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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
Por onde andariam as crianças?
Urbanização e cotidianidade nas brincadeiras de rua da metrópole de São Paulo:
um estudo de caso na Rua de Lazer Mário Cardim da Vila Mariana
Diogo Marciano
São Paulo
Outubro de 2011
1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
Por onde andariam as crianças?
Urbanização e cotidianidade nas brincadeiras de rua da metrópole de São Paulo:
Estudo de caso na Rua de Lazer Mário Cardim da Vila Mariana
Diogo Marciano
Trabalho de Graduação Individual
(TGI) apresentado ao Departamento
de Geografia sob a orientação do
Professor Doutor Manoel Fernandes
de Sousa Neto
São Paulo
Outubro de 2011
2
Agradecimentos
Não são poucos os que neste momento devem ou deveriam ser lembrados, bem
como, não são poucos os motivos de serem aqui mencionados. Fato é que a presença de
todos foi, de algum modo, fundamental para que não só este trabalho acontecesse do
modo como aconteceu, mas ainda antes, para que eu mesmo seja o que sou hoje.
Antes de qualquer coisa agradeço minha mãe e minha tia. Só nós três sabemos o
quão duro e tortuoso foi o caminho até aqui. Sou e serei sempre grato por todos os
cuidados e por toda a disposição com os quais fui criado pelas senhoras.
Aos moradores da favela Mário Cardim, e especialmente, à Cícera, Dona
Cleuza, Deda e Wanderlei, que tão bem me receberam em seu espaço fazendo com que
o sentimento de estrangeiro instaurado no início de todo este processo fosse
rapidamente esfumado – me restando apenas, e guardadas de um modo o qual eu possa
sempre vê-las, as inquietações e problematizações acerca da postura do pesquisador em
campo. E é claro, agradeço de um modo especial a todas as crianças da Mário Cardim e
a todas as crianças, de ontem e de hoje, com as quais conversei metrópole à fora sobre
os seus brincares.
Aos professores que me formaram e dos quais carrego comigo um pedaço de
cada um. Ao professor Dieter pelas pulgas atrás da orelha. Ao professor José Sérgio
pelo compromisso ético com o mundo e por me ensinar, sendo, o que é um professor.
Ao professor Julio Groppa pelo balde de água fria. À professora Amélia por ter me
apresentado a potência de uma crítica radical a partir da geografia urbana, e ao seu
modo, delicado e cuidadoso, ter me feito enxergar que o que está ao nosso entorno é
muito mais do que se vê. E ao professor Manoel Fernandes por me mostrar que a escrita
acadêmica não necessita ser dura e por ter acreditado nesta pesquisa desde o primeiro
momento. Agradeço ainda aos professores que tive antes de adentrar a Universidade.
Aos professores de geografia que conheci na escola, Cristina, Paulo e Marcos, que sem
saberem me incentivaram a escolher a geografia como caminho. Ao Mábio e a Elaine
por terem tanto me ajudado na segunda fase do vestibular. E também às professoras
Laranjeira e Cris, do cursinho popular que freqüentei, e especialmente ao professor Zé,
que quando do fechamento deste, em pleno mês de Outubro, levou os poucos alunos que
ainda restavam para assistirem, e sem custo algum, as aulas de um outro cursinho. E
entre estes alunos agradeço ainda aos amigos André e Carla.
3
Aos amigos que fiz em Pirituba desde a infância e com os quais compartilhei, na
rua, momentos que trago guardados até hoje: Diego, Rafael (Gordo), Felipe (Eids – em
memória), Daniel (Zum), André (em memória) Pedro, Rafael (Rafinha), Leonardo
(Léo), Fábio, Valdir e Valdiran. Rodrigo, Paulo, Rodrigo (Digão), Cássio, Maurício
(Buiú), Alex, Anderson, Lula, Valdo, Valdir (Nego), Jackson, Túlio, Camilo, Augusto e
Locati. Douglas (Dodô), Wagner (Wá), Bruno (Presunto), Willian (Nenê), Fernando
(Nandinho), Felipe (Fê), Leandro (Noel), Luciano, Fabiano, Leonardo (Miagui), Tiago
(Índio), Rodrigo (Araponga), Daniel (Xaninha) Rafael (Loirinho), Lucas, Rafael
(Manchinha), Daniele, Cristiano (Cri) e Vanessa.
Aos amigos que fiz durante esses anos de faculdade com os quais já colecionei
muitas e boas histórias para contar – e espero que ainda construamos muitas mais.
Estudos. Viagens. Bares. Futebol. Discussões. Manifestações. Derrotas. Alguma
esperança inexplicável. Risos. Lágrimas. Festas. Raiva. Saudade... valeu a pena. Aos
que aqui já estavam e tão bem nos receberam: Xavier, Pedrinho, Rubens, Paulão, Carol,
Baldraia, Júnior e Renata (obrigado por toda a força). Aos que chegaram aqui junto
comigo: Cláudio, Tiago (Tico), Fernando (Loco), Anaclara, Fernanda, Gustavo (Peru),
Gustavo (Guto), Gabriel (Cubano), Luni, Priscila, Elisa, Aldimir, Crispin, Aloísio,
Lucas (Bonito), Lucas (Muso), Alan (Cob), Rafael (Zé), André (Catatau), Gustavão,
Fábio, Chico, Mato Grosso, Gabi, Júlio (Urso), Júlio (Várzea), Marizinha, Lia, Juliana
(Caju), Mariah, Janaína, Michele, Pedrão, Fernando, Rogerinho, Alê e Garça. E aos que
nós mesmo recebemos: Sibele, Carol, Dafne, Caião, Tiagão, Ivan, Tony, João, Robson,
Guaratiba, Henrique e Felipe. Agradeço também a todos MACD e Cordiais. Ao pessoal
da Rádio Várzea. E aos companheiros de leitura dos grupos de estudos que fiz parte. Ao
fim desta síntese injusta e mal feita me vem à memória as palavras do professor José
Sérgio acerca do polêmico ensino a distância nas universidades – palavras ditas durante
uma aula tornada ação de greve num dos momentos mais intensos que vivi nesses anos:
“Não há nada que comprove que os conteúdos e os métodos do ensino a distância sejam
melhores ou piores, mais ou menos eficazes, do que os do ensino tradicional. Mas há
uma coisa que precisa ser dita e que é clara. À distância perde-se o contato com o outro.
Esgarça-se o público. E exatamente isso que vivenciamos agora seria impossível” – a
este momento um dos policiais que sitiava fortemente armado a reitoria desta
universidade parecia vacilar ao ouvir nossas discussões.
A todo pessoal com quem trabalhei na Semana de Geografia e especialmente a
Floripes e às professoras Valéria e Glória. E ainda ao pessoal com quem trabalhei e
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convivi no Programa Avizinhar. Às crianças Kaique, Ítalo e Felipe. E especialmente a
Beatriz e a Nayara.
Também agradeço ao pessoal do TUCA. Uma nova família que ganhei nesse ano.
E por fim à Marcela. Antes de qualquer coisa amiga e companheira. Obrigado
por ter tomado para si metade do meu fardo, aliviando meus ombros. Obrigado por fazer
da minha estrada, que agora é nossa, menos cansativa e mais doce.
5
Índice
Apresentação ...................................................................................................................7
1_Notas sobre o percurso do brinquedo-mercadoria ................................................10
Eis que o capital alcança a produção de brinquedos ...........................................11
Reconhecendo os pequenos donos de brinquedos no Brasil ...............................13
Sem manual de instruções ...................................................................................24
2_Os brincares no espaço urbano paulistano no decorrer do seu processo de
urbanização ...................................................................................................................30
As crianças na rua da cidade ...............................................................................31
As crianças na rua da metrópole .........................................................................39
3_Um estudo de caso: A rua de lazer Mário Cardim ................................................44
Aspectos metodológicos e excertos de um programa de derivas pela Vila
Mariana ...............................................................................................................45
A Favela Mário Cardim e a necessidade de se contar sua história .....................74
Programa instituído e o cotidiano da Rua de Lazer Mário Cardim .....................84
4_Considerações ............................................................................................................98
Referências ..................................................................................................................100
Anexos
Anexo 1: Planta geral da Capital de São Paulo de 1897
Anexo 2: Relatório do levantamento de dados realizado junto aos moradores da
Vila Mário Cardim pelo Programa Pró-Qualidade de Vida da UNIFESP
Anexo 3: Quadro descritivo das ZEIS da Subprefeitura Vila Mariana e Mapa de
desenvolvimento urbano no qual consta as respectivas ZEIS
Anexo 4: Lei que institui as Ruas de Lazer no Município de São Paulo
Anexo 5: Lei que institui a Rua de Lazer Mário Cardim e lei que reativa a
mesma
6
Lista de mapas, cartas e imagens aéreas
A cidade de São Paulo e seus subúrbios .............................................................45
Município de São Paulo: Distrito e Subprefeitura Vila Mariana ........................46
Vila Mariana, Vila Clementino e trecho da Linha da Companhia Carris de Ferro
da Capital a Santo Amaro ...................................................................................60
Favela e Rua de Lazer Mário Cardim .................................................................85
Distribuição das ruas de lazer por subprefeitura no Município de São Paulo ....86
Lista de imagens
Imagem 1: Super Banco Imobiliário com cartão de crédito e de débito ............ 20
Imagem 2: Loja de videogames ..........................................................................23
Imagem 3: Pequenos engraxates jogando morra nas imediações da Estação da
Luz em 1931 .......................................................................................................36
Imagem 4: Brinquedoteca do condomínio Duet Klabin .....................................40
Imagem 5: Entretenimento com brincantes profissionais no Buffet Zuera ........41
Imagem 6: Rua Mário Cardim vazia ..................................................................42
Imagem 7: Sobrado ainda residencial na rua Joaquim Távora ...........................53
Imagem 8: Restaurante mexicano em um antigo sobrado ..................................54
Imagem 9: Antiga vila militar nas proximidades do Instituto Biológico............55
Imagem 10: Empreendimento imobiliário de médio padrão ..............................55
Imagem 11: Vielas e casas cercadas por prédios e pela classe média ................57
Imagem 12: Prédios residenciais na rua Madre Cabrini .....................................57
Imagem 13: Antiga estação da Vila Mariana .....................................................63
Imagem 14: Prédio do antigo Matadouro da Vila Mariana e atual Cinemateca
Brasileira .............................................................................................................64
Imagem 15: Transporte da carne verde abatida no Matadouro Municipal .........65
Imagem 16: Favela Mário Cardim ......................................................................75
Imagem 17: Estação de tratamento de esgoto do córrego do Sapateiro .............82
Imagem 18: Córrego do Sapateiro no Parque Ibirapuera....................................82
Imagem 19: Placa que sinaliza a Rua de Lazer na esquina da rua Mário Cardim
com a rua Rio Grande .........................................................................................92
7
Apresentação
Os irmãos Grimm recontam um conto medieval sobre um certo flautista mágico
e uma certa cidade germânica chamada Hamelin.
Segundo o conto, houve uma ocasião em que essa cidade foi infestada por ratos
sendo que por muitos anos qualquer investida contra a peste fez-se inútil. Até que certo
dia chegou em Hamelin um homem misterioso dizendo-se um caçador mágico de ratos
e oferecendo seus serviços, mas não sem antes dar o preço: ao seu método exterminaria
com todos os ratos da cidade se em troca ganhasse uma moeda de ouro por cada um
desses. Acordo fechado. Então o sujeito misterioso sacou uma flauta por detrás da sua
capa e passou a andar pela cidade e a tocar o instrumento. Imediatamente todos os ratos
saíram dos seus esconderijos hipnotizados pelo som e seguiram o flautista que os
conduziu até um rio no qual foram todos afogados. Uma parte do trato fora cumprida.
Mas a outra não. O flautista então jurou vingar-se. E o fez: depois de algum tempo
voltou a Hamelin e tocando mais uma vez sua flauta mágica hipnotizou desta vez todas
as crianças da cidade. Conduziu-as até uma caverna e lá as aprisionou. Desde então
ninguém mais o viu. Tampouco se viu criança alguma em Hamelin.
Na metrópole de São Paulo cada vez menos se vê crianças brincando pelas ruas.
E cada vez menos essas ruas são o palco de determinadas práticas desses sujeitos – as
chamadas brincadeiras de rua: futebóis, carrinhos de rolimã, o jogo de taco, pipas.
Essa ausência mais ou menos recente não é produto do acaso. Não surge
inesperadamente. E nem pode ser tomada como um caso isolado no contexto
metropolitano. Desdobremos o conto do flautista de Hamelin: na modernidade e no caso
de São Paulo que mágica age sobre as crianças? Que melodia misteriosa tirou, ou, pelo
menos tenta tirar, e cada vez mais, as crianças e suas brincadeiras das ruas da
metrópole? Em que caverna se aprisionou esses pequenos? E tudo isso em troca de que?
Está claro que o mistério que envolve São Paulo é fundamentalmente diferente
do de Hamelin. Enquanto este tem suas raízes fundadas na magia, o mistério que
envolve a metrópole paulistana tem as suas raízes fundadas no social – no social, no
econômico e no político. No que dissimula e aparece como o seu contrário. Que
coisifica pessoas e vivifica coisas. E que cada vez mais aprisiona não só crianças, mas
adultos, a tudo e a todos em novas cavernas. Cavernas bem trancadas e vigiadas. Com
cadeados e alarmes. Portões e muros altos. Outras ainda dotadas de atraentes superfícies
de vidro que permitem a visualização de tudo que lá está mas que muitas vezes não se
8
pode alcançar. Ou ainda outras tantas e enormes cavernas nas quais os portões são
menos importantes, e que têm seu ingresso condicionado à quantidade de dinheiro na
carteira, ao crédito na praça, ou então ao que estes prisioneiros que para lá se dirigem
aos montes e hipnotizados aparentam ser e ter.
Considerando o pensamento de Henri Lefebvre (1973, 2008b) pode-se dizer que
estaríamos diante, e imersos, a fragmentos de espaço programados e funcionais.
Surgidos de um contexto no qual o espaço, e notadamente o urbano, passa a ser decisivo
para a reprodução do capital em seu sentido amplo.
Daí partimos da idéia de que haveria uma estreita relação entre os conteúdos da
urbanização e a existência, ou não, das brincadeiras de rua na metrópole.
Com isto passamos a pensar as brincadeiras de rua, e mais especificamente sua,
por nós suposta, raridade, enquanto uma prática sócio-espacial pela qual seria possível
problematizar as questões concernentes aos processos de modernização e urbanização
que envolvem São Paulo como um todo, e que teriam, por sua vez, implicações
decisivas sobre aquelas brincadeiras, e de modo geral, sobre a produção da infância no
mundo moderno e na metrópole.
Para tanto, escolhemos enquanto estudo de caso um determinado recorte espacial
da metrópole de São Paulo: a Rua de Lazer Mário Cardim, situada na rua e de fronte à
favela homônima, na Vila Mariana. Uma favela numa região tida como um tanto
abastada, reconhecida por sua classe média alta e pela disposição de uma certa
centralidade ali contida – concentrações de comércio, de equipamentos culturais e
médicos, de instituições de ensino, de lazeres, de negócios imobiliários, de transportes.
Falaríamos então de uma periferia num centro? Pensamos que sim. E isso se
considerarmos a inserção dos moradores da favela na metrópole. Ainda que a favela
esteja imediatamente envolta por um espaço de alta composição orgânica, isto é, um
espaço que comporta grandes investimentos em infra-estrutura urbana – o que por sua
vez revela um traço específico da urbanização crítica na metrópole de São Paulo
(DAMIANI, 2000, 2009).
Assim sendo, expomos nossa pesquisa nas páginas que se seguem do seguinte
modo:
Adentramos, pelo primeiro capítulo, nos problemas aqui apresentados em linhas
gerais através do brinquedo, e mais exatamente, a partir do momento lógico e histórico
em que este objeto passa a ser produzido enquanto mercadoria, bem como nos seus
desdobramentos específicos no Brasil. No segundo capítulo realizamos apontamentos
9
acerca dos diferentes discursos, políticas e práticas concernentes à presença da infância
nas ruas de São Paulo, tomando como ponto central para tanto a passagem da cidade
para a metrópole e assim estabelecendo continuidades e descontinuidades nas relações
entre a infância e o espaço urbano ao longo do processo de urbanização. E por fim, e de
modo mais detido quanto aos processos que já terão sido apontados ao longo do
trabalho, debruçamo-nos no nosso estudo de caso. Discorremos então sobre a Vila
Mariana para depois passarmos à favela Mário Cardim e finalmente à Rua de Lazer
homônima situadas naquele bairro. Espaços a partir dos quais se pôde pensar e repensar,
observar especificidades e generalidades, tomar nota, escrever e reescrever acerca da
contemporaneidade das brincadeiras de rua na metrópole de São Paulo e sobre o que
estas práticas teriam a nos revelar quanto às determinações que caem sobre todos nós
citadinos, e, especificamente, de que modo recaem sobre as crianças da metrópole.
10
1_Notas sobre o percurso do brinquedo-mercadoria
Então Miguilim saíu. Foi ao fundo da horta, onde tinha um brinquedo
de rodinha-d’água – sentou o pé, rebentou. Foi no cajueiro, onde
estavam pendurados os alçapões de pegar passarinhos, e quebrou com
todos. Depois veio, ajuntou os brinquedos que tinha, todas as coisas
guardadas – os tentos de olho-de-boi e maria-preta, a pedra de cristal
preto, uma carretilha de cisterna, um besouro verde com chifres, outro
grande, dourado, uma folha de mica tigrada, a garrafinha vazia, o
couro de cobra-pinima, a caixinha de madeira de cedro, a tesourinha
quebrada, os carretéis, a caixa de papelão, os barbantes, o pedaço de
chumbo, e outras coisas, que nem quis espiar – e jogou tudo fora no
terreiro.
Campo geral, João Guimarães Rosa
O termo brinquedo-mercadoria não nos parece uma redundância pois nem
sempre o brinquedo o foi assim. Tal condição foi historicamente construída. Tal
metamorfose ou subjugo parece ter se desenrolado no decorrer do avanço das forças
produtivas do capital. Sob a imposição da lógica da divisão do trabalho e da destituição
dos ofícios e corporações, tal como nos conta Walter Benjamin (2002) acerca do caso
germânico.
Abrimos nosso trabalho com uma sucinta análise sob a forma de notas acerca do
brinquedo em geral e dos brinquedos encontrados em posse das crianças pelas ruas de
São Paulo – de ontem e de hoje, vistos pelas ruas ou presentes nos relatos. O fazemos
por entender que uma reflexão sobre esses objetos é uma reflexão sobre a própria
sociedade que os produziu, concordando, entre outros, com João Amado:
[...] a simples observação de uma coleção de brinquedos (tal
como a observação dos utensílios utilizados pelos adultos nas mais
diversas actividades) pode dar informações sobre as relações sociais,
os modos de produção e os sistemas de valores e de conhecimento do
grupo humano que os gerou (AMADO, 2008: 92)1.
1AMADO, João. Brinquedos populares: um patrimônio cultural da infância. In: DEBORTOLI, J.A.O.; MARTINS, M.de F.A.; MARTINS, S. (orgs). Infâncias na metrópole. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2008. p. 87-128.
11
Acrescentemos ainda que uma análise do brinquedo também permite um
entendimento acerca da produção da infância na sociedade em questão. Bem como de
suas práticas sócio-espaciais.
Tendo isto em vista, não traremos aqui o percurso de vários autores, bem como
suas polêmicas, acerca da definição do conceito de brinquedo2. Nosso trabalho aqui não
consiste em buscar uma rígida definição. Mas sim, em situar o brinquedo no contexto
em que foi produzido, sob que lógica e que determinações. O que nele podemos ler.
Bem como a especificidade dos casos analisados. Para isso temos como plataforma uma
imagem do brinquedo como um algo de mão-dupla: se por um lado o brinquedo pode
ser tomado como um objeto de adestramento mesmo das crianças à ordem social
estabelecida, condicionando crianças aos papéis sociais que para elas o adulto prepara,
por outro, pode o brinquedo ser re-significado pela criança tornando-se inteiramente
estranho ao mundo que o arquitetou – ou então pode até mesmo ser inventado a partir de
qualquer objeto que, de antemão, nada se assemelharia a um brinquedo.
Nas palavras de Barthes (1993), que nos fala de um aburguesamento do
brinquedo, estaríamos diante de duas condições da criança frente a estes objetos: a de
proprietária, utente, ou a de criadora. Esta subjugada quase que totalmente àquela.
Sem mais, partamos para nossas notas acerca do percurso do brinquedo-mercadoria.
Eis que o capital alcança a produção de brinquedos
Ao longo de sua história o homem sempre produziu coisas; produtos.
Alimentos. Roupas. Ferramentas.Utensílios domésticos. Monumentos.
Com os brinquedos não foi diferente. Seja na Grécia Antiga, como se pode ver
representada numa escultura, no museu do Hermitage em São Petersburgo, Afrodite
brincando com Eros no colo e tendo à direita um pião. Seja entre aldeias ameríndias pré-
colombianas com suas petecas, bonecas, miniaturas de animais e suas bolas de fibras e
folhas (ALTMAN, 2000)3. Seja na Europa do século XVI na enormidade de
brincadeiras e brinquedos pintados por Pieter Brueguel em seu quadro de 1560
intitulado “Jogos infantis”.
2 Sob diversos aspectos não são poucas as definições conceituais para o brinquedo. Tampouco as tentativas de teorização de vários autores acerca das diferenciações entre o brinquedo, o brincar, e o jogo. Para uns estes são pouco diferenciados, ou mesmo sinônimos (CASCUDO, BORATAV e LOMBARD apud AFLALO, 1988). Para outros cada qual tem uma particularidade marcante que o distingue dos demais (HUIZINGA e CAILLOIS apud AFLALO, 1988). 3 ALTMAN, Raquel Zumbano. Brincando na história. In: DEL PRIORE, Mary. A história das crianças no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 231-258.
12
No entanto, é num momento determinado de sua história que o homem passa a
produzir mercadorias. Isto é, segundo Marx (2008), a produzir coisas para a satisfação,
qualquer que seja, de outrem, e não de si próprio, e que seja, esta coisa, necessariamente
transferida a quem se satisfará por meio da troca. Pontuemos então que no
estabelecimento destas condições produz-se uma específica e complexa relação que não
é reconhecida enquanto relação que é, mas sim, enquanto coisa, e isto na medida em que
ela própria manifesta-se enquanto coisa diante dos olhos de todos que sujeitou.
Por sua vez, Benjamin nos situa historicamente acerca do brinquedo-mercadoria
ao tratar da emergência de uma indústria dos brinquedos em terras germânicas nos
séculos XVIII e XIX. Há este tempo cidades como Nuremberg e Berlim foram
reconhecidas mundialmente por sua produção de brinquedos. E isto antes mesmo da
ascensão da grande indústria. Segundo o autor tais brinquedos provieram primeiramente
das manufaturas e das oficinas de entalhadores de madeira, das de fundidores de
estanho, etc (BENJAMIN, 2002).
Antes do século XIX, a produção de brinquedos não era função
de uma única indústria. O estilo e a beleza das peças mais antigas
explicam-se pela circunstância única de que o brinquedo representava
antigamente um produto secundário das diversas oficinas manufatureiras,
as quais, restringidas pelos estatutos corporativos, só podiam fabricar
aquilo que competia ao seu ramo (Idem, Ibidem: 90).
Quanto ao comércio desses objetos diversos chamados “pequenas quinquilharias
de Nuremberg”, inicialmente, tal qual sua produção, sua venda também não era feita por
comerciantes de um ramo especializado. Cada produtor vendia o que produzia: o
caldeiro soldadinhos de chumbo, o marceneiro animais talhados em madeira, os
fabricantes de vela bonequinhas de cera, e assim por diante, até o comércio local
organizar-se numa outra escala, distribuindo assim os brinquedos, tanto os produzidos
nas manufaturas e indústrias quanto os ainda provenientes das antigas oficinas
domésticas.
Coincide ainda com a produção destas pequenas peças que então enfeitavam
estantes e serviam de bibelôs para adultos e crianças, o avanço da Reforma Protestante,
que acabava por reorientar a produção de artistas – que tinha a Igreja como destino
bastante comum e, a partir de então, passa a se espalhar, miniaturizada e sob diversas
13
formas, pelos domicílios mais abastados (Idem, Ibidem). Desse modo e nesse contexto
estes pequenos brinquedos passaram a ser exportados e foram ganhando destaque nos
lares burgueses de toda a Europa.
Também foi, segundo se tem registro, estes brinquedos alemães os primeiros
industrializados a chegarem ao Brasil – durante o século XIX. Trazidos para cá pelas
elites por meio de viagens, a passeio ou a negócios (ALTMAN, op.cit.). Ou então, pela
corte e para a corte, como se registra em carta de Dom Pedro I a Dom Pedro II,
analisada por Ana Maria Mauad:
Em carta a seu filho, escrita no exílio, Dom Pedro I envia “huns
poucos bonitos, que estimarei te agradem”. Com seis anos, então Nho-
Nho, como D. Pedro II era carinhosamente chamado pelo pai, deve ter
se deliciado com o conjunto de brinquedos recebidos, dentre os quais:
“Três balloens, uma caixa de soldados, uma espingarda, um talabarte,
uma espada, uma lanterna mágica, uma pistola, uma carroça, uma
corda para saltar e um trem de cozinha (MAUAD, 2000: 145-146)4.
Até o final do século XIX, quando surgiram no Brasil as primeiras indústrias do ramo,
os únicos brinquedos industrializados eram mesmo os importados (ALTMAN, op. cit.).
Trazidos diretamente pelas famílias de viagem, ou então, importados e vendidos nas
ainda raras lojas de brinquedos, dividindo prateleiras com alguns produtos para o adulto,
como, por exemplo, perfumes finos, tecidos e charutos (MAUAD, op. cit.). Fato que nos
leva a pensar que a criança enquanto potencial consumidora ainda só engatinhava.
Reconhecendo os pequenos donos de brinquedos no Brasil
Se como vimos anteriormente, os primeiros brinquedos industrializados
chegaram ao Brasil durante o século XIX, tal fato não equivale dizer que as crianças
anteriores a esse período deixaram de brincar. O que por sua vez, não equivale dizer que
brincavam todos a mesma brincadeira, com os mesmos brinquedos, nos mesmos lugares
e pelo mesmo tempo.
Tal enunciado nos leva a uma série de problematizações acerca do que podemos
pensar dos brincares das crianças daquele período até os dias atuais. Para tanto,
julgamos primeiramente ser necessário, ainda que sucintamente, uma incursão no 4 MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o Império. In: DEL PRIORE, Mary. A história das crianças no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 137-176.
14
universo dos brinquedos e brincadeiras presentes no dia-a-dia das crianças oitocentistas,
mais precisamente no dia-a-dia das crianças escravizadas e das crianças da classe
senhorial. E, de modo mais amplo, buscar uma compreensão acerca da sociabilidade
que se desenhava naquele período, considerando o modo com que a modernização e o
capital tomavam forma no Brasil.
Tizuko Morshida Kishimoto (2010) em sua pesquisa acerca dos jogos
tradicionais infantis no Brasil e suas influências lusa, africana e ameríndia, destaca as
relações estabelecidas entre as crianças da casa grande e as da senzala, bem como seus
brincares. Entre descrições de brincadeiras como as de beliscão, nas quais os
escravizados, pelo constrangimento e pelo temor de represálias pouco apertavam os
sinhozinhos, que, por suas vez arroxeavam todos aqueles, e as brincadeiras como o
capa-bode, um moinhozinho, assim como uma espécie de pequeno espremedor de cana,
brincadeira da qual só os meninos brancos brincavam de ser senhores de engenho, a
autora nos dá elementos para o entendimento de como a relação senhor – escravo
reproduzia-se nas brincadeiras do período.
É interessante também notar tal reprodução na descrição que a autora faz quanto
às brincadeiras das meninas na casa-grande:
A temática da brincadeira gira em torno de fatos que
representavam o cotidiano da vida do engenho: a senhora mandando
nas criadas, as bonecas fazendo o papel das filhas, as meninas negras
como servas que obedecem às ordens da pequena sinhá
(KISHIMOTO, 2010: 47).
Ao longo do texto a autora reconhece mesmo o antagonismo presente na relação
entre senhor e escravo como um ponto fundamental para a compreensão da sociedade
brasileira naquele período – inclusive, como é objetivo seu, para a própria compreensão
das brincadeiras. No entanto, recorrendo principalmente a escritos de Gilberto Freire e a
literatura de José Lins do Rego, a autora parece por vezes desconsiderar a natureza
daquele antagonismo, isto é, toda a violência contida naquela relação (Cf.
KISHIMOTO, 2010: 14-60).
Ainda sobre o assunto e na medida em que a literatura também pode ser
constituída como um objeto de estudo revelador de um certo contexto, uma leitura
possível do real (GOUVÊA, 2007), lembrar a famosa passagem do menino Prudêncio
15
nas Memórias póstumas de Brás Cubas, escrita por Machado de Assis, também é um
caminho para a compreensão das relações estabelecidas entre as crianças escravizadas e
as crianças do senhoril durante o século XIX.
Prudêncio, um muleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias;
punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de
freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o,
dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes
gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito um –
“ai nhonhô!” – ao que eu retorquia: – “cala a boca, besta!”.
Por sua vez, em seus estudos sobre as crianças escravizadas no Brasil, José R. de
Góes e Manolo Florentino (2000)5 analisam os registros de viagem de Maria Grahan e
de Jean B. Debret – respectivamente educadora e pintor europeus – acerca de suas
impressões sobre a educação e o dia-a-dia das famílias da classe senhorial brasileira
oitocentista. Segundo os autores do artigo citado, Graham e Debret enxergavam
erroneamente a presença da criança escravizada junto à família senhoril, e
principalmente à suas crianças, como um elemento de paridade numa espécie de
igualdade familiar, chegando mesmo a afirmar que tal convivência acabava por estragar
as crianças escravizadas para o trabalho e para a obediência, já que estas estavam juntas
aos futuros senhores em suas brincadeiras e até mesmo em algumas comilanças.
Segundo a crítica dos autores:
Pelo visto, ao menos aos olhos das pessoas livres, servir-se de
besta para o pequeno futuro dono não era ainda ‘atividade’, apenas
brincadeira [...] Afinal, pode-se comer e beber de muitos modos,
assim como se pode correr de muitas coisas (GOÉS, FLORENTINO,
2000: 186-187).
De fato, essas crianças escravizadas, e o mais correto mesmo seria dizer os filhos
dos escravos, estavam a toda sorte das crianças do senhoril. Bem como toda a população
escravizada em relação aos senhores proprietários de escravos.
5 GOÉS, J.R.; FLORENTINO, M. Crianças escravas, crianças dos escravos. In: DEL PRIORE, Mary. A história das crianças no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 177-191.
16
Nesse sentido, é na obra de José de Souza Martins (2010) e na fundamentação de
sua análise acerca da passagem do trabalho cativo e da terra livre para o trabalho livre e
para a terra cativa, bem como na sua crítica à constituição reducionista da suposta
passagem da mão-de-obra escrava para a mão-de-obra assalariada, que encontramos
elementos para o entendimento da condição de escravo naquela sociedade: a condição
de existência enquanto coisa.
Nas formas que tomou e se desenvolveu o capital no Brasil, e mais precisamente
na segunda metade do século XIX, o escravizado tornou-se um empecilho à lógica da
acumulação do capital.
Não é por menos que, no caso brasileiro, a substituição do
trabalho escravo pelo trabalho livre [...] teria sido conduzida pelo
caráter impositivo da racionalidade do capital, admitida, assumida,
praticada e difundida por muitos fazendeiros e comerciantes. Para a
cafeicultura, a escravidão entrou em crise quando seu custo revelou-se
irracional em face dos preços do café, quando comprometeu a taxa de
lucro da fazenda cafeeira e quando entrou em conflito com a
racionalidade econômica alternativa e possível do trabalho livre
(MARTINS, 2010: 226).
O que fora condição tornava-se obstáculo à reprodução do capital. E obstáculo
porque em sua propriedade e dimensão jurídica de coisa, objeto de compra e venda, o
trabalhador cativo, a partir da racionalidade do capital, representava renda capitalizada,
tributo ao fornecedor de mão-de-obra escrava. Capital imobilizado (Idem, Ibidem).
Então no contexto da produção capitalista de relações não capitalistas de produção no
Brasil, a figura da sujeição do trabalho passava a tomar muito mais a forma do colonato
do que a forma da escravidão.
Por essas razões, a questão abolicionista foi conduzida em
termos da substituição do trabalhador escravo pelo trabalhador livre,
isto é, no caso das fazendas paulistas, em termos da substituição física
do negro pelo imigrante. Mais do que a emancipação do negro cativo
para reintegrá-lo como homem livre na economia de exportação, a
abolição o descartou e minimizou, reintegrando-o residual e
marginalmente na nova economia capitalista que resultou do fim da
escravidão. O resultado não foi apenas a transformação do trabalho,
17
mas também a substituição do trabalhador, a troca de um trabalhador
por outro. O capital se emancipou, e não o homem (Idem, Ibidem: 35).
Daí, ainda segundo o autor, que a liberdade do escravo não tenha se constituído
em liberdade para o escravo, e sim em liberdade para o fazendeiro, isto é, para o capital
que ele representava e personificava.
Assim sendo, vemos que sob a ótica e a lógica do homem moderno e burguês o
escravo fora mesmo uma mercadoria.
Então a partir do que vimos até aqui poderíamos formular o seguinte problema:
não foi a criança escravizada também um brinquedo para a criança do senhoril? Visto
que, tal qual o adulto, também era propriedade, coisa, mercadoria, e na medida em que
ao passar horas e dias ao lado dos filhos do senhoril em suas brincadeiras, ao bel prazer
destas, só o faziam na condição de total subjugo.
Vale notar que a perversidade de tal problema reside na própria perversão
contida na constituição da relação entre senhor e escravo no Brasil. As crianças em suas
brincadeiras reproduzem o mundo em que vivem, as relações e os valores que as cercam
(KISHIMOTO, op. cit.). Desse modo, não falamos aqui de uma certa bondade ou
maldade naturalizada na figura da criança. Falamos sim, tal como Kishimoto, entre
outros autores, da dimensão da reprodução do mundo nas brincadeiras infantis.
Quanto aos brincares de origem africana e índigena é Florestan Fernandes
(1979), em seus estudos sobre o folclore paulista e o que chama de cultura infantil, que
vai atentar para a predominância européia, e mais especificamente ibérica, das
brincadeiras populares, pelo menos na cidade de São Paulo. Restando neste universo
enquanto herança índigena e africana: toponímias, algumas cantigas e uns personagens
míticos. Pensamos que tal fato, bem como a escassez de registros destes brincares, só é
claramente inteligível a partir da consideração do genocídio e do etnocídio ameríndio e
africano, constituintes do empreendimento colonizador da América, que por sua vez,
deve ser entendido no contexto da acumulação primitiva do capital mundial, e no seu
estabelecimento e desenvolvimento nessas terras de cá.
Ficavam então as crianças da corte e do senhoril com seus tambores, trenzinhos,
bonecas de porcelana, soldadinhos e, com seus escravos – e estes, segundo se tem pouco
registro, com suas cantigas e bonecas de palha de milho, além dos rios, árvores e dos
bichos (KISHIMOTO, op cit. e FERNANDES, op. cit.).
18
Estabelecida nos modos como se pode até aqui observar, a propriedade de
brinquedos manufaturados ou industrializados, bem como a possibilidade da brincadeira
dada enquanto generalidade a toda criança, foram popularizadas apenas em meados do
século XX. Até então, os tais brinquedos a que nos referimos eram raramente vistos fora
dos círculos das classes dominantes brasileiras – bem como, podemos assim dizer, a
própria idéia do sentimento de infância (ARIÈS, 1981), isto é, um ideal que
modernamente se fez da criança; sentimento sustentado sob valores burgueses e que
demandou certos preceitos, cuidados e instituições6.
Entre bonecas de palha de milho, de pano ou de porcelana, de plástico que falam
choram e mamam. Carrinhos de lata de óleo, de caixa de sapato, de plástico ou os
guiados por controle remoto. Trenzinhos de madeira, ferroramas e autoramas.
Robozinhos de caixas de fósforo ou o robô Ar-tur. Jogos de tabuleiro, videogames e Pcs
de várias gerações. Carrinhos de rolimã, triciclos, caixas de papelão e bicicletas: o
brinquedo industrializado ganhou status e foi massificado – mas lembremos que
massificação nunca significou acesso a todos.
Lê-se em um dos catálogos da coleção de brinquedos da Estrela:
Presentes do padrinho rico (Catálogo Estrela, 1947 apud AFLALO, 1988).
É neste contexto de massificação do brinquedo industrial, sempre mediada pelos
escancarados apelos da publicidade, que Paulo de Salles Oliveira afirma que, nas
brincadeiras tornou-se gradativamente muito mais importante o ter do que o ser
(OLIVEIRA, 1986).
Lê-se no que se chama publicidade infantil:
Comprando uma moto Glasslite você fica sócio do clube ChiPs.
Basta preencher o cupom da embalagem: O que você está esperando?!
(Glasslite, 1982)
Dia da criança é dia do brinquedo Estrela: peça o seu! (Estrela, 1987)
6 Vale lembrar que tal ideal moderno de criança manifestado, dentre outros momentos, na obrigatoriedade e gratuidade da escola fundamental, no desenvolvimento da medicina pediátrica, e na elevação da criança como figura central da família nuclear burguesa, mostra-se, no Brasil, também na garantia prevista em lei do direito de brincar (Cf. ECA, 1990. Cap. 2, 16º art.). Entretanto, em que medida tal garantia jurídica pode ser tomada enquanto algo que, de fato, dê conta de pessoas reais em suas especificidades reais? Não que a igualdade jurídica seja uma ilusão. Pelo contrário. Entendemos que tal igualdade não é uma aparência ilusória da desigualdade social, mas sim sua necessária forma de aparecimento – tal qual explica Marx na sobreposição de tal igualdade sobre as desigualdades fundamentalmente antagônicas existentes entre as partes envolvidas no contrato de trabalho. Expomos tal questão a partir do fato de que em qualquer saidela pela cidade nos depararemos com a não efetivação real daquele direito juridicamente assegurado. Crianças vendendo balas. Crianças limpando vidros. Crianças puxando carroças.
19
Mas, tem uma coisa que só as princesas de verdade podem ter:
o colar com luzes mágicas. Nova sapatilha das princesas Disney que
vem com colar de luzes. Vossa majestade vai adorar. (Grendene Kids
e Disney, 2009)7
O apelo imperativo fica evidente. Compre. Peça. Enfim, tenha.
E tal imperativo se faz fundamental e especialmente presente nessa publicidade
em função do caráter formador que tem o brinquedo associado à necessidade de veicular
os valores basilares da reprodução do capital entre as crianças (RENNER, 2008).
Frente a constatação deste caráter formador do brinquedo é necessário
considerarmos o seguinte: se desde as sociedades pré-capitalistas os brinquedos, ainda
que confundidos com objetos do sagrado e do profano, ligados à divindade ou à guerra –
vide a adoração de algumas bonecas e o manejo do pequeno arco e flecha – tinham por
finalidade, além de sua dimensão lúdica, ligada ao riso, inserir o novo que chegava ao
mundo segundo certos preceitos sociais (Cf. Arent (1972) trata-se da educação em seu
sentido amplo), é apenas na modernidade e no decorrer do desenvolvimento do modo de
produção capitalista que os brinquedos passam a introduzir o novo, ou seja, a criança,
nos valores da sociedade moderna e capitalista; e na medida em que passam a carregar
em si estes valores.
Mas o brinquedo-mercadoria formaria exatamente o que? Pensamos que este
objeto forma a figura adaptada para a reprodução do capital. Isto é, adaptada para a
produção de mercadorias e para a reprodução das relações de produção (LEFEBVRE,
1973, 2008b). Consumidores. Trabalhadores. Empreendedores. Lembremos por ora do
Jogo da Vida ou do Banco Imobiliário, o qual, aliás, em sua última versão não mais
conta com os famosos dinheirinhos coloridos, mas sim, com uma máquina de cartão de
débito e crédito. Os brinquedos passam a veicular entre as crianças além dos valores
desta sociedade também as novas formas em que o capital se manifesta e reproduz. E
cada vez mais desde mais cedo.
7 Todas essas manifestações publicitárias foram veiculadas na televisão aberta brasileira, durante as décadas de 1980, 1990 e 2000, e encontram-se disponíveis no sítio virtual: www.youtube.com.
20
Imagem 1: Super Banco Imobiliário com cartão de crédito e de débito. Fonte: www.g1.globo.com
Ainda vale considerar a atenção especialmente detida que Lefebvre (1991) dá à
publicidade enquanto linguagem da mercadoria e uma ideologia da modernidade – que
oculta e faz parecer como invertidas as relações de produção. Uma linguagem e
ideologia que se inscrevem na vida cotidiana organizando-a. E que, portanto, podem aí
ser lidas.
Para o referido autor, a publicidade já fora responsável por informar, descrever e
incitar o desejo. No entanto, o mesmo ainda adverte que, além da manutenção dessas
características, a partir de meados do século XX absolutamente mais nada vale
... a não ser através da sua duplicata: a imagem publicitária que
o aureola. Esta imagem duplica não apenas a materialidade sensível
do objeto, mas o desejo, o prazer. Ao mesmo tempo, ela torna fictícios
o desejo e o prazer, situa-os no imaginário. É ela [a publicidade] que
traz ‘felicidade’, isto é, satisfação ao estado de consumidor
(LEFEBVRE, 1991: 114).
Imergindo nesse processo de massificação e partindo do próprio brinquedo
industrializado como objeto, Oliveira (op. cit.) vai tratar da idéia de propriedade que o
brinquedo incute na criança enquanto um princípio fundamental a ser veiculado entre os
futuros, ou, já membros da sociedade fundada na produção de mercadorias8. Para tanto,
8 Em caso de dúvida sobre a participação das crianças nesta sociedade: “O embrião do consumidor começa a se desenvolver no primeiro ano de existência. Crianças começam sua jornada de consumo na infância. E certamente merecem consideração como consumidores nesse período”. Esta é a fala de um dos
21
parte o autor das elaborações teóricas realizadas por Marx acerca da natureza da
propriedade privada.
Segundo Oliveira (op. cit.), o sentimento de propriedade irrompe desde cedo
como uma espécie de alienação quando para a criança o brinquedo só é seu na medida
em que ela o tenha apenas para si.
Para Marx,
A propriedade privada nos fez tão cretinos e unilaterais que um
objeto somente é o nosso [objeto] se o temos, portanto, quando existe
para nós como capital ou é por nós imediatamente possuído, comido,
bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós etc., enfim, usado
(MARX, 2004: 108)
No movimento lógico de sua análise acerca da propriedade privada, em seus
Manuscritos econômico-filosóficos, Marx deduz tal conceito primeiramente enquanto
conseqüência do estranhamento do homem que trabalha com: o produto do seu próprio
trabalho; com sua própria atividade de trabalhar; e consigo próprio (Idem, Ibidem). Mas
isto para logo em seguida demonstrar-nos que, num dado estágio de desenvolvimento,
além de fundamento e razão do trabalho exteriorizado a propriedade privada é também
conseqüência e ainda mediação entre todas estas relações e atores. Entre o trabalhador,
o não-trabalhador, entre ambos e a própria atividade e ainda a relação que estabelece o
homem com a natureza (Idem, Ibidem). Em suma, a propriedade privada está em todo
lugar permeando a tudo e a todos.
Ainda segundo Marx é deste estranhamento do trabalhador com o produto que
produziu e que contém agora o que era seu, isto é, seu trabalho, sua essência nesta
sociedade, que surge a alienação.
Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o
trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais
extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto tanto aparece
como estranhamento (Entfremdung) que, quanto mais objetos o
trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o
domínio do seu produto, do capital (Idem, Ibidem: 81).
pioneiros do marketing infantil: McNeal, James U. In: Consumo de crianças: a comercialização da infância (Consuming kids: the commercialization of childhood) EUA, 2008.
22
É a partir de então, deste momento lógico do capital, que o ter é sobreposto ao
ser. O que irá aparecer mais tarde também nas brincadeiras.
Tal é a intensidade desse processo que não deixa de provocar o
abafamento de outros sentidos físicos e espirituais, não os anulando, é
claro, mas nitidamente relegando-os a um plano secundário. O ter
adquire preponderância em relação ao ver, ao ouvir, ao cheirar, ao
tocar, ao amar, etc (OLIVEIRA, op. cit.: 49)9.
É ainda o princípio de propriedade, que está contido no brinquedo e pelo qual a
criança relaciona-se com este objeto e também com o mundo, que, em geral, rompe com
uma certa dinâmica do associativismo espontâneo entre as crianças, outrora fundado a
partir de construções lúdicas no grupo de amigos (Idem, Ibidem).
Aquele que é dono da bola de futebol tem, independentemente
da condição técnica, sua escalação garantida no time. Quase sempre,
dentro de uma lógica presidida pela propriedade, acaba por impor de
uma forma aparentemente natural sua própria posição de jogar,
recusando, por exemplo, a função de goleiro em favor da de atacante
(Idem, Ibidem: 50).
O que outrora era definido por um certo conjunto de habilidades, tais como jogar
futebol, brigar ou namorar, passa cada vez mais a definir-se pela propriedade privada.
Não que o contrário não aconteça. Isto é, que determinada criança, abonada por
demais, em função da condição financeira e do mimo de sua família, seja recusada por
um determinado grupo justamente por dispor de muitas propriedades – segundo o
julgamento deste grupo. Mas não importa se ingresso ou espolio. Qualquer que seja a
manifestação estaremos diante de relações fundadas principalmente na idéia de
propriedade.
Ainda lembremos que o que é tão buscado gera tantas outras frustrações.
No mundo contemporâneo, ditado pela lei da mercadoria, e esta por sua vez
produzida segundo os ditames da obsolescência programada, há, segundo Oliveira (op.
cit.) uma dupla frustração relacionada à propriedade do brinquedo: de um lado a criança
9 Não nos esquecemos que, ainda segundo Marx (2004), os próprios sentidos do homem, sentidos físicos e espirituais também são socialmente produzidos e condicionados.
23
incapaz de ter o brinquedo que tanto quer, e de outro, a criança que mal sabe o que quer
de tanto que tem. Ambas frustradas pela falsa idéia de felicidade veiculada pelas
campanhas publicitárias. Ou melhor, não uma falsa idéia, mas apenas uma idéia que não
há de se efetivar.
É que a partir da publicidade não haveria mesmo uma distinção ou fronteira
entre o consumo do imaginário e o imaginário do consumo. Daí a indagação de
Lefebvre: Como não seriam imensas a decepção e a frustração daqueles que têm pouco
mais do que signos para pôr entre seus dentes vorazes? (LEFEBVRE, 1991: 100).
Desse modo chegamos ao momento em que o brinquedo industrializado é
tornado ele mesmo um signo de diferenciação social na medida em que confere mais ou
menos status, junto a um determinado grupo, para a criança que detém sua propriedade
(OLIVEIRA, op. cit.). Ainda que este status esboroe-se com o mais novo brinquedo
lançado no mercado.
Estamos diante da bola do campeonato atual ou a da marca mais barata, quando
não improvisada por meias ou substituída por uma lata, por um coco, ou algo que a
valha. Do caderno do super-herói preferido ou o doado pela prefeitura. Dos videogames
de última geração ou dos videogames doados, velhos e ultrapassados – ou mesmo a
ausência deste e a presença do sentimento de querer ter.
Imagem 2: Loja de videogames. A vitrine marca a aproximação e o distanciamento dos Playstations, XBox’s e Nintendos Wii dos que não podem comprá-los. Autor: Diogo Marciano. Data: Setembro de 2011.
24
Na música “Fim de Semana no Parque” (1993) dos Racionais MC’s vemos mais
sobre o assunto:
[...] Daqui eu vejo uma caranga do ano
Toda equipada e o tiozinho guiando
Com os seus filhos ao lado, estão indo ao parque
Eufóricos, brinquedos eletrônicos.
Automaticamente eu imagino:
A mulecada lá da área como é que tá?
Provavelmente correndo pra lá e pra cá
Jogando bola descalços nas ruas de terra
Brincam do jeito que dá
Gritando palavrão é o jeito deles
Eles não tem videogame e às vezes nem televisão
Mas todos eles têm em Doum São Cosme e São Damião a única
proteção [...]
Eles também gostariam de ter bicicletas
De ver seu pai fazendo cooper tipo atleta
Gostariam de ir ao parque e se divertir...
Além da questão da propriedade do brinquedo enquanto um signo de
diferenciação podemos ler também aqui a cotidianidade, tal qual formulada por
Lefebvre (1991, 2008b), na metrópole de São Paulo: expressa nas ruas e no específico e
funcional espaço-tempo para o lazer, bem como no desejo de tê-lo. Nestes termos a
cotidianidade salta aos olhos enquanto algo que se deseja – ou que pelo menos se quer.
E isso não nos parece nada estranho.
Sem manual de instruções
Vimos até aqui, e com Oliveira (op. cit.), entre outros, a inserção da criança no
mundo da mercadoria através do brinquedo e de sua imagem produzida pela
publicidade. E não somente no consumo da própria mercadoria, que é o brinquedo, e
dessa sua imagem, mas também nos valores que este objeto específico visa incutir nos
pequenos. E no que diz respeito aos adultos, isto é, sobre a sua relação com os
brinquedos, podemos dizer que além de se relacionarem com estes objetos, assim como
com qualquer outro pela mediação alienada do trabalho, seja no ato da produção ou do
25
consumo, há ainda um outro tipo de relação, ilusória e muito recorrente, bem marcada
na seguinte cena descrita por Benjamin:
Conhecemos aquela cena da família reunida sob a árvore de
Natal, o pai inteiramente absorto com o trenzinho de brinquedo que
ele acabou de dar ao filho, enquanto este chora ao seu lado. Não se
trata de uma regressão maciça à vida infantil quando o adulto se vê
tomado por um tal ímpeto de brincar [...] mas, o adulto, que se vê
acossado por uma realidade ameaçadora, sem perspectivas de solução,
liberta-se dos horrores do real mediante sua reprodução miniaturizada
(BENJAMIN, 2002: 85).
Assim sendo, e pelo que foi visto até aqui, podemos formular o seguinte
problema:
Se, (Cf. BENJAMIN, op. cit. e OLIVEIRA, op. cit.) se tem mais ou menos clara
a idéia de que a partir do brinquedo as crianças e os adultos se relacionam com o
mundo, de modo não só distinto, mas contrário, a saber, a primeira enquanto inserção e
o segundo enquanto fuga, pode-se dizer que, pelo menos levando-se em conta o
brinquedo-mercadoria: a fuga do adulto já nasce fadada ao fracasso e a criança já se
insere, desde cedo, no mundo da fanstasmagoria.
A partir de então, e sem querer realizar uma categorização ou tipologia dos
brinquedos, podemos questionar em que medida os brinquedos, e ainda antes, os objetos
tornados brinquedos, que servem de sustentáculo para as brincadeiras de rua inserem-se
nesse mesmo problema. Com isto aproximamo-nos de uma tentativa de compreender a
atual condição dos brincares de rua a partir do domínio e da generalização do
brinquedo-mercadoria no mundo moderno e contemporâneo. Isto é, uma tentativa de
compreender a raridade dos brinquedos e das brincadeiras de rua a partir do domínio e
generalização da lógica da mercadoria.
Trata-se dos pipas, capuxetas e peixinhos postos aos céus. Das corridas de
carrinhos de rolimã pelas ladeiras. Da bola e dos futebóis sempre presentes na rua. E
ainda do jogo de taco. Das bolinhas de gude e piões em potes no alto da gôndola de uma
loja. De algumas coleções: casulos de bichos e insetos, tampinhas de garrafa, cartões
telefônicos, carteiras de cigarro dobradas no formato de pequenas camisas. Na beira
dum córrego da caça aos marimbondos com chinelos como armas e caixinhas de
26
fósforos como prisões para então surgirem helicópteros com esses insetos capturados e
amarrados em linhas de costura. De estilingues, latinhas, cachorros, gatos, passarinhos e
algumas pernas de distraídos transeuntes.
Cenas de brincadeiras de rua por nós observadas, para nós contadas, ou ainda
por nós rememoradas a partir de nossa vivência enquanto citadinos.
Vale atentar para o fato de que tentamos aqui não opor simplesmente estes
brincares ligados à rua ao brinquedo-mercadoria, mas sim, buscamos compreender a
raridade daqueles frente a generalização deste. Ainda que possamos identificar
diferenças em ambos. E mais especificamente diferenças não imanentes ao objeto, mas
principalmente ao uso que a criança que o têm em mãos ou em mente dá para este.
Adorno nos dá pistas sobre essa relação entre a criança e o objeto da brincadeira
ao localizar na instantaneidade do ato da brincadeira infantil a imanente contradição
entre valor e valor de uso presente na mercadoria:
À criança, incorruptível, salta aos olhos a “peculiaridade da
forma equivalente”: “o valor de uso torna-se a forma de manifestação
do seu contrário, o valor” (Marx, O Capital, I). Em suas atividades
gratuitas, a criança põe-se com uma finta do lado do valor de uso
contra o valor de troca. Precisamente na medida em que despoja as
coisas que manipula de sua utilidade mediatizada, a criança busca
salvar, em seu trato com elas, o que as torna benéficas aos homens e
não à relação de troca, que deforma igualmente homens e coisas
(ADORNO, 1993: 200).
E é este despojamento da meditiacidade e da funcionalidade presentes na
mercadoria, identificado por Adorno no ato da brincadeira, que parece estar
potencialmente presente nas brincadeiras de rua. Sustentadas sob objetos que não vêm
com manual de instruções. A seda, o bambu e a linha que viram pipa – ou muitas vezes,
ao invés da folha de seda, sacolas de supermercado, ou então, no caso das capuxetas,
folhas de caderno. A forquilha de um galho perfeito, a borracha e o retalho do jeans ou
da sarja que viram estilingue. Os restos da marcenaria e os rolamentos para automóveis
que viram carrinhos de rolimã.
No entanto, esse despojamento, e o que Benjamim (op. cit.) identificou como um
fazer história com os detritos da História, é cada vez mais incomum e raro. Raros são os
meninos que ainda fazem seus pipas. Nas periferias da metrópole, em lojas de doces e
27
fogos de artifício, o pipa é o objeto mais comprado. E nem mais se perde tempo
enrolando em latas a linha que o porá nos céus. Já existe uma máquina que faz esta
atividade pela criança. Quanto aos carrinhos de rolimã seria desnecessário dizer que já
há muito perderam espaço para o intenso e perigoso trânsito da metrópole e para as
corridas de videogame.
E pensamos que são cada vez mais raros exatamente na medida em que o
brinquedo-mercadoria é cada vez mais generalizado. O que por sua vez nos aparece
como uma expressão da generalização da mercadoria. E assim, a generalização do
quantitativo sobre o qualitativo. Do valor sobre o uso.
Pensamos ainda que neste percurso de domínio e generalização é Benjamin
quem também nos guarda pistas para a compreensão dos problemas aqui levantados
acerca dos brincares de rua. Isto é, sua raridade. Neste sentido, podemos situar este
avanço do quantitativo sobre o qualitativo no processo de desenvolvimento da
tecnologia e das forças produtivas do capital. Processo que, segundo Benjamin, faria
aumentar as mediações, e pela tecnificação, entre o sujeito e o mundo, ou melhor, faria
construir um mundo repleto de mediaticidades. Desse modo, uma nova miséria é
imposta ao homem moderno: a decadência da experiência na modernidade
(BENJAMIN, 1994).
Essa nova miséria a que se refere Benjamin consiste na privação de uma
faculdade que parecia inalienável ao homem, e que exatamente no decorrer do
desenvolvimento das forças produtivas e da tecnificação da vida encontra-se cada vez
mais em vias de extinção: a faculdade de narrar. De contar histórias. De dar conselhos
aos problemas novos evocando a sabedoria contida no que se viveu ou se ouviu. A
manutenção do compartilhamento de uma tradição sustentada no diálogo entre gerações.
Enfim, a faculdade de narrar experiências, que também, e necessariamente, consiste no
saber ouvir.
E eis aqui a precisão do autor em apontar a peculiaridade da narrativa:
Ela não está interessada em transmitir “o puro em-si” da coisa
narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa
na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime
na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do
vaso (Idem, Ibidem: 205).
28
Benjamin identifica a ascensão do romance no seio da burguesia, ainda no início
do período moderno, bem como, já no contexto de consolidação desta classe, a difusão
da informação com a imprensa, ferramenta fundamental, também segundo o autor, do
alto capitalismo, enquanto germens mesmo dessa perda da capacidade de narrar. Segue
Benjamin:
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no
entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os
fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras
palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e
quase tudo está a serviço da informação (Idem, Ibidem: 203).
No entanto, é no retrato do período em que viveu que o autor chega ao trágico
ápice desta decadência enquanto o ápice da tecnificação sobre o humano. E isto ao
pensar sobre o silêncio dos combatentes vindos da Primeira Guerra Mundial, que,
segundo Benjamin, não traziam consigo dos campos de batalha história alguma a ser
contada de boca em boca. Afinal, segundo a interpretação de BOLZ (1992) acerca desta
passagem citada tanto no texto “Experiência e pobreza” de 1933 quanto n’ “O narrador”
de 1936, apenas as máquinas, tal qual as máquinas fotográficas e o cinema, traduzindo o
mundo e homem em seqüências de choques, puderam registrar tamanho assombro.
Porque nunca houve experiências mais radicalmente
desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de
trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do
corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração
que ainda fora à escola num bonde puxado a cavalos viu-se
abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas
nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e
explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano.
Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso
desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. (BENJAMIN,
1994: 115).
E é Giorgio Agamben quem nos situa acerca da atualidade e da proximidade de
tal miséria no mundo contemporâneo:
29
Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da
experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a
pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim,
perfeitamente suficiente. Pois, o dia-a-dia do homem contemporâneo
não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência [...]
O homem moderno volta para a casa à noitinha extenuado por uma
mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou insólitos,
agradáveis ou atrozes –, entretanto nenhum deles se tornou
experiência (AGAMBEN, 2008:22. Destaque nosso).
Mas e quanto aos brinquedos? Como poderiam estar inseridos nesse contexto de
decadência da experiência? E mais exatamente como a atual condição dos brinquedos e
das brincadeiras de rua na metrópole contemporânea poderia ser a partir daí
problematizada?
Se pensarmos nos modos pelos quais se toma conhecimento e se pratica estes
brincares, ou então, nos modos pelos quais não mais se toma conhecimento e nem se
pratica, poderemos encontrar um caminho possível.
Ora, nesta sociedade pobre de experiências e quase muda de narrativas quem
seria capaz, parafraseando Benjamin, de hoje em dia transmitir a outrem os modos
corretos pelos quais se constrói um bom pipa e um bom carrinho de rolimã? Quem
ainda seria capaz de mostrar os melhores esconderijos do quarteirão para a brincadeira
de pique? Quem traria tais experiências em si e seria capaz de compartilhá-las e também
quem seria capaz de ouvi-las e reapropriar-se destas? Com que tempo? E afinal, que
condições o espaço urbano, e mais precisamente a rua, palco destes brincares, guardaria
para tanto?
30
2_Os brincares no espaço urbano paulistano no decorrer do seu processo de
urbanização
Encostado à parede viu uns instrumentos estranhos. Um disco vermelho e
branco de folha-de-flandres, semelhante àqueles que os guardas da estrada de
ferro seguram pelo cabo quando o expresso passa na frente da guarita; um
tripé encimado por um tubo de latão; umas estacas pintadas de branco...
– Que é isso? – perguntou ele. Iano olhou: – Isso? É do senhor arquiteto. –
Que senhor arquiteto? – Senhor arquiteto construtor. Boka sentiu um aperto
no coração. – Construtor? Que é que ele vem fazer aqui? Iano soltou uma
baforada do cachimbo: – Vão fazer construção. – Aqui? – Sim, senhor.
Segunda-feira vem muito operário... cava terreno... faz adega, alicerce. – O
quê? Gritou Boka. – Vão levantar um edifício? – Edifício, sim senhor – disse
o Eslovaco, indiferente. – Edifício de três andares... dono do terreno manda
fazer...
Entrou no barracão. A terra girava aos olhos de Boka. Desta vez as lágrimas
brotaram. Estugou o passo, foi correndo ao portão, fugindo daquele pedaço
de terra infiel que eles haviam defendido com tanto sofrimento, tamanho
heroísmo, e que ia deixá-los para carregar um imóvel nas costas para sempre.
Os meninos da Rua Paulo, Ferenc Molnár
Pensar nos brincares pelo espaço urbano paulistano através do viés do
movimento que vai da cidade à metrópole implica entrar em contato com uma série de
lugares que foram pelas crianças apropriados para o brincar e também em lugares que
foram planejados e projetados para esta prática específica.
Desse modo avolumam-se os lugares:
Ruas. Calçadas. Becos e vielas. Praças. Parques. Terrenos baldios. Bosques.
Quadras de futebol e centros esportivos. Campos de várzea. Quintais. Escolinhas de
natação. Escolinha de artes marciais – que hoje em dia não se reduzem apenas a um ou
dois esportes, mas comportam além do judô e do karatê, a capoeira, o kung-fu, o jiu-
jitsu e o muai thay. ONGs. Playgrounds. Buffets. Playlands nos shoppings – que hoje
têm a tendência de substituírem os antigos fliperamas de bairro, temidos e tomados
como lugares insalubres pelos pais e ao mesmo tempo visto como um espaço
maravilhoso pelos meninos. Salas e quartos de apartamentos e casas – aumentando
vertiginosamente a quantidade de prédios e condomínios fechados. Ruas de Lazer.
Escolas e creches.
31
Na compilação de todos estes lugares pode-se ver o tamanho e a complexidade
que tal tarefa poderia assumir.
Mas tenhamos a clareza dos limites e do recorte que concerne ao nosso estudo:
compreender a partir dos conteúdos da urbanização os comos e os porquês de cada vez
menos a metrópole ser o espaço para as brincadeiras de rua. E o que esse problema pode
nos revelar acerca dos movimentos e conteúdos que envolvem a criança nesse processo.
Assim sendo, tocaremos apenas tangencialmente, ou mesmo nem chegaremos a
discorrer sobre determinados lugares que nos teriam muito a dizer a respeito da gestação
do ser criança na sociedade brasileira, como, por exemplo, as fábricas e oficinas
paulistanas do começo do século XX, e também outros focos de trabalho infantil nos
dias de hoje, além do Instituto Disciplinar, das colônias agrícolas e da FEBEM
atualmente Fundação CASA10.
Caminhemos aqui na direção de buscar para além do saudosismo da memória os
lugares que comportavam as crianças e suas brincadeiras, e especialmente as de rua –
daí nossa notória preocupação com os espaços públicos e principalmente com as ruas.
Desse modo distinguir-se-ão espaços públicos e privados, espaços do improviso e
espaços funcionalizados, marcando tanto a sobreposição do privado sobre o público no
mundo contemporâneo e na metrópole, bem como a cada vez maior programação e
controle de todos os espaços e tempos da vida cotidiana. E assim, conseqüentemente, a
generalização de práticas sócio-espaciais também programadas e controladas.
A criança nas ruas da cidade
Temos a clareza de que não são pequenos os riscos de cairmos numa espécie de
romantismo acerca dos problemas que envolvem nossa pesquisa. E isto na medida em
que se enuncia que cada vez menos a metrópole é o lugar para as brincadeiras de rua.
Argumento que poderia levar a pensar que há muito tempo tudo se podia fazer e de tudo
se podia brincar pelas ruas de São Paulo, como se a metrópole tivesse sido outrora um
verdadeiro País dos Brinquedos e que gradativamente, e de algum modo, todas as
crianças, pois também se poderia pensar que todas elas brincavam na rua, teriam sido
tornadas burrinhos – parafraseando o conto de Pinóquio. 10 Todos lugares importantíssimos para o discernimento de que a condição de criança em nada, ou quase nada, se esmera em aspectos biológicos ou fisiológicos do corpo humano. Trata-se antes de uma condição determinada histórica e socialmente, e que reflete as desigualdades reais e igualdades formais nas quais se funda a sociedade moderna; o que pode ser muito bem visto no caso brasileiro a partir da distinção entre os termos: menor e criança (Cf. SANTOS, M.A.C; MOURA, E.B.B.; e PASSETI, E.). In: DEL PRIORE, Mary (org). A história das crianças no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000.
32
Pois não foi assim. Se a nossa vivência enquanto citadinos e os próprios relatos
colhidos por nós durante a realização desta pesquisa apontam que a presença das
crianças e de suas brincadeiras pelas ruas vem diminuindo gradativamente ao longo das
décadas, tenhamos a ciência de que a relação entre a infância e a rua já desde o final do
século XIX e início do XX era posta como um problema urbano a ser resolvido.
Diagnosticado e profixilado tal qual uma doença que se instala num corpo, na medida
em que a cidade era concebida enquanto um organismo. E que para a resolução deste
suposto problema foram dadas diferentes respostas – ainda que se mantendo certas
continuidades ao longo do processo de urbanização.
Vejamos a seguir a dupla dimensão do contexto acima abordado:
Nos meus tempos de criança – façam a conta, nasci em 1917 –,
o que mais tinha era espaço e liberdade para brincar. Os moleques que
moravam na região – descendentes de portugueses, alemães, árabes,
negros e italianos, como eu – reuniam-se para jogar futebol, bolinha
de gude, apostar corrida, empinar pipa, roubar frutas dos vizinhos e
matar passarinhos (depois nos arrependíamos...).
Uma das brincadeiras preferidas era explorar a mata fechada do
Ibirapuera. Lá nadávamos nos lagos e caçávamos rãs. Outra aventura
era matar cobras! Fazíamos trilhas até as cachoeiras e voltávamos a
tardinha cansados e mortos de fome para casa. À noite, à luz do
lampião, era a hora da ciranda na rua.
Dava pra jogar [o futebol] tranqüilamente na rua... só que tinha
a radio patrulha, um carro preto com o guarda civil. Se a gente estava
jogando bola e aparecia uma radiopatrulha, os guardas desciam,
pegavam a bola e rasgavam com o canivete. E quem eles pegassem
davam umas bofetadas porque não podia jogar bola na rua. Mas nós
jogávamos.
O primeiro relato é de autoria de Seu Francisco Villano, ou seu Chiquinho,
barbeiro e morador da Vila Mariana há mais de noventa anos11. E o segundo é o relato
de Armando Pugliesi, antigo morador do Bixiga e fundador do museu do bairro12.
11 Pedaço da Vila. Nº55, Outubro de 2006. 12 MORENO, J., 1996, apud, RAGO, M., 2004.
33
Desde o final do século XIX até as primeiras décadas do século XX – e em que
medida não poderíamos dizer: até os dias de hoje – a rua era vista com maus olhos para
a formação das crianças. A permanência da prole das classes mais abastadas neste
espaço era permanentemente proibida, e muito mais pesada era proibição sobre as
meninas, inclusive sobre as que advinham do proletariado.
Gomes e Gouvêa (2008)13 entendem estas características das ruas da metrópole
num contexto mais amplo que surge na modernidade: a privatização da infância no
contexto de novas formas de sociabilidade e reconstituição de espaços, ambos oriundos
do estabelecimento das esferas do privado e do público na modernidade.
Nesse processo, são ressignificados não apenas espaços, como a
rua e a casa, agora representados como opostos, mas também os
sujeitos que o ocupam. Ao domínio da vida privada, no interior do
espaço doméstico, correspondem a mulher e a criança, investidos de
novos papéis sociais, com seu lócus definido pelas funções que
exercem. Já a esfera pública, nos espaços de circulação da rua, é
representada como lócus masculino por excelência, associada ao
mundo do trabalho (GOMES, GOUVÊA, 2008: 49).
Tais ideais e representações modernas e burguesas, do privado e do público, do
masculino e do feminino, bem como da infância, como veremos, não se efetivam
completamente. O que gerou por parte das classes dominantes e do Estado uma
contraditória indignação. E contraditória porque, se por um lado a burguesia e o Estado
expurgaram moralmente a presença de crianças e mulheres na rua, seja enquanto
transeuntes desacompanhados ou em pleno trabalho, por outro eram eles os mesmos
agentes que contratavam e legitimavam o trabalho da mulher e o das crianças nas
fábricas. Por mais de dez horas, e por vezes passando das quatorze horas por dia,
recebendo para tanto um precaríssimo salário, muito mais baixo do que os dos homens
adultos14. Aliás, neste contexto, o trabalho da mulher e o infantil eram imprescindíveis à
sobrevivência da família operária e sua reprodução enquanto tal.
13 GOMES, Ana Maria Rabelo; GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. A criança e a cidade: entre a sedução e o perigo. In: DEBORTOLLI, J.A.L.; MARTINS, M.F.A.; MARTINS, S. Infâncias na metrópole. Belo Horizonte: 2008. p 47-86. 14 (Cf. SANTOS, M.A.C; MOURA, E.B.B.; e PASSETI, E. op. cit.) o recrutamento do trabalho de toda a família operária era parte fundamental de uma maior acumulação de capital e de geração de lucro para os empresários. Tanto por este motivo quanto pela concorrência que geravam os trabalhos infantis e
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Assim, segundo o discurso e representação dominantes sobre a infância, o
masculino e o feminino, a rua era tida essencialmente como um espaço de desvio da
formação moral que se buscava para o moderno e urbano. E na medida em que essa
formação ideal afastava-se cada vez mais das classes populares, tanto estas classes
foram sendo identificadas como incapazes de educar seus filhos, e nessa medida,
culpabilizadas, como a rua passava cada vez mais a ser um lugar de perdição, e
principalmente para as crianças e mulheres (GOMES, GOUVÊA, op. cit.). Pensamos
que se pode a partir disto identificar um dos germens da criminalização da pobreza e
também das tentativas de redução dos sentidos da rua na metrópole de São Paulo.
No mês de Outubro de 1898 a Revista Álbum das meninas publicava o soneto
“O vagabundo”, de Amélia Rodrigues
O dia inteiro pelas ruas anda
Enxovalhando, roto indiferente:
Mãos aos bolsos olhar pertinente,
Um machucado chapeuzinho a banda.
Cigarro à boca, modos de quem manda,
Um dandy de misérias alegremente,
A procurar ocasião somente
Em que as tendências bélicas expanda
E tem doze anos só! Uma corola
De flor do mal desabrochada! Ao desditoso
Quem faz a grande, a peregrina esmola
De arrancá-lo a esse trilho perigoso,
De atirá-lo p’ra os bancos de uma escola?!
Do vagabundo faz-se o criminoso!...15
feminino ao trabalho masculino, os trabalhadores da época mobilizaram-se em diversos movimentos de contestação e de greve, reivindicando maiores salários para si e o fim nas fábricas do trabalho feminino, sob as condições em que se dava, e do trabalho infantil como um todo. 15 Álbum das Meninas, ano I, São Paulo, 31 de Outubro de 1898, nº7, p.156. Apud SANTOS, M.A.C. dos. Criança e criminalidade no início do século. In: DEL PRIORE, Mary (org). A história das crianças no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 210-230.
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Trazemos o referido soneto para ilustrar a idéia que se tinha da rua e das crianças
pobres que neste espaço brincavam, transeutavam, trabalhavam e ainda cometiam
pequenos furtos – dada a precariedade de suas condições de vida – ou então tinham
práticas que foram tornadas ilícitas, num contexto de crescente demanda por mão-de-
obra e na necessidade de se constituir um ethos do trabalho, enquadradas sob os termos:
vadiagem e desordem (SANTOS, op. cit.).
A natureza dos crimes cometidos por menores era muito diversa
daqueles cometidos por adultos, de modo que entre 1904 e 1906, 40%
das prisões de menores foram motivadas por “desordens”, 20% por
“vadiagem”, 17% por embriaguez, e 16% por furto ou roubo (Idem,
Ibidem: 214).
Para este, como já dissemos, suposto problema, foi dada a resposta, primeiro por
filantropos oriundos da iniciativa privada e depois pelo Estado: o internamento e a
correção pela pedagogia do trabalho. Num primeiro momento nas cadeias públicas tais
quais adultos, depois em instituições criadas especificamente para os menores, tais
como as colônias agrícolas e o Instituto Disciplinar (Idem, Ibidem) – vale perguntarmo-
nos em que medida esta mesma lógica do internamento e da correção pela pedagogia do
trabalho não se arrastou, de diferentes formas, não só pelas primeiras décadas do século
XX, bem como até os dias de hoje.
Desse modo, se por um lado às crianças das classes mais abastadas estavam
assegurado os cuidados e os direitos modernos e burgueses para a infância, como por
exemplo, a proibição para o trabalho, por outro, às crianças das classes trabalhadoras
estava guardada a dura rotina do trabalho fatigante e os severos castigos caso se
negassem a esse trabalho. No entanto, e teimosamente, a brincadeira não cessava:
Em Maio de 1905, Antonio Lombardo, de 14 anos de idade,
aprendiz de uma oficina de sapateiro, foi castigado pelo patrão, que o
atingiu com uma correia, em virtude de suas brincadeiras durante o
horário de serviço. O resultado foram duas largas e extensas
esquimoses nas costas (MOURA, 2000: 268)16.
16 MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. Crianças operárias na recém industrializada São Paulo. In: DEL PRIORE, Mary (org). A história das crianças no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 259-288.
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Os jornais operários da época eram repletos de notícias deste tipo. De toda a
sorte de violência contras as crianças pobres.
Mas foi principalmente nas ruas, entre os intervalos de uma engraxada e outra,
durante as vendas de jornais e de bilhetes da loteria, ou mesmo quando fugiam dos
institutos correcionais e mesmo das famílias – que muitas vezes obrigam-nas a trabalhar
em função da precária condição econômica e social na qual se encontrava – que a
criança paulistana no final do século XIX e início do século XX brincou pelas ruas de
São Paulo (e quantas outras não o fazem ainda desta forma? Entre um trabalho e outro).
Imagem 3: Pequenos engraxates jogando morra nas imediações da Estação da Luz em 1931. Fonte: RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, P. (org). História da cidade de São Paulo:a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 417.
No entanto, em resposta tanto a uma demanda de higienização social concebida
e almejada pelas classes dominantes paulistanas, que viam na pobreza uma doença
degradante dos espaços públicos, e principalmente das ruas e avenidas da metrópole,
quanto de uma reivindicação dos trabalhadores que passavam a denunciar e a se
revoltar, cada vez mais contundentemente contra o trabalho infantil, e a exigir maiores
cuidados do Estado para com suas crianças (Idem, Ibidem) surgiram espaços públicos
urbanos específicos para a criança. Com isto, a partir de 1935 se deu a instalação de
vários parques infantis pela cidade, que tinham como função, travestida de filantropia,
apagar todo rastro de permanência da infância pelas ruas (KISHIMOTO, op. cit.;
RAGO, 1985).
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Ainda assim, seria redutor não identificar diferentes formas de relação entre a
infância e o espaço urbano, e notadamente a rua, neste mesmo contexto. Formas de
pensamento sobre a presença da infância no espaço público variaram não só no decorrer
do tempo, mas também, numa mesma época, em função da localização, sendo que
bairros mais distantes do centro da cidade – na época, por exemplo, Barra Funda, Brás,
Lapa, Pinheiros, e mais além, no então subúrbio, a Vila Mariana – sofriam menos
aquela violenta intervenção sobre a presença das crianças no espaço público.
E são nestes ainda bairros que Florestan Fernandes vai estudar, já nos 1940, as
chamadas trocinhas. Dedicando-se especialmente às trocinhas do Bom Retiro – bairro
que até então circundava a região central da cidade, e que era majoritariamente morada
de operários das fábricas que ficavam no próprio bairro ou então no seu entorno.
As trocinhas eram grupos formados por crianças na primeira metade do século
XX, que tinham a vizinhança como condição e os elementos de uma cultura infantil
tradicional como causa de ser (FERNANDES, 1979). Isto quer dizer que estes
determinados grupos, pertencentes a um dado contexto histórico e espacial, além de
formar-se pela finalidade imediata do brincar e de diferenciar-se entre si, isto é, entre
outros grupos a partir de relações de comunidade, tinham como pressupostos para a sua
existência: uma estreita relação com uma dada contigüidade espacial, e, as típicas
brincadeiras e cantigas infantis que compunham o folclore infantil de então.
Desse modo, podemos relacionar a existência das trocinhas, analisadas e
teorizadas por Florestan Fernandes, com a existência do bairro e de uma vida de bairro
na cidade de São Paulo, tomada como objetos de estudo por Odette C. de Lima Seabra.
Ao debruçar-se sobre a vida de bairro e o bairro, Seabra (2003) não só estabelece
um conceito, como também o opera no sentido de buscar a compreensão dos
movimentos da urbanização total da sociedade. Neste movimento de pesquisa localiza o
florescer e o esboroar do bairro enquanto momentos que correspondem e identificam
uma passagem da cidade para a metrópole.
Tal passagem não se dá sem conflitos e nem de um simples modo. É antes o
movimento constante de transformação da forma urbana, de cidade em metrópole, o
qual comporta continuidades e descontinuidades duma forma a outra. A própria cidade
já guarda em si conteúdos que fundamentam a metrópole, como, por exemplo, a
propriedade privada do solo, que é reposta e reafirmada na metrópole dentro de um
novo quadro urbano que se generaliza:
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Uma superfície de urbanização contínua, de centralidade
múltipla e móvel, hiperfuncional, por onde se desloca a multidão,
domínio do quantitativo, com aparência de caos, porque movida por
inúmeras estratégias (SEABRA, 2003: 48).
Neste movimento a autora toma o bairro mais como um nível do processo de
urbanização do que um fenômeno social dotado de unidade. Sem com isso negar que o
bairro apresenta uma especificidade face à cidade, no entanto, numa relação conexa
entre o todo e parte, de mútua afirmação e negação, articulando em si uma ordem
próxima e uma ordem distante (Idem, Ibidem). Desse modo foi fundamental para a
constituição do bairro e de uma vida de bairro em São Paulo: a Igreja Católica e a
presença da paróquia e de um catolicismo rústico, as disputas pelo uso do espaço frente
a regularização da propriedade capitalista da terra, além das relações de família,
compadrio e vizinhança e dos associativismos espontâneos, como por exemplo, no
futebol de várzea, inseridos e em choque no/com o mundo do trabalho.
Mas, no interior de um embate que se estabelece no plano do cotidiano e no
bairro, o pertencente ao domínio do qualitativo vai perder lugar para o pertencente ao
domínio do quantitativo na medida em que avança o processo de modernização e
urbanização da sociedade.
A generalização das trocas e do dinheiro acabou por produzir
uma socialização abstrata tanto da natureza como da vida, à medida
que o dinheiro, originariamente elemento de mediação e de
equivalência para as trocas, ganhava autonomia e definia um
movimento próprio. Em conseqüência, a monetarização absoluta
resulta na fragmentação do tempo em funções reprodutivas. Assim é
que se superpõe, ao que fora o tempo comum e cotidiano da vida de
bairro, o tempo social abstrato do mercado, da mercadoria. É nisto que
está o consumo do próprio bairro (Idem, Ibidem: 24).
Nesses termos, o avanço do processo de urbanização ao alcançar a forma da
metrópole não permite a possibilidade de existência do bairro enquanto parte do todo
numa relação dialética com este. O bairro, que outrora se localizou nas franjas do
urbano, é tornado lugar de passagem, e reduzido a fragmento, sem que com isso, aonde
agora avançam as franjas do urbano, surjam possibilidades concretas para o bairro e a
39
vida de bairro na metrópole, dada as condições gerais de reprodução da sociedade
(Idem, Ibidem).
Então, para nós, se no constituir-se da metrópole a vida de bairro não encontra
mais seu lugar, dada a impossibilidade para o bairro, também as trocinhas tendem a
desaparecer na generalização deste processo, visto que dentre os principais pressupostos
para a sua existência estava a vizinhança e o uso qualitativo do espaço.
O próprio Florestan Fernandes em seus estudos ainda nos 1940 já nos dá indícios
acerca do destino das trocinhas. Segundo o autor, era comum e fundante a esses grupos
infantis estabelecerem, ora alianças, ora rivalidades com outros grupos do mesmo
formato, mas de outros bairros. Em função dessas rivalidades eram tirados acertos de
contas no jogo de futebol, disputado nas ruas dos bairros, em terrenos baldios ou em
campos de várzea, ou então em batalhas corporais e estratégicas mesmo, como numa
espécie de “guerrinha” que envolvia os grupos (FERNANDES, op. cit.).
Sendo estas algumas das atividades mais comuns das trocinhas, como poderiam
estes grupos continuar a existir na metrópole? Onde se aceleram os ritmos nas ruas e
estas passam a ser domínio quase exclusivo do automóvel. Onde os campos de várzea e
os terrenos baldios são gradativamente ocupados por indústrias, por novos prédios para
o habitat ou para o trabalho, por obras de infraestrurura urbana, como vias de fluxo
rápido, enfim, para toda sorte da produção do espaço.
A criança nas ruas da metrópole
A partir da segunda metade do século XX, e mais precisamente das últimas
décadas deste e até os dias de hoje, o curso da urbanização da metrópole de São Paulo
alcança números próprios de sua condição metropolitana. Números referentes ao
crescimento populacional, à concentração e posterior desconcentração industrial
(acompanhada da concentração de capital no contexto da financeirização da economia),
ao aumento das obras de infra-estrutura urbana e dos negócios imobiliários. Todas
expressões do processo de reprodução capitalista da sociedade e do espaço.
Neste contexto torna-se ainda mais penosa a permanência das crianças e de suas
brincadeiras pelas ruas da metrópole. Corroborando para tanto os conteúdos lógicos e
históricos que encerram a produção do espaço (LEFEBVRE, 2008b).
No interior desse processo de produção do espaço – que veremos de modo mais
detido mais à frente – são reproduzidas as contradições imanentes do processo de
produção capitalista e surgem as contradições próprias do espaço. Entre estas, e por
40
enquanto, nos interessa mais de perto as contradições capital/trabalho e centro/periferia,
que enquanto contradições imanentes aos processos de reprodução da sociedade
capitalista e de seu espaço expressam-se por vezes no urbano enquanto violência
urbana, que por sua vez é espetacularizada na linguagem dos grandes meios de
comunicação.
Pensamos que é sob estas condições, ou até mesmo sob estes álibis, entre outros,
que se avolumam na metrópole contemporânea os espaços privados do brincar.
Incrementando os negócios imobiliários, engrossando os setores da indústria do tempo
livre, e reafirmando a segregação sócio-espacial já implícita nos processos sociais que
concernem a urbanização, e que, segundo Seabra (2003) na metrópole é elevada para
um outro estágio, o da auto-segregação.
Pode-se dizer que a auto-segregação é uma forma exacerbada a
que chegou a segregação. É possível compreendê-la como uma
estratégia da reprodução de grupos para os quais se produzem
discursos justificados da separação (SEABRA, op. cit.: 47).
Buffets infantis. Playgrounds. Espaço Kids. Parques de diversão. Shoppings.
Escolinhas de futebol. Clubes esportivos. Acampamentos temáticos.
Imagem 4: Brinquedoteca do condomínio Duet Klabin. Situado na rua Correia de Lemos na Vila Mariana. Fonte: www.lopes.com.br
41
Imagem 5: Entretenimento com brincantes profissionais no Buffet Infantil Zuera. Situado em Moema.Fonte: http://www.buffetzuera.com.br
É de fácil dedução que tais espaços não foram concebidos para qualquer criança.
No entanto, isto não significa que não atinjam toda uma geração. Assim como a imagem
do brinquedo-mercadoria veiculada pela publicidade, também a imagem de tais lugares
faz parte do imaginário infantil de muitas crianças que nunca tiveram acesso a estes
espaços. E afora estas representações surge ainda uma série de ações e de espaços no
curso da urbanização, no qual se encontra a metrópole paulistana, com vistas a regrar
cada vez mais a infância deste grupo de crianças oriundo das classes mais pobres, e com
isto, retirá-las cada vez mais das ruas.
O enclausuramento da criança no próprio domicílio, frente à televisão. Os vários
cursos técnicos e de capitação a aprendizes, que agem na perspectiva de ocupar todo
tempo possível da criança. As ONGs, creches, e escolas estendidas em período integral,
com vista a cuidar dos filhos dos trabalhadores enquanto estes continuam a trabalhar em
horas-extras ou num segundo emprego.
Desse modo percebe-se que os processos de modernização e de urbanização
atingem, ainda que de modo diferenciado, a todos. E no bojo destes processos
encontram-se, entre outros, a produção do espaço e a instauração da cotidianidade.
Muitas vezes acobertados pelo desígnio da violência urbana e sua espetacularização. E
que em conjunto, isto é, num quadro o qual dominam estes processos e pululam estes
novos espaços programados e funcionais, acarretam cada vez mais na redução dos
sentidos e no esvaziamento das ruas.
Desse modo o que era público, o que acontecia no ambiente da
rua se fecha “intramuros”. Desse modo os lugares da cidade se
42
delimitam, se fecham, se tornam exclusivos [...] O que significa que se
atenua a sociabilidade na metrópole com o aprofundamento da
diferenciação entre o “público” e o “privado” (CARLOS, 1996: 87).
As ruas vão perdendo então seus múltiplos sentidos. E em detrimento destes,
como, por exemplo, o sentido do encontro e o da festa, sobrepõem-se os sentidos de
passagem e de normatização da vida (CARLOS, 1996). Nesta mútua perda e
sobreposição evidencia-se que as crianças cada vez menos ocupam as ruas com suas
brincadeiras. E perguntamos: o que se perde?
Imagem 6: Rua Mário Cardim em trecho não correspondente à Rua de Lazer e à favela Mário Cardim. Uma rua, como tantas outras da Vila Mariana e da metrópole, vazia e reduzida a um local de passagem. Data: Setembro de 2011. Autor: Diogo Marciano.
A resposta é tentadora e coça a língua. No entanto, lembremos da problemática
posta por Lefebre (2008a), através da rua, acerca das dificuldades em se analisar o
urbano enquanto um devir no contexto do que o autor chama de zona crítica, no qual a
partir do processo de implosão-explosão do urbano, a saber, uma enorme concentração
de pessoas e mercadorias e uma enorme explosão de fragmentos espaciais dispersos que
constituem o tecido urbano, generaliza-se por toda a sociedade, por todo espaço-tempo,
a forma mercadoria.
A favor da rua: Não se trata simplesmente de um lugar de
passagem e circulação [...] A rua? É o lugar do encontro, sem o qual
não existem outros encontros possíveis nos lugares determinados
43
(cafés, teatros, salas diversas) [...] A rua é a desordem? Certamente.
Todos os elementos da vida urbana, noutra parte congelados numa
ordem imóvel e redundante, liberam-se e afluem às ruas e por elas [...]
Na rua, e por esse espaço, um grupo (a própria cidade) se manifesta,
aparece apropria-se dos lugares, realiza um espaço tempo apropriado.
Uma tal apropriação mostra que o uso e o valor de uso podem
dominar a troca e o valor de troca.
Contra a rua: Lugar de encontro? Talvez, mas quais encontros?
Superficiais. Na rua, caminha-se lado a lado, não se encontra. É o “se”
que prevalece. A rua não permite a constituição de um grupo, de um
“sujeito”, mas se povoa de um amontoado de seres em busca. De que?
[...] A rua? Uma vitrina, um desfile entre lojas. A mercadoria tornada
espetáculo (provocante, atraente), transforma as pessoas em
espetáculo umas para as outras. Nela, mais que noutros lugares, a
troca e o valor de troca prevalecem sobre o uso, até reduzi-lo a um
resíduo. [...] A rua regula o tempo além do tempo de trabalho; ela o
submete ao mesmo sistema, o do rendimento e do lucro. Ela não é
mais que a transição obrigatória entre o trabalho forçado, os lazeres
programados e a habitação como lugar de consumo (LEFEBVRE,
2008a: 27-28-29).
44
3_Um estudo de caso: a Rua de Lazer Mário Cardim
Cada narração guarda um pedaço do não contado e entre o dito e o não dito
fica o ditado: a memória só existe quando esquece algo.
Manoel Fernandes de Sousa Neto, Amnésia e Mnemosyne
Se nos deixamos guiar pelas placas que sinalizam o fluxo de automóveis ou
acompanhamos o fluxo de pessoas que transeuntam pelas calçadas e ruas do bairro
deparar-nos-emos com os ditos grandes marcos que fazem a fama da Vila Mariana.
Seja a nova Cinemateca ou a Casa Modernista. Seja o Parque do Ibirapuera ou o
Instituto Biológico. Sejam os museus ou os shoppings. Ou mesmo os muitos
consultórios, escritórios, pontos de ônibus e ainda as estações de metrô do Largo Ana
Rosa e a da Vila Mariana – estes últimos um tanto negados por alguns moradores, tanto
mais esnobes quanto abonados, em seus discursos marcados por um certo tom blasé,
perceptível nas nossas entrevistas e mesmo na literatura sobre o bairro:
Hoje a Vila Mariana é uma região tradicional, rica, moderna e
atraente. Com ares de classe média alta e um extenso roteiro cultural,
ela ainda guarda alguns casarões do século passado e nem mesmo o
metrô tirou o seu charme (PONCIANO, 2001: 226).
Mas ainda são com esses objetos que outros muitos dali representam seu bairro.
Objetos inscritos naquele espaço como símbolos de ordem e progresso.
No entanto a Vila Mariana é mais. E contraditória. Afamada, não por um acaso,
como um bairro desenvolvido e de classe média alta, símbolo da modernidade e do
progresso paulista, a Vila Mariana também é cortiços e favelas – condição e produto
para tal progresso.
E é sobre uma favela situada na Vila Mariana que nos debruçamos num estudo
de caso a fim de problematizarmos nossa pesquisa, isto é: como se estabeleceriam as
relações entre os conteúdos da urbanização e as brincadeiras de rua neste específico
espaço. Na favela Mário Cardim situada na rua homônima. Mal vista por seus vizinhos.
Invisível aos olhares apressados que diária e apressadamente passam pelas principais
vias do bairro.
Em tal intento, observemos mais detidamente o contexto que nos pusemos a
estudar. A metrópole. O bairro – ou o que é ainda chamado bairro. E a favela.
45
Aspectos metodológicos e excertos de um programa de derivas pela Vila Mariana
Cruz das Almas. Colônia. Mato Grosso. Todos nomes já dados para a região que
desde 1878 é Vila Mariana. Que já fora subúrbio e que atualmente exerce uma certa
centralidade no cenário da metrópole paulistana.
A cidade de São Paulo e seus subúrbios
Fonte: AZEVEDO, Aroldo Edgard de. Subúrbios Orientais de São Paulo, 1945. Tese (Concurso
à cadeira de Geografia do Brasil). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – USP. p. 27.
No mapa abaixo vemos a localização da Subprefeitura da Vila Mariana na
metrópole contemporânea. Vale notar que esta Subprefeitura é formada pelos distritos
de Moema, Saúde e Vila Mariana. E que, por sua vez, o distrito da Vila Mariana é
formado pelos bairros: Chácara do Castelo, Jardim da Glória, Jardim Vila Mariana,
46
Paraíso, Santa Cecília, Santa Cruz, Vila Afonso Celso, Vila Clementino e Vila Mariana.
Neste trabalho nos referimos mais especificamente a este último17.
17 Vale notar que aqui o termo bairro não se refere ao conceito de bairro tal qual tratou Seabra (2003). Antes, está ligado a idéia administrativa de localidade. “Em suma, o bairro corresponde a uma certa espacialidade das relações, enquanto a localidade à territorializaçao do Estado (SEABRA, 2003: 43-44).
47
Se nos propuséssemos a discorrer sobre toda a história da Vila Mariana
regressaríamos a meados do século XVIII, quando aquele lugar, em função de sua
situação estratégica, ficou conhecido como o Meio Caminho do Carro e posteriormente
Rancho dos Tropeiros. Isto porque ali se dava o entroncamento dos poucos caminhos
que ligavam o interior do estado ao litoral e porque se localizava um sítio que dava
pouso aos tropeiros que levavam e traziam mercadorias, inclusive a mercadoria-escravo
(MASAROLO, 1971).
Segundo Masarolo, os poucos registros do que fora o Rancho dos Tropeiros, e a
importância que teve, advêm das narrativas dos primeiros imigrantes que chegaram na
região por volta de 1887. Estes contavam que o tal rancho estava localizado num campo
na beira da Estrada do Carro – atual rua Vergueiro e exatamente onde hoje se encontra a
caixa d’água da Vila Mariana – que fora ocupado desde meados do século XIX (Idem,
Ibidem).
Dizia-se naquele tempo que os restos de umas casas de taipa e
um poço em ruínas pertencera a famílias vindas do Tabuão há mais de
cinqüenta anos.
Segundo as mesmas narrativas o local era conhecido como
“Rancho dos Tropeiros” e ali era parada de tropas de burros e
cargueiros vindos de Sorocaba, Parnaíba e Itu, que pernoitavam, para
no dia seguinte rumar para São Bernardo e Santos (Idem, Ibidem: 17).
Apesar da importância destes caminhos para o abastecimento e posterior
desenvolvimento das províncias dos arredores, tal como Santo Amaro, Masarolo nos
conta que, até então, as poucas relações estabelecidas entre o que viria a ser Vila
Mariana e a cidade de São Paulo davam-se apenas em função de viajantes que de lá
passavam pela estrada em direção a outros destinos.
Realizadas tais considerações, relembramos que nossa proposta aqui é buscar
entender os processos que constituíram esse espaço enquanto o que é hoje. Isto é, a Vila
Mariana enquanto uma área altamente valorizada pelo mercado imobiliário e que exerce
mesmo um certo papel de centralidade na metrópole paulistana. Nesse sentido,
entendemos que um momento necessário a nos debruçar quanto à formação do bairro
está intimamente ligado à urbanização de São Paulo. Tanto no que toca a sua expansão,
48
quanto na produção continuada de um algo que desde então fundamentará a metrópole:
a propriedade privada da terra urbana (SEABRA, 1987, 2003).
Deste modo regressamos até a década de 1880. Quando na Vila Mariana passou
a funcionar o Novo Matadouro Municipal e a linha da Companhia Carris de Ferro da
Capital a Santo Amaro. Elementos os quais, segundo Masarolo (op. cit.) e Angrimani
(1999), foram de fundamental importância ao povoamento e à urbanização da região.
Desdobrando-se ainda em tantos outros no tempo e no espaço.
E foi partindo e voltando para a construção de um programa de derivas que
pudemos apreender e discutir tais elementos.
Partindo porque foi no planejamento do programa que tomamos contato com
aqueles importantes momentos constituintes do bairro e seus desdobramentos. E o
fizemos num primeiro momento fundamentalmente a partir das obras de Pedro
Domingos Masarolo e de Danilo Angrimani. E voltando porque, sentindo a necessidade
de problematizar o lido e o visto, re-visitamos a bibliografia e também os novos
documentos que tivemos acesso à luz de uma nova perspectiva até então não
considerada. Além de sair a campo em mais uma deriva. Permitindo-nos então situar
aqueles elementos trazidos à baila por Masarolo e Angrimani enquanto constituintes de
um processo bastante amplo que englobava não só a Vila Mariana.
Portanto, foram duas as saídas a campo que chamamos de deriva. Que, segundo
Debord (2003)18, pode ser entendida como um comportamento experimental produzido
pelas condições da sociedade urbana e explorador desta. E que, se por um lado
permitiram a apreensão no espaço de elementos que registram momentos importantes na
urbanização do bairro e da metrópole, por outro permitiram observar e sentir através do
próprio corpo os condicionamentos das práticas sócio-espaciais no bairro – e entre essas
as brincadeiras de rua. Reveladas por meios dos turbilhões do relevo psicogeográfico
que se teve contato.
É ainda Debord quem situa mais detidamente a deriva e que nos permite
conhecer mais a fundo tal conceito:
Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se
apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências
variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao 18 DEBORD, Guy. Teoria da deriva. IS nº 2 Dezembro de 1958 [1956]. In: BERENSTEIN, Paola Jaques. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003. p 87-91.
49
reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação
de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna
absolutamente oposto às tradicionais noções de viajem e passeio
(Idem, Ibidem: 87).
Entenda-se o emprego do adjetivo psicogeográfico, também segundo Debord
(2003)19, enquanto um derivado das pesquisas que se debruçam sobre os efeitos do meio
geográfico nos indivíduos, das quais a deriva é um momento constituinte.
Ainda quanto à deriva e localizando esta pesquisa acadêmica na tensão do
diálogo com a potência crítica do pensamento situacionista, faz-se necessário determo-
nos um pouco mais nessa nossa, mas não nova, tentativa de aproximar sem reduzir
(SILVA, 2004). Isto é, de aproximar a geografia e seus métodos de trabalho de campo à
teoria da deriva.
Já em 1957, Debord (2003)20 indica a urgência da preparação de um trabalho
organizado coletivamente que culminasse no estabelecimento de meios para a
transformação da vida cotidiana e para a superação da noção de espetáculo21. Para tanto,
aponta o autor para a necessidade de se reconhecer os momentos que constituem a vida
cotidiana para agir sobre esses, através da construção de novas ambiências que sejam ao
mesmo tempo produto e instrumento de novos comportamentos dos indivíduos.
Neste texto, entre outros temas, Debord trata das derivas e a partir daí da
construção de situações. Construção que figurou entre os principais objetivos da IS
(Internacional Situacionista) durante toda sua existência.
Nossa idéia central é a construção de situações, isto é, a
construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua
transformação em uma qualidade passional superior. Devemos
elaborar uma intervenção ordenada sobre os fatores complexos de dois
19 DEBORD, Guy. Introdução a uma crítica da geografia urbana. Les lèvres nues nº 6, 1955. In: BERENSTEIN, Paola Jaques. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003. p 39-42. 20 DEBORD, Guy. Relatório sobre a construção de situações e sobre as condições de organização e de ação da tendência situacionista internacional (texto apresentado na conferência de fundação da IS de Cosio d’Arroscia), julho de 1957. In: BERENSTEIN, Paola Jaques. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003. p 43-59. 21 Segundo Debord, tal qual a mercadoria, o espetáculo não deve ser entendido enquanto um objeto simplesmente ou uma porção de objetos, mas sim, enquanto uma relação entre pessoas medida por imagens. “O espetáculo domina os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente. Ele nada mais é que a economia desenvolvendo-se por si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores” (DEBORD, 1997: 17-18).
50
grandes componentes que interagem continuamente: o cenário
material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o
alteram (Idem, Ibidem: 54).
Frente a esse objetivo, que se inicia na realização de derivas, devemos lembrar
que durante todo o processo que envolveu a preparação e a realização dos nossos
trabalhos de campo, associados àquela teoria, não foi planejado a construção de um
momento assim. E seria incerto afirmar, com certeza, que em campo se vivenciou uma
situação – com toda a complexidade dos elementos que esse conceito guarda, como por
exemplo, a superação da noção de espetáculo. Por mais que se tenha estabelecido nas
andanças pela Vila Mariana, andanças condicionadas pelas especificidades desse espaço
e pelo urbano em geral, uma relação ímpar de natureza psicogeográfica com aquele
lugar e com a metrópole como um todo. Desdobrando-se a partir daí uma série de
problematizações e questionamentos sobre nossa pesquisa – considerando suas
possibilidades e limites. Sobre o urbano. Sobre a cotidianidade. Sobre as brincadeiras de
rua e mesmo a produção da infância na metrópole contemporânea.
No entanto, se a deriva é ação e também um modo de conhecimento, foi por esse
modo que se agiu em campo. E então se derivou. Se não construindo situações
propriamente ditas, mas realizando vivências e contatos que seriam impossíveis sem o
conhecimento da teoria da deriva. Que nos propôs a refletir as próprias sensações frente
ao que se viveu nesses dias.
Assim sendo, apresentamos a seguir uma coleção de excertos das derivas
realizadas, uma espécie de relatório psicogeográfico, que visa construir um retrato da
Vila Mariana – de hoje e de ontem. Um retrato de como fomos apresentados a este
espaço. De como o apreendemos. E de como o problematizamos motivados por nossas
questões e por outras que ali surgiam.
Primeira deriva:
O dinheiro é pouco, a sede é grande e os preços também
Logo de saída, já deixando um pouco para trás a Estação Ana Rosa do Metrô e
debaixo de um sol escaldante, sem café ou almoço, pois saíra cedo de casa – e talvez
não começasse exatamente aí a deriva? – descendo pela rua Joaquim Távora decido
comer e beber algo antes de começar a caminhar pelo bairro. Logo lembrei: aqui as
coisas são bastante caras. Ou melhor, Joaquim Távora abaixo, até onde eu me lembro,
51
nem mesmo há alguma padaria, tendinha ou barraca que me venda quitutes e bebidas
por um preço que eu julgue justo pagar.
É preciso dar meia-volta.
Paro logo na rua Domingos de Moraes, de intenso comércio, formal e informal,
e compro um copo de açaí por R$3 – uma nova tendência do comércio informal pelas
ruas de São Paulo. Leite condensado e amendoim? Não, só açaí mesmo. E granola, por
favor. Obrigado.
Mais ou menos alimentado, volto a descer pelo bairro da Vila Mariana,
observando os carros, alguns ônibus, e da calçada, meio tímido, os altos preços
cobrados para comer por ali. Preços diferentes para públicos diferentes.
Um colecionador à moda nova e uma antiga moradora
Ainda na rua Joaquim Távora resolvo parar numa casa que nunca parara antes.
Quantas vezes passei por ali em direção a Mário Cardim e não me dei conta do quão
poderia ser importante um entrevista ou mesmo uma simples conversa?
Alemão brinquedos
Vendo-compro-troco
Brinquedos usados – antigos e coleções
Pago à vista – avalio e retiro no local
Alemão é um colecionador de brinquedos – não mais como os colecionadores
que descreveu Walter Benjamim (2002). Compra, guarda e revende toda qualidade de
brinquedos antigos, uns mais raros, outros menos: as primeiras bonecas negras a ser
comercializadas no Brasil. A boneca Amélia. O banco imobiliário e o Jogo da vida.
Uma Monark BMX – não, essa não está à venda; segundo o próprio comerciante, esta
foi conseguida através de uma reportagem veiculada num jornal da grande imprensa, na
qual ele próprio dissera que sempre quis ter tido a tal BMX, mas nunca pôde, em função
do preço da bicicleta, até que um antigo dono, supostamente comovido com o caso,
vendeu-a por um preço simbólico.
Sou por ele bem recebido, não sem um assédio um tanto persistente por
brinquedos velhos. Você já foi criança. Gosta de brinquedos. Estuda isso pelo que diz.
Deve ter algum. Não quer vender? Você estuda e aproveita para fazer dinheiro!
52
Vale lembrar que pensamos as brincadeiras de rua na metrópole paulistana e a
partir destas a cotidianidade e suas determinações pelos conteúdos da urbanização.
Além dos longos e interessantes comentários acerca dos muitos brinquedos naquelas
prateleiras, a visita à loja-garagem nos rendeu bons frutos quanto à brincadeira de rua
daquele lugar. Alemão, morador antigo da região, não do bairro – fazia questão de dizer
que foi nascido e criado na Aclimação e na Liberdade – tinha algo a dizer. Todos têm.
Sabe onde eu brinquei? Na construção do metrô! Subindo e descendo andaimes.
Dando saltos no ar antes de cair nos montes de areia. Também nadei num lago que tinha
aqui atrás, nos fundos de uma casa dum velhinho meio ranzinza. Antes tinha muita
criança na rua, há uns trinta ou trinta e cinco anos. Diferente de hoje. Mas se você quer
saber mesmo da história daqui, tem que conversar com a Dona Jaci, a vizinha aqui do
lado. Tem uns setenta e tantos. Nasceu aqui e mora aqui até hoje.
Vou conversar com ela.
Interrompi a varreção da calçada. Mas Dona Jaci não se importou. Pra dizer a
verdade até me surpreendi com a calma e eu mesmo é que pensei em estabelecer um
diálogo curto desta vez e, numa outra oportunidade, retornar. Breve – acometido não sei
pelo que, não queria estender aquela oportunidade por muitos minutos. Como assim? Eu
mesmo não entendia. Outras tarefas, outros tempos. As tarefas e o tempo de todos os dias.
Numa das mãos a vassoura e noutra uma tesoura enferrujada pra tirar o mato que
cresce entre as placas de cimento da calçada. Aqui já foi bem diferente filho. Era tudo
paralelepípedo; até o antigo matadouro lá embaixo. Trabalhava ali mesmo no
laboratório do outro lado da rua, que hoje é um prédio abandonado. Se brinquei na rua?
Muito! Até demais. Levei palmada demais também... menina não podia ficar tão na rua
assim não! Naquele tempo... – pensava em que condições propiciavam o que hoje não
existe mais, pelo menos não como generalidade, a não ser na memória daqueles que
brincaram nas ruas da Vila Mariana noutro tempo.
Nas palavras de Dona Jaci a infância nostálgica. A família patriarcal. A
sociedade machista. Um outro estágio da urbanização e da reprodução do capital em
São Paulo.
Estacionamentos e simulacros entre prédios e sobrados
Após as conversas com os dois moradores continuo pela rua Joaquim Távora,
atravessando os cruzamentos com as ruas Humberto I e Rio Grande.
Paro em frente a um estacionamento. O primeiro de muitos que seriam vistos.
53
Do outro lado da rua um sobrado antigo. Do lado do estacionamento um prédio
bastante grande. Comercial. Continuando pela rua observo uma série de restaurantes e
bares voltados ao público classe média e classe média alta. Restaurantes mexicanos.
Restaurantes japoneses. Cervejarias. Pizzarias. Atendentes baianos, pernambucanos,
piauienses, mineiros. Todos estabelecimentos recriados sob uma atmosfera intimista que
parece querer transparecer uma vida de bairro no que fora um dia quintais, fundos de
casas e casarões antigos. Tentativa fracassada.
Implosão de uma antiga vida de bairro que não mais tem um espaço-tempo para
existir, a não ser enquanto simulacro do que foi um dia.
Imagem 7: Sobrado ainda residencial na rua Joaquim Távora. Data: Dezembro de 2010. Autor: Diogo Marciano.
54
Imagem 8: Restaurante mexicano em um antigo sobrado. Data: Dezembro de 2010. Autor: Diogo Marciano.
Empreendimentos imobiliários: a construção de novos apartamentos e as casas velhas
de janelas fechadas e mato no quintal
Tomo a travessa Albino R. da Costa e saio na rua França Pinto continuando pela
mesma até o final. Próximo à avenida Ibirapuera e à praça Soichiro Honda. Já estou
bem perto do Parque Ibirapuera e do Centro Olímpico, também perto do Instituto
Biológico. No caminho percebo muito mais pessoas andando pelas ruas. Uns pequenos
comércios, como por exemplo, mercearias e bares. Eis um lugar no qual eu poderia
comer e beber com o consentimento do meu bolso – anoto na agenda. O bairro ganha
um pouco de um ar residencial. Até avisto algumas crianças com suas mochilas indo e
vindo da escola, passando pelas ruas.
Próximo ao final da rua fotografo um conjunto de casas que me chamou a
atenção. Parece algo como uma antiga vila industrial.
Tira foto por que? Foi multado? Não, na verdade sou estudante, e estou fazendo
uma pesquisa sobre o bairro. A senhora mora aqui. Não, ninguém mora. É de uma
empresa. Tudo? Tudo. Mas não são casas? Ninguém mora aí. Na verdade, acho que é do
governo. É isso. É tudo do governo.
Mais tarde descubro que, de fato, não se tratava de uma vila industrial, e sim, de
propriedade estatal. Trata-se de uma antiga vila militar, na qual já não mora gente
alguma há bastante tempo.
E no final da rua duas construções. Dois prédios residenciais. Para os carros uma
boa localização: próximo a avenidas de fluxo rápido que ligam tudo a qualquer coisa.
55
Promessa de lazer garantindo e sem preocupação – dizem as placas e os promotores do
empreendimento.
Sigo em frente depois de uma demorada olhada na construção. Olhando o
horizonte cortado pelos prédios, não intencionalmente acabo parando no encontro da rua
Sena Madureira com a rua Mário Cardim. Nunca tinha estado nesse trecho da rua antes.
Imagem 9: Antiga vila militar nas proximidades do Instituto Biológico. Atualmente imóveis ociosos. Dezembro de 2010. Autor: Diogo Marciano (durante a redação deste trabalho iniciou-se um processo de reforma desses imóveis, no entanto, não tivemos acesso a informações mais detalhadas).
Imagem 10: Empreedimento imobiliário de médio padrão, ainda em construção, situado próximo à pça. Soichiro Honda. Dezembro de 2010. Autor: Diogo Marciano.
56
Máquina no bolso e caderno na mochila
Subo a rua Mário Cardim por entre prédios, casas luxuosas e seguranças.
Algumas caçambas na rua e algumas poucas pessoas. Todas trabalhando. Inclusive eu.
Quando me aproximo do trecho por mim conhecido da rua, sinto-me
desconfortável. O caderno em mãos e o lápis atrás da orelha resolvi guardar. Também a
máquina fotográfica. Não quero tirar fotos e parecer invasivo – pelo menos não agora;
mas haveria de ser diferente noutro momento qualquer para o pesquisador em campo?
Tampouco ficar anotando coisas ali na frente de todos. Paro num bar para tomar uma
Coca-Cola. R$2. Pode pegar. O abridor está pendurado ao lado da geladeira.
Ao analisar o espetáculo, fala-se de certa forma a própria
linguagem do espetáculo, ou seja, passa-se para o terreno
metodológico dessa sociedade que se expressa pelo espetáculo. Mas o
espetáculo nada mais é que o sentido da prática total de uma formação
econômico-social, o seu emprego do tempo. É o momento histórico
que nos contém (DEBORD, 1997:16).
Acabo o refrigerante e resolvo não fazer uma pausa tão longa por ali. Meu
objetivo neste instante era conhecer mais daquele fragmento de metrópole. Andar por
ruas que não tinha estado antes, ou tinha, e perguntar-me como fui parar ali. O que
oprimia e o que convidava. O que era tedioso e o que era inesperado. Como se
constituíram noutro tempo o bairro e aquelas ruas. Que questões me apareceriam. Que
práticas sócio-espaciais enxergaria por ali.
Homogeneização e fragmentação entre casarões, prédios e vielas
Próximo à praça da Bíblia na Rua Madre Cabrini mais casarões, sobrados e
estacionamentos. Casas com aspecto de abandonado. Muitas com placas: aluga-se.
Começo a voltar para a rua Domingos de Moraes.
Antes, uma viela com casas pobres numa ladeira bastante íngreme, o que fora
muito provavelmente há décadas uma ribanceira. De um lado e de outro prédios altos
que fazem com que o sol não entre mais por ali.
Na frente de um dos prédios um morador um tanto sisudo me interpela – deduzo
que é morador do mesmo, pois balança as chaves fazendo sinal para que o funcionário
da portaria abra o portão. Fotos pra que? Quem é você? O que quer? Tem como se
57
identificar? Pra uma pesquisa. Um estudante. Fazer um estudo sobre o bairro. 5684117.
Entendido. Sabe como é, não é mesmo? Sei sim. Ouso perguntar o porquê das
perguntas. Não obtenho sucesso.
Manifestações diversas do esgarçamento do público e dos sentidos da rua.
Desigualdade e segregação – pela habitação, pelos olhares, pelos preços, pela
propriedade.
Imagem 11: Viela e casas cercadas pelos grandes prédios e pela classe média. Dezembro de 2010. Autor: Diogo Marciano.
Imagem 12: Prédios residenciais na rua Me. Cabrini, vizinhos à viela da foto anterior. Dezembro de 2010. Autor: Diogo Marciano.
58
Segunda deriva:
Por cima ou por baixo: negócios, negócios e negócios
Ônibus (ida e volta): R$ 6.
Ônibus e metrô (ida e volta): R$ 8,98.
Antes de sair de casa é preciso calcular e escolher bem o caminho. Mensurar o
tempo, os gastos, enfim, as possibilidades de trajeto. Que não são muitas.
Mas não é de hoje que os negócios do transporte condicionam a mobilidade dos
citadinos e desenham a cidade de modo fragmentário e em favor da reprodução do
capital. Poderíamos pensar no caso da construção da linha 1 Azul do Metrô (Jabaquara
– Santana; que hoje segue até o Tucuruvi) e da valorização dos terrenos ao seu entorno,
não depois de sua inauguração, mas já durante as construções do Metrô, e ainda antes, a
partir do anúncio da sua construção. E poderíamos tomá-lo a partir da Vila Mariana, que
foi um dos bairros atingidos por esse processo de especulação imobiliária – e entre as
possíveis questões perguntar: por que ali e não em outro lugar? E quanto aos dias atuais:
por que se construiu uma estação da Linha 2 Verde do Metrô na Chácara Klabin, um
bairro que apresenta maior movimento de construção de prédios ao seu entorno do que
de pessoas no bairro utilizando-se desse meio de transporte?
Segundo alguns jornais e relatos dos moradores mais antigos da Vila Mariana,
com a chegada do metrô nos 1970 passa a ser transformado gradual e definitivamente o
perfil do bairro: acentua-se o preço dos imóveis. Cresce a população. Alavanca-se o
caráter comercial – deixa a Vila Mariana de existir enquanto bairro?
O jornal O Estado de São Paulo publica em sua edição de 06 de Fevereiro de
1994: Infra-estrutura é um dos atrativos do bairro: Vendas rápidas interessam empresas.
Por sua vez a edição de 07 de Junho de 1997 do jornal O Diário Popular traz a
seguinte notícia: Metrô muda perfil da vila Mariana. E ainda:
Vila Mariana, na Zona Sul, perdeu há muito tempo suas
características de área residencial. Os edifícios substituíram as
primeiras casas e o metrô, na década de 70, foi responsável por várias
transformações que aconteceram nos últimos anos.
Mas podemos regressar ainda mais no tempo.
Em determinados aspectos, o espaço urbano que tomava forma na Vila Mariana
no final do século XIX já levava em conta a propriedade privada e a valorização de
59
determinados lotes de terra em sua formação. E também pela via dos negócios do
transporte.
Já em 1886, um ano antes da inauguração do novo Matadouro Municipal, era
inaugurada a linha da Companhia Carris de Ferro da Capital a Santo Amaro, que saía e
voltava do bairro da Liberdade em direção àquela província, passando pela Vila
Mariana, e carregando principalmente lenha e carne verde, além de mais dois vagões de
passageiros. No largo da Vila Mariana a empresa instalou uma estação além de suas
oficinas de reparos que antecedia uma bifurcação no caminho: dois ramais um em
direção ao bairro do Cambuci e daí até a baixada do Glicério, nas proximidades do
Mercado Municipal, e o outro que seguia até o Matadouro Municipal – que no ato da
inauguração da linha encontrava-se ainda em construção. Além, é claro, do caminho até
Santo Amaro (MASAROLO, op. cit.).
Na planta da cidade de São Paulo produzida por Gomes Cardim, que data de
1897, podemos observar em negrito o percurso acima relatado (a planta a qual nos
referimos pode ser vista como um todo no Anexo 1).
60
Vila Mariana, Vila Clementino e trecho da Linha da Companhia Carris de Ferro
da Capital a Santo Amaro em 1897
Fonte: Planta geral da capital de São Paulo: organizada sob a direção do Dr.
Gomes Cardim (1897) In: São Paulo Antigo: plantas da cidade. Comissão do
IV Centenário da cidade. São Paulo: 1954.
61
A Companhia Carris de Ferro da Capital a Santo Amaro funcionou até o ano de
1900, quando foi então arrematada pela companhia estrangeira Light – que então
passou, mas não sem demora, a realizar o percurso até o centro da cidade com seus
bondes elétricos.
Parece-nos que a presença da Light na compra da Ferrocarril e na futura
administração dos bondes na Vila Mariana fez parte de um momento específico da
urbanização da cidade de São Paulo, o qual segundo Seabra (1987) foi marcado pela
forte presença de capitais estrangeiros no setor produtivo, na construção de infra-
estrutura urbana e mesmo de bairros inteiros, como é o caso dos bairros jardins nas
proximidades do rio Pinheiros projetados pela Cia City.
Depreendemos daí que, até o início do século passado ficaram os moradores da
Vila Mariana exclusivamente dependentes dos serviços de transporte coletivo da
Ferrocarril (e posteriormente da Light) e também das companhias de bonde Bom Retiro
e Bela Vista (MASAROLO, op. cit.). E quando da abertura da rua José Antonio de
Coelho, que encurtava o percurso até Pinheiros, um grupo de empresários propôs em
projeto à Câmara a instalação de uma linha de bondes que ligasse a Vila Mariana ao
referido bairro, segundo Masarolo para a valorizar as terras de sua propriedade, aquelas
empresas de imediato se opuseram ao projeto alegando que este seria danoso aos seus
interesses.
Segue as Atas da Câmara que registram a decisão tomada nesse embate:
A Comissão de Justiça, examinado a petição da Companhia do
Bom Retiro e Bela Vista, chama a atenção da Intendência para o
contrato celebrado entre ela e o Governo para a constituição de linhas
de bondes, alegando que a petição de Abílio Soares, Jorge Eisemback
e José Antônio Coelho de uma linha de bondes para a Vila dos
Pinheiros e na rua Ângelo de Abreu, na Vila Mariana, ofende o direito
da peticionaria, porque essa linha irá passar por algumas ruas que
serão servidas pela peticionaria e outras do seu contrato.
A Comissão de Justiça, examinando a petição da Companhia
Carris de Ferro São Paulo a Santo Amaro, é de parecer que a linha de
bondes pedida por Jorge Eisemback, José Antônio Coelho e Abílio
Soares vem lesar direitos, porquanto seu contrato diz, no artigo 12 que
“durante o prazo, de privilégio não se concederá a outras linhas para
62
as baixadas do Matadouro” (Atas da Câmara – 1890 apud
MASAROLO, 1971: 68-69).
Aqui é possível discernir a sobreposição do privado ao público já no século XIX.
Cristalizada no espaço. Bem como a articulação de capitais junto ao poder público
fazendo desde já da cidade um grande negócio. Podemos pensar que desde o final do
século XIX esses negócios do transporte davam forma à cidade. Ligando e valorizando,
ou não, os lugares uns aos outros.
Vale ainda notar que, naqueles tempos caminhando-se ao lado da linha da
Ferrocarril,
Seguindo pelo espigão rumo à cidade, depois dessa rua [rua
José Antônio Coelho] encontrava-se a chácara de “D. Marianne”, da
família do Engenheiro Alfredo Kuhlman [superintendente da linha da
Companhia Carris de Ferro São Paulo a Santo Amaro] (MASAROLO,
1971: 64).
Lembramos que, ainda segundo o autor, as terras próximas à linha da
Companhia, e também as próximas ao Matadouro e aos largos Ana Rosa e Vila Mariana
foram as primeiras dali, mais precisamente nas primeiras décadas do século XX, a
receber melhoramentos urbanos tais como, água encanada e energia elétrica, que já há
tempos eram desfrutados pela elite paulistana, formada em grande parte pelos barões do
café, na extensão da avenida Paulista, no centro da cidade e em bairros como os
Campos Elíseos e Higienópolis (Idem, Ibidem).
Frente a esses condicionantes, e sobre o alto preço de 700 ou 500 réis por
pessoa, o bairro da Vila Mariana era ligado à cidade.
Uma passagem de primeira classe custava então 700 réis, e a de
segunda classe, 500. Depois de substituídos os trens pelos bondes, a
Cia Light conservou os mesmos preços até o ano de 1947 (BERARDI,
1969: 85).
Ainda segundo Masarolo (op. cit.) o elevado preço das passagens era o maior
fator para que a maioria da população da Vila Mariana, então formada por operários e
trabalhadores ligados ao Matadouro Municipal, pouco fosse ao centro da cidade. Fato
63
que, em certa medida, se considerarmos as franjas do urbano na metrópole
contemporânea e a custosa ida dos seus moradores até as novas centralidades, persiste
até os dias atuais.
Imagem 13: antiga estação da Vila Mariana na década de 1890. Situada onde hoje se encontra o Terminal de ônibus e a Estação de Metrô da Vila Mariana. Fonte: Fundação energia e Saneamento.
Outras formas refuncionalizadas e em especial o Matadouro Municipal
Além das casas e sobrados tornados restaurantes e ateliês, outras formas re-
funcionalizadas também chamam a atenção. É o caso do velho sítio que virou Parque
Modernista. E do velho Matadouro Municipal, que funcionou de 1887 até 1927, tornado
sede da Cinemateca Brasileira no ano de 1992 – mesmo ano em que o edifício foi
tombado pelo CONDEPHAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico,
Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo).
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Imagem 14: prédio do antigo Matadouro Municipal da Vila Mariana. Atual Cinemateca Brasileira. Data: Março de 2011. Autor: Diogo Marciano.
Algumas poucas pessoas adentram nesses dois equipamentos culturais na Vila
Mariana. Pergunto ao segurança da Cinemateca se o movimento é sempre assim. Quase
sempre. Mais tarde fica um pouco mais movimentado. O que tem muito aqui é
pesquisador e excursão de escola – é o que me responde.
Mas, especialmente aqui, o que mais nos interessa desta forma é o seu passado.
E é a partir dela que podemos conhecer um pouco mais da formação do bairro da Vila
Mariana. Nos idos de sua relação com a metrópole. Isto é, como se deu no final do
século XIX o caso do remanejo do Matadouro Municipal.
Contam os relatos de Antônio Egidio Martins e a reportagem do antigo jornal
“Correio Paulistano” que:
As águas do tanque do Matadouro Público que corriam no
Anhangabaú, que então atravessava o largo do Bixiga, hoje do
Riachuelo [atual Pça. da Bandeira (NE)], na Ponte Lucena (Piques),
na da Abdicação, na ladeira do Acu [atual trecho inicial da Av. São
João (NE)] e próximo ao Mercado de São João e na Ponte do Miguel
Carlos, na rua Florêncio de Abreu, exalavam, em certas horas do dia,
um cheiro insuportável, sendo este um dos motivos que fez com que a
Câmara resolvesse mudar o Matadouro da rua Humaitá, para o que
mandou construir outro na Vila Mariana (MARTINS, 2003: 153).
Novo Matadouro:
65
Realizou-se ontem a inauguração do novo Matadouro, sito no
arrabalde da Villa Mariana.
As 2 da tarde partio da rua Vergueiro um comboio da
Companhia Carris de Ferro de Santo Amaro, conduzindo o exmo.
Presidente da província, vereadores, representantes da imprensa,
outras pessoas gradas e uma banda de música, chegando todos ao
novo Matadouro as três horas e um quarto.
Depois de terem percorrido o edifício e examinado os diversos
aparelhos, os convidados assistiram à matança de gado bovino e suíno
pelo sistema mais aperfeiçoado, mostrando-se todos satisfeitos pelos
resultados dos respectivos processos (Correio Paulistano, edição de
06/01/1987 apud ANGLIMANI, 1999: 24).
Pode-se observar que, o que por um lado fora expulso com urgência, por outro,
ou melhor, pelo mesmo, fora recebido com festa.
Segundo Masarolo (op.c it.) e Angrimani (op. cit.) o binômio formado pelo novo
Matadouro Municipal e pela Companhia Carris de Ferro da Capital a Santo Amaro foi o
maior responsável, na época, pelo adensamento urbano e pelo crescimento considerável
da população da Vila Mariana.
Imagem 15: composição da Companhia Carris que seguia até o Matadouro Municipal pelo ramal que saia depois da estação da Vila Mariana para fazer o transporte da carne verde. Data: final do século XIX. Fonte: Fundação Energia e Saneamento.
Durante esse período de inaugurações deslocou-se para a Vila Mariana um
grande contingente de imigrantes, principalmente italianos, oriundos da região do Sul da
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Itália e que antes tinha se estabelecido até então no bairro do Bixiga, nas imediações do
antigo matadouro. A maioria destes imigrantes formou a famosa categoria dos tripeiros
– trabalhadores que comercializavam os miúdos do gado abatido no matadouro,
levando-os de carroça por todo bairro e mais além, como por exemplo, até o bairro da
Saúde ou até o bairro dos Pinheiros (MASAROLO, op. cit.).
Visto o crescimento da capacidade de abate do Matadouro, o que animou a
categoria dos tripeiros, mais imigrantes chegavam à região, incentivados pelos que já ali
haviam se assentado. No entanto, nem todos seriam tripeiros. Muitos seriam
empregados de uns poucos proprietários, também italianos, nas pequenas oficinas e
fábricas que se constituíram também associadas ao matadouro: Os curtumes. A fábrica
de Sabão. A fábrica de banha. As oficinas dos sapateiros. Além das olarias, da fábrica
de cera, e dos armazéns e padarias que então abasteciam os moradores do bairro
(MASAROLO, op. cit. e ANGRIMANI, op. cit.).
Pensamos que esse remanejo do Matadouro Municipal, então localizado numa
região bastante próxima ao centro da cidade, de onde corriam para os córregos que
atravessavam a região central todos os insumos das atividades do matadouro, para a
Vila Mariana, local ainda um tanto distante do centro, considerada até então como
subúrbio, pode ser entendido a partir do processo de valorização dos terrenos e imóveis
do centro da cidade, bem como do espraiamento dessa região. Processo fundamentado
na função de captação privada da riqueza socialmente produzida que desempenha a
propriedade privada da terra, a partir da constituição de um mercado de terras na cidade
de São Paulo (SEABRA, 1987).
O remanejo do matadouro, ao nosso ver, parece então evidenciar um momento
da relação entre a Vila Mariana e a cidade de São Paulo, na medida em que a
reprodução desta forma da propriedade privada, constituindo desde já um dos
fundamentos que sustentará a metrópole (SEABRA, 1987, 2003), envolveu nesse caso
tanto o centro da cidade quanto a Vila Mariana.
Quanto a este tema, segundo Seabra (1987), ainda que na São Paulo da virada do
XVIII para o XIX começassem a se constituir circuitos propriamente urbanos de
riqueza, visto a participação da agricultura paulista no comércio colonial, é somente em
meados do século XIX que se pode observar uma disputa acirrada pela propriedade da
terra na cidade com fins mercantis. A partir de então,
67
A terra começara já a assumir funções econômicas, que se
expressam no seu preço como equivalente geral da riqueza [...] De um
ponto de vista social, significa permitir que uma fração da riqueza
social circule remunerando a propriedade da terra (Idem, Ibidem: 28).
Ainda segundo a autora é a partir da década de 1870 que a cidade conhece um
ritmo mais intenso de crescimento e, em função disto, uma maior valorização dos
terrenos no centro da cidade e também das áreas do seu entorno mais próximo.
Por fim, se os processos e movimentos aqui expostos e sucintamente abordados
não são suficientes para afirmar com precisão a possível ligação entre o caso do
remanejo do Matadouro Municipal para a Vila Mariana e os processos de especulação
imobiliária que valorizavam a região central da cidade, pensamos que ao menos podem
levantar tal possibilidade, e ainda, mostrar-nos um momento especifico, e contraditório,
da urbanização de São Paulo: o entendimento de um mesmo elemento (o Matadouro
Municipal) enquanto um empecilho à modernização e urbanização de São Paulo, posto
mesmo como um símbolo de atraso, concomitante ao entendimento do mesmo elemento
enquanto um dinamizador da urbanização na Vila Mariana, posto mesmo como um
símbolo de progresso para o então recém-formado bairro.
Para o alto e avante!
Não é preciso andar muito pelas ruas do bairro para encontrar um grande
empreendimento imobiliário entre as casas e os sobrados mais antigos. Acabado. Novo.
Em construção. Ou na planta – com corretores, maquetes, e modelos de apartamentos
decorados no local em que o prédio será erguido.
Aluga-se: R. Vergueiro (comercial) 1.800m². 15 vagas. R$ 90.000.
Aluga-se: R. Vergueiro (comercial) 88m². R$2.300.
Vende-se: R. Humberto I. 160m². 3 dormitórios. 2 vagas: R$ 1.007.000.
Vende-se: R. Rio Grande. 86m2. 3 dormitórios. 2 vagas: R$ 840.000.
Vende-se: R. Joaquim Távora (comercial). 348m². 6 vagas: R$ 1.200.000.
Vende-se: R. França Pinto. 260m². 4 dormitórios. 2 vagas. R$ 1.600.00
Aluga-se: R. França Pinto (comercial) 300m²: R$ 4.000.
Vende-se: R. Morgado de Mateus. 209m². 3 dormitórios. 4 vagas: R$ 2.000.000 22.
22 Todas informações obtidas no sítio virtual Lopes: o shopping de imóveis do Brasil (http://www.lopes.com.br/), anteriormente à realização da segunda deriva aqui relatada.
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Estando na Vila Mariana para qualquer lado que se olhe: prédios. Pergunto a
alguns moradores que passam pelas ruas o que pensam sobre isso. Os mais antigos
reclamam que o bairro não comporta tantas pessoas que mudaram para lá nas últimas
décadas, e, principalmente, que não conhecem mais ninguém por ali.
Esse aumento populacional observado nas impressões dos moradores mais
antigos pode também ser observado na tabela abaixo. Destacamos o grande crescimento
populacional entre os anos de 1950 e 1980. E também uma queda entre os anos de 1990
e 2000, explicada possivelmente pelo aumento, cada vez maior, da função comercial do
bairro e pela especulação imobiliária que lança às alturas o preço dos imóveis na região.
Evolução demográfica da Subprefeitura da Vila Mariana e de seus distritos
1920 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010
São Paulo
579.033 1.326.261 2.198.096 3.781.446 5.924.615 8.493.226 9.646.185 10.434.252 11.253.503
Vila Mariana
117.436 201.477 278.005 351.605 336.758 313.036 344.632
Moema 33.988 49.620 57.375 72.162 77.340 71.276 83.368
Saúde 29.011 63.139 104.872 136.221 126.596 118.077 130.780
Vila Mariana
23.358 43.100 54.437 88.718 115.758 143.222 132.822 123.683 130.484
Fontes: IBGE – censos demográficos de 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010. SMDU – Histórico demográfico do município de São Paulo, 2007. PMSP – O transporte coletivo na cidade de São Paulo, v. 1 e 2, 1943 ( Biblioteca do Arquivo Público da PMSP).
Nota-se que já vem de longa data esse processo de verticalização e de
especulação imobiliária. Que desde os tempos da construção da Linha 1 Azul do Metrô
só se intensificou (COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO, 1986)
Em 1994, baseado em pesquisa realizada pela EMBRAESP (Empresa Brasileira
de Estudos do Patrimônio), o jornal Estado de São Paulo publica em sua edição do dia
06 de Fevereiro uma matéria que mostra a Vila Mariana como o segundo bairro –
diríamos: fragmento de metrópole ou localidade – em que mais se construiu
empreendimentos imobiliários em toda a metrópole no ano de 1993. Observa-se o
quadro reproduzido no jornal:
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Atuação do mercado em Vila Mariana no ano de 1993
O bairro é o 2º lugar na capital nos seguintes itens:
Empreendimentos lançados: 28
Investimento nos novos empreendimentos: US$ 180,72 milhões
Número de blocos lançados: 51
Número de apartamentos lançados: 1.432
Área total lançada: 256.89 mil (m²)
Fonte: EMBRAESP
E atualmente podemos ainda observar a Vila Mariana entre as localidades que
tiveram maior aumento de preço por m² em toda a cidade. Tornando-a, ou melhor,
confirmando-a, enquanto um das mais caras para se morar. É o que publicou
recentemente o jornal Folha de São Paulo em sua edição do dia 06 de Julho de 2011:
Perdizes (zona oeste), Saúde (zona sul), Penha (zona leste),
Tucuruvi (zona norte), Vila Mascote (zona sul), Itaim Bibi (zona
oeste), Vila Mariana (zona sul), Mooca (zona leste), Guarulhos e
Diadema (Grande São Paulo).
Essas foram, respectivamente, as dez regiões da Grande São
Paulo que mais tiveram valorização de metro quadrado na comparação
de janeiro a maio deste ano com igual período de 2010, segundo dados
da imobiliária Coelho da Fonseca.
Angrimani (op. cit.) chamou todo esse processo de terrorismo imobiliário. Para
os moradores da região esse momento manifestou-se num embate com as construtoras,
que segundo consta em relatos colhidos pelo autor, usavam todo o tipo de estratégia
para expulsar os antigos moradores e comprar o maior número possível de casas térreas
– sob preços abaixo do mercado – a fim de construir novos empreendimentos. Ainda
segundo os relatos colhidos pelo autor, em meados dos 1980, os próprios moradores da
região identificaram esse processo de verticalização enquanto a perda do sol
(ANGRIMANI, 1999: 60-61).
Segundo Carlos (2004) a intensificação cada vez maior desse processo de
especulação imobiliária definindo os movimentos da urbanização e os conteúdos da
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produção do espaço na metrópole pode ser inteligível a partir do movimento de
desconcentração industrial e centralização de capital na metrópole paulistana.
Na medida em que os custos da produção aumentam consideravelmente na
metrópole, seja pelo preço do solo urbano, pelos altos impostos, e pela dificultosa
circulação de pessoas e mercadorias, as indústrias passaram a deslocar-se da metrópole
em direção ao interior a fim de baixar esses custos e arrematarem uma melhor colocação
no mercado em relação à concorrência (CARLOS, 2004). Ainda segundo a autora, tal
movimento acaba por um lado extinguido uma porção de postos de trabalho na
metrópole, e por outro, na medida em que a demanda por emprego aumenta, isto é, o
número de desempregados, acaba também por impulsionar a precarização do trabalho,
seja pela via do aumento do emprego informal, ou então pela terceirização dos postos de
trabalho. Ambos comprometendo direitos trabalhistas antes assegurados.
Esse comportamento sinaliza um movimento de passagem do capital produtivo
para o capital financeiro (Idem, Ibidem: 52).
E para a realização deste capital financeiro o espaço é posto como condição e
exigência da acumulação. Daí o estabelecimento de relações específicas entre a
iniciativa privada e o Estado que aparecem sob a forma do planejamento urbano:
garantindo tanto a infra-estrutura urbana necessária à realização e à maior capitalização
dos novos empreendimentos imobiliários, quanto a (des)regularização de legislações
que permitirá a construção destes empreendimentos em diversas áreas da metrópole.
Por tanto,
O deslocamento da indústria na metrópole e o crescimento do
setor terciário revelam a primazia do capital financeiro que vai se
realizar, no momento atual, como processo de produção de um espaço
específico. Este fato pode ser percebido por meio da mobilidade do
capital-dinheiro que deixa de direcionar-se, preferencialmente, para a
produção de mercadorias – na indústria – para voltar-se à produção do
espaço, como mercadoria passível de geração de lucros maiores do
que para o setor industrial, em crise (Idem, Ibidem: 58).
Assim, a especulação imobiliária que envolve entre outras áreas também a Vila
Mariana, bem como a crescente função do bairro para o comércio e os serviços, já
observada há algumas décadas, podem ser consideravelmente elucidadas na medida em
71
que se observa na metrópole, dentro do contexto do movimento do capital industrial ao
capital financeiro, a generalização da produção do espaço enquanto mercadoria. Ainda
nas palavras da referida autora: enquanto produto imobiliário (Idem, Ibidem: 60).
Nesse sentido, a proposição de projetos urbanísticos para o bairro e para a favela
Mário Cardim não estaria inserida nestes já não tão novos negócios – como foi o caso
da tentativa de implementação do projeto Bairro Universitário pela UNIFESP, e ainda a
Mário Cardim alçada à condição de ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) pela
Prefeitura do Município de São Paulo, segundo o Plano Diretor Estratégico23? A fim de
dar continuidade ao processo de especulação imobiliária e da alta de preço dos imóveis
da região, que ganhariam a maquiagem e a forma de projetos comunitários e de
melhorias na infra-estrutura do bairro, bem como de urbanização de áreas chamadas de
risco, e elevação do que se chama qualidade de vida aos moradores da Mário Cardim –
que supostamente seriam os maiores beneficiados.
Do outro lado do muro
Ao contrário do que pode parecer em todo esse processo de especulação
imobiliária e verticalização, apontado mais acima, que atinge não só a Vila Mariana,
mas estrategicamente muitas outras localidades da metrópole, o que se coloca à venda
não são simples imóveis. Aglomerados de concreto, aço e vidro. O que as grandes
empresas do ramo, construtoras, incorporadoras e imobiliárias vendem é antes um
urbanismo (LEFEBRE, 2001). Uma concepção de espaço-tempo manifestada enquanto
prática e enquanto ideologia.
O projeto dos promotores de venda se apresenta como ocasião e
local privilegiados: lugares de felicidade numa vida quotidiana
maravilhosa e miraculosamente transformada [...] a sociedade de
23 O projeto Bairro Universitário idealizado pelo arquiteto Luiz Laurent Bloch junto a SEMPLA, e a ser implementado pela UNIFESP sob o comando do então reitor Ulisses Fagundes Neto, em parceria com a Prefeitura do Município, ainda não chegou a ser implementado inteiramente. Segundo o próprio ex-reitor, fatores políticos, desinteresses dos que o sucederam e o fim do período do seu mandato impediram a realização do projeto, que tinha como principais objetivos: a reorganização espacial da UNIFESP no bairro, com cursos, turmas e serviços cada qual localizado em diferentes prédios e quarteirões e com isso a readequação de uma área de 48 quarteirões e 22 ruas; a instalação de uma rede wi-fi gratuita por todo o bairro, a instalação de equipamento de coleta seletiva na favela Mário Cardim, além de um acompanhamento médico e social junto aos moradores. Não tivemos acesso ao projeto senão pelas palavras do ex-reitor e pelas notícias veiculadas em alguns poucos veículos de imprensa, dentre eles, o jornal do bairro “Pedaço da Vila”.
72
consumo traduz-se em ordens: ordens de seus elementos no terreno,
ordem de ser feliz (LEFEBVRE, 2001: 25).
Próximo ao encontro das ruas Mário Cardim e Sena Madureira é possível escutar
vozes de crianças brincando. Do outro lado do muro. Risadas. Uma bola que bate na
parede. O som de um mergulho na piscina. Só é possível ouvir. A fronteira estabelecida
entre esses edifícios e a rua não permite mais que isso. A cena se repete na rua França
Pinto e no Largo Senador Raul Cardoso, num condomínio bem em frente à Cinemateca.
Por de trás dos muros, das cercas vivas e dos fios de alta tensão a (prometida e suposta)
felicidade.
Entre vozes que brincam e ouvidos que atentam dar-se-ia um encontro? Um
embate? Quantas vezes as crianças desses condomínios e as da Mário Cardim cruzaram-
se em seus caminhos? Seria ainda possível o encontro entre os diferentes na metrópole?
Um encontro entre vozes e ouvidos?
A vida urbana em sua potência parece esboroar-se desde a infância.
Crianças, caminhos e destinos
É final de semana. Os fluxos são menos intensos. Alguns antigos moradores às
portas e os restaurantes e bares uns mais lotados outros bem menos – às moscas os que
se dedicam a servir almoço ao pessoal que por ali trabalha de Segunda à Sexta. Mesmo
assim a Vila Mariana ainda me parece um tanto vazia. Pela Joaquim Távora apenas um
ônibus mais ou menos cheio. Passo direto pela Loja do Alemão.
Caminhando encontro mais crianças nas ruas do que em outras vezes que por ali
passara. Mas são situações distintas: afinal, hoje é final de semana.
Vejo crianças com roupas novas e, aparentemente caras, caminhando com seus
pais. Três, quatro, cinco famílias. Ouso perguntar a uma delas, aonde vão: No SESC. À
outra: no Museu do Inseto, ali no Instituo Biológico, sabe? E ainda a uma outra mais
tarde: na Cinemateca.
Já pela tarde encontro uns grupos de crianças nos arredores da Mário Cardim.
Na verdade deparei-me com dois grupos. Os primeiros pareceram-me não ter mais que
quinze ou dezesseis anos. Já o segundo, arriscaria que todos tinham menos de doze, no
máximo treze. Pra onde vão: dar uma volta no Shopping. Comprar o que? Nada. Olhar.
Pra onde vão: a gente tá procurando pipa nos fios. Pra não precisar comprar.
Mais tarde chego na Mário Cardim e ali fico por um tempo.
73
Por toda a extensão da Rua de Lazer, e um pouco mais, crianças jogando bola,
brincando de boneca, empinando pipa e fazendo rabiola. Andando de bicicleta.
Brigando. Encostadas nos muros conversando. Ajudando os pais no trabalho.
Trabalhando.
***
Pudemos ver acima, momentos históricos e lógicos da constituição e da
produção do espaço da Vila Mariana. Momentos e elementos que nos dão a idéia de
como o bairro se constituiu em relação à cidade e a metrópole, bem como das
determinações deste espaço sobre as práticas sócio-espaciais dos seus moradores e
transeuntes. O Matadouro Municipal e a Cinemateca. As primeiras e pequenas
indústrias. Os imigrantes italianos. A Companhia Carris de Ferro da Capital a Santo
Amaro. A Cia Light. O Metrô. Os casarões antigos. As vielas escondidas entre os
prédios e os grandes empreendimentos imobiliários. A especulação imobiliária em
vários momentos da história da cidade. A refuncionalização de objetos no espaço. A
financeirização do capital e o crescimento do setor dos serviços. A segregação sócio-
espacial e a auto-segregação. A espetacularização da violência e o medo. O
esvaziamento das ruas e o esgarçamento do público. O esboroamento da vida urbana. A
mobilidade das centralidades e periferias.
Observamos que atualmente a Vila Mariana constitui uma certa centralidade
para a região Sul de São Paulo, bem como para outros pontos na periferia da metrópole
que aparecem ligados a ela através de linhas de ônibus e pelo metrô – por exemplo, não
é pequeno o número de moradores de Pirituba que se deslocam até a Vila Mariana no
superlotado 917H/10 Terminal Pirituba–Vila Mariana a fim de chegarem no local de
seus empregos ou à procura de serviços de saúde e lazer, públicos ou privados.
Concentrados aos montes na região mas nem para todos acessível. Esse aspecto é um
constituinte da forma urbana: a simultaneidade e a reunião de coisas e pessoas
(LEFEBVRE, 2001, 2008a). Ainda que o encontro possível entre pessoas esteja distante
de sua efetividade – no entanto, guardado em sua virtualidade. Para tanto agem
simultaneamente forças centrípetas e centrífugas.
Assim tal centralidade manifesta-se na Vila Mariana constituindo a região
enquanto um centro do emprego, dos lazeres, da informação, dos equipamentos
culturais e dos de saúde, dos negócios imobiliários, da riqueza. Por outro lado, viu-se
que nem sempre foi assim. Essa centralidade foi historicamente construída e se
74
antigamente o bairro não dispunha de tal posição nada garante que futuramente ainda
disporá.
E como já adiantado no início deste capítulo: a Vila Mariana é ainda mais. Essa
centralidade não se traduz de modo homogêneo por todo o bairro.
Seu contrário, ou seja, sua periferia, encontra-se (também) aquém das franjas do
urbano na metrópole e dos trabalhadores que de lá se deslocam determinados pelos
turnos dos seus empregos. Ela está na própria Vila Mariana.
A Favela Mário Cardim e a necessidade de se contar sua história
José do Rego Costa – como se dizia num tempo não muito distante: homem de
propriedades – foi dono da famosa Loja China, no centro da cidade, e de um terreno nas
baixadas da Vila Mariana no qual se encontrava o depósito daquela loja. Também se
tornou proprietário de um imenso terreno ao lado e acima deste outro. Comprou-o de
Costabille Galucci, e nesta nova propriedade, ainda no primeiro quartel do século XX,
mandou construir e vendeu noventa e seis casas.
A Loja China comercializava diversos produtos, entre eles, velas e fogos de
artifício, mas no ano de 1927 seu depósito situado na rua Mário Cardim, por onde ainda
passava a céu aberto o córrego do Sapateiro, foi arruinado por um incêndio de grandes
proporções. Do antigo galpão lá instalado só restara os destroços.
Em meados do 1960 com tal desfecho e em função de dívidas com o poder
público a propriedade do terreno é passada ao INPS (Instituo Nacional de Previdência
Social). Feito o negócio, e retirado o pouco dos escombros que ainda restara do antigo
imóvel, o terreno foi tornado ocioso e a partir de então, sem muito demora, ocupado por
famílias de migrantes vindos do Nordeste do país que passavam a fazer valer a função
social de moradia daquela parcela de espaço. Tomavam posse do terreno doze famílias
cada qual com seu barraco.
Assim surgia a favela Mário Cardim24.
Atualmente ocupando um terreno de cerca de 7,5 mil² e abrigando mais de
quinhentas famílias a favela constituiu-se enquanto um enclave na Vila Mariana.
Pouquíssimo, ou quase nada, se sabe de sua história e das de seus moradores.
Realidade maquiada pelas estatísticas oficiais e pelos altíssimos índices
24 Informações colhidas em campo junto aos moradores da Vila Mariana e da favela Mário Cardim. Ainda sobre a história da formação da favela tivemos acesso às memórias de Francisco Villano, ou Seu Chiquinho, barbeiro e morador do bairro há mais de oitenta e cinco anos, publicadas no jornal “O Pedaço da Vila”.
75
socioeconômicos do bairro – retrato da classe média alta – e desapercebida pelos
transeuntes e motoristas apressados e de passagem. Muito do que se ouve dos demais
moradores do bairro é um misto de preconceito e de medo.
Dentre todo o período que abrangeu nosso trabalho, a única pesquisa sobre o
lugar que conhecemos e tivemos acesso foi a realizada pelo programa Pró-qualidade de
Vida (PQV) da Universidade Federal de São Paulo UNIFESP, sob a coordenação da
psicóloga Maria Cristina Copabianco. A fim de diagnosticar as principais demandas
sociais das famílias ali residentes realizou-se uma pesquisa empírica em 2006 que
apontava, entre outros resultados, para: índices extremamente altos de baixa
escolaridade, alta taxa de desemprego e de trabalho informal, baixíssima renda familiar,
e a não utilização dos equipamentos urbanos disponíveis, como parques e centros
culturais, pelos moradores da favela (ver Anexo 2).
Imagem 16: Favela Mário Cardim. Fonte: Jornal Pedaço da Vila. Junho de 2007.
76
Tal quadro nos levou a pensar na inserção desses moradores no urbano. E a
problematizar essa situação a partir dos termos da urbanização crítica, isto é, da
impossibilidade do urbano para todos (DAMIANI, 2000 e 2009).
A argumentação acerca da urbanização crítica, elaborada por Damiani, parte da
consideração da limitação da inserção da força de trabalho no mercado nas grandes
cidades, bem como da consideração da propriedade da terra capitalizada como o
fundamento do desenvolvimento dessas cidades (DAMIANI, 2009).
Nesse sentido, ao situarmos a favela Mário Cardim em relação ao papel da
metrópole no mundo contemporâneo imergimos em três complexos analíticos que
Damiani (2009) nos propõe para a problematização dos processos modernos que
envolvem a produção do espaço e que culminam na urbanização crítica. E o fizemos na
medida em que a partir do estudo dos referidos complexos tratados pela autora pudemos
também discerni-los em nossas pesquisas e trabalhos de campo.
O primeiro deles é a crise do trabalho contida na crise do capital.
Grande parte dos trabalhadores da favela Mário Cardim atuam no trabalho
informal. Muitos são catadores de material reciclável ou trabalham em bares e
lanchonetes da região, como garçons ou manobristas. Também há muitas empregadas
domésticas na Mário Cardim. E ainda há os que mantêm dois ou mais empregos, devido
à baixa remuneração dos referidos cargos. Todos trabalhos informais. De contratos
temporários. Apalavrados. Terceirizados. Ou autônomos mesmo, como é o caso dos
catadores.
Quanto a estes últimos, sua presença no bairro é a mais discutida. Até já se
estabeleceu um projeto com o poder público que disponibilizou grandes caçambas para
a coleta de material reciclado, como por exemplo, o papelão, por toda a extensão da rua
Mário Cardim aonde se situa a favela. Ainda ficou estabelecido que o lixo reciclável de
prédios da UNIFESP fosse retirado por esses mesmos catadores. Tais medidas estão
inseridas no contexto do Projeto Bairro Universitário – que atualmente está estacionado.
No entanto, alguns moradores contam que o principal motivo da
disponibilização das caçambas é evitar a “sujeira” que tanto incomodava os vizinhos, os
de uma vila particular ao lado, e de dois prédios residenciais à frente, bem como para
conter possibilidade de insurreições contra a precariedade das condições de habitação na
favela. Mas isto, até o estabelecimento da Mario Cardim enquanto ZEIS (Zona Especial
de Interesse Social).
77
A edição nº 21 de Setembro de 2003 do jornal “O pedaço da vila” retrata a cena:
O terreno da Vila Mário Cardim por anos foi palco de diversas
brigas entre os moradores e o governo quanto à reintegração de posse.
A rua era constantemente fechada com lixo e entulho em forma de
protesto. A situação só ficou tranquila em 2002, quando o espaço foi
incluso no Plano Diretor Regional do Município, como Zona Especial
de Interesse Social (ZEIS).
Segundo Damiani (2009) estaríamos diante da manifestação da crise do trabalho
posta como desemprego maciço. Que leva à procura e a inventividade de outros e
quaisquer postos de emprego, que já não mais contam com direitos básicos dos
trabalhadores segundo a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), como por exemplo,
décimo terceiro salário, aviso prévio, férias remuneradas e seguro-desemprego. Trata-se
da precarização do trabalho. Seja pela via da informalidade. Seja pela via da
terceirização.
No entanto, a crise do trabalho está antes contida na própria reprodução do
capital. Inerente à própria relação contraditória estabelecida entre suas categorias neste
processo. O que, segundo Damiani (2009), produzirá uma nova economia de
sobrevivência, buscando-se o trabalho em todos e quaisquer tempos e espaços. Seja em
função da menor necessidade de emprego de mão-de-obra na produção de uma
mercadoria, em vista de novas tecnologias investidas no processo de produção. Seja
pela ampliação de setores que já não demandam per si a aplicação de tal massa de
trabalho, ou então, no contexto da financeirização da metrópole, expressa, por exemplo,
na expansão do setor de serviços e no deslocamento de indústrias a outras localidades.
Vale notar que durante o período em que a pesquisa foi realizada o quadro de
empregos da Mário Cardim foi mudado. Segundo seus moradores, o número de
catadores diminui consideravelmente e algumas das empregadas domésticas atualmente
dedicam-se a outras profissões, e isso após a realização de cursos de esteticista, de
técnico em radiologia, entre outros.
No entanto, ressaltamos que o que mudou foi o quadro dos empregos. E não o do
trabalho.
78
O segundo complexo é a cidade enquanto local privilegiado da produção
mercantil do espaço e da realização da metamorfose do capital produtivo em capital
financeiro.
Como vimos mais acima, havia se tornado comum o protesto dos moradores da
favela Mário Cardim quanto à precariedade de suas habitações, sob vários aspectos,
inclusive o da legalidade, já que em tratando-se de uma ocupação mediante posse não
havia a possibilidade de garantia de que esses moradores, a qualquer momento, não
fossem despejados de suas casas.
Cícera – conhecida Ciça – moradora da favela Mário Cardim e presidente da
Associação dos Moradores “Mãos Unidas” relata que até hoje só não houve uma
desocupação da favela pelo fato de que ao comprador do terreno ficaria o encargo das
indenizações para as famílias que dali seriam removidas, o que tornava a compra por
demais custosa. Ainda segundo a moradora, o terreno, que já foi a leilão por diversas
vezes, nunca sendo arrematado, teve pela última vez seu preço estipulado em
R$10.000.000,00 (dez milhões de reais). Pensa a moradora que se alcança esse preço
em função do tamanho e da localização do terreno.
Mas o temor de uma expropriação parece ter se findado com a inclusão da Mário
Cardim a partir do Plano Diretor Estratégico como uma ZEIS (Zona Especial de
Interesse Social). Mais precisamente uma ZEIS do tipo I, que abrange favelas e
loteamentos precários.
A ZEIS 1 – C012 (VM) é a que abrange a favela Mário Cardim, segundo conta
no quadro 04B do livro XII – anexo à lei nº 13.885, de 25 de agosto de 2004, que
estabelece complementaridades ao Plano Diretor Estratégico do Município e institui os
Planos Regionais Estratégicos para as Subprefeituras (ver Anexo 3).
Segundo o Plano Diretor Estratégico as ZEIS I são:
áreas ocupadas por população de baixa renda, abrangendo
favelas, loteamentos precários e empreendimentos habitacionais de
interesse social ou do mercado popular, em que haja interesse público
expresso por meio desta lei, ou dos planos regionais ou de lei
especifica, em promover a recuperação urbanística, a regularização
fundiária, a produção e manutenção de Habitações de Interesse Social
– HIS, incluindo equipamentos sociais e culturais, espaços
79
públicos, serviço e comércio de caráter local. (São Paulo Lei nº
13.340, 2002: 130).
Segundo consta ainda no Plano Diretor Estratégico:
a aprovação de qualquer empreendimento deverá observar as
normas, índices e parâmetros definidos para a Zona de Uso Z2 pela
legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo vigente na data da
aprovação desta lei, acrescida da permissão para aprovação do uso R2-
02, garantida a destinação de, no mínimo, 70% (setenta por cento) da
área construída total para Habitação de Interesse Social - HIS em cada
lote ou gleba, excetuados dessa exigência os lotes regulares que já
apresentem área igual ou inferior a 250 m² (duzentos e cinqüenta
metros quadrados), na data da aprovação desta lei (São Paulo Lei nº
13.340, 2002: 135).
A partir de tal estabelecido O Jornal “Pedaço da Vila” publicou na sua edição nº
84 de Junho de 2009:
Isto significa que a antiga área ocupada só deve ter destinação
de habitação social. E nada de caráter comercial poderá ser implantado
em detrimento da referida moradia carente, independente do terreno
ser ou não particular.
Nas palavras de Cícera: “a Mário Cardim recebeu com festa a notícia”.
Contudo, os moradores não se enganam. Segundo alguns, a alçada da favela à
condição de ZEIS teria como fundamento valorizar a região, antes mesmo da melhoria
das condições de vida deles próprios. Seria como se a urbanização da favela fosse um
álibi para uma valorização ainda maior dos imóveis do bairro – e principalmente os
mais próximos da favela.
Segundo as próprias palavras de um dos moradores da favela Mário Cardim:
“Ninguém quer a gente aqui. Abrem a janela e olham pra favela. Acham a gente feio
(risos)”.
Pensamos que tal movimento de especulação imobiliária deve ser entendido, tal
como visto mais acima (CARLOS, 2004), no contexto da financeirização do capital na
80
metrópole, que se mostra a partir da desconcentração industrial e da concentração de
capitais.
Tais processos nos levam a pensar sobre os fundamentos em que se assentam os
projetos de urbanização ou revitalização postos para a favela Mário Cardim e para o
bairro da Vila Mariana. Falamos tanto da implantação da ZEIS quanto da tentativa de
implantação do projeto Bairro Universitário.
Não teriam estes o desenvolvimento urbano como a forma, mas a produção do
espaço enquanto mercadoria como conteúdo? Condição e expressão de um momento
atual da reprodução do capital na metrópole.
Desse modo, se por um lado a ZEIS estabelece uma possibilidade real de
melhoramento quanto à habitação dos moradores da favela Mário Cardim, mas o
fazendo por meio da reposição da propriedade privada e do solo urbano, por outro,
estabelece uma condição ainda maior para investidores extraírem mais lucro dos amplos
negócios urbanos e ainda valoriza consideravelmente os imóveis da região para a venda
e para a locação, inserindo-os em novos processos de especulação imobiliária. Em certo
ponto, o mesmo pode ser dito a respeito do Projeto Bairro Universitário, na medida em
que entre seus principais objetivos figuram, por exemplo, uma reforma paisagística e a
instalação de uma rede wi-fi por todo o bairro – não é demais lembrar que, segundo o
jornal “Pedaço da Vila” dentre os moradores da favela Mário Cardim, que está toda
inserida no projeto, apenas 10% fazem uso de computadores.
Segundo Damiani, ao mesmo tempo em que a cidade torna-se um local
privilegiado para a produção do espaço enquanto mercadoria torna-se também um
espaço de negação do homem, espaço do habitat em detrimento do habitar, espaço dos
negócios. Espaços de dezumanização do sujeito social e individual (DAMIANI, 2009).
Ainda segundo a autora, esse movimento indica que a cidade aparece a nós enquanto
sujeito no contexto da urbanização como negócio. E nesse sentido,
Deslocar o sujeito na direção do processo de urbanização
significa que todos os espaços e tempos sociais são absorvidos pelo
processo do capital. O espaço como um todo move-se,
economicamente, segundo as necessidades da economia urbana,
voraz, inteiramente baseada na urbanização como negócio. Sob esse
fundamento, da economia urbana, não há como identificar um sujeito,
senão aquele imanente à própria economia desumanizadora [...] Dizer
81
que o habitar se transforma em habitat, significa dizer que o habitante
não é o sujeito, mas o negócio imobiliário o é, e todas as suas
extensões econômico-políticas (DAMIANI, 2009: 47. Destaque
nosso).
Por fim, o terceiro complexo proposto por Damiani é a profunda destituição da
humanidade do homem também enquanto a naturalização do humano.
A autora discerne e discute também esse complexo enquanto um processo
constituinte e revelador dos conteúdos da urbanização, e isso a partir da análise da
construção do Rodoanel Mário Covas. E em certo momento apreende o problema
manifestado na cidade de São Paulo a partir da conceituação de Lefebvre acerca do
espaço instrumental, isto é, neste caso numa ação de neutralização do social pela
natureza-natural, realizada neste espaço planejado e projetado pelo Estado com fins à
reprodução do capital.
Nesse contexto, entre a crise social e a crise ambiental toma-se partido desta
última em detrimento da primeira, relegando pessoas a um fator de importância
secundária. No entanto, termos como “sócio-ambiental” ou “desenvolvimento
sustentável” obscurecem estratégicamente essa escolha política e os reais fundamentos
das crises expressas.
Pensamos que tais processos também se manifestam na Mário Cardim. Um tanto
sutis e não sem suas especificidades. Até 2006 a maioria dos seus moradores não
dispunha de água encanada nem de tratamento de esgoto, que em parte, corria a céu
aberto.
Abaixo se vê, a partir da perspectiva do espaço instrumental, a representação
desses problemas vividos pelos moradores da favela:
O abastecimento destas ocupações [favelas e áreas invadidas]
é feito clandestinamente pelos moradores que furtam água do sistema
de abastecimento, gerando perdas de água e de faturamento. O
esgotamento é feito a céu aberto trazendo impactos negativos à saúde
e ao meio ambiente. A realidade social instaurada neste contexto
composto, na maioria das vezes, por pessoas com índice
vulnerabilidade social entre 5 e 6 evidenciam um complexo campo de
atuação.
82
As ligações regulares localizadas na rua principal (Dr.Mário
Cardim) abasteciam as demais famílias da comunidade. Essas ligações
eram tarifadas como favela permitindo a cobrança de até 22m3 por
economia quando o consumo médio em 2006 era de aproximadamente
43,4 m3. O índice de inadimplência era alto (SABESP, 2009: 1-2).
O quadro acima relatado pela SABESP (Companhia de Saneamento Básico do
Estado de São Paulo) é um dos motivadores da ação local do projeto “Córrego Limpo”
– realizado em conjunto entre o governo do Estado e a Prefeitura. Na edição de
Dezembro de 2007 do Boletim da Subprefeitura da Vila Mariana está publicado:
Não fossem as obras de interligação do córrego Sapateiro, que
passa pelo parque Ibirapuera, ao interceptor Pinheiros, cerca de 400
litros de esgoto por segundo continuariam sendo lançados às águas. A
obra foi executada pela SABESP, que aplicou ali R$20 milhões. O
córrego Sapateiro faz parte do Programa Córrego Limpo, realizado em
parceria entre a Prefeitura e o governo do Estado.
Imagem 17: estação de tratamento de esgoto do Córrego do Sapateiro antes deste desaguar no Lago do Ibirapuera. Julho de 2011. Autor: Diogo Marciano
Imagem 18: Córrego do Sapateiro já limpo e dentro do Parque do Ibirapuera. Julho de 2011. Autor: Diogo Marciano.
83
É no contexto dessa política pública que está inserida a chegada de serviços de
saneamento básico para todos os moradores da favela Mário Cardim. Entre a
recuperação de lucros para a SABESP e a despoluição de um cartão postal da cidade.
É ainda o referido documento da SABESP que aponta, de forma um tanto clara,
para o resultado da ação:
Os resultados obtidos contribuíram para a redução de perdas,
aumento do faturamento e tiveram uma importância sócio-ambiental
considerável para as famílias e para o Córrego do Sapateiro.
Com esta ação pudemos visualizar um caminho para a
regularização do abastecimento em áreas de ocupação irregular e
mensurar resultados sociais, ambientais e empresariais que apontam
para a sustentabilidade (SABESP, op. cit.: 2).
A ordem do dia é: a sustentabilidade.
Pensamos ainda que, na sucinta análise desse processo, pode-se observar a
produção de novas raridades, tal qual trata Lefebvre (2008). A água aparece como
escassez a todos. E para a população mais pobre da cidade, enquanto uma mercadoria
ainda mais custosa.
Por fim, o que tentamos nessa abordagem foi situar a favela Mário Cardim não
só em relação à Vila Mariana, mas também em relação aos processos mais gerais que
envolvem a metrópole no atual quadro de reprodução do capital. Desse modo, nosso
esforço caminhou na direção, tal qual sugere Damiani (op. cit.), da análise desses
processos objetivados na metrópole e das suas manifestações no plano do vivido dos
que nela vivem ou nela tentam sobreviver.
Processos manifestados simultaneamente na precária inserção dos moradores da
Mário Cardim no mercado de trabalho. Na precariedade de suas residências, na
segregação sócio-espacial do bairro e na natureza do habitat na cidade dos negócios. Na
chegada do saneamento básico com um atraso de pelo menos três décadas, e só
enquanto um meio para um outro fim.
É desse modo que o urbano está posto aos moradores da favela.
É assim que ali se vive a metrópole. Enquanto periferia – ainda que se esteja num
centro.
84
Programa instituído e o cotidiano da Rua de Lazer Mário Cardim
A Rua de Lazer é um logradouro público que aos Domingos e feriados, em
horário determinado, é fechado para a realização de atividades esportivas e recreativas –
denominadas e compreendidas enquanto lazer.
Sua implantação e funcionamento estão previstos em lei desde meados dos 1970
e para a implementação do programa em determinado local, segundo consta nos
documentos oficiais, os interessados devem apresentar à Secretaria Municipal dos
Esportes, Lazer e Recreação (SEME): consentimento via abaixo-assinado de dois terços
dos moradores do logradouro indicado ao programa e um croqui do local.
Após a feitura do pedido é obrigação da SEME realizar uma vistoria no local,
que não deve comportar: igreja, hospital, pronto-socorro, velório e cemitério,
estacionamento coletivo, linha regular de ônibus, pontos de táxis ou feiras livres. Após
essa primeira vistoria um outro órgão, o Departamento de Operação do Sistema Viário
(DSV), realizará ainda uma outra, a fim de inspecionar o trânsito local. Então com os
pareceres positivos de ambos os órgãos os moradores deverão organizar-se num
conselho que ficará responsável pelo gerenciamento das atividades da Rua de Lazer
(SÃO PAULO, 1980: 13 [ver Anexo 4]).
Ao findar desse processo burocrático a Rua de Lazer é então implementada.
Segundo a Prefeitura do Município de São Paulo, a cidade conta atualmente com
novecentas e trinta e duas ruas de lazer. Oito dessas localizadas na Subprefeitura da Vila
Mariana. E entre estas, desde 2004, a Rua de Lazer Mário Cardim – contando ainda esta
última com uma reativação em 2008; fato curioso é que não consta em nenhum
documento oficial a sua desativação anterior a esta última data, quando então o vereador
Dalton Silvano, do PSDB, em vésperas de eleições municipais, tratou de re-oficializar a
referida rua de lazer (comparar os documentos do Anexo 5).
09-6666/07 – Reativação da rua de lazer na R. Mário Cardim – Vila Mariana.
Oficie-se (SÃO PAULO, 2008: 83)25.
Abaixo se vê na imagem aérea a favela Mário Cardim e a extensão da Rua de
Lazer homônima: da esquina com a rua Rio Grande até a esquina com a rua Napoleão
de Barros. 25 Ainda quanto ao caso desta suposta reativação da rua de lazer, não é despretensiosamente que lembramos que 2008 foi um ano de eleições municipais, no qual, aliás, Danton Silvano reelegeu-se vereador do Município de São Paulo, não sem antes pulular o bairro da Vila Mariana com suas “benfeitorias”, e entre elas a estranha reativação da Rua de Lazer Mário Cardim, que desde 2004 nunca deixou de estar em atividade – perguntamos quantos casos parecidos com este teriam acontecido naquele ano?
85
Favela e Rua de Lazer Mário Cardim
No mapa abaixo é possível visualizar a distribuição das Ruas de Lazer na cidade
de São Paulo. Subdivididas em subprefeituras – no entanto, ao observamos as
subprefeituras de Santo Amaro, de São Mateus e a da Sé não veremos o referido
fenômeno cartografado; e isto não porque não existam Ruas de Lazer nestas
Subprefeituras, mas porque a SEME e as respectivas Subprefeituras não dispõe desses
dados atualizados.
86
87
Ruas de Lazer na Subprefeitura da Vila Mariana
Logradouro Bairro
rua Aziz Jabour Maluf Saúde
rua Guaíra, 45 Saúde
avenida Irerê, 1225 Saúde
rua Engº João M. da Gama, 46 Saúde
avenida José Maria Whitaker x
rua Mauro, 226 fundos
Saúde
rua Mario Cardim, 02 Vila Mariana
rua Santa Rita do Passa-Quatro,
31
Vila Medeiros
rua Santo Irineu x avenida Prof
Abrahão de Morais, 1800
Saúde
Fonte: Prefeitura do Município de São Paulo: Secretaria
Municipal dos Esportes, Lazer e Recreação. Organização:
Diogo Marciano
Vale notar que o programa Rua de Lazer não surge em um contexto econômico,
político e social qualquer.
Entre os 1960 e o final dos 1970 cresceram exponencialmente as pesquisas
científicas a respeito do lazer em resposta a uma demanda crescente tanto de agentes
privados quanto do Estado, o que revela uma estratégia sobre esse específico campo.
Um exemplo deste momento, além da própria criação da Rua de Lazer, é a encomenda e
o financiamento das pesquisas de Joffre Dumazedier pelo SESC (Serviço Social do
Comércio) (ANTAS JR, 1995).
As pesquisas tinham como principal preocupação a
instrumentalização do tempo livre com o objetivo da manutenção do
status quo, ou seja, para que este não acabasse se tornando um
desagregador social no sentido de que os trabalhadores, fora do
ambiente (disciplinador) de trabalho, pudessem buscar o ócio que
segundo esta vertente, é um elemento da vida social que só pode levar
à ruína moral dos homens (Idem, Ibidem: 13).
88
No entanto vale também notar que, se é na segunda metade do século XX que o
Estado e o capital se articulam mais sistematicamente a fim de constituir o lazer
enquanto um momento de controle, este não é seu momento de surgimento, tampouco o
primeiro momento de preocupação destes agentes quanto ao que se chama de tempo
livre dos trabalhadores. Em São Paulo, no início do século XX, a construção das vilas
operárias foi uma resposta para as questões sobre o que a classe operária faria em seu
tempo livre, dentre outros problemas postos pela burguesia para a otimização da
produção nas fábricas.
Abaixo reproduzimos o discurso do empresário Jorge Street, proprietário de uma
fábrica de tecidos na Zona Leste da capital e idealizador da Vila Maria Zélia:
“Em redor da fábrica mandei construir casas para a moradia
dos trabalhadores, com toda a comodidade e conforto da vida social
atual (...) depois um grande parque com coreto para concertos, salão
para representações e baile; escola de canto coral e música, um campo
de football; uma grande igreja com batistério; um grande armazém
com tudo o que o operário possa ter necessidade para sua vida, (...)
uma sala de cirurgia-modelo e uma grande farmácia (...) uma escola
para os filhos de operários e creches para lactantes (...). Consegui,
assim, proporcionando também aos operários distração gratuita
dentro do estabelecimento, evitar que freqüentem bares, botequins e
outros lugares de vício, afastando-os especialmente do álcool e do
jogo” (RAGO, 1987: 178. Destaque nosso).
Não nos enganemos frente à filantropia do empresário – que em certa medida se
assemelha com aquele discurso que identifica o menor e preparava-o para o trabalho,
visto no capítulo anterior e que atravessa décadas nas políticas públicas. Estamos diante
de um discurso que é o registro de um momento no qual a ordem do dia na cidade era a
higienização social, o cultivo dos valores burgueses da família e mais uma tentativa de
formação de um ethos para o trabalho, além do fato de que as vilas operárias continham o
ideal de desarticular, e pelo espaço, a classe trabalhadora, segregando-a em localidades
cindidas da cidade (Cf. ANTAS Jr, 1995, RAGO, 1997, SANT’ANNA, 1994).
Mas voltemos para o contexto correspondente ao surgimento do programa Rua
de Lazer: marcado pelo surgimento de uma sistematização dos saberes sobre o lazer e
por uma crescente industrialização e urbanização da metrópole de São Paulo. E vale
89
lembrar que num momento político de ditadura militar no Brasil – um momento de
repressão política, de intensificação e extensão do tempo de trabalho e de arrocho
salarial. Segundo Antas Jr. (op. cit.) estes foram elementos que convergiram para a
construção de uma política pública do lazer, e que são de grande importância para o
discernimento do que representa este momento específico do cotidiano, ou seja, neste
caso contextualizado, o lazer enquanto um misto de reivindicação popular e de domínio
do Estado e do capital sobre o tempo livre dos indivíduos. Elementos que revelam duas
reivindicações distintas, mas não conflitantes:
A organização dos trabalhadores com o objetivo de conquistar
um melhor nível de vida (no local de trabalho ou moradia) e o
crescimento demográfico que as cidades conheceram conforme a
industrialização expandia e diversificava seus ramos, contribuiu para
as transformações na produção do espaço urbano que passou a
compreender funções distintas: zonas residenciais, industriais,
comerciais e também recreacionais.
O aprimoramento das relações sócio-espaciais na cidade
também foi possível porque paralelamente às lutas operárias, a
tecnologia estava sendo desenvolvida a cada dia por “reivindicação”,
desta vez do capital, para manter crescente as taxas de acumulação,
contribuindo assim para o processo de mundialização das relações
sociais e econômicas. Por tanto, os reclamos da sociedade não eram
plenamente estranhos às necessidades da acumulação (ANTAS, JR,
op. cit.: 85. Destaque nosso).
Desse modo, a produção de espaços específicos e funcionais ao lazer, públicos
ou privados, responderam a uma dupla demanda: a da classe dos trabalhadores e a da
reprodução do capital. Espaços específicos e funcionais que encontraram seu lugar no
contexto da produção do espaço, isto é, não na produção de coisas no espaço, mas na
produção do espaço mesmo enquanto coisa, permutável pelo equivalente geral,
contingente de velhas e novas contradições, produto mesmo de uma estratégia de classe
(LEFEBVRE, 2008b).
Ainda nesse contexto foi também significativa a intervenção do regime militar
para a formação de uma política pública para o lazer. Tanto no que concerne ao controle
e à tentativa de desarticulação de sindicatos e demais agremiações populares a partir de
90
sua vinculação aos clubes e centros esportivos públicos, o que por sua vez representava
mesmo mais um momento de vigia, coerção e contenção política daqueles, quanto à
veneração de um ethos atlético e guerreiro, e ao mesmo tempo dócil, que pode ser
observado na disciplinarização do lúdico, tão caro aos valores militares quanto à
necessidade de reprodução do trabalhador enquanto tal (ANTAS JR, op. cit.).
Isto implica menos na proibição, na recusa e censura às
brincadeiras e usos do tempo livre, do que no seu esquadrinhamento,
na sua normalização e organização, que dependem de uma atenção
mais apurada e assídua em relação aos usos do tempo livre, capaz de
proceder cirurgicamente separando, distinguindo seus vértices
ameaçadores daqueles que podem ser aproveitados produtivamente.
Gradativa e desigualmente, o que se chama de lazer durante os anos
setenta toma para si a missão de conhecer, investigar, diagnosticar e
tratar os usos do tempo livre a luz dos preceitos e das estruturas
institucionais vigentes (SANT’ANNA, 1988: 72-73 apud ANTAS JR,
1995).
É desse amálgama que surge a Rua de Lazer enquanto política pública. Em meio
a um acentuado processo de crescimento industrial e adensamento urbano.
Contraditoriamente num momento de acentuada exploração do trabalho. Na
possibilidade e necessidade de acumulação e reprodução do capital em novos setores.
Na opressão e repressão política. No crescente controle social. E na reivindicação (e
criação) de novas necessidades.
Quanto à implementação de tal programa no nosso estudo de caso, lembramos
que foi em 2004 que a Rua de Lazer foi solicitada junto à Prefeitura do Município de
São Paulo pela Associação de Moradores Mãos Unidas – que representa os moradores
da favela Mário Cardim. Tal solicitação foi concedida sem problemas após passar pelas
devidas averiguações e tramites burocráticos descritos mais acima.
Segundo os moradores, a idéia de transformar um trecho da rua Mário Cardim
numa Rua de Lazer surgiu após alguns membros da Associação Mãos Unidas tomarem
conhecimento do programa, e, principalmente, pela diagnosticada falta de espaços
apropriados para as crianças brincarem. Tal julgamento dos moradores contrasta com as
várias opções de lazer que a Vila Mariana oferece, como por exemplo, os shoppings e
os brinquedos eletrônicos, os restaurantes e lanchonetes fast food, os parques e museus
91
– todas apontadas e identificadas enquanto opções de lazer pelos próprios moradores.
Opções que, no entanto, não se constituem enquanto tais para esses, e que reproduzem a
segregação própria daquele espaço, isto é, entre os moradores da favela e os do restante
do bairro. Segregação reproduzida nesse caso seja mediante o pagamento para o
ingresso nestes espaços do lazer, ou então para o usufruto dos equipamentos dos quais
dispõem, ou ainda pelo estranhamento dos moradores da Mário Cardim a determinados
lugares, como por exemplo, aos museus e ao Parque do Ibirapuera – vale lembrar que
segundo o levantamento de dados realizado por uma equipe da UNIFESP (ver anexo 2),
62% do entrevistados, todos moradores da Mário Cardim, não freqüentam parque
algum; e também não é demais lembrar que no caso Parque do Ibirapuera, o mais
próximo da favela, não se toma um sorvete por menos de R$3, ou então uma água de
coco por menos de R$4. E ainda há de se considerar que falamos do lazer de uma
parcela da sociedade que muitas vezes faz hora-extra ou trabalha em dois ou mais
empregos, o que obviamente reduz o tempo-livre, tempo do qual se ocupa a indústria do
lazer.
É frente esse quadro, no qual o acesso ao lazer parece ser posto como uma
questão de classe, que a implementação da Rua de Lazer Mário Cardim ganha uma
dimensão de reivindicação. De uma conquista política dos moradores da favela. No
entanto, é necessário questionar: conquista do que? Poderíamos dizer conquista de um
espaço que lhes fora subtraído? De um lazer que lhes fora negado? Ou então, conquista
da parte que lhes restou da metrópole? Do que lhes coube do urbano? Isto se
considerarmos os processos da urbanização crítica que envolvem os moradores da
favela, ou ainda a decisão-permissão da Prefeitura em só efetivar uma Rua de Lazer
naquele logradouro mediante as condições de ali não haver estacionamento coletivo,
linha regular de ônibus, pontos de táxis ou feiras, e ainda por não comportar um grande
fluxo de trânsito de veículos na região. Em outras palavras: por não interferir na livre
circulação de pessoas e mercadorias pela metrópole.
92
Imagem 19: Placa que sinaliza a Rua de Lazer na esquina da rua Mário Cardim com a rua rio Grande. Data: Setembro de 2011. Autor: Diogo Marciano.
Para a sorte dos moradores, e principalmente das crianças da Mário Cardim, não
havia ali nenhum destes impeditivos.
Fato que nos permitiu observar a ocorrência de uma determinada prática sócio-
espacial: as brincadeiras de rua na metrópole de São Paulo. Observadas em pleno ato na
Rua de Lazer Mário Cardim; ainda que reduzidas a um certo trecho de rua e a
determinados dias e horários pré-estabelecidos pela Prefeitura do Município.
Bicicletas que carregam duas ou três crianças. Skates compartilhados que mais
parecem carrinhos de rolimã. Crianças olhando para o alto: aos fios e aos céus
capuxetas e pipas. Crianças olhando para o chão: na rua joga-se o taco e os futebóis do
modo que é possível jogá-lo; times formados por duas, três, quatro, cinco crianças que
chutam bolas de todo o tipo: de basquete, de vôlei, dente de leite, grandes, coloridas,
promocionais, em direção aos montes de pedregulhos ou chinelos que servem de trave.
Dia ou outro algumas jogam bolinhas de gude e rodam piões na calçada.
Esta é a resposta dada por essas crianças frente à negação daquele lazer
partilhado pelas classes médias da Vila Mariana. É a resposta delas mas também é uma
expressão das contradições do espaço produzido na metrópole. Observado no plano do
93
cotidiano. Na re-inventividade ocorrida aos Domingos e feriados e no confinamento, em
poucos metros e em pouquíssimos dias, dessa prática sócio-espacial tida como cada vez
mais rara no contexto metropolitano.
Mas, vejamos mais de perto isso que pudemos discernir e problematizar a partir
dessa tentativa de mergulho no cotidiano da Rua de Lazer Mário Cardim.
Comecemos por esmiuçar de onde vêm aquelas contradições, isto é, as
contradições do espaço, que aparecem para nós contidas na re-inventividade das
brincadeiras de rua e no seu confinamento na Rua de Lazer Mário Cardim.
Só podemos falar de contradições do espaço na medida em que o próprio espaço
passa a ser produzido. Mas, não produzido de qualquer modo, já que, tal como escreveu
Lefebvre (2008) toda a sociedade produz um espaço que lhe é característico. As
contradições do espaço emergem então quando o espaço passa a ser produzido sob a
lógica da acumulação capitalista. E enquanto mercadoria mesmo. Mas, não uma
mercadoria qualquer. Desse modo, por um lado o espaço reproduz e repõe as
contradições já inerentes ao capital, contidas na mercadoria, e por outro traz novos
embates e contradições à tona, as contradições DO espaço.
Capital/trabalho. Capital/salário. Capital constante/capital variável. Valor de
uso/valor. Produção social/propriedade privada. Campo/cidade. Periferia/centro.
Homogeneização/fragmentação. Construção/destruição. Abundância/raridade.
Pode-se dizer que a produção do espaço, repondo contradições antigas e fazendo
surgir novas contradições, responde à necessidade da reprodução das relações sociais de
produção. Num momento o qual a reprodução do capital é posta em cheque tanto por
suas imanentes crises internas, quanto pelas pressões políticas e enfrentamentos de
classes, e ainda pelos diagnósticos tecnocráticos e científicos a respeito da economia
política (LEFEBVRE, 2008b).
É possível situar essa importância do espaço para a reprodução das relações
sociais de produção a partir da análise de Lefebvre (Ibidem) acerca das mutações do
capital durante o século XX. Segundo o autor, para a reprodução do capital, ainda no
século XIX, bastava a reprodução dos meios de produção, como as máquinas e a força
de trabalho. Neste momento da história, para tanto, bastava ao espaço, à cidade (tomada
de assalto pela industrialização), as funções instrumentalizadas de produção e consumo.
No entanto, durante o século XX o capital passa a se defender num front muito
mais complexo, ao mesmo tempo duro e sutil, de difícil discernimento – pois posto no
campo cego. A saber: a reprodução das relações de produção (Idem, Ibidem).
94
Essa reprodução das relações de produção não coincide mais
com a reprodução dos meios de produção; ela se efetua através da
cotidianidade, através dos lazeres e da cultura, através da escola e da
universidade, através das extensões e proliferações da cidade antiga,
ou seja, através do espaço inteiro (Idem, Ibidem: 47-48).
Segue o autor:
Portanto, o espaço da produção, neste sentido amplo, implicaria
e conteria em si a finalidade geral, a orientação comum a todas as
atividades na sociedade neocapitalista. O espaço seria, desse modo,
uma espécie de esquema num sentido dinâmico comum às atividades
diversas, aos trabalhos divididos, à cotidianidade, às artes, aos espaços
efetuados pelos arquitetos e pelos urbanistas. Seria uma relação e um
suporte de inerências na dissociação, de inclusão na separação (Idem,
Ibidem: 48).
Portanto é somente na medida em que todo espaço torna-se espaço de produção
que o capitalismo pôde se manter. Estendendo-se por todos espaços e tempos (Idem,
Ibidem). Produzindo-o. Programando-o. Controlando-o.
Estamos assim diante da instauração da cotidianidade (LEFEBVRE, 1991,
2008b). E vale notar que, para observá-la e senti-la, não é preciso fazer viagem alguma
em direção a balneários e estâncias turísticas. Basta olhar a nossa volta.
Surgem, nesse contexto de produção do espaço e reprodução das relações de
produção, donde instala-se a cotidianidade a fragmentar e controlar o espaço-tempo no
urbano, espaços funcionais como os do habitat e do lazer. Conjuntos habitacionais e
condomínios fechados. Casa de campo e de praia. Clubes. Shoppings. Centros de
comércio. Praças e parques – que reproduzem enquanto representação uma específica e
urbana relação (bucólica) sociedade-natureza. Apartamentos com a promessa de lazer
total: espaços gourmet, piscina, brinquedoteca, quadras poliesportivas e playgrounds.
Novas escolas de tempo integral. Centros esportivos e ONGs.
Espaços que, enquanto estetismos (LEFEBVRE, 1991, 2008b), isto é, uma
costura pelo alto, idealizada e realizada por uma aliança entre capital e Estado, que tenta
remendar, dissimulando, os fragmentos funcionais do espaço e os da vida cotidiana num
95
já esgarçado tecido urbano, aparecem falsamente enquanto espaços dissociados da
produção. E isso:
a ponto dos espaços de lazeres parecerem independentes do
trabalho e “livres”. Mas eles encontram-se ligados aos setores do
trabalho no consumo organizado, no consumo dominado. Esses
espaços separados da produção, como se fosse possível aí ignorar o
trabalho produtivo, são os lugares da recuperação. Tais lugares, aos
quais se procura dar um ar de liberdade e de festa, que se povoa de
signos que não têm a produção e o trabalho por significados,
encontram-se precisamente ligados ao trabalho produtivo. É um típico
exemplo do espaço ao mesmo tempo deslocado e unificado. São
precisamente lugares nos quais se reproduzem as relações de
produção, o que não exclui, mas inclui, a reprodução pura e simples
da força de trabalho (LEFEBVRE, 2008: 49-50).
Pois bem. Em suma, e no nosso estudo de caso, entendemos a Rua de Lazer
Mário Cardim também enquanto um espaço do estetismo. Um espaço de domesticação.
Um espaço da reprodução das relações sociais de produção. Um espaço donde a partir
do ideário moderno de lazer instaurou-se e impera a cotidianidade – em um espaço-
tempo fragmentado, programado e controlado. Ainda que guarde uma certa dimensão de
reivindicação política dos moradores da favela frente ao Estado.
No entanto, ao tomarmos em nosso estudo a dimensão do cotidiano deste lugar,
para nós ganha importância o discernimento dos níveis do espaço concebido e do
espaço vivido para a análise das brincadeiras de rua aí observadas. Desse modo
dialetiza-se esse processo de programação e controle. E nessa dimensão, que é o
cotidiano, e nesse discernimento, entre concebido e vivido, aparecem fragmentos e
lacunas. Não comportados ou preenchidas totalmente pela cotidianidade.
“Há buracos, interstícios, pelos quais surge o mundo como obra,
a obra humana, e os lugares como obras. Novamente, o cotidiano,
como nível mais baixo, eleva-se no plano da obra humana. A vida
cotidiana, o lugar do simples e do sórdido, é, simultaneamente, o lugar
e o tempo em que o humano se realiza” (DAMIANI, 1999: 169).
96
O vivido, mesmo levado ao irrisório pelo concebido da vida,
continua porque senão é a morte! Nele está o irredutível,
transcendendo as coações, sem prescindir delas (SEABRA, 1996:12).
Então neste campo de tensionamentos que é o espaço, e nele o cotidiano,
discernimos a partir de nossos estudos sobre essa dimensão da Rua de Lazer Mário
Cardim o seguinte: o programa Rua de Lazer é por nós visto como o espaço concebido,
instrumentalizado, que tende e de fato se sobrepõe ao espaço vivido, que por sua vez é
por nós visto nas próprias brincadeiras de rua, ainda que naquela instrumentalização
concebida. Brincadeiras que são práticas sócio-espaciais componentes do vivido,
subjugadas pelo concebido, mas que ainda lhe escapam.
Ao problematizarmos nosso estudo de caso nesses termos, aparecem então
outros embates e outras contradições do espaço: propriedade/apropriação; e ainda
arriscaríamos dizer espaço/corpo.
Crianças que tomam o espaço do automóvel. Os vizinhos imediatos da Mário
Cardim que reclamam do bloqueio da rua (“por onde vai passar meu carro no final de
semana?!”) e de toda a algazarra. Brincadeiras que parecem surgir como uma resposta,
como fragmentos, e ainda resistência à indústria dos lazeres. A passagem cedendo lugar à
permanência na rua.
Na internalidade de cada um desses momentos, tomados no cotidiano, donde
enfrentam-se o concebido e o vivido, parecem também se enfrentar a propriedade e a
apropriação. Abrindo-se então precedente para insurreições do uso (SEABRA, 1996)?
Mas que uso, uso do que? Uso do espaço, do tempo, do corpo,
essencialmente porque abrigam dimensões da existência, os sentidos
da vida: o prazer, o sonho, o desejo, o riso (SEABRA, 1996: 71).
De um lado: os shoppings, as lojas e as lanchonetes, a classe média e seus
automóveis, e ainda as pouquíssimas vezes nas quais a Prefeitura do Município, na
figura da SEME, envia até a Rua de Lazer Mario Cardim outros equipamentos e
serviços do lazer – piscinas de bolinhas, brinquedo pula-pula, palhaços e brincantes
profissionais26. Do outro: os pipas e as capuxetas, o futebol improvisado, o taco e o
26 A expressão e profissão “brincante profissional”, resume, ao nosso ver, a que ponto a idéia de lazer se opõe e subjuga a idéia de ócio (negócio); como e quanto a cotidianidade permeia os vários momentos da
97
simples caminhar no meio da rua. A propriedade e a apropriação nos entraves e
conflitos pelo uso do espaço. A propriedade ligada a quantidades, a comparações
quantitativas, igualações formais, ao dinheiro. A apropriação ligada a qualidades, a
diferenças, a espontaneidades (SEABRA, 1996).
A crítica radical implicada no conceito de apropriação
esclarece a propriedade, no limite, como não-apropriação, como
paródia, como caricatura, como restrição à apropriação concreta
(SEABRA, 1996: 71).
Então poderíamos dizer que para além daquele espaço do estetismo a Rua de
Lazer Mário Cardim é também um espaço de resistência? Isto é, na medida em que se
considera essas práticas sócio-espaciais que parecem escapar, de alguma maneira, e
ainda que de modo efêmero, ao controle e programação do cotidiano.
Pensamos que sim. E que não. Contraditoriamente, como é específico do espaço
produzido, a Rua de Lazer comporta essas duas dimensões num constante embate.
Ainda que uma das partes, a mais fraca, levante-se fragilmente nessa disputa desigual de
forças. No entanto, não deixando de estabelecer esta espécie de enfrentamento e desafio.
vida; e ainda põe em foco a preparação e a redução dos indivíduos, desde cedo, desde a infância, à condição de consumidores e espectadores. Ainda quanto a estes momentos específicos nos quais a rua de Lazer Mário Cardim recebe novos equipamentos e serviços de lazer, vale notar que os são muito reivindicados pelos moradores e muito esperado pelas crianças do lugar. Segundo contam os moradores, se se considerar todos os dias reservados para a Rua de Lazer, todos os Domingos e feriados do ano, a presença destes serviços e equipamentos é mínima: uma ou no máximo duas vezes ao ano. Os mesmos ainda acreditam que nestes momentos específicos o lazer das crianças da Mário Cardim aparelha-se ao das crianças da elite e das classes médias da Vila Mariana.
98
4_Considerações
Por fim, é chegada a hora de tecer nossas considerações, nada finais. E temos a
clareza de que ao longo do percurso que construímos colecionamos muito mais
interrogações que afirmações.
Interrogações que surgiram conforme íamos tomando contato na bibliografia
com novos temas ou novas abordagens acerca da infância e da urbanização. E também
conforme observávamos no nosso estudo de caso as especificidades que os processos de
urbanização e sua relação com a infância tomavam em sua manifestação.
Assim pudemos observar os modos pelos quais os brinquedos e brincadeiras de
rua perdem lugar para o brinquedo-mercadoria no contexto do domínio e da
generalização de tal objeto e de sua imagem produzida pela publicidade, que têm
mesmo a função de introduzir a criança e cada vez mais desde mais cedo no status quo
do mundo da mercadoria; e não se tratou de uma suposição a qual em algum momento
na história as brincadeiras não tiveram de algum modo, e em determinada medida, a
finalidade de introduzir a criança no mundo, nem de que em outrora os movimentos da
modernização não tivessem alcançado, ou antes mesmo, produzido, a idéia de infância
da qual partilhamos até hoje. Muito pelo contrário. Tratou-se antes de questionar que
mundo é este no qual as crianças estão sendo inseridas e como se fez desta inserção um
negócio bastante lucrativo
Pudemos observar também como no decorrer da constituição do espaço urbano
paulistano foi negada, ou pelo menos negada idealizadamente, e desde há muito tempo,
a presença da infância nas ruas, e portanto, negada as brincadeiras de rua, o que por sua
vez não significou uma extinção desta determinada prática sócio-espacial. Vimos ainda
como no decorrer dos processos de modernização e urbanização a produção do espaço
foi decisiva para a captura e adequação da presença da infância no espaço urbano.
Privando-a do público. Direcionando-a ao privado. Constituindo este um momento
mesmo da produção da rua enquanto um espaço reduzido de sentido, vazio de pessoas e
repleto de normatizações.
Nestes termos é que nos parece que foi produzida a raridade das brincadeiras de
rua na metrópole contemporânea. E em certa medida a produção da infância neste
mesmo espaço.
Durante nossos trabalhos de campo não se viu brincadeira alguma pelas ruas da
Vila Mariana. A não ser na rua Mário Cardim e quase que exclusivamente aos
99
Domingos e feriados. Tampouco se viu crianças caminhando por aquelas ruas. A não ser
de passagem e na maior parte das vezes acompanhadas de seus pais em seus automóveis.
Por outro lado vimos também como na metrópole ainda resistem as brincadeiras de rua,
e na especificidade do nosso estudo de caso, como resistem exatamente em um espaço
funcionalizado e programado para o lazer: a Rua de Lazer; observada na dimensão do
seu cotidiano.
Assim sendo, por fim e ao cabo desta pesquisa, retomemos uma questão já posta
desde o início. E mais precisamente a questão que dá título ao trabalho:
Por onde andariam as crianças?
Para não sermos repetitivos na compilação de lugares apontemos para o
resultado geral do processo: andam pelos fragmentos de espaço projetados,
funcionalizados e administrados para o lazer. Que transformam tanto a brincadeira
quanto o tempo livre dos adultos, que nada mais é que tempo necessário para a
reprodução do trabalho, em novas possibilidades não só de geração de lucros, mas
também de reprodução social.
Mas, e quanto às brincadeiras de rua em São Paulo?
Tomando nosso estudo de caso enquanto uma pesquisa de um fragmento da
metrópole, e assim sendo, enquanto uma possibilidade de apontamentos acerca da
generalidade do fenômeno em questão, podemos inferir que:
Na contemporaneidade da metrópole paulistana as brincadeiras de rua tendem a
surgir de um específico quadro, a saber, na periferia e na medida em que a criança que
brinca é impossibilitada economicamente de acessar as imagens do brinquedo-
mercadoria com as quais é bombardeada diariamente.
Com isto não pretendemos romantizar ou exaltar o surgimento, seja enquanto
resíduo ou resistência, desta prática sócio-espacial a qual nos dedicamos a analisar neste
trabalho. Mas pensamos ter com ela localizado um momento, expresso no cotidiano, de
contradição do processo de reprodução da sociedade e do espaço capitalistas.
Assim sendo, ainda se pode ver de vez em quando pelas ruas das periferias da
metrópole alguns tombos e joelhos ralados no asfalto. Algumas partidas de futebol e
carros que buzinam e vidraças que se estilhaçam. Alguns pequenos que correm entre os
transeuntes grandes sem que com isso estejam mais apressados do que estes. Assim
sendo, ainda se pode ver de vez em quando na metrópole algumas crianças que chamam
a rua de nossa.
100
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