Theckov No Brasil

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Dissertação

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS

    PROGRAMA DE LITERATURA E CULTURA RUSSA

    RODRIGO ALVES DO NASCIMENTO

    Tchkhov no Brasil:

    a construo de uma atualidade

    Verso corrigida

    So Paulo

    2013

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS

    PROGRAMA DE LITERATURA E CULTURA RUSSA

    Tchkhov no Brasil:

    a construo de uma atualidade

    Rodrigo Alves do Nascimento

    Dissertao em verso corrigida apresentada ao

    Programa de Ps-graduao em Literatura e Cultura

    Russa do Departamento de Letras Orientais da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo como requisito para

    obteno do ttulo de Mestre em Literatura e Cultura

    Russa. Pesquisa desenvolvida com apoio da Fundao

    de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo

    (FAPESP).

    De acordo,

    Orientador: Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide

    So Paulo

    2013

  • 3

    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na Publicao

    Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    ______________________________________________________________________

    Nascimento, Rodrigo Alves do

    Tchkhov no Brasil: a construo de uma atualidade / Rodrigo Alves

    do Nascimento; orientador Bruno Barretto Gomide. -- So Paulo, 2013.

    344 f. ; il.

    Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura Russa Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    1. Tchkhov, Anton Pvlovitch, 1860-1904. 2. Dramaturgia. 3.

    Encenaes. 4. Teatro Brasileiro. 5. Teatro Russo I. Ttulo. II. Gomide,

    Bruno Barreto.

  • 4

    RODRIGO ALVES DO NASCIMENTO

    Tchkhov no Brasil:

    a construo de uma atualidade

    Dissertao de mestrado em verso corrigida presentada ao Programa de ps-graduao

    em Literatura e Cultura Russa do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, aprovada pela

    Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Universidade de So Paulo

    Orientador

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Luiz Fernando Ramos

    Escola de Comunicaes e Artes

    Universidade de So Paulo

    ______________________________________________

    Prof. Dra. Elena Vssina

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Universidade de So Paulo

    So Paulo

    2013

  • 5

    Para Vilma Aras,

    pelas lies de liberdade.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, gostaria de agradecer FAPESP, pelas bolsas concedidas no Brasil e nos EUA, que me permitiram a dedicao exclusiva a esta pesquisa.

    Ao meu orientador, Bruno Barretto Gomide, que me honrou com suas

    orientaes e, sempre disposio, permitiu-me grande liberdade de trabalho.

    Na USP, tive a oportunidade de assitir s aulas de Elena Vssina, Arlete

    Cavaliere, Ftima Bianchi, Maria Silvia Betti e do professor Joo Roberto Faria, que me

    proporcionaram momentos instigantes de formao e em muito contriburam para este

    estudo. Alm deles, Aurora Fornoni Bernardini, Tatiana Belinky e Boris Schnaiderman

    cederam longas entrevistas - o que, em si, j vale por todo o trabalho.

    Na Universidade da Califrnia, em Berkeley, tive a oportunidade de tomar

    contato com as timas aulas da professora Anna Muza e com a presena solcita da

    professora Irina Paperno - responsveis tambm por me guiar dentro do acervo fabuloso

    das bibliotecas americanas. Laurence Senelick e Patrick Miles, especialistas na recepo

    de Tchkhov nos EUA e no Reino Unido, estiveram disposio para trocar e-mails e

    fornecer informaes valiosas para esta pesquisa.

    No Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-UNICAMP), fui beneficiado pelas

    aulas do professor Antonio Arnoni Prado e pelas presenas fundamentais, tanto pessoal

    quanto intelectualmente, dos professores Eric Mitchell Sabinson e Vilma Aras. A

    professora Vilma, em especial, abriu-me as portas para a seara russa.

    No Rio de Janeiro, o diretor de teatro Antonio Gilberto me forneceu preciosas

    informaes sobre a recepo de Tchkhov no Brasil. Mrcia Cludia, funcionria da

    FUNARTE, aturou-me durante muitos dias e nunca negou qualquer solicitao.

    Tambm os funcionrios do AEL-Unicamp, do Centro Cultural So Paulo, da

    Casa Rui Barbosa e da Biblioteca Jenny Klabin Segall foram sempre solcitos e

    prestativos. Os funcionrios da Ps-Graduao, em especial o Jorge, tornaram o

    labirinto burocrtico das inscries, prazos e relatrios menos assustador.

    H tambm os amigos! Fernando e Gracilene Macedo so amigos de primeira

    hora, salvaram meus dias da monotonia e garantiram as condies para que eu

    conseguisse trabalhar (e bebericar). Adriana e Anderson, primos, deram-me tima

    estadia nos dias de confeco dos captulos finais. Marcelo Lotufo, mesmo em outro

    hemisfrio, ajudou-me em tudo e grande parceiro intelectual. Leonel Carneiro deu

    timas indicaes para o texto. Larissa Machado enfrentou os arquivos junto comigo.

    Priscila Nascimento, Deise e Flvia tornaram minha vida nos corredores da FFLCH

    mais vivas. Lgia, Larissa Higa, Gislaine e Fernanda Valim so insubstituveis e tm

    tornado essa etapa de minha vida menos rida. Diogo, Dieguinho, Diego Fernandez,

    Alexandre Baquero, Lucas Ferreira, Igor Tanaka, Luis Stival, Robson, Paulinha,

    Priscila, Gabriel e Kau me brindam com a oportunidade de t-los como amigos.

    J quase no final, mas no menos importante, agradeo aos meus irmos Rogrio

    e Reginaldo, a quem amo tanto. Agredeo ao meu pai Sebastio, por ser um

    maravilhoso contador de histrias - o primeiro grande artista que conheci. E agradeo a

    minha me, Snia, por ser quem , por ser um exemplo de luta e por ter me instigado a

    ler os primeiros livros.

    Por fim, agradeo Patrcia Rocha, companheira que me deu meus melhores

    anos e que toca em meus dias uma apaixonada sinfonia para o embalo do corpo e das

    emoes. Aos meus companheiros de militncia poltica e aos meus educandos que,

    mesmo diante dos percalos (que so muitos), continuam acreditando que necessrio

    viver de maneira radicalmente diferente da que se vive hoje. Ainda que no o saibam,

    tambm pensam um pouco como Tchkhov.

  • 7

    Poucos escritores estrangeiros so mais intrinsecamente

    "brasileiros" do que Anton Chekov (sic). E sua obra tem um

    pungente "brasileirismo" atual. De Dostoivski ou Tolstoi - os

    grandes contemporneos de Chekov - s se pode dizer que

    sejam brasileiros naquilo que tm de universal: a angstia

    metafsica, a luta pelo aperfeioamento, a preocupao pela

    injustia social vista como pecado, etc.

    Chekov, no. Equilibrado sensato, cuidadoso das

    aparncias, mais "europeu" do que russo, viu perfeitamente, viu

    to bem quanto o grande Dostoivski, a revoluo que se

    acercava, mas viu-a de forma muito mais nossa: as elites russas

    no eram elites nenhumas, os fazendeiros e senhores de

    engenho no eram nem maus nem bons, mas estpidos e

    imprevidentes, todo o mundo via o errado de tudo, mas ningum

    queria dar-se o trabalho de endireitar nada, todos falavam

    muito em cultura mas ningum a conhecia fora dos livros,

    cultura viva, inventada, fecunda. Sua pea "O Cerejal" ou "O

    Pomar de Cerejas" ou como a chamemos, podia desenrolar-se

    numa fazenda de caf, assim como "As Trs Irms" podia

    acontecer num engenho de acar (...)

    Antonio Callado, Chekov

  • 8

    NASCIMENTO, Rodrigo Alves do. Tchkhov no Brasil: a construo de uma

    atualidade. So Paulo: 2013, 344f. Dissertao (Mestrado em Literatura e Cultura

    Russa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So

    Paulo.

    RESUMO

    Anton Pvlovitch Tchkhov (1860-1904) hoje um dos dramaturgos mais encenados no

    Brasil e no mundo. A fim de compreender como se deu o processo de afirmao de sua

    dramaturgia, bem como as interpretaes e atualizaes feitas por crticos e grupos

    teatrais, realizaremos um estudo de recepo com foco especfico na relao entre texto

    e cena. Inicialmente, faremos uma breve anlise de suas primeiras encenaes em solo

    russo (e a produo pelo Teatro de Arte de Moscou do que se convencionou chamar

    tchekhovismo), passando pelos palcos europeus e americanos para, finalmente, entender

    as principais interpretaes produzidas em solo brasileiro - foco deste trabalho. Ao final,

    esperamos que fique evidente que nossa tentativa menos a de estabelecer uma linha

    evolutiva de dissoluo do mito do tchekhovismo e mais a de mostrar como ao longo da

    histria da recepo do drama de Tchkhov sua atualizao constante sofria (e sofre)

    presses dos impasses de nossa formao teatral, nossas dificuldades econmicas,

    sociais e polticas.

    Palavras-chave: Anton Tchkhov; Dramaturgia; Encenao; Teatro Brasileiro; Teatro

    Russo.

  • 9

    NASCIMENTO, Rodrigo Alves do. Chekhov in Brazil: the building of a presentness.

    So Paulo: 2013, 344f. Dissertao (Mestrado em Literatura e Cultura Russa) -

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo.

    ABSTRACT

    Anton Pavlovich Chekhov is one of the most staged playwriters of our days both in

    Brazil and in most of the World. In order to understand how the importance of his

    dramaturgy came into being, as well as the different interpretations and updatings done

    by several theater groups, this study will investigate Chekhov's reception, with emphasis

    to the relation between the text and the stagings. Beginning with an analysis of his

    Russian reception (and the creation of what we came to call Chekhovism by the Moscow

    Art Theater), we will then proceed with analysis of his stagings in both Europe and the

    United States in order to finally approach his Brazilian reception and interpretation the main focus of this study. We hope, by the end of this inquiry, to have made clear that

    our intention is not only tracing an evolutionary line of the myth of Chekovism and of

    its dissolution, but also showing how Checkov's constant reinterpretations suffered (and

    continues to suffer) pressure from the genesis of our theater tradition and of our social,

    political and economic struggles.

    Key Words: Anton Chekhov; Dramaturgy; Stagings; Brazilian Theater; Russian

    Theater.

  • 10

    SUMRIO

    Introduo

    1. Como se cria um Tchkhov

    1.1. Dentro do texto, fora dos palcos

    1.2. Uma Gaivota de tinturas trgicas

    1.3. Um Tio Vnia com sofrimento duradouro

    1.4. Trs Irms que se sufocam no tdio de provncia

    1.5. Um Jardim das Cerejeiras sem riso

    1.6. A Revoluo varrer o tdio?

    2. Tchkhov no Ocidente: entre o extico e o ntimo

    2. 1. Frana: a "alma russa" como espetculo

    2. 2. Reino Unido: falar de nossos problemas, maneira russa

    2. 3. Estados Unidos: dos crculos alternativos aos comerciais

    3. Tchkhov no Brasil: primeiros momentos

    3.1. Rstico e Antiburgus

    3.2. Estudantil e Amador

    3.3. O cmico no parece srio

    3.4. O dramaturgo, o melhor professor

    3.5. Tchekhovismo: momentos decisivos

    4. Que tem o Brasil a ver com Tchkhov?

    4.1. O mais brasileiro dos russos

    4.2. Fissuras na tradio

    4.3. Tchkhov poltico

    4.4. Poltica, desbunde e algumas contradies

    5. Tchkhov, nosso contemporneo

    5.1. A tradio posta em questo - Tovstonogov, fros, Strehler

    5.2. Recolhimento e descompasso

    5.3. Sem estranheza de acento

    5.4. Pluralidade de tendncias

    5.5. Desconstruindo Tchkhov

    6. Concluso

    12

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    195

  • 11

    7. Referncias Bibliogrficas

    7. Anexos

    Anexo 1 : ndice Cronolgico de Montagens para o Teatro

    Anexo 2: Fichas Tcnicas de Encenaes, Fontes e Fotos

    Anexo 3: Edies Brasileiras (Contos e Teatro)

    Anexo 4: Seleo de Textos Crticos

    198

    221

    224

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  • 12

    Introduo

    Tudo o que escrevi ser esquecido em alguns anos. Mas os

    caminhos que abri ficaro intactos e seguros,

    e nisso reside meu nico mrito...

    (Tchkhov) 1

    Tchkhov permanece o cronista da vida moderna.

    (Sbato Magaldi)

    Shakespeare reinventou os gregos para os tempos modernos e

    Tchkhov para o sculo vinte

    (Peter Stein)2

    Que tipo de interesse temos ns por Tchkhov? Como um dramaturgo to

    distante no tempo e no espao, aparentemente fechado em uma sensibilidade de fim de

    sculo, acusado de "melanclico", "inbil" e "decadente" por muitos de seus

    contemporneos, pode ainda hoje dizer-nos algo e evocar sentidos possveis que nos

    permitam falar de sua atualidade? Dentro da tradio teatral brasileira, em muitos

    momentos bastante afeita potncia do dilogo, sempre s voltas com o debate sobre

    sua real "modernizao", como essa dramaturgia sem dilogos e aes claras pode se

    firmar? As perguntas no so simples, mas ao mesmo tempo no a primeira vez que

    vm baila. Afinal, o teatro por excelncia a arte do presente e vive de seu contato

    direto com a sensibilidade do pblico que o experiencia, e pode, por isso, reconceber e

    reinventar formas aparentemente superadas. Essa premissa to decisiva que no toa

    Peter Brook chamaria teatro morto aquele feito por atores e assistido por espectadores

    com interesses meramente comprobatrios, que se dirigem ao teatro para ver as linhas

    de seu drama preferido corretamente encenadas ("da forma como foi escrito") e

    experienciar a cena sem nenhuma sensibilidade nova. Segundo ele, "o Teatro Morto

    trata os clssicos supondo que, em algum lugar algum j descobriu e definiu como o

    1Mximo Grki citando o que dissera o amigo Tchkhov, em uma de suas ltimas conversas com o

    escritor. (LAFFITTE, Sophie. Tchekhov. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1993, p. 178). 2 STEIN, Peter. Entrevista a Amie Ferris-Rotman e Iri Pchkin em 2010, em Moscou. Disponvel em:

    http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/reuters/2010/01/29/ult26u29717.jhtm. Acesso em 29 jan. 2010.

  • 13

    drama deve ser representado"3. Pensar na atualidade de Tchkhov , portanto, pensar

    como foi possvel retrabalhar a fora de seu drama atravs do tempo para que chegasse

    at ns, dentro de um processo vivo de reinterpretaes que s o teatro pode conceber.

    E sua presena j to evidente, que Anton Pvlovitch se converteu em um dos

    dramaturgos mais importantes da contemporaneidade; e sua atualidade j , para muitos,

    um dado inquestionvel.

    Em artigo de novembro de 2012, Ben Brantley, crtico de teatro do New York

    Times, afirmou que s neste ano foram trs importantes montagens de Tio Vnia em

    cartaz em Nova York, com concepes completamente diversas, alm de montagens de

    Ivanov, A Gaivota e as Trs Irms, que tambm abundaram nos palcos de Londres4. Em

    2010, ano de comemorao do 150 aniversrio do dramaturgo, circularam pelo mundo

    montagens de peso de seus textos ou baseadas em sua vida e obra5. S no Brasil, j

    possvel mapear suas peas em cartaz em todas as temporadas nos palcos das principais

    capitais. Tanto que, em 1998, Srgio de Carvalho afirmava que Tchkhov seria muito

    provavelmente o autor mais encenado dos palcos brasileiros6. E a sintonia dessa

    dramaturgia com o teatro e o pblico nacionais teve um de seus pontos altos em 2010,

    com o Espao Tchkhov (temporada na FUNARTE-SP com exposio de imagens de

    encenaes brasileiras antolgicas, instalaes, palestras e montagem de uma pea sob

    direo do russo Adolf Shapiro7) que, se no sinaliza qualitativamente o sentido dessa

    presena, pelo menos nos demonstra o nvel de familiaridade de nosso teatro com o

    dramaturgo russo, que lhe viu rendida uma "homenagem", a qual no se v com

    frequncia.

    3 BROOK, Peter. O teatro e seu espao. So Paulo: Vozes, 1970, p. 7.

    4 BRANTLEY, Ben. "Chekhov Melancholy, never so welcome". The New York Times. 29 nov. 2012.

    Disponvel em: http://theater.nytimes.com/2012/12/02/theater/ben-brantley-on-chekhov-on-new-york-

    stages.html?_r=0. Acesso em 11 de janeiro de 2012. 5 S neste ano, vieram para o Brasil importantes montagens internacionais, baseadas direta ou

    indiretamente em sua vida e obra: Donka - uma carta a Tchkhov, dirigida pelo suo-italiano Daniele

    Finzi Pasca (que abriu o Festival Internacional Tchkhov e estreou no Brasil em agosto de 2010), Os

    Irmos Tchkhov, montagem do russo Alexander Galibin (que estreou em novembro do mesmo ano, em

    So Paulo) e As Trs Irms, dirigida pelo escritor e cineasta libans Wajdi Mouawad (dezembro de 2010). 6 CARVALHO, Sergio. Tchkhov conta Brasil - por que o dramaturgo russo do sculo XIX ser um dos

    autores mais encenados neste ano no pas. Revista Bravo, n. 07, Ano 1. So Paulo, abr. de 1998, p.106-

    109. 7 "Evento/Espao" que ocorreu sob curadoria de Elena Vssina (professora da FFLCH USP) entre 17 de

    setembro e 10 de novembro, com parceria entre a Fundao Nacional de Artes e o Festival Internacional

    de Teatro Anton Tchekhov, de Moscou. Ver: http://www.funarte.gov.br/teatro/espaco-tchekhov-2010-na-

    funarte-sp/. Acesso em 12 de janeiro de 2012.

  • 14

    Os motivos que levam a esse crescente interesse, a ponto de Laurence Senelick

    afirmar que Anton Pvlovitch tem se tornado o segundo dramaturgo em reputao

    depois de Shakespeare8, so um ponto decisivo. Isso significa entender como se do a

    atualidade dessa forma dramtica e das problemticas por ela apresentadas. Para Srgio

    de Carvalho, Tchkhov nos fala de maneira ntima porque sua dramaturgia o retrato da

    "crise da ao na vida" e, tal qual a Rssia de fins do XIX, vivemos em um perodo de

    intervalo, de aparente "fim das utopias". E o "mecanismo teatral" do dramaturgo,

    realista e desdramatizado, permite acessar por meio dos desvos da forma "inacabada",

    no o retrato do tdio ou apenas a sensibilidade de uma forma abstrata e "cinzenta", e

    sim os "exemplos negativos" de personagens que mostram que " possvel viver de

    maneira diferente da que se tem vivido at hoje"9.

    J para Ben Brantley, a atualidade do dramaturgo russo est na ambiguidade do

    desenho ao mesmo cmico e trgico que este "insiste" em fazer da vida, pois, em uma

    poca de transio como a nossa, em que a noo de famlia (que ao longo dos anos

    obrigou muitos a amontoarem-se sob o mesmo teto), assim como a das ideologias pr-

    fabricadas, so postas em questo - tal qual em sua Rssia pr-revolucionria.

    Ainda que estas duas pequenas amostras do riqussimo debate sobre a atualidade

    de Tchkhov tenham seu quinho de interesse, a verdade que um estudo profundo

    sobre "por que ainda ler e encenar Tchkhov" algo a ser feito. Ainda assim, o que se

    percebe que todo o sculo XX, de oriente a ocidente, um grande palco em que

    pudemos assistir a uma tentativa constante de mostrar como Tchkhov, um dramaturgo

    russo de fim de sculo, que em suas grandes peas era aparentemente descolado de

    todas as "tradies" e modismos, um poderoso referencial. por isso que este trabalho

    optar por apresentar um percurso sinttico, mas (acreditamos) bastante rico, de como

    diretores, atores e crticos promoveram o dilogo e a atualizao de suas peas ao longo

    dos anos. Ou seja, um estudo de recepo das interpretaes produzidas por esses

    8 "A funny thing has happened. Anton Chekhov, who was judged in his own time to be a playwriter

    narrowly culture-bound, over-refined and obscure, whose drama was persistently characterized at home

    and abroad as depressing and pessimistic, has become second only to Shakespeare in reputation and in frequency of production. Andrzej Wajdas remark Theatre in our European tradition derives from the word, from literature, the Greeks, Shakespeare, Chekhov is typical of the regard in which Chekhov is held. Ver: SENELICK, Laurence. The Chekhov Theatre - a Century of Plays in Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. I. 9 CARVALHO, Op. Cit, p. 106.

  • 15

    agentes10

    que desenhar um arco que vai da Rssia imperial e passa por pases centrais

    da Europa, pelos Estados Unidos, at chegar ao Brasil - nosso ponto maior de interesse.

    Evidentemente, todos esses pases dialogaram direta ou indiretamente com as

    problematizaes de seu tempo histrico, suas condies econmicas, sociais e

    culturais. E no caso da dramaturgia de Anton Pvlovitch, em que, nas palavras de

    Raymond Williams, no h "relao precisa entre a organizao das palavras e o

    mtodo de diz-las" (o que configuraria, na relao texto-cena, uma distncia maior do

    que nos dramas em que o que dito corresponde comunicao fsica), esse dilogo

    fundamental, pois por meio dele se abre um inevitvel, tenso e rico espao para a

    "interpretao" desse texto por diretores e atores11

    . Por isso, somente uma tentativa de

    mapear esse movimento j ser valiosa no s para a compreenso da potica do

    dramaturgo, como tambm para o entendimento dos impasses de nosso prprio teatro.

    Afinal, no se pode conceber uma tradio teatral ou literria em outra perspectiva que

    no a comparada12

    , fator constitutivo que ganha em interesse quando levamos em conta

    que se trata justamente do contato entre duas culturas perifricas (Brasil e Rssia). A

    partir da, compreender os percalos de leitura, as iluminaes produtivas e o papel

    cumprido pelo filtro autorizado da metrpole (que "descobre", "filtra" e "exporta" uma

    outra cultura) algo que pode trazer elementos significativos para os estudos

    comparados e de recepo13

    , iluminando nossa prpria condio cultural.

    10

    No nos dedicaremos ao estudo de recepo em grande escala (leitores e espectadores massivos).

    Ficaremos restritos s interpretaes produzidas dentro da relao texto-cena (e, por isso, leituras de

    diretores e atores), bem como as produzidas por crticos literrios e teatrais. Complementarmente, vale a

    leitura do texto de Patrice Pavis a respeito dos desafios colocados para o terico de teatro sobe a relao

    entre texto e cena, sobretudo quando lidamos com uma pea fora de contexto. PAVIS, Patrice. Problems of translation for the stage: interculturalism and post-modern theatre. IN: HOLLAND, Peter (ed). The Play Out Of Context - transferring plays from culture to culture. New York: Cambridge

    University Press, 1989. 11

    WILLIAMS, Raymond. "Discusso: texto e encenao". Drama em Cena. So Paulo: Cosac&Naify,

    2010. 12

    CANDIDO, Antonio. Recortes. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004. 13

    O sentido que atribumos ao conceito de recepo est diretamente relacionado tradio, bastante

    ampla, que busca superar entendimento de recepo enquanto simples estudo das "fontes" ou

    "influncias" de um determinado texto ou autor sobre outras culturas. Buscaremos fincar nossa pesquisa

    numa concepo na qual a interpretao do texto se d por um movimento dialtico no qual se relacionam

    elementos da formao social e cultural que envolve o intrprete e/ou leitor e elementos de sua prpria

    formao "intraliterria" ou "intradramtica". So tais elementos que definem seu "horizonte de

    expectativas", e isso pode ser fundamental para que compreendamos porque determinada obra foi

    entendida de diferentes maneiras em diferentes momentos da histria. Pretendemos assim evitar uma

    concepo extremamente relativista , pois entendemos que cada interpretao do texto se legitima por

    disposies histricas, sociais, literrias, estticas e mesmo pessoais. Ao mesmo tempo, de tal enfoque se

    pode depreender que do conhecimento das sucessivas leituras realizadas podemos tomar conhecimento do

    que Jauss denomina potencial de sentido da obra, ou seja, o elemento que a torna "permanente" na

    histria literria.NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: histria, teoria e crtica. So Paulo: EDUSP,

    1997, p. 171-172.

  • 16

    Acreditamos que este trabalho visa a trazer interpretaes sobre matria ainda

    pouco estudada, pois ainda que muito j se tenha dito sobre as relaes polticas,

    econmicas ou culturais entre Brasil e Rssia, e mesmo que haja recente interesse do

    mercado editorial e de parte expressiva da crtica por temas russos, em geral as

    relaes entre Brasil e Rssia so mais pressentidas e esboadas que efetivamente

    destrinchadas14

    .

    No caso da tradio teatral russa, nosso contato com as experincias

    revolucionrias de incios do sculo XX no desprezvel, ainda que no tenham sido

    de todo exploradas. Por isso, ao dar incio a este trabalho comparativo, nossa primeira

    hiptese foi a de que a genial proposta cnica do Teatro de Arte de Moscou (TAM),

    justamente por ter sido responsvel pela projeo do dramaturgo (que at ento sofrera

    para encontrar suporte cnico adequado para as fissuras que promovia na estrutura do

    drama), foi tambm responsvel por consolidar algumas linhas de interpretao que

    perduraram at recentemente, inclusive no Brasil. Galvanizaram um modo especfico de

    se encenar Tchkhov, imprimindo sobre suas personagens a representao do "tdio de

    provncia", a "impotncia ante os grandes sonhos" e a "melancolia". Isto implicou, em

    termos cnicos, na adoo de procedimentos ento revolucionrios, como a criao

    "atmosfera", "ritmo", "silncio" e "tragicidade", mas que seriam trabalhados na Rssia e

    internacionalmente como "tipicamente techekhovianos". Esta tipificao, interpretada

    de mltiplas maneiras pela tradio teatral ocidental o que, por suposto, pretendemos

    historicizar e colocar em discusso.

    Evidentemente, inmeras propostas posteriores se chocaram com as leituras de

    Stanislviski /Nemirvitch-Dntchenko, mas quase sempre se estabeleceram em relao

    a elas. Isto implica em uma srie de questes a respeito da dramaturgia tchekhoviana

    que so bastante interessantes, dentre elas: a crise das formas dramticas tradicionais

    (em fins do XIX) e a historicidade dos problemas a ela vinculados, o lugar do cmico e

    do trgico nas suas leituras, o trabalho com pausas e silncios, as possveis "melancolia

    permanente", "ausncia de utopia" ou "tdio da vida" versus "o sonho", "a vivacidade" e

    a fora "irnica". A escolha de alguns destes pontos como flancos de apoio, ou mesmo

    14

    GOMIDE, Bruno. Da Estepe Caatinga: O Romance Russo no Brasil (1887-1936). Tese IEL-

    UNICAMP. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem, 2004, p. 13. Contudo, no se pode dizer que

    este seja um campo totalmente inexplorado: O primeiro livro de Leonid Shur Relaes Literrias e culturais entre Brasil e Rssia, o livro de Boris Schnaiderman Projees: Brasil, Rssia, Itlia e a prpria tese de Bruno Barreto Gomide sobre a recepo do romance russo no Brasil entre 1887 e 1936 so

    estudos de flego que ajudam a iluminar este debate.

  • 17

    sua mescla, pode resultar em encenaes e posicionamentos crticos bastante diversos.

    Nossa inteno justamente mapear tais escolhas, tentando entend-las dentro de

    tendncias artsticas, problemas polticos e sociais.

    Para que esse percurso fique razoavelmente delineado, optamos por organizar

    esse processo a partir das primeiras encenaes de Tchkhov feitas na Rssia (a partir

    de 1896), passando pelas principais encenaes europeias e americanas, at as

    montagens feitas no Brasil (em um arco que vai de 1946 a 2008). Por isso, no primeiro

    captulo apresentamos de maneira sumria os primeiros contatos do dramaturgo russo

    com o meio teatral e os movimentos vividos por suas primeiras peas em um ato. Logo

    aps, comentamos o processo de produo de suas quatro grandes peas e a dificuldade

    de aceitao de seu teatro dentro das condies especficas de encenao na Rssia. A

    partir da, ser possvel enxergar como o surgimento do TAM e a consolidao (bastante

    tensa, como veremos) de um suporte adequado historicamente para a afirmao de sua

    dramaturgia sero decisivos para fixar as leituras stanislavskianas, que faro escola na

    Rssia, mas no deixaro de ser confrontadas por diretores locais pr e ps Revoluo

    de 1917. Este embate, no entanto, ser "vitorioso" para Stanislvski, que soube se

    "mesclar" ao establishment sovitico.

    No segundo captulo, tentamos entender como se d o movimento de projeo da

    dramaturgia de Tchkhov nos pases do Leste Europeu, Frana, Inglaterra e Estados

    Unidos. Desde as primeiras tradues de peas de Tchkhov feitas por Antoine,

    passando pela emigrao de artistas e crticos russos, at a consolidao em terreno

    francs das leituras "exoticizantes" da "alma russa", feitas em montagens de Ludmina e

    Georgy Pitoff. Tais encenaes, a despeito de tentarem fugir do paradigma

    ultrarrealista de Stanislvski, pecavam pela fabricao de um outro extico. Veremos

    tambm como as caravanas do TAM pela Europa e EUA contriburam para gerar um

    verdadeiro frisson internacional no s pelas novas tcnicas de encenao, como

    tambm pela fora do drama tchekhoviano. No Reino Unido, no s o contato com

    essas excurses, mas a interveno de Bernard Shaw (que tentara apresentar o

    dramaturgo russo como um cido leitor da sociedade capitalista em crise) e as

    encenaes de Komissarjvski (que souberam retirar Tchkhov das malhas do extico e

    aclimat-lo ao "gosto ingls" pela simplificao elegante e o sentimentalismo). No caso

    americano, veremos como a lgica do show business e do star system prejudicaram a

    recepo dessa dramaturgia no incio dos anos 20, e o importante papel dos Little

    Theatres, mais abertos s novas tcnicas de encenao e aos trabalhos dramatrgicos

  • 18

    mais recentes e de vanguarda, que conseguiram com xito introduzir o dramaturgo nos

    palcos fora dos grandes circuitos. Logo aps, destacaremos o papel decisivo dos

    preceitos formativos de Boleslvski, as encenaes de Eva Le Gallienne e as diretrizes

    formativas de Lee Strasberg e Stela Adler - sua maneira discpulos de Stanislvski e

    grandes propagadores da dramaturgia de Tchkhov.

    Para no prosseguir adiando o fundamental, o terceiro captulo apresentar um

    panorama dos momentos iniciais da recepo de Tchkhov no Brasil. Desde as

    brevssimas referncias a seu nome e as tradues de contos cmicos em peridicos de

    entretenimento do incio do sculo at as primeiras coletneas de contos nos anos 30 e

    40, que preparam o terreno para os principais textos crticos e encenaes que

    comeariam a ser realizados nos anos seguintes. Destacamos o papel fundamental que

    os grupos de teatro estudantis e amadores tiveram na popularizao de suas peas

    cmicas em um ato, amadurecendo no s uma linhagem do teatro cmico brasileiro,

    mas tambm abrindo as portas de nossos palcos para outros dramaturgos internacionais

    de qualidade artstica. E sero tambm os "amadores" do Tablado os primeiros a

    enfrentar uma pea longa de Tchkhov, Tio Vnia, seguida de As Trs Irms, pela

    Escola de Arte Dramtica (EAD) e anos depois pelo grupo A Barca, sob direo de

    Gianni Ratto, confirmando a interessante tese de Gilda de Mello e Souza de que estaria

    no dramaturgo russo um fundamental estgio para a formao do ator. Mas a sua

    projeo nos palcos brasileiros ganharia novo patamar com a encenao de As Trs

    Irms pelo Teatro Nacional de Comdia (TNC), em 1960, momento decisivo de

    propagao no Brasil do que se convencionou chamar tchekhovismo.

    J no quarto captulo, veremos como a partir da d-se o incio a um processo de

    questionamento de Tchkhov "clssico importado", que vem acompanhada da tentativa

    de atualizar sua obra no contexto brasileiro, levando em conta o efervescente clima de

    radicalizao poltica e social. Ainda assim, seu teatro passaria por percalos de

    interpretao e, em um primeiro momento, no seria visto como um dramaturgo de fcil

    digesto para as sensibilidades revolucionrias. Marco nesse sentido seriam a leitura

    fora do padro "tchekhoviano" de O Jardim das Cerejeiras, feita por Ivan Albuquerque,

    e o desbunde poltico-tropicalista que o Oficina promoveu com As Trs Irms. Esta

    montagem, especificamente, a despeito dos impasses oriundos de suas prprias escolhas

    formais e polticas, representou a tentativa mais significante de entender como o

    dramaturgo russo poderia falar de maneira direta ao pblico brasileiro de ento e foi um

    marco no processo de recepo do teatro de Tchkhov entre ns.

  • 19

    Por fim, no quinto e ltimo captulo, h um esquemtico panorama de

    encenaes realizadas no exterior nos anos 60 e 70 (sobretudo as de Tovstonogov e

    Anatoli fros, na Rssia, e Giorgio Strehler, na Itlia) que j promoviam uma reviso

    significativa do paradigma do tchekhovismo. Logo aps, observamos o ligeiro

    descompasso vivido pelas encenaes brasileiras, que tentavam iluminar pontos novos

    na dramaturgia de Anton Pvlovitch, mas, ao mesmo tempo, no conseguiram firmar

    uma tendncia interpretativa de peso. As dificuldades que o regime militar colocava aos

    grupos teatrais nos anos 70 dificultava o amadurecimento de propostas (vide as

    encenaes A Gaivota, por Jorge Lavelli, o Tio Vnia, de Emilio Di Biasi), mas em

    contrapartida impulsionava-os para que buscassem novas formas de organizao e

    encenao que, como veremos, arejaro as encenaes nos anos de abertura (o

    Platonov, d'O Tablado e o Trgico Fora, de Marcio Aurlio). Os anos 90 e 2000

    sero de clara abertura de tendncias e demonstram a familiaridade dos palcos

    brasileiros com uma dramaturgia que, de incio, pareceu alheia aos interesses imediatos

    de nosso teatro. J possvel encontrar claros "enfrentamentos" aos modelos

    stanislavskianos e localizamos desde encenaes mais afeitas tentativa de deixar o que

    "universal" em Tchkhov falar, s encenaes que valorizam sua dimenso poltica

    para uma poca de transio, ou ainda encenaes que privilegiam a pura pesquisa de

    linguagem, buscando a atualidade do dramaturgo nas fissuras e descompassos de sua

    forma dramtica - utilizando-se de seus textos mais como partitura "jazzstica" que

    dramaturgia.

    Ao final, esperamos que fique evidente que nossa tentativa menos a de

    estabelecer uma linha evolutiva de "dissoluo" do mito do tchekhovismo e mais a de

    mostrar como ao longo da histria da recepo do drama de Tchkhov sua atualizao

    constante sofria (e sofre) presses dos impasses de nossa formao teatral, de nossas

    dificuldades econmicas, sociais e polticas. Metodologicamente, tal empreitada

    apresenta uma srie de dificuldades. A primeira delas se refere a como lidar com o fato

    de que o "fenmeno cnico" se caracteriza justamente pelo acontecimento e pela

    presentificao da ao cnica, que no pode ser captada pelo simples registro escrito.

    Se vem da o fascnio do teatro - pelo que ele tem de presena viva - est a tambm um

    grande problema crtico e historiogrfico que, s agora, tem amadurecido como campo

    de estudos15

    . Nesse sentido, tentaremos entender como se construram determinadas

    15

    O Grupo de Trabalho de Histria e Teatro da ANPUH (Associao Nacional de Ps-Graduao em

    Histria) tem se colocado como um de seus problemas fundamentais de investigao para os prximos

  • 20

    leituras de Tchkhov trabalhando a partir do que Carlo Ginzburg denominou paradigma

    indicirio, ou seja, captar a partir de sinais particulares o sentido que determinado

    elemento pode ter para a compreenso do movimento geral de uma cultura ou

    sociedade16

    . Trabalhamos para tentar reconstituir esse universo especfico por meio dos

    documentos (escritos, iconogrficos e sonoros), deixando-os que "falassem", ao invs

    de definir um percurso historiogrfico-crtico de antemo.

    Ao deixar que tais documentos ganhassem voz, tentamos no nos restringir a

    apenas um registro sobre determinada encenao (mesmo levando em conta o fato de

    que isso se torna bastante difcil para as encenaes com menor repercusso) ou mesmo

    no sufocar posies divergentes a respeito de uma mesma montagem - tendo em vista

    que uma das principais formas de registro que nos do acesso a uma pea o discurso

    do crtico teatral que, como se sabe, sempre uma interpretao frente ao fenmeno

    cnico. No entanto, isso no impediu que ao analisarmos o sentido de determinada

    interpretao de Tchkhov nos posicionssemos tambm em relao ao que havia de

    produtivo ou limitador na proposta feita.

    Tambm no deixa de ser importante esclarecer que para a realizao deste

    estudo, foi necessrio conciliar o trabalho de pesquisa em arquivo (dirios de direo,

    fotografias, vdeos, notcias, textos crticos publicados em jornais, revistas, folderes de

    divulgao dos espetculos etc)17

    com o de estudo terico-crtico, tanto sobre a

    recepo de Tchkhov por outras culturas, como ensaios e estudos sobre sua

    perodos a discusso sobre as relaes entre o Teatro e a Historiografia. A inteno tentar definir pontos

    de apoio tericos e metodolgicos que deem conta da especificidade teatral, levando em conta no

    somente o suporte dramatrgico-textual como referncia. 16

    Tomamos como principal referncia o texto Sinais - razes de um paradigma indicirio, de Carlo Ginzburg (In: Mitos, Emblemas, Sinais. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 143-179). Alm

    disso, serve-nos tambm de inspirao outro estudo de Ginzburg sobre o moleiro Menocchio, condenado

    pela Inquisio no sculo XVI. O historiador realiza a anlise a partir do estudo minucioso de documentos

    dos julgamentos realizados, que ajudam, a partir da prpria erudio do historiador, a reconstituir todo um

    universo especfico e as tendncias de uma poca. (O queijo e os vermes. So Paulo: Companhia das

    Letras, 1987). 17

    Para chegar a este estgio, foi realizado levantamento inicial de tradues e publicaes de contos e

    peas de Tchkhov nas bibliotecas da Unicamp (Instituto de Estudos da Linguagem, Instituto de

    Filosofia e Cincias Humanas, Instituto de Artes e Biblioteca Central), da FFLCH-USP, da Biblioteca

    Nacional, no Rio de Janeiro, da Biblioteca Mario de Andrade, em So Paulo, bem como no Arquivo

    Edgar Leuenroth (AEL), em Campinas. Alm disso, realizei levantamento de montagens e localizei textos

    crticos na Biblioteca Jenny Klabin Segall e no Centro Cultural So Paulo - Diviso de Arquivos e

    Multimeios, em So Paulo; no acervo da Fundao Nacional de Artes - FUNARTE (Dep. de Artes

    Cnicas), na Casa Rui Barbosa (Acervo Maria Jacintha e Acervo Antonio Callado) e da Sociedade

    Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), no Rio.

  • 21

    dramaturgia e teatro russo e brasileiro18

    . Do primeiro resultou extenso levantamento de

    tradues e edies, bem como de encenaes de peas de Tchkhov realizadas por

    grupos teatrais profissionais e amadores. As peas foram catalogadas e, em muitos

    casos, foi possvel recuperar notcias, textos crticos e fotos em torno de cada

    montagem. Todos esses documentos e listas vm selecionados e transcritos nos anexos

    ao final do trabalho.

    Dificuldades especficas surgiram ao longo da pesquisa, como o mapeamento de

    documentos referentes a um dramaturgo cujo nome j foi grafado das mais diversas

    maneiras (Tchkhov, Tchecov, Tchekov, Chekhov, Chekov, Tchehov, Tchekof,

    Tschecov, Tcheckhov, Checov, Tchecof, Tcheckov, Tchecoff, Tcheckoff...). Problema

    este que, se em partes dificulta o trabalho de mapeamento, por outro contribui para,

    como afirma Bruno Gomide, suspeitar de fontes de tradues indiretas ou mesmo

    referenciais crtico-editoriais.

    Por fim, o que esperamos que este estudo, por vezes demasiado sumrio, por

    vezes enfadonho no detalhe, contribua ao menos para que entendamos um pouco sobre

    como foi encenado, lido e criticado este dramaturgo que tanto contribuiu para o

    processo de questionamento das formas dramticas do sculo XIX. Suas Arkdinas,

    Trepliovs, Irinas, Machas, Olgas, Ranivskaias, Trofimovs, Vnias, cravados em tramas

    com vestgios de ao dramtica, donos de dilogos que mais isolam que aproximam,

    parecem ainda dizer-nos algo. Falam no s sobre formas de sociabilidade que estavam

    condenadas pela histria, como tambm sobre o que somos hoje.

    18

    O trabalho de estudo bibliogrfico teve estapa decisiva em meu estgio de pesquisas na Universidade

    da Califrnia, em Berkeley. L pude contar com precioso acervo em eslavstica e literatura comparada

    que me permitiu confeccionar com maior profundidade os dois primeiros captulos desta dissertao.

  • 22

    1. Como se cria um Tchkhov.

    1.1 Dentro do texto, fora dos palcos

    Vista distncia, a obra de Anton Pvlovitch Tchkhov pode levar a crer que o

    contista e dramaturgo russo gozara desde o incio de sua carreira de repercusso positiva

    junto ao pblico, crtica e aos profissionais de teatro. Isto porque, por um lado, um

    clssico quase sempre nos conduz a uma leitura que tende a tornar absolutas suas

    qualidades; por outro, porque o prprio estilo do autor, pouco afeito exuberncia

    formal e programaticamente crtico falta de objetividade e aos excessos ideolgicos19

    ,

    sugere uma gradual afirmao junto ao pblico: lenta, silenciosa e modesta, com poucas

    polmicas ou recusas.

    No entanto, o processo de recepo de sua obra fora bastante tortuoso e,

    inicialmente, bastante intranquilo. No caso especfico de sua dramaturgia, que aqui nos

    interessa de perto, Tchkhov se debateu com toda uma tradio do teatro russo, indo das

    tcnicas de encenao ao gosto pblico, que no lhe apresentaram as portas abertas para

    as renovaes formais que promovia. Se o dramaturgo no est sozinho nesse processo

    de crise das formas tradicionais do drama20

    , que marcou inmeros pases da borda

    europeia em fins do sculo XIX, no caso russo ele assume tinturas prprias. Alguns

    momentos desse processo se tornaram populares, por vezes convertidos em verdadeiras

    lendas. So razoavelmente conhecidos do leitor brasileiro os episdios de estreia de A

    Gaivota () pelo Aleksandrnski, em 1896, mistificada como um absoluto desastre,

    e que levara o escritor a recusar escrever novamente para o teatro, e a estreia da mesma

    pea em 1898, pelo Teatro de Arte de Moscou (TAM), um legendrio sucesso que

    consagrou o surgimento do grupo. Ou ainda, relatos das famosas querelas entre

    Tchkhov e Stanislvski, feitos quase sempre para exaltar os acertos de concepo do

    19

    Tais elementos so decisivos para Tchkhov enquanto premissas de composio. Veremos adiante o

    quanto tais escolhas lhe renderam uma srie de restries ao seu "excesso de iseno". Para ficar em uma

    passagem conhecida, que ilustra parte de sua potica, a carta com conselhos de escrita enviada ao irmo

    Aleksandr P. Tchkhov, em 10 de maio de 1886, elucidativa: "1. ausncia de palavrrio prolongado de

    natureza poltico-socioeconmica; 2. objetividade total; 3. veracidade nas descries das personagens e

    dos objetos; 4. brevidade extrema; 5. ousadia e originalidade - fuja dos chaves; 6. sinceridade". Ver:

    ANGELIDES, Sophia. A. P. Tchkhov: cartas para uma potica. So Paulo: EDUSP, 1995, p. 52. 20

    Tal discusso ser retomada adiante. Por ora, cabe localiz-la dentro da anlise sobre as transformaes

    na estrutura dramtica ocorrida em fins do sculo XIX, emblemtica em dramaturgos como Ibsen

    (Noruega), Hauptmann (Alemanha), Maeterlinck (Blgica), Tchkhov (Rssia) e Strindberg (Sucia),

    lanada por ROSENFELD, Anatol. O Teatro pico. So Paulo: Editora Perspectiva, 1985; e tambm por

    SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno: 1880-1950. So Paulo: Cosac&Naify, 2001.

  • 23

    primeiro e desbastar um certo naturalismo do segundo. Todavia, ainda que apaream

    como marcas de uma recepo que pe em debate a produo e as opinies do autor por

    seus contemporneos, o que predomina, sobretudo hoje, a viso do "clssico imortal",

    que, se iluminada por sua atual relevncia nos meios teatrais (a ponto de no teatro

    anglo-saxo Tchkhov ser considerado o segundo dramaturgo mais importante depois

    de Shakespeare), tende a ofuscar entendimento mais exato de suas condies de

    produo e recepo e, por vezes, restringi-lo a leituras improdutivas de suas peas.

    A tarefa de compreenso mais pormenorizada deste processo tem um elemento

    facilitador que, ao contrrio do caso de dramaturgos como Shakespeare, favorece a

    pesquisa: Tchkhov est envolto em uma historicidade (cultural, ideolgica e de classe),

    mapevel em sua correspondncia, comentrios de crticos e querelas com gente de

    teatro, que permite recompor um universo especfico. Isto permite a Laurence Senelick

    afirmar que Tchkhov nos parece por isso mais prximo e, ao contrrio de Shakespeare,

    mais possvel de ser pego por "intenes autorais"21

    .

    Tentaremos reconstituir um pouco desse universo (no qual mesclaremos

    comentrios sobre as encenaes/concepes de direo, comentrios da crtica e o

    prprio percurso formativo do autor) para nos aproximarmos do que foram as principais

    contradies internas formao de sua dramaturgia, os debates em torno dela e, por

    fim, como determinadas leituras se afirmaram. No menos problemtica que qualquer

    esforo historiogrfico, sobretudo quando se tem como material uma cultura que nos

    em grande parte alheia e uma forma de expresso artstica - o teatro - que, por sua

    natureza, se esvai no momento mesmo da encenao, o primeiro impulso ser o de

    entender, no universo teatral, os anos de 1880 - decisivos para o amadurecimento da

    cena russa e da dramaturgia de Tchkhov. E, apesar de aparentemente tortuoso, este

    trajeto necessrio e ajudar em muito a entender interpretaes de Tchkhov surgidas

    ali, que repercutiro de maneira decisiva no Ocidente e, em especial, no Brasil.

    Comear pelos anos de 1880 no pode ofuscar um processo que j se inicia

    desde os tempos de adolescente de Anton Pvlovitch, na pequena cidade de Taganrog,

    perto do mar de Azov, quando comea seu contato com o teatro. Acompanhava com

    assiduidade e pouco critrio as apresentaes ocorridas no "Teatro Cvico", aplaudindo

    espetculos que iam do "novo drama" ostrosvskiano aos melodramas romnticos e

    21

    Idem, p.1.

  • 24

    comdias ligeiras, ento nota predominante nas poucas casas teatrais russas. Ali, ainda

    cursando os anos finais do colgio, escreve uma pea sem nome, que possivelmente se

    converteria na verso publicada postumamente, em 1923, e conhecida no Ocidente

    como Platnov22

    ().

    A primeira verso fora submetida ao irmo Aleksandr, que j vivia em Moscou e

    lhe respondeu com duras crticas quele "drama" com roubo de cavalos e tiros. Os anos

    de 1878 e 1879 seriam possivelmente aqueles aos quais se dedicou a reescrev-la,

    fechando uma verso final somente em 1881. Cortou dilogos, omitiu algumas

    personagens e, aps o trabalho, enviou uma cpia a Maria Iermlova, atriz do Teatro

    Mli, em Moscou, que, apesar de considerar "aceitvel" a jovem viva Anna Petrovna,

    personagem de destaque na pea, responde-lhe com a forte recomendao de que

    rasgasse o texto. A verso que chegou at ns, guardada pelo irmo de Tchkhov, que

    preservara as cpias enviadas censura, apresenta uma estrutura e um tom pouco

    semelhantes ao das produes que marcam o Tchkhov das "quatro grandes peas". A

    personagem principal, Mikhail Vassilivitch Platnov, um professor de provncia,

    espcie de Don Juan do interior23

    . A ironia que marca seu perfil impede que se erga

    como um heri dramtico tpico, ou mesmo como um prottipo de homem suprfluo,

    ainda que a prpria personagem Glagliev diga com suas palavras que Platnov "o

    mais fino expoente da moderna fraqueza de propsito (...). Ele caiu num beco sem

    sada, est perdido, no sabe o que focar, no entende..."24

    . irresistvel para as

    mulheres, mas cheio de idealismo e ceticismo. Tem ambies de ser um "segundo

    Byron" e no mesmo formado na universidade. O ambiente marcado pela

    decadncia da famlia e as personagens se dividem claramente entre credores e

    devedores. H aqui um paralelo destacado por alguns crticos, que veem em Platnov

    (primeira pea de Tchkhov) e O Jardim das Cerejeiras (ltima pea), um tom

    hiperblico, com forte acento na decadncia, expresso no endividamento das famlias

    22

    Esta pea sem ttulo, ainda no traduzida para o portugus ( ), alm de ser identificada no Ocidente como Platnov, tambm conhecida pelo nome Sem Patrimnio ou Sem

    Herana. Acredita-se que a primeira verso, mostrada para o irmo, teria sido perdida para sempre. No

    entanto, na impossibilidade da comprovao, fica a hiptese de que a mesma verso foi retrabalhada,

    culminando na que hoje conhecemos e aqui citada. A verso lida para esta pesquisa a traduzida por

    Laurence Senelick, presente no livro. CHEKHOV, Anton. The Complete Plays. New York/London: WW

    Norton & Company, 2006, p. 1-221. 23

    A expresso Don Juan foi usada por BENTLEY, Eric. Chekhov as Playwriter. The Kenyon Review,

    V11, n 2, Spring, 1949, p. 226-250. 24

    " Platonov, as I see it, is the finest exponent of modern infirmity of purpose (...) He has turned up a

    blind alley, he's lost, he doesn't know what to focus on, he doesn't understand..." Ver. CHEKHOV, Op.

    Cit., p. 18.

  • 25

    que se entregam venda do prprio patrimnio25

    . Se h marcas evidentes do drama (no

    destaque do protagonista, no conflito e dilogo veementes) e mesmo do melodramtico

    (o pirotcnico tiro no peito levado ao final, e em cena, por Platnov), o elemento

    cmico que ser, aqui, um tmido ponto de ligao com as produes da posteridade -

    a marca vital de uma coeso entre o cmico e o srio, que Tchkhov retrabalhar em

    toda sua obra, sinal de uma problemtica de fundo, que pensa como as aspiraes

    crticas e grandes ideias precisam conviver com o cotidiano sem sentido26

    .

    Seria precipitado, como se v, ver nesta pea que sequer chegou a ser encenada

    durante a vida de Tchkhov (fora rejeitada pelo Mli em 1882), o desabrochar de uma

    nova tendncia dramatrgica. No geral ainda bastante vinculada s leis do drama

    tradicional, ela revela ao menos a propenso do dramaturgo a este universo do cmico,

    que marcaria suas primeiras produes. E com contos cmicos que Tchkhov

    sustentar seus estudos e ajudar sua famlia nos anos em que estivera em Moscou, logo

    aps mudar-se de Taganrog, em 1880. At 1887, escrever para jornais de Moscou e

    So Petersburgo sob inmeros pseudnimos (Antocha Tchekhont, O Doutor Que

    Perdeu Seus Pacientes, O Irmo do Irmo etc). Neste perodo, Tchkhov diria que estes

    contos breves, de humor vaudevillesco, brotavam de sua cabea numa velocidade

    absurda, chegando a gastar no mais que um dia em cada um27

    . Aqui, interessa-nos no

    s a afinidade que desde cedo se estabelece entre o escritor e este gnero, mas tambm a

    temtica de muitos contos que servem como ponto de partida para nosso campo de

    interesse: sua crtica cida aos meios teatrais da poca. Os contos de Tchkhov de

    incios dos anos de 1880 so recheados de atrizes caprichosas e empresrios de teatro

    que no entendem nada de arte. Esta passagem do conto Fantasiados, no qual ataca

    diretamente Lentvski (alvo preferido poca) ilustrativa:

    Seis entradas para carruagem, mil lmpadas, uma multido de

    espectadores, guardas, corretores de ingressos. um teatro. L-

    se sobre as portas, como no rmitaj de Lentvski: "Stira e

    25

    A respeito desse possvel paralelo, ver: RAYFIELD, Donald. Orchards and Gardens in Chekhov. The

    Slavonic and East European Review, V. 67, N. 4, Oct., 1989, p. 530-545.

    CHEKHOV, A. Op. Cit., p. 5. 27

    conhecia a famosa frase de Tchkhov que afirmava ser a literatura, neste perodo, uma espcie de

    amante, enquanto a medicina seria sua legtima esposa. A situao ficar insustentvel para ele quando,

    aps receber uma carta do ento renomado escritor Grigrovitch, alertado para o desleixo com que

    vinha tratando suas habilidades literrias. Em 1887, j firme em sua convico de escritor, escrever ao

    irmo: "J quase no trabalho nas revistas humorsticas, pois elas no servem para a leitura. No gosto

    delas. Meu trabalho mais srio est no Nvoie Vrmia." Carta de 18 de janeiro de 1887. Ver:

    ANGELIDES, Op. Cit., p.63.

  • 26

    Moral!". Os ingressos so carssimos, redigem-se a longos

    artigos de crtica, aplaude-se prolongadamente e as vaias so

    raras... Um templo!

    Mas, um templo fantasiado. Retirando-se a inscrio

    Stira e Moral, no ser difcil ler: - Canc e chanchada28

    .

    Apesar do pessimismo de Anton Pvlovitch quanto a esse aspecto, o perodo era

    de transio e prometia. Em 1882, o Tzar Alexandre III aboliu o monoplio dos Teatros

    Imperiais (ento o Aleksandrnski, em So Petersburgo, e o Mli, em Moscou). Isto

    permitiu um decisivo arejamento no repertrio dos novos grupos (agora mais propensos

    a textos nacionais, contemporneos ou mesmo fora dos padres de expectativas das

    comisses de repertrio). Tal mudana se deu em grande parte pela presso de grupos

    amadores que almejavam maior espao e que se negavam a aceitar os princpios frreos

    que regiam estas instituies estatais: punies, bloqueio de pagamento, obrigatoriedade

    para os atores de decorar determinado nmero de linhas do texto por dia etc29

    ; e de

    novos dramaturgos, desejosos de maior espao.

    A abertura legal, no entanto, no significou movimento rpido em direo

    democratizao do acesso do pblico, mudana estrutural na qualidade do repertrio ou

    espao aberto a todos os interessados em produzir. A plateia ainda era reduzida e os

    grupos privados nascentes (marcados pelo signo da contradio entre dinamizar o

    cenrio teatral e preocupar-se com as bilheterias), abandonavam muitas vezes o discurso

    da "iluminao" e se pautavam pelos critrios de empresrios preocupados com a

    bilheteria - o que levou predominncia durante muito tempo de um repertrio com

    peas pirotcnicas e sensacionalistas. No meio teatral moscovita foi assim com um

    desses principais grupos: o Teatro Skomorokh, liderado por Mikhail Lentsvski (o

    mesmo ironizado no conto citado acima) e criado em 188130

    . O repertrio fora marcado

    por grandes clssicos, como Shakespeare, Ggol e Ostrvski, mas boa parte das

    encenaes eram peas que privilegiavam a exuberncia, os dramas claros e o riso fcil,

    bem ao gosto da classe mdia pagante.

    28

    TCHKHOV, Anton. A Dama do Cachorrinho e Outros Contos. Trad. Boris Schanaiderman. So

    Paulo: Editora 34, 2005, p.30. 29

    Idem, 1999, p. 9. 30

    " In 1881 Lentovskii founded The Minstrel (Skomorokh) Theatre intended to bring historical plays to

    the common people at popular prices; it closed in 1888 owing to poor box office. Lavish spending,

    combined with the sparseness of the audience, led to financial ruin. His New (Novii) Theatre, devoted to

    legitimate drama, opened in 1882; meant as a popular playhouse, it became famous for the sumptuousness

    and imagination of its staging. It was also the first Russian theatre to use electric light on stage."

    SENELICK, L. Historical Dictionary of Russian Theather. Lanham/Toronto/Plymouth: The Scarecrow

    Press, Inc, 2007, p. 211.

  • 27

    Por outro lado, o Teatro Pchkin, assumido por Fidor Korch em 1882, levou

    mais a srio a poltica de estmulo aos jovens dramaturgos (tanto que Nemirvitch-

    Dntchenko, que tivera intenso trabalho de dramaturgo e crtico antes de atuar com

    Stanislvski, tivera peas premiadas no Korch, em seu incio de carreira31

    ), para no

    falar da valorizao do drama literrio e do encorajamento de Tchkhov a escrever

    inmeras peas. Korch tambm incentivou descontos para estudantes e levou adiante

    uma poltica mais definida de formao de plateias. Para Stanislvski, este Teatro

    desempenhou papel decisivo em sua formao, e seria responsvel, segundo ele, por

    uma espcie de "preparao de terreno" para as inovaes posteriores do TAM32

    .

    Mas para Tchkhov o problema era srio: tratava-se de um desleixo crnico com

    a atividade cnica. Laurence Senelick enquadraria esse universo de preocupaes em

    uma espcie de "compromisso com o teatro"33

    , ainda que as manifestaes do

    dramaturgo fossem frequentemente de profundo desgosto. Suas cartas e mesmo

    comentrios em jornais punham abaixo bastidores, sem nenhuma idealizao dos atores

    - presunosos, vaidosos, ou ainda "vacas que se consideram deusas"34

    .

    A soluo dada pelo dramaturgo , como se mapear com frequncia em suas

    cartas e em sua produo, a preocupao com a "proximidade da vida", o

    "conhecimento da realidade" e a objetividade, pontos aos quais muitos atores

    (preocupados que estavam com o brilho individual em detrimento do trabalho de grupo,

    o gesto fcil, explosivo, sem estudo) eram pouco afeitos. Para ele, "os atores no

    compreendem, dizem asneiras e no escolhem os papeis adequados"35

    . Em partes, tem-

    se um paralelo com muito do que ser desenvolvido por Stanislvski, ainda que em

    chave diferenciada:

    Atores nunca observam as pessoas comuns. Eles no conhecem

    fazendeiros, comerciantes, padres aldees ou burocratas. Por

    outro lado, eles podem oferecer verdadeiras personificaes de

    jogadores desonestos, mulheres oportunistas, trapaceiros

    angustiados, em suma, todo tipo de indivduos que eles

    observam em seus passeios por bares e despedidas de solteiro.

    Algo horrivelmente ignorante36

    .

    31

    Idem, p. 271. 32

    Ver: STANISLVSKI, K. Minha Vida na Arte. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1989. 33

    SENELICK, 2006, p. 8-28. 34

    Idem, p. 12. 35

    Carta ao irmo Aleksandr em 24 de outubro de 1887. ANGELIDES, Op. Cit. p.71 36

    "Actors never observe ordinary people. They do not know landowners or merchants or village priests or

    bureaucrats. On the other hand they can give distinguished impersonations of billiard markers, kept

    women, distressed cardsharps, in short all those individuals whom they observe in their rambles through

  • 28

    Isto no que se refere prtica dos atores. Por outro lado, via uma nica soluo

    para a vulgaridade de empresrios de teatro, diretores, comisses de censura e mesmo

    dramaturgos: o amor sincero e o trabalho com a via literria. Esta, no entanto, sem o

    apontar de caminhos (como queria a intelligentsia) ou preocupaes comerciais: "

    preciso tentar com todas as foras tirar o teatro dessas grossas mos e transferi-las para

    as da literatura, ou ento o teatro ir declinar (...). Eu te imploro, apaixone-se pelo

    teatro"37

    . Para ele, at a massa de populares era mais "elevada e inteligente que o

    teatro"38

    .

    Se suas consideraes so duras, e aparentemente muito presas viso literria,

    no se pode ignorar sua preocupao evidente com as condies de realizao do teatro,

    o que fica claro no s agora, mas no futuro com seu empenho frequente por

    acompanhar ensaios e dar orientaes a diretores e atores, como veremos adiante. O que

    importa observar seu zelo, ainda que todo o seu trabalho como dramaturgo orbitasse

    ainda em torno dos jornais.

    Os contos de Tchkhov escritos sob inmeros pseudnimos tinham boa

    circulao e eram amplamente elogiados pelo pblico leitor, mas o Tchkhov

    dramaturgo era conhecido apenas em crculos muito especficos, e identificado nica e

    exclusivamente como humorista. em meados dos anos de 1880 que ele concebe boa

    parte de suas peas em um ato, assim como pequenos dilogos e pardias, publicados

    nos jornais e revistas de Moscou e So Pestersburgo. A noiva, ou O Capito Aposentado

    (, m)39, a primeira da leva de cenas que jorraro de sua

    mo nos prximos anos. Consiste em um pequeno dilogo publicado em Estilhaos

    (O) em 1883, e assemelha-se muito s cenas de Ggol e Ostrvski, ainda que

    com um desfecho mais "escabroso"40

    . Como bem constata Arlete Cavaliere, mesmo que

    no se referindo diretamente a estas pequenas esquetes, muito da produo dita "jovem"

    de Anton Tchkhov, estabelece uma espcie de fio com a tradio do cmico na Rssia,

    pothouses and bachelor parties. Horribly ignorant". Carta a Suvrin em 25 de outubro de 1889.

    SENELICK, Op. Cit., p. 12. 37

    "One must try with all one's might to transfer the theatre from the grocer's hands tho those of literature,

    or else the theatre will decline (...) I implore you, please fall out of love with the treatre". Carta a Suvrin

    de 03 de setembro de 1988. Idem, ibidem. 38

    Carta a Leontiv enviada em 11 de outubro de 1888. Idem, p. 13. 39

    Publicada sob o pseudnimo de Antocha Tchekhont. Ver: CHEKHOV, 2006, p. 267. 40

    Idem, p.265.

  • 29

    que ser retrabalhada em grande medida em suas "Quatro Grandes Peas"41

    , como

    veremos adiante.

    Em 1884, ano de produo intensa, Tchkhov escreve a pequena esquete Jovem

    Homem ( ), publicado em Estilhaos, que surpreendentemente passou

    pela censura, pois em poucas linhas a irnica personagem - coincidentemente um jovem

    humorista (!) - alfineta uma srie de instituies e oficiais, ante o abobalhado

    interlocutor. No mesmo ano publica em O Despertador () uma pardia de um

    melodrama alemo (O Limpo e o Leproso) traduzido para o russo por Tarnvski. A

    pardia intitula-se Os Trgicos Impuros e os Dramaturgos Leprosos (

    )42 e uma clara stira s produes de Mikhail

    Lentvski que, como vimos, era um importante "cabea" do meio teatral moscovita. O

    texto, que joga com o nonsense da cenografia e do jogo entre as personagens, parodia os

    excessos das produes comerciais de Lentsvski, que se baseavam sobretudo na

    pirotecnia. Boa parte das personagens levam nomes reais e, anos mais tarde, talvez por

    avaliar como irresponsvel a pequena brincadeira, Tchkhov indicaria que este texto

    no deveria constar em suas Obras Completas43

    .

    Ainda em 1884, em Estilhaos, publica Um Exame Ideal (

    )44, um leve dilogo entre um professor malicioso e persistente e um aluno

    irredutvel. Em outubro publica n'O Despertador o texto Balbrdia em Roma

    ( )45, tambm numa clara pardia opereta Carnaval em Roma, de

    Johann Strauss, produzida pelo Teatro de Lentsvki, em 1884. A esquete recebia o

    sugestivo subttulo de "Uma Cmica Excentricidade em Trs Atos, Cinco Cenas, com

    Um Prlogo e Dois Fracassos"46

    .

    Em meio a estas pequenas esquetes, pardias e cenas, surge sua primeira pea

    em um ato, escrita para o palco (vale lembrar que nenhum dos citados anteriormente

    fora encenado), intitulada Na Estrada Real ( ). O tema para este

    41

    CAVALIERE, Arlete. Teatro Russo. Percurso para um estudo da pardia e do grotesco. So Paulo:

    Humanitas/FAPESP, p. 180-213. 42

    Esta pequena cena foi traduzida para o portugus por Jac Guinsburg, com auxlio de Boris

    Schnaiderman. Ver: GUINSBURG, Jac. Stanislvski e o Teatro de Arte de Moscou. So Paulo:

    Perspectiva, 2001, p. 151-156. Tchkhov a publicou inicialmente sob o pseudnimo de "O Irmo do

    Irmo". 43

    Idem, p.151. 44

    Publicada inicialmente sob o pseudnimo de "Antocha Tchekhont". CHEKHOV, Op. Cit., p. 278. 45

    Idem, p.281. 46

    Idem, Ibidem.

  • 30

    pequeno "estudo dramtico" era o mesmo do conto "Outono", publicado no ano

    anterior. A histria se estrutura em torno de um nobre de perfil melanclico e decadente

    que, para pagar uma outra dose de vodka, entrega o retrato de sua infiel esposa ao

    taberneiro. A mesma que, por coincidncia, aparece para pedir abrigo e quase morta

    por um tiro por Igor Merik, que tambm sofrera uma desiluso amorosa no passado. A

    fim de tornar a verso um pouco mais "agitada" em relao ao conto (este para

    Tchkhov ainda bastante "esttico"), o dramaturgo se utilizou de artifcios comuns ao

    melodrama, como a cena-clmax citada acima. V-se, ainda sem definies claras como

    ser a posterior condio de Ivnov (), um leve debater-se de tendncias: entre a

    construo da "atmosfera", aqui ligada ao tom melanclico, que j se via esboada em

    alguns contos desse perodo, e o apego s formas dramticas convencionais (muitas das

    quais ele mesmo era um crtico severo), que recorriam ao efeito fcil, s emoes

    externas e intensas.

    Este pequeno drama, ao qual ele intimamente se referia como "um pouco

    nonsense para a cena", no chegou a ser publicado. Vtima da censura, fora lanado

    apenas dez anos aps a morte do autor, em 1914. Para o censor, um descendente alemo

    chamado E. I. Kaiser, a pea tinha uma "penumbra e uma esqualidez" e no poderia ser

    levada cena. Este seria um dos primeiros de toda uma linhagem de crticos que

    reclamaria do "pessimismo" e da "melancolia" de Tchkhov47

    , algo que se converter,

    como veremos, em uma verdadeira "cortina de ferro" para um mais profundo

    entendimento de seu teatro.

    Neste momento, o dramaturgo j se encontrava no fim de seu curso de medicina

    e publica sua primeira coletnea, Contos de Melpmene, alm de outras esquetes como

    , que vem do provrbio russo "Quem tem boca vai a Roma"48.

    A pequena pea O Pequeno Burgus ( ), tambm em 1884. A cena

    Ao p do leito ( ) e O Caso do Ano de 1884 ( 1884 )49

    foram escritas no mesmo ano e tambm marcadas pela veia cmica: cenas ligeiras e

    situaes inusitadas, com no mais que duas pginas.

    47

    Idem, p. 222-223. 48

    Idem, p. 285-286. 49

    Esquete publicada sob o pseudnimo de O Homem sem Spleen, no Estilhaos, em novembro de 1884.

    Idem, p. 285-293.

  • 31

    Em 1885, Tchkhov faz sua primeira viagem a So Petersburgo e conhece

    Aleksei Suvrin, editor do gigantesco jornal conservador Novo Tempo50

    e o pintor Isaac

    Levitan, com os quais estabelecer relaes duradouras. No ano de 1886, j afastando-

    se de boa parte dos jornais, comea uma contribuio intensiva para o jornal de Suvrin,

    que ser responsvel por sua definitiva popularizao em grande parte da Rssia. Alm

    disso, publica seu segundo livro de contos que, combinado com a seriedade reivindicada

    por Grigrovitch, assinado duplamente como Anton P. Tchkhov e Antoncha

    Tchekhont, como que a marcar uma espcie de transio para o definitivo empenho

    vida literria. No mesmo impulso surgem a minscula cena Drama () e contos

    como A Corista e Na Estrada.

    No entanto, para o teatro, s em 1886, que os anos comeam a se tornar

    produtivos. At ento Tchkhov no tivera nenhuma pea levada cena (ainda que Na

    Estrada Real tenha sido pensada mais detidamente para o palco). Dividido entre a

    censura, o receio com a gente de teatro, as tendncias comerciais que sufocavam os

    impulsos "verdadeiramente literrios e artsticos" e o trauma de juventude que marcara

    sua primeira tentativa de flego com Platnov, limitara-se a, como vimos, algumas

    esquetes com publicao, mas sem repercusso nos palcos. Temos at agora, portanto,

    uma recepo feita apenas por leitores que, se no ajuda a entender o que Tchkhov tem

    de vinculao com a prtica cnica no palco, nos leva por vias indiretas compreenso

    de algumas preferncias temticas e formais que marcaro toda sua potica51

    . Isto vai da

    complexificao que mais adiante dar a noo de comdia, at as querelas evidentes

    50

    A relao entre Tchkhov e Suvrin precisamente pontuada no livro organizado por Aurora

    Bernardini e Homero Freitas: TCHKHOV, A. P. Cartas a Suvrin (1886-1891). So Paulo: Edusp,

    2002. Na introduo, h um pequeno panorama da relao estabelecida entre o escritor russo e o editor. O

    dilogo expresso nas cartas reunidas mostra uma crescente relao, alimentada por discusses literrias,

    cooperao em edies dos contos de Tchkhov e debates polticos. No entanto, aps o caso Dreyfus (que

    estoura em 1984, mas se estende por vrios anos e envolve a militncia aguerrida de Zola em sua defesa),

    Tchkhov no concebe a posio reacionria adotada pelo jornal do amigo e a correspondncia entre os

    dois diminui drasticamente. Em carta dirigida ao irmo Aleksandr, em 23 de fevereiro de 1898, Tchkhov

    diria: "No episdio Zola, Nvoie Vrimia conduziu-se de modo simplesmente repugnante. Troquei cartas

    a esse respeito com o velho sbio (ainda que num tom bastante moderado) e agora deixamos de nos

    corresponder." Idem, p. 30. 51

    Alm do estudo de Arlete Cavaliere, j citado, vale a meno ao estudo decisivo de GOTTLIEB, Vera.

    Chekhov and the vaudeville: A Study of Chekhov's One-Act Plays. Cambridge: Cambridge University

    Press, 1982. Neste livro, a estudiosa analisa o perodo "negligenciado" da obra de Tchkhov, mostrando

    como as peas escritas a partir de 1885 (suas peas em um ato), so decisivas para estabelecer suas

    principais marcas formais, que refletiro em todas as peas de "maturidade". Para isso, faz uma breve

    retomada da tradio do vaudeville na Rssia e sua relao com o teatro francs, para evidenciar como

    Tchkhov se vincula a uma determinada tradio, mas como tambm inova em seu percurso.

  • 32

    que estabelecer com Stanislvski quando este props um sem-nmero de solues

    cnicas para o que concebera dramaturgicamente.

    A cena moscovita estava repleta de peas geis e cmicas, bem ao gosto mdio,

    e o Tchkhov escritor comeava a ser procurado com mais insistncia para escrever

    peas em um ato. Nos anos que seguiram, dedicou-se escrita de peas como Os Males

    do Tabaco ( ), em sua primeira verso, de 188652. A escrita tem em

    vista a realizao cnica, pois Tchkhov concebe a personagem pensando no talentoso

    comediante Grdov-Sokolov. No entanto, receoso da recusa do ator por ter escrito

    aquele monlogo em pouco mais que duas horas, enviou-a Gazeta de Petersburgo,

    mantendo ainda uma vez mais o pseudnimo de Antocha Tchekhont53

    . Nesta primeira

    verso do monlogo (a segunda viria apenas em 1902) Tchkhov parodia os "leitores

    comuns de cincia" que surgiam naqueles anos de sufoco czarista, em um momento de

    tentativa de elevao do homem comum e emergncia dos raznotchntzi 54

    . O

    tratamento da matria dado por Tchkhov nesta primeira verso parece pesar mais para

    o jogo exterior, em que a personagem se apresenta como o que no . Em uma palestra

    que profere por obrigao em um clube de provncia, Nukhin diz ter sacrificado sua

    vida em benefcio da cincia, apesar de no ser nem catedrtico nem pertencer ao meio

    cientfico; afirma possuir conhecimento do contedo a ser exposto, mas recorre ao

    "papelucho" constantemente para assegurar-se de frmulas e malefcios; afirma ser

    fundamental para o bom funcionamento e a excelncia do pensionato conduzido por sua

    famlia - j que arruma, leciona e secretaria - no entanto, parece ser a esposa quem tudo

    gerencia e realmente define o que ele pode e no pode fazer (desde o que e quando

    comer ou quando sair).

    A exterioridade dos procedimentos formais est tambm na valorizao de

    detalhes sugestivos (trocadilhos, imagens, sonoridades), em si mesmo cmicos: um

    52

    No Brasil h traduo direta do russo no livro organizado por Homero Freitas de Andrade.

    TCHKHOV, Anton. Os Males do Tabaco e Outras Peas em Um Ato. So Paulo: Ateli Editorial, 2003. 53

    CHEKHOV, Op. Cit., p.317-323. 54

    Boris Schnaiderman pontua bem o sentido que esses setores assumiram ao longo do sculo XIX e o

    como estiveram abertos a inmeros debates e transformaes na estrutura social pouco mvel da Rssia

    czarista: "A sociedade russa caracterizou-se durante sculos por uma acentuada estratificao e pela

    pouca mobilidade entre as diferentes camadas. A partir dos fins do sculo XVIII, foi-se formando, porm,

    uma nova camada: a dos que, oriundos das classes inferiores, tinham o nome de raznotchntzi (singular

    raznotchnietz). Durante o sculo XIX, os raznotchntzi desempenharam importante papel, como a

    camada mais receptiva s diversas tendncias revolucionrias, a menos ligada a uma tradio de

    estabilidade poltica e social." SCHNAIDERMAN, Boris. A Potica de Maiaksvski. So Paulo,

    Perspectiva, 1971, p. 148.

  • 33

    pensionato situado na "esquina da rua Gntali com a travessa dos Cinco Cachorros, no

    imvel do Capito Maminha"; os gestos exagerados para que saiam da plateia os

    espectadores indesejados; o desequilibrar para pegar um papel; os bocejos constantes da

    personagem (que denotam sua velhice sonolenta e conotam o prprio tdio do tema) e o

    curioso fato de que sua asma comeou no dia "treze de setembro de mil oitocentos e

    sessenta e nove... mesmo dia em que nasceu a filha de minha senhora"55

    . A personagem

    tem forte acento caricatural e seria equivocado ver ali qualquer jogo entre o cmico e o

    trgico, como mostraria Tchkhov em sua segunda verso do texto.

    Na transio de 1886 para 1887 escreve uma pea que tem como origem um

    conto homnimo, Calkhas (meses depois reescrita como O Canto do Cisne -

    / )56, vinda do mesmo impulso. O "estudo dramtico" tinha em mente o

    ator Vladmir Davdov, o qual Tchkhov insistentemente elogiava em cartas aos

    conhecidos57

    . O ator a levaria ao palco do Korch em 19 de fevereiro de 1888. Nesta

    pequena pea em um ato, temos o breve canto de um ator em fim de carreira. Sozinho

    no palco escuro rememora seu passado de brilhantes atuaes, mas agora visivelmente

    um decadente. De grande ator trgico, foi a bufo. E, ainda que tente recuperar com

    palavras suas grandes intervenes em Hamlet ou Rei Lear, sua aparncia ridcula o

    desabona. Trata-se, como diz Senelick, de tema caro ao dramaturgo pelo resto da

    carreira: a vida posta em termos, as tentativas de sonho no auge da desiluso. A atuao

    de Davdov, ainda que no tenha desagradado ao dramaturgo, veio to recheada de

    referncias a atores do passado inseridas por ele prprio que o texto, de certa forma,

    descaracterizou-se.

    Em agosto de 1887 publica em O Despertador a pequena cena, Antes do Eclipse

    ( ),que no chegaria a ser representada. Ali, duas personagens inslitas

    conversam: o Sol e a Lua. Momentos antes do Eclipse, realizam algumas negociaes

    para garantir a consumao do fato, envolvendo rublos e promessas de fama para a Lua

    que, segundo o Sol, era uma personagem no muito "radiante"58

    .

    55

    TCHKHOV, 2003, p. 13-21. 56

    Idem, p. 23 57

    "Escrevi uma pea de quatro folhas tipogrficas. Ela ser representada em quinze ou vinte minutos. o

    menor drama do mundo. Vai ser interpretada pelo famoso Davidov, que est agora trabalhando no Teatro

    Korch. A Saison a est publicando e, por isso, ela ser espalhada por toda parte. Em geral, muito melhor

    escrever coisas pequenas do que grandes: h pouca pretenso e fazem sucesso... necessrio mais do que

    isso? Escrevi o meu drama em uma hora e cinco minutos. Comecei outro mas no terminei, pois no tinha

    tempo." Carta enviada a Maria Kisseliova em 14 de janeiro de 1887. ANGELIDES, Op. Cit. p.61. 58

    CHEKHOV, Op. Cit., p. 295-298.

  • 34

    em meio a estas inmeras peas em um ato e contos cmicos que Tchkhov

    escreve sua primeira pea longa de repercusso no palco. Isto condicionar uma

    determinada expectativa do pblico, simbolizada na dbia recepo no dia de estreia da

    primeira verso de Ivnov, em 19 de novembro de 1887, no Teatro Korch. Como enredo

    bsico, temos a histria de um proprietrio de terras que, portador de um passado

    aristocrtico glorioso, vive agora a franca decadncia, a ponto de no ter dinheiro para

    pagar ao tratamento da esposa que, segundo o amigo e doutor Lvov, vtima da

    tuberculose. O protagonista v aos poucos o esfacelamento de seu mundo, sem

    compreender de fato suas causas, e enreda-se num universo de apatia, mesquinhez,

    melancolia e fofocas. A montagem foi feita em benefcio de Nikolai Svetlov e mereceu

    apenas quatro ensaios, ainda que Korch houvesse prometido dez. Tchkhov vinha

    insatisfeito dos ensaios que acompanhava e, como escritor, colocava-se na posio de

    algum que deveria zelar pela qualidade do material, e por isso opinava sobre a

    distribuio dos papeis e a expresso cnica59

    . Sua admirao por Davdov continuava,

    e a ele atribuiria o papel principal. Mas o descontentamento com o conjunto, como que

    numa busca pelo acerto de tom geral na produo, era frequente. Mais uma vez, o

    desleixo dos atores, que pareciam ver ali apenas mais uma pea para incrementar o

    repertrio, o incomodava sobremaneira, o que em certo sentido no deixava de ser o

    horizonte do prprio condutor do teatro: "Korch um comerciante, e para ele no

    importa o sucesso dos artistas e da pea, mas sim a arrecadao total"60

    .

    Ainda que Tchkhov tenha tentado pegar a pea de volta (a porto de Korch fazer

    um "escarcu"), sua estreia o surpreendera. Em carta enviada ao irmo no dia 20 de

    novembro, o dramaturgo descreve em detalhes o seu sentimento ao longo de cada ato.

    Ao final do primeiro, aps receber uma coroa de flores sob inmeros aplausos, chegaria

    a pensar que "aquela no era sua pea". Depois de altos e baixos, anima-se com a

    perplexidade momentnea do pblico em silncio, que o substitui por aplausos e bater

    de ps (que abafam algumas vaias):

    Os frequentadores de teatro dizem que nunca viram tamanha

    efervescncia nem tantos aplausos e vaias, e nunca antes

    aconteceu de ouvirem tantas discusses quantas viram e

    ouviram na minha pea. E no Teatro de Korch no houve outro

    caso em que o autor tenha sido aclamado aps o segundo ato. 61

    59

    Carta ao irmo Aleksandr, enviada no dia 24 de outubro de 1887. ANGELIDES, Op. Cit. p. 71. 60

    Carta a Nikolai Likin, enviada em 04 de novembro de 1887. Idem, p. 74. 61

    Idem, p. 77-79.

  • 35

    No entanto, tal estado de nimo fora momentneo. Dias aps, o comentrio

    cauteloso de seu outro irmo Mikhail reconhecera os numerosos aplausos, mas

    destacara o fato de que a pea no fora verdadeiramente compreendida, j que a crtica

    por um bom tempo ainda precisara "aclarar" o sentido da personagem principal62

    .

    Tchkhov percebeu que havia ali uma compreenso geral do pblico, e mesmo de parte

    da crtica, de que em Ivnov havia um acerto de contas com a gerao de 1880 russa.

    Diante da inrcia e incapacidade de ao frente represso e o sufocamento ps-

    assassinato de Alexandre II, Ivnov seria uma espcie de "expiao" - seria, nas

    palavras do populista Mikhailvski, um "Hamletista", representante de um grupo social

    que tenta "racionalizar sua inao e depresso", ou seja, um homem suprfluo63

    . Para

    alguns crticos, que mesmo diante do sucesso de bilheteria mostravam-se

    profundamente irritados (at porque Davdov era um grande chamariz), a pea era

    "imoral", uma "repugnante desordem", uma "bobagem cnica"64

    , sobretudo por mesclar

    procedimentos de uma tragdia domstica e um problema srio de poca.

    O dramaturgo ficara particularmente incomodado com tal repercusso.

    Inicialmente concebera a pea como expresso de um homem comum, honrado e

    educado, que tem de lidar com um presente pouco enobrecedor, e todas as expectativas

    elevadas de uma boa educao ou racionalizao da produo na Rssia, que sero

    frustradas ao longo de sua vida. Sua tentativa de tentar entender os motivos que levam

    a personagem a cair em uma espcie de vazio de vida e atitude contemplativa, ao

    contrrio de julg-la com ferocidade, como pareciam querer as plateias e parte da

    intelligentsia65

    .

    Mas o que tambm dificultou em grande parte sua empresa foram as prprias

    incongruncias formais com as quais a pea tinha de lidar. O ataque cardaco que mata

    Ivnov66

    em cena no ltimo ato acentuou o tom melodramtico, e levou o pblico

    inclinado s suas comdias ao riso fcil. A personagem exigia complexidade na escrita

    e na encenao, como atestam as prprias intenes de Tchkhov ao conceb-la: "Eu

    62

    CHEKHOV, Op. Cit., p. 324. 63

    SENELICK, Op. Cit., p. 17 64

    Idem, Ibidem. 65

    A carta enviada a Suvrin em 30 de dezembro de 1888, Tchkhov discute em detalhes quais eram suas

    reais expectativas com aquele drama, chegando a discorrer sobre cada personagem. Ver: TCHKHOV,

    2002, p. 137. 66

    Ver primeira verso da pea publicada nas obras completas. CHEKHOV, Op. Cit., p. 324-414.

  • 36

    queria fazer uma extravagncia: no criei um malvado, nem anjo algum (mas no

    consegui me esquivar dos bufes), no condenei ningum, no absolvi ningum..."67

    ;

    mas o autor tambm tem conscincia de suas limitaes iniciais (mas que,

    incrivelmente, tambm sero suas grandes marcas de inovao no futuro):

    O argumento complicado e no tolo. Termino cada ato como

    os meus contos: conduzo o ato inteiro de maneira tranquila e

    mansa, mas ao final dou um tapa na cara do espectador. Usei

    toda a minha energia em alguns trechos realmente fortes e vivos,

    mas as pontes que ligam esses trechos so insignificantes,

    frouxas e estereotipadas. Apesar de tudo estou contente. Mesmo

    que a pea seja ruim, criei um tipo que tem uma significao

    literria (...)68

    Essa frouxido no alinhavamento do entrecho ser decisiva nas peas posteriores

    de Tchkhov. No entanto, seu foco aqui est no que ficou de estereotipado e

    inconsistente. Sem forar a ligao, possvel sentir um leve choque: o do tema que

    pede uma maior profundidade na abordagem psicolgica, com a forma geral que ainda

    tem de conviver com estratgias dramticas tradicionais (aqui, no caso, a cena de efeito

    e o protagonismo do heroi, que criou polarizaes indesejadas). O efeito final, para

    Senelick, parecia indicar que o prprio Tchkhov no tinha definido uma atitude clara

    em relao personagem: "Era Ivnov uma pardia ou um tipo de homem

    suprfluo?"69

    .

    A encenao reforou o elemento dramtico, centrado na figura do heroi central,

    vtima de uma ardilosa trama de fofocas, diante da qual apenas um mvel inerte.

    Frente s fortes crticas recebidas, Tchkhov se dedica a reescrever a pea, chegando

    mesmo a encar-la como uma forma no definitiva. A primeira medida foi cortar a cena

    do ataque cardaco, que parecia um definitivo ponto fora da reta, e substitu-lo por um

    suicdio nos bastidores (o mesmo recurso ser utilizado anos depois em A Gaivota, com

    Trepliov). Contudo, as mudanas no vm no sentido de suplantar o choque ao qual nos

    referimos. Pelo contrrio, Tchkhov quis mostrar-se capaz de "operar as leis do drama"

    (j que muitos acusavam-no do contrrio). Substituiu as passagens demasiado lentas,

    67

    Carta ao irmo Aleksandr, de 24 de outubro de 1887. ANGELIDES, Op. Cit., p.71. 68

    Idem, p. 66-67. 69

    "In the first version of Ivanov, unfortunately, he had not managed to clarify his own attitude towards

    his protagonist: was Ivanov a parody or a type of the 'superfluous man'?" SENELCIK, Op. Cit., p. 17.

  • 37

    irnicas, com detalhes de fundo (o que ento chamara de frouxo ou mal alinhavado), por

    cenas mais dramticas, ao modelo do que se tinha como bom drama poca. A crise de

    Ivnov ao final no seria mais inesperada e suprflua - ganharia em integridade e

    heroificao, com direito a uma espcie de discurso de defesa final, ainda que, como

    viria a desenvolver futuramente, o "motivo" no fosse diretamente explcito e tivesse

    fortes marcas de ambiguidade70

    . De pea com veios cmicos, Tchkhov a convertera,

    com todas suas especificidades, em um drama.

    No intermezzo da reviso de Ivnov, Tchkhov deu continuidade ao trabalho de

    produo de farsas e pequenas cenas cmicas71

    que definiram seu reconhecimento junto

    ao pblico russo. Elas tinham, como disse, "sucesso garantido", mas nem por isso

    devem ser vistas como menores. Em 1888 escreve O Urso () e O pedido de

    casamento ()72. A primeira gozou de imediato sucesso junto ao pblico.

    Fora representada inclu