

Em “Narrar é resistir?” Denise Brasil alvarenga aguiar também focaliza a ficção contemporânea, em especial o cotejo entre O quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll, e A vida e a época de Michael K., de J. M. Coetzee. Seu objetivo é compreen-der as transformações da literatura no contexto das alterações

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sociais e culturais que marcam os tempos da chamada pós-modernidade. Identificando importante vertente literária de tematização do sufocamento da subjetividade no cenário hostil da exclusão social, a autora compara a rarefação da subjetividade nos personagens de Noll e a transformação do rarefeito em uma passagem para uma outra forma de alteridade, no magnífico personagem de Coetzee, Michael K., que também poderia ser aproximado de Fabiano (o protagonista de Vidas secas, de Graci-liano ramos) e de Macabéa (a protagonista de A hora da estrela, de Clarice Lispector), na cena da carência que, surpreendentemente, faz com que o Michael K transcenda o nada a que a sociedade o havia destinado, desencadeando, com força crítica, o exame, pelo leitor, desse terrível impedimento.

Com Os velhos ‘marionetes’: Quincas Berro D’Água, ver-sões e construção de identidade”, Lucia Bettencourt descortina uma perspectiva original para focalizar um autor que já recebeu muitas e variadas exegeses e que faz parte de nosso patrimônio não só literário, mas também antropológico: Jorge Amado. Foca-lizando os personagens do autor a partir de suas ligações com a dramaturgia popular e a tradição européia da comedia dell’arte, revela como sua ficção se mescla à arte popular regional, de forte influência africana. Com isso, abre um diálogo entre o ato nar-rativo e seu aspecto dramático, subvertendo a concepção usual do protagonista Quincas, que adquire, assim, uma outra forma de expressividade, através da manifestação popular.

O texto “Quando o preconceito se faz silêncio: relações so-ciais na literatura brasileira”, de regina Dalcastagnè, destaca, de uma profunda e extensa pesquisa que a autora vem realizando sob a chancela do CNPq, as personagens negras, francamente minoritárias na ficção brasileira contemporânea. O artigo analisa algumas exceções a esta regra, identificando diferentes modos de representação literária das relações raciais em uma sociedade marcada (embora pareça estar convencida do contrário) pela discriminação. Com acurada atenção ao detalhe, mas sem perder o alcance do geral, o texto de Dalcastagnè ultrapassa, e muito, o que se produziu entre nós sobre o assunto, até o momento. O exame dessas personagens negras talvez ajude os leitores (na maioria brancos) a entender melhor o que é ser negro no Brasil – e o que significa ser branco em uma sociedade racista.

Com “Uma conversa entre macacos: percalços do diálogo africano com o outro”, Lucia Helena focaliza uma delicada e complexa rede textual, formada pelo diálogo sutil implantado por J. M. Coetzee entre seus dois romances A vida dos animais e Elizabeth Costello e o conto de Kafka, “Um relatório para uma academia”. ao manter enlaçadas, com pistas que oscilam na fronteira entre o falso e o verdadeiro, as marcas da autoria, da autobiografia e da ficção, do ensaio e da vida, o intertexto realizado por Coetzee revela-se uma irônica e produtiva forma

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de buscar compreender, discutir e criticar as transformações da subjetividade na sociedade contemporânea, em um mundo globalizado. Em diálogo com a violência do mundo, a literatura de Coetzee também homenageia a de Kafka, outro invulgar pensador do desastre.

Fecha o volume a transcrição de uma entrevista inédita, feita por Maurício de Bragança, em 2005, com o escritor angolano José Eduardo Agualusa, intitulada “O peixe e o macaco: emble-mas do subdesenvolvimento numa entrevista com José Eduardo agualusa sobre Brasil e angola”. Nesta entrevista, seu autor, na introdução que faz, estabelece os pontos em comum nos proces-sos da formação histórica do Brasil e de Angola, tomando como fato a colonização portuguesa e situando o contexto temporal de sua entrevista e o local – Vila do João, no Rio de Janeiro – em que faz um vídeodocumentário sobre os angolanos residentes no Brasil. A entrevista do escritor Agualusa fará parte do referido vídeo, em fase de montagem final.

Laura Padilha eLucia Helena

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Gragoatá Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008

O começo do fimSilviano Santiago

Recebido 15 mai. 2008 / Aprovado 27 mai. 2008

Resumo

O propósito de “O começo do fim” é o de apre-sentar uma nova e suplementar interpretação do conceito-chave do movimento Modernista – a antropofagia de Oswald de Andrade. Durante oito décadas o conceito foi responsável por uma rica e precisa bibliografia, em que se salientaram os aspectos ressentidos e beligerantes das culturas colonizadas em relação aos colonizadores. Essa interpretação, apesar de correta do ponto de vista social e político, negligencia as qualidades básicas do trabalho de arte escrito nas margens da cultura Ocidental, em particular as relacionadas ao fato que ele deveria despertar no leitor a premência dum pensamento utópico, em que a paz, a espe-rança e a alegria se tornariam os valores.

Palavras-chave: Literatura brasileira. Van-guarda. Modernismo. Antropofagia. Pensamento utópico.

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Gragoatá Silviano Santiago

Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 200814

“Os mais bem sucedidos movimentos políticos são os que parecem não ser ‘políticos’”

(Felix González-Torres, 1957-1996)

Marik o Mori, Beginning of the End, Gizah, Egito, 2000

No ano em que a Antropofagia oswaldiana celebra seu octogésimo aniversário, torna-se indispensável repensá-la na perspectiva de uma nova interpretação. Sucessivas gerações de artistas, críticos e pesquisadores brasileiros e estrangeiros sobre-puseram uma formidável tradição hermenêutica ao conceito-cha-ve da vanguarda brasileira dos anos 1920. ano após ano, década após década, essa tradição se transformou numa muralha. Para escalá-la o neófito tem de contar com o concurso dos milhares de sólidos e bons recursos oferecidos pela bibliografia de res-ponsabilidade dos artistas e dos intérpretes. Qualquer que seja a trilha eleita para a escalada da muralha antropofágica, revisitar ou visitar o conceito significa fazer grandes caminhadas preli-minares por detrás do muro das interpretações canônicas e, sem maiores ambições, terminar por repetir o já escrito e assentado. Como nos adverte Eugène Ionesco na Cantora careca, “tomai um círculo, acariciai-o bastante, e ele se tornará vicioso”.

Indispensável à escalada atual da viciosa teoria antropo-fágica, a planta baixa da muralha regulamenta medidas críticas contraproducentes à análise e compreensão das manifestações artísticas contemporâneas, em particular das que reivindicam o calor utópico e o direito à esperança e à alegria, que – afirme-se

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O começo do fim

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desde já − não estão ausentes do programa teórico oswaldiano em sua totalidade. Se a planta baixa canônica for tomada como perspectiva única e correta, algo nela não permitirá que se enxerguem − com proveito analítico − as qualidades e os sinto-mas evidentes da arte no terceiro milênio. Aprendamos com o aforismo do Manifesto Pau-Brasil: “Ver com olhos livres [o grifo é do próprio oa]”.

A leitura dos últimos e influentes trabalhos críticos sobre o tema por excelência da vanguarda histórica brasileira desperta constantemente − na sensibilidade rebelde do leitor jovem − o gosto de bolo ressequido ou de café requentado. Em suas novas pesquisas, os grandes especialistas se interessam menos pelos sucessivos constrangimentos prescritos e impostos pela tradi-ção hermenêutica ao conceito. Interessam-se mais em alardear as respectivas erudições individuais ou do grupo de pesquisa, ampliando ao infinito apenas o repertório das obras que podem ser mais bem analisadas a partir da Antropofagia tal como a conceberam. Interessam-se, ainda, pela abertura de novas e pre-visíveis fronteiras geográficas não-ocidentais, e finalmente pelo já decantado exercício das inversões ideológicas nos sedimentos estratificados pelo poder das culturas hegemônicas – ex-coloni-zadoras ou neocolonizadoras e, por isso, ditas universais − sobre as demais culturas das nações ou dos povos das margens.

Em resumo, tanto nos novos ensaios sobre a Antropofagia quanto nos acréscimos feitos ao corpus original levantado pela teoria oswaldiana, a originalidade de um novo exemplo tornou-se o principal dado imprevisto no octogenário desenho da planta baixa exegética. A teoria se alçou e se petrificou em muralha, enquanto o corpus analisado ganhou o estatuto de obesidade mórbida.

Em momento preciso do final do século 20, a Antropofagia recebeu contribuição alvissareira na pesquisa propriamente teórica. Ela anunciava o casamento do conceito da vanguarda histórica brasileira com figuras da teoria pós-estruturalista. Refiro-me aos conceitos de renversement (reversão [do platonismo], Gilles Deleuze) e de décentrement e de déconstruction (descentra-mento e desconstrução [da metafísica ocidental], Jacques Derrida). Hoje, os felizes e tardios casamentos teóricos − sacramentados sob o céu de Paris − se encontram bem assimilados pelos gourmets europeizados do circuito e do círculo antropófago. Na busca de uma palavra exegética que consagre o octogésimo aniversário, não há que voltar a elas.

Não duvidemos por um segundo sequer de que o conceito oswaldiano e a tradição crítica dele derivada não tenham sido, no século 20, uma conquista admirável para a boa leitura da litera-tura e da arte não-européias, ditas periféricas ou emergentes. O conceito e a correspondente tradição exegética (a muralha a que nos referíamos no parágrafo inicial) se tornaram também indis-

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pensáveis para a discussão justa e equilibrada do imaginário estético e sócio-político dos artistas e dos escritores pertencentes às antigas colônias européias no Novo Mundo.

No terceiro milênio, quando se salientam as teorias pós-colonialistas − multiculturalistas − nos próprios países coloniza-dores de além Mancha, de que é exemplo a obra de Stuart Hall, ou de além Atlântico, de que é exemplo o Museu do Quai de Branly; em Paris, no novo milênio, quando as nações da África, do oriente Médio e da ásia reclamam um lugar ao sol no mun-do ocidental para suas audaciosas, destemperadas e resistentes manifestações culturais, é impensável que o cidadão das mar-gens – seja o artista, seja o pensador – possa dispensar sem mais nem menos as idéias revolucionárias apresentadas por Oswald de Andrade em 1928, cujo equivalente na pesquisa científica foi La religion des tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-Guarani (em particular o capítulo IX), publicado naquele mesmo ano por Alfred Métraux, etnólogo de origem suíça. Ou-tro franco-suíço, o poeta Blaise Cendrars, foi também conviva de primeira hora no banquete antropófago, como atestam os ensaios de A aventura brasileira de Blaise Cendrars, de Alexandre Eulálio (hoje em segunda edição, graças ao concurso de Carlos augusto Kalil).

Retirar a Antropofagia, a alta Antropofagia − precisemos − 1 de detrás da muralha levantada pela hermenêutica canônica sig-nifica entregar-se a atividade sócio-política extremamente arris-cada, em particular neste exato momento da história planetária. Na cena mundial, dá-se continuidade à tragédia dos conflitos bélicos sangrentos, impostos pelos atores sociais de nações do norte aos atores sociais das nações do sul, representantes, res-pectivamente, do ocidente e do oriente, do cristianismo e do islamismo, do status quo e do chamado terrorismo. Infelizmente, o terceiro milênio se define, para retomar a chave-mestra de Sa-muel Huntington, pelo choque das civilizações. Na primeira década do novo século, os movimentos diaspóricos de ex-colonos para os países colonizadores do Primeiro Mundo ganham as manchetes dos principais jornais europeus e norte-americanos, e freqüen-tam com assiduidade a agenda política dos governantes, haja vista a situação em nada particular dos hispano-americanos e brasileiros na Península Ibérica.2 Se a tarefa a ser enfrentada pelo crítico de arte contemporâneo exige o risco político, arrisco-me, e não me deixo contaminar pela atualidade que a cada novo dia o imperioso governo federal norte-americano inventa e semeia no Oriente Médio para melhor controlá-lo com fins em nada pacíficos.

Em termos ainda abstratos, derivados da ancoragem dos textos de Oswald de Andrade na utopia, na esperança e na alegria presentes no múltiplo programa teórico, proponho aos ouvintes e futuros leitores considerar a Antropofagia de maneira su-

1 A não ser confundida – alerta-nos Oswald de Andrade – com “a baixa [grifo nosso] antropo-fagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados”. O au-tor conclui: “É contra ela que estamos agindo”. anotemos rapidamente que as duas formas de antropofagia não se con-fundem com o sentido estrito do ritual canibal dos tupinambás.2 Neste mês de maio de 2008, maior tristeza é constatada na África do Sul, onde imigrantes dos países limítrofes, em particular os moçambi-canos, são perseguidos e dezenas assassinados pelos companheiros de pan-africanismo. A intolerância e a xenofo-bia não existem apenas nos países do Primeiro Mundo.

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plementar e de nova perspectiva. Enuncio minha proposta. a demanda dos artistas e pensadores não-europeus e a aspiração profunda da produção artística das margens sobrevivem graças à deglutição por qualquer cidadão da memória universal da cultura e das artes, sem distinções ou balizas históricas e geográficas. Antes de prosseguir, busco o indispensável alicerce num afo-rismo do Manifesto Antropófago: “Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César”.

Se lhes parecer verdadeira a leitura não-hierárquica, pa-cifista e transcendental para a teoria antropofágica – inspirada, repito, no aforismo oswaldiano citado −, reganho força e lucidez com o apoio do antigo filme documentário de Alain Resnais sobre a Biblioteca Nacional francesa, intitulado Toute la mémoire du monde (1956). Escutemos a voz do narrador do filme: “Aqui [na Biblioteca Nacional] se prefigura um tempo em que todos os enigmas serão resolvidos, um tempo em que as chaves nos serão concedidas por esse universo e alguns outros. E isso sim-plesmente acontecerá porque os leitores, sentados diante de sua parcela de memória universal, terão colado pedaço por pedaço os fragmentos de um mesmo segredo, que talvez ganhe um belíssimo nome – a felicidade [le bonheur]”. E graças ao segredo de nome felicidade, começo a palmilhar novo caminho, agora com a ajuda de palavras tomadas de empréstimo ao conto “a biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges: “Quando se proclamou que a biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. [...] O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança”. E ficaria felicíssimo se, ao final desta exposição, cada um dos presentes pudesse por contra própria repetir a frase final do conto de Borges: “Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança”.

Acrescente-se que a atividade antropofágica proposta não se quer milagrosa em si, mesmo se busca adotar – dessa perspectiva inusitada para a hoje canônica exegese da teoria – o rosto utópico da esperança e da felicidade. Esse rosto, aliás, já se espelhava na letra do manifesto original, datado de 1928. Trans-posta a muralha hermenêutica, talvez a nota hoje dissonante de esperança e o calor utópico da felicidade passem a compor a disposição mais justa da Antropofagia nos dias atuais. É preciso nunca esquecer que em 1945, por ocasião do fim da Segunda Guerra Mundial e depois da queda da ditadura Vargas, Oswald de Andrade tinha submetido ao plenário do Primeiro Congres-so de Filosofia um longo ensaio intitulado A marcha das utopias. a espinha dorsal da argumentação continuava a ser a cultura matriarcal dos índios Tupinambás, presente nos manifestos dos anos 1920. Tampouco não se pense que a Antropofagia tal como a estou caracterizando contribua para uma visão otimista

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do mundo atual, ainda que, em virtude de seu enraizamento original na religião dos primeiros habitantes do Brasil, o lance utópico, esperançoso e feliz, tome de empréstimo dos rituais das populações primitivas gestos alucinatórios e redentores.

Se houver otimismo na teoria antropofágica, ele é em tudo por tudo semelhante ao par de calças, de que nos fala Samuel Beckett em preciosa e célebre anedota. Diante da reclamação do Freguês − “Deus fez o mundo em seis dias, e o senhor não con-seguiu me costurar essa merda de calças em seis meses”, reage o Alfaiate, orgulhoso de sua obra-prima: “Mas, meu senhor, olhe o mundo, e olhe suas calças”.

Em última instância e do ponto de vista restrito do artista não-europeu, a Antropofagia leva o escritor – o escritor brasilei-ro, no presente caso – a desenvolver o gosto pelo lento e paciente trabalho de arte. Sejamos mais precisos. Ela exige do artista, cuja tradição cultural se encontra em princípio desapossada do ideal de universalidade criado pela tradição ocidental, o gosto pelo trabalho artístico que não é desassociado do trabalho crítico, também de responsabilidade do próprio criador. Dessa pers-pectiva, soa falso todo esforço por criar oposição/contradição entre a escrita dita artística e a escrita dita crítica. Não há fissão e incompatibilidade entre elas. Ao se confundirem num escritor, criação e crítica se fundem e se confundem – são cofundadoras da literatura. Lembre-se de passagem do volume Variété I. Paul Valéry escreve que Charles Baudelaire é o poeta “que traz um crítico em si, intimamente associado por ele a suas próprias composições poéticas”. Baudelaire se torna figura emblemática dos escritores para quem – continua Valéry – “a composição, que é artifício, sucede a algum caos primitivo de intuições e de desenvolvimentos naturais”.

a composição − de que fala Valéry nessa passagem sobre o poeta francês oitocentista e sobre outros escritores, como La Fontaine e Racine − decodifica a metáfora das calças, de que fala o Alfaiate frente ao porta-voz de Deus na terra, que é o apressado e abusado Freguês. A composição, ou seja, o lento trabalho de arte embutido no texto poético e, metaforicamente, nas calças beckettianas, faculta ao ser humano a possibilidade de competir em igualdade de condições com Deus e o acaso na criação do universo, na criação dum universo alternativo, artístico, espe-rançoso e feliz. Depois das dores do parto, nada como o tempo do resguardo. Em termos oswaldianos: “o trabalho humano conduz ao ócio”. Em termos nietzchianos, “as ‘dores do parto’ são indispensáveis à alegria eterna da criação, à eterna afirmação da vontade de vida”.3 Como diz o texto santo: “Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, porque neste dia Deus descansou de toda a obra de criação”. Também o alfaiate tem sua semana inglesa.

3 Complemente-se com este aforismo de O cre-púsculo dos deuses: “o artista trágico não é um pessimista, diz o seu sim a tudo o que é pro-blemático e terrível, é dionisíaco [...]”.

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Na cena artística brasileira dos anos 1920, a Antropofagia oswaldiana respirava o ar clássico e puro da teoria poética de Paul Valéry, ao mesmo tempo em que, em evidente movimento de contradição, acolhia e aclimatava a presença estética e sócio-política dos principais movimentos de vanguarda europeus − o autoritário Futurismo, de Filippo Tommaso Marinetti, e o anár-quico Dada, de Tristan Tzara. Em comum, (repito) a deglutição. No interior da vanguarda histórica brasileira, outra e conseqüen-te contradição terá seu clímax dois anos depois da realização da Semana de Arte Moderna. Em 1924, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars é recebido pela família Paulo Prado e viaja, juntamente com os jovens artistas paulistas, às cidades históricas de Minas Gerais. Durante a primeira estada de Cendrars no Brasil, é que se acelera paradoxalmente o processo de abrasileiramento do eu-ropeizado movimento de vanguarda nos trópicos.

Sobre os caminhos diferenciados que se cruzam na for-mação do modernismo, Brito Broca, um dos mais importantes historiadores da literatura brasileira, assinala: “antes de tudo, o que merece reparo nessa viagem [a Minas] é a atitude para-doxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, o que vão eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século 18, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. Pareceria um contra-senso apenas aparente. Havia uma lógica interior no caso. o divórcio [grifo meu] em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernis-tas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam”. Retomo os primeiros parágrafos desta fala para reafirmar que o sucesso de certa Antropofagia e da tradição hermenêutica canônica tem suas raízes revolucionárias e belicosas na viagem de Blaise Cendrars às cidades históricas, ou seja, no divórcio entre intelectuais e a história nacional e no paradoxo ocasionado pela irrupção da tradição brasileira na já adolescente importação européia. Numa palavra, a Antropofagia bélica e ressentida tem fundamento no imperativo categórico do abrasileiramento da arte de vanguarda.

Num único salto, solitário e contraditório,4 o complexo con-glomerado teórico, que compõe originalmente a Antropofagia, se comporta como o sinal preparatório a indicar a supremacia do construtivismo nas manifestações artísticas modernistas e pós-modernistas. Os exemplos mais bem realizados, e radicais, serão encontrados a partir dos anos 1940 e 1950. Em literatura, a poesia de João Cabral de Melo Neto e os poemas visuais dos poetas concretos, e, em artes plásticas, as Bienais de arte de São Paulo.5 Para julgar sobre a importância da contribuição

4 É bom lembrar esta curta passagem do Ma-nifeste Dada 1918: “Eu re-dijo esse manifesto para mostrar que é possível fazer simultaneamente ações opostas, numa única fresca respiração; sou contra a ação; pela contínua contradição, pela afirmação também, eu não sou nem para nem contra e não explico por que odeio o bom-senso”. Pensemos ainda na máxima de André Gide, muito ao gosto dos autores e críticos brasileiros modernistas: “Sou um ser em diálogo; tudo em mim combate e se contradiz”.5 Na França e no domí-nio das artes plásticas, o peso do construtivis-mo hispano-americano pode ser bem aquila-tado pela história da Galerie Denise renée, situada não por coin-cidência no Boulevard Saint-Germain, quase em frente da Maison de l’Amérique Latine. O interesse praticamente nulo da galeria pelos trabalhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica será em grande parte responsá-vel por uma insuportá-vel lacuna brasileira do construtivismo brasilei-ro na cartografia pari-siense. Ver, por exemplo, as cartas trocadas entre Lygia e Hélio durante os anos de 1969/1970 e a grande exposição “Helio Oiticica: the body of colour”, inaugurada no ano passado na tate Modern, em Londres.6 A conferência foi publi-cada na Revista Brasileira de Poesia, no mês de abril de 1956, e transcrita na antologia Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, organizada por Gilberto Mendonça telles. o leitor curioso terá o maior interesse em consultar um anti-go e hoje desaparecido livro de Jean Hytier, La poétique de Valéry (1953), em particular o capítulo V: “Inspiration et tra-vail”. ali se encontram excelentes exemplos de “deglutição” antropofá-gica em... Paul Valéry.

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teórica de Paul Valéry na concepção do lirismo construtivista desenvolvido por João Cabral, basta ler a conferência “Poesia e composição – a inspiração e o trabalho de arte”, proferida pelo poeta pernambucano em 1952.6

Desta forma é que João Cabral explica a atitude dos es-critores que decidiram a favor de uma escrita artística que se apóia na pesquisa – e não na inspiração: “Nos poetas daquela família, para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exercitam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força – é feita de mil fracassos, de truques de que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir”.

Sérgio Buarque de Holanda foi o primeiro crítico sensível à aliança entre a estética e a ética, tal como proposta em língua portuguesa pelo lirismo construtivista de João Cabral. Em artigo sobre o poeta, intitulado “Branco sobre branco”,7 sem dúvida homenagem indireta ao célebre quadro de Kazimir Malevitch, Sérgio retoma a oposição entre o “desleixo”, característica prin-cipal da colonização portuguesa nos trópicos, e o “zelo”, marca preponderante da colonização espanhola no Novo Mundo. A oposição fora articulada pela primeira vez em 1936 no ensaio Raízes do Brasil, hoje um clássico.8 Ele a retoma em 1952 para insistir sobre o mal-estar que sente diante da opção inesperada e sistemática dum brasileiro pelo zelo na composição de seus poemas. Julgara-o equivocadamente um equivocado.

Ao relatar o percurso de sua dúvida inicial sobre o valor da produção poética de Cabral e o reconhecimento tardio de sua alta qualidade, Sérgio demonstra como a opção radical do pernambucano pelo zelo lhe parecera eleição de uma lingua-gem poética artificial, o que comprometia a inserção natural dos poemas na tradição lírica luso-brasileira. Passemos a palavra ao próprio Sérgio: “confesso envergonhado que meus primeiros contatos com sua obra e, depois, o crescente interesse que ela pôde inspirar-me, nem sempre me deixaram totalmente livre de hesitações ou suspeitas. Pareceu-me quase incrível, por vezes, que essa consciência constantemente alerta e ativa, esse zelo, ao mesmo tempo vigilante e criador [...], tão estranho aos mais inveterados costumes da lírica luso-brasileira, chegassem a existir, entre nós, sem fundar-se por vezes em algum malicioso artifício”.9 (grifos nossos)

Ao ler o opúsculo de Cabral sobre o pintor catalão Joan Miro (1952), Sérgio descobre tardiamente que o zelo cabralino é a pedra de toque de que deve servir-se o crítico para avaliar a originalidade de sua composição poética no interior da líri-ca luso-brasileira. Lê-se na já citada resenha: “O que parecia traduzir-se naquele zelo sempre atento não era apenas uma

7 A resenha foi publicada em jornal em 1952 e in-cluída em Cobra de vidro (São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 167-180)8 Para maiores detalhes, consulte-se o sétimo capítulo de As raízes e o labirinto da América Latina (Rio de Janeiro: rocco, 2006), de minha autoria.9 Lembre-se que esta-mos sempre no mesmo circuito semântico. Para Valéry, como vimos, a composição é “artifício”. Pode-se dizer que faltou a Sérgio, na primeira abordagem de Cabral, o reconhecimento do artif ício (ou seja, da composição artística) como tal.

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poética, na acepção mais corrente e usual do vocábulo: era mais, e principalmente, uma espécie de norma de ação e de vida. a estética, em outras palavras, assentava sobre uma ética”.

Em João Cabral, como em outros escritores que o precedem e o sucedem, o exercício da arte se confunde com uma norma de ação e de vida estóicas, cujo norte é determinado por uma atividade social de produção. Ao trazer para a discussão da Antropofagia o construtivismo, cria-se outro e novo paradoxo, cujo poder de repercussão chega a nossos dias. Sérgio Buarque não deixa de assinalá-lo na abertura de sua resenha: “Não há grande paradoxo em dizer que na obra tão breve e tão volunta-riamente impessoal de João Cabral de Melo Neto o autor parece presente de corpo inteiro”. Graças ao esforço de composição, que é artifício, o poeta se apresenta de corpo inteiro num poema absolutamente impessoal. O par de calças só pode ser o confec-cionado por aquele alfaiate e por nenhum outro, para retomar a anedota de Beckett.

Em sua aliança com o construtivismo e na qualidade de instrumento de busca da verdade poética, a teoria antropofágica torna-se ferramenta poderosa. Por estar assentada em sólida pla-taforma ética, serve para questionar radicalmente as miudezas da história contemporânea e, mais, põe em questão as teorias de composição poética defendidas pelas estéticas românticas e neo-românticas, de que o surrealismo é o exemplo mais notável na época em que Oswald lança os manifestos literários. Essas estéticas estão centradas na expressão imperiosa da subjetivi-dade plena, que age em sujeição a − e em concordância com − uma espécie de transe onírico ou alucinógeno. Em oposição ao trabalho de arte, afirma-se a toda poderosa inspiração.

Em contraponto à tomada de posição de João Cabral sobre o artifício poético e ao assentado criticamente por Sérgio Buarque em relação à aliança entre estética e ética, leiamos uma curta passagem de L’amour fou, de andré Breton. o poeta surrealista lamenta os retoques que ele – primeiro leitor de si mesmo − foi levado a fazer no poema “Tournesol” (Girassol): “Parece-me fora de dúvida haver retocado uma duas ou três coisas, na ver-são original [do poema], no intuito – tão lamentável afinal – de obter um todo mais homogêneo, de limitar o grau de imediata opacidade, de arbitrariedade aparente, que me pareceu existir no poema da primeira vez que o li”. Primeiro, informa que a primeira leitura da versão original do poema o levou a correções ditadas pela autocrítica, para linhas abaixo, afirmar que as la-mentava: “a atividade crítica que, a posteriori, me veio a sugerir certas adições ou substituições de palavras [no poema], leva-me a encarar agora essas correções como erros básicos: nada auxiliam o leitor, antes pelo contrário, só conseguem de uma maneira ou de outra prejudicar gravemente a autenticidade do poema”.10

Segundo Breton, o trabalho de arte prejudica a autenticidade do

10 Salto uma curta pas-sagem entre as duas citações acima. Nela está em jogo o papel da inspiração – e não do trabalho de arte – na composição do poema “tournesol”.

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poema, sua verdade imediata. Ele não quer carregar consigo o crítico de si mesmo.

Retomemos, onde a tínhamos deixado, a questão da me-mória cultural comum a todos os homens. Em mãos de alain Resnais e Jorge Luis Borges. De maneira premonitória lemos no conto “A biblioteca de Babel” que “a certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza”. O que está por detrás do dia de hoje – dito o passado, é já o presente que se impacienta diante da demora do futuro. O que está adiante do dia de hoje – dito o futuro, é sempre já a gestação do presente, pressurosa em dar à luz o que está por detrás do dia de hoje. Segundo o Manifesto Antropófago, o solo comum a toda a humanidade futura é o “matriarcado de Pindorama”. O matriarcado é faca de dois gumes − “devora” e “comunga”. Escreve Oswald em ensaio datado de 1950: “[a cultura matriarcal] compreende a vida como devoração e a simboliza no rito antropófago, que é comunhão”.

Na alta Antropofagia, de que Oswald de Andrade quer ser porta-voz, o ato de devorar adquire as qualidades estratégicas do ritual católico, em que o consumo do alimento sacrificial pelo cliente não distingue o real do imaginário, ou seja, o trigo do corpo e o vinho do sangue. Em resumo, a devoração é co-munhão. A gulodice da alta Antropofagia se situa entre os dois excessos da razão, de que fala Pascal nas Pensées (IV): “excluir a razão, só admitir a razão”.11 Por esse viés inesperado e excessivo, retorna o tema por excelência desse relato: “Faça isso em minha memória”.

Ou, então, retomemos os versos iniciais e os finais do poe-ma “Burnt Norton”, em Quatro quartetos, de t. S. Eliot, na tradução de Ivan Junqueira. Eis os versos iniciais do poema: “O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. / Se todo tempo é eternamente presente / Todo tempo é irredimí-vel”. Saltemos agora para os versos finais do poema: “O tempo passado e o tempo futuro, / O que poderia ter sido e o que foi, / Convergem para um só fim, que é sempre presente”.

Para bem apreender a riqueza da contribuição antropo-fágica à arte e à literatura brasileiras e à arte e à literatura em geral, é preciso negociar com os críticos que defendem o sentido biográfico-evolutivo das histórias pessoais de vida, o sentido único da História e o peso da economia na avaliação da produção artística do ser humano. Como resultado da negociação, uma de-dução (no sentido financeiro do termo) será concedida ao artista, cujo custo benefício será a possibilidade de futuro esperançoso e feliz para a humanidade. A thing of beauty is a joy forever. a dedução é o sentido e o poder da arte e da literatura das margens, da arte e da literatura como tais – na condição de composição artística, para retomar a expressão da poética de Valéry, ou em termos de

11 Há sem dúvida um catolicismo recalcado na teoria antropofágica que se torna explícito no momento em que está em jogo o ato de devo-rar como comunhão. a visão mais fascinante da questão devoração/comunhão é, na verda-de, a versão calvinista, a ser considerada como desconstrucionista. À época da luta entre eu-ropeus e indígenas com vistas à catequese, ela se encontra no sexto capítulo de Voyage à la terre du Brésil, de Jean de Léry. A luta espiri-tual entre Villegagnon e Jean de Cointe ganha peso no fato de que não há transubstanciação ou consubstanciação do corpo e do sangue de Cristo.

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par de calças, para retomar a metáfora do Alfaiate na anedota de Beckett. O valor da dedução concedida pelos cientistas sociais e os economistas aos mercadores de arte é a sabedoria humana. À semelhança da antropofagia descrita por Alfred Métraux em seu livro pioneiro, que se elabora como conhecimento dito científico [knowledge], a Antropofagia oswaldiana se agiganta por ter como escatologia a sabedoria dita poética [wisdom].

Ao se afirmar a favor da expressão impessoal, descaracteri-zando a expressão subjetiva do poeta, e ao se deixar representar teoricamente como semelhante à casquette de Charles Baudelaire, cuja fabricação era compósita, a Antropofagia é antípoda da me-mória involuntária de Marcel Proust. Ela se confunde, portanto, com a memória voluntária, segundo a definição que dela nos foi dada por Samuel Beckett em 1931, no ensaio pioneiro sobre o autor de Em busca do tempo perdido. Em inusitada correspondên-cia com o futuro Borges, autor do conto “Funes, o memorioso” (1944), Beckett afirma inicialmente: “O homem de boa memória nunca se lembra de nada, porque nunca se esquece de nada”.12

Em oposição à memória involuntária, a memória voluntária – rebaixada por Beckett na escala dos valores proustianos como a má memória – é necessariamente incompleta. Nesse sentido, ela é orgânica e não o é. É interior e não o é. É exterior e não o é. É involuntária e não o é. Em resumo, ela transita e, por isso, é anfíbia.

a memória voluntária é memória e, ao mesmo tempo, hábito, para retomar outra categoria analítica de Beckett. Ela é hábito adquirido pelo ofício de viver e pelo ofício de ler. Em suma, uma sabedoria – uma experiência de vida que se soma a uma pesquisa livresca; é aprendizado. Segundo as palavras sem dúvida irônicas de Beckett, ela é “a memória que não é memória, mas simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento do indivíduo [...] É a memória uniforme da inteligência”. Portanto, a memória voluntária não se relaciona em coisa alguma com a boa memória, ou seja, a memória involuntária proustiana.

A memória voluntária – a má memória, insisto, bem como a Antropofagia – é conseqüência do pensamento da diferença, mas ela só existe plenamente para negar os valores subjetivos e supremos, que estão na origem da sua desclassificação por Marcel Proust. Se a reversão dos valores – na leitura de Beckett, o mau da memória está sempre em posição inferior −, se a reversão dos valores não foi necessária no período histórico das vanguar-das, ela está sendo requisitada na contemporaneidade. andréas Huyssen, historiador de arte, situa o pós-modernismo depois de grande divisão (“after the great divide”). Huyssen assim define a expressão: “O que chamo de a Grande Divisão é o gênero de dis-curso que insiste na distinção categórica entre arte erudita [high art] e a cultura das massas”. acrescenta: “[...] o pós-modernismo repudia as teorias e as práticas da Grande Divisão”. Em oposição

12 Entre outras, leiamos esta passagem de “Fu-nes, o memorioso”: “Não só lhe custava compre-ender que o símbolo genérico cão abranges-se tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa for-ma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente). Seu próprio rosto no espe-lho, suas próprias mãos, surpreendiam-no todas as vezes”.

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às leituras equivocadas da vanguarda histórica, que insistiam no fato de que era indispensável excluir as manifestações de todas as formas de cultura de massa, o historiador nomeia de maneira incontestável o principal responsável pela Grande Divisão, o alto modernismo [the high Modernism]. Ele se explica: “as vanguardas históricas tinham por fim o desenvolvimento duma relação alternativa entre a arte erudita e as culturas das massas e dessa forma deveriam continuar a existir dentro do alto modernismo, que, no entanto, insistia majoritariamente na hostilidade inata entre o alto e o baixo”.13 Nem alta cultura nem cultura de massa, a Antropofagia – ou a má memória – aponta para as duas, ao mesmo tempo.

Retornemos a Beckett e a Proust para concluir com a ajuda do primeiro: “Democrata incondicional, [a memória voluntária] não faz qualquer distinção entre os Pensamentos de Pascal e uma propaganda de sabão”. A Antropofagia está no nascedouro da produção artística que se afirma como negação das estéticas do alto modernismo, que lutavam a favor da exclusão da cultura das massas do reino das artes. A Antropofagia se apresenta aos olhos pós-modernos como a negação das estéticas românticas, fundadas na sinceridade do eu.

Durante o período áureo da vanguarda brasileira, a an-tropofagia buscava, por um lado, apreender e avaliar para o artista e o pensador não-europeus o peso da herança cultural universal e, por outro lado, identificar as razões pelas quais os indígenas – que são nossos antepassados dum ponto de vista exclusivamente geográfico – não tinham conseguido ter acesso ao capital cultural consensual, indispensável à produção de obra artística ou reflexiva com peso universal. Mais importante do que a constatação da inferioridade do colono em relação à empresa colonizadora européia e a conseqüente rejeição das injustiças estabelecidas pelo poder tirânico das metrópoles, a Antropofa-gia se apresenta como estratégia artística e reflexiva que visa a apreender o valor universal para os que estão desapossados dele originariamente. Na busca desse valor, a Antropofagia rechaça a dívida contraída pelo não-europeu com o universal, para então indiciá-la duplamente − como signo de reconhecimento e, para-doxalmente, de auto-reconhecimento. A teoria antropofágica é o primado duma negociação, cujo resultado – isto é, a redução ou o abatimento no preço legal e oficial do universalismo – é a iluminação do mundo e seus habitantes pela amplidão absoluta do conhecimento pleno das diferenças. A iluminação se dá no exercício de ultrapassagem histórico das condições funestas do cotidiano e da atualidade.

A produção de bens artísticos e reflexivos passa por uma experiência pessoal que se renova, que é renovada por cada experiência humana, indiferente de sua localização precisa na história ocidental e na geografia do planeta. Leia-se o manifesto,

13 a reiterar a tese de Huyssen, leia-se no ma-nifesta de Oswald: “O que atropelava a verda-de era a roupa, o imper-meável entre o mundo interior e o mundo ex-terior. a reação contra o homem vest ido. o cinema americano in-formará”.

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de que vimos falando: “Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada”. A memória se renova pela intervenção do sujeito na memória universal, de que falam Alain Resnais e Jorge Luis Borges. Sua memória é involuntária e volun-tária, é interior e exterior, é orgânica e artificial, é incompleta e uniforme. O sujeito se renova no momento em que sua memória involuntária se renova voluntariamente.

Em possessão duma reserva parcial de conhecimento e de-sejoso de ter acesso ao capital artístico dito universal, os artistas e os pensadores não-europeus inventaram não só argumentos contraditórios e paradoxais, como também metodologias de leitura em nada convencionais. A Antropofagia não deixa de propor uma pedagogia para todos os cidadãos. Marca original do colono, o conhecimento incompleto se justapõe ao conhecimento dito universal, marca original do colonizador. É um conhecimen-to exorbitante que deriva da combinação, da comunhão das duas reservas de conhecimento pelo esforço antropófago. Ele rechaça, portanto, as duas formas parciais de conhecimento − tanto a parcial do colono quanto a dita universal do colonizador. No domínio da Antropofagia, o único valor responsável é o exor-bitante. Para melhor compreender a situação pedagógica a que chegamos, aprenda-se com Emmanuel Lévinas que “a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Nesse sentido, sou responsável pelo outro sem esperar a recíproca, ainda que ele me custe a vida. a recíproca é problema dele”. a recíproca ocidental não é, nunca foi e nunca será problema do sujeito antropófago.

Os argumentos legitimados pela Antropofagia escapam muitas vezes da lógica cartesiana e de suas metodologias de leitura, escapa ainda ao sentido único da História. Daí a ori-ginalidade e audácia dos aforismos levantados pelo Manifesto Antropófago, de que é emblemático o seguinte: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Antes de ser o inimigo, ainda que na realidade o possa ser, o outro é a pos-sibilidade de união neste mundo, em que mais e mais se perde a esperança da fraternidade universal. Essa operação responsável, esperançosa e utópica, a felicidade na comunhão, só é possível graças aos paradoxos da Antropofagia: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. / Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualis-mos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz”.

tudo o que é de outro é meu. tornar-se responsável do bem que é do outro, dos bens que pertencem ao outro, é o próprio do eu que, em lugar da sinceridade romântica, se quer fraternal e esperançoso, vale dizer, universal. O sujeito não recua diante dos atos e mecanismos de ataque ou de defesa manifestados pelo outro. Voluntariamente, acumula em si o outro, o capital e os valores do outro. Nunca será deficitário. Em negociação

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com o outro, jamais desfalca seu capital cultural, soma sempre. A visão do sujeito antropófago perde o sentido das fronteiras geográficas e sua audição, perde o sentido dos limites espaciais e sua localização. A responsabilidade é a expressão mascarada de todos os individualismos que, por sua vez, é a expressão mascarada de todos os coletivismos – repitamos as palavras do Manifesto. Daí o aforismo que abre o texto de Oswald: “Só a Antropofagia nos une”.

terminada a etapa das operações aritméticas − ou finan-ceiras − de soma, impõe-se o desejo de verificar a exatidão dos resultados obtidos. aplique-se a prova dos nove. Esta negará ou reafirmará o rigor da lei do homem e da Antropofagia. No Manifesto Antropófago, lemos uma e muitas vezes o seguinte afo-rismo: “a alegria é a prova dos nove”. E lemos ainda: “antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Uma vez mais precisemos nossa posição. Antes de ser conseqüência das descobertas marítimas feitas pelos europeus no século 16, a alegria foi sempre o valor do antropófago; em uma só palavra, o valor exorbitante do homem no matriarcado de Pindorama, um valor absoluto.

Dessa perspectiva, o estudo das diferenças espaciais no planeta terra – e a constatação de sua composição não-simétrica do ponto de vista histórico, social e econômico – só guarda sua força operacional por detrás da muralha sobreposta ao con-ceito oswaldiano pela tradição hermenêutica, cuja origem está incontestavelmente na busca de identidade para cada nação do subcontinente latino-americano ao final do colonialismo euro-peu. Constate-se uma vez mais: a lei que constitui o sujeito por seu “interesse pelo outro”, ou por sua “responsabilidade pelo outro” não diferencia o antropófago do ser humano tout court. a lei do homem e a lei do antropófago não são duas, são a mesma. Melhor, a lei do mesmo rasura a diferença que tinha servido na época colonial e depois dela para constituir o antropófago na condição de ator latino-americano singular, descoberto pelo europeu e inventado a partir das grandes descobertas marítimas do século 16. Na prova dos nove, esse ator tem a identidade de homem ressentido (Nietzsche) e navega nas águas belicosas do saber parcial.

as questões políticas e econômicas decorrentes da longa e fastidiosa narrativa sobre as transformações das colônias eu-ropéias em nações latino-americanas cedem o lugar a questões decorrentes duma nova e complexa forma de constituição do sujeito (artístico). tal reviravolta se dá no momento em que se torna de importância primordial uma visão esperançosa e fe-liz, universal, que contrastará radicalmente com as propostas sócio-políticas defendidas pela globalização do planeta a partir da unificação econômica das bolsas e dos mercados, ou que a acusam pela mesma linguagem, só que em sentido inverso.

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O novo e complexo sujeito antropófago – semelhante ao que está sendo encenado nas fotografias de Mariko Mori, intitu-ladas Beginning of the end: Past, present and future (1995-2000) – 14 se caracteriza pelo dom da ubiqüidade, da simultaneidade e da transcendência. O novo sujeito está por todos os cantos do tempo e do espaço. É a memória do espaço fotografada pela perspecti-va da memória do tempo. o sujeito está ali e está alhures, num outro lugar onde os limites históricos e as fronteiras geográficas se apresentam desprotegidas do sentido de propriedade por um grupo ou por grupos hegemônicos. Como o Manifesto o tinha dito em 1928, trata-se de um mundo “sem Napoleão, sem César”. A nova certeza proposta por Mariko Mori e muitos outros ar-tistas contemporâneos furta a diferença para melhor apreender a sutura que as obras de arte operam pelo “totalitarismo” da alegria, para empregar o substantivo de Clément Rosset em seu ensaio La force majeure.

Citemos Rosset: “há na alegria [joie] um mecanismo aprova-tivo que tende a ir além do objeto particular que a suscitou para afetar indiferentemente todo objeto e chegar a uma afirmação do caráter jubilante da existência em geral. Assim, a alegria aparece como uma espécie de cega desoneração de dívida, con-cedida a todos e a qualquer, como uma aprovação incondicional de toda forma de existência presente, passada ou futura”. Mário de Andrade afirmava de maneira paradoxal: “A própria dor é uma felicidade”. Passemos por cima do Nietzsche, autor de O crepúsculo dos ídolos, para chegar finalmente a Gilles Deleuze, seu leitor. Deste é a definição seguinte: “Trágico designa a for-ma estética da alegria [joie]; não se trata de fórmula medicinal, nem de solução moral da dor, do medo ou da piedade. o que é trágico é a alegria”.

O retorno do que foi recalcado nesta apresentação – a muralha construída pela tradição hermenêutica – é apenas a afirmação em negativo do poder policial das fronteiras alfandegá-rias e da intolerância dos governantes e dos cidadãos em relação à circulação plena dos homens pelas nações do planeta, pelos seus múltiplos tempos e espaços. Mais: o retorno do recalcado representa as variadas formas de transgressão artística, afirma-das por considerações de ordem histórica, política e econômica, cujo fim é o de explicar, não a criação estética em si, mas as cir-cunstâncias negativas e diversas que a cercam, curto-circuitando sua liberdade de expressão. “Mas, meu senhor, olhe o mundo, e olhe seu par de calças”.

Leiamos um aforismo do Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924). Ele nos fala da luta a favor dum caminho único que deve englobar a antiga e uma nova concepção de poesia: “Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação”. Apesar de comportar um tempo e um lugar predeterminados pelo adjetivo que a qualifica,

14 os leitores que não conhecem o trabalho de Mariko Mori poderão ler com proveito esta curta passagem extraída da Encyclopédie Encarta (2006): “Mariko Mori fotografou vistas de 360º de onze cidades repre-sentantes do passado (Ankgor, Teotihuacán, La Paz, Gizah), do pre-sente (times Square, em Nova York, Shibuya, em tóquio, Piccadilly Circus, em Londres, Hong Kong) e do futuro (o bairro da Défense, em Paris, Xangai, Docklan-ds em Londres, Odaiba em tóquio, Berlim). Ela própria está presente na foto, deitada, vestida de um traje futurista numa cápsula de plexiglas transparente. Mariko torna assim possível, através da mensagem sobre um mundo glo-balizado, as noções de simultaneidade, ubiqüi-dade e transcendência. Seu corpo torna-se um ‘instrumento de comu-nicação com o mundo’, seu trabalho, ‘um ato artístico destinado a distribuir a essência espiritual do mundo, a desviar os homens dos combates políticos, re-ligiosos ou ideológicos que provocam a devas-tação do planeta terra, nossa única moradia’”.

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a nova poesia, de que fala Oswald, luta por um caminho único, que é o da exportação. Seu aqui está alhures. Seu alhures está aqui. Nesse sentido, a repetição exaustiva da palavra “Roteiros” em um de seus aforismos se afirma de importância primordial para bem compreender os deslocamentos espácio-temporais do sujeito artístico que se quer antropófago e construtivista.

Nas reflexões propriamente utópicas de Oswald de Andra-de, sempre está em jogo a condição do “bárbaro tecnicizado”. No corpus da Antropofagia, tudo exige uma pedagogia escatológica, de óbvio sentido universal, mas é o personagem do bárbaro tecnicizado que a reclama. Por falta de tempo para se deter nos detalhes, retomemos algumas idéias lançadas por Jean-François Lyotard em La condition post-moderne. As teses defendidas pelo filósofo doublé de pedagogo se articulam a partir dum grande eixo, ao redor do qual se desenha o questionamento do conceito de Bildung [formação], tal como nos foi transmitido pela tradição filosófica do século 19.

À transmissão dum saber completo pelo professor ao aluno, cujo saber é por definição incompleto, à interiorização progres-siva do saber completo sob a batuta áspera do maestro, segue-se hoje – graças à informatização do conhecimento e a possibilidade de acesso por todos à Internet – que o saber humano se apresen-ta sob a forma dum estoque uniforme, completo e exterior ao homem. A memória de cada um e de todos é tão anfíbia quanto a boa memória involuntária e orgânica (Marcel Proust) e a má memória voluntária e inorgânica (Antropofagia). Como escreve Lyotard: “A Enciclopédia de amanhã são os bancos de dados. Eles excedem a capacidade de cada usuário. São ‘a natureza’ para o homem pós-moderno”.

Continuemos a leitura de Lyotard: “À medida que o jogo está na informação incompleta, a vantagem cabe àquele que sabe e pode obter um suplemento de informação. Este é o caso, por definição, de um estudante em situação de aprendizado”. É o caso também − acrescentemos − do colono que se contenta com a condição de colonizado. A este faz sentido a retomada das idéias guerreiras desenvolvidas pela tradição hermenêuti-ca, de que falamos no começo desta apresentação. No jogo de invenção com informação completa para os parceiros, o melhor desempenho não pertence obrigatoriamente ao professor (ou ao colonizador), que detém a priori um suplemento, ou ao estudante (o colono), que pelo trabalho mimético busca para si a aquisição de tal suplemento. A invenção – continua Lyotard – “resulta de um novo arranjo dos dados que constituem propriamente um ‘lance’ [un coup]. Este novo arranjo obtém-se ordinariamente mediante a conexão de uma série de dados tidos até então como independentes. Pode-se chamar imaginação a capacidade de ar-ticular em conjunto o que assim não estava”.

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Nos distantes anos 1920, a Antropofagia propunha uma nova pedagogia, onde estava presente a possibilidade para os artistas e os pensadores brasileiros de trabalhar “no jogo da informação completa”. Todos os parceiros – ex-colonos e ex-colonizadores − estariam em igualdade de competência na hora da produção do pensamento e da arte. o exorbitante não era um suplemento de mão única, mas a duas, a três mãos. O exorbitante é a imaginação antropófaga. Terminemos por esta passagem de Lyotard, que a sua maneira retoma a utopia esperançosa e feliz de Borges, de Valéry e de Beckett: “Ora, é permitido representar o mundo do saber pós-moderno como regido por um jogo de in-formação completa, no sentido de que os dados são em princípio accessíveis a todos os especialistas: não existe segredo científico. Em igualdade de competência na produção do saber, e não mais no processo de sua aquisição, o aumento de eficiência depende apenas e finalmente da ‘imaginação’ que permite seja dado um novo lance, sejam mudadas as regras do jogo”.

Escrito em francês em junho de 2007Traduzido em maio de 2008

AbstractThe purpose of the “Beginning of the end” is to present a new and supplementary interpretation of the key concept of the Brazilian Modernist movement – Oswald de Andrade’s antropofagia. For eight decades the concept has been responsible for an extremely rich and accurate bibliography that underscores the belligerent aspects of the colonized cultures in regard to the colonizers. This interpretation, in spite of being correct from a social and political point of view, neglects the basic qualities of the work of art written in the margins of Western culture, in especial those related to the fact that it should arouse in the reader the need for a utopian thought, in which peace, hope and joy are the values.

Keywords: Brazilian literature. Avant-garde. Modernist movement. Antropofagia. Utopian thought.

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REFERÊNCIASANDRADE, Oswald de. Obras completas: ao pau-brasil à antro-pofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. v. VI.BECKETT, Samuel. Le monde et le pantalon. Paris: Minuit, 1990.BORGES, Jorge Luis. Obras completas. São Paulo: Globo, 1999. v. I.DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: Presses Uni-versitaires de France, 1970.HUYSSEN, Andreas. After the great divide. New York: Midland Book, 1986.LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: J. Olym-pio, 1986.ROSSET, Clément. A alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

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Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias

nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa

Benjamin Abdala Junior

Recebido 03 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo

Notas sobre as histórias literárias dos países afri-canos de língua oficial portuguesa, construídas a partir da situação colonial. São relevados traços históricos comuns, que apontam para perspecti-vas neo-românticas quando essas literaturas se voltam para imaginar questões relativas a suas nacionalidades; processos de atualização da língua literária portuguesa, cuja plasticidade remonta nacionalmente aos tempos medievais; e as redes comunitárias que elas conformam com o conjunto das literaturas de língua portuguesa..

Palavras-chave: História literária. Países afri-canos. Língua portuguesa. Perspectivas. Neo-romantismo.

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O estudo dos processos de afirmação das literaturas afri-canas de língua portuguesa levam o crítico a relevar formas em que os escritores, desde a facção da obra, procuram obter sua legitimação, num campo intelectual definido por relações comunitárias. Autor, texto e leitor situam-se nesse horizonte lingüístico-cultural que se pauta pela tendência à supranaciona-lidade, que se tem mostrado tão importante quanto as adesões empáticas da nacionalidade. Nessa rede, o trabalho literário procurará sua legitimação não apenas em termos de criação, mas também nas esferas de circulação, por onde circulam os principais agentes de seu reconhecimento. Estabelecem-se, assim, a partir de cada obra, relações de solidariedade entre esses agentes. Para tanto, a inclinação para a inovação artística torna-se correlata ao desejo de se provocar impacto, encontrar ressonância enquanto poder simbólico.

Impõe-se uma observação preliminar, não obstante essa tendência a uma normatização supranacional: as literaturas africanas de língua portuguesa apresentam especificidades na-cionais e só um olhar distraído nivela suas diferenças. Do ponto de vista metodológico, sua abordagem pode ser feita como em qualquer série cultural: registros em língua portuguesa, que se articulam supranacionalmente, como foi assinalado, seguin-do redes e fluxos da circulação da cultura. Do ponto de vista histórico, essas literaturas, cujos repertórios configuraram-se plasticamente na língua literária portuguesa, trazem marcas que vêm desde a formação de Portugal como estado nacional, mas articulam-se em redes com outros sistemas, em cada situação histórica. Evidentemente, esse reporte às origens das literaturas em português pode ser alongado, pois a experiência literária é obviamente mais ampla, acabando por se associar à própria origem da cultura. Um patrimônio de todos os povos, que não se reduz às apropriações e matizações politicamente associadas a formações nacionais.

Liberalismo e projetos nacionaisHistoricamente, as literaturas africanas de língua portu-

guesa são recentes e seguem – como aconteceu com o romantis-mo em escala mundial – os influxos da tomada de consciência nacional por parte da intelectualidade letrada. É por isso que certos vetores encontráveis no romantismo brasileiro podem ser associados às produções africanas, mesmo em produções de até meados do século XX. Os países colonizados por Portugal na África deparam-se com a necessidade de estatuir literaturas nacionais, no quadro da modernidade, tal como ocorreu com o Brasil no século XIX. Tivemos o romantismo propriamente dito e, depois, a Semana de arte Moderna, como divisora de águas, que propiciou a literatura, dita “regional”, e a nossa poesia mo-dernista.

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No romantismo, a literatura brasileira veio a inventar mi-tos da nacionalidade, buscando a “cor local” para uma sintaxe que vinha da Europa. E tanto Portugal, como o Brasil, estavam sob o manto liberal e artístico da França. Pensávamos nossas formas de independência em francês, mediatizando-o por situ-ações locais, o que, por assim dizer, neutralizava o que pudesse ser explosivo na perspectiva hegemônica no campo intelectual liberal. Há faces diferentes: o liberalismo torna-se dominante, no Brasil, revestindo-se de inclinações para a afirmação nacio-nal; liberalismo em Portugal como estratégia de modernização, contra as formas passadiças associadas ao modo de pensar e sentir o país dos setores conservadores.

A leitura desse processo histórico nos países africanos de língua portuguesa revela que um primeiro momento de fratura do imaginário do colonizador veio a ocorrer pela pre-sença político-cultural de uma burguesia crioula africana, nos últimos vinte anos do século XIX. Foi um período liberal, que pode ser associado à Regeneração portuguesa, e que favoreceu o início de uma intensa atividade jornalística nas então colônias. A imprensa desponta, desse modo, como a força responsável pelo surgimento dos primeiros redutos dos assim chamados “naturais da terra”, capazes de romper o silêncio imposto pela estrutura colonial. Seriam uma versão africana, correlata ao que havia acontecido com a elite dos crioulos brasileiros (mestiços descendentes de portugueses), que haviam conseguido a liber-tação da metrópole colonial.

Muitos dos nomes mais significativos na história das idéias em Angola, por exemplo, estão ligados a esse período de fundação e consolidação da imprensa. No campo da literatura, destaca-se Alfredo Troni, autor da novela Nga Muturi (1882), que se correspondia com escritores portugueses da Geração de 70. Sua novela foi publicada em folhetins na Gazeta de Portugal, em Lisboa. Nessa narrativa, com ironia que lembra a literatura de Eça de Queirós, troni já mostra a incorporação de costumes locais e domínio do quimbundo. Se o escritor nasceu e se formou advogado em Portugal, sua identificação maior se fez com a nova terra, ele que era republicano e socialista. Seu ideário – mais forte do que questões de origem – tinha suas bases na Revolução Francesa. Foi um processo de identificação, pois, sua adesão às reivindicações da burguesia crioulizada de Angola. Aspirou por formas políticas liberais e, mesmo, pela independência do país. Nos horizontes de seu grupo intelectual, estava o Brasil e sua literatura romântica, antiga colônia que havia conseguido se libertar da metrópole. Seu republicanismo e socialismo prou-dhoniano o levava mais longe.

As identificações políticas das elites angolanas com o Brasil já eram anteriores. É de se recordar que, no tratado de reco-nhecimento da independência brasileira por parte de Portugal,

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feito sob mediação inglesa em 1825, o Brasil se comprometeu a não aceitar “proposições” de quaisquer colônias portuguesas de se reunirem a ele. Havia um movimento desencadeado em angola, nesse sentido, associado a interesses escravocratas, o que contrariava os interesses ingleses, além evidentemente dos portugueses. Nas décadas finais do século XIX, as aspirações eram de outra natureza, de outros setores, os anti-escravocratas. Alfredo Troni foi autor de um regulamento que declarou defi-nitivamente extinta a escravidão em Angola. Acabou por ser destituído de seus cargos públicos e compulsoriamente exilado para Moçambique.

Consciência regional e consciência nacionaltraços neo-românticos, centrados na incorporação da

atmosfera cultural da terra, ultrapassariam o século XIX como linhas de força que se projetam, no conjunto dos países afri-canos de língua portuguesa, até meados do século XX. Essa observação é geral e deve-se considerar também diferenças que matizam esse romantismo que embalou tanto o Brasil como Portugal. Há, entretanto, uma inclinação para o mapeamento sociocultural e mesmo da ambiência natural que permitem aproximações. Aos poucos, nas primeiras décadas do século XX até às vésperas da Segunda Guerra Mundial, afirmaram-se na África colonial portuguesa formas de consciência regional, que já embutiam aspirações nacionais. Nessa nova matização, as imagens românticas são comutadas, em especial, por uma apro-priação de repertórios do modernismo brasileiro. Este é o dado novo, tendo em vista que o gesto artístico de nossos escritores procurava afastar paradigmas e mesmo uma sintaxe identificada com dicções evocativas da situação colonial. a língua literária possuía um repertório proveniente de experiências comuns, mas que tinham sua especificidade nas apropriações, que eram uma forma de ação comunitária interna, culturalmente também híbrida. A literatura “traduz” em suas formas um conhecimento que vinha de outras áreas: história, filosofia, política, sociologia, antropologia, artes etc.

No período do pós-Segunda Guerra e em torno da afirma-ção dos princípios de auto-determinação dos povos, proclamada pela carta das Nações Unidas, radicalizaram-se formas de identi-ficação nacional. Se Portugal era associado à Pátria (colonial) dos discursos oficiais, os africanos buscavam a afirmação da Mátria (a “Mamãe-África”), e, com essa perspectiva, os escritores afri-canos olharam com ênfase para as produções literárias do Mo-dernismo brasileiro (a Frátria – a antiga colônia que se libertou e construiu um discurso próprio). A fraternidade supranacional se traduz em formas de solidariedade, com simetrias entre gestos: no Brasil, em meados do século, rediscutia-se a nossa formação histórica, o que deu origem a obras clássicas de nossa cultura,

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de autoria de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e Antonio Candido, por exemplo. Na literatura, os ecritores pro-curavam revelar facetas psicossociais de nossa gente. Sob o jugo colonial português, a ênfase sociológica e nacional dos escritores africanos encontrava sua radicalidade em formulações discur-sivas anticoloniais. Eram tempos de literatura engajada e esses intelectuais mostram-se com facetas especificamente literárias tão radicais como as políticas. o escritor e o cidadão, para eles, não poderiam deixar de caminhar juntos. A grande imagem (neo-romântica) que se firmou após a Revolução Cubana, foi a de Che Guevara: numa mão o livro; noutra, o fuzil.

Um bom exemplo dessa problemática é Castro Soromenho. Viveu em período anterior, onde já se desenhavam atitudes que irão embalar as lutas de libertação nacional na África de língua oficial portuguesa, que eclodiram depois, nos anos 60. Soromenho situa-se no campo intelectual da intelectualidade de esquerda (a grande frente popular antifascista dos anos 30-40), para quem questões de independência nacional se imbricavam com perspectivas sociais. Esse autor, nascido em Moçambique (1910), filho de português e cabo-verdiana, foi com um ano de idade para Angola, onde viveu de 1911 a 1937. Fez estudos primá-rios e de liceu em Lisboa (1916-1925). Voltou a Portugal em 1937. Em face de perseguições políticas, teve de exilar-se, vivendo na França (1960-1965) e, depois, no Brasil (1965-1968), onde veio a falecer. Foi um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo, dirigido por Fernando Mourão. o romance Terra morta teve sua primeira edição publicada no Brasil, em 1949, quando o autor residia em Portugal. Nem po-deria ser diferente, pois esse romance denuncia o colonialismo português.

Por outro lado, laços de solidariedade eram compactuados com a intelectualidade metropolitana. os sonhos libertários, advindos do término da Segunda Guerra Mundial e que então embalavam os intelectuais portugueses, eram frustrados pela atmosfera sufocante da guerra fria e pela persistência do regi-me ditatorial. No mesmo campo, as relações de solidariedade coexistem contrastivamente com as de desigualdade. Há hege-monias e as mais significativas são as que se naturalizam: os não-hegemônicos aceitam com naturalidade a dominação do outro. E, em Portugal, entre africanos e metropolitanos, havia di-ferenças, pois os primeiros não aceitavam a dominância histórica dos segundos. São tensões que afloraram no campo político, com ressonâncias na literatura. Questões ideológicas manifestam-se também em nível inconsciente e hábitos coloniais acabam por se manifestar para além da consciência ou intenções, inclusive dos atores do campo intelectual.

Mesclagens culturais e olhares em contraste

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a literatura cabo-verdiana pode ser dividida em dois perío-dos: antes e depois da revista Claridade (1936-1960). os escritores do arquipélago de Cabo Verde, ao procurarem voltar as costas para modelos temáticos europeus, fixaram seus olhos no chão crioulo, próprio da mesclagem étnica e cultural de seu país. a crioulidade deve ser entendida como uma mescla cultural não unívoca (mestiça), um conjunto híbrido onde pedaços de cultu-ras interagem entre si, ora se aproximando, ora se distanciando. Essa atitude dos intelectuais cabo-verdianos, de oposição aos padrões hegemônicos provenientes da metrópole, era correlata à obsessão de procura de origens – origens étnicas e culturais, que sensibilizavam a intelectualidade africana do continente. Interessante é indicar essa tomada de consciência regional.

Um bom exemplo dessa trajetória é Osvaldo Alcântara (pseudônimo poético de Baltasar Lopes), que, a exemplo de parte da intelectualidade de seu país, sonha à Manuel Bandeira com uma pasárgada que existiria em outra margem do oceano. Se o poeta brasileiro imagina um reino com um rei bonachão que lhe permitiria todas as “libertinagens” (título da coletânea de Bandeira), osvaldo alcântara tem saudade de uma pasárgada futura que encontraria no “caminho de Viseu” ([...] indo eu, indo eu,/a caminho de Viseu). osvaldo alcântara estava com os pés em Cabo Verde, mas a cabeça inclina-se para fora, para o sonho da imigração: o “caminho de Viseu” da cantiga de roda portuguesa. Sua perspectiva é aquela que historicamente sempre se colocou para povos de migrantes como os cabo-verdianos, e ele não deixa de ter consciência de que esta saudade fina de Pasárgada/é um veneno gostoso dentro do meu coração.

Mais tarde, já em plena luta de libertação nacional, ovídio Martins - identificado com os pressupostos ideológicos da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa – já se coloca no pólo oposto. Não aceita o reino de Pasárgada, para sua geração uma forma de fuga. Em oposição ao que ocorrera no sonho de Bandei-ra, ele não só não era amigo do rei (Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei) como foi perseguido por sua polícia (a polícia política de Salazar). Não conseguindo permanecer em Lisboa, foi obrigado a imigrar para a Holanda. Ovídio Martins, como osvaldo alcântara, sonha com o que não tinha: justamente sua terra, Cabo Verde. Se Osvaldo Alcântara olha para horizontes indefinidos do mar, Ovídio Martins adota a perspectiva inversa: procura arremessar-se ao chão (Pedirei/Suplicarei/Chorarei/Não vou para Pasárgada).

Discursividades supranacionaisNa prosa de ficção, a presença do romance nordestino

brasileiro se mostra bastante forte em romances como Os flage-lados do vento leste (1960), de Manuel Lopes e Chiquinho (1947), de Baltasar Lopes, em diálogo, respectivamente, entre outros,

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com Graciliano ramos (Vidas secas) e José Lins do Rego (Menino de engenho). Importa indicar que a tomada de consciência dos cabo-verdianos de sua terra teve como um de seus agentes o crítico literário José Osório de Oliveira, que apontou para os cabo-verdianos a necessidade de situarem suas produções na ambiência física e cultural de sua terra (para ele, uma região de Portugal). Outro desses atores foi o poeta-diplomata brasileiro Ribeiro Couto, que fez chegar ao arquipélago os poetas mo-dernistas brasileiros. No fundo, considerava-se idealmente, em Cabo Verde, uma espécie de literatura em língua portuguesa, como um todo, com matizações onde o regional e o nacional pouco diferiam. Logo, uma aspiração comunitária para além de diferenciações, que, não obstante, seriam necessárias por darem veracidade às produções culturais, que deveriam estar fincadas na terra. A perspectiva crítica de José Osório de Oliveira, que caminhava nessa direção, tinha seus limites. Embalado pelos estudos de Gilberto Freyre tendia a exaltar a convivência harmô-nica, do ponto de vista étnico, social e nacional, no “mundo que o português criou” – perspectiva que foi criticada nas décadas seguintes pela intelectualidade africana, do arquipélago e do continente.

Os fios supranacionais da Claridade tiveram origem no movimento socialista francês da “Clarté”, inaugurado por Henri Barbeuf, nos primeiros anos da década de 1920. Articula-se o grupo da revista em Portugal, em especial, ao movimento da Presença. Mais tarde, os fluxos da revista – que se afasta da Presença - projetam-se, por exemplo, em Manuel Ferreira, neo-realista português identificado com a cabo-verdianidade, cuja obra ensaística consolidou o estudo das literaturas africanas de língua portuguesa, apropriou-se dessa temática da evasão/anti-evasão. o título de seu romance Hora di bai (1962) é referência a uma conhecida morna de Eugênio Tavares. Escritas em crioulo, a cadência dessas composições vai dar ritmo e repertório para os poemas em português e também será referência para os fic-cionistas originários da Claridade. Voz de prisão (1971), o principal romance de Manuel Ferreira, situa-se em Lisboa, e problematiza a questão da oralidade (o então denominado dialeto crioulo, hoje língua cabo-verdiana) e o português-padrão. Orlanda Amarílis, cabo-verdiana vivendo na diáspora lisboeta, problematizará essa condição de migrante, revestindo-se suas produções literárias de grande sentido de atualidade, nestes tempos de deslocamentos da globalização (Cais-do-Sodré te Salamansa, 1974). o sentimento de nação, para além dos espartilhos de estado.

No período do após-guerra, ao mesmo tempo em que se desenvolviam formas de organização político-culturais em cada um dos países africanos, como o movimento dos “Novos Intelectuais de angola”, constituiu-se em Portugal um impor-tante núcleo organizativo: a Casa dos Estudantes do Império.

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O momento exigia novas estratégias: confluem para a literatura formas discursivas da antropologia, da sociologia, da política, do jornalismo, etc. Espaço de convergência, a literatura (re)descobre cada país africano para (re)imaginá-lo em suas especificidades. Espaço político de notável importância, passaram pela casa dos estudantes líderes como como Amílcar Cabral, Alda do Espírito Santo, Marcelino dos Santos, além de agostinho Neto, todos pro-tagonistas das histórias das independências dos países africanos colonizados por Portugal. No plano cultural, cabe destacar, entre os feitos dessa casa, a antologia Poesia negra de expressão portuguesa (1953), organizada por Mario Pinto de Andrade e por Francisco Tenreiro, e a publicação da colecção “Autores Ultramarinos”, sob a direcção de Costa Andrade e Carlos Ervedosa.

Tudo mescladoA afirmação nacional não deixa de imbricar com a suprana-

cionalidade do campo intelectual desses escritores. Essa coletâ-nea poética reúne autores negros, brancos e mestiços. Tratava-se de publicar uma antologia de poemas de “expressão portuguesa”, mas o escritor, cujo texto serve de espécie de pórtico poético é o cubano Nicolás Guillén. Seu poema “Son número 6” não foi traduzido, mas transcrito no original, em língua espanhola. Mais interessante ainda é constatar que esse poeta – a “mais alta voz da negritude hispano-americana”, segundo os organizadores da antologia – releva não a diferença étnica, mas a mestiçagem: “[...] Estamos juntos desde muy lejos,/Jóvenes, viejos,/Negros y blancos, todo mezclado;/Uno mandando y otro mandado,/Todos mezclados [...]”.

Essa inclinação para uma afirmação político-cultural mais ampla vai persistir em autores dessa geração, com produção posterior. É o caso de José Craveirinha, personalidade emble-mática para a poética moçambicana, com uma trajetória que vai de Chigubo (1964) a Maria (1988), com destaque para a coletânea Karingana ua Karingana (1974). Craveirinha, como os poetas de Angola, Cabo Verde e de São Tomé, busca formas híbridas, com incorporação de elementos lingüísticos das línguas nacio-nais. Deve-se considerar o fato de que esses estados nacionais reúnem múltiplas culturas, que afinal confluem para um caldo híbrido das grandes cidades. Nessas circunstâncias, o idioma do colonizador, apropriado nacionalmente, situa-se também como primeira língua de criação literária. o sistema da língua portuguesa, convém recordar, é abstrato. Nesse sentido, ele só existe concretamente sob formas variantes: há variantes africa-nas, como brasileiras e portuguesas.

Em Angola, a literatura empenhada tem em Costa Andrade um autor programático: Terras das acácias rubras; Poesias com armas; Estórias de contratados (1980). Manuel rui, poeta e prosador, é au-

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tor de canções em parceria com vários conhecidos compositores, inclusive o brasileiro Martinho da Vila: Cinco vezes onze poemas em novembro (1985), Quem me dera ser onda (1982), O manequim e o piano (2005).

Novos temposOs caminhos da poética se diversificaram gradativamente,

sobretudo após a consolidação dos estados nacionais africanos, com produções expressivas. Em Cabo Verde, desde as buscas de raízes como em Eugênio Tavares (Mornas-cantigas crioulas, de 1932) até um Corsino Fortes (Pão & fonema, 1974), com uma poética afim do concretismo. À preocupação com a materiali-dade dos signos lingüísticos soma-se a questão multifacética das identidades, presente na obra do angolano ruy Duarte de Carvalho, que mistura gêneros e mostra visão bastante lúcida de seu trabalho literário (Hábito da terra, de 1988; Observação di-reta, 2000). Ampliam-se supranacionalmente os horizontes em arlindo Barbeitos, a partir da tradição oral de seu país, que se associa inclusive a técnicas da poesia chinesa e japonesa (An-gola Angolê Angolema, de 1975; Na leveza do luar crescente, 1998). o trabalho artístico desses escritores pode ser relacionado com as tendências experimentais da poesia brasileira e portuguesa, sobretudo a partir da década de 1960.

Entre as vozes poéticas femininas mais recentes, figuram a são-tomense Maria da Conceição Lima (A dolorosa raiz do micon-dó, de 2006), a cabo-verdiana Vera Duarte (Amanhã amadrugada, de 1993), a guineense odete Semedo (No fundo do canto, 2003). Particular relevo nessa ascensão do comunitarismo de gênero, merece a obra da angolana Paula tavares (Ritos de passagem, 1985; Dizes-me coisas amargas como os frutos, 2001). Suas obras associam-se à série literária nacional e à afirmação supranacional do feminismo. Elas também se colocam como “contadoras de estórias”, no que seus trabalhos literários também se articulam com a antropologia. No romance, singulariza-se, com densidade artística, a primeira romancista de Moçambique, Paulina Chi-ziane (Ventos do apocalipse, de 1995; Niketche, de 2002).

Novos registros, novas plasticidadesAs literaturas africanas de língua portuguesa apresentam,

na atualidade, prosadores vigorosos. José Luandino Vieira ocupa uma posição central. A maior parte de suas “estórias” foram produzidas no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, onde ficou preso juntamente com outros intelectuais dos países africanos engajados na luta anticolonial. Procurava pensar a língua portuguesa em quimbundo, em suas narrativas, incor-porando a oralidade. Um gesto indicativo de estratégia literária que teve em Alfredo Troni um seu precursor. Tal estratégia é análoga à do grupo da Claridade em Cabo Verde, com o crioulo

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matizando os textos em português e ainda com as estratégias poéticas de José Craveirinha, em Moçambique. Pensar a língua portuguesa com estruturas da oralidade, dos crioulos lingüís-ticos e das línguas nacionais de origem africana.

Não só: Luandino Vieira, ao se deparar com a obra de Guimarães Rosa, identificou-se com ela. Encontrou no escritor brasileiro um respaldo artístico para que avançasse nesses processos de hibridizações, dando asas à criação literária. Sua obra, traduzida em vários países, tem sido seguidamente ree-ditada. É de se mencionar, entre outros títulos, Luuanda,1964; A vida verdadeira de Domingos Xavier, 1974; Velhas estórias, 1974; No antigamente, na vida, 1974; Nós, os do Makulusu, 1975, João Vêncio: os seus amores, de 1987. Essa inclinação de seu trabalho artístico foi importantíssima para os escritores angolanos, como Boa-ventura Cardoso (Dizanga dia muenhu, 1977; Maio, mês de Maria, 1997), Jofre Rocha (Estórias do musseque, 1977) e Uanhenga Xitu (“Mestre” Tamoda e Kahitu, de 1976).

Luandino Vieira e Guimarães Rosa, veiculados no campo das literaturas em português, mostram efeitos comunitários, em especial na obra já abrangente do moçambicano Mia Couto. Ao procurar novas margens para a criação literária, ele tensiona discursos antropológicos, sociais, históricos e políticos. associa-os a formas de um realismo mágico, que tem a ver com a ficção latino-americana, e com a maneira de ver e sentir a realidade dos povos de Moçambique. Em relação a essa literatura, suas produções imprimem novas dimensões à prosa de ficção de seu país, em especial à obra de Luís Bernardo Honwana (Nós matamos o cão-tinhoso, 1964). A obra de Mia Couto, como a de Luandino e Guimarães, vem encontrando legitimização internacional, e premiações. Ela atende às condições atuais da circulação literária supranacional, por onde o discurso histórico se entremeia com o antropológico. Entre as muitas “estórias” que publicou, podem ser indicadas, em especial: Vozes anoitecidas, 1986; Terra sonâmbula, 1992; Estórias abensonhadas, 1994; Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, 2002; O outro pé da sereia, 2006.

Estórias e históriasNesse contexto dos contadores de “estórias”, situa-se

igualmente a obra do cabo-verdiano Germano almeida, cujo primeiro romance obteve grande impacto crítico (O testamento do sr. Napomuceno da Silva Araújo, 1991). Suas “estórias” são so-bretudo crônicas da vida cabo-verdiana, algumas inclinadas para comentários em torno da comunidade dos países de língua portuguesa (Estórias contadas, 1998). Circulando entre Angola, Portugal e Brasil, situa-se o angolano José Eduardo Agualusa, atestando a força de nosso comunitarismo cultural, onde encon-tra seu repertório literário (A conjura, 1989; Nação crioula, 1997; O ano em que Zumbi tomou o Rio, 2003; Manual prático de levitação,

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2005). Mais jovem e com obra já traduzida para vários idiomas é seu compatriota Ondjaki, com produções, onde associa técnicas que vêm de sua profissão de roteirista e formação em sociolo-gia, com a linguagem do cinema e das artes plásticas (Bom dia camaradas, 2000; O assobiador, 2002).

Para fecho desta breve exposição sobre notas histórico-literárias, que têm em vista destacar articulações entre as literaturas africanas com Brasil e Portugal, convém remeter à obra do angolano Pepetela. Seu romance A geração da utopia (1992) apresenta uma auto-crítica, que pode ser de sua geração de intelectuais que se embalaram na utopia libertária. Focaliza a trajetória dos estudantes, que se reuniam na Casa dos Estu-dantes do Império, em Lisboa, e liam literatura brasileira. Vê criticamente as orientações desses atores, como já o fizera em Mayombe (1980). Sua obra recebeu vários prêmios, com edições sucessivas e traduções para vários idiomas. Em boa parte dela, o escritor procura recontar ficcionalmente a história de seu país – um projeto literário que lembra o do brasileiro José de Alencar. Seu horizonte é crítico, desenvolvendo estratégias discursivas que questionam situações político-sociais da atualidade, seja em relação a fatos com referenciais históricos mais antigos ou do cotidiano mais próximo (O cão e os caluandas, 1985; Yaka, 1985; Lueji, o nascimento de um império, 1990; A gloriosa família, 2000; Jaime Bunda, agente secreto, 2001).

AbstractNotes on the literary histories of African countries that have Portuguese as their official language. Common historical traits are stressed, pointing to neo-romantic perspectives when these literatures contemplate questions related to their constitution as nations; strategies of renewal of the literary Portuguese language, whose plasticity goes back, in each nation, to Medieval times; the network they create in the universe of Portuguese written literature.

Keywords: Literary history. African countries. Portuguese language. Perspectives. Neo-roman-ticism.

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Duas viagens, um destino, Moçambique

Regina Zilberman

Recebido 27 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

ResumoDuas viagens, ocorridas entre 1550 e 1560, leva-ram dois aristocratas portugueses da Índia para a costa oriental da África, hoje Moçambique: a do militar Manuel de Sousa Sepúlveda e a do sacerdote D. Gonçalo de Oliveira. Jerônimo Corte Real narra a primeira viagem em Naufrágio do Sepúlveda, em 1594; Mia Couto, a segunda em o outro pé da sereia, em 2006. As duas obras expressam o modo como se manifestam as relações entre Europa e África.

Palavras-chave: Relações Europa-África. Repre-sentação. Hibridismo.

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“E esse sangue não era de um homem mas de todo um continente escravo.”

(Mia Couto)

1. A primeira viagem - naufrágioEm 24 de junho de 1552, o galeão São João, proveniente da

Índia, naufragou no litoral das costas da África, nas vizinhanças do Cabo da Boa Esperança ou das costas do Natal, região hoje situada na África do Sul, próxima às fronteiras com Suazilândia e Moçambique. Entre os náufragos, encontravam-se o capitão Manuel de Sousa Sepúlveda, sua esposa, Leonor de Sá, e os dois filhos do casal. Além de soldados e escravos, o barco transpor-tava muita carga, o que parece ter sido a causa do naufrágio. A maior parte dessa tripulação alcançou a terra, mas, depois de atravessar largo trecho do continente africano, não sobreviveu, incluindo-se nesse grupo Sepúlveda, a esposa e as crianças.

Naufrágios sacrificaram muitos navegadores, militares e colonizadores, desde que se expandiu a aventura marítima dos descobrimentos. Se, antes, tinham sido matéria de epopéias na Antigüidade, como a Odisséia, de Homero (século VIII a. C.), maior razão havia para, após o século XV, quando se atingiam as praias do Novo Mundo e os portos asiáticos, após ter sido suplantado o circuito da África, naufrágios constituírem assunto de narrativas de viagem e de reconhecimento dos territórios recentemente ocupados por europeus. Dessa matéria nutrem-se, assim, relatos autobiográficos, como o de Hans Staden, ou epopéias, como a de Jerônimo Corte Real, relativa ao destino de Manuel de Sepúlveda. No contexto da conquista do território americano ou das poderosas e opulentas regiões asiáticas, nau-frágios deixavam de ser produto da fantasia ou evento distante, que ameaçava heróis de antanho, mas realidade corrente, que podia acontecer a conhecidos ou a familiares.

Assim, o naufrágio do galeão São João logo se torna tópico de narrativas e poemas, como ocorre à folha volante, de autoria anônima e datada de 1555, que, segundo J. Cândido Martins, obteve sucessivas edições (MARTINS, [200-]). Luís de Camões (1524(?)-1580), por seu turno, confere status artístico ao relato do evento, ao introduzi-lo no canto V de Os Lusíadas, em 1572. As estâncias 46, 47 e 48, proferidas por Adamastor, sumariam o episódio:

Outro também virá de honrada fama, Liberal, cavaleiro, enamorado, E consigo trará a formosa dama Que Amor por grã mercê lhe terá dado. Triste ventura e negro fado os chama Neste terreno meu, que duro e irado Os deixará dum cru naufrágio vivos Para verem trabalhos excessivos

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Verão morrer com fome os filhos caros, Em tanto amor gerados e nascidos; Verão os Cafres ásperos e avaros Tirar à linda dama seus vestidos; os cristalinos membros e perclaros À calma, ao frio, ao ar verão despidos, Depois de ter pisada longamente Co’os delicados pés a areia ardente.

E verão mais os olhos que escaparem De tanto mal, de tanta desventura, Os dois amantes míseros ficarem Na férvida e implacável espessura. ali, depois que as pedras abrandarem Com lágrimas de dor, de mágoa pura, abraçados as almas soltarão Da formosa e misérrima prisão. (CAMÕES, 1956, p. 178-179)

Adamastor profetiza os males de que serão vítimas os portugueses na altura do cabo da Boa Esperança, ainda in-domado mesmo após a travessia de Vasco da Gama, sendo a desventura de Sepúlveda um de seus exemplos. Talvez por essa razão o poeta tenha alterado o local onde se passou o naufrá-gio, deslocando-o da costa oriental da África para uma região situada mais a sudoeste, de onde os sobreviventes se dirigem para o Norte, rumo ao rio Lourenço Marques, hoje rio Maputo, em Moçambique, na tentativa, frustrada, de chegarem a algum porto que os devolvesse à Europa.

É irrelevante a circunstância de adamastor carrear para sua área de influência geográfica o fato que vitimou Sousa Se-púlveda e seus comandados. Importa que Camões estabeleceu os paradigmas que assinalam, doravante, o tratamento do tema:

• a apresentação de Sepúlveda como herói e cavaleiro, apaixonado por sua esposa, “dama formosa”;

• a indicação do destino cruel de que são vítimas, pois sobrevivem ao naufrágio, mas passam por “trabalhos excessivos”;

• o testemunho, pelos pais, da morte de seus filhos;

• a denúncia da ação mal intencionada dos cafres, capazes de atitudes indecorosas, como a de se apossarem das vestes da “linda dama” Leonor de Sá, não nomeada no poema;

• a qualificação negativa dos cafres, definidos como “ás-peros e avaros”, em decorrência de seu comportamento perverso;

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• a exposição da nudez de Leonor, facultando ao poeta descrever seu corpo, cujos “membros” são “cristalinos” e os “pés”, “delicados”;

• a morte do casal, cujos intensos sofrimentos comovem até as pedras.

o episódio ocupa apenas 24 versos em Os Lusíadas; no en-tanto, sua popularidade, somada ao prestígio que lhe confere o poeta, fecunda o tema, de que são exemplos a Elegíada, de 1588, de Luís Pereira Brandão (1530/1540-?), o Naufrágio do Sepúlveda, de Jerônimo Corte Real, de 1594, a História Trágico-Marítima, de Bernardo Gomes de Brito (1688-1759), de 1735-36, entre autores portugueses, e Jerônimo Corte Real, Crônica portuguesa do século XVI, de 1840, de João Manuel Pereira da Silva, entre os brasilei-ros (MartINS, [200-]). De seu desenvolvimento, resulta uma representação do mundo africano, especialmente da África Oriental, de que faz parte Moçambique, com conseqüências na percepção do confronto entre civilizações diferentes e na criação de imagens de uma relação nem sempre pacífica.

2. Em terra firme, mas hostilA biografia de Jerônimo Corte Real está cercada de alguma

lenda. Diogo Barbosa Machado, no século XVIII, informa que o poeta deixou “célebre o seu nome em África e Ásia quando foi Capitão Mor de uma armada no ano de 1571, em cujos heróicos teatros triunfou sempre a sua espada dos inimigos da Coroa” (MACHADO, [200-], v. 2, p. 495). Ferdinand Denis reitera os dados apontados por Machado, acrescentando que participou da batalha de Alcácer Quibir, foi aprisionado pelos “bárbaros” e recuperou a “liberdade à época do resgate geral dos pri-sioneiros” (DENIS, 1826, p. 261). Estudiosos contemporâneos questionam alguns desses fatos, mas reiteram o passado militar e a procedência ilustre do poeta, descendente de família aris-tocrática e tradicional, bem como sua associação com o poder. Desconhece-se a data precisa de seu nascimento, ocorrido por volta de 1530; sabe-se, porém, que morreu em 15 de novembro de 1588. Partidário de D. Sebastião(1554-1578), aparentemente Corte Real não teve dúvidas em aderir ao governo de Felipe II (1527-1598), a quem manifestou fidelidade (ALMEIDA, 1979, p. V-XXXIV; ALBUQUERQUE, 1995, v. 1, p. 1310-1312).

O Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda e Dona Leonor de Sá sua mulher e filhos vindo da Índia para este Reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu no cabo de Boa Esperança na terra do Natal. E a peregrinação que ti-veram rodeando terras de cafres mais de 300 léguas até sua morte foi publicado postumamente, em 1594, contendo dezessete cantos, protagonizados pela personagem destacada no título. A primeira parte, transcorrida na Índia, narra o casamento de Sepúlveda

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com Leonor, a que os amantes chegam após ter o rapaz suplan-tado o adversário preferido pelo pai da moça. Depois de algum tempo, o casal decide retornar a Portugal, embarcando no porto de Cochim; entre os cantos VI e VII, acontece o naufrágio, os so-breviventes chegam à praia e têm o primeiro confronto armado com os cafres, sendo vencedores. Decidem deslocar-se na direção do rio Lourenço Marques (rio Maputo, atualmente), “Determi-nam buscar um grande rio/ Que de Lourenço Marques tinha o nome [...]” (CORTE REAL , 1979, p. 685), mas a longa travessia abate aos poucos o grupo, que se dispersa ou é dizimado. Nos últimos cantos, Sepúlveda, Leonor e os filhos estão acompanha-dos apenas por alguns escravos. São mais uma vez vítimas dos cafres, que protagonizam a cena antecipada por Camões: Leonor é deixada sem roupas e, prostrada pelas sucessivas desgraças e pela fome, morre. Antes disso, o casal perde o filho mais velho; ao final, Sepúlveda e a outra criança também falecem.

Corte Real é tido como leitor e admirador de Camões, cujas pegadas procura seguir em seus versos. reconhecem-se, com efeito, vários sinais de que Os Lusíadas constituía o princi-pal modelo daquele autor, a começar pelo tema escolhido, cuja identificação com Camões esclarece-se desde a alusão ao cabo da Boa Esperança, mencionado no título e relativo ao gigante Adamastor, que relatara as desventuras do casal Sepúlveda. Também como Camões, Corte Real mescla eventos históricos e mitologia grega. assim, se Baco provocou os vários obstáculos que Vasco da Gama supera com a ajuda da deusa Vênus, a nin-fa Anfritite, com ciúmes de Leonor de Sá, por quem Proteu se apaixonara, e contando com a colaboração de Éolo, leva o barco a se chocar contra as rochas do litoral africano. Não se esgota aí o apelo à mitologia: nos últimos cantos, é Apolo quem se enamora de Leonor de Sá, ficando a lamentar sua morte.

A leitura e a admiração por Camões aparecem ainda em outros momentos da obra: nos cantos XIII e XIV, Pantaleão de Sá, um dos guerreiros que acompanha Sepúlveda e é igualmente vítima do naufrágio, tem acesso à narração da história de Por-tugal, que retroage ao fundador do reino, D. Afonso Henriques, e, depois, avança até o desastre de alcácer Qubir, ocorrido em 1578, portanto, 25 anos depois dos eventos relatados na epopéia de Corte Real. Essa narração, por sua vez, amalgama dois mo-mentos de Os Lusíadas, já que a recuperação do passado depen-de, nos versos de Camões, do relato que o Gama faz ao rei de Melinde, nos cantos III, IV e V, enquanto que a visão profética é matéria do Canto X de Os Lusíadas, quando os nautas lusitanos encontram-se na Ilha dos Amores. Por sua vez, Corte Real situa o militar português em uma caverna, “uma cova escura” (CORTE REAL, 1979, p. 739) onde tem acesso ao passado e ao futuro em uma única oportunidade.1

1 Em O Uraguai, Basílio da Gama (1740-1795) emprega o expediente da caverna, onde a feiticeira Tanajura, no canto III daquela epo-péia, enseja a Lindóia, enlutada com a morte de seu amado Cacam-bo, a visão do futuro de Portugal, incluindo-se aí o terremoto de Lis-boa e a expulsão dos je-suítas. Pode-se cogitar que Basílio da Gama fosse leitor de Jerônimo Corte Real, assim como esse poeta foi leitor de Luís de Camões.

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Corte Real paga igualmente sua dívida para com o romance pastoril, em ascensão na Europa da segunda metade do século XVI, haja vista os precedentes de Bernardim Ribeiro (1482?-1552?) e de Sá de Miranda (1481/1485?-1558?), e a subseqüência de Francisco Rodrigues Lobo (1573/1574?-1622?), cujo O pastor peregrino data de 1608. o Naufrágio do Sepúlveda inclui, nesse sentido, um longo trecho em que Pan verseja sobre a paixão que nele provoca Leonor de Sá.

A interpolação da história de Portugal, das lamúrias dos apaixonados de Leonor de Sá, extraídos da mitologia, como Pro-teu, Pan e apolo, e das convenções da narrativa épica no século XVI sugere uma narrativa desatada. Não é o que acontece, pois um fio atravessa a obra inteira, conferindo-lhe unidade: são os eventos que, primeiramente, dão conta das dificuldades vencidas por Sepúlveda para casar com sua amada, depois, os confrontos que lhe cabe vencer para atravessar parte do continente africano, em busca de salvação, após o naufrágio de sua nave. Entre um episódio e outro, porém, Corte Real não deixa de evidenciar seu conhecimento das regras já canônicas, provenientes de modelos clássicos, como a visão profética do futuro, que remonta à Eneida, de Virgílio (70 a. C.- 19 a. C.) e foi explorada por Camões, ou a presença de figuras relacionadas à vida pastoril, que encon-tram em Teócrito (310 a. C.- 250 a. C.) e, de novo, no Virgílio das Bucólicas, seus precedentes mais notáveis. o renascimento pôs novamente em voga esses processos narrativos, e Corte Real, homem culto e educado, pertencente à antiga nobreza lusitana, não poderia deixar de utilizá-los.

Se a mitologia e a história permeiam a epopéia, essa refere-se principalmente às desventuras da família Sepúlveda em Áfri-ca, que, antes do Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1660-1731), experimentou as conseqüências de se deparar com um território inóspito, mas, ao contrário do arguto comerciante inglês, não soube encontrar alternativas de sobrevivência. O que Sepúlveda e seus comandados, entre os quais se destaca Pantaleão de Sá, já citado, aprenderam foi a lutar com armas modernas, mas essas parecem não ter sido suficientes para o sucesso no empreendi-mento da sobrevivência.

Náufragos a partir do canto VI, as personagens não deixam mais a África. Essa é representada por seus habitantes, deno-minados, tal como procedera Camões, indistintamente cafres, vocábulo que, atualmente, tem sentido pejorativo, conforme registram os dicionários de Caldas Aulete – “homem ignorante, rude, bárbaro” (AULETE, 1958, v. 1, p. 778), Antônio Houaiss – “Derivação: sentido figurado. Uso: pejorativo: Indivíduo rude, ignorante” (HOUAISS, [200-]) e Aurélio Buarque de Holanda: “Pessoa rude, bárbara, ignorante” (HOLANDA, [200-]). O Dicio-nário eletrônico Houaiss da língua portuguesa explicita a etimologia da palavra, de origem árabe, significando “infiel”, “incrédulo” e

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“não muçulmano”; e apresenta a história do vocábulo, utilizado a partir de 1516, para indigitar o negro, uso que se propaga a partir do século XVI, com pequenas variações semânticas no século XVII.

Chama a atenção a circunstância de que tenha sido a palavra de origem árabe a escolhida para designar, na língua portuguesa, o negro africano. Os dicionários de Houaiss e de Aurélio apresentam, como conteúdo primeiro do vocábulo, as definições a seguir:

1. indivíduo de uma população africana banta, afim dos zulus, não muçulmana, do Sudeste da África. 2. indivíduo de raça negra. 4. língua banta falada pelos cafres. 6. relativo à Cafraria (‘antiga região do Sudeste da África’). (HOUAISS, [200-])

2. Nome dado pelos islamitas aos gentios e idólatras, e por ext., aos negros pagãos da África oriental; aplica-se, sobretudo, às populações bantas de Moçambique, da África do Sul e dos demais países do sudeste da África. 2. O natural ou habitante da Cafraria, denominação que, no passado, se dava à região entre o rio Kei e os limites da província de Natal, na África do Sul; xossa. (HOLANDA, [200-])

Ao se referir ao cafre, Corte Real está, pois, utilizando o ter-mo então já consagrado para significar o habitante da região por onde Sepúlveda passou, a sudeste da África. O poeta designa-os segundo o olhar do colonizador, que se defronta com um povo que desconhece, mas que aparece a ele previamente definido como pagão, idólatra e, sobretudo, ameaçador. Quando desem-barcam, os militares deparam-se de imediato com o inimigo, qualificado nessa oportunidade como “malditos cafres” (CORTE REAL, 1979, p. 643), a quem os portugueses recebem com golpes de espadas; nas cenas subseqüentes, enfrentam os cafres que pas-sam por seu caminho, que, assim, se torna penoso e perigoso. Em poucas ocasiões, os moradores mostram-se cooperativos, ajuda que, via de regra, custa caro aos sobreviventes, pois precisam, de algum modo, comprar a colaboração dos nativos. Esses, na maioria das vezes, oferecem resistência; ou, então, atraiçoam os lusitanos, simulando o amparo que não se concretiza.

O conflito com os cafres atravessa a narrativa desde o canto VIII, culminando na oportunidade em que atacam os remanes-centes do grupo. o narrador descreve sua chegada com palavras que antecipam o comportamento selvagem dos nativos:

Correndo a pressa vem do mato espesso Cafres, que roubar tem só por ofício Saltam matos daqui, e dali saltam Com terríveis medonhas e altas gritas. (CORTE REAL, 1979, p. 849)

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os versos seguintes estabelecem uma analogia entre os seres humanos e os cães de caça, adiantando o ataque à família de Sepúlveda:

Como quando se vê lá na espessura De viscoso esteval, onde encoberta anda a canina turba, rastejando A caça, que nas covas têm guarida. (CORTE REAL, 1979, p. 849)

Sucede a essa apreciação dos cafres a derradeira agressão aos Sepúlvedas, completamente despojados de suas posses, in-cluindo suas vestimentas. A cena mais candente diz respeito à nudez de Leonor, suscitando a pudica descrição do poeta:

Chegam com denodada fúria os cafres a desarmada gente que num ponto Por eles despojada foi de todo Sem roupa lhes ficar, ou cobertura. Tal fica Leonor, qual na montanha Troiana, a Citeréia foi julgada Pelo frígio pastor, e das formosas Três, o preço levou com razão justa.

assenta-se na branca areia, e cobre Com o dourado cabelo a lisa carne, as criadas que a seguem se assentaram Em torno dela, só por defendê-la Que dos varões, que ali estavam, não fosse O seu formoso e casto corpo visto, Como as ninfas na fonte a Diana guardam. Que os olhos de acteon não na divisem. (CORTE REAL, 1979, p. 849-850)

A narrativa não apenas desqualifica os habitantes da região, estigmatizando-os. Igualmente o espaço é apresenta-do de modo negativo, predominando a noção de que a terra é seca, estéril e hostil. Desde as primeiras cenas transcorridas na África, a terra é considerada “estéril” (CORTE REAL, 1979, p. 644) e desértica (CORTE REAL, 1979, p. 650), caracterizando um espaço pouco hospitaleiro, impedido de nutrir a quem depende dele: “De dura fome, [Sepúlveda] busca o fruto amargo,/ Que a natureza dá, por terras secas,/ Estéreis, selváticas, bravias” (CORTE REAL, 1979, p. 644).

Sepúlveda é o herói a quem é confiada a salvação do grupo. Para fazê-lo, ruma na direção do rio Lourenço Marques, cami-nhando, conforme declara o título da obra, trezentas léguas, durante três meses, cortando um território inóspito e enfren-tando a hostilidade dos nativos. trata-se, pois, da narrativa de uma travessia, à maneira de Os Lusíadas, se bem que transcorra por terra, e não por mar.

Se, sob esse aspecto, Sepúlveda assemelha-se a Vasco da Gama, por outro, é o avesso do comandante que leva as naus

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portuguesas até a Índia, aportando em Calicut. Primeiramente, porque nenhuma entidade sagrada o protege, já que as figuras mitológicas que comparecem à narrativa são atraídas por Leonor de Sá que, mesmo cansada e desnutrida, provoca a paixão de Pan e, depois, de apolo. Em segundo lugar, porque sua bravura e competência militar não bastam para derrotar os inimigos, ainda que obtenha algum sucesso assim que alcança terra firme. Po-rém, mais adiante, não é apenas batido pelos adversários, como enganado e iludido, até restar esfomeado, humilhado e mesmo rebaixado por aqueles de quem se considerava melhor e superior. Em uma das cenas finais, seu semblante é “quase defunto”, os olhos estão “agravados e transidos”, o corpo “em sangue tinto, que o selvático, e seco mato a carne com grande crueldade lhe rompia” (CORTE REAL, 1979, p. 857).

Sepúlveda, pois, corporifica o anti-Vasco da Gama, por ser o herói que fracassa, incapaz de prover alimento e segurança para os seus comandados e sua família. Tendo escrito a epopéia depois da derrota dos portugueses em Alcácer Quibir, Corte Real traduz, de certo modo, o desalento de uma nação derrotada em solo africano. Sob esse aspecto, os cafres talvez representem os muçulmanos que venceram o exército liderado por D. Sebastião, assim como esse soberano pode estar corporificado pelo nave-gante incapaz de levar seus dependentes a um porto seguro. Ao apresentar, nas cenas finais, a personagem sob o paradigma do Cristo que atravessa uma via sacra, Corte Real colabora para a beatificação do herói e, por extensão, do rei que, não tendo sido identificado entre os mortos da batalha de 1578, permaneceu como mito entre seu povo.

De todo modo, se dá voz aos vencidos, Jerônimo Corte Real ainda o faz conforme o prisma dos vencedores, já que não admite o malogro da expedição de Sepúlveda. Prefere reiterar qualificações que, no século XVI, estigmatizavam de modo geral os habitantes do continente africano, corporificados nos cafres, antepassados dos moçambicanos de nossos dias.

3. A segunda viagem – morteD. Gonçalo da Silveira, nascido em 23 de fevereiro de 1521,

pertenceu à Companhia de Jesus, ordenando-se padre em 1545. Em 1556, transferiu-se para a Índia, onde foi provincial até 1559, tendo atuado no porto de Cochim. Em 1559, decidiu desempe-nhar sua missão catequética nas terras situadas ao longo do rio Zambeze, desde sua foz, em Moçambique, até o Monomotapa, região situada atualmente no Zimbábue. No Monomotapa, procedeu à conversão do imperador, a quem deu o nome de Sebastião. Francisco Correia narra o episódio da conversão:

Gonçalo da Silveira numa casinha [...] improvisou um altar e dizia missa diante de uma imagem da Virgem, que levara de Goa. O rei, que ouvira dizer que ele tinha lá uma mulher bo-

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nita, foi logo lá indagar. O Padre Gonçalo disse-lhe: - É a mãe de Deus. À vista disto o rei fez-se cristão e sua mãe, tendo sido batizados numa solene cerimônia e pondo-lhe o nome de D. Sebastião em honra do rei de Portugal, e a sua mãe D. Maria. Foram ainda batizadas mais 300 pessoas. (CORREIA, 2008)

O sucesso dessa iniciativa foi fugaz; Gonçalo da Silveira é acusado de feiticeiro e morto, fato ocorrido em 15 de março de 1561, sendo seu corpo lançado no rio Mussenguezi. Em Os Lusíadas, Camões homenageia o mártir, com a estância 93, do Canto X:

Vê do Benomotapa o grande império, De selvática gente, negra e nua, onde Gonçalo morte e vitupério Padecerá pela Fé santa sua. Nasce por este incógnito Hemispério o metal por que mais a gente sua. Vê que do lago donde se derrama O Nilo, também vindo está Cuama. (CAMÕES, 1956, p. 358)

Monomotapa é grafado Benomotapa, região que o poeta qualifica de “grande império”. É habitada por “selvática gente, grande e nua” e possui riqueza, o ouro, “o metal por que mais a gente sua”, sendo essa a razão pela qual também portugueses haviam se dirigido àquele local, a exemplo de Antônio Caiado, o principal intermediário entre os nativos e os lusitanos. Em certo sentido, Camões desmente o diagnóstico posterior de Jerônimo Corte Real, pois, ao contrário do que esse poeta indica, a terra não é estéril, mas fértil em metais preciosos.

4. A viagem por mar e por terraD. Gonçalo da Silveira é matéria de outra obra literária,

o romance de Mia Couto (1955), O outro pé da sereia, de 2006, embora ele não constitua a personagem principal, papel preen-chido por Mwadia Malunga, esposa do pastor Zero Madzero. Mwadia e Zero residem em região pouco habitada do norte de Moçambique, local onde, em dezembro de 2002, fazem surpre-endente descoberta nas águas de um rio: um baú, contendo escritos antigos, e uma estátua em madeira de Nossa Senhora, apresentando essa uma particularidade – tinha “apenas um pé”, já que “o outro havia sido decepado” (COUTO, 2006, p. 38). A trama principal dá conta da iniciativa de Mwadia em levar a estátua para uma igreja, retornando então à sua cidade natal, Vila Longe, até descobrir que a Santa pertencia efetivamente às águas, por corporificar a mítica Kianda, devolvendo-a, pois, ao rio onde a descobrira.

Uma segunda trama conduz à narrativa aos anos 1560-1561, quando a imagem de Nossa Senhora é transportada de Goa, na Índia, para a Ilha de Moçambique, de onde é carregada para o

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Monomopata, região onde, séculos depois, Mwadia Malunga e Zero Madzero a encontram.

O outro pé da sereia é formado por dezenove capítulos, nar-rando os dois primeiros a mencionada descoberta de Mwadia e Zero, bem como a necessidade de a moça dirigir-se até Vila Longe, para depositar a estátua em lugar julgado adequado. É no terceiro capítulo que o romance retroage ao século XVI, ope-rando doravante de modo intercalado: a cada dois capítulos que fazem avançar o relato da trajetória de Mwadia em Vila Longe, transcorrido na atualidade, introduz-se um terceiro, sucedido no passado, à época da colonização. Constitui-se, assim, um núcleo de seis capítulos, apresentando os acontecimentos que esclarecem porque a estátua sagrada acabara no fundo do rio Mussenguezi, que corta a região onde residem Mwadia e Zero. É essa segunda trama a que D. Gonçalo da Silveira protagoniza, iniciada, em 1560, com o embarque do sacerdote na nau Nossa Senhora da ajuda, em Goa, e encerrada com sua morte por es-trangulamento, a que se segue o arremesso de seus pertences à corrente do rio.

Entre o episódio que abre e o que encerra essa segunda trama, narram-se a travessia oceânica, a chegada à Ilha de Moçambique e o trajeto na direção do Império de Monomota-pa, onde o jesuíta D. Gonçalo da Silveira, até então provincial na Índia, deseja exercer função catequética, providenciando a “primeira incursão católica” (COUTO, 2006, p. 51) àquele lugar. acompanham Gonçalo da Silveira o padre Manuel antunes, encarregado do diário de bordo, e a estátua de Nossa Senhora. O percurso é, desde o começo, marcado pelas dificuldades, já que, logo ao ser embarcada, a imagem escorrega e cai no lodo, sendo recuperada pelo escravo oriundo do antigo reino do Congo, hoje Angola, Nimi Nsundi, que, identificando a Santa como encarnação de Kianda, se torna devoto dela.

Nimi Nsundi protagonizará os principais episódios que marcam a travessia marítima: atrai a atenção e, depois, a paixão da indiana Dia Kumari, aia de Filipa Caiado, esposa de Antônio Caiado, “comerciante português estabelecido na corte do Im-perador de Monomotapa” (COUTO, 2006, p. 60); mais adiante, é flagrado cortando o pé da estátua de Nossa Senhora, a quem deseja devolver ao mar, ação pela qual deverá ser punido com enforcamento, ato, porém, não concretizado, porque o escravo se suicida, jogando-se à água e afogando-se. Morto, Nimi Nsundi suscita a revolta dos cativos que ocupavam os porões do navio, acalmados tão-somente quando D. Gonçalo autoriza a celebração de seus rituais, considerados pagãos pelo jesuíta. além disso, Nimi Nsundi provoca a identificação de Manuel Antunes, que abre mão de sua fé católica e de seu nome, para se entender como reencarnação daquele.

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Manuel antunes também colabora para que o percurso não seja vivido de modo pacífico por D. Gonçalo da Silveira. Encarregado da escrita do diário, depara-se primeiramente com o novo significado das palavras, especialmente as que designam o lugar para onde se dirigem e as pessoas que deverão encontrar, matéria da reflexão sumariada pelo narrador:

Foi lendo as oficiais escrituras e dando conta dos nomes da viagem e do seu destino. Chamavam de Torna-Viagem a este percurso da Índia para Portugal. E chamavam de Contra-Costa ao Oriente de África. Tudo fora nomeado como se o mundo fosse uma lua: de um só lado visível, de uma só face reconhecível. E os habitantes do mundo oculto nem o original nome de “gentios” mantinham. Designavam-se, agora, de “cafres”. A palavra fora roubada aos árabes. Era assim que esses chamavam aos africanos. Os cafres eram os infiéis. Não porque tivessem outra fé. Mas porque se acreditava não terem nenhuma. (COUTO, 2006, p. 62)

As denominações flagradas por Manuel Antunes parecem confirmar os conceitos formulados pelos dicionários de língua portuguesa, citados antes, sublinhando a data em que seus significados transitam de um conteúdo a outro. Além disso, antecipam o confronto entre o Ocidente e o Oriente, sendo o segundo nomeado por oposição ao primeiro. Por sua vez, ao comparar a costa oriental da África ao lado invisível da Lua, o padre confessa o desconhecimento não apenas do mundo que lhe compete evangelizar, mas também dos seres humanos, in-terpretados como criaturas procedentes de outro planeta.

Manuel Antunes conscientiza-se aos poucos da instabili-dade de sua situação e da fragilidade dos princípios transmiti-dos durante sua preparação para sacerdote. Por isso, manifesta insatisfação diante da tarefa que lhe é delegada, acabando por tentar queimar os registros diários. Mais adiante, questiona o projeto de catequese em que está envolvido, perguntando a D. Gonçalo se “tem sentido irmos evangelizar um império de que não conhecemos absolutamente nada” (COUTO, 2006, p. 160). também não concorda com ações inquisitoriais, como “a conde-nação de Jerônimo Dias, um médico e cristão-novo, queimado publicamente numa praça de Goa” (COUTO, 2006, p. 161). E acusa os portugueses de, em suas conquistas, carregarem con-sigo o Diabo, sendo que “só mais tarde é que enviamos Deus” (COUTO, 2006, p. 161). Sintoma mais evidente da metamorfose de Manuel Antunes é seu sentimento de estar “ficando negro”, “um cafre”, isto é, “mudando de raça” (COUTO, 2006, p. 163). Explica o narrador:

até dia 4 de janeiro, data do embarque em Goa, ele era branco, filho e neto de portugueses. No dia 5 de janeiro, começara a ficar negro. Depois de apagar um pequeno incêndio no seu camarote, contemplou as suas mãos obscurecendo. Mas agora

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era a pele inteira que lhe escurecia, os seus cabelos se encres-pavam. Não lhe restava dúvida: ele se convertia num negro.– Estou transitando de raça, D. Gonçalo. E o pior é que estou gostando mais dessa travessia do que de toda a restante via-gem. (COUTO, 2006, p. 164)

Ao alcançar Moçambique, Antunes completa a metamorfo-se, declarando “sentir-se cafrealizado” e concluindo: “agora estou certo: ser negro não é uma raça. É um modo de viver. E esse será, a partir de agora, o meu modo de viver” (COUTO, 2006, p. 259), razão porque abandona o sacerdócio e adota o nome de Nimi Nsundi. Ao final da narrativa, sobrevive ao padre Gonçalo da Silveira, levando vida de “feiticeiro, rezador de Bíblia e visitador de almas” (COUTO, 2006, p. 313).

Entre Manuel antunes e Gonçalo da Silveira, estabelece-se uma relação em que o primeiro apresenta-se como o avesso do segundo: Antunes se deixa assimilar pelo universo africano, enquanto que Gonçalo ambiciona adaptar o mundo exterior às suas convicções religiosas. Quando antunes deseja repor o pé amputado por Nimi Nsundi, utilizando o material fabricado pelo marcineiro da nau Nossa Senhora da ajuda, a estátua sangra, expressando sua vitalidade, processo que escapa inteiramente a Gonçalo. Esse igualmente não entende a realidade que o cerca, confessando a Antunes que estava muito desiludido, ao encon-trar, na Ilha de Moçambique, a “nação gentílica [...] contaminada por mouros e judeus pestilentos” (COUTO, 2006, p. 255).

Incapaz de decifrar a realidade circundante, o jesuíta não compreende a linguagem de seu compatriota, Antônio Caiado, instalado no Monomopata para alcançar as abundantes rique-zas da região, riquezas cuja prospecção provocará mudanças estruturais no local, conforme expõe o narrador:

Os camponeses estavam deixando as suas culturas apenas para se dedicarem à extração do ouro. Já não semeavam, apenas mineiravam e peneiravam. tudo isso era uma estratégia dos portugueses para enfraquecer o reino. E aquele era apenas um princípio: seguir-se-iam séculos em que os africanos raspa-riam os ossos da terra para entregarem riqueza aos europeus. (COUTO, 2006, p. 307)

Muito menos entende o comportamento do imperador do Monomotapa, que lhe oferece mulheres, ao vê-lo acompanhado de uma delas, a estátua da Virgem. Gesto que igualmente in-terpreta de modo equivocado é o pedido, também por parte do imperador, de que tome emprestada a imagem de Nossa Senhora, para com ela passar a noite, atitude que o jesuíta entende como aceitação da religião em que almeja introduzi-lo.

Esse último episódio é representativo não apenas da falta de sintonia entre D. Gonçalo da Silveira e seus interlocutores. Como passa a fazer parte da mitologia concernente à biografia do religioso, de que é exemplo a narrativa de Francisco Correia,

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reproduzida antes, aquele episódio reflete igualmente a incom-preensão do universo representado pelo Monomotapa por quem se depara com ele munido apenas de valores, princípios e repre-sentações ocidentais. outra e bastante diversa é a interpretação das personagens inseridas nesse contexto, como o pai do escravo Xilundo, que qualifica Gonçalo de feiteiro. Para o velho sábio, o sacerdote português não morreu, mas retornou “ao rio, à casa da eternidade. E não o fazia sozinho. Com ele viajava a mulher de olhar parado, essa que fazia ajoelhar os cristãos” (COUTO, 2006, p. 312).

Manuel de Sepúlveda e Gonçalo da Silveira guardam, as-sim, muitas afinidades, embora tenham sido matéria de escritos literários distantes no tempo, a epopéia de Jerônimo Corte Real, impressa no final do século XVI, e o romance de Mia Couto, publicado em 2006. o primeiro terminou seus dias ao sul de Mo-çambique poucos anos antes de o jesuíta aportar mais ao norte. Os dois depararam-se com os “cafres”, que interpretaram como inimigos ou infiéis e que almejavam transformar e dominar, pela violência ou pela catequese. Permaneceram algum tempo no lo-cal, percorreram uma grande extensão de terra, para morrerem sem levar a cabo a missão a que se propuseram, em ambos os casos a salvação, seja a de pessoas, como almeja Sepúlveda, seja a de almas, conforme ambiciona Gonçalo da Silveira.

A morte das personagens, ainda que possa ter sido expla-nada de modo apoteótico ou epifânico, como fazem Jerônimo Corte Real e os biógrafos de Gonçalo da Silveira, a exemplo do citado Francisco Correia, não esconde sua derrota e o fracasso da missão a que se determinaram. o insucesso deve-se, por sua vez, às suas respectivas dificuldades para entender e interagir com o ambiente inusitado que os circunda. Assim, o colonizador, seja o militar Sepúlveda, seja o religioso Silveira, acaba por se tornar vítima do mundo – representado pela natureza para o pri-meiro e por seus ocupantes para o segundo – a que lhe compete submeter. Ainda que, historicamente, aquele colonizador tenha dominado, administrado e explorado o continente africano, foi ele o perdedor, condição revelada indiretamente na epopéia de Corte Real e explicitamente no romance de Mia Couto, quando as personagens que protagonizam o Naufrágio do Sepúlveda ou os capítulos 3, 6, 9, 12, 15 e 18 de O outro pé da sereia mostram-se objeto de um ritual que os sacrifica e os devolve à terra, no caso do capitão português, ou à água, como acontece ao jesuíta.

Na epopéia de Corte Real, a derrota de Sepúlveda é com-pensada pela redenção do herói, louvado em versos que não escondem a incompetência do capitão para lidar com a situação adversa. No romance de Mia Couto, o fracasso de Gonçalo da Silveira é contraposto à decisão de Manuel antunes, que, ainda na condição de avesso do jesuíta, se deixa absorver pela realidade circundante, não por oportunismo, como faz Caiado, mas por se

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Duas viagens, um destino, Moçambique

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identificar com ela. Transforma-se, assim, em criatura híbrida, a meio caminho entre a Europa de onde proveio, sintetizada no comportamento de Silveira, e a África em que deseja se transfor-mar, ao adotar o nome de Nimi Nsundi e aceitar o papel que se espera dele, o de feiticeiro e rezador. No entanto, mesmo a meta-morfose de Antunes é incompleta, já que sua clientela atribui-lhe um terceiro nome, Manu antu, evidenciando a impossibilidade da completa ruptura com as origens:

– Não sou Manu Antu! disse ele. Sou Nimi Nsundi.O escravo Xilundo permitiu-se sorrir. O nome “Nimi Nsundi” só existia na cabeça do sacerdote. Na verdade, as pessoas da aldeia chamavam-no de Muzungu Manu Antu e estavam lidando com ele como um nyanga branco. Manuel antunes, ou seja, Manu antu, aceitara tacitamente ser considerado feiticeiro, rezador de Bíblia e visitador de almas. (COUTO, 2006, p. 313)

As duas figuras históricas, Manuel de Sepúlveda e Gonçalo da Silveira, somado esse a seu avesso ficcional, Manuel Antunes, explicitam o modo como se deu a relação do europeu ocidental e o mundo africano, representado pelo solo moçambicano. Ao contrário do que se passou na américa, que, em grande parte do território (haja vista as histórias do Brasil, da argentina, dos Estados Unidos e do Canadá, por exemplo) cedeu sua identidade ao colonizador europeu, adotando seus valores, língua, compor-tamentos e visão de mundo, a África não se deixou domar. Ainda que espoliados de homens e tesouros por intermédio da ação de aventureiros como Antônio Caiado, que figura em O outro pé da sereia, e nomeados por vocábulos impróprios e pejorativos como “cafre”, os povos africanos não abriram mão de suas diferentes línguas, cultos, vestuários, tipos de alimentação, enfim, de sua cultura e costumes. O Moçambique de Sepúlveda e Silveira foi invadido, mas não perdeu a identidade; pelo contrário, impôs ao invasor uma nova personalidade, que ele, a duras penas, e nem sempre com integral compreensão dos acontecimentos, adota.

o Naufrágio do Sepúlveda e O outro pé da sereia, distantes no tempo e nos objetivos, aproximam-se, quando flagram um processo comum, peculiar à história de Moçambique, em parti-cular, e da África, de modo amplo. Eis porque as duas viagens chegam a um mesmo destino, narrando uma história de origens, não por dar conta de uma fundação, mas por revelar o fracasso de um projeto de colonização por esse ter em vista anular uma identidade que se mostra resistente e inquebrantável.

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AbstractTwo travels took place between the years 1550 and 1560, leading two Portuguese aristocrats from India to the East Cost of Africa, now Mo-zambique: Captain Manuel de Sousa Sepúlveda and priest D. Gonçalo de Oliveira. Jerônimo Corte Real narrated the first travel in Naufrágio do Sepúlveda, published in 1594; Mia Couto narrated the second, in o outro pé da sereia, published in 2006. The two books represent the relations between Africa and Europe.

Keywords: Europe-Africa relations. Disclosure. Hybridism.

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Uma língua de viagens, transgressões e rumores

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Recebido 20 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo

A língua portuguesa e sua importância nas literaturas dos países africanos, ex-colônias de Portugal. Os laços identitários com a “pátria colonizadora” se esgarçaram e o idioma imposto adquiriu diferenciadas faces em Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. Alguns elos permaneceram, ainda que dispersos; outros se desmancharam no tem-po. A língua portuguesa, tendo atravessado o Atlântico, o Índico, aportou em diferentes terras, recebeu novos saberes, musicalidades, acentos; multiplicou-se, grávida, de outros espermas, suores e salivas.

Palavras-chave: Língua portuguesa. Países africanos. Laços identitários

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“A identidade não existe, é uma procura infinita.” (Mia Couto, Folha de São Paulo, 18 nov. 1998)

Há algum tempo, em entrevista ao Jornal de Letras, Eduardo Lourenço defendeu a força unificadora da língua portuguesa, afirmando ser ela “uma herança sem preço, fiadora de nossos laços identitários” (LOURENÇO, 1993, p. 4). Segundo o ensaísta português, no mundo atual, onde os blocos ideológicos sofrem a pressão de uma economia interplanetária que vem substituindo a crença nas grandes teorias e idéias pela idolatria de moedas fortes e pelos acordos econômicos multinacionais, torna-se im-perativo o exercício da linguagem, ou melhor, o culto ao nosso idioma, forma de resistir aos meios massivos da comunicação e às influências negativas da mídia eletrônica. Eduardo Lou-renço, completando seu pensamento, alertou: “Naveguemos de olhos abertos entre a realidade que não nos basta e a ficção a que queremos dar uma figura nova no mundo imprevisível que nos espera” (LOURENÇO, 1993, p. 4). Sintomático é o uso do verbo “naveguemos”, uma vez serem recorrentes na literatura portuguesa e na história de nosso idioma as metáforas do mar e do navegar. Fernando Pessoa, reatualizando versos de antigos navegadores, associou o ato náutico ao de criar: “viver não é necessário; o que é necessário é criar” (PESSOA, 1965, p. 16).

também a escritora brasileira Nélida Piñon atribuiu à nossa língua uma vocação marítima (PIÑoN, 1978, p. 13), tendo em vista o fato de esta ter singrado o Atlântico, o Índico e aportado no Brasil e em África, onde adquiriu ritmos, odores, sensualidade e sabores novos. O escritor angolano Manuel Rui Monteiro foi outra voz a destacar essa “condição viajeira” de nosso idioma: “a língua portuguesa é uma língua de viagem. E eu escrevo viajando por ela a partir do porto onde ela chegou para me possuir” (MoNtEIro, 2003).

Sabemos que a língua portuguesa foi uma imposição dos colonizadores. Transformada e possuída pelos colonizados, adquiriu novas afetividades: “No chegar do outro não se fala-va esta língua aqui. A língua foi trazida. Daí a sua boa óbvia transgressão. o invadido sentiu a língua do outro como inva-sora. Mas transgredir é possuir a língua. Como mulher amada” (MoNtEIro, 2003).

No período das independências dos países africanos que foram dominados por Portugal, com o apogeu dos nacionalismos pós-Segunda Guerra, a noção de pátria se fortificou e as identi-dades lingüísticas foram pensadas como fatores de construção da nacionalidade a ser conquistada. No calor dos discursos, a utopia revolucionária forjou uma idéia de língua vinculada à de unidade nacional. O idioma português foi, então, entendido como agente aglutinador, responsável pela coesão cultural e política dos jovens países africanos tardiamente libertados.

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Carlos Espírito Santo, poeta de São Tomé, posicionou-se, assim, em depoimento apresentado no “Congresso sobre a Situação da Língua Portuguesa no Mundo”: “Usar a língua do antigo colonizador não quer dizer que o país seja uma recolônia, pois a língua portuguesa foi também uma conquista de nossa revolução” (SaNto, 1983, p. 256).

Em Cabo Verde, alguns poetas com obras anteriores ao período das lutas pela libertação foram fortemente influenciados pelo lusotropicalismo, de Gilberto Freyre, acreditando em uma harmonia racial e lingüística que, na verdade, era inexistente. Baltasar Lopes, por exemplo, poeta caboverdiano da Geração Claridade, fez um estudo sobre o crioulo de Cabo Verde e afirmou que este “amaciou as sílabas do português”. Tal visão camufla a “violência simbólica” que houve com a imposição do idioma trazido pelo colonizador; encobre a política de glotofagia exercida pelos dominadores.

Após as independências, atenuadas as fissuras da “desco-lonização”, um novo ciclo se abriu para as Literaturas Africanas. a língua portuguesa se impôs, mas não mais com os traços e os ritmos lusitanos com que partiu do Tejo. Expropriado, recriado, o discurso literário optou por um português africanizado que busca, ainda hoje, reinventar as estruturas orais da fala, assu-mindo as transgressões sintáticas e semânticas. Em angola, por exemplo, diversos escritores e poetas buscaram captar um português quimbundizado dos musseques, dos quimbos e sanzalas. As línguas locais passaram a coexistir com o português e foram incorporadas, mesclando-se, muitas vezes, à língua portuguesa. Diversos textos literários incorporaram expressões de diferentes línguas africanas de Angola, entre elas: o quimbundo, o mbunda, o ovibundo e outras. Recriada, a escrita literária foi kazukutada, ou seja, foi “desordenada, agredida”, pois kazukutar é um termo quimbundo que significa “instalar a desordem”. Fecundado com o sêmen africano, o português literário assumiu-se, então, como um “discurso verbalmente mestiço”.

A diferença das línguas nacionais abala o edifício hegemônico da língua imposta pela dominação e de certo modo impede que se consolide o etnocentrismo ou se aceite sua fatalidade. a língua portuguesa, ao dobrar-se às necessidades de seus novos utentes, se faz ela própria um instrumento que se volta contra o processo de dominação, abrindo-se para o dialogismo cultural que passa a veicular. (PADILHA, 2002, p. 51)

Temos exemplos disso na prosa angolana, com escritores como Luandino Vieira, Manuel Rui, Boaventura Cardoso, Antô-nio Jacinto, Uanhenga Xitu, entre outros, que mesclam o portu-guês e o quimbundo, recriando a língua portuguesa, segundo uma perspectiva e ritmo locais. Ao efetuar, assim, a subversão do instituído por meio da ludicidade da linguagem literária, essa

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literatura afirma a diferença angolana, ou seja, apresenta traços característicos da cultura e dos falares de Angola.

Em Cabo Verde, ao lado do crioulo, houve também uma crioulização do idioma português imposto pela colonização portuguesa, o que acabou desenvolvendo uma situação de bilin-güismo, hoje tão bem estudada por lingüistas cabo-verdianos, entre os quais Manuel da Veiga, atual Ministro da Cultura de Cabo Verde.

Foi o Movimento de Claridade que iniciou um processo intenso de caboverdianização da escritura literária em Cabo Ver-de. As mornas – canções típicas do Arquipélago, que traduziam em suas letras o dilema do povo das Ilhas, obrigado a partir, com vontade de regressar – foram, em textos mais modernos, recriadas e passaram a defender “o ficar para resistir”. alguns textos da literatura cabo-verdiana foram escritos em crioulo, como os poemas de Sérgio Frusoni, os de Kaoberdiano Dambará e o romance Odju d´agu, de Manuel da Veiga, entre outros, que tanto valorizaram e afirmaram as matrizes culturais crioulas das Ilhas.

Em Moçambique, o poeta José Craveirinha defendeu ser imperioso adotar uma posição clandestina para poder sublevar o tecido lingüístico. Muitos de seus poemas, entre os anos 1940 e 1950, buscaram afirmar as raízes africanas. Pela consciência da necessidade de contaminar a língua do colonizador, entre outros fatores, Craveirinha introjetou no português termos de línguas africanas. Com uma linguagem erótica, guerreira, vi-brante, áspera, luxuriante, a poesia de Craveirinha, ainda hoje, estremece quem a lê. Sente-se em seus versos um rumor, um roçar nervoso de vocábulos, alguns escritos em xi-ronga, atritando-se, insubmissos, com a língua portuguesa. No conhecido poema “África”, o eu-lírico confessa o desejo de macular o português, fecundando-o com expressões de línguas locais:

E ergo no equinócio de minha terra o rubi do mais belo canto xi-ronga e, na insólita brancura dos rins da madrugada, a carícia dos meus dedos selvagens é como a tácita harmonia de azagaias no cio das raças, belas como falos de ouro eretos no ventre nervoso da noite africana. (CRAVEIRINHA, 1980b, p. 17)

Incorporando ritmos africanos, “gritos de azagaias no cio das raças”, o “tantã dos tambores” ressoando na pele do poema, o sujeito lírico chama miticamente a ancestralidade e impõe sua poesia como um canto erótico de rebeldia. os versos citados an-teriormente encontram-se no pórtico de Xigubo; abrem este livro, cujo título, em xi-ronga, significa “tambor” e “dança guerreira que prepara ou comemora as batalhas”. Portanto, os poemas,

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reunidos neste volume, sob a designação Xigubo, metaforizam a conclamação e a defesa das raízes africanas que foram silen-ciadas pela colonização.

Na poética de Craveirinha, a língua portuguesa, que o aparelho colonial desejaria imune a alterações, é sublevada; passa por um processo de moçambicanização, abrindo caminho para as gerações posteriores. Exemplo disso é o poema “Inclandes-tinidade”, de Cela 1, onde o eu-poético assume a contramão da língua e da História:

Cresci. Minhas raízes também cresceram e tornei-me um subversivo na genuína legalidade. Foi assim que eu subversivamente clandestinizei o governo ultramarino português.

Foi assim! (CRAVEIRINHA, 1980a, p. 85)

A voz lírica, com metáforas iradas e versos agressivos, transgride a norma e as regras impostas pelo domínio portu-guês. Não há ressentimentos contra a língua portuguesa; mas, contra o colonialismo. o idioma é renovado por neologismos que conjugam radicais em xi-ronga com prefixos do português e vice-versa. A subversão se faz tanto em nível ideológico-lingüístico, como estético-literário.

Enfraquecida a crença utópica que alimentou os nacio-nalismos e processos revolucionários motivadores das inde-pendências das ex-colônias portuguesas em África, a língua portuguesa não pode ser decantada, apenas, porque foi veículo de politização e permitiu a revolução. Deve ser pensada segundo outros parâmetros. Hoje, em plena época de crises, de desen-cantos, após a queda do Muro de Berlim, não cabe mais uma concepção monolítica do fenômeno lingüístico, nem do histó-rico. as línguas, nas sociedades contemporâneas de consumo, cruzam-se, babélicas, com discursos do simulacro produzidos pela comunicação virtual. Persistem, entretanto, transgressoras, aquelas que, clandestinizadas, se fazem ouvir através de vozes paródicas, irreverentes – como é o caso, em Cabo Verde, de Dina Salústio, Armênio Vieira, Germano Almeida, entre outros, que usaram do humor para efetuarem fortes críticas sociais –, ou através de cantos líricos que, a par da desesperança atual, ainda apostam no sonho e na própria poesia.

Exemplificamos esta última vertente com o livro Preces & súplicas ou Os cânticos da desesperança, de Vera Duarte, que adverte, principalmente, para a crescente e assustadora perda da huma-nidade nesta época neoliberal. Os poemas de Vera não tecem

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loas ao sucesso, ao consumo, ícones do mercado que transforma as pessoas em mercadorias. Sua poiesis dá as costas a esse tipo de progresso, buscando exorcizar a barbárie por intermédio de intenso exercício de captação de lembranças e recônditos afetos advindos do outrora. É pela rememoração de fogos e ritmos do San Jon, que os ventos da memória e da imaginação transportam o sujeito poético aos tambores da Ilha de Santiago, fazendo-o relembrar tradições que se erigem, no poema, como estratégias de fuga e reação ao apocalipse de uma modernidade esfaceladora de identidades e histórias. Em consonância com o poeta Corsi-no Fortes, por exemplo, observamos que o eu-lírico de Preces & súplicas ou Os cânticos da desesperança procura ritmos identitários das ilhas na própria musicalidade poética. Opera, dessa forma, com uma poesia da sensibilidade, da luta pela igualdade e pelos direitos humanos. recupera Eugénio de andrade como poeta de grande trabalho com a densidade da linguagem; faz dialogar a metáfora da rosa de Eugénio com a da rosa mirabílica da geração poética do pós-25 de abril em Cabo Verde, da qual fazem parte vários poetas, entre os quais José Luís Hopffer Almada:

Em África cresce uma rosa É a rosa mirabílica Flor de poesia uma rosa entre cadáveres (DUARTE, 2005, p. 19)

Essa rosa representa, portanto, a crença na insurreição dos homens e das palavras, a resistência da literatura cabo-verdiana, pois “para lá da ilha, /só existe a poesia” (DUARTE, 2005, p. 62). “Sem a palavra/ A ilha não existe/ Sem a ilha/ Não existe o poema” (DUARTE, 2005, p. 64).

Existem ainda, na produção lírica pós-1980 dos países afri-canos de língua portuguesa, vertentes intimistas que buscam sentidos poéticos nas profundezas interiores de cada ser. Em Moçambique, por exemplo, podemos citar a poesia de Eduardo White que voa com a imaginação e procura ouvir o rumor da lín-gua, que, para Barthes, constitui o frêmito poético, a capacidade da linguagem de expressar-se de modo inaugural.

Em Eduardo White, cada palavra, cada metáfora e cada imagem criam tremores de sentidos, que, amplificados, possi-bilitam à língua um sonoro e musical rumorejar, resultante do embate de suas encapeladas vagas de encontro às quilhas que vão sulcando as oceânicas trilhas percorridas através dos séculos: um navio na língua, a língua e o navio...

As línguas, tecidos por onde passam as diferenças, não podem mais ser concebidas somente segundo o paradigma da identidade ou, pelo menos, este conceito não pode mais ser explicado monoliticamente. É preciso entender, com Boaven-tura de Sousa Santos, que apenas existem identidades em curso;

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o conceito identidade só pode ser compreendido na dialética da própria diversidade; portanto, os idiomas não podem mais ser considerados apenas como “vozes representativas da pátria e da nação”. A língua portuguesa, por exemplo, tendo atravessado o Atlântico, o Índico, chegou a diferentes terras, recebeu novos saberes, nova musicalidade, novos acentos; conquistou novos afetos, novas subjetividades; multiplicou-se, grávida, de outros espermas, suores e salivas.

Cada vez mais se torna necessária uma reflexão crítica a respeito da questão das transformações sofridas pela língua portuguesa, pois muitos de seus laços, no decorrer dos séculos, se desfizeram e se refizeram em heterogêneas combinações. Sabemos quanto de diversidade esse idioma adquiriu, ao travar contato com outras línguas e culturas ao longo da história. Leva-do à África e ao Brasil como língua de colonização, o português deixou marcas profundas; contudo, também sofreu metamor-foses em decorrência das diferenças lingüísticas, culturais e sociais entre povos.

Tal consciência é clara em vários escritores contemporâ-neos, tanto do Brasil, como de África, que têm como matéria vertente o idioma português. Ana Paula Tavares, por exemplo, na crônica intitulada “Língua Materna”, demonstra grande lu-cidez a esse respeito:

[...] a língua mãe cresce conosco e ao mesmo tempo inaugura e aprende a distinguir os cheiros fortes da terra ou o sabor do pão de batata-doce, que como ela também leveda e tem que ser cuidado sob risco de passar do ponto e abater... Como as pessoas, a língua alarga-se à convivência com as outras, oferecendo-se mesmo ao acto de incorporar no seu próprio corpo outras sonoridades, outros empréstimos. (TAVARES, 1998, p. 13)

A autora chama atenção para as alterações e metamorfoses do português em convívio com as línguas angolanas e vice-versa, confessando a sedução exercida sobre ela pelas enriquecedoras trocas ocorridas no decorrer dos processos lingüísticos:

Sempre observei com gosto a alquimia generosa da língua portuguesa engrossando ao canto umbundo, sorrindo com o humor quimbundo ou incorporando as palavras de azedar o leite, próprias da língua nyaneka. O contrário também é vá-lido e funciona para todo o universo das línguas bantu e não só faladas nos territórios, onde hoje se fala também a língua portuguesa. (TAVARES, 1998, p. 13)

Constatamos, desse modo, que muitos poetas e escrito-res africanos não só reinventaram a língua portuguesa, mas também refletiram sobre suas mutações, variações. Invertendo e subvertendo o estabelecido pelos paradigmas colonialistas, fizeram a revolução, utilizando os idiomas locais e o português como patrimônio coletivo. Na verdade, os laços lingüísticos do

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português com as línguas africanas nativas não surgiram com esse processo, tendo em vista serem bem antigos, conforme advertiu Mia Couto:

E mesmo se nos quisermos abster à influência das línguas bantus nascidas depois do tempo das caravelas: há quanto tempo palavras como minhoca, cambada e candonga e tantas outras se instalaram na língua portuguesa? Pois eu vos digo, tomando apenas um exemplo: a palavra minhoca instalou-se no século XVI e hoje a maior parte dos portugueses nem sequer suspeita da sua origem longínqua. Meus amigos, a verdade é a seguinte: a lusofonia não começou hoje. A nossa língua comum foi construída por laços antigos, tão antigos que por vezes lhes perdemos o rastro. De uma vez por todas, superemos receios e fantasmas. De uma vez por todas, namoremos o futuro para que ele se enamore de nós. (COUTO, 2007)

Seguindo os conselhos de Mia Couto, ultrapassemos receios e fantasmas. O importante é que a língua portuguesa, enriquecida por tantas particularidades e diferenças, se man-tenha, tanto no presente, quanto no futuro, como elo capaz de permitir um debate plural e um diálogo crítico entre as culturas dos diversos povos que são usuários desse idioma.

AbstractThe Portuguese language and its importance to the literature of African countries, i.e., former Portuguese colonies. The identitary ties with the “fatherland” decreased and the imposed lan-guage acquired different facets in Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Some links remained, albeit scattered, others dissolved with time. The Portuguese lan-guage, crossing the Atlantic, the Indic, arrived in different lands, receiving new knowledges, musicalities, accents; multiplied, pregnant, by Other sperms, sweat and ‘sweat and blood’.

Keywords: Portuguese language. African coun-tries. Identitary ties.

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Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal:

nações plurilíngüesBethania Mariani

Recebido 10 mar. 2008 / Aprovado 27 abr. 2008

ResumoO objetivo deste texto é apresentar características do presente lingüístico do Brasil e de Moçambique, tendo em vista a memória histórica constitutiva das duas formações sociais em sua dimensão lingüística.

Palavras-chave: Colonização lingüística. Polí-tica de línguas. Brasil. Moçambique.

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“S’il y a une histoire des langues, elle constitue donc un chapitre de l’histoire des sociétés, ou mieux, le versant linguistique de l’histoire des sociétés. Et si l’on considère, ce qui n’est guère original, que la violence est la grande accoucheuse de l’histoire, alors cette violence

affecte aussi l’histoire des langues.”

(Louis-Jean Calvet)

1. História e história das línguasDe modo contundente, a historiadora Isabel Castro Henri-

ques (2004) assinala a urgência em se realizar uma releitura do lugar ocupado pela África na historiografia ocidental bem como na construção de sua própria história. Na tradição histórica do período colonial, sobretudo entre os séculos XV e XVII, recusava-se aos colonizados a atribuição de uma sociabilidade, pois aos olhos dos europeus faltavam-lhes traços do que se compreendia, na época, como civilização – religião cristã, poder centralizado e aparato jurídico – e isso alimentava o imaginário europeu sobre uma pretensa baixa capacidade intelectual associada a uma preguiça irremediável.

Como mostra a historiadora, as transformações sociais e políticas da Europa, com o incremento das relações econômicas capitalistas a partir do século XIX, exigiram alterações no mo-delo colonial africano e, ao mesmo tempo, direcionaram uma mudança no modo como o europeu se significava nessa história, mas não alteraram substancialmente a imagem dos africanos no imaginário ocidental. No século XIX, de explorador cruel a filantropo, o europeu passa a legislar o fim da escravatura e do tráfico negreiro, mas fecha os olhos ao contrabando que se mantinha a despeito das novas leis. além disso, resquícios do anatomismo desenvolvido no século XVIII asseguravam a exclusão dos negros de seus critérios de beleza e caráter para incluí-los no paradigma da feiúra e da selvageria.

No período pós-colonial, o reconhecimento das diferenças e das necessidades decorrentes dessas diferenças – dentre as quais as marcas dessa memória colonial – esbarra, ainda, na des-qualificação das sociedades africanas e no não-reconhecimento da alteridade. A historiadora afirma:

A insensibilidade portuguesa – como aliás européia – que não pode deixar de surpreender, deve-se a um preconceito que não está ainda morto na sociedade portuguesa contemporânea: os africanos são naturalmente escravos e estão naturalmente destinados a ser os servidores dos brancos, e dos portugueses em particular. A violência do preconceito, reforçado pelo in-ventário dos caracteres somáticos (cor da pele, tipo de cabelo, odor e maneira de falar), ainda não abandonou a sociedade portuguesa, explicando a marginalização violenta a que estão votadas as comunidades imigrantes africanas. (HENRIQUES, 2004, p. 28)

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Na história colonial do Brasil, a violência contra os indí-genas também foi assegurada em nome de uma ideologia do déficit religioso e jurídico. De modo tão contundente quanto o da historiadora portuguesa, os antropólogos Darcy ribeiro e Carlos Moreira Neto (1992) referem-se ao passado da formação social brasileira e ao presente, ainda tributário desse passado, descrevendo

(a)o povo multitudinário, que trabalha para produzir o que não come nem usa e sim o que é requerido dele por seus amos. [...] foram milhões de índios, de negros e de brancos, ontem escravos, hoje assalariados [...] O Brasil nunca existiu para si próprio, na busca da prosperidade e da felicidade de seu povo. Existiu e existe é para servir, servil e explorado, ao mercado mundial, que ajudou a montar com montanhas de açúcar, de ouro, de café, de minério e de soja. (RIBEIRO; MOREIRA NEto, 1992, p. 15-16)

o que mais chama a atenção, nas análises da historiadora e dos antropólogos, é a permanência ainda nos dias de hoje desse imaginário de deficiência e subserviência produzido no período colonial. Ou seja, a violência simbólica e econômica permanece no período pós-colonial produzindo seus efeitos de controle e exclusão, sobretudo sobre os povos africanos.

Quando nos debruçamos sobre a história das línguas em uma situação de colonização lingüística, quando tomamos as línguas em seu percurso como objeto simbólico, elemento constitutivo de identidade nacional, podemos perceber esses efeitos. No período das descobertas, as línguas não européias são consideradas dificultosas, defeituosas, sem racionalidade. a já mencionada ideologia do déficit, portanto, é constitutiva do modo como as línguas eram significadas: sem [f], [l] e [r], “letras” que designam a fé, a lei e o rei, no caso das línguas indígenas brasileiras, e sem racionalidade, no caso das línguas africanas do Congo, que não possuíam nomes próprios nos moldes europeus (MarIaNI, 2004, 2007a, 2007b).

Não há processo colonizador que não tenha passado pelo acontecimento lingüístico que resulta da imposição violenta da língua do colonizador, uma imposição que confronta línguas com funcionamentos e memórias sociais distintas, e que acaba por produzir, ao longo do contato lingüístico e social, a emer-gência de um lugar enunciativo diferenciado e determinado em relação à constituição da língua nacional (ORLANDI, 1993). A atribuição de sentidos para a língua nacional, ou para as línguas nacionais, não se realiza senão em relação a uma memória he-terogênea na qual “o ‘mesmo’abriga no entanto um ‘outro’, um ‘diferente’histórico que o constitui ainda que na aparência do ‘mesmo’” (ORLANDI, 2002, p. 23).

Neste texto, para refletir sobre algumas características do presente lingüístico do Brasil e de Moçambique, tendo em vista

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essa memória histórica constitutiva das duas formações sociais em sua dimensão lingüística, serão consideradas duas vertentes: a legislação referente à política de línguas e as relações nem sempre muito visíveis entre as línguas e a política econômica. Inicialmente apresento um estudo comparativo sobre a legisla-ção portuguesa referente ao uso do português nas colônias. Em seguida, tendo em vista o período pós-colonial, discussões sobre a descolonização lingüística (ORLANDI, 2007) e sobre a situa-ção histórica atual desses dois países, trabalho com as insólitas relações entre lingüística e economia, visando problematizar o valor econômico das línguas.

2. Língua de colonização e legislação colonialTeorizar sobre a passagem do Português como língua de

colonização para língua nacional e teorizar sobre a (inter)nacio-nalização das línguas indígenas brasileiras e africanas após os processos de descolonização, considerando como pano de fundo os efeitos da violência simbólica da colonização lingüística bem como a heterogeneidade lingüística constitutiva das nações, é discutir a trajetória sócio-política das línguas e das idéias lin-güísticas, é discutir também a história do sempre conflituoso percurso da construção de identidades lingüísticas nacionais, por um lado, e dos conflitos político-lingüísticos internacionais, por outro.

Com a colonização lingüística inevitavelmente há o início de um enorme trabalho na(s) língua(s), um trabalho posto em prática pelos sujeitos. Melhor dizendo: os sujeitos são tomados por esse trabalho, são tomados pela(s) língua(s) em confronto, estão inscritos em um território que se constrói discursivamente nessa heterogeneidade lingüística. Por mais que as políticas de línguas visem administrar os conflitos, nenhum planejamento garante um controle total. As línguas se tocam, enlaçam fo-nemas e prosódia, deslocam sentidos, fazem surgir palavras, modificam suas gramáticas etc. Ao ser observado por estudio-sos, esse processo lingüístico é descrito e tais descrições valem como intervenções pontuais: elaboração de listas de palavras ou elaboração de instrumentos lingüísticos1 como gramáticas, dicionários e cartilhas. Materiais fabricados para aprisionamento da opacidade e da fluidez linguageira.

Para as nações que resultam do fato da colonização, a ques-tão lingüística geralmente inscreve-se em uma de três ordens contraditórias, cada qual com suas marcas específicas de inclu-são e exclusão dos sentidos de língua nacional: a que acolhe a língua do colonizador, colocando-se como tributária dela; a que rejeita essa língua do colonizador em nome de um nacionalismo lingüístico, e a que, de modo crítico, considera que não há como falar em língua nacional ou em línguas nacionais sem conside-

1 Conforme Auroux, em seu conceito de gra-matização: processo de descrição e posterior instrumentalização de uma língua com base na gramática e no dicioná-rio, duas tecnologias ou instrumentos lingüís-ticos, que alteraram as relações entre as línguas (1992, p. 52, 65).

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rar a memória histórico-política da língua de colonização em confronto com outras línguas.

A colonização do Brasil e de territórios africanos não se efetuou da mesma forma assim como os processos de indepen-dência também não seguiram os mesmos caminhos. Além do espaço temporal de mais de um século entre a independência do Brasil (1822) e a de Moçambique (1975), há que se considerar também a política lingüística portuguesa, que se efetivou dife-rentemente em relação às colônias. Essas diferenças, porém, não impedem uma comparação da trajetória da política de línguas organizada por Portugal durante o período colonial e os efeitos decorrentes dessas políticas durante a descolonização. Da mesma maneira, guardadas as inúmeras diferenças históricas, é inte-ressante apresentar e comparar as políticas lingüísticas internas observadas por Brasil e Moçambique após a independência.

No que diz respeito ao período colonial, um primeiro as-pecto a ser considerado é a imposição dos sentidos que legitimam a língua portuguesa como língua do poder real frente às línguas indígenas e africanas. 2

Como língua de colonização, a Língua Portuguesa se impõe também como uma língua que já tem uma escrita, uma literatura, gramáticas e dicionários, elementos que asseguram a permanência de uma memória do português submisso ao rei e ao catolicismo. No silêncio decorrente da colonização, a im-posição de uma língua camufla a heterogeneidade lingüística e contribui para a construção de um efeito homogeneizador que repercute ainda hoje no modo como se concebe a língua nacional no Brasil, em angola e em Moçambique, guardadas as diferenças históricas.

Ao ser levada para além mar, a Língua Portuguesa funciona como um dos símbolos do império e o esforço em catequizar e civilizar os indígenas nada mais era senão incluí-los nos moldes da civilização européia, provendo aquilo que supostamente estaria faltando para esta inclusão: uma estrutura jurídico-administrativa, uma autoridade governamental, uma religião e uma língua comum.

Na conquista da África, as línguas locais permaneceram, em sua imensa maioria, sem descrições gramaticais consistentes, pois Portugal só passou a investir de fato em suas possessões africanas, inclusive promovendo expedições e a fixação na terra, a partir de meados do século XIX (ALEXANDRE; DIAS, 1998). Praticamente não houve investimento na descrição e no estudo lingüístico, e tampouco investimento econômico. Apenas no final do século XIX é que Portugal passou a legislar questões relativas à educação e às línguas como forma de garantir a posse da terra.

Nas terras do Brasil, ao contrário, em função mesmo da colonização e dos interesses comerciais e catequéticos, algumas

2 Lembremos que desde o século XV, aproxima-damente, a língua por-tuguesa e a maioria das línguas européias se en-contram em um mesmo patamar de auto- e inter-sustentação polít ico-ideológica, mantendo-se hierarquicamente em uma posição similar em função de serem línguas nacionais a serviço de um poder real centrali-zado, organizado e sus-tentado juridicamente. a partir desse período histórico, as l ínguas das nações européias já estão consolidadas e regularizadas, já pos-suem escrita, já estão gramatizadas, já são ensinadas em escolas, já são usadas na literatura e no registro jurídico. No caso português, as-sim como em relação às demais línguas, essa relação língua-nação uma vez constituída torna-se um emblema da real ordem sócio-política e isso produz efeitos tanto em termos de uma política interna quanto externa.

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línguas indígenas foram estudadas e tornaram-se objeto de co-nhecimento na forma de listas de vocábulos e de gramáticas. Foi o caso, sobretudo, da língua Tupinambá, extensamente falada no litoral, posteriormente chamada genericamente de Língua Geral, que foi gramatizada pelos jesuítas e largamente utilizada nas aldeias e nas fazendas por bandeirantes, mulheres e crianças brancas, negros escravizados e índios de outras nações.

Através de Cartas Régias, a coroa portuguesa buscou admi-nistrar as lutas entre as línguas, exigindo dos missionários o uso do português, apesar de aceitar que a catequese fosse realizada na língua geral ou em outra língua indígena. ao longo do tem-po, a imposição do português tornou-se necessária e precisando funcionar em termos pragmáticos como uma unidade lingüística fundamental para o estabelecimento de uma comunicação pre-tendida entre o rei e seus súditos de além mar. Assim, a política de línguas controversa e submetida aos interesses catequéticos se encerra no século XVIII, quando é promulgado o Diretório dos Índios (1758), uma ordem real que promove a expulsão dos jesuítas, a interdição da Língua Geral e a obrigatoriedade do uso da Língua Portuguesa, “a língua do Príncipe”, nas aldeias e em todo o território.

Quando ocorre a independência do Brasil em 1822, a presença da Língua Portuguesa é fato consolidado em todo o território.

Sinteticamente, apresentamos no quadro abaixo essa alter-nância da legislação portuguesa referente à questão lingüística no Brasil.

LEGISLAÇÃO COLONIAL/POLÍTICA COLONIAL – Brasil

1625, 1667, 1701, 1722, 1727

Cartas e Leis Régias Catequese ora em Português, ora em Língua Geral

03/05/1758 Diretório dos Índios Proibição do uso da Língua Geral. obrigatoriedade do uso e do ensino da Língua Portuguesa

17/08/1758 alvará de confirmação do Diretório dos Índios

Proibição do uso da Língua Geral. obrigatoriedade do uso e do ensino da Língua Portuguesa

12/05/1798 Extinção do Diretório

Manutenção do uso e do ensino sistemático do Português

Na África, mais especificamente em Moçambique, a situ-ação é bem diferente, como já observamos em outras reflexões (MARIANI, 2007a, 2007b). Para discutir a questão lingüística, é necessário retomar um pouco mais da história do império português e de sua política de ultramar para compreendermos a eleição da Língua Portuguesa como língua nacional em Mo-çambique após as guerras de independência.

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A expressão ‘império português’ é importante porque aponta para as tentativas portuguesas de garantir a permanência utópica do projeto de um império transcontinental, multicultural e multilingüístico. Se recuamos um pouco mais no tempo, vemos que a futura questão da descolonização da África portuguesa se inicia no final do século XIX, com a Conferência de Berlim (15/11/1884 a 26/02/1885), que determinou, dentre outros as-pectos políticos, a partilha da África pelas potências européias a partir de regras internacionais uniformes para ocupação do território. Com a conferência de Berlim, os direitos históricos de posse da terra em função dos descobrimentos dos séculos XV e XVI passam para segundo plano em detrimento do que se cha-mou de ocupação efetiva. Essa questão política é determinante no modo como Portugal passa a administrar seu território, que inclui as colônias de ultramar.

E isso só poderia ser realizado com uma nacionalização e, conseqüente homogeneização desse multiculturalismo e multi-lingüismo colonial, algo ainda não realizado. O século XIX foi marcado por um investimento mínimo em educação e, conse-qüentemente, no ensino de Língua Portuguesa:

nunca se permitiu que a educação fosse além de um nível mí-nimo muito baixo, isto para não por em perigo os privilégios conquistados; uma elite africana muito reduzida era educada com um único fim: apoiar a hegemonia portuguesa e servir de intermediária entre a administração colonial e a população africana. (FERREIRA, 1977, p. 61)

Ainda segundo Ferreira, em 1845 e em 1869 foi organiza-do um novo sistema educacional o qual “definia os diferentes tipos de educação a serem ministrados a africanos e europeus” (FERREIRA, 1977, p. 63). Mais para o final do século, escolas missionárias católicas e protestantes voltadas para a catequese dos indígenas ensinavam valendo-se para tanto ora da língua africana, ora do português, ora do inglês.

Do final do século XIX até a proclamação da República Portuguesa (em 1910), a administração das colônias vai sofrendo pressão no sentido de definir juridicamente o estatuto dos indíge-nas e dos assimilados sem abrir mão do domínio imperial.3 Com o advento da República, cessou o financiamento das missões católicas. Em seu lugar, eram enviados “agentes da civilização”, ou seja, “professores que tinham de possuir um curso completo para professores de instrução primária e possuir alguns conhe-cimentos das línguas locais” (FERREIRA, 1977, p. 67). Ao longo da segunda década do século XX, controvérsias em torno do tipo de educação geral e lingüística, em particular, a ser ministrada aos indígenas tomaram conta da administração portuguesa. Em 1921, por exemplo, houve a proibição do uso das línguas africanas nas escolas, exceto no exercício da evangelização e

3 Segundo inúmeros his-toriadores, como Hen-riques, mencionada no início desse texto, uma das maiores contradi-ções vivenciadas pelos portugueses refere-se à manutenção do trabalho escravo até o final dos anos 20.

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nos momentos iniciais do ensino do português. O objetivo era a integração, a assimilação.

Por outro lado, como diz Ribeiro Thomaz (2001), a busca de nacionalização das colônias no império português ultramarino acabou por constituir uma crise na própria nação portuguesa, ao longo do século XX, sobretudo no contexto do regime auto-ritário salazarista.

Esse império português, que se sustenta politicamente no governo autoritário de Salazar, afirma-se juridicamente no território ultramarino com base no Ato Colonial (1930), na Carta Orgânica do Império Colonial (1933) e no Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas (Decreto 16.473). Vale a pena destacar dois artigos dessa legislação: “o artigo 1º. da Carta Orgânica do Império Colonial Português define as colônias como ‘parte inte-grante do território da nação’; o artigo 2o. do Ato colonial afirma ser ‘da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo também influência moral que lhes é adscrita pelo Padroado do Oriente’” (THOMAZ, 2001, p. 46).

Um dos principais aspectos desse conjunto de textos jurídi-cos foi o de propor um discurso de nacionalização das colônias de modo a organizar uma política de inclusão econômica e cul-tural. ou seja, esse discurso jurídico criou uma estrutura legal e administrativa de modo a incluir os indígenas para integrá-los na civilização européia. Esse discurso jurídico refere-se aos habitantes das colônias africanas, afirmando sua “mentalidade de primitivos” e a necessidade de diminuir a distância “de es-tado civilizatório” entre eles e os portugueses. Aos habitantes das colônias é facultado ascender ao estatuto de “assimilado”, com um “alvará de cidadania”, aquele indígena que assumis-se, incorporasse as práticas culturais, sociais e lingüísticas de Portugal. No entanto, nunca houve um número expressivo de assimilados.

o Estatuto do Missionário,4 por sua vez, desde 1941 objeti-vava fazer dos indígenas “verdadeiros portugueses” na cultura e na língua, conforme se pode ler em seus artigos: “Nas escolas é obrigatório o ensino e o uso da língua portuguesa. Fora das escolas os missionários e os auxiliares usarão também a língua portuguesa. No ensino da religião pode, porém, ser livremente usada a língua indígena” (Estatuto do Missionário, artigo 69o). Com essa política de inclusão, visava-se a um aportuguesamento lingüístico. Esse regime de indigenato vigorou até 1961 na Guiné, em angola e em Moçambique, e em Moçambique não provocou o efeito pretendido.

A essa política geral civilizatória associada a uma visível política de línguas, vincula-se, de um lado, para consumo nas colônias, um conjunto de estímulos pedagógicos em termos do

4 os princípios do Es-tatuto são reafirmados inúmeras vezes, como se pode ler nas afirma-ções de um Ministro do Ultramar nos anos cinqüenta: “[...] por um lado, acelerar o processo de assimilação ou apor-tuguesamento integral dos nativos, por outro, contribuir para a me-lhoria da sua situaçào material adestrando-os para uma melhor atuac-ção na vida económica” (apud FERREIRA, 1977, p. 75)

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ensino de Língua Portuguesa, e por outro, para consumo interno, a criação de institutos e sociedades com objetivo de valorizar e difundir o português para além de Portugal. Na África, porém, para além dos problemas administrativos e políticos, a resistên-cia fazia-se forte. Assimilados ou não, com política de línguas mais forte ou não, o fato é que as línguas permaneceram sendo faladas, cantadas e transmitidas através de gerações com base em narrativas orais.

A seguir, também organizado na forma de quadro, é apre-sentado um conjunto dessas leis resultantes de uma política de línguas para o estímulo da Língua Portuguesa.

LEGISLAÇÃO COLONIAL/POLÍTICA COLONIAL – África

1845 Decreto Ultramar

Ensino primário oficial

08/03/1918 Decreto 5239 Ensino em língua indígena ou português

24/12/1919 Decreto 6322 Obrigatoriedade do ensino da Língua PortuguesaProibição do uso de outra língua européia que não a portuguesa

1930 Ato Colonial artigo 2o: “ [...] é essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo também influência moral que lhes é adscrita pelo Padroado do oriente”

1933 Carta Orgânica do Império Colonial

art. 1o: “as colônias são parte integrante da Nação portuguesa.”

05/04/1941 Decreto-Lei 31207(Estatuto do Mis-sionário)

“Nas escolas é obrigatório o ensino da língua portuguesa. Fora das escolas, os missionários e auxiliares usarão a lín-gua portuguesa. No ensino da religião pode porém ser livremente usada a língua indígena.”

20/05/1954 Decreto-lei 39666 Estatuto do Indigenato

06/09/1961 Decreto-lei 43893 abolição do Estatuto do Indigenato

27/06/1963 Lei LXXX, Porta-ria 2119

Lei Orgânica de Ultramar que prevê que “nas escolas primárias é autoriza-do o emprego do idioma local como instrumento de ensino da LP”

1964 Reforma do ensino para o Ultramar

Criação da classe pré-primária

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Essa legislação se fez acompanhar por incentivos culturais e pela organização de instituições cuja missão era justamente a da difusão da Língua Portuguesa nas colônias e também em outros países, como se pode observar no quadro abaixo:

INSTITUIÇõES E ALGUNS PROGRAMAS PARA DIFUSÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA

1925

Portugal

Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (ICALP)

Apoio financeiro a leitorados portugueses em universidades estrangeiras.

1931 academia de Ciências de Lisboa

objetivos: “[…] estimular o enriquecimento do pensamento, da literatura, da língua e demais formas de cultura nacional […] prestar assistência ao Governo, como órgão consultor, em questões científicas e lingüísticas de interesse nacional; preservar e aperfeiçoar a língua portuguesa, em coordenação com a Academia Brasileira de Letras e instituições similares dos países de expressão portuguesa […].”

14/11/1949 Sociedade da Língua Portuguesa (SLP)

Objetivo: “[...] investigação, difusão e defesa da Língua Portuguesa.”

Em síntese, apesar das motivações históricas e políticas diferenciadas, apesar da distância de praticamente dois séculos, tanto o Diretório dos Índios (1757) quanto o Ato Colonial (1930) estão inseridos em uma mesma filiação ideológica, funcionan-do como acontecimentos discursivos decisivos no que tange à questão lingüística e à imposição da Língua Portuguesa nas colônias.

No silenciamento lingüístico inerente à colonização, a imposição de uma língua única camufla a heterogeneidade e contribui para a construção de um efeito homogeneizador que repercute ainda hoje no modo como se concebe a língua nacional em países colonizados, guardadas as diferenças sociais, políti-cas e históricas. As línguas indígenas e as africanas significam, assim, no silêncio que lhes foi imposto. Silenciadas durante a co-lonização, condenadas a não pertencer a um aparelho de línguas porque não foram gramatizadas e não fizeram parte do aparato escolar, essas línguas somente após a independência começam a ter seu estatuto alterado.

A luta pela hegemonia da Língua Portuguesa permanece mesmo após as independências: Portugal promove um discur-so pró unidade lingüística com suas ex-colônias, discurso esse marcado pelo termo “lusofonia” e por atividades acadêmicas, pedagógicas e políticas que procuram sustentar uma idéia de

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unidade na diversidade. À circulação desse discurso contrapõe-se um outro, assentado em diferenças lingüísticas e históricas que legitimam uma posição diferenciada em termos da constru-ção de sentidos: o português como língua nacional.

3. As línguas na descolonização

3.1. BrasilNo Brasil, a questão lingüística colocada logo após a inde-

pendência referia-se a uma controvérsia, nem sempre colocada de modo explícito, até porque ela apresentava muitos aspectos a serem considerados: a pertinência ou não do emprego da língua metropolitana, do modo como ela era empregada na Europa; a necessidade ou impossibilidade de utilização da língua da an-tiga matriz – com uma escrita, uma gramática, uma prosódia e uma literatura de alguma forma impostas pelo ex-colonizador – como língua nacional de uma nação independente; e, ainda, a aceitação ou não da presença das línguas indígenas e africanas na língua falada.

Sendo esse momento conveniente politicamente para descartar o pensamento de uma unidade lingüística absoluta, já que se engendra uma autonomia incipiente, formulam-se as perguntas: – Até que ponto seria possível expressar as especi-ficidades de uma nação recém-independente com a língua do colonizador? É o Estado que engendra a língua e a nação ou, ao contrário, uma língua-nação tem precedência sobre um Estado-nação? Acontecimentos posteriores à Independência, como as discussões na Assembléia Constituinte de 1823 sobre o nome da língua falada no Brasil independente, as férreas disputas entre José de Alencar e puristas sobre como falar o português, o surgimento das primeiras gramáticas brasileiras, inaugurando um lugar de autoria de um saber gramatical, apontam para essa intrínseca e complexa relação entre língua e nação.

a constituição outorgada em 1824 não menciona a língua que se fala no Brasil, deixando em aberto, no âmbito legal, o nome da língua oficial. Nessa constituição, define-se o que é o império do Brasil e define-se quem são os cidadãos, mas não se define nem se menciona qual é a língua falada pelos cidadãos desse império. Seria a língua algo tão óbvio que não precisasse ser mencionado na Constituição, ela própria escrita nesta lín-gua? Esse primeiro texto de nossa história constitucional, é bom lembrar, vigorou até a proclamação da república, ou seja, teve a duração de 65 anos.

Ora, a ambigüidade jurídica aponta para uma ambigüi-dade semântica, pelo menos para alguns letrados: qual seria a língua nacional? A que se refere a expressão “língua nacional”? (MARIANI; JOBIM, 2007).

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As discussões do XIX trazem à tona posições sócio-históricas reveladoras, de certo modo, do próprio processo de ressignificação de uma língua de colonização quando em contato com outras línguas.

De um ponto de vista discursivo, compreende-se que a língua portuguesa, ao atravessar o atlântico e adentrar as terras da colônia, sem dúvida irá sofrer modificações em sua estrutura, mas irá, sobretudo, historicizar-se de modo diferente, passando a ser uma língua cuja memória já não é mais apenas aquela rela-cionada à história portuguesa. o contato com outras línguas e o fato de ser falada por sujeitos nascidos na colônia impregnam a língua usada no Brasil com um sentimento de identidade outro, não mais português. Sua legitimação como língua nacional no Brasil, portanto, passa por injunções que a historicizam de modo diferenciado: essa língua portuguesa já não é mais a mesma que se continua falando em Portugal. Por outro lado, não há como silenciar totalmente a memória portuguesa, gerando esse efeito contraditório: fala-se a mesma língua e ao mesmo tempo fala-se outra língua.

Acontecimentos posteriores à proclamação da república, como a fundação da Academia Brasileira de Letras, o início de reformas ortográficas, a política lingüística de Vargas durante a II Guerra, ou, ainda, as recentes polêmicas em torno do projeto de lei do deputado Aldo Rebelo, enfim, esses e tantos outros acontecimentos que, direta ou indiretamente, funcionam como políticas de língua,5 exemplificam como a questão da defesa da unidade língüística – que carrega consigo a construção da evi-dência de uma língua única – não está separada da constituição do Estado e da sociedade nacional. Não está separada também de uma visão homogeneizadora da língua falada no Brasil, seja ela chamada de Língua Portuguesa, Português-brasileiro ou Língua Brasileira, conforme as distintas ideologias sobre a língua nacional.

Em 1935 e em 1946 a questão da denominação retorna na forma de projetos de lei e resoluções jurídicas (DIAS, 1996), mostrando o quanto demandas político-discursivas de fixação de uma língua nacional e de um nacionalismo lingüístico per-maneciam atuais e atuantes. Se, por um lado, a atribuição do determinante ‘portuguesa’ não parece constituir problema para alguns políticos, acadêmicos e intelectuais, por outro lado, como atribuir o determinante ‘brasileira’ a uma língua de colonização em uma nação que se moderniza? Falar na língua nacional como língua brasileira era defender a idéia de uma língua comum, produzindo como “efeito a aglutinação de indivíduos de um mesmo território sem que se colocasse em causa a participação desses indivíduos na nação” (DIaS, 1996, p. 75). ou seja, estava em jogo a inclusão ou não da população indígena como cidadãos com seus direitos e deveres.

5 adotamos como orlan-di (2002, p. 94) as expres-sões ‘política de línguas’ e ‘política lingüística’ como equivalentes. Si-nalizamos, também, o uso de ‘polít ica de línguas’ em Pêcheux ([1981], 2004).

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Na significação dessa unidade lingüística nacional, só muito recentemente, com a Constituição Federal de 1988, os povos indígenas sobreviventes e as 180 línguas indígenas ainda faladas passaram a ser reconhecidos como parte integrante do Estado. Diz o artigo 231 que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições […]”. tal reconhecimento, por outro lado, não encontra um respaldo em termos de uma política permanente e incentivadora voltada para o estudo das línguas. A ausência de tal política, porém, não impede um crescente estudo das línguas indígenas brasileiras e sua crescente gramatização vem possibilitando o incremento de uma educação escolar bilíngüe que não apaga as diferenças culturais.

Hoje em dia, já se fala e já se escreve que o Brasil é um país plurilíngüe, pois integra em seu território línguas indígenas, línguas africanas e línguas oriundas de ondas imigratórias.6

Por outro lado, na constituição de 1988 também não se menciona a língua nacional. os artigos do capítulo III “Da Nacio-nalidade” silenciam sobre a língua falada pelos brasileiros natos, aqueles nascidos no Brasil. Novamente, pode-se perguntar: seria assim tão óbvio que a língua nacional e oficial é uma só? E o que dizer da heterogeneidade lingüística constitutiva da nação?

3.2. Moçambiqueretomando a proposta de comparação com o que se pas-

sou na colonização africana no século XX, é bom recordar que entre 1974 e novembro de 1975, o império colonial português se desfaz e dele surgem cinco novos Estados nacionais que se vão constituir na contradição aberta entre o passado colonial e um futuro incerto e fruto das guerras de libertação (ENDERS, 1977). Em termos comparativos dessa trajetória pós-colonial, a história lingüística de Moçambique apresenta aspectos bas-tante diferenciados do que se passou no Brasil, pois o fato de a Língua Portuguesa ter sido elevada ao posto de língua oficial pelos revolucionários não garantiu seu uso em todo o território nem sua hegemonia de fato. Assim como o que ocorreu no Brasil até meados do século XIX, nas colônias africanas, apenas uma pequena elite oriunda da realeza recebeu educação escolar junto com os colonizadores portugueses. Por outro lado, sobretudo em Moçambique, a diversidade lingüística manteve-se muito forte uma vez que a Língua Portuguesa era falada por uma elite muito restrita.

retomando questões que já discuti anteriormente (Ma-RIANI, 2007a), nas colônias africanas, a segregação entre colo-nizadores e colonizados foi mais radical e manteve-se durante o século XX. Desta forma, mesmo sob o domínio oficial da língua portuguesa, a diversidade lingüística manteve-se muito forte.

6 Veja-se, por exemplo, entrevista concedida por Monica Saavedra e publicada no Boletim da FAPERJ de 24/04/2005. observe-se, também, que em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, Amazonas, foi promulgada uma lei que oficializou três línguas indígenas, o que sig-nifica que tais línguas podem ser ensinadas e usadas no discurso jurídico, no jornalístico etc. Ou, ainda, as refle-xões teóricas e analíticas que o grupo História das Idéias Lingüísti-cas no Brasil vem reali-zando sobre a questão lingüís tica no Brasil, cujos resultados podem ser consultados na En-ciclopédia de Línguas (<http://www.labeurb.u n i c a mp.b r/e lb/>). também os trabalhos da comissão Machado de Assis no MEC e do Instituto de Investiga-ção e Desenvolvimento em Política Lingüística (IPOL) são exemplos de lugares institucionais que discutem a hetero-geneidade lingüística no território brasileiro.

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A elite colonizadora, apesar de ter sido educada para preencher papéis da administração colonial, foi aos poucos rebelando-se contra o colonialismo e usando o português como língua da rebelião. E foi em português que, após a independência, lutou-se pela preservação da diversidade lingüística existente ao mesmo tempo em que se elegia a Língua Portuguesa como língua nacional e oficial em função do seu papel internacional. Não se questionava, na época, a decisão política tomada, uma decisão que figura juridicamente ainda hoje no décimo artigo da Constituição de modo seco e direto: “a língua portuguesa é a língua oficial”. Observe-se que a defesa das demais línguas nacionais vem garantida no artigo nono da Constituição, um artigo que fala em valorização dessas línguas como patrimônio da cultura e da educação e ainda afirma que o Estado promove seu incremento e uso como línguas veiculares da identidade moçambicana. Nessa gestão do plurilingüismo, com a língua portuguesa busca-se organizar questões práticas – assegurar o poder do Estado e a unidade nacional – e questões simbólicas – afirmar um nacionalismo que não supõe uma subserviência aos ditames coloniais que defendiam um monolingüismo com base na língua de colonização.

Em Moçambique, em 1983, (08 anos após a independência), a Secretaria de Estado da Cultura emitia sua palavra oficial, ao mesmo tempo legitimando a escolha do português como língua oficial e apontando para uma diferenciação relativa ao seu papel anterior de língua de colonização:

A moçambicanização é a forma de nos apropriarmos do Português [...] O Português falado em Moçambique há-de ne-cessariamente transformar-se e distanciar-se do Português de Portugal porque a realidade moçambicana, à partida diferente da de Portugal, tem seu próprio curso de desenvolvimento [...]. (apud GONÇALVES, 2005, p. 229)

É no quadro deste processo que se pode considerar, como afirma Perpétua Gonçalves (professora da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique)

que a história da língua portuguesa em África data de há cerca de cem anos. [...] este período [...] não pode ser tomado como um continuum homogeneo [...] visto que as independências nacionais representam uma quase ruptura na dinâmica que esta língua tinha nos países africanos no período colonial. (GONÇALVES, 2005, p. 224)

atualmente, mais de 30 anos após os primeiros passos em direção à construção do Estado e das discussões em torno da língua oficial de Moçambique, é interessante trazer o depoimento do escritor moçambicano Mia Couto, proferido em congresso na UERJ em 2005. Diz Mia Couto:

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[...] fala-se hoje mais português em Moçambique que se falava na altura da Independência. O governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa que os 500 anos de colonização. Em 1975, ano da Independência Nacional, mais de 60 por cento dos moçambicanos não falavam português. Trinta anos depois existem ainda 40 por cento de moçambicanos que não falam português. Mesmo os que têm essa competência fazem-no como segunda língua. Hoje cerca de 7 por cento dos moçam-bicanos tem o português como língua materna. Nas cidades, porém, este número já é de quase 20 por cento. (COUTO, 2007, p. 19)

E prossegue o escritor:o meu país é assim, um território de muitas nações e muitas línguas (mais de vinte diferentes idiomas). O idioma portu-guês é a língua de uma dessas nações – um território cultural inventado por negros urbanos, mestiços, indianos e brancos. Sendo minoritário e circunscrito às cidades, esse grupo ocupa lugares chaves nos destinos políticos e na definição daquilo que se entende por moçambicanidade. a língua portuguesa não é ainda língua de Moçambique. Está-se exercendo, sim, como a língua da moçambicanidade. (COUTO, 2007, p. 20)

E que Língua Portuguesa é essa que é falada? Gonçalves (2005) aponta para a ilusão de se supor uma unidade e uma homogeneidade no português falado nesses novos estados na-cionais, sobretudo em Moçambique.

Tanto quanto sei, este conjunto [as Variedades Africanas do Português – VAPS, nomenclatura utilizada por pesquisado-res europeus] é estabelecido com base em critérios externos, geográficos e lingüísticos, de acordo com os quais as VAPs são agrupadas num conjunto único por se terem formado no mesmo continente (africano), a partir da mesma (variedade de) língua, o Português europeu. Na verdade, ao estabelecermos este conjunto estamos a dar continuidade à tradição filológica portuguesa e brasileira [...]. (GONÇALVES, 2005, p. 225)

resistindo e contrapondo-se a essa perspectiva, a pesqui-sadora propõe uma série de encaminhamentos, dentre os quais, a proposta de fazer uma periodicização da Língua Portuguesa em Moçambique que leve em consideração as etapas da coloni-zação e da política de independência. A recusa da designação ‘Variedades do Português Africano’, ou simplesmente, ‘Português Africano’, representa uma forma de resistência aos discursos de exclusão que ainda circulam sobre a África. É um gesto de resistência com a proposta de outras formas de teorizar sobre as línguas, nos dias de hoje, pois a teorização lingüística existente, com suas “formas simplificadas de designar”, estão inseridas em um imaginário de superioridade do português europeu frente a uma variedade que se significa como dialetal.

À guisa de conclusão provisória, posso aqui indicar que, apesar das diferenças históricas, é possível traçar uma analogia

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das questões levantadas por escritores e lingüistas moçam-bicanos na atualidade com discussões travadas por políticos, intelectuais, escritores e pesquisadores no Brasil desde 1822 e, mais recentemente, por lingüistas e analistas de discurso que se colocam em uma posição teórica diferenciada frente às línguas de colonização. Nesse sentido, ainda há muito o que se conversar.

4. “Quanto custa ser índio no Brasil?”Retomo essa provocativa pergunta de Daniel Munduruku,

título de um depoimento dado na UERJ, em 2005, para finalizar esse texto pensando nas relações nem sempre óbvias ou visíveis das línguas com os sistemas econômicos.

Falando do lugar de umas das mais expressivas lideranças indígenas brasileiras, Daniel afirma que com sua pergunta queria problematizar hábitos de pensamento vigentes em uma socie-dade materialista, pois nesta nossa sociedade, “alguém só tem finalidade se tiver um valor, uma utilidade” (MUNDURUKU, 2007, p. 52). Refraseando sua própria pergunta, ele diz: “Talvez a pergunta não seja quanto custa ser índio, mas quanto custa ser um brasileiro, filho dessa terra ‘idolatrada, salve, salve’!!!” (MUNDURUKU, 2007, p. 52).

Fazendo uma analogia, e considerando as relações eco-nômicas globalizadas que, além de promover a manutenção do imaginário da inferioridade das ex-colônias, hoje países de terceiro mundo, promovem novos tipos de desigualdades sociais e simbólicas, podemos perguntar quanto custa ser falante de português? E, quanto custa ser falante de munduruku? Ou de alguma dessas vinte línguas nacionais moçambicanas? Frente ao inglês, considerado cada vez mais língua global, qual o custo da defesa e manutenção de um nacionalismo plurilíngüe?

Essas perguntas, embora estranhas para um lingüista, apontam para problemas que precisam ser enfrentados, princi-palmente nas nações que passaram pela colonização. Nos dias de hoje, qualquer formulação de uma política de línguas e de defesa dos direitos lingüísticos dos sujeitos deveria levar em consideração a questão sócio-econômica.

AbstractWe aim to present some specific traces of Brazil´s and Moçambique´s linguistic reality, while, at the same time, taking into consideration the historical memory that grounds the linguistic dimension of both societies.

Keywords: Linguistic colonization. Linguistic policies. Brazil. Mozambique.

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outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares

responde a Luís de Camões*

Margarida Calafate Ribeiro

Recebido 05 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

ResumoA partir da poesia de Ana Paula Tavares, pro-curarei mostrar neste artigo como a dupla pre-missa do poder e do conhecimento, sobre a qual se ergueu o colonialismo dos séculos XIX e XX, foi femininamente reapropriada, subvertida, des-multiplicada e antropofagizada, revelando outras identidades. Este processo inaugura assim um tempo pós-colonial de possibilidade de acesso e valorização de outros conhecimentos, de outros poderes, expressos noutras línguas, noutros sons, noutras escritas, e hoje transmitidos em língua portuguesa.

Palavras-chave: Poder. Conhecimento. Poesia.

* Uma versão inicial des-te texto ainda inédito foi apresentada no “III Encontro de Professores de Literaturas Africanas – Pensando África: Crí-tica, Ensino e Pesquisa”, que decorreu na Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro de 21 a 23 de novembro de 2007

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“Também o leão deverá ter quem conte a sua história. As histórias não podem glorificar apenas o caçador.”

(Provérbio africano)

A abrirGostaria de deixar claro desde o início que não é como

especialista da cultura e da literatura angolana que escrevo, mas como estudiosa da cultura portuguesa sempre impressionada com a pujança das culturas africanas face ao modelo colonial imposto, ao sufoco do neo-colonialismo e ao tempo incerto do pós-colonialismo, tantas vezes assombrado pelo seu inquilino fantasmático, que é ainda o tempo colonial.

É portanto como visitante cerimoniosa destas culturas anti-quíssimas e riquíssimas que me apresento com o atrevimento de escrever algo sobre a bela poesia de ana Paula tavares, depois do ruído crítico introduzido em mim pelas leituras penetrantes de Laura Padilha, Rita Chaves ou Carmen Tindó Secco e pelo desafio que para mim constituiu desde o início a poesia de Ana Paula Tavares, uma das vozes poéticas com que aprendi que é sempre possível um dia de manhã levantar-me e dizer “Não vou”. É portanto a partir deste entre-lugar que vou falar desta poesia que transforma, canibaliza e incorpora várias vozes emitidas a partir de vários patrimónios culturais e geográficos, obrigando a língua portuguesa a dobragens e redobragens nem sempre imediatas, e que assim a engrandecem.

ana Paula tavares é poeta, mas também historiadora e, como disse numa entrevista “por vezes está tudo misturado, transforma-se o amador em coisa amada, e gera-se a grande confusão […]”. Publicou vários livros de poesia – Ritos de passagem (1985), O Lago da lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-votos (2003), Manual para amantes desesperados (2007) e, em prosa, O sangue da buganvília (1998) e A cabeça de Salomé (2004). Recentemente escreveu um romance com Manuel Jorge Marme-lo, Os olhos do homem que chorava no rio (2005) e re-publicou, em 2007, Ritos de passagem, com o traço de Luandino Vieira a ilustrar cada poema. a poesia de ana Paula tavares tem sido objecto de reconhecimento crítico em vários países e obteve já o Prémio Mário António da Fundação Gulbenkian, 2004 e o Prémio Na-cional de Cultura e Artes (Literatura) de Angola, em 2007.

Mas qual é de facto a novidade desta voz poética?O olhar feminino, que desde 1985, Ana Paula Tavares lança

sobre o seu país através da sua poesia é de facto outro. Não se trata mais de um o sujeito poético feminino que se posicionava na pele de alguém que está ao lado de quem masculinamente faz a guerra, a revolução, a nação; não se trata mais de um poema a rimar, como então, com revolução, alfabetização, povo ou nação. o tema é outro, a posição epistemológica do sujeito poético é

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outra, a fala é outra. E, por isso, Laura Padilha coloca a voz de ana Paula tavares como uma daquelas, que na angola de hoje, pela diferença interrogam o cânone, não apenas o cânone de matriz ocidental, branco e europeu, mas o possível cânone afri-cano – também ele masculino – provavelmente africanamente reprodutor do cânone ocidental (PADILHA, 2002, p. 163-169).

Pela sua poesia Ana Paula Tavares exige uma outra no-meação das coisas, dos corpos, das pessoas e da terra; fala da memória dos lugares, do amor, dos nascimentos, das outras falas e saberes de Angola. Mas fala sobretudo das mulheres e do silêncio gritante que as habita, num país feito pelas mulheres como é Angola. Evoca as vozes de muitas vozes femininas quase anónimas – algumas das que Laura Padilha recolheu em Borde-jando a margem (2007), retirando do silêncio as vozes das mulheres que publicaram literatura nos jornais de Angola –, de Alda Lara e de outras poetas, mas sobretudo das mulheres comuns que na sua vida quotidiana recriam a outra terra prometida, não a da nação, da revolução ou da guerra que em nome dela se diz fazer, mas da terra prometida de todos os dias, a terra que traz paz, sobrevivência, amor, vida. Mas de onde lhe vem essa fala outra, esse olhar outro? Como revela numa entrevista:

Eu tinha nascido numa sociedade colonial fundada quando o colonialismo começou a sério, portanto depois da Confe-rência de Berlim, quando Portugal foi obrigado a ocupar o território, e começou com uma política de povoamento branco para Angola. Para o Lubango, foram grupos de madeirenses brancos, muito pobres, que andavam descalços, coisa que muitas pessoas daquela sociedade já não andavam. Havia também uma meia dúzia de brancos, proprietários mais ri-cos, e comerciantes. E ainda uma sociedade de pastores que parecia não fazer parte daquela sociedade. Eram donos de gado, alguns tinham cabeças de gado para serem decretados: “Ele é um homem rico”. Mas ninguém via, e nem eles próprios queriam que os brancos os considerassem ricos. Mas eles sa-biam que eram ricos, que o seu gado lhes dava estatuto. Era portanto uma sociedade em muitas sociedades e eu cresci no meio dessa confusão, sem perceber bem o que é que se passava ali. […] tive portanto o privilégio de ter nascido ali, de ter uma avó negra do Kuanhama, e uma avó branca de Castelo Branco, que me deu esta fala, a outra fala. Do que é que aquelas duas mulheres à noite falavam? Havia um ruído de fundo de que eu fui à procura. E por grande sorte minha descobri que já no século XIX, alguns missionários tinham perseguido esse ruído. Bem ou mal, tinham fixado formas desse ruído em narrativas, em poemas, mitos de fundação, epopeias… E assim eu pude ler – sabendo que havia ali uma traição – mas pude ler a memória daqueles povos. E pensei: Este é o meu caminho. Se eu conseguir fazer alguma coisa, é por aqui que eu vou. Não faço poemas etnográficos, eu faço ficção. Eu não vejo a minha terra como Sembène Ousmane, o grande realizador senegalês, dizia a Jean Rouch, o homem

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grande do outro cinema: “Tu filmas os africanos como gafa-nhotos, e só ficamos em pé de igualdade quando um dia eu conseguir filmar os europeus como gafanhotos”. Eu não vejo a minha terra, estas mulheres, estes homens, estes pastores, como gafanhotos. Eu e a minha terra não nos separamos. Não uso todo este material a que felizmente tive acesso como uma fonte, onde eu vou debicar aqui ou ali. Eu tento incorporar muito deste material e saber como foi […] Eu que não fui uma mulher que passei pela iniciação, eu que sou uma mulher que só falo línguas imperiais... mas tenho ouvido o som de outras línguas, e portanto, eu não faço cópias: trabalho, canibalizo e devoro como muitos outros africanos fizeram. Esse é o trabalho que tento fazer: a incorporação de vários patrimónios, e se o meu olhar para ver o mundo é aquela terra, aquele espaço, eu também não estou cega ao resto do mundo. Leio a poesia do mundo e estou aberta a todas as experiências do mundo. O que eu procuro é não confundir as coisas, nem confundir os níveis, e trabalhar com um legado que a sorte pôs à minha disposição. (TAVARES apud RIBEIRO, 2007)1

Ana Paula Tavares responde a Luís de CamõesPoder e conhecimento é, como é sabido, o binómio sobre o

qual repousou grande parte do ideário imperial e do acto colonial imposto pelas potências coloniais europeias no final do século XIX e ao longo de boa parte do século XX. Esse poder e esse co-nhecimento, veiculado numa certa língua imperial, representou um poderoso elemento estruturador e unificador dos territórios coloniais em si, entre si e com as suas metrópoles. Basta remontar a João de Barros e à sua Gramática para entender que – como ele tão premonitoriamente insinua na introdução – os padrões e as obras seriam levados pelo tempo, mas que a língua ficaria como testemunho do encontro; ou basta recordar politicamente Herder para perceber que a língua seria, não apenas a expressão mais distintiva do espírito da nação imperial – composta de múltiplas nações e de múltiplos povos ignorados – mas também uma das formas através da qual a nação, saída das várias lutas pelas várias emancipações, se poderia expressar. Esse foi o grande trabalho do cultor da nação e da língua portuguesa que foi Camões, que pelo seu trabalho poético afirmou a nação portuguesa face à po-tencial hegemonia castelhana e a sua preocupação na sequência da viagem narrada em Os Lusíadas, viagem essa que traria aos portugueses as terras do império habitadas por outras gentes. O espanto e a angústia então vividos pelo poeta exprimem-se na questão fundadora que enforma Os Lusíadas, aquando do encontro (ou talvez melhor do encontrão, para evocar as pala-vras de Eduardo Lourenço) entre os navegantes e essa “gente fera e estranha” (III, 103, 2003, p. 84) “da cor da escura treva” (V, 30, 2003, p. 130). E o poeta, pela voz dos navegantes, lança a questão:

1 Ver também o texto publicado no Jornal de Letras, na secção “auto-biografia” (TAVARES, 2007b).

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Que gente será esta? (em si diziam)Que costumes, que Lei, que Rei teriam? (I, 45, 2003, p. 12)

Por outras palavras, em que língua se expressam estas gentes, que conhecimentos possuem, que poder é que os conduz e que os move? o que representa esta humanidade em relação a nós, ou dito de outra maneira, quem somos nós afinal?, até chegar à definição estruturante da identidade portuguesa: “Os portugueses somos do Ocidente/Imos em busca das terras do Oriente.” (I, 50, 2003, p. 13). De facto, a resposta europeia a esta questão iria definir a Europa como centro de poder e de conhe-cimento na ordem do mundo que a partir desta viagem se gera, e os portugueses como um povo em demanda dessa nova ordem (rIBEIro, 2004, p. 34-39).

O “processo de colonização, ou a colonialidade, pensada como relação política, que se instaura a partir desta viagem marítima” (PADILHA, 2006b), vai sendo, ao longo da história, ilustrado por múltiplas narrativas escritas em língua imperial e emitidas a partir da nação imperial, narrativas essas que edifica-ram, rectificaram codificaram e finalmente reproduziram o pen-samento colonial. Esta história colonial escrita pelos caçadores, para recorrer às categorias definidas no provérbio africano que serve de epígrafe a este texto – “Também o leão deverá ter quem conte a sua história. As histórias não podem glorificar apenas o caçador” – converteu esses outros em seres sem história e sem lei dessa história aparentemente comum. Passarão muitos anos, haverá muitas lutas, correrá muito sangue para que se entenda o mundo colonial em tensão e fractura entre brancos, negros e mulatos como nos mostrou Castro Soromenho na sua obra ficcio-nal, ou Noémia de Sousa na sua poesia. Mas como aponta Laura Padilha, na senda de Cornejo Polar, nas margens dos discursos eurocêntricos, existiram sempre outras vozes, outras nomeações da terra e das coisas, senhoras de outras versões nunca escutadas e, portanto, por vezes, nem sequer silenciadas, mas antes nunca ouvidas (PADILHA, 2006a).

Não se tratava portanto de defender a ideia, cara a alguns teóricos do pós-colonialismo, de que os subalternos não falavam ou não podiam falar, mas de, como defende Spivak, mostrar que o seu lugar de enunciação, no seio da diferença colonial, conde-nava o seu discurso à irrelevância por o oferecer a interpretações que o silenciavam (SPIVAK, 1988). Como refere Laura Padilha, em sintonia com Spivak,2 os subalternos, sejam eles mulheres ou homens, sempre falaram, nunca foram foi ouvidos, o que é substancialmente diferente.

Mas lendo e sobretudo escutando um texto como o de Ana Paula Tavares em que todas essas vozes-outras são convocadas, assistimos a um confronto do olhar, que pode não ser necessa-riamente conflituoso, mas que nos revela não só os enganos dos

2 Intervenção no curso de literatura angolana, organizado no Centro de Estudos Sociais, Uni-versidade de Coimbra, em Junho de 2007 (PA-DILHA, 2008).

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olhares europeus, mas também a má fortuna dos seus olhares e o pouco amor ardente. Nestas vozes, outros sujeitos históricos e etno-culturais se revelam, mostrando assim outras formas de estar, de sentir e de enunciar o mundo, de ser, de viver a vida e de organizar a cultura, a memória e a história, como as mu-lheres que amassam o pão, como os homens dos bois, senhores da transumância do planalto de Huíla, onde nasceu Ana Paula tavares.

Vieram muitos à procura de pasto traziam olhos rasos da poeira e da sede e o gado perdido.

Vieram muitos à promessa de pasto de capim gordo das tranquilas águas do lago. Vieram de mãos vazias mas olhos de sede e sandálias gastas da procura de pasto. [...] Partiram com olhos rasos de pasto limpos de poeira levaram o gado gordo e as raparigas. (TAVARES, 1999, p. 27-28)

Quando estas narrativas do então definido como o outro, para o europeu, se enunciaram como um “enfrentamento” pro-nunciado em línguas imperiais, tomadas, para usar a expressão de José Luandino Vieira, como “um troféu de guerra”, nelas se inscreveu a diferença cultural que, a prazo, reivindicou e justi-ficou a luta que reclamava o acto político da independência.

Vestindo outras peles, outros conhecimentos e imbuída de outros poderes, foi portanto nessa língua imperial – que muitas outras rasurou no processo de colonização – que se começaram a preencher os espaços em branco da história colonial (PaDI-LHA, 2006a, p. 29-49), ou, por outras palavras, se começaram a colocar sob suspeita os monopólios do conhecimento e do poder que tinham sido fundamentais no erigir de uma ordem social, política e cultural baseada na diferença e na economia do conhecimento que valoriza o “conhecimento autorizado” e socialmente reconhecido, em detrimento (por rasura) de outros conhecimentos expressos muitas vezes noutras línguas. Em Moçambique, com José Craveirinha ou Noémia de Sousa, em Angola, com Luandino Vieira, António Jacinto, Viriato da Cruz e tantos outros, ou Amílcar Cabral, em Cabo Verde e Guiné-Bissau, revelavam-se as vozes que vinham falar no que o poder colonial queria continuar a ver como “dialectos” de um folclórico poder africano local. Nas suas escritas, não mais assumidas como marginais, regista-se a semente da diferença, em tensão com o

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modelo linguístico colonial. Essa linguagem fundadora de um conhecimento outro, de um poder outro e, finalmente, de uma língua outra, veicula e narra, como bem observou Laura Padilha, uma “outra viagem”, não mais mar abaixo rumo ao sul, como a viagem camoniana em demanda das novas terras que o império traria, mas para “dentro” e por “dentro” (PADILHA, 2006b). A viagem que o desejo de descolonização determinava – lembrando aquela viagem narrada na literatura portuguesa por almeida Garrett em Viagens na minha terra, tejo arriba e portanto para dentro da terra e reclamando descolonizaçoes de outra ordem – parecia procurar e tentar recuperar os laços dilacerados pelo poder colonial e desta forma outros enunciados se começaram a pronunciar, a enunciar e a fixar para dar respostas às questões dos navegantes, usando a mesma língua, mas que era já outra.

A poesia de Ana Paula Tavares é exemplar deste movimento de forma particularmente subtil e politicamente comprometida. Nela se trazem os sujeitos etno-culturais não valorizados pelo regime colonial – as mulheres e os homens dos bois do planalto de Huíla – mas importantíssimos na outra ordem do mundo que o mundo colonial não atingia; nela se trazem as línguas e a vozes de outros sujeitos, nomeadamente das mulheres, os gestos e os actos e os sinais produzidos por esse mundo outro, senhor de outras leis, de outros conhecimentos e de outros poderes que aparentemente o regime colonial parecia não ter tocado. E assim vozes, nomes, territórios, corpos são convocados em títulos de alguns dos poemas que vão desfilando à frente dos nossos olhos de leitores, como fotografias que vão dando rosto ao que antes só tinha um nome. Poemas que projectam o percurso da poeta ao longo de uma paisagem natural, social e humana que coloca sob suspeita os conceitos ocidentais de poder e conhecimento a partir de uma vivência múltipla de uma terra/ território sentido como terra-mãe que acolhe e integra os seus filhos, como uma casa-corpo que se torna o espaço íntimo do pronunciamento feminino capaz de revelar e de exercer um poder-outro, por um conhecimento-outro imanente da relação com a própria terra e com as pessoas que a habitam.

De onde eu venho sou visitada pelas águas ao meio-dia quando o silêncio se transforma para as doces palavras do sal em flor e das raparigas

os muros são de pedra seca e deixam escapar a luz por entre corredores de raízes e vidro lentas mulheres preparam a farinha e cada gesto funda o mundo todos os dias há velhas mulheres pousadas sobre a tarde

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enquanto a palavra salta o muro e volta com um sorriso tímido [de dentes e sol. (TAVARES, 2007b, p. 19)

ou no quase auto-retrato:Modesta filha do planalto combina, farinhenta os vários sabores do frio.

Cheia de sono mima as flores e esconde muito tímida o cerne encantado. (TAVARES, 2007a, p. 26)

Por isso, o pronunciamento feminino contido na poesia de ana Paula tavares é espaço de celebração da tradição e dos tra-balhos e dos dias de paz em que as mulheres se realizam, mas também espaço de denúncia da violência da tradição que perpe-tua o patriarcado, presente ora no acto da troca de mulheres por gado (“Cresce comigo o boi com que me vão trocar”, TAVARES, 2007a, p. 48), ora nos rostos das mulheres e das crianças sobre as quais recai toda a violência da guerra (“November Whitout Water”, TAVARES, 1999, p. 36), ora nas relações de poder que conduzem ao silêncio (“Um grito espeta-se faca/ na garganta da noite”, TAVARES, 1999, p. 33), mostrando assim que o sangue da mulher não é só, como deveria ser, mensal, como o ritmo do ciclo das estações, que orienta os ciclos das mulheres dos homens do gado. Ele escorre diariamente de corpos com feridas e cicac-trizes que têm a espessura de séculos, sangue que ciclicamente vai manchando a terra e a casa-corpo, e, por isso, o lago da lua (título de livro) onde as mulheres lavam o seu primeiro sangue, não é um lago simples que corra como um rio escorreitamente para o mar. o lago branco da lua, primeiro poema do livro ho-mónimo, é um lago bloqueado, mas por isso também um arquivo de evasão e de sobrevivência onde o sujeito poético feminino deposita os sonhos.

No lago branco da lua lavei meu primeiro sangue ao lago branco da lua voltaria cada mês para lavar meu sangue eterno a cada lua

No lago branco da lua misturei meu sangue e barro branco e fiz a caneca onde bebo a água amarga da minha sede sem fim

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o mel dos dias claros. Neste lago deposito minha reserva de sonhos para tomar. (TAVARES, 1999, p. 11)

o pronunciamento epistemológico lançado pelo sujeito poé-tico é sobretudo espaço de discussão do poder e das relações de poder que o conhecimento e a diferença sexual hierarquizam. Negar e subverter esta hierarquização, mostrando-a não apenas como impossivelmente única, mas como parte de um todo que oprime, é o caminho escolhido para percorrer o longo e sinuoso percurso que conduz à transformação de uma lógica feminina esperada como de submissão e opressão, numa lógica femini-na de libertação e emancipação. Esse é o caminho trágico, mas simultaneamente glorioso, a traçar. Daí o desafio lançado a um só tempo ao poder da tradição e ao poder social patriarcal:

[…] Hoje levantei-me cedo pintei de tacula e água fria o corpo aceso não bato a manteiga não ponho o cinto VOU para o Sul saltar o cercado. (TAVARES, 2007a, p. 54)

ou ainda mais veementemente: “Devorei a carne do boi do fogo/ tudo até ao fim e o coração” (TAVARES, 2001, p. 34).

A partir deste lugar de enunciação telúrico, sexual e lin-guístico, que emerge das vozes da terra e das mulheres da terra, da letra dos missionários e historiadores que registaram a vida dos povos do Sul de Angola e que Ana Paula estuda e traduz como historiadora, ergue-se a voz da poeta Ana Paula Tavares revelando-nos outras línguas, guardiãs de outros arquivos cultu-rais, onde se regista o poder de outros reis e a validade de outros conhecimentos. tudo tecido a partir das margens do mundo: da voz da mulher amante que ferida de amor espera o seu amado perante a solidão do mundo; das vozes das mulheres que têm filhos, amassam o pão, tecem, amam, rasgam a noite com os seus gritos surdos e inventam a vida; das vozes das mulheres que são trocadas por bois, na sociedade dos homens do gado que circulavam à margem da sociedade colonial.

Esta é assim uma forma-outra de responder à questão levantada pelos navegantes da epopeia camoniana sobre que gente será esta, que rei, que lei teriam, erigida e tecida a partir de um olhar-outro que o grande poeta por certo não contemplava, nem poderia imaginar. Esta é uma forma-outra de mostrar a mulher de outras paragens que Camões viu, admirou e prova-velmente amou na sua “pretidão de amor” e que cantou como

3 Refiro-me ao poema de Luís de Camões, “Ende-chas a Bárbara Escrava”. Sobre este assunto ver Macedo (1998, p. 388-389).

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alguém estranho, mas “bárbara não”.3 Mas esta é, sem dúvida, a forma de tão camonianamente tudo questionar, renomeando, e de assim transformar o amador na coisa amada. Ou seja, de assim transformar a letra da historiadora na voz da poeta, a ter-ra em casa-corpo, a terra em território, a nação adiada em terra prometida, cujo mapa não mais se inscreve nem no imaginário dos navegantes europeus, salpicado de ilhas imaginárias plenas de amores, nem no imaginário masculino dos guerrilheiros da libertação, mas no corpo tatuado feminino, onde se escreve e reescreve a terra:

Meu corpo é um grande mapa muito antigo percorrido de desertos, tatuado de acidentes habitado por uma floresta inteira um coração plantado dentro de um jardim japonês regado por veias finas com um lugar vazio para a alma. (TAVARES, 1999, p. 45)

A fecharCaptar o retrato deste corpo-mapa-nação inscrito cicatri-

cialmente no feminino na poesia de Ana Paula Tavares exige uma leitura geográfica e sexualmente deslocada, para assim entender como se vivem outros “costumes” – nunca assumidos como relevantes – se adoptam outras “leis” – apenas consuetudi-nariamente aplicadas – e se regista o poder de outras “rainhas”, senhoras de outros “conhecimentos”. Costumes, leis, reis, conhe-cimentos que sempre estiveram na margem, mas que sempre estiveram presentes – evocando assim o subtítulo da obra organizada por Laura Padilha e por Inocência Mata, sobre A mulher em África (2007) –, pois são eles que inventam e constroem a vida que novas vidas gera, ao ritmo dos ciclos das estações.

Respondendo camonianamente a Camões, a partir do Sul, mas também àquela mais contemporânea questão, politi-camente provocadora, colocada em tempo de guerra em Novas cartas portuguesas – “será a mulher a última colónia do homem?” (BARRENO; COSTA; HORTA, 1974, p. 285) – Ana Paula Tavares sem concluir responde contra esta outra forma de colonização vivida no feminino que é o patriarcado, mostrando ser sobretudo delas a mão que comanda a vida não só na angola moderna, urbana, cosmopolita de Luanda, mas na Angola mais tradicio-nal do interior, representada localmente no planalto da Huíla. Trata-se portanto da denúncia de uma dupla colonialidade: uma colonialidade política, ainda que não mais exercida nos moldes europeus; e uma colonialidade social e familiar, que coloca as mulheres na margem, convertendo as histórias das mulheres em histórias duplamente silenciadas: silenciadas pela condição de subalternidade no seio da diferença imposta pela colonialidade

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e silenciadas pela condição de subalternidade vivida no seio da diferença sexual.

Por isso, a poesia de ana Paula tavares constituiu um pronunciamento entoado a vários níveis e um estímulo para re-olhar os cânones literário e histórico, no sentido lato do termo, ou seja, os cânones dos conhecimentos e dos poderes, sobre os quais os outros se erguem, para assim ver de facto tudo que eles deixaram e continuam a deixar de fora, na perspectiva de elaborar algo – e para encerrar com o provérbio que serviu de epígrafe a este texto e que também ele reflecte um cânone – que contemple não só a história do leão, mas também a história da leoa. Pós-colonialmente falando a proposta poética de Ana Paula tavares implica não apenas a mudança do olhar que estas teorias reclamam, mas uma mudança da escala do olhar.4

4 Expressão retirada de um verso de Fiama Hasse Pais Brandão.

AbstractThrough a reading of the poetry of Ana Paula Tavares, I will argue that the power/knowledge binary, based on 19th and 20th century colonialism, has been reappropriated, subverted, multiplied and cannibalized, revealing other identities. This process thus initiates a postcolonial time of possible access and appreciation of other knowled-ges, other powers, expressed originally in other languages, sounds and writings, and nowadays transmitted through the Portuguese language.

Keywords: Power. Knowledge. Poetry.

ReferênciasBARRENO, Maria Isabel; COSTA, Maria Velho da; HORTA, Maria teresa. Novas cartas portuguesas. Lisboa: Futura, 1974.CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. 5. ed. Lisboa: Instituto Camões, 2003.GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. In: . Obras completas de Almeida Garrett. Lisboa: Círculo de Leitores, 1983.MACEDO, Helder. Viagens do olhar: retrospecção, visão e profecia no renascimento português. Porto: Campo das Letras, 1998.MATA, Inocência, PADILHA, Laura (Org.). A mulher em África: vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007.

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PADILHA, Laura. Literatura angolana: suas cartografias e seus em-bates contra a colonialidade. In: . PADILHA Laura Ca-valcante; RIBEIRO, Margarida Calafate (Org.). Lendo Angola. Por-to: Afrontamento, 2008. p. 57-73.PADILHA, Laura. Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre litera-turas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

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Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes

Márcio Seligmann-Silva

Recebido 03 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo

O trabalho propõe uma reflexão sobre algumas das características do gesto testemunhal enfatizando as aporias que o marcam. Partindo da idéia de que o testemunho de certo modo só existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade, o texto enfatiza os dilemas nascidos da confluência entre a tarefa individual da narrativa do trauma e de sua componente coletiva. Nas “catástrofes histó-ricas”, como nos genocídios ou nas perseguições violentas em massa de determinadas parcelas da população, a memória do trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela sociedade. O testemunho é analisado como parte de uma com-plexa “política da memória”.

Palavras-chave: Testemunho. Memória do trauma. Trauma. Política da memória. Ditadura no Brasil.

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“Parler, écrire, est, pour le déporté qui revient, un besoin aussi im-médiat et aussi fort que son besoin de calcium, de sucre, de soleil, de viande, de sommeil, de silence. Il n’est pas vrai qu’il peut se taire et oublier. Il faut d’abord qu’il se souvienne. Il faut qu’il explique, qu’il

raconte, qu’il domine ce monde dont il fut la victime.”

(Georges Perec)1

Estas palavras de Perec nos lançam sem mais no coração da cena do testemunho. antes de mais nada vemos aqui a neces-sidade absoluta do testemunho. Ele se apresenta como condição de sobrevivência. O próprio Primo Levi expressou este fato no prefácio de É isto um homem. Vale à pena voltarmos a estas pa-lavras de Levi porque ele acrescenta a esta idéia de necessidade de testemunhar outro dado fundamental, a saber, a sua implícita dialogicidade. Citemos as palavras de Levi: “A necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso ime-diato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares” (LEVI, 1988, p. 7 et seq.). Seguindo estas palavras, podemos caracterizar, portanto, o testemunho como uma ati-vidade elementar, no sentido de que dela depende a sobrevida daquele que volta do Lager (campo de concentração) ou de outra situação radical de violência que implica esta necessidade, ou seja, que desencadeia esta carência absoluta de narrar. Levi nesta passagem coloca as expressões “aos outros” e “os outros” entre aspas. Este destaque indica tanto o sentimento de que entre o sobrevivente e “os outros” existia uma barreira, uma carapaça, que isolava aquele da vivência com seus demais companhei-ros de humanidade, como também a conseqüente dificuldade prevista desta cena narrativa. Sabemos que dentre os sonhos obsessivos dos sobreviventes consta em primeiro lugar aquele em que eles se viam narrando suas histórias, após retornar ao lar. Mas o próprio Levi também narrou uma versão reveladora deste sonho, que ficou conhecida, na qual as pessoas ao ouvirem sua narrativa se retiravam do recinto deixando-o a sós com as suas palavras. a outridade do sobrevivente é vista aí como in-superável. a narrativa teria, portanto, dentre os motivos que a tornavam elementar e absolutamente necessária, este desafio de estabelecer uma ponte com “os outros”, de conseguir resgatar o sobrevivente do sítio da outridade, de romper com os muros do Lager. a narrativa seria a picareta que poderia ajudar a derrubar este muro. a circulação das imagens do campo de concentração, que se inscreveram como uma queimadura na memória do so-brevivente, na medida em que são aos poucos traduzidas, Über-Setzte, transpostas, para “os outros”, permite que o sobrevivente inicie seu trabalho de religamento ao mundo, de reconstrução da sua casa. Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido primário de desejo de renascer.

1 Georges Perec escre-vendo acerca da obra de Robert Antelme; citado em Levi (2005, p. 15).

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Gostaria aqui neste espaço de pensar algumas caracterís-ticas deste gesto testemunhal, enfatizando algumas das aporias que o marcam. a cena testemunhal deve ser pensada em diálogo com o saber derivado da psicanálise. Em certo sentido podemos ver a cena psicanalítica elementar, ou seja, o paciente diante de seu analista, como uma cena testemunhal. trata-se, mutatis mutandis, de um sobrevivente buscando a atenção e escuta de um outro tendo em vista a construção de um mundo menos Unheimlich.2 Isto sem contar a centralidade da noção de trauma em Freud e na história da psicanálise, noção cuja história não trato aqui, mas é pressuposta, tendo em vista sua importância vital para se entender a questão da narrativa do trauma. Visando um local de compromisso entre esta cena psicanalítica e abor-dagens mais históricas ou filosóficas enfatizo aqui algumas das problemáticas nascidas da confluência entre a tarefa individual da narrativa do trauma e de sua componente coletiva. Daí a ênfase desta reflexão na noção de “catástrofes históricas”. Nestas situ-ações, como nos genocídios ou nas perseguições violentas em massa de determinadas parcelas da população, a memória do trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela sociedade. aqui a já em si extremamente complexa tarefa de narrar o trauma adquire mais uma série de determinantes que não podem ser desprezados mesmo quando nos interessamos em primeiro plano pelas vítimas individuais. No que segue apresentarei em primeiro lugar alguns aspectos da mencionada dificuldade de se testemunhar. Veremos que o testemunho de certo modo só existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade. No segundo passo tratarei especificamente da questão da política da memória: primeiro introduzindo algumas definições impor-tantes para se entender o conceito de memória, depois tratando do tema da memória como uma política. Passaremos por alguns exemplos vindos da Armênia, da África e do Brasil.

1. Narrar o inenarrávelDori Laub, em um ensaio importante sobre o tema do

testemunho da Shoah, dedicou especial atenção para a questão da “impossibilidade de narração” e formulou a idéia que o Ho-locausto foi “an event without a witness” (LAUB, 1995, p. 65). Neste trabalho ele destacou a impossibilidade daquele que esteve no Lager (o que se passou com o próprio Laub quando criança) de ter condições de se afastar de um evento tão contaminante para poder gerar um testemunho lúcido e íntegro. O próprio grau de violência impediu que o testemunho pudesse ocorrer. Sem testemunho, evidentemente, não se constitui a figura da testemunha. Para ele a principal tarefa que coube aos sobrevi-ventes foi a de construir a posteriori este testemunho. Esta tese de Laub me parece correta, mas deve ser vista cum grano salis.

2 Este paralelo entre a cena do testemunho e a da clínica parece-me importante porque responde em parte à questão acerca da possi-bilidade do testemunho em meio, e não após, as situações traumáticas. o testemunho na ver-dade, como veremos, é marcado pelo tempo do presente. trata-se tam-bém sempre de uma performance testemu-nhal. o ato de testemu-nhar tem o seu valor em si, para além do valor documental ou comu-nicativo deste evento. a cena do testemunho, se o testemunho de fato acontece, é sempre e pa-radoxalmente externa e interna ao evento narra-do. Interna porque em certo sentido não existe um “depois” absoluto da cena traumática, já que esta justamente é caracterizada por uma perenidade insuperável. Por outro lado, o teste-munho é externo àquela cena traumática na me-dida em que ele cria um local meta-reflexivo. Ele exige um certo distan-ciamento. assim, poder testemunhar durante uma situação traumáti-ca, como a vida no Lager, o soldado no campo de batalhas, ou o morador de zonas de conflito bé-lico e social (com todas as características par-ticulares de cada uma destas situações), poder testemunharjá implica uma saída (mesmo que apenas simbólica) desta situação. o testemunho em si é terapêutico. Os diários de guerra e de prisioneiros e muitos documentos testemu-nhais encontrados en-terrados no Lager são prova desta atividade testemunhal mesmo em situações aparente-mente impossíveis de abrigarem um espaço testemunhal.

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Ela gerou alguns mal entendidos, do tipo daqueles que a partir daí negam a importância dos testemunhos. O objetivo de Laub era evidentemente o oposto.

Primo Levi também destacou em diversas oportunidades esta impossibilidade do testemunho. Ele afirmava que aqueles que testemunharam foram apenas os que justamente consegui-ram se manter a uma certa distância do evento, não foram total-mente levados por ele como o que ocorreu antes de mais nada com a maioria dos que passaram pelos campos e morreram, mas também com aqueles que eram denominados de Musulmänner dentro do jargão do campo, ou seja, aqueles que haviam sido totalmente destruídos em sua capacidade de resistir. os que ocuparam algum local na hierarquia do campo, quer por conta de suas relações políticas ou por causa de seu conhecimento técnico (o caso do próprio químico Levi), estes puderam testemu-nhar, mesmo que não de forma integral, já que a distância deles também implicou uma visão atenuada dos fatos. Para Levi não se pode falar, com Laub, que não existiu o testemunho no Lager, mas antes que este testemunho foi parcial, limitado. Giorgio Agamben deriva das palavras de Levi algo semelhante ao que Laub afirmara. Isto, a meu ver, não corresponde aos textos de Levi. Para Agamben apenas os Musulmänner poderiam ser as testemunhas do campo, mas Levi nunca afirmou isto. Na intro-dução do volume Os afogados e os sobreviventes ele apenas aponta para as limitações do testemunho, como lemos na famosa frase: “a história do Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão” (LEVI, 1990, p. 5). Mas mesmo para ele, membro deste grupo de paradoxais “privile-giados” dentro do inferno, a realidade do campo permaneceu como uma cripta (lembrando da expressão de Nicolas Abraham e Maria Torok), cripta esta que suas palavras atingiram com força, mas nunca conseguiram quebrar, o que talvez esteja na origem do próprio suicídio de Primo Levi em 1987.

No seu É isso um homem, de 1947, ele escrevera o seguinte com relação a este elemento encriptado da realidade do Lager: “Parecia impossível que existisse realmente um mundo e um tempo, a não ser nosso mundo de lama e nosso tempo estéril e estagnado, para o qual já não conseguíamos imaginar um fim” (LEVI, 1988, p. 119). Lembremos também de outra passagem cha-ve do mesmo livro: “Hoje – neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado frente a uma mesa, escrevendo – hoje eu mesmo não es-tou certo de que esses fatos tenham realmente acontecido” (LEVI, 1988, p. 105). Nesta passagem vemos dois momentos exemplares do testemunho: em primeiro lugar ele se dá sempre no presente. Na situação testemunhal o tempo passado é tempo presente. (Mais um paralelo, aliás, com a cena psicanalítica e sabemos que

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Freud buscou várias metáforas ao longo de sua vida, como a da câmara fotográfica, um campo geológico e o bloco mágico, para exprimir este elemento paradoxal da temporalidade psíquica concentrada em um mesmo topos.) Mais especificamente, o trau-ma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa. O trauma mostra-se, portanto, como o fato psicanalítico prototípico no que concerne à sua estrutura temporal. Levi diz que neste hoje da sua escritura ele não está certo se os fatos (do Lager) de fato aconteceram. Este teor de irrealidade é sabidamen-te característico quando se trata da percepção da memória do trauma. Mas para o sobrevivente esta “irrealidade” da cena en-criptada desconstrói o próprio teor de realidade do restante do mundo.3 Hélène Piralian, psicanalista de origem armênia, refletiu sobre esta questão ao tratar do genocídio armênio e sobre a questão da sua representação. Para ela a simbolização do evento implica a “(re)construção de um espaço simbólico de vida” (PIRALIAN, 2000, p. 21). Esta simbolização deve gerar um retemporalização do fato antes embalsamado. Ele adenda, assim, ao fluxo dos de-mais fatos da vida. Piralian fala também e de modo muito feliz, de uma tridimensionalidade (PIRALIAN, 2000, p. 22) advinda da simbolização. Ao invés da imagem calcada e decalcada, cha-ta, advinda do choque traumático, a cena simbolizada adquire tridimensionalidade. a linearidade da narrativa, suas repetições, a construção de metáforas, tudo trabalha no sentido de dar esta nova dimensão aos fatos antes enterrados. Conquistar esta nova dimensão equivale a conseguir sair da posição do sobrevivente para voltar à vida. Significa ir da sobre-vida à vida. É claro que nunca a simbolização é integral e nunca esta introjeção é com-pleta. Falando na língua da melancolia, podemos pensar que algo da cena traumática sempre permanece incorporado, como um corpo estranho, dentro do sobrevivente. Na cena do trabalho do trauma nunca podemos contar com uma introjeção absoluta. Esta cena nos ensina a sermos menos ambiciosos ou idealistas em nossos objetivos terapêuticos. Para o sobrevivente sempre restará este estranhamento do mundo advindo do fato de ele ter morado como que “do outro lado” do campo simbólico.

Este estranhamento está intimamente vinculado ao tema da irrealidade dos fatos vividos e da conseqüente inverossi-milhança dos mesmos. Este constitui um topos importante das narrativas do trauma. o sobrevivente, como o tradutor, está submetido a um doble bind. Enquanto aquele que traduz deve se submeter ao mesmo tempo, sem esperanças de uma trégua, à ditadura da língua que traduz e à da língua para qual está traduzindo, do mesmo modo o sobrevivente no caso da Shoah tenta (sem sucesso) conciliar as regras de verossimilhança do universo concentracionário com as do “nosso mundo”. O Levi que sonha com seu público ouvinte que o abandona já previa a sensação de inverossimilhança gerada pelos fatos que narraria

3 No final de A trégua Primo Levi narra um sonho que o perseguiu após seu retorno de Auschwitz que também expressa esta força da realidade do Lager de dissolver tudo aquilo que poderíamos deno-minar de seu “exterior”. trata-se de um sonho em cascata: primo Levi vê-se entre familiares e amigos, à mesa ou em outro local aprazível. aos poucos ele é tomado de uma angústia difusa, “tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se tornam mais intensa e mais precisa. tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um nada turvo e cin-zento. E, de repente, sei o que isso significa, e sei também que nada era verdadeiro fora do Lager. De resto eram férias breves, o engano dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno, o sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que pros-segue gélido, ouço res-soar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É o comando do ama-nhecer em Auschwitz, uma palavra estrangei-ra, temida e esperada: levantem, ‘Wstavach’” (LEVI, 1997, p. 359). A realidade “externa” tor-na-se a exceção, tempo de “férias”, imagem de “sonho”. Ela fica sitiada pelo real do Lager, que é descrito como sonho-pesadelo que engloba e devora o mundo exte-rior. O despertar final de A Trégua – comandado por uma voz conhecida e estrangeira (Heimlich totalmente Unheimlich) – é o despertar para esta terrível verdade do trauma. Jorge Semprun narra este mesmo sonho em cascata em seu livro-testemunho L’écriture ou la vie (SEMPRUN, 1994, p. 163).

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e a conseqüente acusação de mentiroso que o esperava. Robert Antelme em seu testemunho sobre sua experiência nos campos alemães também expressou esta angústia que está na base da pulsão testemunhal:

Há dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno, estávamos todos, eu creio, tomados por um delírio. Nós queríamos falar, finalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparência física era suficientemente eloqüente por ela mesma. Mas nós justamente voltávamos, nós trazíamos conosco nossa memória, nossa experiência totalmente viva e nós sentíamos um desejo frenético de a contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível preen-cher a distância que nós descobrimos entre a linguagem que nós dispúnhamos e essa experiência que, em sua maior parte, nós nos ocupávamos ainda em perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a não tentar explicar como nós havíamos chegado lá? Nós ainda estávamos lá. E, no entanto, era impos-sível. Mal começávamos a contar e nós sufocávamos. A nós mesmos, aquilo que nós tínhamos a dizer começava então a parecer inimaginável. Essa desproporção entre a experiência que nós havíamos vivido e a narração que era possível fazer dela não fez mais que se confirmar em seguida. Nós nos de-frontávamos, portanto, com uma dessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imaginação. Ficou claro então que seria apenas por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginação, que nós poderíamos tentar dizer algo delas. (ANTELME, 1957, p. 9)4

É essencial nos determos um pouco nesta conclusão que Antelme extrai do dilema da testemunha. A imaginação apresen-ta-se a ele como o meio para enfrentar a crise do testemunho. Crise que, como vimos, tem inúmeras origens: a incapacidade de se testemunhar, a própria incapacidade de se imaginar o Lager, o elemento inverossímil daquela realidade ao lado da imperativa e vital necessidade de se testemunhar, como meio de sobrevivên-cia. A imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. o trauma encontra na imaginação um meio para sua narração. a literatura é chamada diante do trauma para prestar-lhe ser-viço. Et pour cause, se dermos uma pequena olhada na história da literatura e das artes veremos que os serviços que elas têm prestado à humanidade e seus complexos traumáticos não são desprezíveis. Da Ilíada a Os sertões, de Édipo rei à Guernica (1937) de Hamlet ao teatro pós-Shoah de um Beckett, podemos ver que o trabalho de (tentativa) introjeção da cena traumática pratica-mente se confunde com a história da arte e da literatura. A teoria freudiana da tragédia como ritual de exorcismo do assassinato do pai pela horda primeva é apenas uma das inúmeras versões da teoria estética que vê as artes como uma espécie de escudo de Perseu. Neste escudo miramos os olhos da Górgona que, segundo Primo Levi, matou ou emudeceu aqueles que chegaram ao fundo

4 Cf. também uma passa-gem de uma entrevista de Primo Levi, na qual ele responde ao famoso dictum adorniano se-gundo o qual escrever poesia após Auschwitz seria um ato de barbá-rie: “A minha experi-ência prova o contrário. Pareceu-me, então, que a poesia era melhor mes-mo do que a prosa para exprimir o que me opri-mia. Quando eu digo ‘poesia’ eu não penso em nada lírico. Nesta época eu teria reformu-lado a frase de Adorno: depois de Auschwitz não pode-se escrever poesia senão sobre aus-chwitz.” (apud LEVI, 2005, p. 34) De fato, o próprio Adorno refor-mulou aquele dictum alguns anos depois em um sentido próximo ao de Levi. Como ele escreveu em 1962 em seu trabalho “Engagement”, também referindo-se ao seu dictum de 1949: “o excesso de sofrimento real não permite es-quecimento; a palavra teológica de Pascal ‘on ne doit plus dormir’ deve-se secular izar. [...] aquele sofrimento [...] requer também a permanência da arte que proíbe” (aDorNo, 1973, p. 64). No mesmo passo lemos ainda: “não há quase outro lugar [senão na arte] em que o sofrimento encontre a sua própria voz”.

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do sistema concentracionário e se deparam com eles. Para muitos sobreviventes, como é o caso de Jorge Semprun, a pessoa que melhor pode escrever sobre os campos de concentração é quem não esteve lá e lá entrou pelas portas da imaginação.5

Mas esta solução está longe de implicar uma pacificação na cena do trauma e do seu testemunho. antes é por conta da imaginação que muitas acusações são feitas contra o testemunho. ou seja, antes de se criticar a literatura (com seu evidente com-promisso com a imaginação), a própria narrativa testemunhal, que se quer “primeira”, atestação, fonte original da realidade, mesmo esta narrativa é descartada por muitos historiadores – como o próprio Raul Hilberg – como sendo fonte não fidedigna para o historiador. Neste ponto vislumbramos uma querela que acompanha a historiografia desde seus primórdios, em sua luta contra a escrita dita imaginativa. Mas ao invés de negarmos ao testemunho a possibilidade de ver na imaginação e em seu tra-balho de síntese de imagens um potente aliado, devemos, com Derrida, ver nesta aproximação entre o campo testemunhal e o da imaginação a possibilidade mesma de se repensar tanto a literatura, como o testemunho e o registro da escrita autode-nominado de sério e representacionista. ocorre uma revisão da noção de literatura justamente porque do ponto de vista do testemunho ela passa a ser vista como indissociável da vida, a saber, como tendo um compromisso com o real. aprendemos ao longo do século XX que todo produto da cultura pode ser lido no seu teor testemunhal. Não se trata da velha concepção realista e naturalista que via na cultura um reflexo da realidade, mas antes de um aprendizado – psicanalítico – da leitura de traços do real no universo cultural. Já o discurso dito sério é tragado e abalado na sua arrogância quando posto diante da impos-sibilidade de se estabelecer uma fronteira segura entre ele, a imaginação e o discurso dito literário. Não existe uma essência do literário que dê conta de contê-lo diante do discurso dito sério. Por fim, como escreve Derrida, “le témoignage a toujours partie liée avec la possibilité au moins de la fiction, du parjure et du mensonge. Cette possibilité éliminée, aucun témoignage ne serait plus possible et n’aurait plus en tout cas son sens de témoignage” (DErrIDa, 1998, p. 28). o testemunho só tem sentido com a sua contraparte estrutural, o falso-testemunho. Ou seja, assim como Coleridge definiu a literatura como uma suspensão voluntária da desconfiança, o mesmo, em outro grau (mas justamente tudo torna-se uma questão de grau), se dá no testemunho. Sem a nossa vontade de escutar, sem o desejo de também portar aquele testemunho que se escuta, não existe o testemunho. o dialogismo do testemunho o transporta para o campo da pragmática do testemunho. E aqui já estamos anun-ciando nosso próximo passo: a política do testemunho.

antes de passar para este item, mas já nos dirigindo a ele,

5 Neste sentido ele fez um largo elogio da ima-ginação como meio de “suscitar a imaginação do inimaginável” (SEM-PRUN, 1994, p. 135).

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tratemos por fim, dentro do tema das aporias do testemunho, da questão da sua paradoxal singularidade. todo testemunho é único e insubstituível. Esta singularidade absoluta condiz com a singularidade da sua mensagem. Ele anuncia algo excepcio-nal. Por outro lado, é esta mesma singularidade que vai corroer sua relação com o simbólico. a linguagem é um constructo de generalidades, ela é feita de universais. O testemunho como evento singular desafia a linguagem e o ouvinte. Sabemos que a fragmentação do real, o colapso do testemunho do mundo, como vimos, emperra sua passagem e tradução para o simbólico. a conhecida literalidade da cena traumática – ou o achatamento de suas imagens, que vimos acima – trava a simbolização. Mas ao se reafirmar esta singularidade absoluta do testemunho barra-se a possibilidade de sua repetição e sinapse com o simbólico, sempre assombrado pela possibilidade da sua ficcionalização. Como vimos, esta passagem para o imaginário é desejável e pode ter um efeito terapêutico, mas para um certo discurso sobre o testemunho – sobretudo o jurídico, mas não só – a fic-ção contamina e dissolve o teor de verdade do testemunho. No discurso jurídico é onde este elemento paradoxalmente singular do testemunho (e das provas) é levado mais adiante, colocando o testemunho em um verdadeiro território de ninguém. Dos-toievski percebeu isto e, freqüentador contumaz de tribunais, ele dizia que as provas têm sempre “dois gumes” (DOSTOIÉ-VSKI, 2001, p. 348), um verdadeiro insight psicanalítico sobre o double bind. Ou seja, a “literalidade” da situação traumática traz consigo a sensação de singularidade absoluta. Esta não é nada mais do que o sintoma da ruptura com o simbólico. Na tentativa de cobrir este gap com a simbolização a testemunha se volta para o trabalho da imaginação. É neste ponto que o campo jurídico passa a lançar uma suspeita sobre o testemunho. Ele gostaria de manter a singularidade total do testemunho, que significaria a chancela de seu teor de “prova”, de fragmento do real. Mas a engrenagem jurídica emperra uma segunda vez, justamente ao defender esta singularidade literal do evento. Pois também as leis – como a linguagem – são generalizantes, são universais que muito precariamente cobrem os “delitos” individuais. o teste-munho como híbrido de singularidade e de imaginação, como evento que oscila entre a literalidade traumática e a literatura imaginativa, assombra duplamente o direito.

Por outro lado, o testemunho também se quer compreen-sível, e mesmo, o testemunho se quer exemplar. Neste sentido reencontramos um veio tradicional do conceito de testemunho, que o articula à figura cristã do mártir (também muito cara a Dostoiévski). Mártir é aquele que sofre e morre para testemunhar sua fé. O mártir (do grego mártus,uros, aquele que testemunha, ou seja, que percebe o mundo) ao testemunhar de modo único esta fé universal, torna-se ele mesmo um exemplo, um modelo, uma

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vida exemplar, que as hagiografias até o século XX reproduziam com certo sucesso. Aquele que testemunha um fato excepcional muitas vezes torna-se ele também uma figura exemplar. Sabe-mos do valor atribuído em nossa sociedade aos sobreviventes. Eles representam exemplos únicos daqueles que viram de per-to atrocidades inomináveis. Eles portam estas verdades e são tratados como porta-vozes delas. Esta unicidade paradoxal do testemunho, que desafia a linguagem, levou também ao dis-curso da unicidade das catástrofes. Em particular fala-se muito da unicidade da Shoah. Como escreveu Primo Levi: “o sistema concentracionário nazista permanece ainda um unicum, em termos quantitativos e qualitativos” (LEVI, 1990, p. 7). Mas esta questão deve ser vista com cautela. Seria moral comparar qual grupo tentativamente dizimado sofreu mais? Aqui encontramos uma típica armadilha de nossa era politically correct e devemos, de preferência, não pisar nela e sim tentar desmontá-la. Do ponto de vista das vítimas – e este ponto de vista é fundamental ao se estudar o testemunho, voltaremos a este ponto – do ponto de vista das vítimas toda catástrofe é única. Radicalizar esta singularidade assim como condenar toda comparação entre os genocídios, por outro lado, pode gerar uma espécie de teologia negativa concentracionária, muito improdutiva e que apenas tende a reproduzir dois males: em primeiro lugar a própria si-tuação do traumatizado na sua resistência à simbolização e, em segundo lugar, o discurso dos algozes que também visa estender um tabu sobre o discurso que recorde as atrocidades cometidas. Como escreveu Ruth Klüger, ela mesma uma sobrevivente de três campos de concentração e autora de um relato autobiográ-fico publicado em português com o título Passagens da Memória, “mesmo cada cachorro é único” (KLÜGER, 1994, p. 70).

2. Política da memóriao testemunho é uma modalidade da memória. Se os es-

tudos sobre o testemunho – no seu sentido não mais religioso ou meramente jurídico, mas antes como uma busca de se ler na cultura as marcas das catástrofes do século XX – se desen-volveram nas últimas décadas é porque ocorreu neste período uma virada culturalista dentro das ditas ciências humanas. Nesta virada a memória passou a ocupar um lugar de destaque, sub-metendo a quase onipresença da historiografia no que tange à escritura de nosso passado.6 Neste período também a própria historiografia se abriu aqui e ali à influência dos discursos da memória, como vemos em trabalhos de história que introduzem procedimentos da história oral ou nos que se abrem também ao trabalho com as imagens. A historiografia positivista tradicional é avessa às imagens, desconfia delas assim como despreza a imaginação. Já a memória sempre foi pensada como um misto de verbalidade e imagens. Em seu pequeno tratado De memoria

6 Com relação a este ponto remeto ao meu ensaio de 2003.

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et reminiscentia aristóteles notou que a memória, devido ao seu caráter de arquivo de imagens, pertence à mesma parte da alma que a imaginação (De memoria et reminiscentia 450a24): ela é um conjunto de imagens mentais das impressões sensuais, com um adicional temporal; trata-se de um conjunto de imagens de coisas do passado. aristóteles também escreveu com relação ao nosso pensamento de um modo geral: “a alma nunca pensa sem uma imagem mental” (ARISTÓTELES, De anima 432a17; cf. YATES, 1974, p. 32) “... mesmo quando pensamos de modo especulativo, devemos ter uma imagem mental com a qual pensamos” (arIS-TÓTELES, De anima 432a9). Esta idéia é importante de ser desta-cada ao tratarmos do testemunho, porque assim como falamos de narrativa testemunhal, também deve-se pensar em uma arte testemunhal, ou seja, em práticas imagéticas do testemunho.7

Por agora nos contentemos em acentuar o elemento eminentemente político no qual se desdobram os discursos testemunhais. o próprio conceito de testemunho pode ser tra-çado ao longo do século XX na sua relação com o pensamento político. Jean Norton Cru, o primeiro a introduzir o conceito no campo da historiografia, tinha como objetivo fazer uma crítica da primeira guerra mundial e dos discursos oficiais, belicistas, que enalteciam as figuras dos heróis guerreiros. Sua resposta foi propor que a historiografia se abrisse para os testemunhos dos soldados. Seu livro Témoins, de 1929, deve ser visto como a primeira tentativa sistemática de se pensar o testemunho mo-derno.8 Já Walter Benjamin com a sua concepção do historiador como um chiffonier, também abriu a historiografia para o discurso testemunhal, apesar de ter utilizado pouco este conceito. Mas uma frase famosa das suas teses “Sobre o conceito da história”, não deixa dúvidas quanto à sua fortíssima proposta de leitura da história na sua face testemunhal. Refiro-me à frase: “nunca existiu um documento da cultura que não fosse ao mesmo tempo um [documento] da barbárie”. É interessante ler a tradução do próprio Benjamin dessa famosa passagem: “Tout cela [l’héritage culturel] ne témoigne [pas] de la culture sans témoigner, en même temps, de la barbarie”. Já na América Latina, sobretudo desde os anos 1960, o conceito de testemunho adquiriu uma centralidade enorme no contexto da resistência às ditaduras que assolaram o continente.

Hélène Piralien escreve seu referido livro de ensaios sobre o genocídio dos armênios de 1915-16 sob o signo de uma escritura contra o negacionismo. Como se sabe, aquele genocídio que atingiu cerca de 1.200.000 armênios do então Império Otomano, de uma população total de cerca de 1.800.0000, até hoje é negado pelo governo da turquia. ainda em 2005 um congresso sobre este genocídio, que deveria ocorrer na Universidade de Bogazici, foi impedido de ocorrer pelo governo turco (Folha de São Paulo, 24 set. 2005, p. A27). Para Piralien o desafio do testemunho deste

7 Refiro-me aqui a um importante filão na arte contemporânea no qual encontramos artistas que praticam uma nova “arte da memória”. Entre os artistas que trabalham de modo programático o tema da memória pode-mos destacar rosangela Rennó, Anselm Kiefer, Joseph Beuys, o cartu-nista art Spiegelman (autor de Maus e de In the Shadow of no Towers), os cineastas alain resnais (autor de Nouit et Brou-illard e de Hiroshima mon Amour), Claude Lanz-mann (autor de Shoah), Chris Marker (autor de La Jetée) e Win Wenders, o artista Jochen Gerz (au-tor de anti-monumentos, como seu “Monumento contra o fascismo”, em Hamburgo ou o “Memo-rial contra o racismo”, de Saarbrücken), Christian Boltanski (autor, entre outras obras centrais, de “The Missing Hou-se”, em Berlim), Horst Hoheisel (também autor de anti-monumentos, como de uma proposta de se explodir o portal de Brandenburgo como memorial para lembrar a Shoah, autor de “os portões dos alemães”, e co-autor, ao lado de an-freas Knitz, da exposição “Vogel Frei – Passaro Livre”, realizada na Pi-nacoteca de São Paulo em 2003). Podemos lembrar também de outros ar-tistas que se dedicaram especificamente em al-gumas de suas obras ao tema da representação da Shoah, como Naomi tere-sa Salomon (lembremos de sua exposição Asser-vate – Exibits, Auschwitz, Buchenwald, Yad Vashem no Schirn Kunsthalle de Frankfurt em 1995) e de Zbigniew Libera (autor da polêmica obra “Lego Concentration Camp Set”, de 1996). Na argen-tina vemos também um boom da memória deslan-chado pelo trabalho de luto da última ditadura, que deixou como legado mórbido mais de 30.000 desaparecidos. Entre es-tes artistas eu destacaria dois fotógrafos: Marcelo Brodsky e Helen Zout.8 Com relação ao papel de Jean Norton Cru na história do conceito de testemunho cf. o livro de Frédéric Rousseau (2003) e o meu artigo de 2005.

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genocídio negado – que assim matou duas vezes suas vítimas e continua a assassiná-las simbolicamente – é o de se construir em termos coletivos espaços para além do desejo da vingança, da parte os descendentes das vítimas, e com a renúncia da negação, do lado dos turcos. Apenas deste modo ela crê que se poderia finalmente proceder ao trabalho de luto, que até o momento foi travado e impedido por conta da negação. o negacionismo aqui é apenas um caso particularmente radical de um movimento que acompanha o gesto genocida. o genocida sempre visa a total eliminação do grupo inimigo para impedir as narrativas do terror e qualquer possibilidade de vingança. Os algozes sempre procuram também apagar as marcas do seu crime. Esta é uma questão central, que assombra o testemunho do sobrevivente em mais de um sentido. Em primeiro lugar porque o sobrevi-vente vive o sentimento paradoxal da culpa da sobrevivência. a situação radicalmente outra, na qual todos deveriam morrer, constitui sua origem negativa. A indizibilidade do testemunho ganha com este aspecto um peso inaudito. Mas o negacionismo é também perverso, porque toca no sentimento acima referido de irrealidade da situação vivida. o negacionista parece coincidir com o sentimento comum que afirma a impossibilidade de algo tão excepcional. O apagamento dos locais e marcas das atroci-dades corresponde àquilo que no imaginário posterior também tende a se afirmar: não foi verdade. A resistência quando se trata de se enfrentar o real parece estar do lado do negacionismo. Este sentimento comum mora no próprio sobrevivente e o tortura, gerando uma visão cindida da realidade. Piralian nota que o testemunho visa a integração do passado traumático. Esta inte-gração só pode ser conquistada contra o negacionismo. Não por acaso se conta que Hitler em um discurso a seus chefes militares em 22 de agosto de 1939, às vésperas da invasão da Polônia, teria dito “Quem se lembra hoje do extermínio dos armênios [durante a Primeira Guerra Mundial]?” Sua intenção era clara: apenas o lado heróico da guerra seria lembrado, a impunidade estaria garantida. a negação antecedeu o próprio ato, ou seja, a tentativa de extermínio dos judeus europeus. A memória da barbárie tem, portanto, também este momento iluminista: preservar contra o negacionismo, como que em uma admoestação, as imagens de sangue do passado.9

Catherine Coquio em um interessante livro sobre o geno-cídio dos tutsis (2004) no ruanda de 1994, aborda justamente os conflitos entre os rituais oficiais de memória e as tentativas individuais da população sobrevivente de enfrentar este luto quase impossível de 1.300.000 mortos assassinados com facões ao longo de apenas três meses. Ela descreve uma situação na qual enquanto o Estado tendeu para um rápido “trabalho de memó-ria”, mais parecido a um trabalho de esquecimento, boa parte da população sofria diante da ausência de interlocutores para

9 Se existe de um lado o negacionismo, como uma prática tradicional dos autores de crimes e sobretudo dos autores coletivos de crimes con-tra a humanidade, e, do outro lado, a tendência do sobrevivente e da vítima a querer se “es-quecer” do seu passado traumático, podemos distinguir ainda uma terceira modalidade de resistência ao real que seria a marca de nossa atual sociedade caracterizada pela pre-sença traumatizante da violência. Em Freud a teoria da defesa diante da “vivência da dor” contém, neste sentido, ensinamentos precio-sos. o mesmo vale para seu conceito de Verleug-nung, recusa da realida-de. Vale lembrar de uma passagem do dicionário de Laplanche/ Pontalis ao tratar deste último termo: “Na medida em que a recusa incide na realidade exterior, Freud vê nela, em oposição ao recalcamento, o primei-ro momento da psicose: enquanto o neurótico começa por recalcar as exigências do id, o psicó-tico começa por recusar a realidade” (LAPLAN-CHE; PONTALIS, 1988, p. 562 et seq.).

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suas demandas de testemunho. Os rituais oficiais pareceriam mais Deckerinnerung (memória encobridora) do que real dispo-sição a tratar do passado. Faz parte destes rituais a publicação de um dicionário com o nome dos desaparecidos, a exumação dos cadáveres enterrados em fossas coletivas e a construção de memoriais, como foi o caso do Memorial de Kigali. Este último foi inaugurado em 2004, aos dez anos do massacre, e contém um museu do genocídio, cuja cenografia foi inspirada em Yad-Va-shem, o memorial central dedicado à Shoah em Jerusalém. Mas faltam espaços para o testemunho. As igrejas, que poderiam em parte abrigar esta demanda, foram transformadas em 1994 em cenário para os massacres. Um relato de Monique Ilbudo, escrito em 1998, quatro anos após o genocídio, apresenta um pouco o retrato desta população destruída por aquela experiência:

Em 1998 as pessoas ainda estavam embrutecidas, perdidas. alguns haviam escolhido a loucura para sobreviver e nos contavam coisas incoerentes. Outros estavam fechados no mutismo. Outros ainda andavam como fantasmas, completa-mente destruídos. (apud COQUIO 2004, p. 83)

Já o testemunho de Esther Mujawayo, citado por Coquio, mostra um descompasso entre as boas intenções daqueles que querem dar apoio a esta população e suas necessidades:

[...] estes psicólogos [...] não queriam ouvir nosso traumatismo senão sob a forma que eles o compreendiam. [...] percebíamos que o país se transformava em um campo de experiências de um bando de aventureiros e antes de mais nada, de aprendizes de psicólogo, de engenheiros, médicos... Quantos energúmenos nós não vimos?

[...] a maior parte dos que emprestam fundos e agentes humani-tários são pessoas apresadas e, como todas pessoas apresadas, freqüentemente julgam antes de escutar: eles querem soluções rápidas, eficazes como mecanismos de automóvel, mas que não podem funcionar com humanos, ainda menos com humanos que saem de um genocídio. Eles querem se livrar da sua culpa com programas rápidos. (apud COQUIO, 2004, p. 84)

Esther Mujawayo reclama também da retórica oficial de 2004 que afirmava que já se havia falado “o suficiente” do geno-cídio. Ela vê uma coincidência entre este tipo de idéia e o desejo dos Hutus de esquecer tudo e de apagar o passado. O Estado assumiu um discurso de unidade nacional, tentando conciliar os desejos dificilmente conjugáveis dos Hutus e dos Tutsis. Deste modo o testemunho não pôde acontecer e estabelecer sua tenta-tiva de criar pontes entre o sobrevivente e a realidade, entre ele e a sociedade. O discurso ficou estancado. Mesmo as tentativas de introduzir algo semelhante às Comissões de Verdade e Concilia-ção da África do Sul parecem não ter obtido o resultado esperado. a introdução da Gacaca, uma instituição jurídica tradicional de

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ruanda, uma espécie de conselho popular, deveria ter permitido a confissão em massa dos culpados e o testemunho das vítimas. Como este ritual não previa sanções penais, ele acabou se trans-formando em um ritual de anistia disfarçado de boas intenções. Neste sentido a Gacaca foi instrumentalizada pelo projeto de reconciliação e unificação que previa o perdão como meio de cura dos traumas sociais. Já a própria ONU tampouco teve sua iniciativa bem-vinda de criar um tribunal Penal Internacional para Ruanda, uma vez que ela é vista como cúmplice por sua inação durante o genocídio. Jean Hatzfeld destaca a fala de uma sobrevivente deste genocídio que afirma, dentro de um topos que vimos acima, que não adiantaria testemunhar, porque ninguém acreditaria nos fatos relatados (HATZFELD, 2005, p. 51). Sem contar que os sobreviventes têm medo de retaliações contra os que testemunham em público, sendo que em 2003 ocorreu uma série de assassinatos de sobreviventes que foram considerados potenciais denunciantes das atrocidades (COQUIO, 2004, p. 92). Lendo o testemunho de Sylvie, uma assistente social de Ruanda citada por Hatzfeld, entendemos um pouco melhor do que se trata nesta luta com este legado do mal. Percebemos que a jus-tiça e sua capacidade de negociação entre os partidos e entre o passado e o presente, ainda pode ter um papel a desempenhar nesta cena, como de resto já está ocorrendo na América Latina em países como a Argentina e o Chile, que também se vêem às voltas com a herança dos gigantescos desmandos ocorridos du-rante seus regimes ditatoriais. Citemos as palavras de Sylvie:

No fundo de mim mesma não se trata de perdão ou de es-quecimento, mas de reconciliação. O branco que deixou os assassinos agirem, não há nada a lhe perdoar. Quem olhou o vizinho abrir o ventre das moças para matar o bebê diante dos olhos delas, não há nada a perdoar. Não há porque desperdiçar palavras para falar desse assunto com esta gente. Só a justiça pode perdoar... Uma justiça que ofereça um lugar à verdade, para que o medo se esvaia... Um dia, talvez, uma coabitação ou uma ajuda mútua voltem a existir entre as famílias dos que mataram e dos que foram mortos. (HATZFELD, 2005, p. 218)

O tema da narração do trauma de catástrofes históricas nos levou, portanto, a passar da cena do testemunho para a cena ju-rídica. Mas será esta capaz de permitir a construção da desejada passagem entre os indivíduos traumatizados pela catástrofe e a sociedade? Ela permitirá uma reintegração do passado?10 Sem dúvidas a esfera do direito e a instituição do tribunal podem criar fóruns para esta construção de passagens e para a refun-dação de moradias para estes Eus danificados, mas é verdade também que enquanto um membro da esfera do poder, o direito não está isento de parcialidades. E mais, enquanto um modo de pensar falocêntrico calcado no discurso da comprovação e da atestação, ou seja, do testemunho como testis, o terceiro em uma

10 Shoshana Felman apostou nesta possibi-lidade do testemunho jurídico criar um espaço para o testemunho em seu belo livro de ensaios de 2002.

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cena de litígio, e não como superstes, discurso de um sobrevi-vente, o direito tende a não garantir espaço para a fala muitas vezes fragmentada e plena de reticências do testemunho do trauma (SELIGMANN-SILVA, 2005). Talvez a busca deste local do testemunho seja antes uma errância, um abrir-se para sua assistematicidade, para suas fraturas e silêncios. É na literatura e nas artes onde esta voz poderia ter melhor acolhida, mas seria utópico pensar que a arte e a literatura poderiam, por exemplo, servir de dispositivo testemunhal em massa para populações como as sobreviventes de genocídios ou de ditaduras violentas. Mas isto não implica, tampouco, que nós não devamos nos abrir para os hieróglifos de memória que os artistas nos têm apresen-tado. Podemos aprender muito com eles.

Na música popular brasileira encontramos inúmeros exem-plos de inscrições do trauma, como escritura de uma contra-voz. Fecho este texto lembrando alguns versos de Chico Buarque como exemplo deste fantástico acervo mnemônico existente no Brasil. Este acervo de forte caráter político ainda é muito vivo, apesar do conservadorismo gigantesco da sociedade brasileira que tende mais para enterrar aquele passado ainda recente. No Brasil até hoje a anistia de 1979 valeu mais como amnésia im-posta com relação às arbitrariedades e à violência da ditadura civil-militar. Citemos os versos:

Quem é essa mulher Que canta sempre esse estribilho? Só queria embalar meu filho Que mora na escuridão do mar Quem é essa mulher Que canta sempre esse lamento? Só queria lembrar o tormento Que fez meu filho suspirar Quem é essa mulher Que canta sempre o mesmo arranjo? Só queria agasalhar meu anjo E deixar seu corpo descansar Quem é esta mulher Que canta como dobra um sino? Queria cantar por meu menino Que ele não pode mais cantar. (“Angélica”, de Chico Buarque e Miltinho, 1977)

“Angélica” foi inspirado pelo assassinato de Zuzu Angel (Zuleika Angel Jones) em 1976 por membros do aparato de go-verno que queriam impedir a continuidade de suas investiga-ções sobre o paradeiro de seu filho (Stuart Edgart Angel Jones, raptado e assassinado por agentes da ditadura). Não por acaso este episódio da história da ditadura se tornou tão importante hoje, tendo sido inclusive “popularizado” a partir do filme de Sérgio Rezende. Zuzu representa ao mesmo tempo a vontade de

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restabelecimento da verdade, o desejo de reencontrar um parente arbitrariamente raptado, torturado e assassinado e o peso ter-rível da realidade do esquecimento imposto pelas autoridades que, ao final, desaguou em um novo assassinato, ou seja, o da própria Zuzu. É-lhe negado o direito de enterrar seu filho. Sua luta pela verdade se confunde com a luta pelo corpo do filho. os desaparecimentos do corpo e da justiça se misturam em sua história. Este caso revela ao mesmo tempo as práticas homicidas do Estado terrorista de 1964 e a tentativa de se representar esta arbitrariedade. Zuzu para fazer seu luto precisava, antes de mais nada, saber a história de seu filho, ver seu cadáver, enterrá-lo, fazer com que a justiça se cumprisse. Angélica enfatiza o aspecto repetitivo da memória do mal, que vive de observar uma au-sência que não pode ser sanada a não ser com a restituição do corpo. Na música, a repetição do verso “Quem é esta mulher”, a volta repetitiva do advérbio temporal “sempre” e a imagem de um sino que sempre dobra da mesma forma, representam esta característica da memória do mal como constante e reiterativa. A cena desenhada é a da mãe que quer enterrar seu filho, dar uma moradia e paz para seu corpo – requisito essencial para que ela mesma recupere a sua paz. Esta mulher, visada pela pergunta repetida quatro vezes, é tanto Zuzu, como as outras mães de desaparecidos e, no limite, a sociedade brasileira órfã de seus filhos desaparecidos (abandonados em valas comuns ou jogados nas profundezas dos mares). A mãe na música quer “lembrar o tormento” que fez seu filho suspirar: a narração dos fatos, a restituição da verdade é uma etapa essencial no trabalho de luto assim como nos processos de transição de regimes au-toritários para democráticos. No fim, na última “estrofe”, a mãe quer cantar por seu menino, que não pode cantar. Ela mesma se torna testemunha desta história que encerra em si o silêncio, o apagamento da verdade. Assim como a própria música de Chico Buarque traz em si esta história perfurada, que não cessa de voltar porque a justiça e o trabalho de memória ainda não foram feitos.11

11 É interessante con-frontar esta letra de Chico Buarque com o poema de Paul Celan “Nächtlich Geschürzt” (“De noite arrepanha-dos”, na tradução de João Barrento). Celan tem uma poética deri-vada em grande parte de sua experiência de sobrevivente das atro-cidades do nazismo, sendo que ele perdera seus pais em campos de concentração. a di-ferença entre as poéti-cas destes dois poetas é clara: Buarque cria um poema com uma tem-poralidade estendida e não concentrada e espa-cializada, como Celan. Em Buarque os espaços privado e público se en-contram em um drama político, já em Celan a poesia tende para uma mise en abyme que nos faz oscilar entre a refe-rência histórica e a força de suas imagens poéti-cas. Mas o confronto é interessante, na medida em que colocamos lado a lado duas potentes ar-tes da memória poéticas de duas barbáries do século XX (sem querer, evidentemente, medi-las ou compará-las). ambos os poetas bus-cam criar pelas palavras um espaço para os seus “desaparecidos”, ambos podem ser incluídos na literatura do trauma que se desenvolveu no sécu-lo XX em função de suas inúmeras catástrofes (cf. SELIGMANN-SILVA, 2005a): “De noite, ar-repanhados/ os lábios das flores,/ cruzados e entrelaçados/ os fustes dos abetos,/ encanecido o musgo, estremecida a pedra,/ desperta para o vôo infinito/ as gralhas sobre o glaciar:// estas são as paragens onde/ descansam aqueles que surpreendemos:// eles não irão nomear a hora,/ nem contar os flocos,/ nem seguir as águas até ao açude.// Estão separados no mundo,/ cada um com a sua noi-te,/ cada um com a sua morte,/ rudes, de cabe-ça descoberta, cobertos de geada/ de pertos e longes.// Pagam a culpa que animou a sua origem,/ pagam-na com

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AbstractThe text proposes a reflection about some of the main issues concerning the gesture of testimony, highlighting the aporias that mark the act of wit-nessing. Departing from the idea that testimony only exists under the sign of its collapse and im-possibility, the essay stresses the dilemmas raised from the convergence between the individual task of the trauma storytelling and its collective com-ponent. In the historical catastrophes, as in the cases of genocide or mass violent persecution of particular segments of the population, traumatic memory is always a search for a compromise be-tween the work of individual memory and another, more collective work. Testimony is analyzed as a part of a complex “politics of memory”.

Keywords: Testimony. Trauma memory. Trauma. Politics of memory. Brazilian dictatorship.

uma palavra/ que existe injustamente, como o verão.// Uma palavra – bem sabes:/ um cadá-ver.// Vamos lavá-lo,/ vamos penteá-lo,/ va-mos voltar-lhe os olhos/ para o céu.” “Nächtlich geschürzt/ die Lippen der Blumen,/ gekreuzt und verschränkt/ die Schäfte der Fichten,/ ergraut das Moos, ers-chüt ter t der Stein,/ erwacht zum unendli-chen Fluge/ die Dohlen über dem Gletscher:// dies ist die Gegend, wo/ rasten, die wir ereilt:// sie werden die Stunde nicht nennen,/ die Flo-cken nicht zählen,/ den Wassern nicht folgen ans Wehr.// Sie stehen getrennt in der Welt,/ ein jeglicher bei seiner Nacht,/ ein jeglicher bei seinem Tode,/ unwirs-ch, barhaupt, bereift/ von Nahem und Fer-nem.// Sie tragen die Schuld ab, die ihren Urs-prung beseelte,/ sie tra-gen sie ab an ein Wort,/ das zu Unrecht besteht, wie der Sommer.// Ein Wort – du weisst:/ eine Leiche.// Lass uns sie waschen,/ lass uns sie kämmen,/ lass uns ihr Aug/ h i m melwä r t s wenden.” (CELAN, 1996, p. 56 et seq.)

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Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária*

Roberto Vecchi

Recebido 08 mar. 2008 / Aprovado 27 abr. 2008

Resumo

Será possível repensar no espaço da história literá-ria, que já em si, pela estrutura própria do cânone, se articula a partir de jogos de forças e instâncias de poder, introduzindo conceitualmente o oco de representação do subalterno, para questionar, assim, a determinante do poder – e do biopoder – sobre as representações literárias? O gesto problematizador, limitando-se a alguns estudos de caso (os romances os sertões de Euclides da Cunha e a menina morta de Cornélio Penna), mas com o intuito mais amplo de pensar em novos moldes para uma historiografia literária antago-nista, tenta responder à questão, detendo-se sobre as tentativas engajadas que já foram feitas para incorporar na crítica o homo sacer, o excluído. É evidente que, em inúmeros casos, as intenções de resgate se embateram em impasses trágicos de inviabilidade da representação, a não ser por uma “escuta” de uma voz sincopada de rastos resistentes amalgamados nos textos. Assume-se, nessa perspectiva, ainda, o critério da relação entre história e história natural que talvez possa deixar emergir, em suas tensões, alguns restos das rela-ções de poder implicadas pela representação.

Palavras-chave: Subalternidade. História literá-ria. Corpos grafemáticos. os sertões. a menina morta.

* O presente texto retoma uma comu-nicação apresentada no simpósio temáti-co (Re)configurações literárias dos espaços nacionais/regionais, no âmbito do X Con-gresso da ABRALIC no Rio de Janeiro em 2006, depois nunca publicado.

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“– A questão é de saber se uma palavra pode significar tantas coisas

– Não, a questão é de saber quem manda.”

(Francisco Alvim, “Conversa de Alice com Humpty Dumpty”)

Qual o sentido de introduzir o conceito de poder, que pertence mais a uma esfera própria dos estudos culturais, na reconfiguração de uma historiografia literária? Ou é mais uma distorção que em tempos de esgotamento de grandes narrativas procura reativar nostalgicamente tensões discursivas que se desfibraram ao longo dos anos? Ou ainda se trata de mais uma dobra crítica dentro da qual se esconde uma disjunção opositiva: ou seja, a de como a literatura é poder, no sentido em que o pró-prio cânone literário se institui com uma função sacralizadora, insitucionalizante das representações e discrimina, antes de tudo, o que é e não é literatura, hierarquizando-a em gêneros e subgêneros? Portanto, introduzindo o conceito de poder, se cria uma espécie de jogo de forças em que a pertinência das rela-ções críticas acabaria por ser suprida por uma limitada disputa sobre a primazia da crítica cultural sobre a crítica literária ou vice-versa?

A impressão que se tem é que, mais uma vez, na realida-de e no contexto literário em questão – sem querer introduzir qualquer reducionismo sociológico – pelo menos nessa circuns-tância, uma reflexão pautada a partir de uma conceitualização de poder tem raízes profundas, configurando uma espécie de “diferença” Brasil – como aprendemos de grandes aulas como as de Antonio Candido ou de Roberto Schwarz, contaminando as projeções literárias, ou melhor, tornando-as oportunamente históricas e impuras, o que permitiu estudá-las a partir de um determinado ângulo agudo sócio-histórico.

E, na verdade, não foram poucas as abordagens com pen-dor historicista que se debruçaram sobre o corpus – em todos os sentidos – da história literária brasileira. Isso se dá, também por questões de referenciais históricos específicos, como no caso do autoritarismo, que tenta colocar a preocupação com as forças explícitas ou ocultas do poder sobre a representação. No projeto que, desse ponto de vista, marca uma diferença para todo o con-texto sócio-cultural do autoritarismo que lhe serve de referência, pode-se destacar Os pobres na literatura brasileira, por exemplo, em que há um intuito de inscrever a classe em um projeto de uma contra-historiografia literária. É como se, de acordo com Gramsci (na leitura recanonizadora de Edward Said, 2002), não só onde há história há classe, mas, em situação de engajamento, pode-se pensar em uma “estética radical” (SCHWARZ, 1983, p. 8) que con-vertesse o conceito em outro: onde há história literária também há classe. O que parece de imediato compreensível, pelo fato de

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que a literatura, como instituição, com a função sacralizadora que a demarca, é sempre aparentemente representação de um apartheid, de um domínio que exerce uma soberania exclusiva e excludente.

Seria assim se não houvesse muitas outras variáveis em jogo que a teoria nos ensina como reconhecer, apesar da sua visibilidade não manifesta, variáveis que tornam o objeto li-terário – reconfigurado dentro de uma metaforologia político-social – um território de muitos conflitos. Um exemplo decorre do “estado de exceção” que instaura a prática lingüística e, portanto, a literatura também, pois, de acordo com Paolo Virno, a aplicação de uma norma contém sempre um fragmento de “estado de exceção” (VIRNO, 2006, p. 11). Virno aponta a pre-sença de outras dimensões da história na práxis social como, por exemplo, a meta-história, ou o invariante biológico, que fazem com que, instalando-se em um determinado pseudomeio derivado da práxis social e política e em fase de transformação, a história natural acaba coincidindo com a história de um estado de exceção (VIRNO, 2003, p. 169).

Nesse horizonte de dimensões múltiplas, então, é sem-pre possível pensar em outra história literária e como a obra oferece sempre rupturas que transcendem a pura intenciona-lidade do autor. Poderíamos admitir, aliás, para proporcionar uma metáfora comparativa, que a obra literária funcionaria como a fotografia, assim como se define na clássica leitura de roland Barthes (A câmara clara). Lembramos os dois elementos co-presentes, descontínuos e heterogêneos, que poderiam ser repensados de acordo com os conceitos estruturais – sempre de Barthes –, ou seja, o studium e o punctum. O primeiro é codificado e decorre do gosto, da expectativa, da participação do espectador (do leitor) em relação ao objeto e, no caso da literatura, o fato de se construir justamente como tal, a partir de um código, duma tradição, dum gosto. o segundo, o punctum, não codificado e in-codificável, é o que quebra a superfície do studium, e é justamente trauma, ferida, a fatalidade que pelo objeto fere o espectador (o leitor), ultrapassando a própria intencionalidade do autor. Por sua presença se modifica a leitura. Pode-se alegar que o efeito do punctum já está, por exemplo, precocemente presente, no romance maduro de Machado de Assis, na falsa ausência da representação do escravo. tal abstencionismo machadiano, na verdade, é representação dos vácuos de representação. Portanto, as omissões acabam funcionando como punctum para o leitor (embora sua intencionalidade encoberta pela forma literária esteja fora de discussão).

Se quisermos, então em síntese, iconizar a questão, o pro-blema, então, é o silêncio, o fora, a dimensão irrepresentada ou subrepresentada do oco e do vazio que a fissura do poder impede de enxergar. A voz (o corpo), clamando no deserto da exclusão

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como produção biopolítica de um domínio que se canoniza, é a que o pós-estruturalismo tem procurado resgatar, pela hipo-teca duma linguagem que é sempre excesso ou defeito, onde o silêncio é fundador das possibilidades e impossibilidades da linguagem.

Mas eu quero ficar fora dos discursos consagrados e, em de-bate, recuar a uma obra muito menos explicitamente valorizada e que, pelo contrário, representa ainda um instrumento potencial-mente extraordinário e ainda pouco utilizado. Refiro-me a um caderno “especial” dos Quaderni del carcere de antonio Gramsci, o nº 25 de 1934, com o título suprendentemente euclidiano de “ai margini della storia (Storia dei gruppi sociali subalterni)”. o caderno fragmentário de Gramsci é interessante na perspectiva de repensar também uma história descentralizada dos grupos dominantes. Gramsci observa que a história dos grupos subal-ternos é necessariamente “desagregada e episódica” (GRAMSCI, 1995, p. 2283) e, para a elite, os elementos desses grupos sempre possuem algo de “barbárico e patológico” (p. 2279). Uma história à margem da história passa pela valorização de cada rasto de iniciativa autônoma dos subalternos por parte do historiador integral (p. 2284) e por um uso original de fontes indiretas que inconscientemente registam as aspirações elementares ou pro-fundas dos grupos subalternos (p. 2290).

De uma leitura seletiva (BUTTIGIEG, 1999, p. 30-31) da subalternidade gramsciana se articula o âmbito crítico do gru-po indo-inglês dos Subaltern Studies, que reelabora um aparato conceitual a partir de esquemas próprios do grupo de estudos formado em Delhi por Ranajit Guha. Tais esquemas decorrem de uma crítica dos modelos historiográficos, tanto de cunho colonialista como de matriz nacionalista que tinham omitido, por interesses diferentes, as tentativas insurrecionais das massas rurais. Como observa Edward Said – na introdução da primeira antologia de estudos subalternos, organizada por Guha e Spivak –, a principal lição que se pode extrair da leitura gramsciana, é que, como já vimos, onde há história há classe. Desse modo, o subalterno não surge como um absoluto, mas, sim, de uma articulação histórica – ou seja, de uma relação de dominação coercitiva ou ideológica em relação à classe dominante ou he-gemônica (SaID, 2002, p. 20).

tal abordagem inaugura, de qualquer modo, uma pers-pectiva, por assim dizer, “trágica” sobre a história, ou seja, a necessidade de proporcionar um resgate –talvez impossível – de narrações não hegemônicas desprovidas substancialmente de rasto historiográfico, mas, ao mesmo tempo, mutiladas de apegos documentários ou testemunhais sobre os quais se constroem contra-narrativas. Desse ponto de vista, é forte, nos estudos su-balternos, a preocupação meta-histórica de redefinir, através de um alto índice de contaminação interdisciplinar, um paradigma

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indiciário capaz de dar conta, desconstrutivamente, das histó-rias submersas não narradas e problematicamente narráveis. Trata-se, afinal, como sempre Said observa, de um conhecimento suplementar que preenche vácuos, omissões e a ignorância de toda experiência da resistência indiana ao colonialismo (SAID, 2002, p. 24), integrando, portanto, parte dos silêncios lacunosos das narrativas coloniais ou nacionais.

O subalterno seria, pois, o silenciado pela história oficial, quem não tem condições de produzir discursos e cujo rasto longínquo de voz pode ser escutado só pelo discurso da elite e, portanto, permanece irrepresentado.

É fundamental, nessa perspectiva, pela sua dinâmica corre-tiva, a contribuição de Gayatri Spivak, que pode ser epitomizada na pergunta, provocatória e trágica, do título da versão de 1988 do ensaio famoso e polêmico “Can the subaltern speak?”, (“Pode falar o subalterno?”). Na sua mais radical versão originária, a ensaísta chega a definir um conceito operacional extremamente interessante que diz respeito ao subalterno, partindo do silêncio que o institui como “ausente da história”. Para Spivak, de fato, a categoria de qualquer modo heterogênea e diferencial do subalterno não poder falar, é como desvocalizada de qualquer discurso, no quadro dominante da violência epistêmica. Nessa chave, é interessante notar como o subalterno se define ontologi-camente por um vazio de representação, pelo seu silêncio entre as vozes da história. Aliás, se o subalterno falasse, de certo modo perderia sua condição, saindo daquele estado de objeto de uma representação vicária constituída pelos aparatos de dominação. aqui são as categorias próprias de representação que são postas em discussão e recolocadas em jogo, com um exercício próximo, se quisermos, da crítica trágica da testemunha da pós Shoah, que radicaliza a reflexão sobre a própria representabilidade da experiência historicamente destruidora do trauma extremo.

O silêncio não se quebra, mas, pelo contrário, se duplica quando a representação se torna vicária por parte da outra voz, a do autor.

De todos os ângulos, em suma, estamos plenamente no silêncio fundador do subalterno de que fala Spivak, em que o “ventriloquismo” – postiço, aliás, ou para dizer melhor, feti-chístico –, como o define com uma bela imagem (SPIVAK, 1988, p. 267), se torna um armamento de outras classes e discursos, descendente essencialmente das ambigüidades da representação que remetem sempre, como ela precisa, para um duplo, ancípite significado. Por isso, toda representação, para produzir seus efei-tos – a representação é, lembremos, também um ato performativo (ISER, 1987, p. 218-219) – deve sempre refletir sobre si própria, sobre seus modos, devendo ser, portanto, meta-representativa. As partidas dobradas, escorregadias, de fato, situam-se entre a representação em sentido político (falar por – vertrenten) e a

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representação no sentido estético como re-apresentação (falar de – darstellen). E a confusão entre os dois campos aprofunda a desvocalização do excluído e a representação se torna, assim e também, pelos artífices providos das melhores intenções, repre-sentações de “si própria em transparência” (SPIVAK, 1988, p. 270), isto é, amplificação e não redução do silêncio do subalterno.

Pensando na literatura brasileira, a obra que mais contribui para fundar o subalterno a partir do silêncio do excluído, do ”outro” massacrado, que é pelo contrário a rocha viva denegada da nação, são Os sertões de Euclides da Cunha.

Na Bahia antes, e na escrita depois, Euclides tem um vis-lumbre excepcional – biopolítico, diríamos. No essencial, apre-ende que a violência do extermínio exibe uma outra dimensão em jogo em prol da dominação: a introdução de uma cesura fun-damental na reconfiguração (não coextensiva) da relação entre espaço e poder, que separa povo e população, capaz de transformar em corpo biológico, portanto expulsando-os do corpo político, grupos de excluídos no âmbito da soberania, fragmentando-se a nação justamente no plano da vida. Isso faz emergir o aspecto pavorosamente moderno da operação militar na Bahia, o arse-nal sofisticado utilizado para apagar o resíduo insubordinado e arcaico, a substância biopolítica, poderíamos dizer, absoluta, o perfil do excluído como última fase da produção biopolítica que pode ser isolada no continuum biológico da nação.

Seu gesto produz um efeito duplamente histórico: por um lado, transforma o trauma em modo de ler a história nacional que não resulta assim, como até poderia parecer, esvaziada de historicidade, mas que, pelo contrário, se pode historicizar em uma contra-história, problematizando os silêncios, os vazios, as desvocalizações da história nacional. Por outro lado, tal reescrita histórica do massacre, nessa moldura, contribui para fundar literária e politicamente o subalterno.

N’Os sertões, no hiato do lustro que separa a cena traumática de que Euclides é testemunha da publicação da obra, algo muda na configuração do sertanejo sacrificial: se, de fato, nas reporta-gens enviadas de Belo Monte constam entrevistas e diálogos com os rebeldes, em Os sertões, pelo contrário, Euclides atua através de uma espécie de desvocalização. Os sertanejos falam pouco. São como que silenciados, fora algumas exceções (como a do acólito do Conselheiro, Antônio Beato, o Beatinho) que, como tal, mes-mo por função e características, funcionam. A desvocalização é significativa e parece se inscrever naquele silêncio fundador do subalterno. Isso traz à tona um primeiro efeito relevante do gesto historicizador de Euclides, fundando, de fato, a categoria do subalterno na cultura brasileira e instituindo-a através do deserto e do silêncio. Em suma, Euclides desloca o problema da história não tanto no conteúdo, mas no modo como ela deve ser construída.

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Nesse sentido, Os sertões, em sua aparentemente híbrida construção, proporcionam não só a fundação de uma história de classe do ponto de vista não hegemônico, mas a do vencido, de quem é derrotado e cujo corpo brutalmente é destruído. a obra também revela uma preocupação profunda com os problemas da representação, sobretudo com uma representação que vingue o deserto da barbárie moderna.

aqui a história do ponto de vista do dominado pode en-contrar uma sua paradoxal e extraordinária faculdade, fazendo com que o subalterno possa produzir uma representação. Isso ocorre, de modo complexo, pelos corpos degolados e humilha-dos que se tornam figuralmente vozes (murmúrios, rumores de fundo, de rastos vocais que resistem ao apagamento): o seu silêncio ostensivo emerge como verdadeira presença dos vazios da história e das representações consagradas.

Sempre Spivak, na revisão que realiza dez anos depois do ensaio de 88, em finais da década de 90, A critique of postcolonial reason, vira drasticamente sua posição com um caso concreto e mostra como, ainda que subsistam todos os vazios de repre-sentação dos subalternos, o subalterno pode falar. Fala através de textos outros e complexos, escrevendo com seu próprio corpo, falando além da morte, tornando seu corpo – como observa Spi-vak, tirando e adaptando o adjetivo da reflexão de Derrida sobre atos lingüísticos de Margens da filosofia (DERRIDA, 1997, p. 413) – “grafemático” (SPIVAK, 2004, p. 259). Spivak, começa por estudar, no ensaio, o rito sati, ou seja, a auto-imolação da viúva que, por sua condição de mulher, se faz o subalterno por excelência, se-gundo a mesma Spivak, na pira em que arde o corpo do marido. A seguir, evoca o suicídio, em 1926, em Calcutá Norte, de uma moça de 16-17 anos, Bhubaneswari Bhaduri, que foi encontrada morta enforcada. Imediatamente, a idade e as circunstâncias induzem a pensar em um suicídio por uma gravidez indesejada e ilícita, mas Bhubaneswari suicida-se justamente no momento do ciclo menstrual. anos depois, sua irmã encontra uma carta, em que a suicida revela sua militância política na luta armada pela independência indiana: tinha recebido ordens de matar um político, mas, tendo falhado o atentado, para não expor ao risco seus companheiros, resolve se matar. Pelo seu gesto, observa a crítica, Bhubaneswari reescreve o texto social do suicídio sati em chave interventista. através do gesto da deslocação (o período menstrual que constitui a inversão do interdito, porquanto a mulher não se pode imolar nesse momento impuro) subverte, pelo seu gesto, os textos hegemônicos de exaltação do sati da tradição e é essa circunstância que induz Spivak a rever sua posição, com uma inversão drástica e radical: o subalterno pode falar (SPIVAK, 2004, p. 317-318), pois, ainda que só de um certo modo, sua voz pode ser “interceptada” e escutada.

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A importância de ler o silêncio, de escutá-lo e repensar a linguagem não como fala, mas como escuta de línguas impos-síveis, como os dos corpos grafemáticos, coloca no centro da cena uma obra, canonicamente marginalizada, mas para mim fundamental para definir uma relação outra entre história lite-rária e poder, que também traz à luz as vozes interditadas dos subalternos escravos, no contexto oitocentista da Casa Grande, antes da abolição. trata-se de um livro não muito acessível nem sequer no Brasil (está esgotado já há alguns anos e com pou-quíssimas reedições): A menina morta, obra publicada por um romancista anômalo, Cornélio Penna, em 1954. O romance foi traduzido para o francês há algum tempo e a edição portuguesa saiu recentemente em Portugal.

Em A menina morta, como no ensaio de Spivak, ainda que não no centro da “cena muda” está o presumível suicídio de Florêncio, escravo mulato, filho do senhor e de uma escrava. Quando lhe morre o pai biológico, a mulher do senhor em vez de alforriá-lo, vende-o por vingança ao proprietário da fazenda. O pano de fundo principal do romance é o Grotão, nas plantações fluminenses. Aqui o escravo é encontrado misteriosamente en-forcado, mas na realidade aquilo que a narrativa deixa entender –sem dizer – é que se tratou, pelo contrário e provavelmente, de um assassínio, cuja razão é e ficará totalmente desconhecida.

Nesta narrativa melancólica e lutuosa sobre o patriarcado rural escravocrático, o leitor do romance lento e aparentemente estagnado, se encontra imerso numa experiência comum aos outros habitantes da Casa Grande: a interdição sistemática a todo tipo de informação. É ela que estabelece a condição de domínio em que se encontram mergulhados os familiares ou os agregados da Casa Grande, os escravos e justamente também o leitor que não conseguirá obter mais do que fragmentos muito parciais de uma verdade sempre mais fugidia e talvez definitivamente irrecuperável.

Mas este efeito de real que une o leitor à matéria narrada é apenas uma das multíplices características do romance. a histó-ria que parece encravada, repetitiva em torno de um movimento cíclico, justamente estagnante, roda em torno da elaboração de um luto, a morte da sinhazinha do Grotão, precisamente a menina morta. É um luto que parece reunir todos, senhores e escravos, e que parece possuir um “significado legalizado” (COSTA LIMA, 1989, p. 264), ou seja, funcionar quase como um mito comunitário, holístico. Trata-se apenas de uma aparência, porque o clima opressivo da Casa Grande mostra a ameaça iminente de uma insurreição de escravos.

O enredo é extremamente exíguo. Depois do funeral da sinhazinha, a outra filha Carlota é obrigada a retornar do reino para a fazenda, porque se deverá casar, por ordem paterna, com o filho da latifundiária vizinha e, deste modo, salvar a propriedade

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da crise. Mas a “substituição” não funciona. Carlota pronuncia-rá um duplo não: um não ao casamento, mesmo tendo tentado aceitar as leis não escritas do patriarcado que a queriam esposa dócil às ordens do pai e do marido, e também à “propriedade” e ao patrimônio familiar, decidindo, com um gesto surpreendente e autônomo, muito antes da abolição de 1888, libertar todas as centenas de escravos do Grotão.

Para além do enredo mínimo e disseminado por centenas de páginas, trata-se de um romance sobre o silêncio, aliás, sobre os silêncios da Casa Grande (MIRANDA, 1983, p. 69): o silêncio autoritário do Comendador; o silêncio na relação entre ele e a mulher; entre ele e os filhos aos quais pede obediência cega; entre ele e os membros da família patriarcal. O romance enfoca, sobretudo, o silêncio dos subalternos, ou seja, dos escravos, a emergir com força. E não é tanto ou apenas a representação do silêncio, mas é a representação das interdições, ligadas ao poder e ao exercício de uma exceção soberana plenamente funcional no espaço asfixiante e opressivo da Casa Grande, a definir-se, também, nos mecanismos recônditos de funcionamento do es-tado permanente de excepção que tudo domina. Em suma, uma narrativa sobre como o subalterno não fala. Como é evidente em algumas ocasiões extraordinárias (num romance que se abre com a voz de uma velha negra), há brechas, tal como se projetam na imagem fortíssima da velha escrava Joviana que fala à Sinha-zinha, mostrando uma dupla boca, uma boca escondida atrás da boca silenciosa, aliás, emudecida (PENNa, 1958, p. 1136) ou, também, nas frases desconexas entre sentimentos e quase razões da outra escrava Libânia, cujas palavras afundam no abismo de sentidos da comunicação impossível:

Compreendia confusamente não poder ela própria explicar nada, pois não poderia tirar a verdade das coisas ouvidas, do visto e sentido guardados em sua memória, mas que se a Sinhàzinha a escutasse tudo se tornaria claro e teria enorme significação, muito acima e além de suas forças. Estava, pois diante do desconhecido, do abismo que ameaçava devorá-lo e não poderia evitá-lo [...]. E pôs-se a falar, deixando correr livremente o afluxo de lembranças vindas à sua boca, em amálgama de coisas diferentes, ditas de forma incompleta e as mais das vezes sem coesão. (PENNA, 1958, p. 1185)

Portanto, a representação supera os limites impostos pela duplicidade escorregadia da representação do excluído, tornan-do-se representação dos vazios da representação. Com a imagem fortíssima e surpreendente que nos pode parecer paradoxal, mas é o resultado, pelo contrário, de um exercício testemunhal sutil e profundo, do terror – literalmente – que atinge os escra-vos – emudecidos, assustados, com os olhos esbugalhados e desconfiados – no momento em que Carlota lhes dá uma liber-dade absolutamente inesperada, o que transforma o contexto, já

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em si tenebroso, das senzalas arquitetonicamente contíguas às câmaras de tortura, numa paisagem fosca de ruínas.

O romance se torna o instrumento que traz à luz contra-histórias subalternas que se podem assim re-vocalizar nos corpos ou nos silêncios dos escravos. Sobretudo, como viu Luiz Costa Lima, configura-se uma contra-mitologia da Casa Grande & senzala de Gilberto Freyre e, ainda que distinguindo entre a especificidade de um ensaio e aquela de um romance, desarticula com um gesto forte a remitificação freyriana da mestiçagem como lugar de conciliação seminal da Nação, onde o negro era uma parte constitutiva fundamental, como produto do espírito de plasticidade e confraternização do colonizador (COSTA LIMA, 2004, p. 16-18). Tudo absolutamente falso, a ser desmistificado ainda que por uma outra criação mitíco-histórica. Sabemos, pela reflexão atual sobre a aporia do testemunho, que a possibilidade de testemunhar decorre de um paradoxal ato de autor de uma impossibilidade de testemunhar e é isto que ocorre ao subalterno negro a partir de um romance marginal “pós-modernista” – além do mais, de um autor discriminado pelo próprio Modernismo (lembre-se o famoso rótulo de Mário de andrade que considerava, em resenha de 1939, os de Penna “romances de antiquário”).

De qualquer modo, o subalterno fala. Apesar das historio-grafias literárias, ou pelos rastos problematicamente detectáveis dentro delas. A sua é uma história que, tal como diz Gramsci nos Quaderni, se coloca à margem da história, história esta, a dos grupos subalternos, necessariamente dilacerada e fragmentária. o problema, como bem se depreende da deslocação dos estudos subalternos para a América Latina, se inscreve em uma mudan-ça radical da escrita para a escuta dos rastos de corpos e vidas discriminadas e excluídas, desprovidas de peso historiográfico que deixam só flébeis escritas, duvidosos marcos, anônimos despojos. Haverá um dia uma história literária capaz de escutar os inúmeros e ruidosos silêncios que se disseminam nela?

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AbstractCan we rethink the space of literary history, which structures itself, as a canon, in terms of force and power, introducing the concept of the subaltern’s empty representation in order to question power and bio-power influence on literature? Such a problematic act, limited to some case studies (no-vels as Euclides’ Os sertões and Cornélio Penna’s Menina morta) – although with the wider aim to re-think new edges for an antagonist literary historiography –, approaches the complex critical question, deepening the engaged attempts carried out in order to critically incorporate the “homo sacer”, the excluded. It is clear that, in many cases, the intent of redemption have clashed with the tragic impasses of the unviablility of repre-sentation, except for the effort to “listen” to the syncopate voice of resistance that remains in a text. At the same time, it is important to assume, from such a perspective, the relationship between history and natural history, a link that, in spite of its internal tensions, may facilitate the emergence of residuals of power relations involved in any representation.

Keywords: Subalternity. Literary history. ‘Graphematic’ bodies. os sertões. a menina morta.

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Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos

romances de João Paulo Borges CoelhoSheila Kahn

Recebido 18 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

ResumoO pós-colonialismo de expressão em língua por-tuguesa tem sido assumido como elemento hege-mónico, no pensamento e diálogo entre as várias ex-colónias portuguesas em África. Contudo, no meu entender, é urgente retomar epistemologi-camente a questão pós-colonial, equacionando-a, de um modo contextualizado, aos loci culturais, idiossincráticos, históricos e sociais do objecto de trabalho. No presente artigo, pretendo desafiar a anterior hegemonia, ao propor que existe, indubi-tavelmente, um pós-colonialismo moçambicano, ainda que de língua portuguesa. Este esforço de romper muros, de compilar e analisar narrativas, memórias e manifestações de um caminhar pós-colonial moçambicano pode ser comprovado com os romances de João Paulo Borges Coelho, nomea-damente, As visitas do Dr Valdez, Crónica da rua 513.2 e, mais recentemente, com Campo de trânsito. Resta-nos, então, partindo de uma leitu-ra e análise contextualizadas, reflectir sobre que trilhos, margens, memórias e rostos emergiram de um Moçambique que caminhou ao encontro da sua nação, tão como sonhada e almejada pelo poeta José Craveirinha.

Palavras-chave: Memória. Narrativa. Pós-colonialismos. História e ficção.

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“Tu lias e não me deixavas aprender a ler também. Eu, pelo meu lado só os podia saber da tua boca, traduzidos, simplificados.

Não tinha acesso a eles tal como eram fabricados, o mais a que podia aspirar era à tua versão.

Ah, mas agora não! Agora é tarde. […] Não quero a tua condição.

Quero antes preservar a minha quero-a também para ti, nesta nova igualdade.” (João Paulo B. Coelho, 2006, p. 51)

“A literatura liberta mas prende, também, as palavras pesam muito.”

(João Paulo Borges Coelho)

“Mergulho no sangue e no perfume dos navios Há uma frase que ondula como a cabeleira do vento

e um frémito de fibras sob uma porta enterrada E as palavras têm dentes que atravessam os ossos.”

(antónio ramos rosa)

1. João Paulo Borges Coelho, seus romances e pontos de vista

Escrever e pensar os romances de João Paulo Borges Co-elho – doravante JPBC – é, confesso, uma ambição desta leitora embevecida pela sua invenção literária.1 Para a realização deste artigo optei por palmilhar o caminho da subjectividade do homem-escritor, procurando discernir as suas reflexões de teor filosófico, humano, epistemológico e ontológico, sem nunca esquecer o seu lugar de enunciação – Moçambique – e a sua voz própria. Por conseguinte, inicio esta digressão analítica dos romances de JPBC, partindo de uma entrevista-texto,2 e de algumas contribuições teóricas que me ajudaram a ler, de modo mais lúcido e transparente, As visitas do Dr.Valdez (2004), Crónica da Rua 513.2 (2006) e, finalmente, Campo de trânsito (2007).

Partindo da espontaneidade – ainda que parcialmente estruturada – de uma conversa entre mim e JPBC, emergiram, durante nosso diálogo, questões que permeiam sua prática literá-ria e refletem as preocupações deste escritor e historiador. Dessas questões ressaltam, sem discrição, reflexões sobre o individua-lismo em confronto com o colectivo moçambicano; a hegemonia da História como paradigma soberano com legitimidade para criar, compilar, estruturar e interpretar as identidades quer no plano nacional, no social, e mesmo no das subjectividades; o papel da memória como acção performativa capaz de reclamar e reinventar – no espaço da narrativa ficcional – as margens, os silêncios, o modus vivendi daqueles moçambicanos e moçambica-nas que viveram os ciclos da História colonial e pós-colonial do país e, finalmente, o problema de uma modernidade africana, que reflicta, na opinião de João Paulo Borges Coelho, que trans-crevo, em palavras literais:

[a] questão da individualidade, que é uma questão muito importante, porque eu acho que há uma certa modernidade

1 Como observa JPBC: “eu acredito muito na distinção que o Steiner faz da invenção e da criação; e, nessa his-tória do escritor como um deus falhado, como um criador que faz fi-guras, que gostaria de criar figuras, e tem de se limitar a inventá-las” (KHAN, 2007, p. 2).2 Entrevista realizada e conduzida pela autora deste trabalho, no dia 19 de Julho, 2007, em Sines, Portugal

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em África que está por fazer. E ela passa por uma discussão profunda do papel do indivíduo africano, porque já falámos demasiado do colectivo, do passado, de origens. É altura de falarmos de presentes, de condições, e de indivíduos, no sen-tido de desdramatizar aquilo que se fala em todo o mundo: da África-museu, da África-passado, em que cada africano anda com uma estrutura de ligações genealógicas atrás. Isso é completamente absurdo. (KHAN, 2007, p. 1)

Na tessitura da composição das realidades fenomenológica e ontológica dos seus personagens, projeta-se a preocupação do escritor em plasmar uma subjectividade própria, que não se deixa dominar ou comandar pela arquitectura histórica do seu próprio lugar de enunciação e de um certo modo de pensar o exercício literário. De facto, é neste sentido que a subjectivida-de na escrita dos romances de JPBC reflecte as palavras da sua “voz própria” como homem-escritor e cidadão, já que como ele afirma

eu vou escrever, eu vou falar com a minha própria voz, […] motivações que têm a ver, também, com o facto pessoal de eu ter chegado à conclusão que não me exprimia só pela História. […], pessoalmente, eu convenço-me que uma parte emocional e estética tem de funcionar sem ser domada, há uma parte irracional, até, que tem de funcionar sem ser domada. (KHAN, 2007, p. 1)

Compartilhando dessa percepção sobre o papel da subjec-tividade como húmus necessário para a disciplina literária, José Júnior salienta que

a verdade não é única e o sujeito está sempre submetido pela linguagem, qualquer que seja o discurso que essa mesma linguagem venha a articular. Além disso, a ficcionalidade concede ao discurso uma liberdade selvagem e ameaçadora a todo o sistema de sentido que zela por sua própria “verdade”. (SOUSA JÚNIOR, 2000, p. 29)

É neste caminho de coincidências teóricas sobre como a literatura abre, através de uma liberdade íntima, espaço para novos sentidos, que Marta Pragana Dantas sublinha que a vo-cação literária é um meio de se “deslocar os regimes de sentido” (DANTAS, 2000, p. 3), ao desafiar os silêncios e murmúrios das normas sociais, mas, acima de tudo, da hegemonia da narrativa histórica proposta por uma meta-narrativa da História nacional de um país.

Por conseguinte, nesta caminhada perpassada pelo desejo literário de libertação da subjectividade, surge o gesto urgente de desafiar a narrativa do colectivo histórico colocando-a em tensão com um individualismo histórico. o locus de invenção dos romances de JPBC se reflete no acto de esculpir a realidade histórica de um país com as suas águas subterrâneas, com as vidas e trajectórias daqueles indivíduos, que deixaram sombras,

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ecos, transições, humanamente, escritas na paisagem dos ciclos colonial e pós-colonial de Moçambique. No entanto, tal locus vai além, pois, no entender de João Paulo Borges Coelho, “são motivações universais” já que – transcrevendo sua fala – ele reitera:

não estou aqui a fazer um esforço, para fazer uma literatura que – como alguns colegas – represente Moçambique, a nossa literatura, a literatura do nosso povo, não é nada disso, é muito mais desdramatizada, é a minha literatura privada. (KHAN, 2007, p. 2)

No fundo, o escritor quer fazer uma literatura que venha recuperar a presença, os cheiros, os hábitos das pessoas que sa-íram, que foram arrancadas, que fugiram, e/ou foram expulsas. tenta engravidar estes “presentes” com uma forma narrativa que José Júnior nomeia de “narrativa visual e auditiva das sombras e ecos que se sucedem” (SOUSA JÚNIOR, 2000, p. 31), porque, indubitavelmente, os universos humanos presentes e ausentes “deixaram cheiros e sombras lá dentro” (KHAN, 2007, p. 3), entenda-se, dentro do paradigma oficial histórico moçambicano. Neste patamar meta-narrativo, as diegeses de JPBC discutem e desafiam o monopólio do Poder, impondo-lhe a vontade legiti-madora de um sujeito protagonista de uma outra história. Deste modo, os universos narrativos em As visitas do Dr.Valdez (2004), Crónica da Rua 513.2 (2006) e Campo de trânsito (2007) organizam-se em torno de uma atitude de igualdade e de justiça humana face à premência de lançar âncoras em uma História dos “calados”, nomeando-se as margens, os silêncios, as fragilidades de todos aqueles que testemunharam os ciclos, as transições, as mudanças desta nação em construção que é Moçambique.

No decorrer da nossa entrevista, JPBC observou que a memória social e colectiva entrelaça-se a um processo de

estruturação de uma identidade nacional, mas tem, também, outra vertente que é a da legitimação do seu poder, sendo detentora da narrativa, de uma espécie de meta-narrativa da História, que é a luta pela libertação, ela legitima o seu poder, e isso passa por um arrancar de todo o passado […] de demo-nizar todo um passado colonial. (KHAN, 2007, p. 3-4)

Esta acção de demonizar o passado colonial, é toda ela protagonizada por personagens que fertilizam a memória so-cial com a sua experiência individual, com as suas percepções e interpretações mais subjectivas do mundo social circundante e em transição. De facto, a transição, quer política, social, econó-mica, cultural, quer humana, nas diegeses de JPBC, assume-se como um elo de contrastes, de sinais que projectam, claramente, a posição epistemológica deste escritor, precisamente no que diz respeito à denúncia de uma tentativa política de estabelecer uma ruptura cronológica, social, mental e política entre os tem-

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pos colonial e pós-colonial. tais cortes resultam de estratégias políticas que, no entender do ficcionista, faz do entendimento do presente algo vulnerável, propondo como que uma visão míope do mosaico histórico moçambicano, nas suas perspectivas diacrónica e sincrónica. Isto se dá porque, segundo João Paulo Borges Coelho, o prefixo pós – ou, por outras palavras, a ruptura com o tempo colonial – relega para segundo plano momentos imprescindíveis para se documentar, de um modo justo e perti-nente, a narrativa histórica da nação moçambicana, já que, nesse rasurar, se perde o conteúdo verdadeiro e essencial da memória social, especialmente na geração moçambicana mais jovem. Esta, como se sabe, não viveu a experiência directa e imediata da guerra colonial e, portanto, para ela não faz sentido falar-se de um pós-, mas de um constructo histórico em evolução. Nas palavras do escritor, surge clara a intersecção entre a memória social e o apagamento ou esquecimento, estratégico e político, desse outro tempo colonial, que é premente não esquecer, apagar ou sonegar, mas, bem pelo contrário, respirar. Diz ele:

Para mim, é chocante a ruptura que a independência operou, é um bocado chocante esta postura da tábua rasa. Há aqui um processo que é perverso, e eu não culpo, não se trata de culpar a FRELIMO nisso, trata-se de tentar entender, porque a questão da memória interessa-me do ponto de vista literário, enquanto produtor, do ponto de vista histórico, enquanto historiador. (KHAN, 2007, p. 3)

Nos romances de João Paulo Borges Coelho, existe uma preocupação visível e precisa em desconstruir a memória co-lectiva e social, proposta pelo Poder como uma meta-narrativa da História, partindo de um princípio ético de que outras me-mórias existem, e que fazem parte de um cotidiano presente do país. Contudo, ao discutir sobre esta questão polémica da não-memória social relativa a determinados ciclos, ou contextos históricos, JPBC é acutilante ao demonstrar os riscos, os perigos, e os “pontos cegos” (MEDEIroS, 2007) da paisagística mnemónica social da nova geração, e de todos aqueles indivíduos que não tiveram a experiência imediata ou directa da luta de libertação, realçando que:

Portanto, aqui não há cinzentos, isto é tudo um elo de contras-tes, o passado colonial não existe, existe nas zonas libertadas, que a FRELIMO traz para dentro. Agora, se nós olharmos de uma outra perspectiva, oitenta por cento ou mais da população moçambicana, em 75, não tinha experiência direta da guerra, a guerra estava confinada às zonas do norte. Há aqui oitenta por cento de moçambicanos que ficaram sem passado, porque o passado não existe. […] grande parte dos meus alunos já não tem experiência colonial, e pior do que isso, não tem experi-ência e não tem memória social, no sentido não da memória directa, mas da memória colectiva. (KHAN, 2007, p. 4)

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ao alertarem o leitor para este mar morto de memórias que se apagam, ou que política e estrategicamente são silenciadas, os universos narrativos de JPBC reencaminham a leitura para um espaço aberto, no qual emoções, sentimentos, introspecções dos personagens servem como ponte para realizar aquilo que o escritor tão esmeradamente descreve em Crónica da Rua 513.2: “essa louca ponte entre mundos diferentes, entre passado e presente, entre intenção e acção, entre sonho e padecimento até – uma forma sagaz de nos levar a desnudar o verdadeiro sentido das coisas […]” (COELHO, 2006, p. 15). Passemos, então, a esse “desnudar”, esse “respirar” do sentido não somente das “coisas”, mas do dicionário das narrativas, dos rostos e das manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho.

2. Uma narrativa de memórias e reminiscências – Diálogo com As visitas do Dr. Valdez

Diz Nélida Pinõn que sem as narrativas, ainda que estas sejam romanceadas ou ficcionalizadas, “talvez, não soubésse-mos contar a nossa própria história” (apud VASCONCELOS, 2005, p. 16-18). ao mergulharmos no romance As visitas do Dr Valdez vem à pele da nossa leitura e dos nossos sentidos toda uma arquitectura cujos pilares se reforçam por uma procura de subjectividades, de vozes próprias e mesmo de um indivi-dualismo que não abdica do histórico, pois os contextos sociais, culturais e políticos não têm como ser arrancados da diegese. Neste trajecto literário proposto por João Paulo Borges Coelho, visualiza-se aquilo que ele bem sublinhou, e já aqui citado, ou seja, a necessidade urgente de se criar um espaço aberto para a realização de uma modernidade do Homem africano que ainda está por se fazer. Uma modernidade que esteja disposta a “falar de presentes, de condições, e de indivíduos” (KHAN, 2007, p. 1), e que não afogue estas narrativas subjectivas num todo colectivo histórico e meta-narrativo. Esta reflexão de JPBC aproxima-se de uma outra semelhante proposta pelo historiador José Sobral, quando este último alerta para a gritante existência de uma hegemonia da memória oficial sobre a memória não oficial, já que esta não se alicerça em qualquer tipo de testemunho escrito, estruturando-se tão somente na oralidade partilhada e transmi-tida entre gerações. Segundo o historiador, o silêncio da História “tradicional”, isto é, da História “calada”3 expressa-se

exclusivamente ou quase pela via oral e, na ausência de registo imperecível, as suas recordações [isto é, as dos indivíduos] aca-bam por se desvanecer.4 […] o passado de muitos transforma-se em números, importantes, sem dúvida, mas sem as ideias ou sentimentos que o povoaram quando ainda era presente. (SOBRAL, 2007, p. 2)

3 Esta expressão foi ins-pirada num poema de antónio ramos rosa que, no meu entender, merece ser, aqui, par-cialmente, citado, isto pela empática relação que este poema estabe-lece com os romances de JPBC, que são tam-bém eles narrativas dos rostos e manifestações dos homens e mulheres ‘calados’ na Histórica de Moçambique, mas, que nem por isso deixaram de ter a sua marca, a sua presença, ainda que dis-creta, na vida da nação moçambicana:“A pátria é a fantasia de pura verdade/ Ela não existe é a cons-ciência viva/ e se tem um corpo é um corpo que se levanta/ como um volume sobre a sua vontade de cons-truir o mundo/ Quem a constrói são os que estão calados [sublinhado meu]/ ou que só dizem as palavras essenciais/ São eles os constru-tores da consciência livre/ e do claro espaço da pátria soberana” (roSa, 2001, p. 15).4 Veja-se sobre este apa-gamento da memória, ou, a insuficiência dela, o brilhante ensaio de Irene Pimentel, sob o título “A memória pú-blica da ditadura e da repressão’ (PIMENTEL, 2007, p. 3).

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Em As visitas do Dr. Valdez, João Paulo Borges Coelho par-tilha com o leitor a vida de três personagens, Sá Caetana – A Senhora Grande –; Sá Amélia – Maméia – e Vicente, o criado destas duas irmãs, deslocando-se dos seus centros vivenciais – a Ilha do Ibo e o Mucojo – para retomarem as suas trajectórias na cidade da Beira, porque os tempos são, agora, outros. tempos de transição, de uma futura pátria moçambicana que pugna para se libertar do colonialismo português. É curioso que, ao longo da entrevista realizada, JPBC tenha salientado que este seu romance foi um modo de “respirar” e “tentar lidar com essa transição”, de modo a demonstrar que “que se carregava muito do que vem detrás” (KHAN, 2007, p.4). Este romance fala, isso sim, das memórias, introspecções, trajectórias de vida, de nar-rativas de personagens que têm como base vidas verdadeiras e que desestabilizam o repertório de um colectivo mostrado como passivo e estacionário.

o percurso diegético do romance apresenta-nos duas personagens ancoradas a um passado colonial – Sá Caetana e Sá Amélia – que vêem perfilar-se à sua frente uma nova língua sobre o mundo da vida. Sá Caetana, de personalidade forte e autoritária, ergue, no desconhecido universo da cidade da Beira, uma luta silenciosa contra este presente onde já não existe “o mundo velho” (COELHO, 2004, p. 204), no qual as “hierarquias velhas de muitos anos, que pareciam de pedra e cal” (COELHO, 2004, p. 70), não “passavam afinal de pequenos acasos transitó-rios dentro dos quais não cabia o menor vislumbre de lealdade ou reconhecimento” (COELHO, 2004, p. 70). Sá Caetana dedica os seus dias a cuidar da saúde frágil de sua irmã, Sá Amélia, cuja existência inexistente é vivida num sobressalto constante e quotidiano de reminiscências do que, em outrora distante, foi um passado guarnecido de memórias lúcidas e palpáveis. Sá Amélia é já uma habitante de um mundo interior em que os tempos se confundem e se esbatem simultaneamente. Facto curioso é que a diegese mostra ao leitor a natureza ambivalente da jovialidade e ternura do jovem criado Vicente. Se, por um lado, a jovialidade de Vicente desafia o “mundo velho” destas duas senhoras, por outro, é através da sua rebeldia que o jovem criado apóia Sá Caetana, na intenção que ambos têm de trazer do passado o falecido Dr. Valdez, pois ambos acreditam que Sá Amélia recuperará alguma da sua tranquilidade, porque o passado, explica-nos o narrador omnisciente, “apresenta sempre essa vantagem sobre o presente. Por mais exíguo e infeliz, podemos sempre aclará-lo com a aura que quisermos. E esse desejo é tanto mais intenso quanto pior for o presente em que vivemos” (COELHO, 2004, p. 33).

Numa procura de vestir a pele desta presença humana, Vicente vai reavivando um tempo humano, emocional e sub-jectivo já pretérito, através da reconstrução física e psicológica deste mesmo Valdez, ser que volta do antigamente.

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Outrora médico de Sá Amélia, Valdez permite aos três personagens uma viagem, cujo itinerário será realizado como o folhear de um álbum de família. Emerge, deste retorno ao mundo das memórias, um baú repleto de emoções, sentimentos, dúvidas, perguntas em busca de explicações que o tempo ido dos antigos vivos não pôde responder. Apesar do esforço de Vicente, Sá Amélia apercebe-se que já não possui um chão dentro e fora de si, ao intuir que, afinal, Vicente e o Dr. Valdez são a mesma pessoa. Placidamente, reconhece que a narração de si se esgotou, pois calam-se nela as vozes que a guiaram ao longo da sua vida: por um lado, a do corpo físico na sua relação com o mundo dos objectos e, por outro, a dos sentimentos – testemunhos mnemó-nicos das suas lembranças. No final da narrativa, dois destinos se dão a conhecer. Porquê dois destinos? Sá Amélia morre. Vicente acolhe na sua trajectória feita de experiências passadas e presen-tes esse novo mundo, que Sá Caetana rejeita, ao optar por tomar “conta do passado” (COELHO, 2004, p. 98), desse passado que a impele a resistir até ao fim. o seu mundo, “esse grande mundo protector” (COELHO, 2004, p. 43), desabou e, no lugar daquele, instalou-se um outro “mais pequeno, feito de fragmentos mal ligados, de pequenos sentidos separados entre si por um grande vazio” (COELHO, 2004, p. 43-44). Para Sá Caetana, o confronto com o seu processo de desterritorialização cultural, identitária e física torna-se inevitável, porque diz ela: “pertencemos ao mundo velho, não temos o vigor do novo” (COELHO, 2004, p. 204). Desta opção de resguardar este “mundo velho” nasce o projecto da partida, porque, assim, pode proteger-se do esque-cimento de si. Sá Caetana parte para Portugal, um lugar que a voz do futuro lhe adverte ser vivencialmente estranho, pois, no fim, questiona-se: “será que há cardamomo em Portugal?” (COELHO, 2004, p. 213).

3. Toponímia de uma memória silenciosa – Crónica da Rua 513.2

Crónica da Rua 513.2 de João Paulo Borges Coelho, oferece ao leitor uma escrita analítica, íntima e profundamente conhe-cedora dos meandros subjectivos de um novo mapeamento social, cultural, económico e político que emerge no Moçam-bique pós-independência. Dessa realidade transportada para a escrita, resulta uma representação literária debruçada sobre a experiência daqueles homens e mulheres que testemunharam a cartografia quer objectiva, quer subjectiva deste novo projecto de construção da nova sociedade moçambicana pós-colonial. Na entrevista, o escritor revela seu pertencimento a esta realidade por ele ficcionada:

Aquela história [refere-se à rua que serve de toponímia da sua narrativa] nasceu na minha rua. É o meu lugar, eles eram os meus vizinhos, muitos deles são vizinhos inventados, mas

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não deixam de ser meus vizinhos, também, não é? Há vizi-nhos reais, pronto, que deram […] foram o ponto de partida para vizinhos recriados, inventados. E, portanto, aqueles... era tudo a minha gente, gente do outro lado da rua, ou que eu via, ou que eu imaginava. Portanto, aquilo corresponde a um ciclo que é um pouco o ciclo do socialismo […], e as pessoas viveram aquele ciclo, depois saíram, saíram quando as coisas começaram a mudar […], elas deixaram cheiros e sombras […]. (KHAN, 2007, p. 2-3)

Os ciclos de que fala a Crónica de JPBC confirma, de uma certa maneira, a reflexão que o escritor tanto quis propor e reivindicar, através, da sua invenção literária, que passa, como asseverou, “por uma discussão profunda do papel do indivíduo africano” (KHAN, 2007, p. 1). Desta discussão, ou do mergulho nas subjectividades dos que “deixaram cheiros e sombras” surge um compósito narrativo, no qual exercita-se, com um ímpar co-nhecimento, a narrativa histórica e cotidiana de uma rua, de uma toponímia dialogante entre um passado colonial e um presente moçambicanizando-se na sua independência. Esta Rua 513.2 é a morada conturbada, confusa, enfim, o universo dos personagens que se cruzam no tempo, no espaço: uns oriundos dos mundos da diferença racial, social e cultural, que o regime colonial português semeou nos tempos de uma vicejante imaginação imperial, ancorada à “cultura dos lugares certos” (COELHO, 2006, p. 327) – o Inspector Monteiro, o Doutor Pestana, a Dona Aurora –, e outros, que, abraçando-se à euforia desta nova e jo-vem liberdade, renunciam à antiga linguagem da discriminação e da anulação do Outro, ao exigir desta nova ordem vivencial a igualdade entre todos – Filimone Tembe, secretário do Partido Frelimo e sua mulher Elisa, os Ferrazes, os Mbeves, os Nhan-tumbos, os Nhanrreluga. a Rua 513.2 é, também, a narrativa da memória do quotidiano, das angústias, das frustrações, o lugar do não-dito, a voz do

contraponto à memória oficial […] que traz à superfície ou-tras recordações, diferentes ou mesmo contraditórias com a memória pública […] [ que] complementa e completa as fontes escritas, quando traz o vivido dos actores sociais à represen-tação do passado. (SOBRAL, 2007, p. 1-2)

No fundo, este romance serve como registo sociológico, antropológico e psicológico, para se entender como foi sentida, por muitos, quer portugueses, quer moçambicanos, a determi-nação de um povo em ser livre, pois “uns perdiam-se de raiva nesses tempos conturbados, como o Inspector Monteiro e os seus sequazes; a outros – de facto a quase todos – foi a alegria da liberdade que os motivou […]” (SOBRAL, 2007, p. 123). Relembre-se, ao longo desta Crónica, as quezílias entre passado-colonial e o presente-independente, nas figuras do antigo Inspector da Pide, o Monteiro, e Filimone Tembe, secretário do Partido da

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FRELIMO. João Paulo Borges Coelho, esculpe, minuciosamente, uma escrita omnipresente, ao desnudar esta ponte diacrónica - que muitos pretendem esquecer – com o intuito de “desnudar o verdadeiro sentido” (COELHO, 2006, p. 160) da história subjec-tiva de cada moçambicano e moçambicana, pois “os tempos que correm também não ajudam, cada vez mais a revolução tirando espaço às alegrias de cada um para poder espraiar uma alegria só, imensa e colectiva” (COELHO, 2006, p. 145). De facto, ao ca-minhar em paralelo com a trajectória de vida e de identidade de cada personagem, o escritor-historiador prolonga a textura da narrativa, dirigindo-nos para conteúdos constituídos não só de relevantes observações etnográficas, mas, simultaneamente, de atentos momentos de reflexão sobre o que foi a utopia da Revolução Moçambicana. Enfim, ao compor a sua escrita, com tecidos de universos humanos tão próximos de uma visualiza-ção histórica – “a narrativa visual e auditiva das sombras” de que nos fala José Júnior (2000, p. 31) –, e palpável dos tempos do pós-independência, o autor consegue recriar, exumar, e “respirar” o silêncio vegetal a que foi votada esta nação em busca de uma “enganadora luminosidade” (SOUSA JÚNIOR, p. 230). Lumino-sidade que, novamente, é desconstruída, desafiada e cicatrizada no novo e mais recente romance de João Paulo Borges Coelho, Campo de trânsito (2007).

4. Cicatrizes, ruínas e exílios em tempos de transição – Campo de trânsito

Campo de trânsito representa, no meu entender, o romance mais árido de JPBC, pois nele se retece uma personalidade li-terariamente kafkiana. Assim, permanece, neste novo projecto narrativo, um sabor amargo a cicatrizes, ruínas, desterros e exílios, quer territorial, quer identitariamente. No final da nossa conversa-entrevista questiono João Paulo Borges Coelho:

Vamos dar um salto para o ‘Campo de Trânsito’. Sinto que estou na presença de um sonho não cumprido, […], porque o ‘Campo de Trânsito’ parece-me o Niassa, um campo de re-educação, o pós-independência?Quer dizer, havia, por um lado, a necessidade de uma submissão colectiva, mas também, havia uma ignorância em se estar a perceber o que é que se passa, que aparece logo nas primeiras falas do teu personagem Mungau.5

A resposta de JPBC é visivelmente lúcida quanto à sua vontade de imparcialidade política e ideológica, ao referir que

não me interessa estabelecer um diálogo de base política, ou acusando o poder […]. Eu quero, talvez, numa posição filosó-fica, ver ‘o que é que nós criámos aqui dentro?’; ‘o que é que nós pensávamos fazer?’, ‘o que é que nós fizemos?’ (KHAN, 2007, p. 6)

5 transcrição das pala-vras da autora do pre-sente artigo (KAHN, 2007, p. 6).

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Estas são, na realidade, respostas que Mungau, personagem principal do romance, procura subjectivamente responder, ao longo da diegese, questionando-se da sua captura em sua casa, do porquê desse rapto e dessa forçada desterritorialização do seu espaço citadino, ao formular para si próprio, no decurso das primeiras páginas, a seguinte interrogação: “De que será que me acusam?” (2007, p. 14). repetidamente, a mesma questão emerge nas páginas 15, 18,19 e 20 do romance. o lugar para o qual o personagem é transportado, no entender de JPBC, “é o Niassa e não é o Niassa, são os campos de reeducação. Porque, no fundo, é uma questão que eu volto a dizer que não planiei, mas é esta questão do indivíduo – como é que uma pessoa se afirma individualmente?” (KAHN, 2007, p. 6).

Campo de trânsito, desse modo, ficcionaliza o mundo e a experiência de um campo de reeducação, metonímia de uma nação a construir-se numa bifurcação perigosa e nebulosa para os seus cidadãos. Por um lado, encontramos, atravessando todo o texto, um desejo visceral de defesa da modernidade colectiva, representada por um proselitismo de prisioneiros, guardas e do Director do campo, para os quais a colectividade é uma fron-teira humana, ideológica e política, face a todo e qualquer acto de singularidade ou, por outras palavras, de subjectividade que almeje “hostilizar” o espaço sufocante e inóspito do “campo de trânsito”. Este ensejo de modernidade colectiva é, simultaneamen-te, escutada na pele e voz do Professor e do seu prosélito – vulgo prisioneiro 13.2 - deste campo de reeducação. Na realidade, ao menosprezar a posição filosófica do prisioneiro Mungau, segun-do o qual “a colectividade é um corpo só, um corpo que resulta da união de várias singularidades” (KAHN, 2007, p. 75, grifos nos-sos), quer o Professor, quer o prisioneiro vulgo 13.2 estruturam a leitura deste mundo fechado em si, do seguinte modo:

Segue-se uma expulsão de gargalhadas. “A singularidade é uma categoria forçosamente limitada”, diz 13.2. “Portanto, uma união simples de singularidades só poderia resultar numa singularidade que, embora maior, continuaria a ser também ela limitada. Na definição do colega falta um aspecto fundamental, que é o da transformação. Uma colectividade é, isso sim, uma união de singularidades transformadas!”.

“Muito bem, 13.2. Transformadas! Boa definição de colectivida-de”, diz o Professor. “O grave erro em que muitos incorrem é o de manter invariável a singularidade, o de adicionar palavras que não têm um denominador comum”.

Dizendo isto, o Professor estica um pauzinho de giz de cada mão, para concluir: “Está errado, nada há em comum entre o dedo de uma mão e o dedo da outra!”. Depois, estica dois pauzinhos de giz da mesma mão e grita: “Só assim está certo, só assim temos uma colectividade! Dedos da mesma mão, sin-

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gularidades tornadas iguais e erguidas a uma só voz!”. (COELHO, 2007, p. 76, grifos nossos)6

Por outro lado, ganha corpo a luta entre dois paradigmas ontológicos, no qual se espraiam, como inimigos, duas partes. Uma, definida por uma modernidade em que o passado da tradição, da África dos antepassados é relegada para segundo plano e para a qual a construção do presente deve ser encarada de acordo com as necessidades de um projecto meta-político, que é premente criar, como assevera o Professor deste campo de reeducação, “singularidades tornadas iguais e erguidas a uma só voz!” (COELHO, 2007, p. 76). Uma outra parte, sua adversária, para a qual o cumprimento da identidade cultural e nacional deve voltar-se para a revitalização da tradição, a valorização e respeito incontestáveis do passado, do antigamente, venerados pela personagem do Chefe da Aldeia – coordenador de um ou-tro campo de reeducação, o “campo antigo” –, segundo o qual a essência de África, ou, por outras palavras, da sua África sub-jectiva e existencial passa por um “descascar” do “grande fruto que habitamos, avançando camada a camada, pele a pele, com o fito de chegar ao grande caroço interior, a explicação de todas as coisas” (COELHO, 2007, p. 96). Na sua obstinada vontade de exumar o passado ancião dos grandes chefes, este personagem, o mais madala – que significa o mais velho –, ergue-se contra a modernidade colectiva proposta pelo Director do “campo de trânsi-to” e, desse modo, aponta toda a sua vigorosa fé para uma busca desenfreada da arqueologia do saber africano, em contraponto à qual as lembranças dos prisioneiros torna-se malévola, inútil. atentemos à sua peroração sobre a tradição e memória:

“tens de aprender a distinguir lembrança de tradição, Pri-sioneiro”, diz. “Ambas dependem da memória mas são in-teiramente diferentes. Enquanto a lembrança é um exercício individual e rebelde, fútil e pouco produtivo, a tradição é fruto da ordem. Estes prisioneiros chegaram aqui com as suas privadas e desprezíveis lembranças. Acusavam as autoridades de acontecimentos antigos, acontecimentos dispersos que hoje não fazem qualquer sentido. Aos poucos, contudo, vão chegando à tradição, a este sentido supremo que é sabermos todos de onde vimos, esta certeza de virmos todos do mesmo lugar. E sobretudo, esta vontade de fazermos hoje como foi feito antigamente”. (COELHO, 2007, p. 102)7

Contudo, é este sentido supremo de que nos fala, veemen-temente, o Chefe da Aldeia do antigo campo de reeducação, que conduz a uma posição crítica de JPBC, relativamente à urgência de uma denúncia à constante necessidade de se procurarem as origens, de pesquisar-se e transformar-se o continente africano numa África-museu, soterrada em ligações genealógicas. Este gesto de denunciar, quer a modernidade colectiva, quer a sub-missão cega à tradição, vem à superfície da diegese, quando

6 Veja-se página 140, onde se descreve a ne-cessidade de sacrificar a singularidade pela co-lectividade: “O Director [o director do campo de reeducação] sorri amar-gamente. ‘Infelizmente não podíamos fazê-lo sem fragilizar a nossa própria posição, 15.6. Como o saberíamos? Como deve compreender, por vezes é inevitável sacrificar a sin-gularidade para proteger a colectividade’” (COE-LHO, 2007, p. 140).7 Confronte-se, ainda neste sentido, a página 103.

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Mungau, protagonista deste romance, observa que, em nenhum dos dois campos, o colectivo é estruturado ou pensado em fun-ção de uma humanidade mais justa e equitativa, pois assevera, no seu solilóquio, que: o tão almejado colectivo não passa afinal de um somatório, já não de singularidades mas de fragmentos dessas mesmas singularidades […]. murmura com ironia. ‘Diria mesmo, decepadas [...]’ (COELHO, 2007, p. 203).

No fundo, retornamos às questões postas por João Paulo Borges Coelho, e que volto a reiterar: “o que é que nós criámos aqui dentro?; o que é que nós pensávamos fazer?; o que é que nós fizemos?” (COELHO, 2007, p. 6), às quais Mungau responde ficcionalmente, ao murmurar “singularidades … decepadas” (COELHO, 2007, p. 203).

5. Conclusão: Os romances de João Paulo Borges Coelho – “Ética, e cidadania”8

a respiração da paisagem, dos cheiros, das sombras, dos ci-clos e dos personagens nos romances de JPBC deixam resquícios de um ensejo de caminhar, incansavelmente, para dentro deste projecto proposto pelo escritor, através do qual ergue-se soberana uma voz própria que procura escutar o outro-semelhante, não somente encurralado por uma arquitectura meta-histórica, e on-tológica, mas, pelo contrário, por uma vontade sã em devolver ao individualismo de cada um a oportunidade de fazer com este a história dos “calados”, em que o verbo contemporizar seja sempre conjugado, porque, como confessa João Paulo Borges Coelho, “há que acreditar nos outros, como te dizia, é uma questão ética, é uma questão de cidadania” (COELHO, 2007, p. 7).

8 Kahn (2007, p. 7).

AbstractPostcolonialism of Portuguese expression and language has been approached as an hegemonic element in the thoughts and ideas between the various former Portuguese colonies in Africa. However, we must be careful, when thinking about the post-colonial condition in an epistemo-logical way, to equate, in a contextualized way, the cultural loci, the idiosyncratic aspects, and the historical and social conditions of the object of study. I intend to defy previous hegemony with this present work, proposing instead that there is, undoubtedly, a Mozambican post-colonialism, even if it is expressed in the Portuguese language. My attempt to break boundaries, to compile and analyse narratives, memories and manifestations of negotiating a Mozambican post-coloniality can be captured through the Mozambican author João

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ReferênciasCOELHO, João Paulo Borges. As visitas do Dr Valdez. Lisboa: Caminho, 2004.

. Campo de trânsito. Lisboa: Caminho, 2007.

. Crónica da Rua 513.2. Lisboa: Caminho, 2006.DaNtaS, Marta Pragana. o que pode a sociologia da literatu-ra pela literatura?: ou da separação entre as análises interna e externa. Revista Electrónica de Ciências Sociais, João Pessoa, n. 2, p. 1-11, nov. 2000.KHAN, Sheila. Entrevista com João Paulo Borges Coelho. Sines, Portugal, 19 jul. 2007.MEDEIROS, Paulo de. Apontamentos para conceptualizar uma Europa pós-colonial. In: SANCHES, Manuela Ribeiro (Org.). Por-tugal não é um país pequeno. Lisboa: Cotovia, 2006. p. 339-356.PIMENTEL, Irene. A memória pública da ditadura e da repres-são. Le Monde Diplomatique, Lisboa, n. 4, II série, p. 3, fev. 2007.roSa, antónio ramos. Pátria soberana seguido de Nova ficção. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2001.SOBRAL, José. Os sem-História: memória social, histórica e ci-dadania. Le Monde Diplomatique, Lisboa, n. 4, II série, p.1-2, fev. 2007.SOUSA JÚNIOR, José Luiz F. de. O narrador, a literatura, e a História: questões críticas. In: BOËCHAT, Maria Cecília Bru-zzi; OLIVEIRA, Paulo Motta; OLIVEIRA, Silvana Pessoa (Org.). Romance histórico: recorrências e transformações. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2000. p. 27-44.VASCONCELOS, José Carlos de. Nélida Piñon: a paixão do romance. Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, ano 25, n. 915, p. 16-18, out./ nov. 2005.

Paulo Borges Coelho, namely through the novels As visitas do Dr Valdez, Crónica da Rua 513.2, and, more recently, Campo de trânsito. Departing from a contextualised reading and analysis, it thus remains for us to reflect on how and what fissures, margins, memories and faces have emerged from a Mozambique that searches for its nation, dreamt up and longed-for by the poet José Craveirinha.

Keywords: Memory. Narrative. Postcolonialis-ms. History and fiction.

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O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro:

(mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa

Charlotte Galves

Recebido 10 mar. 2008 / Aprovado 27 abr. 2008

ResumoEste artigo levanta a questão do papel das línguas africanas na formação do português brasileiro. Mostra como trabalhos recentes sobre o portu-guês falado, na África, como segunda língua, e a comparação de várias das suas características morfossintáticas, com a sintaxe das línguas ban-tu, sustentam empiricamente a tese da influência destas sobre o desenvolvimento do português do Brasil, uma vez que ele apresenta estas mesmas características. Argumenta que estas análises fornecem pistas para estudar o desenvolvimento histórico do português na África e no Brasil, usando textos escritos nessa língua por africanos. Enfim, traz alguns argumentos contra a hipótese da deriva.

Palavras-chave: Formação do português bra-sileiro. Português africano. Contato lingüístico. Deriva lingüística. Línguas crioulas

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Este artigo não pretende trazer uma contribuição original à questão do papel das línguas africanas na formação do portu-guês brasileiro. O que pretende fazer é sugerir pistas para uma nova agenda de pesquisa, a partir de trabalhos recentes e da releitura de textos mais antigos sobre o assunto, trazendo ainda a notícia de novos corpora.

a proposta central deste trabalho é, seguindo um caminho já apontado por Petter (no prelo), dar à descrição e análise da constituição do português africano, em Moçambique e Angola, um papel central na discussão. Com efeito, dada a semelhança entre si por um lado, e com o português brasileiro por outro lado, as variedades angolanas e moçambicanas podem nos ensinar muito sobre como e porquê as línguas africanas interferiram na evolução do português no Brasil.

a Seção I, intitulada “o ponto de partida”, propõe elemen-tos de releitura do debate de mais de um século sobre a questão. Na Seção II, “Novos caminhos e novas buscas”, a discussão dos efeitos do contato entre as línguas africanas e o português se organiza em torno das sub-seções II.1 “O português na África”, II.2 “A fala dos africanos na história do Brasil” e II.3 “Uma escrita em português na história da África”. A seção II.4 argumenta contra a hipótese da deriva. Uma sessão final sintetiza as con-clusões do trabalho.

I. O ponto de partidaDesde o séc. 19, a reflexão sobre o papel das línguas africa-

nas na formação do português brasileiro vem girando em torno de dois pólos de atração que, conforme os autores, são conside-rados como mutuamente exclusivos ou não. Um desses pólos é a noção de crioulização, que atribui um papel determinante ao contato com as línguas com as quais o português esteve em contato no Brasil, predominantemente as africanas. O outro é a noção de deriva lingüística, que minimiza o efeito do contato, e insiste sobre tendências evolutivas já presentes na língua. Em última instância, o debate gira em torno da dicotomia ruptura/continuação em relação ao estágio anterior da língua.

Adolpho Coelho pode ser considerado como o marco inicial dessa reflexão (cf. BAXTER; LUCCHESI, 1997). O nome dele é freqüentemente associado à aproximação do português brasileiro (doravante PB) às línguas crioulas, porque o inclui no estudo de crioulos do português e de outras línguas românicas. Como enfatizado por Tarallo (1993) isso não redunda, no seu raciocínio, numa chave única de explicação para a evolução do português no Brasil. Vejamos.

A partir da distinção entre evolução de base fisiológica, e evolução de base psicológica, Adolpho Coelho nega a existência de uma influência direta da língua anteriormente falada sobre a língua adquirida:

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A transformação da linguagem em virtude da alteração fonéti-ca é um fenômeno de base fisiológica, a formação dos dialectos crioulos é no que tem de essencial um fenômeno psicológico. Formam-se eles rapidamente, para acudir à necessidade das relações [...]. (COELHO, 1967, p. 104)

Também afirma que: “os dialetos românicos e crioulos, indo-português e todas as formações semelhantes representam o primeiro ou primeiros estádios na aquisição de uma língua estrangeira por um povo que fala ou falou outra” (COELHO, 1967, p. 102). E continua:

Os factos acumulados por nós mostram à evidência que os caracteres essenciais desses dialectos são por toda a parte os mesmos, apesar das diferenças de raça, de clima, das distân-cias geográficas e ainda dos tempos. É em vão que se buscará, por exemplo, no indo-português uma influência qualquer do tamul ou do cingalês. (COELHO, 1967, p. 105-106)

Isso vai levá-lo à idéia de que os crioulos seguem leis gerais no seu desenvolvimento, explicando assim que os fenômenos observados nessas línguas não são isolados, mas se encontram também em dados de aquisição e em desenvolvimentos diale-tais na própria Europa – “A preferência dada nesses dialetos aos pronomes regimes, que vêm ocupar o lugar dos pronomes sujeitos, encontra-se entre nós no falar das crianças e tem grande extensão nas frases populares das nossas línguas européias” (COELHO, 1967, p. 107).

Coelho tem também um olhar aberto sobre a situação do português no Brasil, que não privilegia interpretações sobre outras, mas abarca a complexidade das situações e das histórias que produzem uma variação, diga-se de passagem, possivel-mente mais fortemente perceptível no final do séc. 19 do que no início do 21.

A linguagem brasileira, pelas condições de sua existência e de-senvolvimento, apresenta naturalmente uma tão grande série de gradações desde a boca do culto até a do último matuto, que qualquer afirmação com respeito às interrogações que faço acima corre o risco de ser pelo menos em grande parte falsa. (COELHO, 1967, p. 162)

Achamos, nos excertos acima, uma concepção que prefi-gura vários aspectos do pensamento moderno sobre o assunto, a saber:

– A idéia de que o que caracteriza as línguas crioulas é “a ação de leis psicológicas gerais” anuncia a teoria desenvolvida por Bickerton,1 que vê nos crioulos o efeito da gramática uni-versal.

– Já que essas leis ‘psicológicas’ são gerais, elas transpare-cem em outras línguas e dialetos também. Desse ponto de vista, a diferença fundamental está no processo, não no produto. Essa concepção permite articular, na reflexão, dois tipos de afirmações

1 Cf. por exemplo Bicker-ton (1981)

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que têm sido consideradas como antagônicas por outros autores: há, sim, ‘tendências crioulizantes’ no português do Brasil, mas o que elas produzem pode-se encontrar também em dialetos que não passaram pelo mesmo processo.

– A particularidade dos crioulos é que eles cristalizam o estágio inicial da aprendizagem da língua de um povo por outro povo. O motor essencial na formação dos crioulos é a transmis-são imperfeita. Essa afirmação traz em germe uma das idéias essenciais das recentes teorias sobre a crioulização: resultado de uma aquisição imperfeita, ela não representa uma diferença de natureza, mas de grau, com outras situações de mudança, menos ‘catastróficas’, provocadas pelo contato lingüístico.

Como sói acontecer com os precursores, haverá uma longa demora para que esses aspectos mais complexos e sutis do pen-samento de Coelho encontrem eco nos seus seguidores. De fato, o que chama a atenção, nas gerações seguintes de pensadores, é um engessamento das posições. o que será retomado do pen-samento de Coelho, de maneira dicotômica, e muito permeada de ideologia, será a questão da influência direta das línguas africanas ou ameríndias (mas não tocaremos neste assunto aqui) na constituição do português brasileiro.

Assim, é com bastante veemência que Silva Neto (1950) se insurge contra os estudos que afirmam, sem base advinda “da cultura lingüística e românica”, a influência das línguas africanas sobre o português do Brasil. E conclui:

No português não há, positivamente, influência de línguas africanas ou ameríndias. O que há é cicatrizes da tosca apren-dizagem que da língua portuguesa, por causa de sua mísera condição social, fizeram os negros e os índios. (SILVA NETO, 1950, p. 97)

Nas últimas décadas, os quadros teóricos evoluíram e se tornaram mais explícitos, mas o debate continua polarizado. Alguns pesquisadores argumentam que há, na formação do português popular brasileiro, um processo de crioulização, ou de crioulização leve ou de semi-crioulização (cf. BAXTER; LUC-CHESI, 1997, e as referências aí citadas). Todos esses termos fazem referência a um efeito, senão das línguas africanas, ao menos do contato lingüístico, sobre a estrutura da língua.

opõem-se a essa corrente os trabalhos de anthony Naro e Marta Scherre, recentemente reunidos em Naro & Scherre (2007). Para eles o motor da mudança não é o contato, mas a própria deriva da língua. a introdução do livro de 2007 apresenta assim a sua hipótese central:

O conteúdo deste livro tem uma linha mestra clara: apresentar evidências de que características morfossintáticas e fonológi-cas do português brasileiro, atualmente envoltas em estigma e preconceito social, são heranças românicas e portuguesas arcaicas e clássicas, e não modificações mais recentes advin-

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das das línguas africanas, que vieram para o Brasil com seus povos escravizados e subjugados, ou das línguas dos povos ameríndios, que aqui já se encontravam quando vieram os colonizadores europeus. Tampouco são o resultado de pro-cessos de simplificação ou outras modificações espontâneas causadas pelo contato, durante o processo de transmissão não tradicional da língua. (NARO; SCHERRE, 2007, p. 17)

Em vários outros trechos do livro, encontramos fortemente reiterada a rejeição das teses crioulistas e a afirmação da herança lusitana:

O uso do termo ‘crioulização’ no Brasil é um equívoco, uma vez que não é possível haver associação do processo com qualquer grupo de substrato particular que pudesse ter influenciado de forma consistente a língua que estava em processo de evolu-ção... Ainda não conseguimos identificar nenhuma caracterís-tica do português do Brasil que não tenha um ancestral claro em Portugal. (NARO; SCHERRE, 2007, p. 67-68)

Discutiremos mais em detalhe a proposta de Naro e Scherre na Seção II.4. Note-se desde já que, contrariamente à de Coelho, a análise que eles apresentam é baseada no pressupos-to de incompatibilidade definitiva entre a existência de efeitos lingüísticos do contato e a presença de traços atribuíveis à de-riva própria à língua. Como ressaltamos acima, a reconciliação entre esses dois efeitos só é possível num quadro que integra de alguma maneira a ação de processos universais de linguagem, seja qual for sua formulação exata. Esse ponto será crucial no desenvolvimento de novas propostas, como veremos agora.

II. Novos caminhos e novas buscasNa literatura das últimas décadas, as abordagens polari-

zadas das análises apresentadas acima vêm deixando lugar a teorias que procuram integrar as diversas forças envolvidas no processo de mudança devido ao contato, e reconhece um conti-nuum entre os efeitos mais catastróficos – os pidgins e crioulos – e as conseqüências menos gritantes – a constituição de vertentes diferenciadas das línguas. Nas palavras de Inverno,

The broadening of pidgin and creole linguistics to contact linguistics results form the general agreement today that the origin and synchronic structure of pidgins and creoles can only be fully understood from the perspective of a wider theory of language contact. (2005, p. 51)

No Brasil encontramos a mesma tendência em considerar que o fenômeno crucial é a transmissão lingüística irregular (cf. LUCCHESI, 1999, 2003), que produz diferenças de grau mais do que natureza em função dos contextos sócio-culturais em que a aquisição se dá. Pagotto, retomando tarallo, resume assim o ponto em que nós estamos:

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No quadro atual dos estudos sobre a história do português do Brasil, em que a história social tem sido recolocada como uma preocupação central […] o papel do contato interlinguístico é de fundamental importância, ainda que sobre ele só conheçamos evidências indiretas. (2007, p. 468)

Dentro desse quadro conceitual mais amplo, convém agora reunir fatos, que permitam elaborar uma teoria empiricamente fundada da constituição do português brasileiro. Seguindo tri-lhas evocadas – com um certo mau humor – por Silva Neto (1950), e baseando-me em alguns trabalhos recentes que julgo terem grande potencial explicativo, sugerirei agora algumas pistas de pesquisa que acredito capazes de produzir uma sustentação para uma teoria dessas.

1. O português na ÁfricaAs descrições do português falado em Angola e Moçambi-

que (cf. CHAVAGNE 2005; INVERNO, 2005; GONÇALVES, 2004; LABAN, 1999) apontam todas para uma grande semelhança nas particularidades morfossintáticas do português africano (dora-vante PA) e do PB. Isso inclui as propriedades listadas abaixo, todas presentes nos diversos dialetos do português brasileiro, embora com freqüências distintas para algumas delas:2

• concordância nominal e verbal em número variável;• confusão nas formas de 2a e 3a pessoa (seu/teu, te/

você);• uso do pronome tônico em posição objeto;• colocação pré-verbal dos pronomes clíticos, inclusive em

primeira posição absoluta;• uso do pronome dativo ‘lhe’ em lugar do pronome acu-

sativo ‘o’;• uso da preposição ‘em’ em lugar de ‘a’ para o lugar para

onde se vai;• mudança de regência de certos verbos (em particular

perda das preposições);• uso de ‘dele’ em lugar de ‘seu’• posição pós-nominal do possessivo (sem efeito de foca-

lização)

Algumas outras características do PA foram documentadas no PB, mas aparecem muito mais restritas a certas regiões, e em certos casos a comunidades isoladas de origem africana.3 Nessa categoria, encontramos por exemplo:

2 Seria muito longo men-cionar todas as refe-rências dos trabalhos correspondentes sobre o PB, e injusto citar só alguns. Só me referirei aos trabalhos relativos aos fenômenos mais especificamente discu-tidos.3 Esses fenômenos se encontram todos em Helvécia (cf. BAXTER; LUCCHESI, 1997, p. 78). Segundo os autores, trata-se de uma comu-nidade descendente de iorubás e geges, portan-to não bantus. Do ponto de vista da hipótese da interferência da língua materna sobre a língua 2, a semelhança com a fala dos locutores mo-çambicanos tem várias explicações possíveis: existência de “falares afro-brasileiros de base bantu” (cf. PESSOA DE CASTRO, 2008), ou in-fluência de processos similares em outros ra-mos da macro-família niger-congo. Neste caso de novo, se torna impe-rativo um estudo com-parativo das línguas envolvidas.

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• ausência de concordância de gênero• forma invariável do verbo, inclusive na primeira pessoa• ausência de artigo definido• construções de duplo objeto4 (como em “ela deu o irmão

o retrato” em lugar de “ela deu o retrato ao irmão”; “per-guntei o Pedro”, em lugar de “perguntei ao Pedro”)

• ausência da conjunção ‘que’ nas orações subordinadas.

A presença das línguas africanas em Angola e Moçambi-que, predominantemente da família bantu, é uma obviedade. Em Moçambique, segundo Gonçalves (2004, p. 230), somente 3% da população fala português como língua materna, e 40% como segunda língua. Em Angola, Inverno (2005, p. 1) afirma que o português é falado como língua materna por menos de 20 % da população. Configura-se, portanto, nesses dois países uma situação de bilingüismo em que o português é língua se-gunda para a maioria dos falantes. A questão que se coloca é se os fenômenos do PA e do PB listados acima são resultados da interferência das línguas africanas maternas dos falantes no processo de aquisição. Se a resposta for positiva para os falantes moçambicanos e angolanos, teremos razões fortes para propor que o seja também para os falantes brasileiros.

trabalhando no quadro do modelo de Princípios e Parâ-metros da teoria da Gramática Gerativa,5 Gonçalves (2004) e Gonçalves e Chimbutane (2004) propõem uma análise precisa de como se dá tal interferência. Uma noção essencial que esses dois trabalhos desenvolvem é a de ambigüidade dos dados da língua segunda em função da língua materna:

certas estruturas geradas pela gramática de uma dada língua podem ser ambíguas apenas para os aprendentes dessa língua como L2, devido à influência do conhecimento que já têm da gramática da sua L1, i.e, a ambigüidade da L2 resulta da possi-bilidade de as evidências geradas pela sua gramática poderem ser analisadas na base de propriedades gramaticais das L1s dos aprendentes. (GONÇALVES; CHIMBUTANE, 2004, p. 23)

É o que acontece, segundo os autores, na aprendizagem da expressão do locativo em português. As línguas bantu diferem deste em dois aspectos: primeiro, elas têm um sufixo locativo, que apesar de poder ser traduzido pela preposição ‘em’, não é uma preposição, o que faz com que a presença dessa partícula não impeça que o nome a que está afixado continue desempe-nhando funções típicas de sintagmas nominais, como sujeito. A segunda diferença é que as línguas bantu são distintas do por-tuguês “no que se refere à codificação de percurso-direção: nas LBs os verbos incorporam este elemento semântico, ao contrário do que acontece no PE, onde este é expresso através de preposi-

4 Exemplos retirados respect iva mente de Scher (1996) e Baxter; Lucchesi (1997).5 a teoria de Princípios e Parâmetros da Gramá-tica Gerativa vê a aqui-sição da língua materna como um processo de fixação de parâmetros binários. Desse ponto de vista, a gramática de uma língua dada cor-responde a um conjunto de valores paramétricos. Gonçalves (2004) e Gon-çalves & Chimbutane (2004) defendem uma teoria da aquisição de segunda l íngua que consiste também na fi-xação de valores para-métricos.

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ções direcionais” (GONÇALVES; CHIMBUTANE, 2004, p. 23). Ao aprender o português, a preposição ‘em’ é reanalisada pelos falantes de línguas bantu como marca de locativo, e os verbos são interpretados como tendo direcionalidade inerente. Segundo os autores, isso explica enunciados como os seguintes, encontrados em textos de jovens moçambicanos falantes de português como língua segunda (op. cit. p.9):6

1. em casa dele é aqui em frente (= a casa dele é ..)

2. conheci em casa dele (= ... a casa dele)

3. voltou em casa (= para a casa)

4. vinham carros lá na escola (= lá à escola)

5. está a sair no estúdio (= ... do estúdio)

6. eu saiu lá no Xiquelene (= ...(de) lá do Xiquelene)

Essa análise recoloca numa luz totalmente nova os desvios à norma ilustrados pelos dados acima. Em lugar de ver neles uma aprendizagem errática das preposições que se traduz essencial-mente pela substituição de ‘de’, ‘a’ e ‘para’ por ‘em’, ou seja, um processo de redução e simplificação, e não explica fenômenos como ilustrados em 1. e 2., ela aponta para uma interferência da língua materna no processo de aprendizagem, que deriva um conjunto de fenômenos aparentemente desconectados da mesma causa, sem apelar para a desconstrução pura e simples da gramática.

O estudo de Gonçalves (2004) explica outros desvios do PA pela interferência da gramática das línguas bantu. Vejam-se os seguintes enunciados:

7. Uma criança deu o indivíduo as chaves (ex 1ª, p. 239)PE: Uma criança deu as chaves ao indivíduo

8. A natureza não pode dominar ao homem (ex. 2ª, p. 239)PE: A natureza não pode dominar o homem

Esse conjunto de dados poderia ser de novo tomado como reflexo da aquisição errática do uso das preposições no por-tuguês. Os enunciados 7 e 8 parecem ilustrar duas tendências contraditórias. Na primeira, a preposição ‘a’ deixa de marcar o objeto indireto, na segunda ela marca o objeto direto. Gonçalves argumenta que isso é resultado da interferência da gramática materna dos locutores de línguas bantu, onde, contrariamente

6 as glosas são dos auto-res. Não coloquei todos os exemplos.

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ao português, o verbo pode atribuir caso a dois sintagmas no-minais. Porquê e como essa propriedade da língua materna é retida na aquisição da língua segunda, em contradição com os enunciados que esta produz? A resposta de Gonçalves é que os dados do português são ambíguos para um falante de língua bantu, uma vez que a preposição ‘a’ ora parece desempenhar um papel puramente sintático – de atribuidor de caso quando o verbo tem dois argumentos (como ‘dar’) –, ora se comporta como uma preposição que seleciona semanticamente seu com-plemento, em articulação com verbos de um argumento só (como ‘telefonar’). Frente a essa ambigüidade, os dados do português são analisados com base na gramática das línguas bantu: o verbo atribui dois casos, prescindindo da preposição em frases como a 7, e a preposição ‘a’ se comporta como um item lexical pleno que seleciona semanticamente um objeto humano como alvo ou beneficiário, independentemente do verbo ser transitivo ou intransitivo.

Vários ensinamentos podem ser retirados dessa aborda-gem, tanto no que diz respeito aos mecanismos de aquisição de segunda língua envolvidos na mudança devida ao contato, quanto à questão central deste artigo, a saber, o papel das línguas africanas na constituição do PB. 7

Primeiro, a análise proposta por Gonçalves permite reconciliar duas idéias que podem parecer à primeira vista contraditórias: a de que a transmissão imperfeita põe em jogo um processo de simplificação, e a de que existe interferência da primeira língua. Segundo ela, é quando a primeira língua fixa o valor não marcado de um parâmetro, e a segunda língua fixa o valor marcado, que a insuficiência de dados de ‘input’ leva o aprendiz a fixar o valor (não marcado) da sua própria língua em lugar do valor marcado da língua 2, levando ao que pode aparecer como uma simplificação.

Segundo, verifica-se a importância crucial da comparação do português europeu com as línguas africanas para a sustenta-ção empírica da afirmação ou recusa da influência das segundas sobre a aquisição do primeiro.

Enfim, e voltando ao português brasileiro, é importante ressaltar novamente que ele apresenta boa parte dos fenômenos presentes no português africano. Ora, se é possível mostrar que estes são devidos à interferência das línguas africanas na aprendizagem do português como língua segunda lá, temos agora fortes índices que teria sido o caso também de cá. Porém, como já mencionado, alguns dos fenômenos ou não foram docu-mentados no PB, ou se encontram de maneira muito marginal. É o caso das frases de tipo 7, encontradas na Zona da Mata em Minas Gerais (SCHER, 2000), e no dialeto de Helvécia (BAXTER; LUCCHESI, 1997), bem como da variação de concordância em gênero, encontrada nas comunidades afro-descendentes isoladas,

7 Negrão e Viotti (2008) estudam fenômenos li-gados à projeção dos argumentos dos verbos inacusativos em PB e argumentam também, com base numa análise comparativa, que esses fenômenos são devidos à influência das línguas bantu.

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por exemplo no dialeto de Helvécia (cf. BAXTER; LUCCHESI 1997, LUCCHESI, 1999). Em outros casos, quando comparados o PA e o PB, observa-se que só parte de um grupo de fenômenos correlacionados aparece no segundo. É o caso, por exemplo, do conjunto de enunciados em 1-6, das quais somente 3 e 4 são instanciados. Esse fato não invalida a hipótese de uma derivação dessas frases de maneira análoga ao português africano, mas aponta para subseqüentes evoluções, que, no uso brasileiro, fizeram desaparecer, ou limitar drasticamente certas formas. Pode ser o efeito do que Holm (2004 apud INVERNO 2005, p. 57), chama de ‘nivelamento secundário’, ou seja, aproximação da língua-alvo, devido a uma maior proximidade com esta. Depois do fim do tráfego e da chegada de escravos africanos ao Brasil, as línguas africanas vão desaparecendo paulatinamente do ce-nário lingüístico brasileiro, até seu desaparecimento completo no séc. 20.8 Não há dúvida de que, nessas condições, a língua portuguesa pesa cada vez mais na balança, em todo o território brasileiro, menos em comunidades isoladas.9

Com base nas análises do PA apresentadas acima, podemos levantar a hipótese de que se perderam, ou estão marginalmente representados no português brasileiro em comunidades isoladas, além da concordância de gênero, vários fenômenos, como aqueles ligados à expressão do locativo ou do duplo objeto.

O mesmo raciocínio nos leva a prever que esses fenômenos, hoje em via de extinção, deviam ser muito freqüentes em épocas passadas no Brasil. Aí a dificuldade é que a escrita estava nor-malmente na mão de quem usava o português mais próximo do português padrão, ou seja, europeu. Porém, trabalhos recentes têm procurado achar documentos escritos por semiletrados, inclusive africanos.

Note-se que já nos interessa menos o fato de a “tosca apren-dizagem” do português, para retomar a expressão de Serafim da Silva Neto, ser caracterizado como um crioulo ou não. O que é relevante é se podemos encontrar em documentação escrita vestígios da língua falada pelos africanos e seus descendentes escravos ou forros. Será o assunto da próxima sessão.

2. A fala dos africanos na história do BrasilOs trabalhos sobre o português na África hoje podem, além

de fornecer evidências da interferência das línguas africanas – em particular bantu – no processo de constituição do português no Brasil, ajudar a esclarecer a natureza da situação lingüística no Brasil colonial. É interessante citar de novo Gonçalves a esse respeito:

[…] Thus, nowadays, MAP [Português Africano de Moçam-bique, CG] presents a set of different subvarieties which can be displayed along a dialectal continuum, ranging from the

8 Isso, obviamente, deve ter variado de região para região. Sabemos, pelo estudo de Nina rodrigues, que ainda se falavam línguas afri-canas na Bahia no início do séc. 20.9 A respeito da dife-rença entre o Pa e o PB com respeito a esses fe-nômenos, Petter (no pre-lo) fala em ‘Continuum afro-brasileiro’, em que “o português brasileiro já apresentaria maior estabilidade, fruto de um período de variação mais antigo, que se teria resolvido em mudança, pela adoção de uma das variantes, no caso espe-cífico, a do gênero do português europeu”.

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standard spoken by relatively uneducated people to the urban standard of the upper class. (GONÇALVES, 2004, p. 236)

Se traduzirmos “dialectal continuum” por “tão grande série de gradações”, “relatively uneducated people” por “ultimo matuto” e “urban standard” por “boca do culto”, reconhecemos nas palavras de Gonçalves a respeito de Moçambique de hoje, a situação do Brasil à qual se referia Coelho no final do séc. 19. A comparação entre essas duas realidades semelhantes separadas por mais de um século pode trazer muita luz sobre a história do português no Brasil. Convém, portanto, estudar simultaneamente, ao longo dos séculos, a fala dos ‘cultos’ e a fala dos ‘matutos’, com especial atenção voltada para a fala dos negros, brasileiros e africanos.

Não é fácil, pelas razões mencionadas acima, encontrar em documentos escritos testemunhos das diversas variedades de português faladas no Brasil no período colonial. Mas essa é uma linha de pesquisa que está ganhando fôlego. No que diz respeito mais especificamente à fala dos negros, encontramos duas vertentes, uma indireta e uma direta.

A vertente indireta tem sido trabalhada por Alkmim (2001, 2002) à procura de testemunhos da fala dos negros em textos de diversos gêneros. No texto de 2002, Alkmim estuda charges satirizando negros e escravos em jornais do séc. 19.10 E compara os traços lingüísticos usados para caracterizá-los com os encontrados em textos de outra natureza. No que diz respeito aos aspectos sintáticos, encontra-se um sub-conjunto das pro-priedades do português africano listadas na seção anterior (cf. ALKMIM, 2002, p. 390, com a numeração original):

2.1 concordância de gêneros incorreta

2.2 flexão verbal de número e pessoa incorreta

2.3 ausência de artigo

2.4 quantificador ‘tudo’ em lugar de ‘todo’ e ‘todas’

2.5 ausência da marca redundante de número

2.6 ausência de concordância sujeito-verbo

2.7 forma do pronome após preposição

2.8 presente do indicativo em lugar do presente do subjun-tivo

A coincidência desta lista com a de ‘desvios’ encontrados na fala de africanos falando português hoje como segunda língua chama a atenção. Encontramos nela fenômenos que se mantiveram no PB coloquial (2.8, um sub-conjunto de 2.6, um sub-conjunto de 2.3), outras características de uma fala mais po-pular (2.4, 2.5, 2.6, 2.7), e ainda aqueles que, como já comentamos, só se encontram em comunidades isoladas (2.1, 2.2). Esses dados são muito importantes porque, em se tratando de charge, eles

10 os jornais são de 1831, 1864, 1868 , 1870 e 1876.

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têm o papel de caracterizar linguisticamente os personagens representados.

Ao comparar esses dados com a representação da fala de negros na literatura, Alkmim (2002, p. 396) encontra uma grande semelhança, e ressalta que as marcas de concordância de gênero incorreta e de flexão verbal número-pessoa incorreta aparecem “estreitamente relacionadas a personagens africanas”. Isso talvez signifique que esses traços não eram normalmente transmitidos às gerações seguintes já nascidas no Brasil. O fato da sua permanência em comunidades isoladas se explicaria por um menor contato com o português.

Foram descobertos e editados recentemente documentos do maior interesse para o estudo da fala dos africanos e seus descendentes no Brasil oitocentista (cf. OLIVEIRA, 2003; LOBO; OLIVEIRA, 2007).11 trata-se das atas da Sociedade dos Desvali-dos de Salvador, fundada em 1832. Dessas atas, algumas foram escritas por africanos, e outras, mais numerosas, por brasileiros. O grau de análise desses documentos ainda não permite fazer uma comparação sistemática com outros materiais, ou confrontá-los com os dados de aquisição de português segunda língua na África. Além disso, é preciso ressaltar que a natureza textual das Atas, de caráter altamente formulaico, não espontâneo, oculta em certos casos os efeitos da língua do escrevente, que se limita a copiar frases já feitas. Mas nem por isso as Atas deixam de registrar as marcas da competência lingüística dos seus autores. Desde a grafia insegura aos desvios de concordância verbal e nominal,12 encontramos vestígios claros de uma competência imperfeita na escrita e na fala em português. No que diz respeito à sintaxe dos clíticos nas Atas escritas por africanos, estudada por Galves & Lobo (2006), não se encontra nenhum desvio em relação às regras de colocação vigente na época. Isso contrasta fortemente com a sintaxe de concordância nominal e verbal, permeada de desvios em relação à norma. Uma explicação para esse contraste se acha no fato de que as frases, nas quais a grande maioria das ocorrências de clíticos se encontram, são fórmulas, sem dúvida copiadas de modelos anteriores. Contudo a escrita deixa entrever uma dificuldade dos escreventes africanos em distinguir os clíticos das vogais iniciais dos verbos:

9. epor estar Comforme mandou o Pro- / vedor que este fizessé etodos as Signassé Erá Supra / eeu Secretario atual oá Signei (JFO, 12, 02.10.1842)

10. Aos dezacete dia do mes de Abril demil eoito Cen / tos etrinta e Ceis estando o Provedor emais Me- / zarios a recebe-mos os Mencais eficou adiado para / a1a. Reuniaõ o Secretario aprezentar hum / Termo, Sobré os Irmãos que não tem pago os / Seus Mencais epor estar Com forme a Si- / gnamos. etc.

11 Está em preparação um volume de descrição e análises lingüísticas dessas atas, organizado por Tânia Lobo e Kleb-son oliveira.12 Cf. Oliveira; Soleda-de; Gonçalves (2006)

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Como Secretario que este o fes / ea Signei – Jozé Fernandes do Ó (JFO, 03, 17.04.1836)

Nos dois exemplos acima, vê-se que a vogal inicial do verbo ‘assinar’ é sistematicamente segmentada independentemente do verbo, e algumas vezes colada a um monossílabo precedente, clítico ou conjunção. Também aparece um ‘a’ protético para o verbo ‘receber’, mas separado deste como se fosse um pronome clítico. Veja-se enfim que aparece uma vogal ‘o’ antes do verbo ‘fes’ na última linha de 14, cuja interpretação é duvidosa. Nesse caso não pode tratar-se do início do verbo, e só poderia ser um pronome clítico, porém de maneira altamente redundante com o objeto direto ‘este’ que ele segue imediatamente. Esses dados gráficos vêm contradizer a aparente conformidade à norma na colocação de clíticos e apontam para dificuldades por parte dos falantes de línguas africanas em segmentar adequadamente a cadeia sonora, e em última instância, em discriminar a natureza lexical ou funcional das vogais iniciais de palavras fonológi-cas. Essa dificuldade de interpretação é típica de situações de aprendizagem de segunda língua, e certamente reforçada pelo funcionamento morfossintático diferente do português e as línguas africanas dos aprendizes. Esses documentos, em suma, integrados numa análise comparativa de muitos outros, orais e escritos, de origem brasileira e africana, trarão certamente va-liosas informações sobre o papel do contato do português com as línguas africanas na constituição do PB.

3. Uma escrita em português na história da ÁfricaNão é só no Brasil que os africanos escrevem em portu-

guês. Num contexto bastante diferente, ao longo dos séculos 17, 18 e 19, a língua portuguesa passa a ser usada em angola por chefes africanos, para redigirem sua correspondência oficial, com os representantes do poder colonial ou com outros chefes africanos. Um conjunto desses documentos, o arquivo Caculo Cacahenda, do nome de uma das mais importantes linhagens de chefes, foi editado em 2002 por Ana Paula Tavares e Catarina Madeira Santos. São textos de imenso valor histórico e lingü-ístico. Vêm trazer ao edifício comparativo planeado aqui mais que tijolos, um pedaço inteiro de muro. Com efeito, estes textos foram escritos por escrivães formados para esse fim, e, portanto, dotados de uma competência indiscutível em português. Po-rém, não escapam às interferências das suas línguas maternas bantu – kimbundo e kikongo.13 Uma primeira observação dos textos mostra que muitos dos fenômenos presentes na fala do português africano de hoje e dos diversos dialetos do português brasileiro – falta de concordância sujeito-verbo (15), falta de concordância nominal em gênero (16), dativo sem preposição (17), complemento de objeto direto expresso pelo clítico dativo

13 Cf. Tavares; Madeira Santos (2002), Introdu-ção.

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(18) –, estão presentes nos textos escritos do Arquivo Caculo Cacahenda, como testemunham as seguintes frases, retiradas de um documento de 1840:

11. vindo robar os diarios que hia para o Prezidio de En-cogi (p.128)

12. naquela tempo (p.128); diabolica pessamento (p.127)

13. e perguntando o mesmo chefe o Autor se tinha mais qui dizer (p.130)

14. que diga qual seja o macota que lhe foi buscar no dito Congo (p.130)

Concluindo esta breve apresentação, chama à atenção a convergência dos fenômenos encontrados nesse conjunto de textos com os que caracterizam o PA moderno, com as mesmas semelhanças e diferenças do PB moderno. Reforça a hipótese de que essas são devidas a uma transmissão irregular em contextos de aquisição de segunda língua, bem distinta de um processo de crioulização, uma vez que, no caso dos textos do Arquivo, estamos lidando com um uso da língua já bastante sofisticado, fruto de uma formação específica,14 cuja representação gráfica aponta para uma habilidade muito superior à dos escreventes das atas da Sociedade dos Desvalidos de Salvador.

4. E a deriva?Como vimos, uma linha de pensamento se opõe à afirma-

ção de que houve interferência das línguas africanas na constitui-ção do PB, aquela que privilegia a noção de deriva lingüística. A idéia é que as inovações já são contidas na língua anteriormente, sendo que o afastamento da língua mãe, inclusive o contato com outras línguas e culturas, propiciam um quadro favorável ao desenvolvimento de certas tendências imanentes à língua, que, no berço da mesma, permanecem refreadas.

antes de discutir mais em detalhe a proposta de Naro & Scherre (2007), já citada acima, me debruçarei sobre um outro tex-to recente, que coloca a questão ‘deriva vs. crioulização’ a respeito da realização do sujeito, e da sua relação com as modificações da morfologia verbal. Quint (2008), a partir da comparação da evolução do paradigma verbal no PB e no crioulo cabo-verdiano, conclui que

a tendência atestada em PB ao preenchimento sistemático da posição de sujeito por meio de uma forma pronominal insere-se plenamente nas tendências evolutivas das varieda-des lingüísticas periféricas oriundas do galego-português, em particular, e das línguas românicas em geral. (2008, p. 81)

14 Cf. Tavares; Madeira Santos (2002, Introdu-ção).

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Segundo o autor, a evolução do PB seria assim mais pró-xima da do francês do que a do caboverdiano. Sem pretender ignorar as diferenças da morfologia verbal do PB e do cabover-diano, claramente estabelecidas por Quint,15 queria apontar para fortes diferenças entre o francês e o PB. No primeiro, a redução do paradigma verbal é incontestavelmente devida à erosão fo-nética das desinências, ou seja àquilo que Coelho denomina, no trecho citado atrás, de “fenômeno fisiológico”. No PB, além de uma possível erosão desse tipo, se verifica um fenômeno que vai bem além, e provoca uma reestruturação do paradigma: a perda da distinção entre a segunda e a terceira pessoa. tal perda não se verifica só na perda da desinência /s/ da segunda pessoa do singular, mas também no uso dos pronomes de 2a pessoa ‘te’ e ‘ti’ e ‘teu’ em alternância com os pronomes de 3a pessoa ‘você’, e ‘seu’. Não se tem notícia, até onde eu saiba, de fenômeno idêntico em nenhuma outra língua românica, a não ser, justamente, no português africano, como mostra a seguinte frase de um escritor moçambicano citada por Laban (1999, p. 145):

15. Você tem a cara de uma maneira que eu não consigo olhar bem nos teus olhos.

Se a noção de deriva se aplica a esse tipo de fato, parece-me que ela fica tão abrangente, que acaba perdendo qualquer valor explicativo. Note-se que o conceito em si mereceria uma discus-são que os limites deste artigo não me permitem empreender. Mas uma grande questão fica: quais são os limites da detecção da deriva? O fato de os mesmos fenômenos existirem isolada-mente em dois estágios de uma ‘mesma lingua’ caracteriza por si só um processo de deriva de uma para outra? É o que Naro & Scherre (2007) afirmam. Para eles, a ocorrência de fenômenos de não concordância no português europeu comprova que a sua existência no português brasileiro não é uma inovação devida ao contato, mas somente um desenvolvimento, na ocasião de cir-cunstâncias favoráveis. O grande problema dessa abordagem, a meu ver, é que fenômenos superficialmente idênticos podem ter causas diferentes. Ou seja, seria preciso comprovar que além de existirem fenômenos idênticos, eles são produzidos pela mesma gramática, ou – em outros termos – tem a mesma estrutura sub-jacente. Naro & Scherre não apresentam nenhuma análise para os enunciados que retiram isoladamente de estudos descritivos. Mas, por exemplo, no caso da questão da concordância sujeito-verbo, há o implícito que em todos os dados apresentados, o sin-tagma nominal é o sujeito do verbo. ora, em muitos casos, uma outra interpretação é possível: o sintagma nominal é tópico, e existe um pronome expletivo nulo com o qual concorda o sujeito, como nas frases seguintes (NARO; SCHERRE, 2007, p. 98):

15 Para uma visão di-ferente do sujeito nulo em caboverdiano, ver Pratas (2004).

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16. Duas canas dá oito mestras

17. as querenguelas só presta para pescar

18. A fazenda é as cabras e as ovelhas

É preciso notar, além disso, que vários dados, por serem in-terpretados à luz do PB, são analisados inadequadamente, como nas seguintes frases (NARO; SCHERRE, 2007, p. 92), em que se atribui um sujeito aos verbos ‘esquecer’ e ‘lembrar’ quando são correntemente usados no PE de maneira impessoal (‘lembra-me que’, ‘esqueceu-me que’), construção claramente evidenciada pelo exemplo 20, uma vez que o sintagma que precede o verbo não é nominal mas preposicional.

19. Ê [eu] também já nã me lembra

20. Do bendito louvado não m’ha de esquecer

A mesma crítica pode ser feita à afirmação de que o PB instancia traços do português arcaico, presente em Naro & Scherre (2007), bem como em outros autores (cf. MORAIS DE CASTILHO, 2001).

III. ConclusõesRecapitulando, partimos do par deriva/crioulização, defi-

nidos por Coelho como dois processos de natureza distinta, um fisiológico, o outro psicológico. No decorrer do tempo, a noção de crioulização passou a integrar uma categoria mais ampla, a da ‘transmissão irregular’ devida ao contato lingüístico, com efeitos variáveis em função das condições sócio-culturais desse contato. Quanto à questão da influência das línguas não européias no processo, vimos que Coelho não acreditava que existisse, e defen-dia uma tese próxima do bioprograma de Bickerton. Vários dos estudiosos do PB, depois dele também, negaram enfaticamente a influência direta das línguas africanas sobre o português brasileiro, apesar de reconhecerem “cicatrizes da aprendizagem tosca”. A discussão mais moderna da crioulização ou semi-crioulização, apesar de dar ao contato um papel preponderante, enfatizou menos essa questão, enquanto os adeptos da deriva continuavam a negar o efeito direto ou indireto do contato.

A comparação das vertentes africanas e brasileiras do português, bem como a comparação de ambas com as línguas africanas com que estiveram em contato na sua história, vem mu-dar substancialmente a discussão ao trazer uma base empírica para o velho debate. Procurei mostrar que na balança empírica, esses dados são mais pesados e consistentes do que os dos de-fensores da deriva. Apesar de haver muito por fazer, um corpo

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AbstractThis paper addresses the question of the role of African languages in the evolution of Portuguese in Brazil. It shows how recent work on Portugue-se spoken as second language in Africa, and its comparison with the syntax of Bantu languages, gives empirical evidence that supports the thesis of the influence of these languages on Brazilian Portuguese, since this language displays the same characteristics. It argues that these analyses pro-vide leads to study the historical development of Portuguese in Brazil and in Africa, using texts written in this language by Africans. Finally, it raises arguments against the hypothesis of lin-guistic drift to explain the evolution of Brazilian Portuguese.

Keywords: Brazilian Portuguese formation. African Portuguese. Linguistic contact. Linguis-tic drift. Creole languages.

16 Cf. Rougé (2008).

sólido de evidências emerge de novos corpora, que podem ser interrogados de maneira cada vez mais eficiente.

Finalmente, no âmbito da comparação com o português africano, parece que nem os dados da comunidade afro-brasileira de Helvécia precisam da hipótese da crioulização –16 situação extrema no continuum da aquisição imperfeita de segunda língua, redundando na nativização de um pidgin – para serem explicados. A transmissão irregular no quadro de uma aqui-sição de segunda língua com exposição insuficiente aos dados da língua-alvo, da qual temos uma imagem moderna em Mo-çambique e angola hoje, parece dar conta do desenvolvimento histórico da variação encontrada no Brasil de hoje.

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Agruras da ficção contemporânea

Silvia Regina Pinto

Recebido 28 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

ResumoNo mundo atual, marcado por uma transformação radical das coisas, afloram crises, talvez sem prece-dentes, para todas as áreas de atividade, mexendo com a cultura, com a estética, com os valores éticos, com as noções de espaço e tempo, com as re-lações entre o público e o privado, trazendo sérias questões políticas e complexos problemas para o próprio pensamento. Este ensaio pretende mostrar como o discurso ficcional contemporâneo vem tematizando e discutindo sua própria estranheza, tentando uma reconciliação entre linguagem e re-alidade, no esforço incansável para um confronto do ser humano com um “outro” que é ele mesmo, deixando claro que, muitas vezes, a ficção torna-se necessária para que o real exista.

Palavras-chave: Filosofia. Ficção. Crise. Iden-tidade. Utopia.

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“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não

foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.

[...] Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina...”

(Guimarães rosa)1

Com este título quero dizer, primeiramente, que a ficção contemporânea suscita muita controvérsia porque há uma gran-de dificuldade em representar o mundo atual. Neste momento de transformação radical das coisas, afloram as crises, talvez sem precedentes, para todas as áreas de atividade, mexendo com a cultura, com a estética, com os valores éticos, com as noções de espaço e tempo, com as relações entre o público e o privado, trazendo sérias questões políticas e complexos problemas para o próprio pensamento. a situação evidentemente se complica quando valores universais, tais como verdade, razão, liberdade, justiça, perdem legitimidade e valor. Já não se acredita e nem saberíamos mais responder a velhas questões postas pelo Ilu-minismo.

Fala-se que uma grande novidade em relação a outras crises anteriores é que desta vez se torna quase impossível imaginar um futuro. Como se fosse muito difícil deduzir algo do passa-do, uma vez que o presente se dá como “inteiramente novo”, reconstruído como um “efeito especial”, aparentemente sem referências. São abolidos, então, o passado e o futuro em nome dessa dimensão presente que se metaforiza como eternidade, perdida em si mesma, abrindo espaço para uma complicada coisa atual que não se sabe ainda como seria melhor nomear. aboliram-se, portanto, as velhas utopias modernas, nesse jogo inseguro de tempos e instaurou-se uma certa descrença quanto a novos ideais utópicos.

Segundo o filósofo alemão Peter Sloterdijk, o intelectual contemporâneo errou de alvo: a revolução não estava sendo conduzida pelo proletariado, mas pela técnica. No fim, o jogo foi feito, a revolução aconteceu, e os intelectuais revolucionários não perceberam o que se passava. Muitos elementos nos levam a crer, escreve Sloterdijk, que deixamos o espaço das revoluções políticas para entrar no das revoluções tecnológicas e mentais, o que equivale a dizer que o papel clássico do intelectual parece ter chegado ao fim. Depois da crise que atingiu as metarrativas e a filosofia tradicional, o intelectual se vê engajado num jogo de linguagem específico cujos interlocutores são outros intelectuais, seus pares, isto é, a academia, a fim de verificar se, do fundo deste silêncio, é possível extrair uma alternativa aos dilemas razão versus desrazão, filosofia versus retórica, modernidade versus pós-modernidade (NOVAES, 2006).

1 roSa, Guimarães. Grande sertão: vere-das. In: ______. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova aguilar, 1994. v. II, p. 20-21.

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Agruras da ficção contemporânea

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A presença de um sujeito, de um sentido unívoco, enfim, da razão em busca da verdade, é justamente o que diversos pensadores, invertendo a posição socrática, vêm desconstruindo. É, pois, um pensar filosófico que aponta para o silêncio da fala e de um discurso filosófico racional, em nome da legitimidade de uma pluralidade de discursos polissêmicos que haviam sido banidos pela tradição filosófica racionalista.

Evidentemente, a arte e a literatura contemporâneas reve-lam um projeto metaficcional estético e literário que caminha em direção à configuração de uma realidade mais afinada com este momento histórico-cultural contemporâneo. Parafrasean-do resenha, publicada no Jornal O Globo,2 o espírito da época (Zeitgeist) atual nos trouxe o tempo da globalização com o pri-mado da tecnociência, da espetacularização da vida, do colapso de antigas categorias de sentido e representação, do poder da midiatização, da política que se torna refém do marketing e da imagem, do mundo percebido como objeto de consumo, da ação de mecanismos de controle cada vez mais invasivos. Deste pa-norama começa a destacar-se um movimento de releitura das diferenças, através de estratégias que fazem do sensível, na zona contingente, mas obscura dos afetos, um lugar privilegiado para questionamento da razão instrumental e seus mecanismos de poder, transformando o efeito estético em “emoção lúcida”, que procura revelar a capacidade emancipatória que se esconde no afeto, na alegria, na ironia, na imaginação, e na descontinuidade, legitimadores de propostas de sentido que não são esperança, nem muito menos felicidade, mas buscam uma afinação mais perfeita com o mundo presente.

As novas experiências narrativas contemporâneas, princi-palmente a partir dos anos 90, vêm insistindo na perplexidade gerada por este momento de crise e na discussão a respeito do assumir que o mundo atual é feito de mentiras que, apesar da contradição, muitas vezes são também verdades. Assim, em grande parte da ficção da atualidade, a ordem das coisas, a or-dem das aparências, a ordem do discurso não podem mais ser confiadas, propriamente, a qualquer matéria do saber. O fio do pensamento narrativo deixa de seguir uma linha de causalidade e racionalidade, isto é, não trabalha no rumo da representação como identificação das coisas, mas no sentido de uma desiden-tificação que até pode ser sedutora. E a ficção se transforma na ruptura da ilusão referencial da narrativa:

Estamos hoje em um mundo aleatório, um mundo em que não há mais um sujeito e um objeto harmoniosamente separados no registro do saber. Quanto aos fenômenos aleatórios, eles não se dão apenas nas coisas, nos corpos materiais: fazemos parte, nós também, do microcosmo molecular por nosso próprio pensamento – e é isto que gera a incerteza radical do mundo. (BAUDRILLARD, 2001, p. 47)

2 rossano Pecoraro, Ca-derno Prosa & Verso, 19 ago. 2006.

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Em grande parte das narrativas atuais, inclusive no cine-ma, evidencia-se a questão pós-humanista no mundo hoje, que descarta a metafísica, desconfia da imanência, passa ao largo dos sentidos únicos, envolve-se todo o tempo com os mais variados problemas de identidade, e, de quebra, questiona as indecidi-bilidades da autoria, como faz, explicitamente Chico Buarque, no romance Budapeste. ao contrário do que imaginou Platão, chegamos a um tempo em que a proliferação de imagens com todos os seus efeitos - às vezes defeitos - especiais nos levam à percepção de que os simulacros não mais se opõem à verdade, agora eles são a própria realidade, tanto para o mal quanto para o bem, contextualizando uma história geral que não mais ca-minha em linha reta rumo a possibilidades melhores, mas sim evolui como as nuvens (SaNtoS, 2003), em imagens virtual-mente novas a cada momento, sem que se possa dizer que haja definição de cópias melhores, nem piores, nem mais verdadeiras, porque as imagens duplas (às vezes múltiplas) habitam realida-des paralelas, justapostas no deslizar das coisas, não em busca de transcendências, mas das complexidades fenomenológicas encontradas na própria superfície.

Nietzsche, aparentemente, foi o primeiro a chamar a atenção para a importância do conceito de superficialidade. Segundo o filósofo, a arte nos instrui das verdades do viver superficialmente, isto é, de como parar o movimento na super-fície sensível, em vez de caçar uma essência ou uma verdade ilusória nas profundezas dessa superfície. Dizer que não adianta escavar superfícies equivale a defender que devemos abandonar as nossas tradicionais justificações metafísicas para tudo que fazemos, embora sempre se torne complicado defender o valor do superficial, porque exige a desconstrução de um arraigado pensamento a favor da profundidade metafísica, que sempre foi determinante da essencialidade de alguns aspectos, principal-mente os religiosos, da vida. Mas isto não vem impedindo que a atitude de um novo engajamento da literatura, da teoria da literatura e da filosofia revele-se claramente menos metafísico e mais fenomenológico: complexidade e superficialidade neste mo-mento são conceitos que não se excluem. Ao contrário, procura-se continuar removendo algo do entulho ideológico da metafísica para que a superfície mostre toda a complexidade de seus fenô-menos, ainda que, muitas vezes, estes sejam efêmeros.

A rejeição à profundidade acaba trazendo consigo a ne-gação da origem, operando uma ruptura com a idéia de que a interpretação, por exemplo, exige uma escavação até as profun-dezas da linguagem:

Quanto mais a interpretação avança para um suposto encontro com a verdade, mais percebe que caminha para sua morte. Isso porque, por detrás dessa crença a impulsionar o gesto em direção à profundidade, permaneceria o falso pressuposto de

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que a investigação do símbolo conduziria à coisa em si, como se este símbolo vivesse uma origem que lhe pertencesse ou fosse a própria coisa que apenas simboliza. [...] O pensar metafísico sempre concebeu a linguagem como referindo-se a algo que lhe antecede. Afirma, então, que o caminho em direção à origem levaria ao encontro de alguma coisa, material ou ideal, aquém ou além. [...] A concepção nietzscheana de signo vem revelar, contudo, que, se a linguagem é significação, o signo se limita à remissão a outros signos. [...] Para a interpretação do pensa-mento desconstrutor, portanto, a história de uma coisa não é a coisa, mas as sucessivas camadas de interpretação desta coisa. Se o signo já é interpretação, duas conseqüências advêm: (a) a interpretação é uma tarefa infinita porque não se pode com-pletar; (b) não se completa porque não há nada a interpretar, pois tudo já é interpretação. (BorBa, 2004, p. 181)

O pensar metafísico sempre concebeu a linguagem como se referindo a algo anteriormente existente. Seguindo o mesmo raciocínio, mais perto da verdade estaria aquele que mais se aprofundasse na especulação sobre o signo. Por outro lado, considerando-se a concepção nietzscheana, que é muito mais o pensamento atual, o signo se limita à remissão a outros signos. Neste caso, a história de uma coisa não é a coisa, mas limita-se às sucessivas interpretações dessa coisa, portanto, qualquer signo já é uma interpretação.

Na arte em geral e na literatura em particular, desde o fim do século XIX, a crise da representação, da desrealização e da desreferencialização veio então se acentuando cada vez mais, e, provavelmente, por essa razão hoje é fácil perceber-se na ficção esse esforço de superação dessa crise representativa e da perda de referencialidade que mais se acentuou a partir de uma chamada “virada lingüística”, nos anos 70 do século passado, a partir da qual a idéia de autonomia dos sistemas de signos vai em direção a uma situação extrema em que a realidade é absorvida pela linguagem e se confunde com sua própria representação.

Se pensarmos, por exemplo, no mundo ficcional de Jorge Luis Borges, observaremos que a idéia de arte como ilusão estará sempre presente. O ficcionista argentino discute o fato de que é impossível ser um escritor original no século XX e, fundamental-mente, de que o real é inalcançável até mesmo pela linguagem. Dito de outro modo, a realidade é dúbia e instável e o universo é uma unidade total em que as individualidades não passam de ilusão. Assim, ao confundir os limites entre a realidade e as abstrações absolutas, entre o individual e o genérico, Borges ampliará o campo de suas histórias para “incluir” todos os ho-mens (BARTUCCI, 2006).

Aprofundando essas questões borgianas, estamos agora passando por um momento epistemológico cuja característica é um grande questionamento da realidade e, sobretudo, das particularidades de sua natureza ilusória, através de imagens e

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simulações produzidas pelos meios de comunicação e pela tec-nologia em geral. Conforme Baudrillard, a desaparição do real sem deixar pistas, cria um momento em que tudo se torna real, em que não há mais nada que exista apenas como utopia, sonho ou alteridade. Nesse momento, tudo se torna um simulacro de si mesmo, portanto, as identidades tendem, por um lado, a desa-parecer, e, por outro, tendem a aparecer como reação, buscando uma “realidade real” na arte e na cultura contemporâneas. Po-demos falar, então, de uma verdadeira “volta do real”, embora, hoje, em termos não previstos pelo realismo histórico do século XIX, nem pelo realismo social das décadas de 30 e 40 do século passado, e nem mesmo pelo hiper-realismo de movimentos da década de 70, também do século passado:

De uma outra perspectiva, a mudança paradigmática na literatura e nas artes, nos anos 90, foi qualificada de “virada pictórica” (Pictorial Turn, Mitchell, 1995), acentuando a forma em que as imagens intervêm e funcionam na cultura, na cons-ciência, e na representação contemporâneas. É, exatamente, a capacidade de intervenção das imagens nas emoções coletivas, nos debates públicos e na propaganda política que motiva a substituição da “virada lingüística” pela “virada pictórica”. A idéia de uma “virada pictórica” se define, atualmente, pelo interesse interdisciplinar por estratégias retóricas e estéticas provindas, principalmente, dos meios visuais e, assim, para alguns artistas e teóricos, estamos testemunhando uma rup-tura radical com a tradição de teorias fundadas na lingüística. Para os estudos da literatura, a tese é que a questão da imagem ocupa um lugar estratégico para a discussão estética atual, uma vez que a tendência híbrida na literatura, atualmente, procura apropriar-se de procedimentos e de técnicas representativos dos meios visuais e da cultura de massa dominados pela visualidade e com a finalidade de provocar efeitos sensuais afetivos. (SCHOLLHAMMER, 2002, p. 80)

A ficção narrativa brasileira, principalmente a partir dos anos 90, vem trabalhando a realidade como encenação perfor-mática, neste sentido afetivo-crítico aqui referido, que o escritor Luiz Ruffato prefere chamar de hype-realismo, para se contrapor ao batido neonaturalismo, termo anacrônico para descrever o atual estado de coisas.

Destaco, por exemplo, o ficcionista Bernardo Carvalho, cuja obra se constrói em torno da problemática das identidades, questão essa que se desdobra, nos diversos contos e romances do mencionado autor, em várias direções: a identidade do sujeito, do autor, da ficção, do gênero, da literatura, do mundo contem-porâneo, etc. Nesta literatura, as certezas apenas encaminham uma ilusão de verossimilhança e encenam a própria ilusão de identidade. Mesmo no caso de personagens importados da vida real, o que se observa é um total esgarçamento das referências que construiriam uma palpável dimensão identitária, apesar

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dos aspectos muito realistas e até mesmo histórico-documentais, presentes nas narrativas. Num dos romances (Nove noites), por sinal baseado em fatos reais, o narrador chega a avisar ao leitor, já nas primeiras linhas, que este “vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxe-ram até aqui”. Em outro (Teatro), ao passar da primeira parte da narrativa para a segunda, o leitor constata que uma personagem que até então era uma mulher passa a ser homem, não porque tenha passado por alguma cirurgia de transexualidade, mas, porque, de forma totalmente natural, a verdade agora é outra, ou seja: a mesma personagem é também uma outra. algo a ver com Orlando, de Virgínia Woolf, ainda que diferente, até porque trata-se de uma personagem secundária.

Muitos relatos contemporâneos colocam em prática alguma coisa que pode ser perfeitamente definida pela metáfora de uma “vida líquida” (BAUMAN, 2007, p. 7):

a “vida líquida” e a “modernidade líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma forma de vida que tende a ser levada à frente numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e da sociedade se ali-mentam e se revigoram mutuamente. a vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo.

[...] Numa sociedade líquido-moderna, as realizações individu-ais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades. as condições de ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente.

[..] Em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações mais in-tensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de ser apanhado tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta. a vida líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. [...].

A obra de um outro conhecido ficcionista contemporâneo, Rubens Figueiredo, flutua “liquidamente” na perda total de uma certa “estabilidade cósmica da verdade”, anulada pelo imaginá-rio complexo que se transforma em ficção pelas próprias ações

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humanas. Chamando a atenção para uma simulação decidida a nos envolver cada vez mais, a literatura, no mundo atual, as-sume uma preocupação de quase-denúncia, além de uma vaga esperança de salvamento.

Afinal, o que é a verdade quando a simulação se torna regra geral e os efeitos especiais podem criar qualquer possibilidade de realismo melhor do que a própria realidade? Afogando-se nesse mar de indecidibilidades, a individualidade do sujeito contemporâneo o obriga, por um lado, a adaptar-se a um papel (a vários papéis cotidianos), e, por outro lado, como opção livre, restará, praticamente, só a anulação, ou o vazio. A matéria-prima das narrativas de Rubens Figueiredo é composta de imprecisão, de instabilidade, de um difuso movimento da falsificação ge-neralizada que envolve personagens, enredo, tempo e espaço, permitindo que se intensifique o jogo tenso entre o falso e o verdadeiro, como se lê no romance Barco a seco: “tudo é mentira, qualquer coisa é verdade: só resta deixar-se levar, deixar-se cair no vazio”.

A fenomenologia estuda a constituição do mundo na cons-ciência. Quase sempre esta constituição configura um tipo de moldura para a subjetividade, através da qual se pode apreender e interpretar o mundo exterior, daí o conceito de epoché – uma suspensão do mundo natural – a partir de uma “redução feno-menológica”. Assim, para muitos filósofos do século XX, ligados à fenomenologia, o conhecimento se dá, tanto na ciência, quanto na ficção, ou na vida real, como hipóteses ficcionalizantes, isto é, metáforas. Para que a compreensão do “outro” seja possível, é necessário que “eu” me reconheça também como um “outro”. Por isso, nas palavras de Luiz Costa Lima, a arte vive um enfren-tamento apaixonado com a realidade, irrealizando uma suposta unidade e expondo as fraturas do sujeito.

A narrativa ficcional contemporânea pensa o papel do narrador enquanto vítima de si mesmo, isto é, como um sujeito agenciador de estruturas referenciais complexas, que sinalizam para as tentativas de demarcação de territórios ficcionais feitos de areias movediças, identidades deslizantes e sujeitos perfor-máticos, que, muitas vezes, não passam de simulacros, tanto de narradores, quanto de personagens. os narradores distanciam-se cada vez mais do narrador “clássico”, apontado por Walter Benjamin como aquele narrador que narra com total segurança e sabedoria. Na performance da ficção atual, os narradores além de não saberem narrar, também não sabem o que narram, isto é, nas narrativas que encenam, eles demonstram que, muitas vezes, não se pode ter certeza alguma da diferença entre ver-dadeiro e falso.

Podemos, então, perceber que lidamos com uma ficção que se vinga da imensa concorrência dissimulada, ou seja, que se vinga de estarmos todos meio que roteirizados hiper-realmente.

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A ficção precisa entrar, então, para valer, no jogo que desesta-biliza as referências, na cena da não-representação, chamando a atenção sempre para a clareza de seus propósitos ficcionais. Assim, os narradores que vêm ganhando o papel principal, mostram-se sempre paradoxalmente perdidos, e, a grande temá-tica metaficcional mais presente está, exatamente, na discussão que gira em torno de como se torna impossível organizar um discurso de ficção sem que os significantes revelem claramente a arbitrariedade da nomeação, o abismo entre as palavras e as coisas, o fato de que a verdade está perdida entre todas as contradições e disparates ou entre imagens que significam a si mesmas. Histórias que dependem mais da confiança de quem as lêem e da capacidade de interpretá-las, como nos diz, ainda, um dos textos de Bernardo Carvalho.

Por sua vez, um romance como Um crime delicado, de Sérgio Sant’Anna põe em evidência que a complexidade da situação contemporânea também propicia uma certa perda de coerência da noção de literatura, da própria noção de arte, com um notável declínio da sua aura cultural. Nesse contexto, há a percepção da inviabilidade de um denominador comum conceitual, de um conceito capaz de englobar todas as variedades históricas e cul-turais dos fenômenos rotulados como literatura, ou como arte. Numa perspectiva séria, entretanto, pode-se alegar que, em ter-mos éticos, simplesmente não há alternativa para a obrigação de adaptar nossos projetos e conceitos às tarefas emergentes de uma sociedade a cada passo mais multicultural e ‘multiestética’.

Existe, no referido romance Um crime delicado, uma espé-cie de fenômeno ‘multiestético’ que comanda o espaço social de transformações e superposições, num intercâmbio entre o plástico e o lingüístico, ou, também, a representação do plástico pelo lingüístico, ou, ainda, do espaço cênico pelo lingüístico, e vice-versa. Sobre o atormentado “crítico” antônio Martins, nar-rador e protagonista do romance, observa-se que suas críticas via de regra decorrem do momento subjetivo que está vivendo, e, assim, entrelaçam-se ou confundem-se o teatro e a vida, ou, também, a crítica e a representação, ou, ainda, sujeito e objeto. No relato observa-se um extenso questionamento que pretende determinar o sentido da atividade do crítico:

Expliquei que o crítico é um tipo muito especial de artista, que não produz obras, mas vai apertando o cerco em torno daque-les que o fazem, espremendo-os, para que eles exijam de si sempre mais e mais, na perseguição daquela obra imaginária, mítica, impossível, da qual o crítico seria co-autor. algo assim. Eu falava ao sabor do momento e, em outras ocasiões, poderia explicar a coisa de modo inteiramente diverso. (SANT’ANNA, 1997, p. 28)

A discussão no romance de Sérgio Sant’Anna equivale ao que em artes plásticas se tornou, atualmente, o grande gênero do momento:

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a instalação. Uma instalação artística é uma construção de cenário ou intervenção que rompe com o espaço tradicional da galeria ou do museu, fazendo com que o espectador participe da obra e não somente aprecie. Trata-se de arte conceitual que se define como um movimento artístico – moderno ou contemporâneo – que defende a idéia, ou conceito, como o aspecto mais importante da obra de arte.

Esta perspectiva artística iniciou-se ainda na década de 1960, parcialmente em reação ao formalismo, sendo depois siste-matizada pelo crítico americano Clement Greenberg. Contudo, já a obra do artista francês Marcel Duchamp, nas décadas de 1910 e 1920, tinha prenunciado o movimento conceptualista, ao propor vários exemplos de trabalhos que se tornariam o protótipo das obras conceituais, como os famosos readymades, que desafiaram qualquer tipo de categorização ao privilegiar a idéia em lugar do artefato, instituindo a questão de não se ter certeza se são ou não objetos artísticos. o movimento de arte conceitual estendeu-se, aproximadamente, de 1967 a 1978. Mas é muito influente até agora, na obra de artistas subseqüentes que são por vezes referidos como conceptualistas de segunda ou terceira geração, ou pós-conceptualistas.

a instalação, enquanto poética que permite uma grande possibilidade de suportes, se situa de forma totalmente confortá-vel na produção artística contemporânea, que é volátil, presença efêmera e passageira, absorvendo e construindo o espaço à sua volta, e, ao mesmo tempo, o desconstruindo. tal desconstrução de espaços, de conceitos, e de idéias está dentro da práxis artística da qual a instalação se apropria para se afirmar como obra. A questão do tempo é crucial, fazendo com que a mesma seja um espelho de seu próprio tempo, questionando assim o homem desse tempo em sua interação com as discussões geradas pela própria obra.

A permanência da instalação é um fenômeno que se des-taca na arte contemporânea, sendo uma das mais importantes tendências atuais nas artes plásticas, mas influenciando a própria literatura. A necessidade de mexer com os sentidos do público, de instigá-lo, quase obrigá-lo a experimentar sensações, sejam agradáveis ou incômodas, faz da instalação um espelho de nosso tempo. Sérgio Sant’Anna, que gosta de envolver, deliberadamen-te, sua ficção com artes plásticas, com fotografia, e, com o teatro, escreve o romance Um crime delicado como se fosse uma ‘instala-ção narrativa’, aproveitando-se das características supracitadas do gênero para criar instalações plásticas e teatrais dentro da história, que acaba por se tornar ela própria algo como um tipo de instalação romanesca conceitual.

Lembrando os versos de Caetano Veloso na letra de “Lín-gua”: “E deixa os Portugais morrerem à míngua” / “Minha Pátria é minha língua”, que incentivam um distanciamento

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crítico de uma situação colonizada em relação a Portugal, talvez possamos agora pensar que a ficção atual vem substituindo-os ou completando-os por uma questão mais complicada que po-deria ser formulada com a seguinte pergunta: Em que língua está perdida a minha Pátria? ou, vice-versa.

Insinuam os narradores multiplicados e complicados de Bernardo Carvalho que a possibilidade de “cura” desta lingua-gem, consistiria, principalmente, na denúncia de que vivemos neste mundo de imagens totalmente manipuladas, e nisto há, em graus variáveis, a cumplicidade de todos: os que nem perce-bem nada, os que se tornam conscientes e podem apenas fazer denúncias, e daqueles temerosos de que a situação hegemônica de que participam perca sua hora e vez.

No caminho percorrido na Modernidade, até chegarmos ao aqui/agora que estamos vivenciando, cada vez mais o mundo ficcional precisou lutar por suas prerrogativas de ficção, porque, tecnologia de um lado, massacre de informação de outro, as imagens passaram a comandar o espetáculo, transformando o mundo atual no grande-irmão espelho que se alimenta da captação de todas as nossas imagens. É o grande simulacro. assim, quanto mais um espectador contempla, menos vive, quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens ofertadas, menos compreende a sua própria existência, a sua própria identidade, e o seu próprio desejo, instituindo-se, desta forma, a alienação do sujeito em favor do objeto contemplado. E a relação social entre os sujeitos também se faz mediada por imagens, que, ma-terializadas através dos efeitos performáticos, vêm a constituir uma visão de mundo.

trata-se de um jeito de pensar que começa supostamente na verdade, mas para privilegiar o que ela guarda de falso, isto é, de “mentira”, para com isso, em seus melhores exemplos, aproximar-se, paradoxalmente, do que poderia ser a própria verdade, como nos últimos textos ficcionais de Silviano Santiago. Um certo “fracasso” preside, então, este tipo de relato contempo-râneo, que se configura para “falhar”, produzindo uma narrativa em estado de instabilidade que acaba por realizar uma condição primeira da literatura, evidenciando que “um bom conto é um campo minado” (SaNtIaGo, 2005, p. 38).

Como sou criticamente cética, mas não totalmente pes-simista, não vejo estas questões de forma apenas apocalíptica, ou escatológica. Penso mesmo que a história do pensamento já estava a nos dever essa liberdade para o simulacro. a acreditar-se mais nos fenômenos complexos de superfície, do que nas me-tafísicas, perde-se a transcendência, mas ganha-se um imenso conjunto de fenômenos virtualmente possíveis da realidade e da ficção a nos mostrar seus significantes, a partir dos quais, nós mesmos teremos de decidir o que é ou não relevante. Uma espécie de “território livre” como categoria estética, no sentido

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de que a arte em geral, assim como a ficção em particular, são espaços sem dono, exercícios de liberdade.

Em A ordem do discurso, Michel Foucault preocupava-se em demonstrar como os princípios reguladores dos discursos interferem nas Ciências Humanas e Sociais. Os movimentos críticos a partir do século XX não escaparam, portanto, das regulamentações discursivas de que trata Foucault. Assim, os procedimentos teóricos, ao refletirem sobre o objeto “literatura”, estariam reproduzindo os mesmos processos de controle do discurso que definem o como se na episteme da modernidade, como, aliás, é a tendência de todas as epistemes.

Considerando-se a desordem do discurso atual, ocorre-me então refletir que, assim como grande parte da ficção hoje, que paradoxalmente busca o realismo, mas cada vez se sente menos responsável pela construção de uma verdade, isto é, pela pró-pria inteligibilidade, também os simulacros teórico-críticos, na atualidade, precisam aprender a jogar com peças de linguagem que não respeitam o limite de seus tabuleiros, espalhando-se por toda parte. o que resta então à crítica que se quer teoricamente adequada à estética contemporânea é a simulação de uma galáxia de significantes interpretativos possíveis, na dimensão lúdica de pluralizar repetições, diferenças, figuras, imagens, entrando no próprio jogo da desordem do discurso ficcional.

Neste momento, falar de Literatura, utopia e crise implica perceber que os melhores discursos ficcionais da atualidade vêm tematizando a própria crise ao construir simulacros inteligentes do próprio gênero narrativo. A narrativa de ficção e a narrativa cinematográfica são fábricas de sonhos e busca de realidade que colocam o desejo em obra e, simultaneamente, reafirmam a potência do desejo de pôr o sujeito em obra (BARTUCCI, 2006), metáfora que elimina a morte desse sujeito. Então, que Diadorim seja a nossa neblina, tomando emprestada a riobaldo essa licença poética. Se utopia existe para não existir, e, se o discurso da lite-ratura é sempre uma grande ilusão, a literatura, apesar de suas agruras, continua sendo uma utopia que ainda é possível.

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AbstractIn today’s world, in which we can see a radical transformation of things, nearly unprecedented crises emerge and affect all areas of activity, chal-lenging culture, aesthetics, ethical values, notions of space and time, and the relations between public and private, as well as bringing serious political issues and complex problems to the very realm of thought. This essay aims at showing how contem-porary fictional speech thematizes and discusses its own perplexity, attempting a reconciliation between language and reality in a relentless effort towards the confrontation of the human being with an “other” who is himself and, in this way, often making clear that fiction becomes necessary for the existence of the real.

Keywords: Philosophy. Fiction. Crisis. Identity. Utopia.

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Narrar é resistir?Denise Brasil Alvarenga Aguiar

Recebido 26 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

ResumoAnálise da ficção contemporânea, buscando compreender as transformações da literatura no contexto das alterações sociais e culturais que marcam os tempos da chamada pós-modernidade. Identificação de vertente literária de tematização do sufocamento da subjetividade no cenário hostil da exclusão social. Busca de diálogo entre escrita literária do Brasil e da África do Sul em fins do século, a partir de duas obras específicas: o quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll, e a vida e a época de Michael K., de J.M. Coetzee.

Palavras-chave: Ficção contemporânea. Pós-modernidade. Noll. Coetzee.

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a pergunta que intitula o texto foi retirada de uma epígrafe do conhecido livro em que Fernando Gabeira narra sua versão da história do seqüestro do embaixador americano, em plena ditadura militar. No livro, em forma de afirmação, ela reflete um pouco do sentido de missão que a narrativa assumira àquela altura, nos idos de 1979, quando, ainda na ditadura, mas já em uma sociedade que buscava se reorganizar para a reconquista do estado de direito, era imperioso denunciar a violência do regime. Muito já se disse acerca dessa missão e dos vários equívocos que a cercaram, em especial quanto à crença de que a literatura deve abdicar de seu estatuto artístico para retratar uma realidade interditada ao cidadão comum, pelos mecanismos de repressão e censura dos veículos de informação.

Neste início de século XXI, e, na realidade, desde o fim do XX, entretanto, há uma evidente mudança de contexto: em tempos de aparente normalidade democrática no Brasil (se é que se pode chamar assim um estado que mantém e aprofunda as desigualdades sociais), o inimigo possui feições difusas, tão voláteis como o capital globalizado, a denúncia parece não ter mais efeito nem mesmo propósito, e a literatura, como fenômeno cultural, ocupa-se, em grande medida, de sua própria crise.

É preciso, portanto, investigar as feições dessa narrativa contemporânea, tomando como referência, ainda que de ma-neira breve, as muitas transformações da vida social e cultural que assinalam a historicidade específica da narrativa de fins do século XX, já em um contexto de claras transformações que se impuseram mais acentuadamente a partir de suas duas últimas décadas. Nessa discussão, pode-se retomar o mote inicial, em-bora seja preciso recolocar a afirmativa em forma de pergunta: afinal, narrar é resistir?

Em primeiro lugar, voltando um pouco no tempo e pen-sando na natureza específica da narrativa e nas relações que ela estabelece com experiência humana ou social, há de se re-conhecer que, já na modernidade, na ordem fragmentária que a existência inegavelmente assume, as formas literárias – dentre elas, talvez principalmente, o romance – vão incorporar à sua essência e estrutura muito dessa natureza. Num mundo em que “ser homem é ser só” (LUKÁCS, 2000, p. 82), a literatura encontra seus meios de sobreviver ao declínio de uma relação entre experiência e arte que sustentara, por exemplo, a palavra épica. Como afirma Benjamin, no célebre ensaio “O narrador”, o advento do romance na era moderna é representativo desse processo em que o acelerado e ofensivo ritmo da modernidade imprime ao homem a fragilidade e o isolamento:

[...] o romancista segregou-se. o local de nascimento do roman-ce é o indivíduo na sua solidão, que já não consegue exprimir-se exemplarmente sobre seus interesses fundamentais, pois ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar. (BENJAMIN, 1975, p. 60)

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Configurado plenamente no curso da ordem moderna, o romance seria dela também um testemunho, conforme identi-fica Lukács: “O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática [...]” (LUKÁCS, 2000, p. 55). Nos tempos contemporâneos, esse sentimento de inadequação de uma totalidade extensiva ou de imanência parece ainda mais evidenciado.

Em segundo lugar, tomando como foco o segundo elemento da pergunta (“resistir”) é preciso discutir o que se entende por resistência ou mesmo a necessidade de que ela exista no con-texto de precarização da experiência, particularmente em nosso tempo, quando proliferam os anúncios de morte das utopias. Já há bastante tempo está claro que, quando se fala em arte e cultura, essa resistência possui seus limites específicos. Falando propriamente da narrativa literária, podemos lembrar Silviano Santiago, que, na prosa-limite de Em Liberdade, ainda na década de 80, aponta, nas palavras de um Graciliano ramos personagem e autor de um diário fictício, que a função do escritor deve ser a de instilar gotas de insatisfação quando a sociedade parece acomodada a uma norma – no caso, especificamente, à norma autoritária. Essa função, contudo, não se cumpriria por meio de uma ficção tal e qual a realidade; pelo contrário, só atingiria o objetivo se sua elaboração artística incorporasse o conflito de subjetividades, exercitado por intermédio de uma linguagem feita de ambigüidades e lacunas.

Mesmo sabendo que a fala, no livro, se contextualiza na discussão do papel do artista em meio à experiência autoritária, pode-se dizer que esse impulso de produzir o estranhamento, o incômodo gerador da reflexão, atravessa as eras da literatura, particularmente nas obras que sobrevivem ao seu próprio tempo. De fato, é disso que vem tratando, há muito, a crítica e a história da literatura. Entretanto, um dos problemas que se colocam hoje, para a arte e para o pensamento, afeta exatamente a necessidade de haver esse impulso ainda visto como forma de resistência. Grande parte da retórica que embalou o pós-moderno busca encontrar, para a literatura e para aquilo que concebe como exercício crítico, outras searas, quilômetros distantes das formas de interpretação do mundo que dominaram a modernidade.

Afinal, a preponderância da imagem, a diluição das rela-ções de pertencimento nacional ou regional sob o domínio do capital globalizado, e o abandono de dadas categorias históricas em privilégio de um presente em que a liberdade é tutelada pelo consumo, são todos fatores da contemporaneidade que se impu-seram na reflexão sobre a capacidade – ou, antes, até mesmo sobre a necessidade – de uma resistência operada pelos incômodos que a arte, com suas armas próprias, é capaz de produzir. Esse contexto, como sabemos, encontra-se intimamente vinculado à

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idéia de superação da modernidade, na configuração de uma pós-modernidade que ataca todo tipo de totalidade (da qual os projetos de resistência também teriam participado), na defesa de um modelo atomizado das experiências humanas, dentre elas a artística.

De fato, um dos primeiros elementos atacados pelo precur-sor das teorias do pós-moderno, Jean François Lyotard, são os projetos de saber (por extensão, de arte e de cultura) fundados no que ele chama de metarrelatos, ou seja, os grandes modelos interpretativos da sociedade e do homem, que se afirmaram no curso da consolidação da modernidade (LYOTARD, 1986).

Para Lyotard, sinteticamente, o período histórico inau-gurado com as Luzes baseava-se em uma pressuposição de verdade – consenso entre interlocutores norteados por mentali-dades racionais – na qual se baseavam os metarrelatos, ou seja, as interpretações teóricas que buscavam aplicação ampla ou mesmo universal, como, por exemplo, as propostas por Marx ou Freud. O pós-moderno, por outro lado e em termos também sintéticos, seria baseado na incredulidade contemporânea diante da legitimação gerada por esses metarrelatos. tal crise de legiti-midade, correlata à própria crise da modernidade na sociedade pós-industrial informatizada – caracterização baseada no con-servador Daniel Bell –, revela, ainda para Lyotard, que a ciência se inscreveria agora em um domínio de jogos de linguagem, no qual não detém a supremacia que a Razão moderna outrora lhe conferira.

Na rede desses jogos de linguagem, a legitimação depen-de de um pacto temporário ou conjuntural a cargo dos sujeitos envolvidos. Exposta ao casual e descontínuo, tal legitimação seria cada vez menos passível de controle por formas centraliza-doras, inclusive aquelas pertinentes ao Estado-nação moderno, que, no processo de consolidação da modernidade, deteve um histórico privilégio no que concerne à produção e à difusão do conhecimento. Nesse quadro de inequívoca fragmentação das proposições vistas como “verdades” modernas – particularmente aquelas derivadas das promessas emancipatórias da revolução Francesa – o performático e o paralogístico emergem como marcas dos novos tempos.

Independentemente, entretanto, do juízo que se possa tecer sobre esse tipo de reflexão, é fato que aquilo que se gerou progressivamente a partir do fim da década de 70 do século XX foi, no campo teórico, um sentimento de insuficiência em relação a conhecidas linhas de pensamento da modernidade, na tentativa de apreensão e análise da sociedade contemporânea. É na repetida manifestação disso que se configura o que Rou-anet chama de “consciência da ruptura” com a modernidade (ROUANET, 1987).

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Não se vai aqui estender a discussão acerca da existência ou não dessa ruptura, mas buscar-se-á entender como a literatura contemporânea tem percebido tal consciência e de que modo ela tem, ou não, apresentado sua forma específica de resistência.

Tomemos como exemplo, na literatura brasileira, o romance de João Gilberto Noll, O quieto animal da esquina, publicado em 1991, e, entre os escritores africanos, o exemplo de Coetzee, com A vida e a época de Mikael K., de 1993.

Partícipes de um mundo instável, excludente e desesperan-çado, os protagonistas desses romances encarnam uma forma particular de epopéia em nosso tempo. Solitários, com rumos e propósitos incertos, suas viagens são embaladas por um sen-so de sobrevivência muito distante da altivez ou astúcia dos heróis épicos. O talento que lhes permite continuar a existir é justamente o de saber viver às margens, de desaparecer em uma sociedade para a qual eles, em última instância, seriam mesmo invisíveis e até desnecessários.

No romance de Noll, um personagem-narrador anônimo se apresenta, logo de início, em um contexto de instabilidade, próprio não só da exclusão social, como também, metaforica-mente, da vida contemporânea. Desempregado, sem pai, vive com a mãe em uma ocupação urbana de um prédio abandonado e inacabado, evocando uma espécie de desenraizamento que marca o cenário social dos despossuídos e que, internamente à narrativa, vai acompanhar o personagem, assinalando sua condi-ção sempre estrangeira e, no fundo, incapaz de verdadeiramente compreender um mundo que parece dispensá-lo, descartá-lo.

Depois de conhecer os porões de uma prisão e de uma clínica correcional (presentes na narrativa, vale dizer, como fla-shes, sem ceder ao apelo fácil de um realismo empobrecedor), o personagem-narrador é levado para conviver com uma família de alemães, proprietários rurais, revivendo uma condição de agregado que ficou célebre na literatura brasileira pelo viés irô-nico de Machado de Assis. Homem de seu tempo, entretanto, o agregado da casa de Kurtz e Gerda experimenta o sem-lugar de sua própria condição, sem capacidade de se movimentar como o vivíssimo José Dias, e temendo, a cada momento, perder aquela vida confortável pela qual nada efetivamente fez e sobre a qual também pouco entende. Esfumaçados seus registros de origem e de classe, percebe a violência que pulsa subliminarmente na casa dos fazendeiros, ao mesmo tempo em que observa, algo distante, o movimento dos sem-terra em uma iminência de ocupação:

Fui para o quarto, e a noite já tinha caído, lá em cima na estrada os sem-terra acendiam fósforos, uma ínfima chama se apagava e logo outra se acendia por perto, me debrucei na janela, me veio a lembrança de uma canção que a rapaziada costumava cantar nos tempos da Glória, mas eu não conseguia avançar do primeiro verso, e mesmo aquele único verso foi como que

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se diluindo na minha cabeça, em alguns minutos se desfez, na verdade parecia que de repente o meu destino tinha me ultrapassado, a mim e a todas as canções que costumavam sair de cor da minha boca, de tal modo que chegaria um tempo em que eu viraria para trás e não teria mais nada que reconhecer. Daqui a pouco não precisarei mais mover uma palha para evi-tar o meu passado, pensei com desafogo. (NOLL, 2003, p. 42)

Os fatos da arena política nacional também não lhe desper-tam interesse e só lhe aparecem como pano de fundo residual, como se expressa na referência a um comício da campanha Lula, que, na narrativa, serve de ocasião para um dos encontros sexu-ais do personagem central, no jogo de acasos que caracterizam sua vida amorosa, esvaziada de afeto, como todas as relações interpessoais que ele precariamente estabelece.

Mas em meio à sua jornada feita de acasos e silêncios, como dado de desequilíbrio, como apelo ao inesperado, o anônimo narrador é poeta. Escrevia versos enquanto procurava, em vão, emprego pelas ruas de Porto alegre, nos tempos ironicamente identificados com um bairro denominado Glória. E depois, nas agruras de sua vida errante, a poesia persiste ainda, como um elemento inesperado que, de algum modo, sobrevive à progres-siva acomodação, à própria assimilação de sua subjetividade por uma história feita por outros sujeitos.

Com essa condição de criador convive, em constante ten-são, a imagem do “quieto animal da esquina”, título de um dos poemas do personagem central, que remete a uma situação con-traditória: a quietude, o comportamento domesticado, guarda um esvaziamento da condição humana, uma paradoxal anima-lização, localizada em um espaço que sugere, simultaneamente, proximidade e iminência, intimidade e perigo.

Assim, a percepção do casual e do temporário – detectada por Lyotard, no plano teórico, como forma de libertação diante de uma totalidade derivada do Iluminismo – revela-se, no ro-mance de Noll, como a face dramática de uma efetiva redução das possibilidades do indivíduo, e não como sua redenção ou mesmo como qualquer tipo de avanço. Longe dos pertencimentos celebrados pelo projeto hegemônico da modernidade, a figura anônima do narrador apega-se precariamente ao que lhe aparece, renunciando ao papel de protagonista de sua própria história. Nessa renúncia, entretanto, afastam-se tanto as possibilidades de encontro mais coletivo com seus pares, quanto qualquer so-lução individual que não implique submissão e quase anulação do indivíduo, em proveito de um presente inseguro, feito de formas diversas de violência e solidão.

Desse modo, aquela cena das opressões operadas por um inimigo visível, pelos diferentes mecanismos de tutela do imagi-nário (em que se move a narrativa de Gabeira ou a condição do Graciliano-personagem de Santiago, por exemplo), é substituída

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por outra, em que a anulação do indivíduo assume alguma forma de escolha. Afinal, na equação entre condições de vida miserá-veis e alternativas de salvação, não se pode dizer que o jovem anônimo da narrativa de Noll não tenha, em parte, escolhido o seu caminho, mesmo que tal opção leve, paradoxalmente, a uma progressiva perda de capacidade de escolher, à aceitação de uma proteção que se revela, no fundo, desenraizadora e impeditiva: “Recomecei a andar, frouxo, sem vontade, como se Porto Alegre já não me interessasse. Se tivesse um jeito de eu permanecer no rio, ou mesmo na alemanha, na Europa, sem perder a situação que Kurt me proporcionava” (NOLL, 2003, p. 42).

Na cena final, a aceitação em vestir as roupas do fazendeiro alemão é acompanhada de um berro, que aponta uma percepção definitiva da perda da identidade que se vinha fazendo progres-siva e agora se mostrava irremediável. Vão-se os últimos fios de uma identidade que se viera adaptando, demonstrando-se tão líquida como a fase atual da modernidade, na caracterização de Bauman (2001).

Tal interpretação, nada celebrativa, dos deslizamentos do sujeito integra um esforço de leitura da realidade em que, se por um lado enxerga como problemas os projetos emancipatórios que se fizeram presentes no imaginário durante grande parte do século XX, por outro reproduz, no aleatório do jogo das identida-des, o gesto que imortalizou o desespero n’O grito de Munch.

Não parece haver projeto de redenção na ficção de Noll, que leva o leitor a acompanhar a condição errante do perso-nagem principal, em uma viagem pelas margens, pontuada pelo iminente desamparo e pela diluição do ser em seu trágico cenário social. Também nessa narrativa, a figuração do desen-raizamento, o sentimento estrangeiro em um mundo instável e hostil, acompanha a perene condição fugidia de um narrador significativamente anônimo, que se esgueira pela casa na volta de suas saídas noturnas, que observa à distância o complicado jogo de papéis na casa dos alemães, e que, enfim, só guarda de si mesmo um berro, resistência lacunar e desesperada de quem vê sua sobrevivência como renúncia.

Nesse sentido, a resistência que se pode ler no romance não encarna mais aquela face exposta de que fala a epígrafe de Gabeira, mas se ocupa em manifestar, agudamente, uma consciência que talvez entenda o próprio exercício crítico como o “quieto animal da esquina”, como potencialidade latente de desconstrução de uma ordem que se anuncia como mundial.

De animalização e silêncio também se compõe o perso-nagem Michael K., de Coetzee. Assinalado desde o nascimento por um lábio leporino e pela condição social subalterna de sua mãe, Michael segue seu caminho sempre às margens, sempre insignificante em sua solidão:

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Ano após ano, Michael K ficou sentado em cima de um co-bertor vendo a mãe limpar o chão dos outros, aprendendo a ficar em silêncio.[...]

Aos quinze anos, saiu do Huis Norenius e passou a fazer parte da Divisão de Parques e Jardins do serviço municipal da Cidade do Cabo, como Jardineiro, grau 3(b).Três anos de-pois, deixou a Parques e Jardins e, após um breve período de desemprego que passou deitado olhando as próprias mãos, arrumou um trabalho de atendente noturno nos lavatórios públicos de Greenmarket Square.[...]

Por causa da sua cara, K não tinha amigas mulheres. Ficava melhor sozinho. Ambos os empregos haviam lhe dado uma certa medida da solidão [...]. (COETZEE, 2003, p. 10)

Vivendo no país do apartheid, em um contexto de extrema instabilidade social, experimentando a opressão de um regime autoritário, que o lança à condição de uma cidadania de segunda classe – deformação social a que sua deformação física e seu si-lêncio metaforicamente parecem remeter –, Michael decide levar a mãe em uma viagem de volta à terra natal dela, no interior da África do Sul. Doente, com dificuldade de locomoção, a mãe é carregada por Michael em um carrinho de mão, imagem de uma precariedade em tudo semelhante à sua própria vida e às suas condições de se afirmar como sujeito em uma sociedade na qual o direito de ir e vir pode depender da condição social ou racial daquele/a que o reivindica.

A viagem de volta à origem, à fazenda onde passara a in-fância, torna-se inconclusa para a mãe, que morre bem antes de chegar ao destino, transformando-se em cinzas que, segundo a própria conclusão de Michael, dão continuidade à insignificância que sempre lhe impuseram em vida. Mas, para ele, o percurso do silêncio e da invisibilidade continua, seja no hospital, no campo de refugiados, ou numa toca da fazenda que ele usa para se esconder, camuflando-se na mesma terra que dá vida às suas poucas sementes de abóbora.

Em sua caverna algo platônica, isola-se de um mundo ame-açador e hostil, refugiando-se tanto do neto do proprietário da fazenda, que quer escravizá-lo, quanto das ameaças da guerra civil. A cada dia que passava, “parecia não existir nada, a não ser viver”, e era o que ele fazia, às vezes esvaziando a mente, “sem querer nada, sem esperar nada” (p. 82). Mas, em tudo distante daquele universo grego, sentia-se como um bicho. A luz que o cegava acaba por alcançá-lo, revelando a fragilidade de sua vida e de sua saúde, expulsando-o de seu refúgio e interrompendo sua relação com a terra, único fio de existência que – ao contrário da guerra civil sul-africana e do mundo, que o sufocavam – ele parecia compreender.

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De uma memória que “parecia ser feita de partes, não de todos” (p.61), Michael tira o sentido de sua caminhada, de uma inacreditável resistência que, massacrada pela debilidade do corpo e pelo peso da História, se recusa à adaptação, mesmo aquela camuflada pelo discurso da compaixão. Diferente do personagem do Noll, Michael move-se norteado pelo sentido de sua distância em relação a este mundo, pelo estranhamento de suas feições e de suas atitudes, em uma realidade em que sobre-viver implica conceder. Perplexo, o oficial médico de um campo militar de “reabilitação e trabalho” para prisioneiros assume a fala narrativa e procura definir essa condição fugidia:

Nesse momento, desconfio, por ser essa a sua natureza, você se poria a correr.E eu teria de correr atrás de você, chapinhando na grossa areia cinzenta como se fosse água, desviando dos galhos, gritando: “Sua estada no campo foi apenas uma ale-goria, falando no nível mais elevado, de como um significado pode, escandalosamente, exorbitantemente, se instalar dentro de um sistema sem passar a fazer parte dele. Você notou como, sempre que eu tentava encurralar você, você escapava? Eu notei. Sabe que idéia passou pela minha cabeça quando vi que você tinha ido embora sem cortar o arame farpado? ‘Ele deve saber saltar com vara’. Foi isso que pensei. Bom, você não pode saltar com vara, Michael, mas é um grande artista da fuga, um dos maiores fugitivos: tiro o meu chapéu para você!”. (COETZEE, 2003, p. 192-193)

Instalar-se no sistema, sem tornar-se parte dele, fugir sem rumo, entregar-se à terra é dotar-se de um poder de superação tão improvável como saltar com vara sobre a cerca de um campo de prisioneiros, para alguém no limite das forças do corpo. Mas é justamente quando esse improvável acontece que Michael con-segue comunicar o significado de sua vida, predominantemente feita de solidão e incomunicabilidade. Logo ele, para quem as palavras sempre foram problema, visto que freqüentemente in-compreensíveis, fazendo “a burrice subir dentro dele” e em muito lembrando nosso Fabiano de Vidas Secas, na sua precariedade de vida e de linguagem.

Nessa alegoria do precário, mostram-se as ruínas de um pertencimento que Michael também não reconhece como possi-bilidade para continuar existindo. Afinal, família, nacionalidade e coletivo são moldes sempre distantes para ele. a identidade deformada de sua face, a mãe que sentia medo e vergonha, afastando-o das outras crianças, uma nação que não lhe confe-re cidadania e o constante desencontro com seus semelhantes, brutalizados, como ele próprio, pela miséria ou pela guerra, são todos fatores que tornam impossível seu encontro com o outro e, em alguma medida, consigo mesmo.

Como o protagonista do romance de Noll, Michael não se define, apenas foge. E aqui não é a identidade que desliza, que se torna móvel. Afinal, a identidade lhe foi impressa, a ferro e

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fogo, por um mundo intolerante e excludente. O desconcerto de sua existência conduz à incompreensão, tanto por parte dos outros, quanto por ele mesmo:

Ninguém sabia de onde ele era. Não tinha nenhum documento, nem um cartão verde. No boletim escreveram “Michael Visagie [na verdade, esse era o nome da família proprietária da fazen-da em que ele se escondera] – Sexo masculino – Cútis escura – 40 – Sem residência fixa – Desempregado”, acusado de sair de seu distrito legal sem autorização, de não ter em sua posse documento de identificação, de infringir o toque de recolher, de bebedeira e desordem. (COETZEE, 2003, p. 84)

Sempre que [Michael] tentava se explicar para si mesmo, so-brava um espaço, um buraco, um escuro diante do qual seu entendimento empacava, no qual era inútil jogar palavras. As palavras eram devoradas, o buraco permanecia. Sua história tinha sempre um buraco: uma história errada, sempre errada. (COETZEE, 2003, p. 128)

Com a fuga de Michael, significativamente contada por pa-lavras pertencentes a um outro (o médico) sujeito da enunciação, a narrativa sugere que a condição de excluído, de errado, assim como sua marca de nascença, vai acompanhar o personagem em todos os espaços e por todo o tempo. Com essa identidade bem marcada no jogo da exclusão e do silêncio a que é condenado por sua época, a Michael K resta alhear-se, fugir. Mas é nesse alheamento que se demonstra sua resistência.

É interessante observar que a idéia do deslocamento parece mesmo companheira constante da narrativa contemporânea, seja na figuração do sentimento de abolição de fronteiras, seja na representação problemática do chamado descentramento do indivíduo ou das muitas crises que abalam os pertencimentos coletivos. Essa configuração esvazia a idéia de uma resistência identificada com a utopia, conduzindo parte da boa ficção con-temporânea para o exercício de instilar suas gotas de insatisfação na caracterização de um tempo movediço e instável.

E, se é verdade que essa instabilidade é marca da nossa época – correlata de um mundo capitaneado pelo capital volátil e globalizado –, é fato também que ela se faz muito mais mar-cante no lado do planeta que está historicamente condenado a pagar a conta dos desacertos do chamado primeiro mundo. É significativo que essas narrativas ambientadas no Brasil e na África do Sul mostrem, de maneira tão aguda, o que representa viver à margem; no caso de ambos os protagonistas, à margem da margem.

Nas rotas de fuga do anônimo poeta e de Michael K, a realidade não se produz por uma cultura tornada uma segunda natureza, para usar as palavras de Jameson (2004) – embora na ambientação contemporânea dos romances sempre se possam reconhecer alguns efeitos desse fenômeno. Não há lugar para o

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pastiche ou para a glorificação do simulacro; o peso da existência individual e social de ambos se impõe, soterrando as possibili-dades de deslizamento do sujeito, de exercício interpretativo de citações ou de múltiplas realidades. Diante dessas figuras dolo-rosamente inseridas na nova ordem mundial, principalmente Michael K, a figuração de uma humanidade sem fronteiras, irmanada pelas possibilidades da comunicação e do consumo em escala global, assume tom de impiedosa pilhéria. analisando as conseqüências humanas da globalização, Zygmunt Bauman ela-bora uma caracterização que parece precisa para o problema:

Se a nova extraterritorialidade da elite parece liberdade in-toxicante, a territorialidade do resto parece cada vez menos com uma base doméstica e cada vez mais com uma prisão – tanto mais humilhante pela intrometida visão da liberdade de movimento dos outros. Não se trata apenas do fato de que a condição de “estar imobilizado”, incapaz de se mover à vontade e com acesso barrado a pastagens mais verdejantes, exsude o odor acre da derrota, indicando uma condição hu-mana incompleta e implicando ser defraudado na divisão dos esplendores que a vida tem a oferecer. A privação atinge mais fundo. (BAUMAN, 1999, p. 31)

assim, para ambos os personagens, o que seu espaço-tempo legou foram as pequenas brechas em que aprenderam a sobreviver. De algum modo, as narrativas de que fazem parte caracterizam ainda uma via de resistência, destoando do tom algo festivo e kitsch da estética pós-moderna, daquilo que Jame-son caracterizou como lógica dominante do capitalismo tardio. Aliás, o crítico examina exatamente O grito, de Munch, para levantar a hipótese histórica de que os conceitos de ansiedade e alienação (que estariam sugeridos na tela) não são mais pos-síveis no mundo pós-moderno, tendo em vista que a alienação foi deslocada pela fragmentação do sujeito.

Se este é comumente visto como o sujeito centrado bur-guês, cunhado na primazia do individualismo, vale notar que os protagonistas dos dois romances não podem propriamente ser identificados com tal categoria. Seu desespero advém de outro tipo de experimentação do mundo e, no geral, seu empareda-mento não se aproxima das angústias do homem isolado em virtude das mesmas questões que se manifestavam nas obras do modernismo. Iguais a eles, milhões de outros homens a quem são e serão negadas as portas do futuro, a quem restará apenas existir e em nome de quem, por vias diversas, próprias de sua época, a literatura continua a lançar seu grito, talvez, para lem-brar o poeta, esperando outros galos que o apanhem.

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ReferênciasBAUMAN, Zigmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1975.______. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Trad. José Carlos Barbosa et. al. São Paulo: Brasiliense, 1995. v. I, II, III._____. O narrador. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (os pensa-dores)COETZEE, J.M. Vida e época de Michael K. Trad. José Rubem Si-queira. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. trad. Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&a, 2001.JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalis-mo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 2004.LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosó-fico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2000.LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Trad. Ricardo C. Bar-bosa. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1986.NOLL, João Gilberto. O quieto animal da esquina. São Paulo: Fran-cis, 2003.ROUANET, Sérgio P. A verdade e a ilusão no pós-modernismo. In: ______. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

AbstractAnalysis of contemporary fiction, in an attempt to explicit the transformations of literature in the context of social and cultural changes which characterize post-modernity. Identification of literary trends of thematization of the erasure of subjectivity in the hostile scenery of social exclusion. Search for a dialogue between literary writing in Brazil and in South Africa in the late 20th century, based on two specific works: João Gilberto Noll’s o quieto animal da esquina and J.M.Coetzee’s Life & times of Michael K.

Keywords: Contemporary fiction. Post-moder-nity. Noll. Coetzee.

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os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água, versões e

construção de identidadeLúcia Bettencourt

Recebido 28 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

ResumoNeste artigo, o exame do conto “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, extraído de os velhos marinheiros (1961) revela que, em sua elaboração, Jorge Amado aproveitou-se de perso-nagens correntes na dramaturgia popular, e recor-rentes em sua obra. Estas personagens, oriundas da tradição européia da “comedia dell’arte”, na ficção de Amado se mesclam à arte popular re-gional, de forte influência africana. Com isso, o conto pode receber uma nova leitura que deixa de privilegiar o caráter fantástico da narrativa para ressaltar o seu aspecto dramático, subvertendo a compreensão do cidadão brasileiro, Quincas, que adquire expressividade através da manifestação artística popular, já que o próprio protagonista ganha traços de marionete. Na cena final, os cabos das velas do saveiro balançam vazios após o desa-parecimento do boneco que animavam, deixando em seu lugar a possibilidade de diferentes versões que o construam.

Palavras-chave: Marionetes. Dramaturgia po-pular. Jorge Amado. Quincas Berro D’Água.

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Quem começa a leitura de “a morte e a morte de Quincas Berro D’água”, de Jorge Amado e presta atenção na descrição das personagens, se surpreende com caracteres de traços e roupas exageradamente fora do comum, que bem poderiam ter sido tirados do palco de um circo que reinterpretasse as tradições da commedia dell’arte. Quincas, Curió, Pé-de-Vento e os outros apa-recem descritos como verdadeiros marionetes, com “fantasias” bizarras e rigidez caricatural. Quincas vem apresentado com os trajes de vagabundo – um vagabundo idealizado, que se opõe a um mundo pequeno burguês dominado pela conveniência, a economia e o senso prático. Sua roupa grande demais, seu cole-te sebento, a meia furada e a barba por fazer funcionam como elementos que lhe fornecem identidade e, até mesmo, vida.

Preparada por inúmeras divagações que se expandem por todo o primeiro capítulo da narrativa, a figura de Quincas finalmente aparece sem retoques: “Quincas sorria deitado no catre – o lençol negro de sujo, uma rasgada colcha sobre as pernas –, era seu habitual sorriso acolhedor […] O dedão do pé direito saía por um buraco da meia, os sapatos rotos estavam no chão” (aMaDo, 1961, p. 22).

Esta é a caracterização habitual da personagem. Nada disso causa espanto à negra que vem à procura do vagabundo para apanhar as ervas que este lhe prometera conseguir. Seu sorriso costumeiro, sua figura familiar não lhe causam estranheza. a negra somente se apercebe de que algo está errado quando Quincas deixa de agir como era esperado, e não estende a “mão libertina, viciada nos beliscões e apalpadelas” (aMaDo, 1961, p. 23). Até mesmo Vanda, a filha, não se surpreende ao encontrá-lo, um capítulo mais tarde, na mesma situação em que fora dado como morto. “No catre, Quincas Berro Dágua, as calças velhas e remendadas, a camisa aos pedaços, um seboso e enorme colete, sorria como se estivesse a divertir-se. […] o rosto de barba por fazer, as mãos sujas, e dedo grande do pé saindo da meia furada” (aMaDo, 1961, p. 25).

A oposição entre a respeitabilidade da filha e a falta de apresentabilidade do morto se revelam no rosto ruborizado de vergonha com que Vanda contempla o pai. A distância entre a filha e o pai transviado é tanta que a impede de qualquer emoção filial. Mais do que isso, não a deixa entrar no “picadeiro”, para servir de espetáculo aos poucos presentes que “[a]fastavam-se para ela passar, curiosos de vê-la lançar-se sobre o cadáver, abraçá-lo, envolver-se em lágrimas, soluçar talvez” (AMADO, 1961, p. 25).

O fato é que, tal como nos é apresentado, Quincas é um boneco abandonado pela vida, ao qual é preciso ajeitar, consertar. Desde o início da narrativa, temos dois mundos aparentemente antagônicos, enfrentando-se na disputa de versões sobre sua morte. Os discursos se contradizem, as lacunas se multiplicam.

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A família defende a versão da morte matinal, enquanto outra versão se propala nas ladeiras e becos excusos. Ao atestado de óbito, “papel selado” com “letras impressas e estampilhas”, versão oficial defendida pela família, vem se contrapor a pró-pria narrativa, versão criativa defendida pelas “testemunhas idôneas”.

a história se desenvolve num nível quase alegórico, com a elevação da suposta frase final de Quincas não só à categoria de epígrafe do texto como também a “um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo” – seja lá esse qual for, já que isso é deixado em aberto para a interpretação dos leitores do “jovem autor de nosso tempo” (aMaDo, 1961, p. 19, passim).

Como numa revolta dos brinquedos, todas as marionetes companheiras de Quincas se reúnem na criação de uma versão antagônica à dos familiares de Joaquim Soares da Cunha. O fantoche abandonado sobre a cama vai ser vestido e desvestido, colocado em repouso ou em movimento, criando um espetáculo ao luar que se pretende portador de um sentido mais além das versões duplas e díspares.

O objetivo da filha Vanda é recuperar a imagem anterior do “boneco”, a imortalizada no quadro pendurado na parede de sua sala: “um senhor bem posto, colarinho alto, gravata negra, bigodes de ponta, cabelo lustroso e faces róseas” (AMADO, 1961, p. 24). Este retrato, tão estereotipado quanto o de sua mãe, é o paradigma pelo qual a família se guia para a recuperação do morto. Retirando a “fantasia” de vagabundo e colocando no corpo inanimado a “fantasia” de correto funcionário da Mesa de Rendas Estadual, a identidade do morto se modifica. Já não se trata mais de Quincas Berro D’Água, mas de Joaquim Soares da Cunha.

Não compreendiam que Quincas Berro D’Água terminara ao exalar o último suspiro? Que ele fora apenas uma invenção do diabo. Um sonho mau, um pesadelo? Novamente Joaquim Soares da Cunha voltaria e estaria um pouco entre os seus, no conforto de uma casa honesta, reintegrado em sua respeita-bilidade. Chegara a hora do retorno e desta vez Quincas não poderia rir na cara da filha e do genro, mandá-los plantar ba-tatas, dar-lhes um adeuzinho irônico e sair assoviando. Estava estendido no catre, sem movimentos. Quincas Berro D’Água acabara. (aMaDo, 1961, p. 26)

O morto, bem comportadamente, se deixa manipular pelos funcionários da empresa funerária que, trocando-lhe a roupa, mudam-lhe a identidade. A metamorfose seria perfeita, não tivesse Vanda esquecido “de pedir uma fisionomia mais a caráter, mais de acordo com a solenidade da morte” (aMaDo, 1961, p. 38).

Constatando, segundo as palavras do santeiro, que “nem parecia o mesmo morto”, Vanda contempla com prazer a recu-peração de Joaquim Soares da Cunha:

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Penteado, barbeado, vestido de negro, camisa alva e gra-vata, sapatos lustrosos, era realmente Joaquim Soares da Cunha quem descansava no caixão funerário – um caixão régio (constatou satisfeita Vanda), de alças douradas, com uns babados nas bordas.[…] Fisionomia melancólica, fitou o cadáver. Sapatos lustrosos, onde brilhava a luz das velas, a calça de vinco perfeito, o paletó negro as-sentando, as mãos devotas cruzadas no peito. (aMaDo, 1961, p. 34, 37)

No entanto, a metamorfose não estava completa. Para o homem do retrato – Joaquim – faltava a fisionomia séria. E para o defunto bem composto faltava a mão bem colocada, o polegar abaixado.

Para Vanda estes detalhes são sinais de resistência e per-manência, vistos e ouvidos por ela, o sorriso e os deboches do morto levam a narrativa a uma ambiguidade fantástica que vai imperar até o final da mesma.

a história já está em sua metade. até então, tudo o que se apresenta vem filtrado por narrativas de outros: a narrativa do santeiro, as lembranças, boas e más, de Vanda com relação a seu pai, as evocações bem humoradas de tia Marocas são os construtores da personalidade de Quincas/Joaquim. Mesmo no instante em que as frases de Quincas começam a ressoar dentro da história, o leitor hesita entre atribuir as falas ao morto ou às prováveis alucinações que um ambiente fechado, abafado e ex-cessivamente perfumado poderia provocar na filha autoritária. O narrador fornece argumentos bastantes para as duas “versões”: a que ele habilmente vai construindo e a da família, que a essa altura já está grosseiramente caricaturizada através de suas pró-prias palavras e ações. A cada descrição de Quincas/Joaquim, a família se retrata a si mesma. A cada providência para o enterro, a família se denuncia como um pastiche da pequena burguesia, sem que seja necessária a intervenção do narrador. o uso hábil do discurso indireto serve, então, como instrumento de caracte-rização dos grupos divididos quanto à imagem do morto.

Já Quincas/Joaquim se constrói a partir de retalhos (frag-mentos) de memória. É um boneco de trapos que vai sendo re-cheado a cada fala. Aqui, um funcionário exemplar, sisudo; ali, um exímio conhecedor de cachaça, rei das meretrizes. Aqui, um marido acovardado e calado; ali, amante sábio e divertido. As diferenças se multiplicam, mas não a ponto de criar duas per-sonalidades totalmente distintas. Em Joaquim vislumbramos as características compassivas e ternas de um Quincas. Em Quincas vemos os resquícios de uma vida passada: idade, educação e “cultura” (entendida aqui como saber falar e expressar-se melhor que o grupo em que se insere).

Esse boneco de trapos, marionete que cobra vida indepen-dente revoltando-se contra sua manipulação, se torna, segundo a

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opinião de Vanda, inquieto ao chegar a noite. Através do discurso indireto livre ele é apresentado como alguém que esperasse por alguma coisa, ou por outro alguém, com os olhos voltando-se ora para a janela ora para a porta. Descobrimos, mais tarde, que ele esperava pelos amigos.

Estes vão surgindo pouco a pouco na narrativa. o primeiro comparsa de Quincas a aparecer é Curió, com sua casaca inusi-tada, seu rosto pintado de vermelhão:

Empregava ele seus múltiplos talentos na propaganda de lojas da Baixa do Sapateiro. Vestido com um velho fraque surrado, a cara pintada, postava-se na porta de uma loja, contra mísero pagamento, a louvar-lhe a ba-rateza e as virtudes, a parar os passantes dizendo-lhes graçolas, convidando-os a entrar, quase arrastando-os à força. (aMaDo, 1961, p. 46-45)

Sua gaforinha alta de mulato e a pintura de suas faces esta-riam mais à vontade num picadeiro que num velório ou mesmo nas ruas da cidade. No entanto, ninguém parece estranhar sua figura, que se torna mais engraçada pelas suas tentativas de comportar-se como elemento sério. o ponto alto da comicidade de Curió pode ser colocado na cena do velório quando ele tenta puxar uma reza, colocando-se de joelhos e de cabeça baixa, num arremedo vão do comportamento tradicional.

a seguir aparece Negro Pastinha, “que media quase dois metros” e “quando estufava o peito semelhava a um monumen-to, tão grande e forte era” (AMADO, 1961, p. 45). Esse aspecto assustador, no entanto, contrapõe-se a um “natural alegre e bo-nachão”, construindo o estereótipo do Bom Crioulo, do gigante gentil, ameaçador pelo tamanho e pela força, mas espontâneo e natural como uma criança. Dele só se pode esperar uma lealdade a toda prova ao seu “paizinho Quincas” e o à-vontade infantil que o leva a sentar-se no chão e a rir no velório sem nenhum sinal de constrangimento.

Cabo Martim é o próximo elemento do grupo a surgir na narrativa. Encontrado em plena atividade como jogador, Martim é o galã do grupo. Se Curió pode ser aproximado do Pierrô apaixonado por estar sempre noivando, vítima de pai-xões fulminantes, Martim está mais próximo de Arlequim, por quem as mulheres suspiram, ou do miles gloriosus, por sua pa-tente. Ex-cabo do exército, cultua a farda (ao fim e ao cabo, uma fantasia), o amor, a conversação e o jogo. Com seus olhos azuis se une ao grupo na procura de Pé-de-Vento, personagem que, mais desenvolvido em outras histórias, sobrevivia ajudando os outros a morrer, “especialista em abreviar o passamento para o outro mundo desses moribundos renitentes, ‘agarrados ao fifó da vida’, mas foi pilhado complementando a eficácia das orações com o cotovelo no gasnete do agonizante” (TAVARES, 1985, p. 268). Na história de Quincas, o lado mórbido de Pé de Vento se

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revela graças a sua profissão de caçador de ratos e de pequenos animais para experimentos científicos. Essa sua identificação com a ciência lhe traz prestígio perante o grupo:

Caçava ratos e sapos para vendê-los aos laboratórios de exames médicos e experiências científicas – o que tornava Pé-de-Vento figura admirada, opinião das mais acatadas. Não era ele um pouco cientista, não conversava com doutores, não sabia pa-lavras difíceis? (p. 49).

Vestido em um paletó grande demais, parece um menino fazendo-se de grande. Para melhor caricaturá-lo, o autor lança mão dos animais à custa dos quais a personagem sobrevive. Suas características são a imobilidade, o olhar parado, o deslizar silencioso dos répteis. assim sendo, não é de espantar que ele traga ao velório uma de suas presas, uma “pequena jia verde, polida esmeralda” – um tesouro de olhos saltados que vai ser oferecido a Quincas na primeira oportunidade (Diga-se de pas-sagem, que é oferecido na esperança de obter outro tesouro de olhos arregalados – Quitéria).

Cabo Martim, o rufião romântico, galã do circo mambem-be, que se desenrola pelas ruas de Salvador num carnaval atem-poralizado, chefia o grupo que comparece ao velório de Quincas/Joaquim para desgosto de sua família. Com modos educados – “em matéria de educação só perdia para o próprio Quincas” (p. 50) – ele se coloca à disposição para tomar conta do falecido. Vanda não deseja abandonar sua presa: o fantoche de Joaquim. Entretanto, se vê forçada, pelas conveniências, a retornar a casa, acreditando que, no dia seguinte de manhã, conseguiria retomar as rédeas do morto, continuando no comando da situação.

após sua partida, Eduardo, o irmão comerciante de Quin-cas/Joaquim acaba por abandonar o defunto. Pensando apenas numa boa cama e em seu conforto, oferece algum dinheiro para o Cabo Martim “comprar uns sanduíches” e vai para casa, deixando o morto com o grupo de amigos.

A partir daí Quincas começa a se transformar, por conta da influência do grupo. De “defunto porreta” passa a companheiro de bebidas e piadas. Com a manipulação dos amigos acentua-se seu ar de marionete. Ele é colocado sentado no caixão, onde fica com a cabeça balançando de um lado para o outro, o sorriso ampliado pelo gole de cachaça. Sua herança – mulher e roupa nova – é cobiçada pelo grupo. Se o cadáver parece relutar em abrir mão da mulher, os amigos interpretam os meneios de sua cabeça como autorização para despojá-lo das roupas.

– Bom paletó… – Cabo Martim examinou a fazenda. – Bes-teira botar roupa nova em defunto. Morreu, acabou, vai para debaixo da terra. Roupa nova pra verme comer, e tanta gente aí precisando […]

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Palavras cheias de verdade, pensaram. Deram mais um gole a Quincas, o morto balançou a cabeça, era homem capaz de dar razão a quem a possuía, estava evidentemente de acordo com as considerações de Martim.

– Ele está é estragando a roupa.

– É melhor tirar o paletó pra não esculhambar.

Quincas pareceu aliviado quando lhe retiraram o paletó negro e pesado, quentíssimo. Mas, como continuava a cuspir a cachaça, tiraram-lhe também a camisa. Curió namorava os sapatos lustrosos, os seus estavam em pandarecos. Pra que morto quer sapato novo, não é, Quincas?

– Dão direitinho nos meus pés.

Negro Pastinha recolheu no canto do quarto as velhas roupas do amigo, vestiram-no e reconheceram-no então:

– Agora sim, é o velho Quincas. (p. 58)

Com a mudança de roupas, muda-se também a identidade do fantoche, definitivamente. O boneco já não é mais um híbrido Quincas/Joaquim e a marionete é mais bem manipulada. Capaz de reações, cospe cachaça no olho de Curió, ao escutar o que não deseja. Participa das críticas contra seus parentes e disputa seus goles de cachaça com disposição. E, finalmente, presta-se ao passeio pelas ruas enluaradas de Salvador, recuperando a “vida” através das roupas, da cachaça e da interpretação dos amigos.

“Bêbedo que não se agüenta” sai Quincas, “satisfeito da vida, num passo de dança” (p. 61), para participar de uma noite memorável.

o grupo segue carregando seu velho “marionete”, que, “divertidíssimo, tentava passar rasteiras no Cabo e no Negro, estendia a língua para os transeuntes”, e “pretendia, a cada passo, estirar-se na rua”. No “cenário fantasmagórico” do Pelourinho (p. 62), o velório já está transformado em comemoração ao aniversá-rio de Quincas. À chegada de Quitéria do olho arregalado, cuja caracterização teatral se coaduna com a cena, Curió se apressa a fazer seu pequeno discurso explicativo:

– Tinha corrido a notícia de que Berro Dágua bateu as botas, tava tudo de luto. – Quincas e os amigos riram. – Ele tá aqui, minha gente, é dia do aniversário dele, tamos festejando, vai ter peixada no saveiro do Mestre Manuel (p. 63).

Quitéria do olho arregalado, a heroína cômica, vestida com mantilha negra num arremedo melodramático da viúva inconsolável, ao cair de bunda no chão reforça a farsa que se vai elaborando. Os fantoches se arrastam pelas ruas de Salvador com movimentos desengonçados de pantomima, caminhando

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sob a luz do luar que encobre as cordas que manipulam esses títeres.

Essas cenas humorísticas da narrativa começam a acontecer já depois de adiantada a história. Primeiro, como vimos, temos a construção de uma duplicidade de versões da morte do herói: discute-se a possibilidade de cada um tratar de seu enterro – “Im-possível não há”! O tom da narrativa não promete nada de novo. Uma história fantástica, talvez. A repetição de adjetivos como “mágico”, “fantástico”, “misterioso” reforça essa aproximação ao texto. Em verdade, discute-se também a possibilidade e a vali-dade de duas versões para um mesmo fato, uma documentada por um papel oficial – o atestado de óbito – a outra confirmada por pessoas de “uma só palavra”. Poderíamos cair na discussão entre o valor do humano versus o valor do documental. No en-tanto, o narrador, através da garantia de idoneidade de ambas as versões, deixa a opção a cargo do leitor, e para isso ele cons-trói o palco onde as personagens vão agir, demonstrando sua verdade. Ao papel oficial, vai-se contrapondo, gradualmente, o papel que se constrói a partir da narrativa, o papel artístico, o documento literário.

Para melhor redigir esse documento, o narrador deixa que as próprias personagens construam a cena e elaborem suas fantasias, até mesmo Quincas. Ele é sempre versão. O morto e o vivo se equivalem, pois cada uma das pessoas do texto oferece uma interpretação para seu corpo, e essa explicação é a que per-manecerá na memória de uns e outros. até mesmo sua alcunha é produto de uma fala, de um berro: “águuuuua!” E esse seu caráter “literário”, prestando-se a toda interpretação, perdura por todo o texto. Agindo ou reagindo, seus gestos, suas pausas, seus silêncios são sempre trazidos ao leitor através do filtro da interpretação de outras personagens. Como num teatro de ma-rionetes em que o movimento convulso dos bonecos gera mais ação e, com isso, propulsiona o desenvolvimento da cena, aqui os estertores de Quincas – ou sua imobilidade, tanto faz – geram mais interpretações, levando a narrativa e as personagens ao momento culminante do passeio de saveiro.

Finalmente temos Quincas em pé junto à vela menor, debaixo da tempestade que ameaçava a embarcação. Ninguém sabe como ele se pôs em pé naquele lugar. Na confusão da tem-pestade, é impossível ver as cordas que movimentam este títere, mas todos presenciam sua queda no mar e ouvem sua frase derradeira. Essa cena final poderia desfazer a ambigüidade ha-bilmente construída pela narrativa, por causa da unanimidade de versões. Só que a famosa frase final também terá “versões variadas”, invalidando a univocidade dos fatos. Desse modo, a história de Quincas começa e termina com duas versões de uma mesma citação. A epígrafe inicial, “segundo Quitéria que

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estava a seu lado” e o verso final, “[s]egundo um trovador do Mercado”.

O velho “marionete” escapa da sua rigidez de boneco e transforma-se na personagem mítica da literatura, com ou sem cordel que o comande.

Os textos que pertencem à “fala” do narrador externo, possuem uma qualidade que o aproximam de uma literatura “fora-de-moda”. Com frases grandiloqüentes e torneadas, são uma espécie de “literatura popular culta” – lembrando o con-ceito lingüístico da hipercorreção, quando se peca pelo exagero –, e exprimem conceitos tão ultrapassados quanto sua retórica. Pensamentos convencionais a respeito das personagens e de suas ações se misturam a românticas descrições de cenários enluarados numa recriação de padrões descritivos do século dezenove. O efeito dessa retórica anacrônica, em contrapo-sição às cenas de comicidade “chula”, cria uma atmosfera de “domingo na TV”, quando a pieguice de quadros sentimentais disputa a audiência com as palhaçadas das video-cassetadas. Esse efeito de “patchwork”, uma obra composta por retalhos díspares, mas unidos todos num mesmo padrão estético, é que vai dar profundidade à obra. O equilíbrio das duas propostas: um misticismo mágico e piegas, frente a uma comicidade gros-seiramente circense , neutraliza os defeitos e exageros de cada uma. a presença de ambas, porém, torna o leitor agudamente consciente da construção “artística” de um texto que se elabora a partir de sugestões e possibilidades. O texto adquire ambigüi-dade já que é impossível a opção por qualquer uma das versões apresentadas. Os testemunhos “valem o escrito”, têm tanto valor como a forma em que vêm expressos. Para um grupo social árido como a família de Joaquim Soares da Cunha, a secura denotati-va do atestado de óbito é a melhor expressão. Para a troupe de polichinelos que arrasta Quincas consigo, o que importa é um modo diferente de olhar, de perceber. Quincas/Joaquim/velho “marionete” é um signo vazio que adquire valor através de suas relações no texto.

Com tudo isso, “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água” se deixa analisar sob diferentes aspectos. A constru-ção cuidadosa do clima ambíguo que permite a classificação da história como narrativa fantástica já mereceu o estudo de Earl Fitz. Dividindo o texto em três partes, Fitz demonstra como a voz narrativa cede sua vez aos próprios personagens, permitindo-lhes contar a história em suas próprias palavras, para, ao final, reentrar no texto, chamando a atenção para o lado mágico dos acontecimentos narrados.

Esse lado mágico, mítico mesmo, que se desenvolve no correr da história de Quincas tem raízes no imaginário popu-lar, com o qual Jorge Amado mantém uma relação constante, alimentando-se e servindo de alimento para as obras de cordel.

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Essa proximidade da literatura popular pode explicar o sistema binário de valores que forma a base ideológica de sua obra, como pressupõe Nelson Vieira em seu artigo “Short Stories of Jorge amado”. a memória popular que está presente na história de Quincas, bem como em outras histórias do mesmo autor, leva seus críticos a identificarem os elementos de maior apelo exó-tico da cultura baiana. assim sendo, a crítica pode até mesmo demonstrar a ligação de “a morte e a morte de Quincas Berro D’Água” com a religião afro-baiana, tal como o faz Almir de Campos Bruneti.

Nas fantasias de suas personagens revela-se a fantasia essencial ao texto. Lidando com o imaginário que lhes permite ver significações em todos os sinais, as personagens constróem uma farsa que invade suas vidas, suas mortes e até mesmo sua literatura. A ânsia interpretativa antepõe-se ao próprio texto e a criação antecede ao próprio criador, comandando seus atos e validando suas propostas.

Quincas Berro D’Água, signo literário, construiu seu pró-prio texto por se negar a uma revelação total. Sua vitória sobre a morte não está em nível mítico, ou sobrenatural, ou é leitura equivocada, pois está em todos esses níveis. as narrativas sobre ele o constroem a cada enunciação e contra esses documentos não têm poder os selos, os cartórios, as firmas-reconhecidas.

Jorge Amado, nesta novela, revela uma sociedade fraturada entre a imitação de modelos de padrão culto e a espontaneidade da tradição popular. Sua estratégia para a elaboração de seus personagens leva os leitores a refletirem sobre a própria cons-trução da identidade, que, no caso, vai-se apresentar como fruto do discurso que se impõe ao outro e das interpretações que dele possam ser inferidas.

AbstractIn this article, the examination of the short story “A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”, published in: os velhos marinheiros (1961), re-veals that, in elaborating this fiction, Jorge Amado has used characters present in popular Brazilian dramaturgy. These characters are recurrent in other novels by the same author. They are based on models taken from the traditional European dramaturgy known as “comedia dell’arte”, and Amado mixes them with regional popular art that show a very strong African influence. In this way, the short story may be read under a new light that, instead of privileging the fantastic, prefers to illuminate the dramatic qualities of the text , allowing for the subversion of the figure

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ReferênciasAMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro D’água. In:

. Os velhos marinheiros. São Paulo: Martins, 1961.

. É preciso viver ardentemente. In: . Litera-tura comentada: Jorge Amado. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

. et al. Jorge Amado povo e terra: 40 anos de literatura. São Paulo: Martins, 1972.BRUNETI, Almir de Campos. Nascimento e dispersão de Quin-cas Berro Dágua. Luso-Brazilian Review, [S.l.], v. 19, n. 2, p. 237- 42, Winter 1982.FITZ, Earl E. Structural ambiguity in Jorge Amado’s A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua. Hispania, [S.l.], v. 67, n. 2, p. 221-22, May 1984.TAVARES, Paulo. Criaturas de Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record; Brasília: INL, 1985.

. O baiano Jorge Amado e sua obra. Rio de Janeiro: Re-cord, 1980.TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.VIEIRA, Nelson H. Myth and identity in short stories by Jorge amado. Studies in short fiction, [S.l.], v. 23, n. 1, p. 25-34, Winter 1986.

of the Brazilian citizen, Quincas, who acquires, through the manipulation of popular art, new meanings while at the same time, standing out as a marionette. The final scene shows the ropes of the saveiro dangling in the night, after the main character disappears, leaving behind the possibil-ity of multiple versions of himself.

Keywords: Marionettes (puppets). Popular dra-maturgy. Jorge Amado. Quincas Berro D’Água.

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Quando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura

brasileira contemporâneaRegina Dalcastagnè

Recebido 29 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

ResumoAs personagens negras são francamente mino-ritárias na narrativa brasileira contemporânea, conforme uma ampla pesquisa demonstrou. O artigo analisa algumas exceções a esta regra, identificando diferentes modos de representação literária das relações raciais numa sociedade mar-cada pela discriminação.

Palavras-chave: Literatura brasileira contempo-rânea. Relações raciais. Preconceito.

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Gragoatá Regina Dalcastagnè

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A literatura contemporânea reflete, nas suas ausências, talvez ainda mais do que naquilo que expressa, algumas das características centrais da sociedade brasileira. É o caso da po-pulação negra, que séculos de racismo estrutural afastam dos espaços de poder e de produção de discurso. Na literatura, não é diferente. São poucos os autores negros e poucas, também, as personagens – uma ampla pesquisa com romances das principais editoras do País publicados nos últimos 15 anos identificou quase 80% de personagens brancas, proporção que aumenta quando se isolam protagonistas ou narradores. Isto sugere uma outra ausência, desta vez temática, em nossa literatura: o racismo. Se é possível encontrar, aqui e ali, a reprodução paródica do discurso racista, com intenção crítica, ficam de fora a opressão cotidiana das populações negras e as barreiras que a discriminação impõe às suas trajetórias de vida. o mito, persistente, da “democracia racial” elimina tais questões dos discursos públicos, incluindo aí o do romance.

Se os dados agregados da pesquisa de “mapeamento” do romance brasileiro recente revelam a baixa presença da popu-lação negra entre as personagens – além de sua representação estereotipada –, o exame das exceções pode permitir a compre-ensão das potencialidades e dos limites das (poucas) abordagens do tema. Aqui, serão discutidos alguns números desta pesquisa, referentes à cor das personagens e dos seus autores, para, em seguida, fechar o foco sobre obras em que as relações raciais estão presentes: seja reforçando os estereótipos racistas, seja parodiando-os, ou ainda refutando-os a partir da construção de outros modos de interpretá-los. Nestas narrativas, encontramos estratégias diferentes, com diferentes resultados, de inclusão de identidades negras em nossa literatura – um gesto político que se faz estético (ou vice-versa) e que se dá, sempre, no embate com formas abertas ou sutis de discriminação e preconceito.

Ao falar de racismo neste texto, estarei pensando-o nos termos de Ella Shohat e robert Stam (2006, p. 51):

O racismo é a tentativa de estigmatizar a diferença com o propósito de justificar vantagens injustas ou abusos de po-der, sejam eles de natureza econômica, política, cultural ou psicológica. Embora membros de todos os grupos possam ter opiniões racistas – não há imunidade genética nesses casos – não é todo grupo que detém o poder necessário para praticar o racismo, ou seja, para traduzir uma atitude preconceituosa em opressão social.

E uma vez que a opressão é tanto material quanto simbólica, podemos percebê-la também na própria literatura, uma forma socialmente valorizada de discurso que elege quais grupos são dignos de praticá-la ou de se tornar seu objeto.

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Literatura e estatísticaos estudos literários são, em geral, avessos aos métodos

quantitativos, que parecem inconciliáveis com o caráter único de cada obra. tal singularidade, porém, não é privilégio da li-teratura: é algo comum aos diversos fenômenos sociais. Ainda assim, o tratamento estatístico permite iluminar regularidades e proporciona dados mais rigorosos, evitando o impressionismo que, facilmente contestável por um impressionismo em direção contrária, impede que se estabeleçam bases sólidas para a dis-cussão. Se alguém diz que os negros estão ausentes do romance brasileiro contemporâneo, outra pessoa pode enumerar dezenas de exemplos que contradizem a afirmação. Mas verificar que 80% das personagens são brancas mostra um viés que, no mínimo, merece investigação.

O esforço de pesquisa sobre o romance brasileiro dos úl-timos anos, do qual retiramos os dados referentes às persona-gens negras, envolveu a leitura cuidadosa de todos os romances constantes do corpus, seguida do preenchimento de fichas para as personagens mais importantes e, muitas vezes, de discussão em grupo dos casos em que havia alguma dúvida. Uma vez que, em geral, não se podia contar com uma descrição em regra, à la século XIX, das personagens do livro, eram buscados os indícios presentes no texto. Assim, a pesquisa buscou compatibilizar o método quantitativo com aquilo que o historiador italiano Carlo Ginzburg (1989) chamou de “paradigma indiciário” nas ciências humanas – a busca de indícios das características que queríamos analisar.

É importante ressaltar que os problemas da representação literária indicados pela pesquisa não insinuam, absolutamente, qualquer restrição do tipo quem pode falar sobre quem, nem buscam estabelecer que um determinado recorte temático é mais “corre-to” do que outro. a pesquisa não comunga de nenhuma noção ingênua da mimese literária – que a literatura deva ser o retrato fiel do mundo circundante ou algo semelhante. O problema que se aponta não é o de uma imitação imperfeita do mundo, mas a invisibilização de grupos sociais inteiros e o silenciamento de inúmeras perspectivas sociais, como a dos negros. A proposta, então, é entender o que o romance brasileiro recente – aquele que passa pelo filtro das grandes editoras, atinge um público mais amplo e influencia novas gerações de escritores – está escolhendo como foco de seu interesse, o que está deixando de fora e, enfim, como está trabalhando as questões raciais.

Os números apresentados aqui são relativos a um corpus de 258 romances, que correspondem à totalidade das primeiras edições de romances de autores brasileiros publicadas pelas três editoras mais prestigiosas do País, de acordo com levantamento realizado junto a acadêmicos, críticos e ficcionistas: Companhia

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das Letras, Record e Rocco.1 No conjunto, são 165 escritores di-ferentes, sendo que os homens representam 72,7% do total de autores publicados. Mas a homogeneidade racial é ainda mais gritante: são brancos 93,9% dos autores e autoras estudados (3,6% não tiveram a cor identificada e os “não-brancos”, como categoria coletiva, ficaram em meros 2,4%).

Como se vê por esses exemplos, embora o romance contem-porâneo venha perseguindo reiteradamente, em seu interior, a multiplicidade de pontos de vista; do lado de fora da obra, não há o contraponto; quer dizer, não há, no campo literário brasi-leiro, uma pluralidade de perspectivas sociais. De acordo com a definição de Iris Marion Young (2000, p. 136), o conceito de “perspectiva social” reflete o fato de que “pessoas posicionadas diferentemente [na sociedade] possuem experiência, história e conhecimento social diferentes, derivados desta posição”. Assim, negros e brancos, mulheres e homens, trabalhadores e patrões, velhos e moços, moradores do campo e da cidade, homossexu-ais e heterossexuais vão ver e expressar o mundo de diferentes maneiras. Mesmo que outros possam ser sensíveis a seus pro-blemas e solidários, nunca viverão as mesmas experiências de vida e, portanto, enxergarão o mundo social a partir de uma perspectiva diferente.

A cor da personagema personagem do romance brasileiro contemporâneo é

branca.2 os brancos somam 79,8% das personagens,3 contra apenas 7,9% de negros e 6,1% de mestiços – os restantes incluem indígenas, orientais e personagens sem indícios de cor ou não humanas. Em 56,6% dos romances, não há nenhuma persona-gem não-branca. Em apenas 1,6%, não há nenhuma personagem branca. E dois livros, sozinhos, respondem por mais de 20% das personagens negras.

apenas como base de comparação, é possível notar que o censo de 2000 realizado pelo IBGE – que é, muitas vezes, acu-sado de “embranquecer” a população, pela forma como coleta os dados sobre raça e cor – aponta 54% de “brancos”, 6% de “pretos” e 39% de “pardos”, além de uma pequena parcela de indígenas, de “amarelos” e sem declaração. Já em relação ao ro-mance produzido no período 1965-1979, objeto de uma pesquisa similar cujos dados ainda estão sendo trabalhados, observa-se a ampliação da predominância das personagens brancas (eram 76% no período mais antigo), mas também um ligeiro aumento das negras (eram 6,3%, passam a 7,9%), com o recuo das mestiças (de 10,4% para 6,1%). a interpretação dos dados ainda precisa ser feita, mas talvez se possa ver aí um indício do enfraquecimento da ideologia da mestiçagem no Brasil.

Além de reduzida, a presença negra e mestiça entre as per-sonagens é menor ainda quando são focados os protagonistas e,

1 as editoras mais im-portantes, que não são ne cessa r ia mente as maiores, mas dificil-mente estarão entre as menores, garantem a atenção de livreiros, leitores e críticos para seus lançamentos. Seus livros são aqueles que, no curto prazo, têm maior possibilidade de influenciar outros es-critores. 2 os resultados gerais da pesquisa e mais dados sobre as personagens negras estão em Dalcas-tagnè (2005).3 o mapeamento incluiu as personagens “impor-tantes”, isto é, com al-gum peso no desenrolar da trama.

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em especial, os narradores. os negros são 7,9% das personagens, mas apenas 5,8% dos protagonistas e 2,7% dos narradores.

Os brancos representados possuem um perfil sócio-econô-mico nitidamente mais privilegiado do que os mestiços e, sobre-tudo, os negros (tabela 1). Enquanto os brancos oscilam entre as classes médias e (um pouco menos) a elite econômica, os mestiços se dividem entre classes médias e (um pouco mais) pobres e os negros são maciçamente retratados entre os pobres.

Tabela 1: Estrato sócio-econômico e cor das personagenselite

econômicaclasses médias pobres miseráveis sem

indícios outro não pertinente

branca 36,2% 56,6% 15,5% 1,8% 1,6% 0,1% 0,2%negra 10,2% 16,3% 73,5% 12,2% 1,0% 1,0% -mestiça 19,7% 42,1% 52,6% 5,3% 1,3% - -indígena 26,7% 20,0% 53,3% 6,7% - 13,3% 6,7%oriental 25,0% 37,5% 50,0% - - - -sem indícios 2,3% 50,0% 40,9% 2,3% 6,8% - -não pertinente - 10,0% 10,0% - 10,0% - 70,0%

total 31,5% 51,4% 23,9% 2,9% 1,8% 0,3% 0,8%Obs. Eram possíveis respostas múltiplas na variável “estrato sócio-econômico”.Fonte: Pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Quanto o foco é a ocupação, percebe-se que as persona-gens brancas são, em geral, donas-de-casa (9,9%), artistas (8,5%), escritores (6,8%) e estudantes (6,8%). o contraste com as perso-nagens negras é enorme: 20,4% dos negros representados nos romances em foco são bandidos ou contraventores. Seguem-se empregados domésticos (12,2%), escravos (9,2%) e profissionais do sexo (8,2%).

Algumas exceçõesEstudos sobre o jornalismo (CARRANÇA; BORGES, 2004),

a telenovela (ARAÚJO, 2000), o cinema (RODRIGUES, 2001)4 apresentam dados similares: a invisibilidade dos negros e os estereótipos a eles associados não são problemas exclusivos da literatura. Tal como outras formas de expressão, ela apenas manifesta uma discriminação que permeia toda a nossa estru-tura social (cf. GUIMARÃES; HUNTLEY, 2000). O que não quer dizer que estas questões não possam ser discutidas em nossas narrativas, e, inclusive, pelos estudos literários. Se a maior parte dos autores e autoras contemporâneos evita trazer personagens negras para o centro (ou mesmo para dentro) de suas tramas, é preciso observar o que acontece com aqueles que fogem à regra e ensaiam um movimento diferente. Assim, o exame das exceções pode revelar as possibilidades e as implicações das aproximações literárias ao problema das relações raciais no Brasil.

4 Para uma discussão sobre as pesquisas refe-rentes às relações raciais e/ou o racismo na mídia brasileira, ver Silva; Ro-semberg (2008).

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Dar concretude e existência a uma personagem não é tarefa fácil, especialmente quando a tradição literária não está disponível como recurso, ou seja, quando nossa poesia, nossos contos e romances não trazem modelos suficientemente ricos que possam servir de inspiração. Há a idéia equivocada, mas muito disseminada, de que o escritor constrói suas personagens a partir de pessoas que conheceu em sua vida – ela lembra a ima-gem do pintor trabalhando com agilidade diante de um modelo vivo. Essas experiências podem ser até aproveitadas, mas não são o bastante para erguer e dar solidez a uma personagem. O pintor e sua desenvoltura escondem, na verdade, anos de estu-do de antigos álbuns de anatomia, páginas de cabeças, mãos, pés e músculos cuidadosamente copiados. E esconde, é claro, a observação direta de retratos e mais retratos.

Não é diferente com um escritor, que precisa buscar seus modelos em representações discursivas já estabelecidas, mesmo que seja para se contrapor a elas. Por isso, a ausência de perso-nagens negras na literatura não é apenas um problema político, mas também um problema estético, uma vez que implica na redução da gama de possibilidades de representação. Usar um “modelo” branco e fazer dele uma personagem negra (como no filme O homem que copiava, por exemplo, onde o ator negro Lázaro ramos atua no papel de uma personagem que poderia ser bran-ca) não resolve, porque ser negro numa sociedade racista não é apenas ter outra cor, é ter outra perspectiva social (nos termos de Iris Marion Young), outra experiência de vida, normalmente marcada por alguma espécie de humilhação.

Daí a necessidade de, ao se construir uma personagem negra, envolvê-la em sua realidade social ou ela não parecerá viva – pretensão que a literatura não pode descartar. Um negro que namore uma jovem branca, como no filme citado, não será negro se não receber ao menos um olhar atravessado ao longo de seu caminho, e se não sentir de algum modo em sua carne esse olhar. ou ao menos não será um negro brasileiro do início do século XXI. Nada contra o uso político dessa estratégia, que procura chamar atenção para o fato de que negros, tanto quanto brancos, sentem, amam e sofrem, mas ela é insuficiente para abranger essa experiência diferenciada, que ainda precisa se legitimar, por si só, em nossa literatura e em nossa sociedade.

O racismo e sua paródiaMas dizer que os negros são humanos parece ser ainda

uma necessidade, quando se percebe que sua animalização se mantém como um “recurso” literário. Para ficar em apenas um exemplo, o homem negro diante da mulher branca continua sendo representado como o animal sujo cobiçado pela fêmea de-pravada – como nos contos “O negro”, de Dalton Trevisan (1979) e “O negro e as cercanias do negro”, de Haroldo Maranhão (2005).5

5 Cumpre registrar que, por critérios de data de publicação, editora e mesmo gênero, as obras discutidas no restante do texto não integram o corpus da pesquisa quantitativa.

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Na primeira narrativa, uma mulher tomada de desejos aproveita a viagem do marido para “curar seu corpo” com a “experiência medonha” de entregar-se “ao primeiro negro com quem cruza na rua” (TREVISAN, 1979, p. 55). O tom de deboche do narrador em terceira pessoa não esconde o racismo, e o chauvinismo, que lhe servem para fazer graça com o leitor, com quem troca uma piscadela. o estereótipo é usado na narrativa não como crítica, mas como recurso fácil de aproximação com o leitor, que ela assume como compartilhando dos mesmos preconceitos. ou seja, a imagem conhecida permite que o leitor se identifique, ao mesmo tempo em que se reforça a si própria, naturalizando seu conteúdo. Daí sua recorrência, e sua repercussão para além das páginas do livro.

a mesma construção reaparece, sem pudor, 30 anos depois no conto de Haroldo Maranhão. Mais uma vez, o homem negro não se faz personagem, mas apenas objeto em cena. Outra vez, ele é o corpo desprezível que a mulher branca, em sua irraciona-lidade, deseja. O narrador em terceira pessoa busca se aproximar do que seria a perspectiva de sua personagem e troca o tom de deboche de trevisan pelo mau gosto grosseiro:

Se na véspera houvesse alguém idealizado semelhante encena-ção, repeliria como se repelem disparates, ela! Ali!, a haver-se com um negro!, aqueles bafios! O suor tudo circundava por-que a brisa cessara, o mormaço, aumentava o fartum, fartum dos que destilam merda pelos sovacos. o olhar do negro bolinava-lhe os peitos. Ela sentia deslizar gosmas pelas coxas. Em momento nenhum o negro temeu malogro, porque sua ascendência impusera-se. (MARANHÃO, 2005, p. 24)

o que mais impressiona aqui é a idéia de que a literatura ainda possa abrigar – com o respaldo de um crítico literário, que selecionou o conto para a coletânea, e de uma grande editora, que publicou o livro – esse tipo de construção.

Talvez a resposta esteja nas formas de preservação do preconceito na sociedade brasileira, e um dos mecanismos dessa preservação é justamente a legitimação do racismo no interior dos discursos artísticos. assim, o preconceito pode continuar sendo veiculado porque a sociedade se mantém preconceituosa, e ela se mantém preconceituosa porque vê seus preconceitos se “confirmarem” todos os dias nas diferentes representações sociais.6 Daí a necessidade da denúncia desse processo,7 o que pode ser feito na literatura através da paródia aos discursos ra-cistas, por exemplo. Essa é a proposta de um autor como André Sant’Anna.

No romance O paraíso é bem bacana, Sant’Anna (2006) move um arsenal de representações sociais para apresentar seu pro-tagonista, o Mané. Mané é um garoto negro e miserável que vai jogar futebol na Alemanha e acaba se envolvendo com um grupo de terroristas mulçumanos. Enquanto lemos sua história,

6 Quanto mais “elevado” é o produto cultural, quanto maior é a le-git imidade social de que desfruta, maior é a desenvoltura com que pode abrigar discursos preconceituosos. a letra de um funk foi proibida pela justiça brasileira por seu conteúdo ma-chista, que incitaria à violência contra a mu-l her (PICHONELLI; BÄCHTOLD, 2008), sem que se ouvisse dos inte-lectuais qualquer pro-testo pela censura. al-guém imagina um juiz proibindo um romance ou um livro de poemas por serem machistas?7 Afinal, nos termos de Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2004, p. 27), “para combater o racis-mo e para reduzir as desigualdades econômi-cas, precisamos, antes de tudo, denunciar as distâncias sociais que as naturalizam, justificam e legitimam”.

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Mané está em um hospital, com o corpo dilacerado pela bomba que ele mesmo explodiu, morrendo e delirando obscenamente com as setenta e duas virgens que caberiam a todo mártir da fé, de acordo com uma pretensa tradição islâmica. O garoto – que, segundo nos contam, é quase afásico – só chega até nós através dos discursos ruidosos que estão à sua volta, invadindo seu espaço, contaminando sua história. Todos falam do Mané, todos dizem o quanto ele é idiota, todos destilam sua raiva. O narrador, não menos autoritário, recolhe essas falas e despeja-as sobre sua personagem, soterrando-a, e ela permanece inerte, na cama do hospital.

Embora seja o protagonista do livro, Mané é explicitamente silenciado – é, ainda, objeto da fala dos outros, dos médicos, trei-nadores, vizinhos, torcedores e jornalistas. O foco do romance não é o seu corpo objetificado (ou o desejo que esse corpo ins-pira em alguma mulher animalizada), e sim os discursos que incidem sobre ele e que parecem tentar desviar nossa atenção do rapaz. Mesmo assim, por trás de tanto barulho ainda podemos enxergar um garoto negro e assustado nos olhando nos olhos, em silêncio. A narrativa não apaga a sua existência, não o eli-mina como indivíduo. Mané lembra um pouco a “pardacenta” Macabéa em seu confronto com Rodrigo S. M., em A hora da estrela, de Clarice Lispector (1977). Como a jovem nordestina, ele impõe sua presença calada às outras falas, que se tensionam. O próprio narrador é de algum modo constrangido, já que nos é dado perguntar sobre suas intenções ao dizer o que diz sobre sua personagem.8 Do mesmo modo que precisamos indagar quem são, afinal, todas aquelas pessoas que falam sobre ele e, em última instância, quem somos nós para julgá-lo, se sequer o conhecemos.

A guerra épicaSe o foco da narrativa é o próprio discurso, como aconte-

ce com toda paródia, não há aqui, ainda, a construção efetiva de uma personagem negra.9 Voltando ao problema da falta de modelos para essas personagens em nossa tradição literária, é preciso observar as estratégias dos autores que se propõem de fato a incluí-las. Diante dessa ausência, eles se apropriam de gê-neros e estilos literários já consagrados (e brancos) fazendo com que eles se dobrem aos seus interesses. Lidam, assim, na maior parte do tempo, com a dissonância causada entre a “estrutura branca” (porque normalmente construída para personagens brancas) e suas personagens negras. Daí o desconforto causado no leitor, como se algo estivesse fora de seu devido lugar. Ao contrário do que acontece em O homem que copiava – onde o rapaz negro não é visto como negro pelas outras personagens, apenas pelo espectador, que estabelece a tensão entre o que vê e o que conhece do lado de fora do filme –, nessas narrativas o

8 Para uma discussão sobre a relação entre Macabéa e rodrigo S.M., ver Dalcastagnè (2000).9 Como não há, também, em outro autor que em-prega a paródia como insubordinação crítica ao discurso racista ou homofóbico, Marcelino Freire (2003, 2005).

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leitor sente a tensão no interior do próprio texto. A dissonância se estabelece entre a personagem efetivamente negra, envolta em todas as suas circunstâncias, e a construção textual, que não as acolheria.

É assim que em Um defeito de cor, de ana Maria Gonçalves (2006), acompanhamos a trajetória épica de Kehinde. Em uma história cheia de peripécias, nos deparamos com a sagacidade, a inteligência, a capacidade de adaptação às situações mais ad-versas, a resistência e a lealdade dos heróis épicos. Mas Kehinde é mulher, é negra e escrava. O romance começa na África, onde a menina é seqüestrada – após presenciar o assassinato da mãe e do irmão – e embarcada para o Brasil. Aqui, é comprada para servir de mucama a uma sinhazinha. Vendo e sofrendo todo tipo de abuso, ela vai crescendo, aprendendo a ler e escrever, a fazer contas e a ganhar dinheiro para comprar sua liberdade. Muito tempo depois, acaba retornando à África, para ter uma vida rica e confortável, como proprietária de uma empreiteira, casada com um inglês, mãe de filhos educados em Paris. O relato de quase mil páginas, destinado a um filho que se perdeu no Brasil, teria sido ditado em sua viagem de volta ao país, quando ela já é uma octogenária.

Portanto, mais do que protagonista, Kehinde é a narrado-ra de sua história e é pela sua perspectiva que o leitor revisita a História brasileira do século XIX, olhando da cozinha, pelas frestas. O romance busca fugir do modelo “pobre escravo da senzala” para apresentar, em detalhes, a vida e as possibilidades de uma escrava instruída, que aproveita todas as brechas para aprender e conquistar sua liberdade, inclusive como mulher. Kehinde entra no Brasil dando um jeito de não ser batizada, para manter sua identidade, e termina na África, batizando os filhos para garantir-lhes o status superior de “brasileiros”. Essa ambigüidade é o que dá força à personagem, ainda que a estru-tura épica da narrativa pareça transbordar à sua volta, fazendo-a sempre mais poderosa diante das adversidades.

Se o Mané, na força de seu silêncio, é um pouco herdeiro de Macabéa, Kehinde é descendente da guerreira Maria da Fé, protagonista do romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo ribeiro (1990). São ambas heroínas épicas,10 que extrapolam qualquer pretensão de realismo – belas, fortes e sábias, agindo sempre com segurança e convicção, ainda quando têm dúvidas. ao ocupar lugar central na narrativa, podem não nos parecer reais, mas trazem consigo a realidade de seu povo. Sendo mulhe-res, negras e escravas, elas percorrem outros chãos, se encontram com outras trajetórias, se deslocam de acordo com outros ritmos que não aqueles vividos pelas personagens brancas (e por seus leitores, igualmente brancos).

10 A aproximação me foi sugerida por Eduardo de assis Duarte, em co-municação pessoal.

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Dor e amor românticosDeixando de lado as heroínas épicas e atravessando alguns

séculos de História, chegamos à representação do cotidiano de um advogado negro no Rio de Janeiro de hoje. Frederico Caval-canti de Souza, protagonista de Bandeira negra, amor, de Fernando Molica (2005), não empunha armas em nome da revolução, como Maria Dafé, tampouco enriquece, como Kehinde – é apenas um sujeito honesto, que trabalha o dia inteiro e ama uma mulher chamada Beatriz. Mas ele é negro. E, sendo negro no Brasil de hoje, sua história começa pela dificuldade de assumir a própria cor. O que implica, em primeiro lugar, o confronto com o amor da mãe, que fez tudo para torná-lo mais branco do que é – outra faceta do racismo brasileiro, ligada à valorização do “branque-amento” de sua população (cf. HOFBAUER, 2006). Neste caso, o conflito racial se inscreve no corpo mesmo da personagem, espaço em disputa para a demarcação de uma identidade.

Depois de se decidir negro, Frederico passa a defender os direitos dos moradores da favela (quase todos negros também). O confronto se dá, então, com a Polícia Militar (apontada como responsável pelo desaparecimento de três rapazes do morro do Borel), da qual Beatriz, ou a major Ferreira, é a porta-voz. Daí a necessidade de esconderem sua relação – e não só da PM, como também da família da moça que, “branca”, tem uma avó negra que se orgulhava de sua “barriga limpa”: de onde saíam filhos sempre mais brancos que ela (MOLICA, 2005, p. 102). Pela pers-pectiva do advogado militante, o leitor é conduzido por vielas e estradas rápidas, por casebres, escritórios, mansões, por cambu-rões, para testemunhar a rotina de ofensas, veladas ou explícitas, experimentada pelos negros todos os dias. Contra esse cenário realista, é a história de “amor impossível” entre o advogado e a major, com seus contornos românticos, a causar a dissonância no texto, chamando a atenção do leitor.

Discutindo o tema do escravo na poesia romântica brasi-leira, Antonio Candido lembra a importância da poetização da vida afetiva do negro, realizada por Castro Alves, que teria dado ao escravo “não só um brado de revolta, mas uma atmosfera de dignidade lírica, em que seus sentimentos podiam encontrar amparo”, garantindo “à sua dor, ao seu amor, a categoria reser-vada aos do branco, ou do índio literário” (CANDIDO, 2006, p. 592). assim, colocar em cena personagens negras envoltas em sua subjetividade, amando e sofrendo, talvez não devesse mais ser novidade em nossa literatura, mas pouco se evoluiu desde então. Se Fernando Molica expande a narrativa fazendo do amor o elo entre sua personagem e a sensibilidade do leitor – afinal, o brado de revolta pode não ser suficiente –, Conceição Evaristo (2003) o faz pela encenação da dor.

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Em Ponciá Vicêncio, ela volta ao meio rural (espaço pouco freqüentado pela literatura contemporânea), vai até um povoado miserável formado por descendentes de ex-escravos e tira de lá suas personagens: uma mãe, a filha e o filho já adultos que migram, separadamente, para a cidade, dissolvendo a unidade familiar. Uma dissolução que já começara muito antes, com o avô escravo que, desesperado com a venda dos filhos, mata a mulher e tenta o suicídio cortando o próprio braço. Ponciá, a neta, é sua herdeira. acompanhamos, então, através do olhar de um nar-rador em terceira pessoa, as suas perdas – aos poucos, vão-se a esperança em uma vida melhor; a relação com o marido, que se torna violento; a possibilidade de filhos, nos abortos sucessivos. A loucura se torna o seu refúgio e é ali que sua mãe a encontra, conduzindo-a de volta para casa.

Vista de fora, Ponciá não nos dirige a palavra, não nos diz quem é. Somos informados que ela herda a loucura do avô, que precisa abandonar a família e as origens, que é submetida a um trabalho subalterno, que apanha do marido e não consegue gerar um filho. Sem lugar no mundo, é a mãe que a acolhe e lhe dá guarida, talvez porque ela simbolize as origens, a iden-tidade negra que precisa ser abraçada. Ponciá, então, mais que a sua própria dor, representa a dor de seu povo. E são os restos desse povo que o leitor vai encontrando pelo caminho em que ela passa: os terrenos abandonados, tomados pelo mato e pelos brancos; os objetos de barro feito por ele e expostos em museus sem qualquer identificação; os sobrenomes que traziam ainda a marca dos coronéis, proprietários de terras e de gente.

A força da ambigüidadeSe Ponciá precisa ser resgatada, e narrada por outro, rísia,

de As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto (1982), faz seu próprio trajeto, e grita ela mesma a sua história. também vinda do interior, negra, pobre e nordestina, sem qualquer relação de afeto na família, ela já está no meio do caminho de Tijucopapo quando a encontramos, como uma migrante às avessas, que sai de São Paulo e retorna às origens dando as costas para a Br e penetrando cada vez mais fundo no Brasil cindido que a espelha. Sua viagem é geográfica, literária e mítica. Ao construir o percur-so de volta, dilacerada pela perda do homem que amava, rísia vai refazer sua história, afirmando sua identidade. Só que muito antes de chegar a algum termo, de resgatar a mãe e as mulheres da família, Rísia tem de construir um sentido para si, ainda que seja incoerente, ou improvável. Daí ela sair buscando a paz, a calma necessária para conter sua vontade de matar, ao mesmo tempo em que alimenta febrilmente o ódio que a devora.

rísia odiaria Ponciá, como odeia a mãe, a avó e as tias, todas traídas, sofredoras, e todas fracas. Não quer parecer com elas, se reconhecer nelas. Mas também não aceita a loucura: “a loucura é

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a margem que não suporto. A margem não. Eu prefiro o meio da multidão, a massa, os elos da corrente que nos conduz ao nada, mas que nos conduz juntos. A margem não. Não a solidão dum louco” (FELINTO, 1982, p. 90-91). É para fugir dessa solidão que ela retorna à terra da avó, tijucopapo (um pequeno arraial, no Recife, onde, no século XVII, mulheres lutaram, sozinhas, contra os invasores holandeses, vencendo-os e expulsando-os). E é ali que se dará a reconciliação de Rísia com sua condição feminina, onde ela percebe que as outras mulheres talvez sejam como ela, que se sente morrer, mas que precisa continuar de pé, lutando para resguardar uma idéia de si. Mulheres que possuem “a força de um fraco” (FELINTO, 1982, p. 40), mas que continuam empu-nhando as armas possíveis, mesmo que “as armas do fraco sejam sempre fracas armas” (BIANCO apud BOURDIEU, 1998, p. 38).

É a força, muito antes da dor, que impulsiona essa narrati-va, que convida a empatia do leitor. Nesse sentido, rísia é mais consistente como personagem, não apela para nossa compaixão, nem aceita nossa solidariedade. Ela parece esperar apenas que sua história seja ouvida. Sua força não é épica, ela não tem nada de Maria Dafé ou Kehinde. Talvez se aproxime mais da prota-gonista dos livros de Carolina Maria de Jesus (1983, 1986). Rísia duvida, erra, exagera, vocifera, e não sabe muito bem o que está fazendo, mas talvez seja exatamente isso que lhe dê densidade. Ela é a menina que nunca foi baliza no desfile do Sete de Setem-bro, nem rosada como as “filhas de sargento” (FELINTO, 1982, p. 72), e é a mulher que convive com os universitários bem de vida do Higienópolis paulista, gente com quem ela discute os livros em inglês que sua mãe nunca lerá (FELINTO, 1982, p. 91). Ou seja, ela traz para dentro do texto sua experiência individual e suas circunstâncias como mulher negra.

Também é essa força o que mantém de pé as personagens, quase todas negras, de Ferréz (2006) nos contos de Ninguém é inocente em São Paulo. As humilhações e o sofrimento fazem parte de suas vidas de moradores da favela, mas não impedem que eles se constituam como indivíduos diante de nossos olhos. Em narrativas muito curtas, que aproveitam a estrutura do rap, Ferréz abandona a roupagem romântica que ainda podia ser encontrada em seus outros livros (2000, 2003) e aposta na representação realista para levar o leitor para dentro da favela. Mas essa não é a favela de obras como Cidade de Deus, de Paulo Lins (1997), ou Inferno, de Patrícia Mello (2000), que ecoam aquilo que seus leitores encontram cotidianamente no noticiário poli-cial: ele não abre sua escrita para os traficantes atuarem. Seus protagonistas são trabalhadores e não aceitam o discurso fácil e fartamente veiculado de que o destino certo para um morador da favela é a bandidagem.

Assim, no lugar de tiros e conversas entre traficantes, o que ouvimos é o escritor digitando em seu barraco, ou rapazes

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discutindo sobre alguma possibilidade de emprego. A favela cheira a esgoto, os barracos são invadidos pelos policiais, a pro-messa de trabalho era uma enganação, a vida está difícil, mas eles vão levando. resistem como podem, insubordinando-se diante do chefe no supermercado, batendo boca com universi-tários no botequim, fazendo um pouco de poesia, produzindo rap. No conjunto, temos um livro barulhento, cheio de gente que se desloca de um lado para o outro (o espaço não é muito grande) e que, no final das contas, se parece muito com qualquer um, talvez até conoscos mesmos. Ferréz não apenas incorpora personagens diferentes – diferentes por serem negras, por serem pobres e, sendo pobres e negras, por serem honestas – à nossa literatura, ele procura inscrever nela um universo inteiro de exclusão. A dissonância, aqui, é causada pelo confronto com toda uma série de representações sociais que fazem do negro pobre o estereótipo do bandido, da prostituta, da empregada subserviente (observe-se de novo os números da pesquisa sobre o romance, apresentados no começo deste texto), todos silenciados, de algum modo domesticados.

EnfimEspaço onde se constroem e se validam representações do

mundo social, a literatura é também um dos terrenos em que são reproduzidas e perpetuadas determinadas representações sociais, camufladas, muitas vezes, no pretenso “realismo” da obra. a idéia de realismo se ancora, neste caso, na ilusão de que o escritor toma seus modelos diretamente da realidade, e não que lida com outras representações. ao manusear as representações sociais, o autor pode, de forma esquemática: (a) incorporar essas representações, reproduzindo-as de maneira acrítica; (b) descre-vê-las, com o intuito de evidenciar seu caráter social, ou seja, de construção; (c) colocar essas representações em choque diante de nossos olhos, exigindo o nosso posicionamento – mostran-do que nossa adesão, ou nossa recusa, que nossa reação diante delas nos implica, uma vez que fala sobre o modo como vemos o mundo, e nos vemos nele, sobre como se dá nossa intervenção na realidade, e as conseqüências de nossos atos.

Percorrendo os números da pesquisa sobre o romance brasileiro contemporâneo e umas poucas narrativas onde as personagens negras têm destaque, é possível esboçar algumas impressões sobre o problema da representação literária desse grupo social. Há, em primeiro lugar, a quase ausência do negro em nossa literatura – me refiro às personagens, mas a situação é ainda mais grave em relação aos escritores. Quando os negros são representados, costumam aparecer em posição secundária no texto (não são os protagonistas e muito menos os narrado-res) e em situação subalterna na trama (restringindo-se a algu-mas posições estereotipadas, como as de bandido, prostituta e

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doméstica, por exemplo). Na análise das exceções – as poucas narrativas onde os negros aparecem como figuras centrais –, pode-se encontrar, ainda hoje, a reprodução acrítica de represen-tações sociais estereotipadas sobre os negros, que, de algum modo, reforça e legitima o preconceito racial; mas encontra-se, também, a apropriação crítica dos discursos racistas, em narra-tivas que, através da paródia, buscam justamente denunciar e desarticular o sentido perverso dessas construções.

Embora as intenções dessas duas “possibilidades de ar-ticulação” com os discursos racistas sejam completamente di-ferentes, não existe em nenhuma delas a elaboração efetiva de personagens negras (imaginando-as, aqui, enquanto artefatos que possam ser incorporados como modelos em nossa tradição literária), uma vez que na primeira há apenas o aproveitamento de clichês e na segunda a tentativa de desmonte deles. Sendo assim, é preciso atentar para as estratégias de narrativas que, indo além de uma discussão “externa” do problema, procuram introduzir, no interior mesmo de sua estrutura, o negro e sua perspectiva social. a hipótese apresentada aqui é de que, jus-tamente pela falta de modelos na tradição literária, os autores têm de lidar com a dissonância causada entre os gêneros e os estilos “brancos” (porque comumente habitados por personagens brancas) e suas personagens negras.

Uma vez instalada a dissonância, que gera o estranhamen-to do leitor, seria preciso construir, então, outros vínculos, para que a identificação com as personagens não seja completamente rompida. Daí o recurso a alguns elementos muito comuns nas narrativas, como o heroísmo épico, que faz do racismo uma das adversidades que o protagonista supera; o apelo romântico aos sentimentos, com a produção de uma empatia capaz de ultrapas-sar a barreira do preconceito; e, finalmente, a compreensão, que se estabelece pelo reconhecimento da força e da ambigüidade da personagem. Embora esses mecanismos possam não ser su-ficientes para abranger as experiências da trajetória negra, eles projetam a idéia da necessidade de inclusão de outras perspec-tivas em nossa literatura.

E a diversidade na narrativa, além da importância estética, possui importância política. Graças a seu poder expressivo, a literatura pode permitir um acesso a diferentes perspectivas so-ciais, mais rico do que aquele que é oferecido, por exemplo, pelo discurso político em sentido estrito (cf. GOODIN, 2000). Perso-nagens negras, assim, talvez ajudem leitores brancos a entender melhor o que é ser negro no Brasil – e o que significa ser branco em uma sociedade racista. além disso, como apontou Nancy Fraser, a injustiça social possui duas facetas (ainda que estrei-tamente ligadas), uma econômica e outra cultural. Isto significa que a luta contra a injustiça inclui tanto a reivindicação pela redistribuição da riqueza como pelo reconhecimento das múltiplas

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expressões culturais dos grupos subalternos (FRASER, 1997): o reconhecimento do valor da experiência e da manifestação desta experiência por negros, trabalhadores, mulheres, índios, gays, deficientes. A literatura é um espaço privilegiado para tal manifestação, pela legitimidade social que ela ainda retém. Ao ingressarem nela, os grupos subalternos também estão exigindo o reconhecimento do valor de sua experiência na sociedade.

Abstract:Black characters are a frank minority in Brazilian contemporary narrative, as extensive research has demonstrated. This article analyses some excep-tions to this rule, identifying different ways that literature represents racial relations in a society marked by discrimination.

Keywords: Brazilian contemporary literature. Racial relations. Prejudice.

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Uma conversa entre macacos: percalços de um diálogo entre a África e o outro*

Lucia Helena

Recebido 29 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

ResumoO artigo tem por objetivo discutir o tecido de cita-ções, elaborado por John Maxwell Coetzee, entre a vida dos animais (1999), Elizabeth Costello (2003) e o texto de Kafka, “Um relatório para uma academia”, extraído de Um médico rural (1919). Como entender essa rede textual que se espraia de modo agudo e delicado? Ao manter muito enlaçadas as marcas da autoria, da autobiografia, da ficção, do ensaio e da vida, o texto de Coetzee indica tanto a porosidade quanto a complexidade do ato de escrever. Com essa capacidade de ra-mificação, sublinha as fronteiras tênues entre o real e o mundo do “como se” que a literatura cria e, também, aponta para candentes problemas de nossa época. Estas questões - que conectam os jogos de linguagem do processo ficcional do autor à representação na linguagem literária atual - é o que se pretende examinar.

Palavras-chave: Coetzee. Kafka. Diálogo. Ficção. África do Sul. Mundo.

* até agora inédito, esse artigo tem como origem o texto “Exercício de leitura: Coetzee em Kafka”, escrito para a aula de 3 de maio de 2007, que ministrei no primeiro semestre de 2007, no curso “Uma cultura em crise: consti-tuição e percalços do horizonte moderno”, na Pós-graduação em Le-tras da Universidade Federal Fluminense. Posteriormente, foi re-escrito e apresentado como conferência, sob o título de “a literatura, a vida dos animais e o ma-caco de Kafka”, no VIII Seminário Internacional: Crítica Literária, na PUC-RJ, em 19 de setembro de 2007, em mesa plenária composta por Flora Süs-sekind, Ana Cristina Chiara e eu mesma. O presente artigo reescre-ve, com transformações e acréscimos, os dois textos anteriores, tam-bém inéditos até o mo-mento. Entregue para publicação na Gragoatá 24, UFF.

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“Acreditamos que houve um tempo em que podíamos dizer quem éramos. Agora, somos

apenas atores recitando nossos papéis. O fundo caiu.”(John Maxwell Coetzee, Elizabeth Costello)1

O texto de J. M. Coetzee, A vida dos animais (1999),2 entrega ao leitor reflexão fascinante. Não menos incisiva é a experiência da escrita que põe em prática. Operando por um jogo cruzado de referências, o texto se estrutura em dobradiças. Mas essa ferramenta, que organiza o processo, não o transforma em mais uma aventura, na farta bibliografia de narrativas semelhantes. Produzidas por artistas que desenvolvem trabalhos híbridos e dissolvem fronteiras entre a ficção e a intervenção crítica, tais narrativas já se banalizaram. O que, então, delas distingue A vida dos animais, a ponto de se afirmar que esse texto não é mais um exemplar da estetização contemporânea que caiu sobre nossas cabeças? Apesar de utilizar conhecido artifício, o livro se funda-menta numa aventura ética da reflexão, que penetra sua armação lúdica dando-lhe espessura, fazendo a estrutura ganhar força, retirando-a do campo das evidências consagradas, para torná-la capaz de dinamizar o pensamento e anunciar questões que adensam a conexão entre a palavra, o mundo e a possibilidade do sentido para a linguagem literária e a existência.

Em tudo diverso do trajeto da velha máxima de que, por força de tanto imaginar, transforma-se o amador na coisa ama-da, A vida dos animais é, pois, uma aventura do estranhamento e do sentido, na qual a razão mexe com o coração, e um e outro se imprimem batimentos mais fortes, sem que se estabeleçam como um par meramente antitético, prisioneiro dos limites do maniqueísmo, do sentimentalismo e da exclusão. Ainda que o texto acentue a necessidade ética e política de uma razão não instrumental, i.é., de uma racionalidade que não se prenda à de-fesa exclusiva do progresso pelo avanço tecnológico, a narrativa não se subjuga a uma ideologia, nem se presta a passar lições de comportamento.

A estrutura desmonta a expectativa do leitor que espera um romance, forma adotada pelo autor em outras de suas nar-rativas, até premiadas com o Booker Prize, como Vida e época de Michael K (1999) e Desonra (2002). o leitor percebe que algo de insólito ronda as páginas de A vida dos animais. Suas fronteiras transbordam o sentido do romanesco. E, mesmo que o título do livro pudesse sugeri-lo, o texto nem apenas defende agenda ecológica, nem resulta em um abaixo-assinado em prol do po-liticamente correto.

a correlação entre ética e estética nele se evidencia, provo-cando articulações multidirecionais que ultrapassam qualquer quadro de homenagem à interdependência dos campos do saber. A vida dos animais vai além disso, pelo inesgotável agenciamento de uma forma de palavra-puxa-palavra, que remete o leitor do

1 O fragmento é retirado do livro Elizabeth Costello (Cf. COETZEE , 2004, p. 26-7). Posterior a A vida dos animais, este livro (sua primeira edição em inglês é de 2003) põe em pauta a discussão da teoria da representação, que configura um dos mais instigantes inte-resses desse intelectual que, além de ficcionista, tem trabalhado como professor de literatura e participa, como ar-ticulista, do setor de resenhas de livros do suplemento literário do New York Times. Coetzee ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 2003.2 COETZEE, John Ma-xwell. A vida dos ani-mais. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. (a primeira edição da obra saiu em língua inglesa e foi publicada pela Princeton Univer-sity Press, em 1999).

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romance ao “não-romance”, que o próprio texto contém. É com mestria que o autor requisita um processo de costura de um livro com outros, entretecendo livros de outros autores (Paul Singer é um deles) com seus próprios livros ficcionais e de en-saios, como Stranger shores, Inner workings e Giving offense, essays on censorhip, e nos quais Coetzee dá vazão ao trabalho de crítico literário sutil e bem aparelhado, de teórico e de pensador da cultura extremamente culto.

A estrutura multifacetada e fragmentária de A vida dos animais é um caso de hibridismo explícito, no qual o cânone dos “gêneros literários” encontra-se extremamente abalado, bem como a diferença entre homens e animais é posta em xeque e re-investigada, disso resultando que o jogo de espelhamento e contaminação de gêneros envolva-se no novelo da mise-en-abîme, aprofundando a estratégia de aproximação e distanciamento entre as partes, num mergulho inter e intratextual e inter e intradiscursivo.

Desse modo, o livro de Coetzee avança para o saber en-quanto descoberta, absorvendo uma rede de fronteiras que se movem sem cessar, jogando com o obscuro que, uma vez cla-rificado pelo leitor, insiste em modificar-se para, de novo, dar reinício ao processo, sugerindo uma possibilidade infinita de se jogar com a linguagem.

A vida dos animais apresenta-se em quatro partes: 1) “In-trodução de Amy Gutmann”, 2) “A vida dos animais por J. M. Coetzee”, 3) “Reflexões” e, 4) “Colaboradores” – que logo contra-riam a idéia de “capítulos de romance” que o leitor traz consigo, impedindo-o de usar, confortavelmente, a expressão romance ou mesmo qualquer outra a que esteja acostumado. Nisso Coetzee mostra-se um herdeiro dos primeiros modernistas, não só por trabalhar com a idéia de ficção-limite,3 como também pelo caráter espesso e opaco de sua trama altamente complexa, exemplo de uma escrita “biscoito fino”.4

Uma das dificuldades de A vida dos animais – e marca de sua originalidade – é o fato de que, na recepção inicial, e até em releituras posteriores, o leitor custa a querer aceitar, não acredita mesmo, persistindo na dúvida, que a primeira parte, a introdução, seja escrita por amy Gutmann e que as réplicas sejam, também, feitas por outros quatro intelectuais: Marjorie Garber, Peter Singer, Wendy Doniger e Barbara Smuts. E são. São? O leitor fica um tanto aturdido pela colisão de disfarces que se dobram sobre si mesmos, a ponto de negar a evidência (tão evidente) de uma autoria que, todavia, indo-se verificar, consta da folha de rosto da publicação de A vida dos animais. todavia, o leitor (comum) de romance não costuma prestar atenção a esse detalhe.

O jogo é tão bem feito, que a maior dificuldade advém de sua aparente simplicidade, o que coloca essa ficção no campo

3 A ficção romanesca, no caso, que está aquém, ou além, da concepção canônica de romance desenvolvida no século XIX.4 A expressão é de Oswald de Andrade, que afirmou que a mas-sa um dia comeria do “biscoito fino” que ele fabricava e constituía sua obra.

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do paradoxo: tudo é e não é, em rápidos insights, criando oxí-moros, gerando chispas velozes e múltiplos cruzamentos na mente do leitor. A leitura (e as releituras) desse texto de Coetzee traz (em) o impulso de associá-lo a um jogo que se afina com a técnica empregada por Edggar allan Poe, em um de seus contos, segundo a exegese, feita por Bárbara Johnson, em The critical difference,5 acerca da “Carta roubada” (1845) de Poe, – a terceira de suas três histórias de detetive, com a qual o escritor conquistou, como mostra a scholar norte-americana, a atenção de sofisticada linhagem de estudiosos, como Derrida e Lacan. O segredo da carta roubada, na história de Poe, carta tão difícil de ser achada, é ter sido ela deixada em lugar tão evidente que ninguém fora ali procurá-la.

Coetzee, de escolhas agudas e refinadas, brinca com a pista e a contra-pista da evidência do roubo da carta e do logro da lin-guagem. Brinca, ao mesmo tempo, com a idéia de ocultação e de cultuar, gerando, na interpretação em português, a possibilidade de se relacionar seu texto com a paronomásia entre o oculto e o culto, por meio dessa e de muitas outras referências que fica-rão ignoradas, por serem demasiado sutis para leitores menos atentos. Ou seja, operando no eixo das citações – Coetzee não trabalha nem por pastiche, nem por paródia, seu texto como que gira e nos faz girar, como se fosse um “romance não-romance” que abriga e instiga o caráter de charada dos textos policiais. Um texto que oferece a seus leitores, sob a forma de armadilha, a promessa sub-reptícia de um certo prazer da “descoberta” da res-posta “certa” – “Quem escreveu o comentário, Coetzee ou Amy Gutmann?” – para questões que não só não admitem respostas certas, como também não deixam de existir quando parecem ter sido respondidas, posto que as soluções dadas avançam em direção a outros patamares e a outros enigmas.

A vida dos animais começa, como já foi dito, por uma “Intro-dução de amy Gutmann”, seguida de sessão intitulada “a vida dos animais, por J.M. Coetzee”; e de quatro reflexões, em uma sessão separada, contendo comentários às palestras da segunda parte, feitos por Marjorie Garber, Peter Singer, Wendy Doniger e Bárbara Smuts; e finalizando com uma sessão em que, sob a forma de um pequeno currículo, se esclarece quem são aqueles cinco intelectuais que apresentam reflexões às palestras de Eliza-beth Costello, no Appleton College (e, no outro lado do espelho, também as que foram feitas por Coetzee, nas Tanner Lectures da Universidade de Princeton). O jogo prossegue apoiado em uma numerologia na qual se confirma o gosto pelo duplo: o texto inteiro tem quatro partes, a segunda parte tem dois textos, são quatro colaboradores, dentro da terceira parte, assim como na quarta parte são quatro as referências, uma para cada um dos colaboradores.

5 Verificar, de Barbara Johnson, o l ivro The critical difference no qual, no capítulo “The frame of reference: Poe, Lacan, Derrida”, de sua tercei-ra parte, ela discute as exegeses que Lacan e Derrida fazem do texto de Poe.

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Na introdução de Amy Gutmann, à guisa de prefácio crítico, o leitor recebe, de partida, um mapa da mina ficcional, espécie de bastidores do que vai ler, pois Gutmann se refere a duas conferências escritas e pronunciadas por Coetzee na Universidade de Princeton, que integraram o ciclo anual das Tanner Lectures, em 1997-98. Nestas conferências, ele teria criado um personagem, como um alter-ego, e introduzido a figura de Elizabeth Costello. Constituiriam, portanto, uma obra literária e, não propriamente, conferências.

Na segunda parte, introduzidas e guiadas por um nar-rador em terceira pessoa, estão, escritas para serem recebidas como contos, e não mais apenas referidas, duas conferências, intituladas: “Os filósofos e os animais” e “Os poetas e os ani-mais” (escritas, como dissemos anteriormente, por Coetzee e pronunciadas por Elizabeth Costello, no Appleton College e por Coetzee nas Tanner Lectures). Forma-se, portanto, na matemática textual, uma conta que não é de somar, pois dois e dois, no livro, não são quatro (nem cinco, conforme aparece em letra composta por Caetano Veloso): são dois, o duplo.

Seriam, portanto, duas as bocas (J. M. Coetzee, o autor e Elizabeth Costello, a personagem) a emitir; são, também, duas as (“mesmas”) palestras, e, finalmente, são duas as universidades a que o livro se refere (Princeton e Appleton College), em um texto em que estão entrecruzados – como uma unidade em dobradiça, o ensaio e a literatura, a arte e a ciência, a realidade e a ficção, a emissão e a recepção, o narrador e o escritor, a personagem e a pessoa – pares que, pelo hibridismo, constituem uma tensa dualidade ambígua, perfazendo uma estratégia de reflexão (em, pelo menos, dois sentidos: a reflexão como ato sinônimo ao ato de pensar e a reflexão como campo conexo à teoria da representação).

resumindo, temos duas palestras pronunciadas pela per-sonagem Elizabeth Costello: uma se intitula “Os filósofos e os animais”, e a outra, “os poetas e os animais”. Elas provocam quatro réplicas, cuja extensão se assemelha ao tamanho de cada uma das palestras, que podem ser fruídas pelo leitor como ou-tros tantos “contos” inseridos na estrutura de uma coleção de histórias breves, agilmente interligadas. Essas duas palestras (indicadas como “contos”, em A vida dos animais) serão deslocadas, em 2003, para a ambiência de um novo livro, Elizabeth Costello, no qual integrarão, com mais seis textos, os oito capítulos dessa nova textualização, sendo ali, então, nomeados “ensaios”.

tudo empurra o leitor para o câmbio e o intercâmbio entre partes móveis. E a produção de sentido é acionada pelo jogo de repetição de elementos que, se parecem semelhantes, resultam em uma repetição diferencial ao serem inseridos em novo con-texto de sentidos. Em A vida dos animais, e também em Elizabeth Costello, o grande público que esteja fora do eixo de alcance dos

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intelectuais citados nos contos que se repetem em ambos os textos, não sabe exatamente quem eles são. Conhecidos no meio que os circunda, seu trabalho, no entanto, fica retido, na maioria dos casos, no universo dos países em que atuam, mesmo que o capítulo final atribua uma biografia a cada um dos que apre-sentaram réplica ao que disse Elizabeth Costello.

Tudo se organiza à luz de um jogo de espelhos, com o leitor podendo supor, durante algum tempo, ou até durante todo o tempo, que tudo é ficção. E, mesmo que não seja assim, também pode ser assim entendido, uma vez que o deslocamen-to dos textos “não-romanescos” daqueles intelectuais, levados para uma ambiência “romanesca”, a do texto de Coetzee, atribui teor ambíguo ao conjunto, no qual a representação literária se mistura com a possibilidade de representação da própria lin-guagem. Examinando-se, por outro ângulo, o da impostura, as estratégias narrativas de que o autor lança mão em A vida dos animais e também em Elizabeth Costello, levam a considerar que o procedimento convoca a força da ironia para, de forma disfar-çada, tratar do jogo de máscaras em que se pode transformar, e não de modo “positivo”, a vida entre scholars.

tanto o assunto abordado em A vida dos animais, quanto a maneira de apresentá-lo assinalam o inusitado dos recursos técnicos e criativos desse escritor sul-africano de ascendência holandesa, que estudou na Inglaterra e nos Estados Unidos, e trabalhou em universidades americanas e sul-africanas e, no momento, está radicado na Austrália. Essa “biografia intelec-tual” faz, enfim, de Coetzee um homem também híbrido e de seu tempo. Um tempo ao qual ele ainda surpreende, à medida que é flagrado mobilizando a platéia da renomada Ivy League à qual se integra a Universidade de Princeton, mas sem recorrer a apelações jocosas – pois não se vale do humor rasteiro que, por vezes, costuma acompanhar algumas dessas apresentações de figuras notórias, nas quais o keynote speaker abusa do direito de acariciar uma platéia dócil, com jogos verbais destinados a fazer rir e distender o ambiente.

Discutir quem emite e para quem se emite são questões básicas em A vida dos animais (1999). E o jogo de espelhos conti-nua, pois, como já dissemos, quatro anos depois, os dois textos atribuídos a Coetzee no sumário de A vida dos animais foram extraídos para virem a fazer parte de uma nova ficção de Coet-zee, intitulada, desta vez, Elizabeth Costello, fazendo com que a personagem romanesca se transforme agora em autora de um tipo de memória ensaística e os oito “contos” que compõem o novo todo ficcional passem a ter o subtítulo de “ensaios”. O pensamento do emissor se entrecruza com o do receptor, assim como se estilhaça a estratégia recepção-emissão, uma vez que o objeto da escrita, em uma faixa, torna-se o emissor na outra.

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Na leitura dessa estratégia e do choque que ela provoca, uma espécie de constrangimento abre-se, revela-se. o processo de elaboração do sentido surge como se viesse de uma cartola de mágico, brotasse como um coelho, e saltasse para as mãos do lei-tor. De modo gradativo, como se acompanhando um videoclipe, retinas permanecem atentas, tensas na atitude de aturdimento, observação e tentativa de compreensão. o que se aceitara ou não se percebera, continua a se disseminar.

Nem estamos no calor da leitura. Retornamos aos textos, às partes do texto, ao que parece parte e todo, como um viajante que chega e rememora. Detalhes não registrados em uma primeira leitura levam a outros, ainda a outros e mais outros. Logo um quadro parece que se completa e diz. Mas essa completude é sem-pre ilusória, as partes trazem suas dobradiças e seu potencial de gerar dobras e ramificações, à maneira de Fênix. Na linguagem dos diálogos interiores, ao mesmo tempo enigmáticos e claros, cintilantes, uma transformação se realiza, insistente, imperiosa e, por que não, penosa.

O que é? O que significa?A imagem possui um gosto à maneira de Hannah Arendt,

naquilo em que busca articular ação e abstração, relembrando-nos do que faz a filósofa em seu último livro A vida do espírito, de publicação póstuma, quando examina o universo do espírito, absolutamente real e humano na sua abstração. Enquanto essa imagem se manifesta, arrostando, na velocidade dos espelhos, as fronteiras híbridas do concreto e da abstração, entre A vida dos animais e Elizabeth Costello um confronto se estabelece. E há todo um esforço do leitor para evitar (ao mesmo tempo para fazê-lo desejar) a busca da verdade dos fatos – afinal, quem escreve o que diz Peter Singer? Ele, o filósofo australiano, ou Coetzee, o escritor que mora na Austrália? Quem de fato estabe-lece a seqüência das partes? Coetzee ou Amy Gutmann que, na folha de rosto é mencionada como organizadora? Todo esforço de decifração do leitor parece pequeno, insuficiente na ilusão que o aproxima e distancia, entrega e retira, desvia. É e não é. Carta roubada escondida na ponta do nariz. Tão na cara, que quem a procura, tem-na diante de si, mas pensa que ainda não a encontrou. A evidência e a recusa da evidência. O abstrato e o empírico. E mais não sei quantas e quais teorias da represen-tação, desde os gregos e troianos, ocidentalizando-se, estão em jogo no jogo de Coetzee.

Em A vida dos animais se mostram pensamentos traduzidos em palavras ditas por Elizabeth Costello, escritas por Coetzee, por amy Gutmann, por Peter Singer, por Wendy Doniger, por Barbara Smuts e por mim e por você, leitor, o próximo da cadeia leitor-emissor-receptor, dessa teia de mise-en-abîme. Pensamentos assaltam-nos de uma vez, num golpe. Ou, então, entregam-se à

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busca do leitor. E o leitor tem, cumpre reconhecer, pensamentos e pensamentos. Mas, severo e habituado à ficção contemporânea, dirá que qualquer bom escritor dotado de discernimento em-prega este arsenal e até pode sair-se bem. E, implacável, quem sabe, perguntará: o que faz, mesmo, com que A vida dos animais se torne tão digno de nota?

Em uma entrevista ao Jornal do Brasil, datada de 27 de no-vembro de 2002, sobre a edição brasileira de sua obra Libertação animal,6 o filósofo australiano Peter Singer é convidado a opinar sobre a referência que a suas idéias fez John Maxwell Coetzee, em A vida dos animais.

JB – O senhor é personagem do livro de J.M. Coetzee. Como isso aconteceu? Até que ponto é possível separar o que é ficção e realidade neste livro?

Peter Singer – Eu não sou um personagem do livro. A per-sonagem central, Elizabeth, apresenta alguns pensamentos semelhantes aos meus, mas, no que diz respeito a certas coisas, o ponto de vista dela é muito diferente, como eu tentei indicar na minha resposta ficcional publicada no livro. Eu suspeito que o ponto de vista de Elizabeth esteja mais para o de Coetzee. (Jornal do Brasil, 27 nov. 2002, grifo nosso)

Ao traduzir sua resposta para o registro do mundo fic-cional (“minha resposta ficcional”, diz Singer na entrevista ao JB), Peter Singer sublinha um dos sintomas do nosso tempo – a afirmativa tanto repisada do caráter movediço das fronteiras. Por outro lado, ao requisitar para seu texto ficcional a presença da discussão filosófica de Peter Singer, Coetzee mobiliza um arsenal crítico não-moralista que põe em pauta, de forma importante, o estatuto ético necessário de ser discutido nas comunidades em mudança de pele e pêlo.

a estratégia crítica não é nova na literatura. Nem é nova na literatura a retomada do passado para citá-lo. antes da apro-priação de estilos pelo pós-moderno, ainda que com rendimento diverso, o modernismo já o tornara uma prática costumeira. Coetzee vai retomar, em A vida dos animais, e, sob a forma de repetição diferencial, em Elizabeth Costello, uma experiência de Kafka. Nesta, o traço irônico também investe sobre as dicotomias razão e emoção, homens e animais, além de contemplar as formas acres do relacionamento acadêmico. No jogo de esconde-esconde (em intertexto com a face detetivesca de busca da “verdade”) que constitui o livro, ele é, também, campo de reflexão sobre uma e simulada palestra: a narrativa breve de Kafka, intitulada “Um relatório para uma academia”, extraído da coletânea Um médico rural, pequenas narrativas (KAFKA, 1999, p. 59-72).

Coetzee realça, na apropriação que faz do texto de Kafka, uma construção fora do pastiche e da paródia, em que a visão mais intensificada é a de produzir uma alteração e desvio ao

6 Lançado em 1975, Liber-tação animal foi recebido como um marco. Basea-do na idéia de que o ho-mem exerce uma tirania sobre os bichos inacei-tável do ponto de vista ético, o livro virou a bíblia do movimento de proteção dos animais. Como o autor aponta nessa edição atualizada, seu impacto fez com que vários países, sobretudo da Europa, adotassem medidas importantes nessa área.

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rumo dado a certas questões que ele retoma do texto inicial. O narrador, no texto de Coetzee, age como quem deseja que o leitor compare o uso distinto que ele e Kafka fazem da idéia de liberdade. Cotejando o texto de Coetzee com o de Kafka, vemos que o macaco de Kafka revela-se contrário à abstração. Ele quer uma saída concreta e sem idealizações: quer sair da jaula. Esta saída é vista como uma ação, algo derivado do ato de sair. Já Coetzee, em A vida dos animais, afastando-se do que faz Kafka em “Um relatório para uma academia”, enfatiza, com o macaco, uma articulação entre o concreto e o abstrato, sem rechaçar nem uma, nem outra possibilidade.7

Kafka narra a história de um macaco que, tendo sido cap-turado por caçadores africanos é levado de navio para a Europa. Nessa viagem, o maltrato que os humanos lhe impuseram fazem o macaco decidir tornar-se humano, não por desejo de liberdade, conceito abstrato de que ele nada entendia e que só os homens almejam, segundo pensa Pedro Vermelho (esse é o nome do macaco de Kafka). Preso e torturado, ele quer encontrar uma saída que o tire de seu cativeiro, numa busca da liberdade como algo bem concreto. O Pedro de Kafka diz: “Não, liberdade eu não queria. apenas uma saída: à direita, à esquerda, para onde quer que eu fosse; eu não fazia outras exigências: [...] a exigência era pequena, o engano não seria maior” (KAFKA, 1999, p. 65).

Ao que nos remete o conto de Kafka? Pedro Rubro, na ver-são de Coetzee, se pôs perante a Academia em 1917, o ano da revolução da Rússia (vermelha). É uma dobra que alude à situação política que a data sugere. Em Kafka, essa alusão – seu texto data de 1919 parece transportar um acento cético-irônico: tanto faz ser à esquerda, à direita, são direções. Refreia-se a utopia, a idealização. Na versão de Kafka a data não aparece e o macaco é Pedro Vermelho em virtude de um ferimento, causado por agressão. E esse “apelido”, não no sentido de sobrenome, mas de aposto jocoso, é considerado inconveniente pelo macaco: “Atiraram, fui o único atingido; levei dois tiros. Um na maçã do rosto. Esse foi leve, mas deixou uma cicatriz vermelha de pelos raspados, que me valeu o apelido repelente de Pedro Vermelho [...]” (KAFKA, 1999, p. 61).

Além de apontar a força dessas alusões que, se pudéssemos levaríamos adiante, é necessário dizer que o macaco de Kafka (que, apesar da repetição em diferença torna-se, em A vida dos animais, o macaco de Coetzee e de Elizabeth Costello) de alguma forma ridiculariza fenômeno tido como bem alemão, que foi o Bildungsroman, o romance de formação. Mais do que uma forma-ção, o macaco de Kafka e sua repetição diferencial em Coetzee parecem narrar, de modo positivo, uma ‘de-formação’; isto é, o processo que Pedro Rubro “narra não é o de uma formação em seu usual sentido positivo, de construção de uma identidade, de

7 Para além dessa ques-tão, o problema pros-segue para o autor, no qual a referência a Pedro rubro alcança também, ainda que não direta-mente, seu romance Elizabeth Costello, que fornece uma chave para a releitura da diferença entre a posição de Co-etzee e Kafka. Nesse romance, a personagem de mesmo nome dialoga com um seu desafeto, Emmanuel Egudu, que com ela viaja como in-telectual entertainer de turistas ricos em um navio de cruzeiro, onde ambos fazem conferên-cias sobre literatura. No diálogo entre os dois fica demonstrado o cru-zamento da idéia de saída, para Elizabeth e Egudu, o que nos remete para A vida dos animais, texto no qual Coetzee enfatizara duas dife-rentes concepções de saída. a palavra saída é o ponto do enclave entre o texto de Kafka e os dos romances Elizabeth Cos-tello e A vida dos animais. Tomemos um fragmento desse diálogo:-- Egudu: “Não tem futuro”, diz Egudu, refletindo. “Isso soa muito desolador, Elizabeth. Tem uma sa-ída para nos oferecer? Elizabeth: - Uma saída? Não tenho de oferecer nenhuma saída a você. o que tenho mesmo é uma pergunta” (CO-EtZEE, 2004, p. 58, gri-fos nossos). Nas suas duas obras, Coetzee afia a navalha do jogo de espelhos que urde tão bem, ressaltando que a literatura é, sobretudo, e de modo cada vez mais sofisticado, um fenôme-no de auto-referenciali-dade, mas que produz cenas de uma atuação imaginarizante cuja ca-pacidade de especular é infinita, embora sua relação com as ações e o mundo não deva ser deixada de lado.

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uma personalidade, mas sim [...] a educação como um necessário processo de deformação”. 8

Mais do que ridicularizar um status quo, como parece ser um dos ângulos da proposta de “Um relatório para uma academia”, o processo de citação de Kafka por Coetzee atribui à deformação, portanto, sentido que corrói a textualização dos romances de formação. Ao retomar Pedro Rubro e sua conver-são em homem, e discutir a transformação das fronteiras entre o homem e o animal, do ponto de vista da racionalidade car-tesiana, provoca, pela transposição, também novos efeitos de reflexão sobre uma outra questão incômoda: a da racionalidade que, com arrogância, dá primazia a uma determinada forma de conhecimento, por vezes sob o perigo de excluir todas as demais formas de exercício da razão, porque incapaz de percebê-la como algo plural e, não, apenas excludente. Coetzee, em seu texto, assinala, portanto, essa outra forma de concepção de conheci-mento, visto como maneira de descaracterizar os sentidos de identidade e de formação mantidos pela tradição dos saberes médicos, zoológicos, cognitivos, retomando, por sua vez, o im-pulso revolucionário de Kafka sobre o que – a literatura – para ele, devia ser um instrumento de corte e reflexão, além de prazer e artifício, como se depreende da carta escrita por Kafka, em 1904, a Oskar Pollak.9

Em Coetzee, retomar, com diferenças, nas páginas de A vida dos animais e de Elizabeth Costello o macaco Pedro Vermelho, magnífica criação de Kafka, é de suma importância, pois permite realizar uma reconsideração da força do discurso literário, ou que nome se lhe dê, carregada de intenções e de despistamentos. Um leitor que conheça Coetzee também como ensaísta não se pode furtar a mais uma articulação da dobradinha Coetzee e Kafka com um outro livro de Coetzee, desta vez um de ensaios literários, ainda não traduzidos para o português (Stranger Shores, literary essays).

Nele está um saboroso artigo de Coetzee dedicado ao exa-me de uma conferência de Eliot, intitulada “What is a classic?” (e escrita por Eliot em 1944). acrescente-se que esse estudo de Coetzee sobre a conferência de Eliot, antes de ser publicado como artigo, em 2001, foi proferido por ele, como palestra, na Áustria, em 1993. Se, no jogo de espelhos dessa ficção em dobra, temos palestra contra palestra, o que ressalta, ao final, é tam-bém uma outra dobra em que palestra conta palestra, ou mesmo palestra – conto – palestra, em outra dobra, e assim continua o incessante processo de articulação em que o pensamento busca alcançar uma outra lógica, a do estilo cabralino, de “o sim contra o sim”.

O “Sim contra o sim” a que me refiro é o título de um poema de João Cabral de Melo Neto, publicado no livro Serial. Nesse texto, Cabral compara, em grupos de duas estrofes, e atribuindo-

8 Este fragmento dialoga com artigo de Sílvio Gallo, “o macaco de Ka-fka e os sentidos de uma educação filosófica”, no qual o autor traz à baila a idéia de “deformação do romance de forma-ção. Pode-se ler o artigo de Gallo no site: <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/filo-sofia/filo_especial1001.html>.9 Kafka formula um con-ceito para a literatura em sua carta a Oskar Pollak, datada de 27 de janeiro de 1904. Segun-do o autor, a literatura é “[...] um soco no crânio” do leitor; ou uma “ma-chadinha que rompe em nós o mar de gelo” (LÖWY, 2005, p. 15).

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lhes igualmente valores positivos, dois artistas (poetas, pintores, romancistas) que, em sua arte, comportam-se um ao contrário do outro, nas técnicas e nos temas abordados, mostrando que os caminhos da arte são abertos e incluem procedimentos que se abrem uns para os outros, apesar das diferenças de técnicas, estilos, formas e gêneros. Ou, como diz Coetzee, no artigo citado, bastando para isso, ser “um clássico”. Neste sentido, a reunião, em um paralelo, por inclusão, de procedimentos díspares, contudo considerados positivamente, revela-se uma proposta integradora.

É uma forma de pensar que implica a inclusão dos contrá-rios, do mesmo modo que a rede tecida por Coetzee, reunindo, aos seus, o texto de Kafka, sob o patrocínio da metáfora do macaco, implica em abertura para novos conceitos de raciona-lidade e novas formas de inclusão. Portanto, retomar, de modo intertextual, a referência ao macaco de Kafka, torna-se, acima de tudo, uma forma de se pensar a arte e a razão como fenômenos integradores, ambíguos em sua pluralidade, em uma atitude de exercício do pensamento focalizado, ele mesmo, como recusa à exclusão e às formas sociais excludentes.

Em seu artigo-palestra sobre Eliot, Coetzee se permite um momento autobiográfico, ao investigar em que sentido se pode tomar Eliot como um clássico. Coetzee indaga de que ma-neira se pode ser e compreender um clássico fora daquilo que, usualmente, se toma por clássico e fora, também, da academia, para pensar a vida. Tomando como fundamento da reflexão teórica as forças da rememoração pessoal, Coetzee relembra da transformação, provocada dentro de si, pelo primeiro instante em que, aos quinze anos, ouviu o “Cravo bem temperado”, de Bach, tocado na casa de um vizinho, sem que tivesse a mínima idéia de quem era Bach, nem do que esse representava em um registro cultural fora de sua classe. Sem que ele conhecesse música, e muito menos, os “clássicos”, aquele foi um momento de descoberta para Coetzee.

É dessa forma que nós, leitores, somos apresentados a um outro Coetzee, personagem homônimo do Autor, jovem de quinze anos em um mundo sul-africano ainda colonial, em plena década de 1950, em que o background da mídia era a mú-sica norte-americana, e não a européia. E tudo isso feito em um ensaio crítico desviado, aparentemente, de sua rota acadêmica. Ou, quem sabe, Coetzee estaria escrevendo com aquele ensaio “Um outro relatório para uma academia”?

Enfim, ao retomar a escrita em mosaico, Coetzee re-insere a categoria autor na escrita, ao se inserir e ao inserir Kafka e Eliot, perfazendo com todas essas subjetividades e vozes uma poderosa interlocução sobre o potencial transformador de tudo aquilo que, na articulação entre razão e sensibilidade, sem re-

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montar ou trazer de volta um mundo mítico clássico, instaura força e mudança.

Se relembrarmos nossa epígrafe, avançando um pouco mais no texto do romance Elizabeth Costello, do qual foi extraída, e a transformarmos, neste momento, em citação, reunindo-a ao que dissemos de A vida dos animais, e ao experimento que pros-segue na urdidura de Elizabeth Costello, veremos que a narrativa de Coetzee está tratando, sempre, de um só problema, obstina-damente refletido e repetido – o da representação, a ponto de o narrador declarar:

Acreditamos que houve um tempo em que podíamos dizer quem éramos. agora, somos apenas atores recitando nossos papéis. O fundo caiu. Poderíamos considerar trágico esse evento, não fosse pelo fato de ser difícil respeitar um fundo que cai, seja ele qual for – isso agora nos parece uma ilusão, uma dessas ilusões sustentadas apenas pelo olhar concentrado de todos da sala. removam seu olhar apenas um instante, e o espelho cai ao chão e se parte. (COETZEE, 2004, p. 26-27)

Em Elizabeth Costello, nosso autor substitui a introdução teórica de amy Gutmann, por um capítulo chamado “realismo”. Que teoria da mímesis vai ou não vai sustentar os simulacros de nossa era? ou não são, nem serão mais simulacros, esses dogmas de fé da nova profissão de época, a realidade virtual, de nosso tempo? Nosso tempo? E as fronteiras tornadas tão tênues como se tivessem desaparecido de todo? Será que seu desaparecimen-to é ilusório? ou será que elas são tão duras e pesadas, na sua ilusão, que chegam a ser tão concretas, quanto concretas são as divisas aduaneiras que fecham sua porta de acesso aos que provêm de países ditos emergentes? Lamento, mas não podemos continuar. tenho que terminar aqui e agora, já que não me resta mais tempo, pois ontem marquei um encontro com Elizabeth e ela está tocando a campainha.

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ReferênciasaDorNo, theodor W. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. Trad. Luiz Eduardo Bicca. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993.ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. 2. ed. rev. Trad. Antonio Abranches, César Augusto R. de Almei-da, Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.COETZEE, John Maxwell. A vida dos animais. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

. Elizabeth Costello: oito palestras. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

. Inner workings: essays 2000-2005. London: Harvill Secker, 2007.______. Stranger shores: literary essays. 1986-1999. London: Pen-guin Books, 2001.JOHNSON, Barbara. The frame of reference. In: . The critical difference: essays in the contemporary rhetoric of read-ing. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1980. p. 110-146.KAFKA, Franz. Um relatório para uma academia. In: . Um médico rural: pequenas narrativas. Trad. posf. Modesto Caro-ne. 2. Reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 59-72.LÖWY, Michel. Franzkafka: sonhador insubmisso. trad. Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.

AbstractThis article intends to discuss the web of texts created by J.M.Coetzee to entangle three literary texts: his two novels The lives of animals (1999) and Elizabeth Costello (2003), and Kafka’s “A Report to an Academy”, taken from A Country Doctor [Ein Landarzt] (1919). How are we to understand this textual network that spreads itself in a sharp and delicate way? While inteweaving the marks of authorship, autobiography, and fic-tion, Coetzee’s text indicates both the porosity and complexity of the act of writing. With this capacity of branching, Coetzee’s texts highlight the thin bordes between reality and the world of “might have been” that literature creates. This essay aims at examining these issues, which con-nect the games of language to the representation of today’s literary language.

Keywords: Coetzee. Kafka. Dialogue. Fiction. South Africa. World.

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O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento numa entrevista com José Eduardo

agualusa sobre o Brasil e angolaMaurício de Bragança

“Angola... de cujo triste sangue, negras e infelizes almas se nutre, anima, sustenta, serve e conserva o Brasil.”

(Pe. Antônio Vieira)

Brasil e Angola possuem muitos elementos em comum nos seus processos de forma-ção histórica. É conhecida a relação que se formou com os projetos de expansão ibérica do século XVI rumo à América, aproximando os dois países a partir de um contexto econô-mico que levava as capitanias sul-americanas, o Brasil especificamente, a se interligarem num espaço complementar ao de Angola através do abastecimento de escravos africanos na colônia portuguesa. Dessa maneira o africano incorpora-se à paisagem americana.

Tanto o Brasil quanto Angola foram colônias (des)ajustadas ao mundo econômico desde uma perspectiva periférica, complementando e apoiando, através da exportação de suas riquezas (materiais e humanas), o império português. Os escravos africanos pro-venientes, em grande número, do território angolano, se estabeleceram como a principal mão-de-obra da América portuguesa. Esta estrutura do sistema colonial configurou o primeiro fluxo de migração forçada de angolanos ao Brasil. Esta força de trabalho iria mar-car profundamente a história e a cultura brasileiras, conectando estes dois continentes.

O Brasil foi colônia portuguesa até 1822 e Angola até 1975, quando o país africano conquistou sua independência política, depois de passar por uma sangrenta guerra. O MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), de inclinação comunista, foi criado ainda na década de cinqüenta como uma articulação em torno do processo anti-colonialista. Mesmo após 1975, Angola seguiu numa violenta guerra civil, exacerbada pela competição entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria. O MPLA e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), identificada com os Estados Unidos, destruíram o país em décadas de luta intensa. Isto estimulou, a partir dos anos oitenta, um processo de emigração de Angola, que buscava refúgio especial-mente em Moçambique, Portugal e Brasil. Em 1992, houve eleições em angola, nas quais o MPLA saiu vitorioso. Em 1993, foi assinado um acordo de paz entre o MPLA e a UNITA, reduzindo o fluxo emigratório de Angola, mas, na segunda metade da década, a guerra civil recomeçou e, conseqüentemente, a imigração de angolanos no Brasil retomou seu crescimento.

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Atualmente Angola vive sob um novo acordo de paz, assinado em 2002 e que parece ter estabilizado, em parte, a realidade de violência proveniente da guerra civil. A política externa do governo Lula, buscando uma frente de coalizão entre os países do chamado terceiro mundo, levou o nosso presidente ao continente africano em 2003, com uma passagem por Luan-da, onde acordos econômicos e de cooperação com a ex-colônia portuguesa foram selados. Medidas como essa podem até tentar diminuir gradualmente a violência em Angola e minimizar o preconceito contra a presença angolana no Brasil, mas décadas de sangrentas batalhas e extrema violência no país deixaram marcas profundas de exclusão na sociedade que ainda produzem efeitos sociais pungentes.

No Brasil, os angolanos chegavam, na década de noventa, como turistas, com um visto que lhes permitia permanecerem legalmente pelo prazo de um mês. Depois disso, a ilegalidade, e os problemas decorrentes dela, era o destino de quase todos eles. No final de 1998, o governo brasileiro implementou um projeto de anistia aos angolanos que se encontravam em condição ilegal no país. Mas os problemas em angola não terminaram. a migração Luanda - Rio ainda permanecia e o número de angolanos em condição ilegal continuava a crescer.

Hoje em dia existem, aproximadamente, mais de 2000 angolanos no Brasil. Muitos deles moram no rio, espalhados entre os bairros da Lapa, da Glória, do Estácio e o centro da cidade, além de algumas comunidades ao longo da avenida Brasil. Um grande número dos angolanos do Rio vive na Vila do João, uma das diversas comunidades que formam o Complexo da Maré, convivendo com uma realidade de extrema violência, reforçada pela presença da polícia na disputa com as facções rivais do tráfico.

Em fevereiro de 2000, uma ação da polícia do Rio chegou a causar um incidente diplomático entre Brasil e angola. oitenta angolanos moradores da Vila do João foram detidos pela polícia, depois da morte de um policial numa ação contra traficantes no local. ativistas pelos direitos humanos e movimentos negros protestaram contra a maneira como tais angolanos foram trata-dos pela ação policial e irresponsavelmente apresentados pela imprensa, fomentando a suspeita de sua participação no tráfico da Vila do João. Dois dias depois, a prefeitura da cidade oficial-mente se desculpou ao cônsul angolano no rio. Este episódio mostra-nos a vulnerabilidade em que se encontra a comunidade angolana, segregada do mercado de trabalho, sujeita à arrogância e à violência da polícia (tratamento este não diferente de suas ações contra quaisquer comunidades pobres das periferias da cidade do Rio de Janeiro). Ações como essa vêm reforçar o pre-conceito de que são vítimas os angolanos residentes no Brasil.

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Por outro lado, a comunidade angolana desenvolve estra-tégias de relacionamento visando à inserção e integração na comunidade local, estabelecendo cadeias de reconhecimento e identificação com outros grupos.

Em 2005, durante o processo de realização de um video-documentário sobre os angolanos residentes na Vila do João, tivemos a oportunidade de entrevistar o escritor angolano José Eduardo agualusa, que se encontrava no Brasil para participar de mais uma Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro. após alguns contatos, o escritor gentilmente nos recebeu no Hotel Glória, no dia 16 de maio, para uma conversa sobre as questões que moviam o documentário e as problemáticas histó-ricas das relações entre Brasil e angola. o videodocumentário ainda se encontra em fase de finalização, mas a entrevista pode ser conferida abaixo.

Maurício de Bragança: A história recente de Angola é marcada pela questão da diáspora, proveniente de uma guerra civil, principalmente nos anos 90, e que proporcionou inclusive o que a gente tem percebido como uma espécie de identidade fraturada na Vila do João. A sua lite-ratura também é muito marcada por essa constância da guerra como elemento motivador. Gostaria que você falasse um pouco disso: da guerra civil na sua história pessoal e essas marcas na sua literatura.José Eduardo Agualusa: Bem, a guerra em angola tem diver-sas fases. Na verdade nós podemos até considerar que a guerra civil começou de uma certa forma com a própria guerra de Independência, em 60. Porque logo quando se desencadeiam as primeiras manifestações nacionalistas violentas no norte de Angola na altura das possibilidades da União dos Povos de An-gola, da UPA, que era uma estrutura financiada pelos Estados Unidos da América, além dos colonos que são assassinados, são assassinadas também muitas centenas de angolanos negros que trabalhavam nas fazendas coloniais. Portanto, de uma certa maneira, já era uma guerra civil, que continua depois entre os movimentos de libertação. Eram três movimentos de libertação: a UNITA, que só surge mais tarde, o MPLA e a UPA, depois FNLA. Esses movimentos lutavam contra os portugueses, mas também lutavam uns contra os outros, e representavam diversos interesses internacionais. Estávamos em plena Guerra Fria, entre os Estados Unidos e a União Soviética, e até a China. No caso, a UNITA, quando surge, surge apoiada pela China; UPA-FNLA, apoiada pelos Estados Unidos e o MPLA, apoiado pelos países do leste. Portanto, estas três potências internacionais, grandes potências, usavam seus peões para se digladiarem entre si. De fato, estes movimentos lutaram contra os portugueses, mas lu-taram também uns contra os outros. Já era uma guerra civil que depois da independência se torna evidente. Em 1992, acontecem

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em Luanda os acordos de paz, um pouco antes até, em 1990, e em 1992 já há as primeiras eleições. Portanto, há um pequeno interregno de paz logo a seguir às eleições. As eleições são em setembro. Logo no início de outubro, a UNITA, o líder da UNI-TA, doutor Jonas Savimbi, recusa-se a aceitar o resultado das eleições e a guerra recomeça com extrema violência, muito mais violenta do que anteriormente e nas cidades inclusive, dentro de Luanda e dentro de outras grandes cidades angolanas. Portanto, aí temos uma nova fase da guerra que vai até recentemente, no fundo. Depois há pequenos acordos de paz, mas no fundo, enfim, a guerra prolonga-se até a morte do Jonas Savimbi, já em 2002. Mas, enfim, temos estas diferentes fases da guerra que afetaram as pessoas de uma forma diferente. No caso, por exemplo, das populações de desalojados e de refugiados, isso ocorre logo no início da guerra, logo que ainda a guerra anti-colonial se desen-cadeia em 1960, logo aí há angolanos que procuram refúgio nos países vizinhos, no Zaire, na Zâmbia. Depois, com a guerra civil em 75, há uma nova vaga de refugiados, mais uma vez para os países limítrofes, incluindo um pouco também a África do Sul, mas também para Portugal. A grande vaga foi para Portugal. Muitos milhares de angolanos buscaram refúgio em Portugal e também no Brasil. Vários angolanos, já nessa altura, buscaram refúgio no Brasil. Depois das eleições há esta nova fase da guer-ra, terceira guerra, digamos assim, e então aí eu creio que sim, aí há um grande número de jovens angolanos que, para fugir à incorporação militar, vem para o Brasil, sobretudo para o rio de Janeiro.MB: A gente percebe, de vez em quando, um questionamento grande dos angolanos lá na Vila do João a respeito do papel do intelectual angolano no processo histórico de Angola. Para você, qual é o papel do intelectual em Angola?JEA: É interessante isso. Às vezes quando as pessoas colocam “a literatura não tem grande utilidade”, eu sempre digo não, o caso de angola demonstra que a literatura pode mudar o mun-do, às vezes nem sempre para melhor. Porque o movimento nacionalista em Angola foi de fato antecedido por um movi-mento cultural, por um movimento literário. Este movimento literário, com revistas, com debates, etc preparou a insurreição nacionalista e não por acaso, logo a seguir à independência, nós temos um primeiro governo formado por um grande número de intelectuais, poetas, escritores, etc. o próprio presidente da república era um poeta. Nem por isso foi o melhor governo, infe-lizmente. Mas, portanto, vamos dizer que os intelectuais tiveram um papel ativo na insurreição nacionalista. Isto é absolutamente claro, sobretudo, do lado do MPLA. Agora, o que eu acho é que a seguir à independência estes intelectuais, muitos, se colocaram do lado do regime e enfraqueceram sua visão crítica, ou seja,

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deixaram de agir como uma entidade capaz de refletir sobre o país de forma livre porque estavam do lado do regime, estavam do lado do poder. Isto durou muito tempo, durou bastante tem-po, e eu creio que só depois, com o fim do sistema de partido único, com as primeiras eleições, os intelectuais começaram a ver, começaram a reaparecer alguns intelectuais um pouco mais críticos. Mas seja como for, eu acho que se deve ir bastante mais longe, eu penso que, sobretudo no que diz respeito ao escritor, eu acho que num país totalmente democratizado, num país es-tável e próspero, o escritor pode não ter nenhuma outra função que não seja, enfim, as grandes questões filosóficas ou divertir simplesmente as pessoas. Mas num país como angola, que é um país no qual a maioria da sua população não tem voz, não é capaz de fazer ouvir a sua voz, e é um país onde existem tantos problemas, tão graves, eu acho que o escritor num país assim tem obrigação de dar voz a essas pessoas, de procurar dar voz a essas pessoas.MB: O perfil do angolano, que migrou nos anos 90 para a Vila do João, é um perfil de jovem, entre 18 e um pouco menos de 30 anos, homens em sua maioria, provenientes dos musseques de Luanda, pobres, e to-dos, absolutamente todos eles que a gente encontrou até agora, negros. Você, sendo um angolano branco, como é que você vê a questão racial em Angola?JEA: Essa vaga é muito diferente daquela que aconteceu em 75. Eu acho, que em 75, a maioria dos angolanos que migraram para cá eram angolanos da pequena-alta burguesia; portanto, uma burguesia mestiça, branca. a guerra curiosamente teve isto. Du-rante muito tempo, logo a seguir à independência, os oficiais, ou parte, vamos dizer, dos oficiais generais dos exércitos angolanos, podemos dizer a maioria dos generais, eram mestiços e brancos, que eram aqueles que tinham estudado nas universidades mi-litares, que tinham tido alguma possibilidade de estudar, que tinham desenvolvido a sua capacidade a uma direção militar. Hoje a situação já não é mais tanto assim, mas ainda é um pou-co, ou seja, em um certo nível das forças armadas ainda há essa presença. Em 75, você ainda podia encontrar entre os soldados elementos dessa pequena burguesia mestiça, mas pouco a pouco o que foi acontecendo é que a guerra foi sendo feita cada vez mais pelos pobres. Quem morreu nesta guerra foram os pobres, a partir de uma certa altura. E quando chegamos a 92, então, isso é absolutamente claro. Na terceira fase da guerra, quem dá a vida, quem faz a guerra, quem morre na guerra, são geralmente os pobres. os generais podem ser ainda mestiços, brancos, mas quem morre na guerra são os pobres. Há até um verso do Ruy Duarte de Carvalho que diz que “o sangue agora é dos outros”, ou seja, o sangue não é nosso. Não é dessa pequena-alta burguesia. Portanto, não é de admirar que sejam estes pobres que tentam

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fugir da guerra também e que sejam esmagadoramente na sua totalidade, ou quase totalidade, negros.MB: No seu “O ano em que Zumbi tomou o Rio”, você faz declarações bastante corajosas, tanto a respeito do processo de Angola quanto ao pro-cesso brasileiro, de exclusão da sociedade brasileira, inclusive afirmando que o Brasil nunca tinha sido de fato descolonizado. Isso na boca de um personagem angolano. Qual a diferença do processo de descolonização do Brasil e o de Angola, vistos por você?JEA: Bem, é totalmente diferente, não tem comparação, realmen-te. Eu falo disso no livro, e enfim é uma provocação, mas... É evi-dente: quem fez a independência do Brasil foi um rei português, que depois de ter feito a independência do Brasil, regressou a Portugal e foi rei em Portugal. É extraordinário isso. E quem fica no poder, quem fica a controlar o poder, são de fato ou portugue-ses ou descendentes de portugueses. E ficam sempre, ou seja, não há uma passagem de poder. a vasta maioria de brasileiros de descendência africana, que nessa altura era vastíssima maioria, mais de 80 por cento dos brasileiros no século XIX, eram negros. E os índios, as populações indígenas, são totalmente afastados do poder, totalmente afastados. De fato, até essa altura, havia uns mestiços no meio daquela situação. Por exemplo, é curioso que a literatura brasileira, toda ela, seja fundada por mulatos e negros, mas depois... Mesmo esse poder, que até podia ser ainda, enfim, um pouco escuro, vai clareando, até que no século XX, em meados do século XX, não havia nenhuma participação de afro-descendentes no poder, no poder político.Em angola, não. Em angola o que acontece é que... É muito curioso, é muito interessante comparar isso: no século XIX, até finais do século XIX, criou-se em Angola uma elite baseada no tráfico de escravos, quase uma aristocracia, uma elite econômi-ca, política e até cultural de angolanos, negros e mestiços. Esses angolanos tinham de fato muito poder, quer poder econômico – algumas das maiores fortunas de Angola nessa época estavam nas mãos de angolanos negros e mestiços –; quer poder político, uma boa parte do pequeno poder local, sei lá, o equivalente ao prefeito aqui ou o presidente da Câmara, eram angolanos; quer culturalmente. Por exemplo, para escrever alguns dos meus livros, li muito dos jornais publicados entre 1880 e 1900. Há inúmeros títulos, são dezenas e dezenas de títulos e muitos desses jornais eram dirigidos por angolanos negros, negros e mestiços. E você vê claramente, ao contrário do que se pudesse pensar, havia uma elite angolana com poder. Depois, já com o fim do tráfico de escravos, muitas dessas famílias vêm para o Brasil e as outras realmente perdem poder, poder econômico, desde logo porque a principal fonte de rendimento desaparece. E depois o próprio governo português, o próprio governo colo-

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nial preocupado com a possibilidade dessas pessoas que já nos jornais da época falavam em independência – já naquela altura, já no século XIX se falava em independência – preocupado com a possibilidade real disso acontecer vai retirar ainda mais po-der a essas pessoas, vai criar legislação no sentido de retirar, de empobrecer essa elite, e consegue, consegue fazer isso. Agora, a grande diferença relativamente ao Brasil é que nós temos, seja como for, temos uma classe média-alta negra em Angola que vem de há muito tempo, que tem séculos, essa é uma primeira grande diferença. Por outro lado, logo a seguir à independência, mesmo antes da independência, já com a luta nacionalista, já com a luta anti-colonial, quando surgem os primeiros movimentos de libertação, logo aí há uma revolução de mentalidades porque há essa apreciação de que quem vai ter o poder será a maioria negra e portanto há uma integração dos angolanos brancos e mestiços no movimento de libertação dentro dessa idéia. E isso modifica completamente até a mentalidade das pessoas. E quando acontece essa revolução, essa revolução de mentalidades atinge o seu auge, ou seja, você tem, portanto, um país que passa a ser gerido por uma maioria negra e isso muda a cabeça das pessoas, completamente.MB: Uma questão recorrente, voltando ainda a “O ano em que Zumbi tomou o Rio”: nos depoimentos que a gente observa na Vila do João, é que há um certo estigma na comunidade local, e na sociedade carioca como um todo, de uma articulação do angolano com o tráfico no Rio de Janeiro. A imprensa, irresponsavelmente, sempre inscreve este angolano da Vila do João, ou do Estácio, enfim, da periferia, articulado a uma rede do tráfico. Você de alguma forma toca neste ponto em “O Ano em que Zumbi tomou o Rio”. Como é que você tomou contato com estas questões e por que você resolveu colocá-las no livro?JEA: Bem, na verdade não é o que se quer apenas do angolano, é o brasileiro pobre que vive nas favelas e o brasileiro negro porque nas favelas a maioria da população é afro-descendente, e realmente sofre este estigma. Vive num território dominado pelo tráfico e é identificado dessa forma pelos outros brasileiros das classes mais ricas. Não são apenas os angolanos; estes an-golanos sofrem este estigma porque vivem lá. Os outros poucos angolanos que estão aqui, que também há alguns vivendo na classe alta e há alguns extremamente ricos que evidentemente vivem nos bairros ricos, não sofrem este estigma, naturalmen-te. De fato eu já tinha essa idéia de escrever este livro há muito tempo porque qualquer angolano, qualquer africano que chega ao Brasil imediatamente repara nessa coisa extraordinária que é um país que de fato não tem uma paranóia racial, não pensa muito nisso, mas onde uma fratura racial corresponde a uma fratura social, não? Ou seja, é muito claro que a pobreza aqui tem cor, e qualquer angolano, sobretudo, está habituado a uma

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outra realidade. E muitos angolanos ainda por cima têm um grande culto ao Brasil, as pessoas curtem aquelas coisas do Brasil, como música, etc. Têm uma imagem muito favorável do Brasil, e quando chegam ao Brasil reparam nisso, são confrontados com isso, com esse fato de os negros estarem excluídos do poder, e isso normalmente é um choque. Portanto desde há muito tempo que eu tinha intenção de fazer este livro. Evidentemente depois houve um outro click, vamos dizer, quando surgiram nos jornais essas notícias dizendo que eventualmente haveria mercenários angolanos ao lado do tráfico. Eu acho que a originalidade do meu livro é supor que aquilo que já é uma guerra, um confronto militar já, passa a ter contornos políticos, ou seja, aquilo que é uma guerra simples, uma guerra entre polícias e bandidos, di-gamos, passa a ter contornos políticos, ou seja, é imaginar uma espécie de Che Guevara das favelas, uma espécie de Zumbi do século XXI que dê uma consistência política a esta revolta. Essa é a originalidade do livro; é isso que eu tento imaginar. E aí interessou-me imaginar o próprio Zumbi de ascendência angolana, ou seja, teria uma origem angolana, interessou-me imaginar, porque faz algum sentido, que um antigo oficial do exército angolano com experiência militar pudesse ter esse pa-pel, porque eventualmente o que falta aos soldados do tráfico é essa experiência militar, alguém que organize, que não só dê consistência política mas também dê uma maior articulação militar a esta guerra. Então, foi assim que surgiu. Agora, eu tento, você deve ter reparado, eu tento um pouco salvar a face desses angolanos pobres que fugiram à guerra, explicando o que é uma verdade: que a maior parte deles fugiram a uma guerra e o que eles querem, o que eles menos querem é outra guerra, é verem-se envolvidos numa outra guerra. Portanto eu acredito que, acredito realmente nisso, acredito que a maior parte dessas pessoas sejam trabalhadores honestos. O que querem é fugir da guerra, caramba! Conseguiram fugir de uma, não é? Não vão meter-se numa outra.MB: A sua literatura propõe uma reescrita da história a partir do desmoronamento de uma história oficial, criando um entrelugar que desliza entre a ficção e a realidade. A gente percebe, na Vila do João, que a memória dos angolanos que vão para lá, ela de uma certa forma também reescreve uma outra narrativa histórica, justamente através dessa questão da diáspora, até propondo umas lacunas da memória como lugar da própria memória, ou seja, o esquecimento como memó-ria, seja pelo afastamento cada vez maior da época em que viviam em Angola – tem angolano que está há quinze, dezesseis anos já aqui – seja pela tentativa de fuga realmente daquela realidade, como você acabou de colocar. O quanto você acha que pode haver de memória no próprio esquecimento? Quando esta lacuna se transforma na inscrição de uma memória?

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JEA: Eu acho que há duas questões: por um lado, os angolanos, se você for a Angola e mesmo por aqui, provavelmente, você sente essa coisa, os angolanos têm uma aparente e elevada auto-estima. O angolano é bem arrogante, muito orgulhoso da sua raiz, de sua origem, às vezes exagera. Eu acho que isso tem a ver com o fato de ser um país tão sofrido, né? E com tão poucos motivos de orgulho, na verdade. Então a pessoa muitas vezes tende a transformar o passado, tende a recriar o passado para conseguir motivos de orgulho, para conseguir uma certa auto-estima. Por exemplo, relativamente a Moçambique, Angola sempre teve uma disputa com Moçambique. Moçambique, pelo menos, teve uma Lurdes Mutola, que é uma grande campeã de atletismo ou casou a sua primeira-dama, a sua antiga primeira-dama, ex-mulher de Samora Machel, veio a casar com o presidente da África do Sul, um homem que todos nós, enfim, a maior parte das pessoas no mundo, venera, o Nelson Mandela. Então até dessas pequenas coisas Moçambique pode-se orgulhar, enquanto que nós de fato tenhamos poucos motivos de orgulho, muito poucos. E talvez isso faça com que o angolano tente reinventar a sua própria história, a sua própria memória de forma a conseguir manter a cabeça erguida. Por outro lado também é verdade que em an-gola desde sempre houve esta... realidade e fantasia sempre se misturaram. Sempre houve uma coisa fluida. Há um livro muito interessante com uma entrevista com Gabriel García Márquez, creio que está publicado no Brasil. Eu li no original em espanhol, “El olor de la guayaba”, em espanhol, portanto “O perfume da goiaba”, em que ele conta que a experiência mais importante de sua vida aconteceu numa viagem a Angola, em 1977. Ele foi a Luanda e ao desembarcar em Luanda, ele diz, foi como se tivesse desembarcado na sua própria infância. E naquele momento ele percebeu que também era africano. E percebeu que aquilo a que nós chamamos realismo mágico é uma coisa que vem da África. Essa mistura entre a fantasia e a realidade é uma coisa africana e eu acho que ele tem razão nisso. Acho que ele tem razão. Em Luanda isso é muito perceptível. Talvez também essa capacidade de fabulação venha daí.MB: E essa questão dessa porosidade de limites, de contaminação dos limites entre realidade e ficção, as personagens que transitam muito nos seus livros, não só transitam geograficamente, fazendo quase um triângulo entre Brasil, Angola e Portugal e aí se expandindo para ou-tros lugares – Goa, Berlim, etc e tal – mas transitam entre os próprios livros. Tem uma “migrância” muito grande, né? E a sua literatura constantemente é colocada como uma literatura mestiça. Existe uma série de questionamentos a respeito das teorias de mestiçagem... de que elas proporcionariam uma síntese apaziguadora dos conflitos. Você não acha que, ao invés de mestiça, seria mais própria à sua literatura a idéia de uma literatura migrante porque aí você tem realmente as questões

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que migram e não encontram seus lugares e os conflitos são preserva-dos? Como você vê essa história da mestiçagem e da “migrância” na sua literatura?JEA: Nunca pensei nisso assim, mas faz algum sentido no que você está a dizer, sim, claro. Faz sentido neste aspecto, sim.MB: E agora uma pergunta: estamos à beira de trinta anos de indepen-dência de Angola. Já a quase três anos, ou três anos, de um acordo de paz. Quais são as suas perspectivas com relação a essa Angola, a este momento de Angola, ou a um futuro próximo de Angola? O que você pensa a respeito disso?JEA: Como todo angolano, sou otimista. Sou realmente otimis-ta. Eu acho que, pois, já alcançamos a paz, que foi um grande triunfo e é evidente que... Eu não creio que a guerra... Por vezes o governo tentou durante muito tempo, o regime tentou ven-der esta idéia de que tudo estava errado por causa da guerra, de que qualquer coisa que não funcionasse era a guerra. Não é verdade, tão simples como isto, porque angola evoluiu muito. aliás, o grande período de evolução de angola no crescimento econômico, foi entre 60 e 74, ou seja, durante a guerra colonial. A guerra foi o motor até do desenvolvimento, serviu como motor do desenvolvimento. Portanto, a guerra não pode ser a razão de todos os males e de fato não é. A razão de todos os males tem a ver com a incompetência do regime. Com o desinteresse e com a corrupção. Essa é a principal. agora, é verdade também que, ao conseguirmos alcançar a paz, deixou de haver essa desculpa do próprio regime. Eu creio que o grande desafio atual, evi-dentemente, é democratizar o país, tentar conseguir que haja eleições, em primeiro lugar. É conseguir fortalecer a imprensa independente, é conseguir que a sociedade civil se refaça na sua totalidade, ou seja, que voltem a surgir, cada vez mais e cada vez com mais força, não apenas partidos políticos, mas também sindicatos, igrejas e organizações não-governamentais. Eu acho que se está a conseguir, está-se a fazer, embora de forma muito lenta. Eu gostaria que fosse mais rápido, sobretudo no caso das eleições. Eu acho importante haver eleições, eu acho importante haver eleições, sobretudo para o poder local. o poder local é absolutamente essencial. É com o poder local que se vê um país a desenvolver-se. Não acredito, realmente de todo, que seja pos-sível desenvolver sem democratizar. Acho que não é possível. E eu acho curioso que, quando você olha para o mapa da África, percebe que os países desenvolvidos em África, que os países que se desenvolveram, como África do Sul, como Botswana, como a Namíbia, como o Senegal, como Cabo Verde, que é um país sem condições nenhumas do ponto de vista de riqueza, riquezas minerais, etc, mas todos estes países se desenvolveram muito nestes últimos anos e se desenvolveram muito porque são

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países democráticos e, quanto mais profunda é a democracia, mais desenvolvido é o país. Portanto, eu acho que o essencial agora é democratizar, é criar estruturas, é forçar o regime a democratizar-se e depois, e depois, ao mesmo tempo, investir no desenvolvimento do país. Quando eu falo em desenvolvimento, por exemplo, uma área absolutamente fundamental é a questão da educação e da cultura. É impressionante que ainda hoje as forças armadas da defesa tenham um orçamento muitíssimo superior àquilo que é reservado para a educação. Eu não sei se ainda hoje é assim, mas creio que ainda hoje é assim: há mais dinheiro para as bolsas de estudo no estrangeiro, de doutora-mento e de mestrado, do que para a educação básica. as escolas primárias de angola estão totalmente abandonadas. totalmente abandonadas. Os professores ganham nada, uma miséria. Você depois tem isso sim, escolas privadas a surgirem, têm universi-dades privadas. Há cada vez mais universidades privadas, mas o sistema de ensino público foi totalmente abandonado. O que vai dar até no que conversávamos da questão racial, ou seja, há uma perpetuação do sistema, dos erros e das perversões do sistema colonial. Aqueles que eram mais favorecidos no sistema colonial, os brancos e os mestiços, continuam a ser os mais favorecidos hoje porque são aquelas pessoas que podem colocar os filhos nas universidades privadas ou, inclusive, mandar estudarem os filhos fora do país, que é o que acontece. E a vasta maioria da população não tem sequer forma de educar os seus filhos, porque as escolas não são más: elas não existem. O sistema de saúde, outro problema, o sistema de saúde. Ainda recentemente, e ainda agora estamos em angola com um problema gravíssimo: o vírus do Marburg, que é um vírus que será mais grave ainda do que o Ébola, portanto o nível máximo que pode haver de periculosidade. E o estado angolano destinou, queria destinar inicialmente quando o vírus aparece, poucas semanas depois, um orçamento de 200 mil dólares para combater o vírus, e meses antes tinha havido um escândalo porque o Supremo tribunal tinha comprado dois carros, no valor de 800 mil dólares cada um. Então por aqui você percebe quais são os interesses e quais são as prioridades do regime angolano. Quer dizer, o presidente da república não foi capaz de fazer uma única comunicação a respeito do vírus. Não fez. Não há uma comunicação em Angola do presidente da república sobre este vírus numa altura em que já morreram mais de 300 pessoas atingidas pelo vírus. Por que? Porque mais uma vez “o sangue é dos outros”, porque quem está a morrer, mais uma vez, é a população pobre. Não são os angolanos ricos das grandes cidades.MB: Angola, assim como o Brasil, tem uma forte tradição oral. E é muito interessante, a gente observar lá na Vila do João, que os angolanos muitas vezes se comunicam através de parábolas. E eles contam muitas

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histórias. E aqui vai um pedido: você teria alguma parábola para contar para a gente sobre tudo isso que a gente conversou aqui hoje?JEA: Há uma história que eu gosto muito e tem um pouco a ver com essa idéia de muitas vezes os estrangeiros terem a idéia de que vão à África salvar os africanos. E está cheia de organiza-ções não-governamentais estrangeiras que entram no país com a idéia que “nós sabemos, nós é que sabemos, nós é que vamos ensinar a essa gente como é que é” e com experiências horríveis. Por exemplo, na ajuda, até na ajuda, pessoas bem intencionadas, por exemplo, levam trigo para oferecer à população, esquecendo que os camponeses estão a produzir milho, massambala, que são produtos locais, e que estão a fazer concorrência direta a estes camponeses que de repente empobrecem ainda mais porque têm uma concorrência desleal de gente que está a dar. Enquanto eles querem vender, as pessoas estão a dar trigo, que ainda por cima não é um produto local. Então há uma história muito engraçada que é a história de um macaco e do peixe.o macaco está a passar por um rio, junto a um rio, um ribeiri-nho, e vê um peixe e o macaco diz: “olhe o pobre animal, caiu à água, está se afogando, está a se afogar esse animal. Deixe-me salvar esse animal”. Então o macaco mergulha na água, com coragem e tal, agarra o peixe, tira o peixe para fora da água e o peixe, coitado, começa a estrebuchar e o macaco diz: “Oh! Vejam como esse pobre animal está feliz porque eu o salvei”. Aí o peixe dá mais uns saltinhos, e com falta de ar, morre. E diz o macaco: “coitado, já não foi a tempo, mas ainda tentei salvá-lo”.

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Colaboradores deste Número

BENJAMIN ABDALA JUNIORPesquisador do CNPq e coordenador de Letras e Lingüística da CAPES/MEC, é professor titular da FFLCH da Universidade de São Paulo. Publicou cerca de quarenta títulos de livros (livros de autoria individual, organização de coletâneas críticas e antologias), entre eles A escrita neo-realista (1981); História social da literatura portuguesa (1984); Tempos da Literatura Brasileira (1985); Litera-tura, história e política (1989); Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo cultural (2002); De vôos e ilhas: literatura e comunitarismos (2003). Entre as coletâneas que organizou ou co-organizou, podem ser mencionadas Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasileiras e portuguesas (2000); Personae: grandes personagens da literatura brasileira (2001); Incertas relações: Brasil e Portugal no século XX (2003); Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas (2004); Portos flutuantes: trânsitos ibero-afro-americanos (2004) e Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil (2006).

BETHANIA MARIANIDoutora pela UNICAMP, é professora do Departamento de Ciências da Linguagem da UFF e pesquisadora do CNPq. Desenvolve estudos sobre a história das idéias lingüísticas no Brasil e sobre o modo como os portugueses empreenderam o processo de colonização lingüística em diferentes regiões do planeta. Publicou pela Editora Pontes, em 2004, o livro Colonização lingüís-tica: línguas, política e religião no Brasil (séculos XVI a XVIII) e nos Estados Unidos da América (século XVIII).

CARMEN LUCIA TINDÓ SECCONascida no Rio de Janeiro, Brasil. Doutora em Letras pela Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro, Professora Associada da Faculdade de Letras desta Universidade, implantou em 1993 o Setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Foi Chefe do Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ de 2003 a 2004 e é Membro da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros. É consultora da FAPERJ e da CAPES, pesquisadora I do CNPq. Publicações nas áreas de Literaturas Africanas e Brasileira, entre as quais: Morte e prazer em João do Rio (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976); Além da idade da razão (Rio de Janeiro: Graphia, 1994); Guia bibliográfico das literaturas africanas em bibliotecas do RJ (Rio: Faculdade de Letras/ UFRJ, 1996); Antologias do mar na poesia africana (Rio de Janeiro: Faculdade de Letras / UFRJ, 1996, 1997, 1999. 3 v.). o volume 1 desta antologia, dedicado a angola,teve uma edição angolana, em Luanda, no ano de 2000, sob a chancela do Editorial Kilombelombe, com o apoio do Ministério da Cultura de Angola. Publicou também os livros: A Magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as literaturas de angola e Moçambique. Rio de Janeiro: ABE Graph, 2003; Entre fábulas e alegorias. Rio de Janeiro: Quartet, 2007; Como se o mar fosse mentira (em co-autoria com Rita Chaves e Tânia Macedo). Luanda: Chá de Caxinde, 2006.

CHARLOTTE GALVESÉ professora do Departamento de Lingüística da Unicamp. É doutora em

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lingüística portuguesa pela Universidade Paris IV. Sua área central de atu-ação é a sintaxe do português, no quadro da Teoria da Gramática Gerativa, com ênfase na comparação do português europeu e do português brasileiro, e na história da língua em Portugal e no Brasil. Desde 1998, coordena a ela-boração do Corpus Anotado do Português Histórico Tycho Brahe (http://www.ime.usp.br/~tycho/corpus). Em 2001 publicou o livro Ensaios sobre as gramáticas do português, pela Editora da Unicamp. Desde 2006, vem inte-grando a questão do contato com as línguas africanas à sua pesquisa sobre a história do português. Outros aspectos importantes da sua atuação são o papel da interface sintaxe/fonologia na mudança lingüística, a modelagem probabilística do ritmo na escrita, e a lingüística de corpus.

DENISE BRASIL ALVARENGA AGUIARDoutora em Literatura Comparada; Professora adjunta do Instituto de Apli-cação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); vice-líder do grupo de pesquisa do CNPq Nação e narração; autora de capítulos de livros e artigos diversos sobre literatura contemporânea.

LUCIA BETTENCOURTFormada em Português-Literaturas pela UFRJ, e mestre em Literatura pela Universidade de Yale, cursa agora o Doutorado na UFF. Possui alguns tra-balhos acadêmicos publicados, tais como “Em breve cárcel de Sylvia Molloy e a leitura aprisionada” in: América Hispânica (11-12 –Ano VII:Jan-Dez-1994); “Cartas brasileiras: visão e revisão dos índios” in: Índios no Brasil. Org. GRU-PIONI, L. D. B. MEC, 1994 e “Banquete, literatura e civilização” in: Cadernos de Letras da UFF (11 - 1996). Prêmio Osman Lins de Contos, com o texto “A cicatriz de Olímpia”, Recife, 2005. Prêmio SESC Categoria Contos, com seu livro A secretária de Borges, publicado pela Record, 2006. Prêmio Josué Guimarães, pelos contos “Manhã”, “A caixa” e “A mãe de Proust”, Jornada Literária de Passo Fundo, 2007.

LUCIA HELENADoutorou-se em 1983 pela UFRJ, na área de Teoria da literatura. Fez pós-doutorado em 1989, em Literatura Comparada, nos Estados Unidos, na Brown University. Ministra cursos em universidades norte-americanas e vem atuando como conferencista nos Estados Unidos e na Europa. Integrou durante muito tempo a cadeira de Teoria da Literatura na UFRJ. Hoje é professora Titular da UFF e pesquisadora 1-A do CNPq. Dentre suas publi-cações destacam-se Totens e tabus da modernidade brasileira, 1985 (com prêmio nacional), Uma literatura antropofágica,1982; Escrita e poder, 1985; A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos, 1984; Modernismo brasileiro e vanguarda, 1996; Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector , 2ª. Ed 2006; e A solidão tropical: a modernidade do Brasil e de Alencar, 2006. No prelo, tem o livro Ficções do desassossego: o romance e a consciência trágica, a sair em 2009. Organizou, para a editora Contra Capa, os volumes: Nação-invenção: ensaios sobre o nacional em tempos de globalização, 2004; Literatura e poder, 2006 e Literatura, intelectuais e a crise da cultura, 2007.

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MÁRCIO SELIGMANN-SILVAÉ professor livre-docente de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do CNPq. É autor de Ler o Livro do Mundo (Iluminuras, 1999), Adorno (PubliFolha, 2003) e O Local da Diferença (Editora 34, 2005); organizou os volumes Leituras de Walter Benjamin: (Annablume/FAPESP, 1999; 2ª. edição 2007), História, Memória, Literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes (UNICAMP, 2003) e Palavra e Imagem, Memória e Escritura (Argos, 2006) e coorganizou Catástrofe e Representação (Escuta, 2000).

MARGARIDA CALAFATE RIBEIROÉ investigadora no Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra; Responsável da cátedra Eduardo Lourenço, na Universidade de Bolonha e Visiting Researcher Associate do King’s College, Universidade de Londres. os seus actuais interesses de investigação incluem estudos pós-coloniais, literatura portuguesa e de países de língua portuguesa, e história do império português, em particular as guerras coloniais.

Das suas publicações, destacam-se os livros África no Feminino: as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial (Afrontamento, 2007); Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo (Afrontamento, 2004); Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo (com ana Paula Ferreira) (Campo das Letras, 2003).

MAURÍCIO DE BRAGANÇAGraduado em História e Cinema, Mestre em Comunicação, Imagem e In-formação e Doutor em Letras (Literatura Comparada) pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutoramento no programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal Flumi-nense financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

REGINA DALCASTAGNÈProfessora de literatura da Universidade de Brasília e pesquisadora do CNPq. Coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e edita a revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. É autora, entre outros livros, de A garganta das coisas: movimento(s) de avalovara, de osman Lins e de Entre fronteiras e cercado de armadilhas: problemas de representação na narrativa brasileira contemporânea.

REGINA ZILBERMANLicenciou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorou-se em Romanística pela Universidade de Heidelberg. Com pós-doutorado na Brown University, recebeu, da Universidade Federal de Santa Maria, o título de Doutor Honoris Causa. É professora colaboradora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora da Faculdade Porto-alegrense. Entre suas publicações recentes, contam-se Fim do livro, fim dos leitores?, O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose, Como e por que ler literatura infantil brasileira, Literatura e pedagogia: ponto & contraponto.

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ROBERTO VECCHILusitanista, brasilianista, é Professor Associado de Literatura Portuguesa e Brasileira e de História das culturas de língua portuguesa na Universidade de Bologna. É também professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Milão.

Em Bologna, é professor do programa de doutorado de Iberística, diretor do Centro de Estudos Pós-Coloniais (CLOPEE) desta Universidade e coordena-dor de vários projetos de pesquisa, nacionais e internacionais.

No Brasil, é pesquisador CNPq, atuando em vários projetos, entre os quais o sobre “Violência e representação” coordenado por Márcio Seligmann-Silva e, em Portugal, é investigador associado do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde colabora com programas sobre a represen-tação do trauma, coordenados por Margarida Calafate Ribeiro.

Entre as publicações recentes, destacam-se: a organização, no âmbito da co-lecção “Extrema Europa”, que coordena pela editora Diabasis, com Vincenzo Russo; de Eduardo Lourenço Il labirinto della saudade. Portogallo come destino (2006) e de Eça de Queirós, La corrispondenza di Fradique Mendes (2008); a edi-ção em Portugal da obra de Cornélio Penna, A menina morta (Lisboa, 2006); a publicação, no Brasil, do segundo volume de pesquisas sobre cultura brasi-leira e trágico com Ettore Finazzi-Agrò e Maria Betânia Amoroso, Travessia do pós-trágico. Os dilemas de uma leitura do Brasil (São Paulo, 2006).

SHEILA KHANPós-Doutoranda nas Universidades de Manchester e Coimbra, com projecto de investigação coordenado pelas Professoras Hilary Owen (Un. Manchester) e Paula Meneses (CES, Un. Coimbra). É Investigadora Associada no CICS na Universidade do Minho. Dentre suas publicações, destacam-se os artigos: Are we all post-colonial? A Socio-Literary Reading of Crónica do Tempo’, Paulo de Medeiros (ed.), Postcolonial Theory and Lusophone Literatures. Universiteit Utrecht, Utrecht Portuguese Studies Series, pp. 79-97, 2007; Velhas Margens, Novos Centros em ‘Ventos do Apocalipse’ de Paulina Chiziane’. Revista Teia Literária, PUC/RJ, Brasil, 119-131, 2007; Identidades sem chão. Imigrantes Afro-Moçambicanos: Narrativas de Vida e Identidade, e Percepções de um Portugal pós-colonial’. Luso-Brazilian Review, 43:2. University of Wisconsin: 1-26, 2006.

SILVIA REGINA PINTOProfessora-Adjunta do Departamento de Cultura Brasileira, Teoria da Li-teratura, Literatura Brasileira e Literatura Comparada, Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atuando na Graduação, no Mestrado em Literatura Brasileira e no Doutorado em Literatura Compara-da. Doutorou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Desenvolve pesquisas na linha: “Perspectivas filosóficas da teoria da literatura”, trabalhando os seguintes temas: teoria da literatura, filosofia, literatura e ficção, em perspectivas contemporâneas. Suas mais recentes publi-

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cações englobam “A performance do lobo”, In: Paisagens ficcionais: perspectivas entre o eu e o outro, org. VALLADARES, Henriqueta do Coutto Prado, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p.91-106, e, “Le réalisme dans la fiction brésilienne contemporaine“, palestra proferida na Sorbonne, em 17 de janeiro de 2008, atualmente em edição, a ser publicada pela revista do CREPAL (Centre de Recherches sur les Pays Lusophones, Sorbonne - Paris 3).

SILVIANO SANTIAGOÉ ensaísta, romancista e professor. Lecionou em importantes universida-des no Brasil. (Universidade Federal Fluminense e a PUC-Rio), nos Estados Unidos (New Mexico, Stanford, Texas, Indiana) e na França (Université de Paris – III). Publicou recentemente O falso mentiroso (romance) e Histórias mal contadas (contos). Seus ensaios recentes foram reunidos em O cosmopolitismo do pobre e Ora (direis) puxar conversa. Co-editou Carlos & Mário (correspondên-cia) e foi responsável pela antologia Intérpretes do Brasil (3 volumes). Heranças (romance) acaba de chegar às livrarias.

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Normas de apresentação de trabalhos1 a revista Gragoatá, do Programa de Pós-graduação em Letras da

UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas de interesse para estudos de língua e literatura.

2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo.

3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8 páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas cópias impressas sem identificação do autor, bem como em disquete, com indicação do autor, no programa Word for Windows 7.0, em fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer tipo de formatação, a não ser:

3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico).3.2 Margens de 3 cm.3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo.3.4 recuo de 2 cm nas citações.3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA).3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e perí-

odicos.4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre

parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23).

5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas no final do texto.

6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecendo às normas da ABNT(NBR-6023).

Livro: sobrenome do autor, título do livro (itálico), local de publicação, editora,data.

Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

artigo: nome do autor, título do artigo, nome do periódico (itálico), volume e nº do periódico, data.

Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódi-cos biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1, p. 81-104, jan./abr. 1989.

7 as ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa re-produção gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda, e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1, Fig. 2 etc).

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Revista GragoatáAv. Visconde do Rio

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Bloco C - Sala 50124220-200 - Niterói - RJ

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Niterói, n. 24, p. 255-258, 1. sem. 2008 256

Próximos númerosNúmero 24tema: Brasil e África: trajetórias, rostos e destinoOrganizadores: Laura Padilha e Lucia HelenaPrazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2008Ementa: Literatura, política e ideologia no cenário do neoliberalismo. Nação e narração na

estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. O Brasil e a África em suas literaturas e linguagens: paradoxos, identidades, dilemas e problemas. O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas. Literatura e outras artes. As perspectivas da crítica e a questão da teoria no Brasil e na África. Línguas em contato e política lingüística. Reflexão, história, antropologia e filosofia na cultura brasileira e africana contemporânea. Literatura, crise e utopias.

Número 25tema: TransdisciplinaridadesOrganizadores: Claudia Roncarati e Vera Lucia SoaresPrazo para entrega dos originais: 30 de junho de 2008Ementa: Relações entre perspectiva teórica e abordagem prática na investigação lingüística

e na literária. Implicações e conflitos entre princípios analíticos e metodologias de pesquisa. Inter e transdisciplinaridade – contribuições e problemas na pós-modernidade.

Número 26tema: Metáfora – o cotidiano e o inauguralOrganizadores: Solange Coelho Vereza e Lívia de Freitas ReisPrazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2009Ementa: A metáfora no discurso cotidiano e na produção literária. O rotineiro e o insólito

nos processos de metaforização. A trajetória da abstratização dos sentidos – recortes sincrônicos e diacrônicos. Fatores motivadores da linguagem metafórica. Fronteiras conceituais e analíticas: literalidade e figuratividade. Metáfora e alegoria.

8 Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e abstract, em inglês, que não ultrapassem 250 palavras, bem como de 3 a 5 palavras-chave também em português e em inglês.

9 Os autores deverão encaminhar, em folha separada, sua identifica-ção (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações etc.) em texto que não ultrapasse 6 linhas. Na mesma folha, devem constar o endereço, o telefone e o e-mail.

10 Os colaboradores terão direito a 2 exemplares da revista.11 os originais não aprovados não serão devolvidos.

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Niterói, n. 24, p. 255-258, 1. sem. 2008 257

General Instructions for Submission of Papers1 The Editorial Board will consider both articles and reviews in the

areas of language and literature studies.2 In considering the submitted papers, the Editorial Board may

suggest changes in their structure or content. Papers should be submitted in floppy disks together with two printed copies, typed in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman font 12, without any other formatting except for:

2.1 bold and italics indication;2.2 3cm margins;2.3 1cm identation for paragraph beginning;2.4 2cm identation for long quotations;2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE)

for emphasis;2.6 italics for foreign words and book or journal titles.

3 Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no more than 8 pages.

4 Authors are requested to resort to as few footnotes as possible, which are to be placed at the end of the text. As for references in the body of the article, they should contain the author’s surname in uppercase as well as date of publication and page number in parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47).

5 Bibliographical references should be placed at the end of the text according to the following general format:

Book: author’s surname and first name, title of book (italics), place of publication, publisher and date (eg.: ELLIS, Rod. Understanding se-cond language acquisition. Oxford : Oxford University Press, 1994).

Article: author’s surname and first name, title of article, name of journal (italics), volume,number and date (eg.: HINKEL, Eli. Native and nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts. TESOL Quarterly, v. 28, no. 2, p. 353-376, 1994).

6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title or legend, and referred to in the body of the work as figure, in abbreviated form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.).

7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to 5 keywords, also in Portuguese and in English, are required.

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8 Authors are requested to send in an abridged CV (name, institution, post, degrees, titles, latest publications, research interests, etc.), no more than 5 lines in length.

9 Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned.

Na Revista Gragoatá 23 – Releituras da tradição – o artigo “Uma (re)leitura contempórânea do imaginário português: as mezinhas de Dom Duarte” é de autoria de Mariangela rios de Oliveira, Sebastião Josué Votre e Káthia Eliane Santos Avelar.

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Este livro foi composto na fonte Book antiqua.12Impresso na Flama Ramos Manuseios e Acabamento Gráfico,

em papel Pólem Soft 80g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa) produzido em harmonia com o meio ambiente.Esta edição foi impressa em setembro de 2008.

Tiragem: 500 exemplares