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Dissertação
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PROGRAMA DE LITERATURA E CULTURA RUSSA
RODRIGO ALVES DO NASCIMENTO
Tchkhov no Brasil:
a construo de uma atualidade
Verso corrigida
So Paulo
2013
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS
PROGRAMA DE LITERATURA E CULTURA RUSSA
Tchkhov no Brasil:
a construo de uma atualidade
Rodrigo Alves do Nascimento
Dissertao em verso corrigida apresentada ao
Programa de Ps-graduao em Literatura e Cultura
Russa do Departamento de Letras Orientais da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo como requisito para
obteno do ttulo de Mestre em Literatura e Cultura
Russa. Pesquisa desenvolvida com apoio da Fundao
de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo
(FAPESP).
De acordo,
Orientador: Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide
So Paulo
2013
3
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
______________________________________________________________________
Nascimento, Rodrigo Alves do
Tchkhov no Brasil: a construo de uma atualidade / Rodrigo Alves
do Nascimento; orientador Bruno Barretto Gomide. -- So Paulo, 2013.
344 f. ; il.
Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura Russa Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.
1. Tchkhov, Anton Pvlovitch, 1860-1904. 2. Dramaturgia. 3.
Encenaes. 4. Teatro Brasileiro. 5. Teatro Russo I. Ttulo. II. Gomide,
Bruno Barreto.
4
RODRIGO ALVES DO NASCIMENTO
Tchkhov no Brasil:
a construo de uma atualidade
Dissertao de mestrado em verso corrigida presentada ao Programa de ps-graduao
em Literatura e Cultura Russa do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, aprovada pela
Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:
______________________________________________
Prof. Dr. Bruno Barretto Gomide
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Universidade de So Paulo
Orientador
______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Ramos
Escola de Comunicaes e Artes
Universidade de So Paulo
______________________________________________
Prof. Dra. Elena Vssina
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Universidade de So Paulo
So Paulo
2013
5
Para Vilma Aras,
pelas lies de liberdade.
6
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer FAPESP, pelas bolsas concedidas no Brasil e nos EUA, que me permitiram a dedicao exclusiva a esta pesquisa.
Ao meu orientador, Bruno Barretto Gomide, que me honrou com suas
orientaes e, sempre disposio, permitiu-me grande liberdade de trabalho.
Na USP, tive a oportunidade de assitir s aulas de Elena Vssina, Arlete
Cavaliere, Ftima Bianchi, Maria Silvia Betti e do professor Joo Roberto Faria, que me
proporcionaram momentos instigantes de formao e em muito contriburam para este
estudo. Alm deles, Aurora Fornoni Bernardini, Tatiana Belinky e Boris Schnaiderman
cederam longas entrevistas - o que, em si, j vale por todo o trabalho.
Na Universidade da Califrnia, em Berkeley, tive a oportunidade de tomar
contato com as timas aulas da professora Anna Muza e com a presena solcita da
professora Irina Paperno - responsveis tambm por me guiar dentro do acervo fabuloso
das bibliotecas americanas. Laurence Senelick e Patrick Miles, especialistas na recepo
de Tchkhov nos EUA e no Reino Unido, estiveram disposio para trocar e-mails e
fornecer informaes valiosas para esta pesquisa.
No Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-UNICAMP), fui beneficiado pelas
aulas do professor Antonio Arnoni Prado e pelas presenas fundamentais, tanto pessoal
quanto intelectualmente, dos professores Eric Mitchell Sabinson e Vilma Aras. A
professora Vilma, em especial, abriu-me as portas para a seara russa.
No Rio de Janeiro, o diretor de teatro Antonio Gilberto me forneceu preciosas
informaes sobre a recepo de Tchkhov no Brasil. Mrcia Cludia, funcionria da
FUNARTE, aturou-me durante muitos dias e nunca negou qualquer solicitao.
Tambm os funcionrios do AEL-Unicamp, do Centro Cultural So Paulo, da
Casa Rui Barbosa e da Biblioteca Jenny Klabin Segall foram sempre solcitos e
prestativos. Os funcionrios da Ps-Graduao, em especial o Jorge, tornaram o
labirinto burocrtico das inscries, prazos e relatrios menos assustador.
H tambm os amigos! Fernando e Gracilene Macedo so amigos de primeira
hora, salvaram meus dias da monotonia e garantiram as condies para que eu
conseguisse trabalhar (e bebericar). Adriana e Anderson, primos, deram-me tima
estadia nos dias de confeco dos captulos finais. Marcelo Lotufo, mesmo em outro
hemisfrio, ajudou-me em tudo e grande parceiro intelectual. Leonel Carneiro deu
timas indicaes para o texto. Larissa Machado enfrentou os arquivos junto comigo.
Priscila Nascimento, Deise e Flvia tornaram minha vida nos corredores da FFLCH
mais vivas. Lgia, Larissa Higa, Gislaine e Fernanda Valim so insubstituveis e tm
tornado essa etapa de minha vida menos rida. Diogo, Dieguinho, Diego Fernandez,
Alexandre Baquero, Lucas Ferreira, Igor Tanaka, Luis Stival, Robson, Paulinha,
Priscila, Gabriel e Kau me brindam com a oportunidade de t-los como amigos.
J quase no final, mas no menos importante, agradeo aos meus irmos Rogrio
e Reginaldo, a quem amo tanto. Agredeo ao meu pai Sebastio, por ser um
maravilhoso contador de histrias - o primeiro grande artista que conheci. E agradeo a
minha me, Snia, por ser quem , por ser um exemplo de luta e por ter me instigado a
ler os primeiros livros.
Por fim, agradeo Patrcia Rocha, companheira que me deu meus melhores
anos e que toca em meus dias uma apaixonada sinfonia para o embalo do corpo e das
emoes. Aos meus companheiros de militncia poltica e aos meus educandos que,
mesmo diante dos percalos (que so muitos), continuam acreditando que necessrio
viver de maneira radicalmente diferente da que se vive hoje. Ainda que no o saibam,
tambm pensam um pouco como Tchkhov.
7
Poucos escritores estrangeiros so mais intrinsecamente
"brasileiros" do que Anton Chekov (sic). E sua obra tem um
pungente "brasileirismo" atual. De Dostoivski ou Tolstoi - os
grandes contemporneos de Chekov - s se pode dizer que
sejam brasileiros naquilo que tm de universal: a angstia
metafsica, a luta pelo aperfeioamento, a preocupao pela
injustia social vista como pecado, etc.
Chekov, no. Equilibrado sensato, cuidadoso das
aparncias, mais "europeu" do que russo, viu perfeitamente, viu
to bem quanto o grande Dostoivski, a revoluo que se
acercava, mas viu-a de forma muito mais nossa: as elites russas
no eram elites nenhumas, os fazendeiros e senhores de
engenho no eram nem maus nem bons, mas estpidos e
imprevidentes, todo o mundo via o errado de tudo, mas ningum
queria dar-se o trabalho de endireitar nada, todos falavam
muito em cultura mas ningum a conhecia fora dos livros,
cultura viva, inventada, fecunda. Sua pea "O Cerejal" ou "O
Pomar de Cerejas" ou como a chamemos, podia desenrolar-se
numa fazenda de caf, assim como "As Trs Irms" podia
acontecer num engenho de acar (...)
Antonio Callado, Chekov
8
NASCIMENTO, Rodrigo Alves do. Tchkhov no Brasil: a construo de uma
atualidade. So Paulo: 2013, 344f. Dissertao (Mestrado em Literatura e Cultura
Russa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So
Paulo.
RESUMO
Anton Pvlovitch Tchkhov (1860-1904) hoje um dos dramaturgos mais encenados no
Brasil e no mundo. A fim de compreender como se deu o processo de afirmao de sua
dramaturgia, bem como as interpretaes e atualizaes feitas por crticos e grupos
teatrais, realizaremos um estudo de recepo com foco especfico na relao entre texto
e cena. Inicialmente, faremos uma breve anlise de suas primeiras encenaes em solo
russo (e a produo pelo Teatro de Arte de Moscou do que se convencionou chamar
tchekhovismo), passando pelos palcos europeus e americanos para, finalmente, entender
as principais interpretaes produzidas em solo brasileiro - foco deste trabalho. Ao final,
esperamos que fique evidente que nossa tentativa menos a de estabelecer uma linha
evolutiva de dissoluo do mito do tchekhovismo e mais a de mostrar como ao longo da
histria da recepo do drama de Tchkhov sua atualizao constante sofria (e sofre)
presses dos impasses de nossa formao teatral, nossas dificuldades econmicas,
sociais e polticas.
Palavras-chave: Anton Tchkhov; Dramaturgia; Encenao; Teatro Brasileiro; Teatro
Russo.
9
NASCIMENTO, Rodrigo Alves do. Chekhov in Brazil: the building of a presentness.
So Paulo: 2013, 344f. Dissertao (Mestrado em Literatura e Cultura Russa) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo.
ABSTRACT
Anton Pavlovich Chekhov is one of the most staged playwriters of our days both in
Brazil and in most of the World. In order to understand how the importance of his
dramaturgy came into being, as well as the different interpretations and updatings done
by several theater groups, this study will investigate Chekhov's reception, with emphasis
to the relation between the text and the stagings. Beginning with an analysis of his
Russian reception (and the creation of what we came to call Chekhovism by the Moscow
Art Theater), we will then proceed with analysis of his stagings in both Europe and the
United States in order to finally approach his Brazilian reception and interpretation the main focus of this study. We hope, by the end of this inquiry, to have made clear that
our intention is not only tracing an evolutionary line of the myth of Chekovism and of
its dissolution, but also showing how Checkov's constant reinterpretations suffered (and
continues to suffer) pressure from the genesis of our theater tradition and of our social,
political and economic struggles.
Key Words: Anton Chekhov; Dramaturgy; Stagings; Brazilian Theater; Russian
Theater.
10
SUMRIO
Introduo
1. Como se cria um Tchkhov
1.1. Dentro do texto, fora dos palcos
1.2. Uma Gaivota de tinturas trgicas
1.3. Um Tio Vnia com sofrimento duradouro
1.4. Trs Irms que se sufocam no tdio de provncia
1.5. Um Jardim das Cerejeiras sem riso
1.6. A Revoluo varrer o tdio?
2. Tchkhov no Ocidente: entre o extico e o ntimo
2. 1. Frana: a "alma russa" como espetculo
2. 2. Reino Unido: falar de nossos problemas, maneira russa
2. 3. Estados Unidos: dos crculos alternativos aos comerciais
3. Tchkhov no Brasil: primeiros momentos
3.1. Rstico e Antiburgus
3.2. Estudantil e Amador
3.3. O cmico no parece srio
3.4. O dramaturgo, o melhor professor
3.5. Tchekhovismo: momentos decisivos
4. Que tem o Brasil a ver com Tchkhov?
4.1. O mais brasileiro dos russos
4.2. Fissuras na tradio
4.3. Tchkhov poltico
4.4. Poltica, desbunde e algumas contradies
5. Tchkhov, nosso contemporneo
5.1. A tradio posta em questo - Tovstonogov, fros, Strehler
5.2. Recolhimento e descompasso
5.3. Sem estranheza de acento
5.4. Pluralidade de tendncias
5.5. Desconstruindo Tchkhov
6. Concluso
12
22
22
43
51
54
57
62
68
70
74
78
85
93
95
105
110
118
124
124
127
129
136
148
148
154
164
170
181
195
11
7. Referncias Bibliogrficas
7. Anexos
Anexo 1 : ndice Cronolgico de Montagens para o Teatro
Anexo 2: Fichas Tcnicas de Encenaes, Fontes e Fotos
Anexo 3: Edies Brasileiras (Contos e Teatro)
Anexo 4: Seleo de Textos Crticos
198
221
224
286
299
12
Introduo
Tudo o que escrevi ser esquecido em alguns anos. Mas os
caminhos que abri ficaro intactos e seguros,
e nisso reside meu nico mrito...
(Tchkhov) 1
Tchkhov permanece o cronista da vida moderna.
(Sbato Magaldi)
Shakespeare reinventou os gregos para os tempos modernos e
Tchkhov para o sculo vinte
(Peter Stein)2
Que tipo de interesse temos ns por Tchkhov? Como um dramaturgo to
distante no tempo e no espao, aparentemente fechado em uma sensibilidade de fim de
sculo, acusado de "melanclico", "inbil" e "decadente" por muitos de seus
contemporneos, pode ainda hoje dizer-nos algo e evocar sentidos possveis que nos
permitam falar de sua atualidade? Dentro da tradio teatral brasileira, em muitos
momentos bastante afeita potncia do dilogo, sempre s voltas com o debate sobre
sua real "modernizao", como essa dramaturgia sem dilogos e aes claras pode se
firmar? As perguntas no so simples, mas ao mesmo tempo no a primeira vez que
vm baila. Afinal, o teatro por excelncia a arte do presente e vive de seu contato
direto com a sensibilidade do pblico que o experiencia, e pode, por isso, reconceber e
reinventar formas aparentemente superadas. Essa premissa to decisiva que no toa
Peter Brook chamaria teatro morto aquele feito por atores e assistido por espectadores
com interesses meramente comprobatrios, que se dirigem ao teatro para ver as linhas
de seu drama preferido corretamente encenadas ("da forma como foi escrito") e
experienciar a cena sem nenhuma sensibilidade nova. Segundo ele, "o Teatro Morto
trata os clssicos supondo que, em algum lugar algum j descobriu e definiu como o
1Mximo Grki citando o que dissera o amigo Tchkhov, em uma de suas ltimas conversas com o
escritor. (LAFFITTE, Sophie. Tchekhov. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1993, p. 178). 2 STEIN, Peter. Entrevista a Amie Ferris-Rotman e Iri Pchkin em 2010, em Moscou. Disponvel em:
http://entretenimento.uol.com.br/ultnot/reuters/2010/01/29/ult26u29717.jhtm. Acesso em 29 jan. 2010.
13
drama deve ser representado"3. Pensar na atualidade de Tchkhov , portanto, pensar
como foi possvel retrabalhar a fora de seu drama atravs do tempo para que chegasse
at ns, dentro de um processo vivo de reinterpretaes que s o teatro pode conceber.
E sua presena j to evidente, que Anton Pvlovitch se converteu em um dos
dramaturgos mais importantes da contemporaneidade; e sua atualidade j , para muitos,
um dado inquestionvel.
Em artigo de novembro de 2012, Ben Brantley, crtico de teatro do New York
Times, afirmou que s neste ano foram trs importantes montagens de Tio Vnia em
cartaz em Nova York, com concepes completamente diversas, alm de montagens de
Ivanov, A Gaivota e as Trs Irms, que tambm abundaram nos palcos de Londres4. Em
2010, ano de comemorao do 150 aniversrio do dramaturgo, circularam pelo mundo
montagens de peso de seus textos ou baseadas em sua vida e obra5. S no Brasil, j
possvel mapear suas peas em cartaz em todas as temporadas nos palcos das principais
capitais. Tanto que, em 1998, Srgio de Carvalho afirmava que Tchkhov seria muito
provavelmente o autor mais encenado dos palcos brasileiros6. E a sintonia dessa
dramaturgia com o teatro e o pblico nacionais teve um de seus pontos altos em 2010,
com o Espao Tchkhov (temporada na FUNARTE-SP com exposio de imagens de
encenaes brasileiras antolgicas, instalaes, palestras e montagem de uma pea sob
direo do russo Adolf Shapiro7) que, se no sinaliza qualitativamente o sentido dessa
presena, pelo menos nos demonstra o nvel de familiaridade de nosso teatro com o
dramaturgo russo, que lhe viu rendida uma "homenagem", a qual no se v com
frequncia.
3 BROOK, Peter. O teatro e seu espao. So Paulo: Vozes, 1970, p. 7.
4 BRANTLEY, Ben. "Chekhov Melancholy, never so welcome". The New York Times. 29 nov. 2012.
Disponvel em: http://theater.nytimes.com/2012/12/02/theater/ben-brantley-on-chekhov-on-new-york-
stages.html?_r=0. Acesso em 11 de janeiro de 2012. 5 S neste ano, vieram para o Brasil importantes montagens internacionais, baseadas direta ou
indiretamente em sua vida e obra: Donka - uma carta a Tchkhov, dirigida pelo suo-italiano Daniele
Finzi Pasca (que abriu o Festival Internacional Tchkhov e estreou no Brasil em agosto de 2010), Os
Irmos Tchkhov, montagem do russo Alexander Galibin (que estreou em novembro do mesmo ano, em
So Paulo) e As Trs Irms, dirigida pelo escritor e cineasta libans Wajdi Mouawad (dezembro de 2010). 6 CARVALHO, Sergio. Tchkhov conta Brasil - por que o dramaturgo russo do sculo XIX ser um dos
autores mais encenados neste ano no pas. Revista Bravo, n. 07, Ano 1. So Paulo, abr. de 1998, p.106-
109. 7 "Evento/Espao" que ocorreu sob curadoria de Elena Vssina (professora da FFLCH USP) entre 17 de
setembro e 10 de novembro, com parceria entre a Fundao Nacional de Artes e o Festival Internacional
de Teatro Anton Tchekhov, de Moscou. Ver: http://www.funarte.gov.br/teatro/espaco-tchekhov-2010-na-
funarte-sp/. Acesso em 12 de janeiro de 2012.
14
Os motivos que levam a esse crescente interesse, a ponto de Laurence Senelick
afirmar que Anton Pvlovitch tem se tornado o segundo dramaturgo em reputao
depois de Shakespeare8, so um ponto decisivo. Isso significa entender como se do a
atualidade dessa forma dramtica e das problemticas por ela apresentadas. Para Srgio
de Carvalho, Tchkhov nos fala de maneira ntima porque sua dramaturgia o retrato da
"crise da ao na vida" e, tal qual a Rssia de fins do XIX, vivemos em um perodo de
intervalo, de aparente "fim das utopias". E o "mecanismo teatral" do dramaturgo,
realista e desdramatizado, permite acessar por meio dos desvos da forma "inacabada",
no o retrato do tdio ou apenas a sensibilidade de uma forma abstrata e "cinzenta", e
sim os "exemplos negativos" de personagens que mostram que " possvel viver de
maneira diferente da que se tem vivido at hoje"9.
J para Ben Brantley, a atualidade do dramaturgo russo est na ambiguidade do
desenho ao mesmo cmico e trgico que este "insiste" em fazer da vida, pois, em uma
poca de transio como a nossa, em que a noo de famlia (que ao longo dos anos
obrigou muitos a amontoarem-se sob o mesmo teto), assim como a das ideologias pr-
fabricadas, so postas em questo - tal qual em sua Rssia pr-revolucionria.
Ainda que estas duas pequenas amostras do riqussimo debate sobre a atualidade
de Tchkhov tenham seu quinho de interesse, a verdade que um estudo profundo
sobre "por que ainda ler e encenar Tchkhov" algo a ser feito. Ainda assim, o que se
percebe que todo o sculo XX, de oriente a ocidente, um grande palco em que
pudemos assistir a uma tentativa constante de mostrar como Tchkhov, um dramaturgo
russo de fim de sculo, que em suas grandes peas era aparentemente descolado de
todas as "tradies" e modismos, um poderoso referencial. por isso que este trabalho
optar por apresentar um percurso sinttico, mas (acreditamos) bastante rico, de como
diretores, atores e crticos promoveram o dilogo e a atualizao de suas peas ao longo
dos anos. Ou seja, um estudo de recepo das interpretaes produzidas por esses
8 "A funny thing has happened. Anton Chekhov, who was judged in his own time to be a playwriter
narrowly culture-bound, over-refined and obscure, whose drama was persistently characterized at home
and abroad as depressing and pessimistic, has become second only to Shakespeare in reputation and in frequency of production. Andrzej Wajdas remark Theatre in our European tradition derives from the word, from literature, the Greeks, Shakespeare, Chekhov is typical of the regard in which Chekhov is held. Ver: SENELICK, Laurence. The Chekhov Theatre - a Century of Plays in Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. I. 9 CARVALHO, Op. Cit, p. 106.
15
agentes10
que desenhar um arco que vai da Rssia imperial e passa por pases centrais
da Europa, pelos Estados Unidos, at chegar ao Brasil - nosso ponto maior de interesse.
Evidentemente, todos esses pases dialogaram direta ou indiretamente com as
problematizaes de seu tempo histrico, suas condies econmicas, sociais e
culturais. E no caso da dramaturgia de Anton Pvlovitch, em que, nas palavras de
Raymond Williams, no h "relao precisa entre a organizao das palavras e o
mtodo de diz-las" (o que configuraria, na relao texto-cena, uma distncia maior do
que nos dramas em que o que dito corresponde comunicao fsica), esse dilogo
fundamental, pois por meio dele se abre um inevitvel, tenso e rico espao para a
"interpretao" desse texto por diretores e atores11
. Por isso, somente uma tentativa de
mapear esse movimento j ser valiosa no s para a compreenso da potica do
dramaturgo, como tambm para o entendimento dos impasses de nosso prprio teatro.
Afinal, no se pode conceber uma tradio teatral ou literria em outra perspectiva que
no a comparada12
, fator constitutivo que ganha em interesse quando levamos em conta
que se trata justamente do contato entre duas culturas perifricas (Brasil e Rssia). A
partir da, compreender os percalos de leitura, as iluminaes produtivas e o papel
cumprido pelo filtro autorizado da metrpole (que "descobre", "filtra" e "exporta" uma
outra cultura) algo que pode trazer elementos significativos para os estudos
comparados e de recepo13
, iluminando nossa prpria condio cultural.
10
No nos dedicaremos ao estudo de recepo em grande escala (leitores e espectadores massivos).
Ficaremos restritos s interpretaes produzidas dentro da relao texto-cena (e, por isso, leituras de
diretores e atores), bem como as produzidas por crticos literrios e teatrais. Complementarmente, vale a
leitura do texto de Patrice Pavis a respeito dos desafios colocados para o terico de teatro sobe a relao
entre texto e cena, sobretudo quando lidamos com uma pea fora de contexto. PAVIS, Patrice. Problems of translation for the stage: interculturalism and post-modern theatre. IN: HOLLAND, Peter (ed). The Play Out Of Context - transferring plays from culture to culture. New York: Cambridge
University Press, 1989. 11
WILLIAMS, Raymond. "Discusso: texto e encenao". Drama em Cena. So Paulo: Cosac&Naify,
2010. 12
CANDIDO, Antonio. Recortes. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004. 13
O sentido que atribumos ao conceito de recepo est diretamente relacionado tradio, bastante
ampla, que busca superar entendimento de recepo enquanto simples estudo das "fontes" ou
"influncias" de um determinado texto ou autor sobre outras culturas. Buscaremos fincar nossa pesquisa
numa concepo na qual a interpretao do texto se d por um movimento dialtico no qual se relacionam
elementos da formao social e cultural que envolve o intrprete e/ou leitor e elementos de sua prpria
formao "intraliterria" ou "intradramtica". So tais elementos que definem seu "horizonte de
expectativas", e isso pode ser fundamental para que compreendamos porque determinada obra foi
entendida de diferentes maneiras em diferentes momentos da histria. Pretendemos assim evitar uma
concepo extremamente relativista , pois entendemos que cada interpretao do texto se legitima por
disposies histricas, sociais, literrias, estticas e mesmo pessoais. Ao mesmo tempo, de tal enfoque se
pode depreender que do conhecimento das sucessivas leituras realizadas podemos tomar conhecimento do
que Jauss denomina potencial de sentido da obra, ou seja, o elemento que a torna "permanente" na
histria literria.NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: histria, teoria e crtica. So Paulo: EDUSP,
1997, p. 171-172.
16
Acreditamos que este trabalho visa a trazer interpretaes sobre matria ainda
pouco estudada, pois ainda que muito j se tenha dito sobre as relaes polticas,
econmicas ou culturais entre Brasil e Rssia, e mesmo que haja recente interesse do
mercado editorial e de parte expressiva da crtica por temas russos, em geral as
relaes entre Brasil e Rssia so mais pressentidas e esboadas que efetivamente
destrinchadas14
.
No caso da tradio teatral russa, nosso contato com as experincias
revolucionrias de incios do sculo XX no desprezvel, ainda que no tenham sido
de todo exploradas. Por isso, ao dar incio a este trabalho comparativo, nossa primeira
hiptese foi a de que a genial proposta cnica do Teatro de Arte de Moscou (TAM),
justamente por ter sido responsvel pela projeo do dramaturgo (que at ento sofrera
para encontrar suporte cnico adequado para as fissuras que promovia na estrutura do
drama), foi tambm responsvel por consolidar algumas linhas de interpretao que
perduraram at recentemente, inclusive no Brasil. Galvanizaram um modo especfico de
se encenar Tchkhov, imprimindo sobre suas personagens a representao do "tdio de
provncia", a "impotncia ante os grandes sonhos" e a "melancolia". Isto implicou, em
termos cnicos, na adoo de procedimentos ento revolucionrios, como a criao
"atmosfera", "ritmo", "silncio" e "tragicidade", mas que seriam trabalhados na Rssia e
internacionalmente como "tipicamente techekhovianos". Esta tipificao, interpretada
de mltiplas maneiras pela tradio teatral ocidental o que, por suposto, pretendemos
historicizar e colocar em discusso.
Evidentemente, inmeras propostas posteriores se chocaram com as leituras de
Stanislviski /Nemirvitch-Dntchenko, mas quase sempre se estabeleceram em relao
a elas. Isto implica em uma srie de questes a respeito da dramaturgia tchekhoviana
que so bastante interessantes, dentre elas: a crise das formas dramticas tradicionais
(em fins do XIX) e a historicidade dos problemas a ela vinculados, o lugar do cmico e
do trgico nas suas leituras, o trabalho com pausas e silncios, as possveis "melancolia
permanente", "ausncia de utopia" ou "tdio da vida" versus "o sonho", "a vivacidade" e
a fora "irnica". A escolha de alguns destes pontos como flancos de apoio, ou mesmo
14
GOMIDE, Bruno. Da Estepe Caatinga: O Romance Russo no Brasil (1887-1936). Tese IEL-
UNICAMP. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem, 2004, p. 13. Contudo, no se pode dizer que
este seja um campo totalmente inexplorado: O primeiro livro de Leonid Shur Relaes Literrias e culturais entre Brasil e Rssia, o livro de Boris Schnaiderman Projees: Brasil, Rssia, Itlia e a prpria tese de Bruno Barreto Gomide sobre a recepo do romance russo no Brasil entre 1887 e 1936 so
estudos de flego que ajudam a iluminar este debate.
17
sua mescla, pode resultar em encenaes e posicionamentos crticos bastante diversos.
Nossa inteno justamente mapear tais escolhas, tentando entend-las dentro de
tendncias artsticas, problemas polticos e sociais.
Para que esse percurso fique razoavelmente delineado, optamos por organizar
esse processo a partir das primeiras encenaes de Tchkhov feitas na Rssia (a partir
de 1896), passando pelas principais encenaes europeias e americanas, at as
montagens feitas no Brasil (em um arco que vai de 1946 a 2008). Por isso, no primeiro
captulo apresentamos de maneira sumria os primeiros contatos do dramaturgo russo
com o meio teatral e os movimentos vividos por suas primeiras peas em um ato. Logo
aps, comentamos o processo de produo de suas quatro grandes peas e a dificuldade
de aceitao de seu teatro dentro das condies especficas de encenao na Rssia. A
partir da, ser possvel enxergar como o surgimento do TAM e a consolidao (bastante
tensa, como veremos) de um suporte adequado historicamente para a afirmao de sua
dramaturgia sero decisivos para fixar as leituras stanislavskianas, que faro escola na
Rssia, mas no deixaro de ser confrontadas por diretores locais pr e ps Revoluo
de 1917. Este embate, no entanto, ser "vitorioso" para Stanislvski, que soube se
"mesclar" ao establishment sovitico.
No segundo captulo, tentamos entender como se d o movimento de projeo da
dramaturgia de Tchkhov nos pases do Leste Europeu, Frana, Inglaterra e Estados
Unidos. Desde as primeiras tradues de peas de Tchkhov feitas por Antoine,
passando pela emigrao de artistas e crticos russos, at a consolidao em terreno
francs das leituras "exoticizantes" da "alma russa", feitas em montagens de Ludmina e
Georgy Pitoff. Tais encenaes, a despeito de tentarem fugir do paradigma
ultrarrealista de Stanislvski, pecavam pela fabricao de um outro extico. Veremos
tambm como as caravanas do TAM pela Europa e EUA contriburam para gerar um
verdadeiro frisson internacional no s pelas novas tcnicas de encenao, como
tambm pela fora do drama tchekhoviano. No Reino Unido, no s o contato com
essas excurses, mas a interveno de Bernard Shaw (que tentara apresentar o
dramaturgo russo como um cido leitor da sociedade capitalista em crise) e as
encenaes de Komissarjvski (que souberam retirar Tchkhov das malhas do extico e
aclimat-lo ao "gosto ingls" pela simplificao elegante e o sentimentalismo). No caso
americano, veremos como a lgica do show business e do star system prejudicaram a
recepo dessa dramaturgia no incio dos anos 20, e o importante papel dos Little
Theatres, mais abertos s novas tcnicas de encenao e aos trabalhos dramatrgicos
18
mais recentes e de vanguarda, que conseguiram com xito introduzir o dramaturgo nos
palcos fora dos grandes circuitos. Logo aps, destacaremos o papel decisivo dos
preceitos formativos de Boleslvski, as encenaes de Eva Le Gallienne e as diretrizes
formativas de Lee Strasberg e Stela Adler - sua maneira discpulos de Stanislvski e
grandes propagadores da dramaturgia de Tchkhov.
Para no prosseguir adiando o fundamental, o terceiro captulo apresentar um
panorama dos momentos iniciais da recepo de Tchkhov no Brasil. Desde as
brevssimas referncias a seu nome e as tradues de contos cmicos em peridicos de
entretenimento do incio do sculo at as primeiras coletneas de contos nos anos 30 e
40, que preparam o terreno para os principais textos crticos e encenaes que
comeariam a ser realizados nos anos seguintes. Destacamos o papel fundamental que
os grupos de teatro estudantis e amadores tiveram na popularizao de suas peas
cmicas em um ato, amadurecendo no s uma linhagem do teatro cmico brasileiro,
mas tambm abrindo as portas de nossos palcos para outros dramaturgos internacionais
de qualidade artstica. E sero tambm os "amadores" do Tablado os primeiros a
enfrentar uma pea longa de Tchkhov, Tio Vnia, seguida de As Trs Irms, pela
Escola de Arte Dramtica (EAD) e anos depois pelo grupo A Barca, sob direo de
Gianni Ratto, confirmando a interessante tese de Gilda de Mello e Souza de que estaria
no dramaturgo russo um fundamental estgio para a formao do ator. Mas a sua
projeo nos palcos brasileiros ganharia novo patamar com a encenao de As Trs
Irms pelo Teatro Nacional de Comdia (TNC), em 1960, momento decisivo de
propagao no Brasil do que se convencionou chamar tchekhovismo.
J no quarto captulo, veremos como a partir da d-se o incio a um processo de
questionamento de Tchkhov "clssico importado", que vem acompanhada da tentativa
de atualizar sua obra no contexto brasileiro, levando em conta o efervescente clima de
radicalizao poltica e social. Ainda assim, seu teatro passaria por percalos de
interpretao e, em um primeiro momento, no seria visto como um dramaturgo de fcil
digesto para as sensibilidades revolucionrias. Marco nesse sentido seriam a leitura
fora do padro "tchekhoviano" de O Jardim das Cerejeiras, feita por Ivan Albuquerque,
e o desbunde poltico-tropicalista que o Oficina promoveu com As Trs Irms. Esta
montagem, especificamente, a despeito dos impasses oriundos de suas prprias escolhas
formais e polticas, representou a tentativa mais significante de entender como o
dramaturgo russo poderia falar de maneira direta ao pblico brasileiro de ento e foi um
marco no processo de recepo do teatro de Tchkhov entre ns.
19
Por fim, no quinto e ltimo captulo, h um esquemtico panorama de
encenaes realizadas no exterior nos anos 60 e 70 (sobretudo as de Tovstonogov e
Anatoli fros, na Rssia, e Giorgio Strehler, na Itlia) que j promoviam uma reviso
significativa do paradigma do tchekhovismo. Logo aps, observamos o ligeiro
descompasso vivido pelas encenaes brasileiras, que tentavam iluminar pontos novos
na dramaturgia de Anton Pvlovitch, mas, ao mesmo tempo, no conseguiram firmar
uma tendncia interpretativa de peso. As dificuldades que o regime militar colocava aos
grupos teatrais nos anos 70 dificultava o amadurecimento de propostas (vide as
encenaes A Gaivota, por Jorge Lavelli, o Tio Vnia, de Emilio Di Biasi), mas em
contrapartida impulsionava-os para que buscassem novas formas de organizao e
encenao que, como veremos, arejaro as encenaes nos anos de abertura (o
Platonov, d'O Tablado e o Trgico Fora, de Marcio Aurlio). Os anos 90 e 2000
sero de clara abertura de tendncias e demonstram a familiaridade dos palcos
brasileiros com uma dramaturgia que, de incio, pareceu alheia aos interesses imediatos
de nosso teatro. J possvel encontrar claros "enfrentamentos" aos modelos
stanislavskianos e localizamos desde encenaes mais afeitas tentativa de deixar o que
"universal" em Tchkhov falar, s encenaes que valorizam sua dimenso poltica
para uma poca de transio, ou ainda encenaes que privilegiam a pura pesquisa de
linguagem, buscando a atualidade do dramaturgo nas fissuras e descompassos de sua
forma dramtica - utilizando-se de seus textos mais como partitura "jazzstica" que
dramaturgia.
Ao final, esperamos que fique evidente que nossa tentativa menos a de
estabelecer uma linha evolutiva de "dissoluo" do mito do tchekhovismo e mais a de
mostrar como ao longo da histria da recepo do drama de Tchkhov sua atualizao
constante sofria (e sofre) presses dos impasses de nossa formao teatral, de nossas
dificuldades econmicas, sociais e polticas. Metodologicamente, tal empreitada
apresenta uma srie de dificuldades. A primeira delas se refere a como lidar com o fato
de que o "fenmeno cnico" se caracteriza justamente pelo acontecimento e pela
presentificao da ao cnica, que no pode ser captada pelo simples registro escrito.
Se vem da o fascnio do teatro - pelo que ele tem de presena viva - est a tambm um
grande problema crtico e historiogrfico que, s agora, tem amadurecido como campo
de estudos15
. Nesse sentido, tentaremos entender como se construram determinadas
15
O Grupo de Trabalho de Histria e Teatro da ANPUH (Associao Nacional de Ps-Graduao em
Histria) tem se colocado como um de seus problemas fundamentais de investigao para os prximos
20
leituras de Tchkhov trabalhando a partir do que Carlo Ginzburg denominou paradigma
indicirio, ou seja, captar a partir de sinais particulares o sentido que determinado
elemento pode ter para a compreenso do movimento geral de uma cultura ou
sociedade16
. Trabalhamos para tentar reconstituir esse universo especfico por meio dos
documentos (escritos, iconogrficos e sonoros), deixando-os que "falassem", ao invs
de definir um percurso historiogrfico-crtico de antemo.
Ao deixar que tais documentos ganhassem voz, tentamos no nos restringir a
apenas um registro sobre determinada encenao (mesmo levando em conta o fato de
que isso se torna bastante difcil para as encenaes com menor repercusso) ou mesmo
no sufocar posies divergentes a respeito de uma mesma montagem - tendo em vista
que uma das principais formas de registro que nos do acesso a uma pea o discurso
do crtico teatral que, como se sabe, sempre uma interpretao frente ao fenmeno
cnico. No entanto, isso no impediu que ao analisarmos o sentido de determinada
interpretao de Tchkhov nos posicionssemos tambm em relao ao que havia de
produtivo ou limitador na proposta feita.
Tambm no deixa de ser importante esclarecer que para a realizao deste
estudo, foi necessrio conciliar o trabalho de pesquisa em arquivo (dirios de direo,
fotografias, vdeos, notcias, textos crticos publicados em jornais, revistas, folderes de
divulgao dos espetculos etc)17
com o de estudo terico-crtico, tanto sobre a
recepo de Tchkhov por outras culturas, como ensaios e estudos sobre sua
perodos a discusso sobre as relaes entre o Teatro e a Historiografia. A inteno tentar definir pontos
de apoio tericos e metodolgicos que deem conta da especificidade teatral, levando em conta no
somente o suporte dramatrgico-textual como referncia. 16
Tomamos como principal referncia o texto Sinais - razes de um paradigma indicirio, de Carlo Ginzburg (In: Mitos, Emblemas, Sinais. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 143-179). Alm
disso, serve-nos tambm de inspirao outro estudo de Ginzburg sobre o moleiro Menocchio, condenado
pela Inquisio no sculo XVI. O historiador realiza a anlise a partir do estudo minucioso de documentos
dos julgamentos realizados, que ajudam, a partir da prpria erudio do historiador, a reconstituir todo um
universo especfico e as tendncias de uma poca. (O queijo e os vermes. So Paulo: Companhia das
Letras, 1987). 17
Para chegar a este estgio, foi realizado levantamento inicial de tradues e publicaes de contos e
peas de Tchkhov nas bibliotecas da Unicamp (Instituto de Estudos da Linguagem, Instituto de
Filosofia e Cincias Humanas, Instituto de Artes e Biblioteca Central), da FFLCH-USP, da Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro, da Biblioteca Mario de Andrade, em So Paulo, bem como no Arquivo
Edgar Leuenroth (AEL), em Campinas. Alm disso, realizei levantamento de montagens e localizei textos
crticos na Biblioteca Jenny Klabin Segall e no Centro Cultural So Paulo - Diviso de Arquivos e
Multimeios, em So Paulo; no acervo da Fundao Nacional de Artes - FUNARTE (Dep. de Artes
Cnicas), na Casa Rui Barbosa (Acervo Maria Jacintha e Acervo Antonio Callado) e da Sociedade
Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), no Rio.
21
dramaturgia e teatro russo e brasileiro18
. Do primeiro resultou extenso levantamento de
tradues e edies, bem como de encenaes de peas de Tchkhov realizadas por
grupos teatrais profissionais e amadores. As peas foram catalogadas e, em muitos
casos, foi possvel recuperar notcias, textos crticos e fotos em torno de cada
montagem. Todos esses documentos e listas vm selecionados e transcritos nos anexos
ao final do trabalho.
Dificuldades especficas surgiram ao longo da pesquisa, como o mapeamento de
documentos referentes a um dramaturgo cujo nome j foi grafado das mais diversas
maneiras (Tchkhov, Tchecov, Tchekov, Chekhov, Chekov, Tchehov, Tchekof,
Tschecov, Tcheckhov, Checov, Tchecof, Tcheckov, Tchecoff, Tcheckoff...). Problema
este que, se em partes dificulta o trabalho de mapeamento, por outro contribui para,
como afirma Bruno Gomide, suspeitar de fontes de tradues indiretas ou mesmo
referenciais crtico-editoriais.
Por fim, o que esperamos que este estudo, por vezes demasiado sumrio, por
vezes enfadonho no detalhe, contribua ao menos para que entendamos um pouco sobre
como foi encenado, lido e criticado este dramaturgo que tanto contribuiu para o
processo de questionamento das formas dramticas do sculo XIX. Suas Arkdinas,
Trepliovs, Irinas, Machas, Olgas, Ranivskaias, Trofimovs, Vnias, cravados em tramas
com vestgios de ao dramtica, donos de dilogos que mais isolam que aproximam,
parecem ainda dizer-nos algo. Falam no s sobre formas de sociabilidade que estavam
condenadas pela histria, como tambm sobre o que somos hoje.
18
O trabalho de estudo bibliogrfico teve estapa decisiva em meu estgio de pesquisas na Universidade
da Califrnia, em Berkeley. L pude contar com precioso acervo em eslavstica e literatura comparada
que me permitiu confeccionar com maior profundidade os dois primeiros captulos desta dissertao.
22
1. Como se cria um Tchkhov.
1.1 Dentro do texto, fora dos palcos
Vista distncia, a obra de Anton Pvlovitch Tchkhov pode levar a crer que o
contista e dramaturgo russo gozara desde o incio de sua carreira de repercusso positiva
junto ao pblico, crtica e aos profissionais de teatro. Isto porque, por um lado, um
clssico quase sempre nos conduz a uma leitura que tende a tornar absolutas suas
qualidades; por outro, porque o prprio estilo do autor, pouco afeito exuberncia
formal e programaticamente crtico falta de objetividade e aos excessos ideolgicos19
,
sugere uma gradual afirmao junto ao pblico: lenta, silenciosa e modesta, com poucas
polmicas ou recusas.
No entanto, o processo de recepo de sua obra fora bastante tortuoso e,
inicialmente, bastante intranquilo. No caso especfico de sua dramaturgia, que aqui nos
interessa de perto, Tchkhov se debateu com toda uma tradio do teatro russo, indo das
tcnicas de encenao ao gosto pblico, que no lhe apresentaram as portas abertas para
as renovaes formais que promovia. Se o dramaturgo no est sozinho nesse processo
de crise das formas tradicionais do drama20
, que marcou inmeros pases da borda
europeia em fins do sculo XIX, no caso russo ele assume tinturas prprias. Alguns
momentos desse processo se tornaram populares, por vezes convertidos em verdadeiras
lendas. So razoavelmente conhecidos do leitor brasileiro os episdios de estreia de A
Gaivota () pelo Aleksandrnski, em 1896, mistificada como um absoluto desastre,
e que levara o escritor a recusar escrever novamente para o teatro, e a estreia da mesma
pea em 1898, pelo Teatro de Arte de Moscou (TAM), um legendrio sucesso que
consagrou o surgimento do grupo. Ou ainda, relatos das famosas querelas entre
Tchkhov e Stanislvski, feitos quase sempre para exaltar os acertos de concepo do
19
Tais elementos so decisivos para Tchkhov enquanto premissas de composio. Veremos adiante o
quanto tais escolhas lhe renderam uma srie de restries ao seu "excesso de iseno". Para ficar em uma
passagem conhecida, que ilustra parte de sua potica, a carta com conselhos de escrita enviada ao irmo
Aleksandr P. Tchkhov, em 10 de maio de 1886, elucidativa: "1. ausncia de palavrrio prolongado de
natureza poltico-socioeconmica; 2. objetividade total; 3. veracidade nas descries das personagens e
dos objetos; 4. brevidade extrema; 5. ousadia e originalidade - fuja dos chaves; 6. sinceridade". Ver:
ANGELIDES, Sophia. A. P. Tchkhov: cartas para uma potica. So Paulo: EDUSP, 1995, p. 52. 20
Tal discusso ser retomada adiante. Por ora, cabe localiz-la dentro da anlise sobre as transformaes
na estrutura dramtica ocorrida em fins do sculo XIX, emblemtica em dramaturgos como Ibsen
(Noruega), Hauptmann (Alemanha), Maeterlinck (Blgica), Tchkhov (Rssia) e Strindberg (Sucia),
lanada por ROSENFELD, Anatol. O Teatro pico. So Paulo: Editora Perspectiva, 1985; e tambm por
SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno: 1880-1950. So Paulo: Cosac&Naify, 2001.
23
primeiro e desbastar um certo naturalismo do segundo. Todavia, ainda que apaream
como marcas de uma recepo que pe em debate a produo e as opinies do autor por
seus contemporneos, o que predomina, sobretudo hoje, a viso do "clssico imortal",
que, se iluminada por sua atual relevncia nos meios teatrais (a ponto de no teatro
anglo-saxo Tchkhov ser considerado o segundo dramaturgo mais importante depois
de Shakespeare), tende a ofuscar entendimento mais exato de suas condies de
produo e recepo e, por vezes, restringi-lo a leituras improdutivas de suas peas.
A tarefa de compreenso mais pormenorizada deste processo tem um elemento
facilitador que, ao contrrio do caso de dramaturgos como Shakespeare, favorece a
pesquisa: Tchkhov est envolto em uma historicidade (cultural, ideolgica e de classe),
mapevel em sua correspondncia, comentrios de crticos e querelas com gente de
teatro, que permite recompor um universo especfico. Isto permite a Laurence Senelick
afirmar que Tchkhov nos parece por isso mais prximo e, ao contrrio de Shakespeare,
mais possvel de ser pego por "intenes autorais"21
.
Tentaremos reconstituir um pouco desse universo (no qual mesclaremos
comentrios sobre as encenaes/concepes de direo, comentrios da crtica e o
prprio percurso formativo do autor) para nos aproximarmos do que foram as principais
contradies internas formao de sua dramaturgia, os debates em torno dela e, por
fim, como determinadas leituras se afirmaram. No menos problemtica que qualquer
esforo historiogrfico, sobretudo quando se tem como material uma cultura que nos
em grande parte alheia e uma forma de expresso artstica - o teatro - que, por sua
natureza, se esvai no momento mesmo da encenao, o primeiro impulso ser o de
entender, no universo teatral, os anos de 1880 - decisivos para o amadurecimento da
cena russa e da dramaturgia de Tchkhov. E, apesar de aparentemente tortuoso, este
trajeto necessrio e ajudar em muito a entender interpretaes de Tchkhov surgidas
ali, que repercutiro de maneira decisiva no Ocidente e, em especial, no Brasil.
Comear pelos anos de 1880 no pode ofuscar um processo que j se inicia
desde os tempos de adolescente de Anton Pvlovitch, na pequena cidade de Taganrog,
perto do mar de Azov, quando comea seu contato com o teatro. Acompanhava com
assiduidade e pouco critrio as apresentaes ocorridas no "Teatro Cvico", aplaudindo
espetculos que iam do "novo drama" ostrosvskiano aos melodramas romnticos e
21
Idem, p.1.
24
comdias ligeiras, ento nota predominante nas poucas casas teatrais russas. Ali, ainda
cursando os anos finais do colgio, escreve uma pea sem nome, que possivelmente se
converteria na verso publicada postumamente, em 1923, e conhecida no Ocidente
como Platnov22
().
A primeira verso fora submetida ao irmo Aleksandr, que j vivia em Moscou e
lhe respondeu com duras crticas quele "drama" com roubo de cavalos e tiros. Os anos
de 1878 e 1879 seriam possivelmente aqueles aos quais se dedicou a reescrev-la,
fechando uma verso final somente em 1881. Cortou dilogos, omitiu algumas
personagens e, aps o trabalho, enviou uma cpia a Maria Iermlova, atriz do Teatro
Mli, em Moscou, que, apesar de considerar "aceitvel" a jovem viva Anna Petrovna,
personagem de destaque na pea, responde-lhe com a forte recomendao de que
rasgasse o texto. A verso que chegou at ns, guardada pelo irmo de Tchkhov, que
preservara as cpias enviadas censura, apresenta uma estrutura e um tom pouco
semelhantes ao das produes que marcam o Tchkhov das "quatro grandes peas". A
personagem principal, Mikhail Vassilivitch Platnov, um professor de provncia,
espcie de Don Juan do interior23
. A ironia que marca seu perfil impede que se erga
como um heri dramtico tpico, ou mesmo como um prottipo de homem suprfluo,
ainda que a prpria personagem Glagliev diga com suas palavras que Platnov "o
mais fino expoente da moderna fraqueza de propsito (...). Ele caiu num beco sem
sada, est perdido, no sabe o que focar, no entende..."24
. irresistvel para as
mulheres, mas cheio de idealismo e ceticismo. Tem ambies de ser um "segundo
Byron" e no mesmo formado na universidade. O ambiente marcado pela
decadncia da famlia e as personagens se dividem claramente entre credores e
devedores. H aqui um paralelo destacado por alguns crticos, que veem em Platnov
(primeira pea de Tchkhov) e O Jardim das Cerejeiras (ltima pea), um tom
hiperblico, com forte acento na decadncia, expresso no endividamento das famlias
22
Esta pea sem ttulo, ainda no traduzida para o portugus ( ), alm de ser identificada no Ocidente como Platnov, tambm conhecida pelo nome Sem Patrimnio ou Sem
Herana. Acredita-se que a primeira verso, mostrada para o irmo, teria sido perdida para sempre. No
entanto, na impossibilidade da comprovao, fica a hiptese de que a mesma verso foi retrabalhada,
culminando na que hoje conhecemos e aqui citada. A verso lida para esta pesquisa a traduzida por
Laurence Senelick, presente no livro. CHEKHOV, Anton. The Complete Plays. New York/London: WW
Norton & Company, 2006, p. 1-221. 23
A expresso Don Juan foi usada por BENTLEY, Eric. Chekhov as Playwriter. The Kenyon Review,
V11, n 2, Spring, 1949, p. 226-250. 24
" Platonov, as I see it, is the finest exponent of modern infirmity of purpose (...) He has turned up a
blind alley, he's lost, he doesn't know what to focus on, he doesn't understand..." Ver. CHEKHOV, Op.
Cit., p. 18.
25
que se entregam venda do prprio patrimnio25
. Se h marcas evidentes do drama (no
destaque do protagonista, no conflito e dilogo veementes) e mesmo do melodramtico
(o pirotcnico tiro no peito levado ao final, e em cena, por Platnov), o elemento
cmico que ser, aqui, um tmido ponto de ligao com as produes da posteridade -
a marca vital de uma coeso entre o cmico e o srio, que Tchkhov retrabalhar em
toda sua obra, sinal de uma problemtica de fundo, que pensa como as aspiraes
crticas e grandes ideias precisam conviver com o cotidiano sem sentido26
.
Seria precipitado, como se v, ver nesta pea que sequer chegou a ser encenada
durante a vida de Tchkhov (fora rejeitada pelo Mli em 1882), o desabrochar de uma
nova tendncia dramatrgica. No geral ainda bastante vinculada s leis do drama
tradicional, ela revela ao menos a propenso do dramaturgo a este universo do cmico,
que marcaria suas primeiras produes. E com contos cmicos que Tchkhov
sustentar seus estudos e ajudar sua famlia nos anos em que estivera em Moscou, logo
aps mudar-se de Taganrog, em 1880. At 1887, escrever para jornais de Moscou e
So Petersburgo sob inmeros pseudnimos (Antocha Tchekhont, O Doutor Que
Perdeu Seus Pacientes, O Irmo do Irmo etc). Neste perodo, Tchkhov diria que estes
contos breves, de humor vaudevillesco, brotavam de sua cabea numa velocidade
absurda, chegando a gastar no mais que um dia em cada um27
. Aqui, interessa-nos no
s a afinidade que desde cedo se estabelece entre o escritor e este gnero, mas tambm a
temtica de muitos contos que servem como ponto de partida para nosso campo de
interesse: sua crtica cida aos meios teatrais da poca. Os contos de Tchkhov de
incios dos anos de 1880 so recheados de atrizes caprichosas e empresrios de teatro
que no entendem nada de arte. Esta passagem do conto Fantasiados, no qual ataca
diretamente Lentvski (alvo preferido poca) ilustrativa:
Seis entradas para carruagem, mil lmpadas, uma multido de
espectadores, guardas, corretores de ingressos. um teatro. L-
se sobre as portas, como no rmitaj de Lentvski: "Stira e
25
A respeito desse possvel paralelo, ver: RAYFIELD, Donald. Orchards and Gardens in Chekhov. The
Slavonic and East European Review, V. 67, N. 4, Oct., 1989, p. 530-545.
CHEKHOV, A. Op. Cit., p. 5. 27
conhecia a famosa frase de Tchkhov que afirmava ser a literatura, neste perodo, uma espcie de
amante, enquanto a medicina seria sua legtima esposa. A situao ficar insustentvel para ele quando,
aps receber uma carta do ento renomado escritor Grigrovitch, alertado para o desleixo com que
vinha tratando suas habilidades literrias. Em 1887, j firme em sua convico de escritor, escrever ao
irmo: "J quase no trabalho nas revistas humorsticas, pois elas no servem para a leitura. No gosto
delas. Meu trabalho mais srio est no Nvoie Vrmia." Carta de 18 de janeiro de 1887. Ver:
ANGELIDES, Op. Cit., p.63.
26
Moral!". Os ingressos so carssimos, redigem-se a longos
artigos de crtica, aplaude-se prolongadamente e as vaias so
raras... Um templo!
Mas, um templo fantasiado. Retirando-se a inscrio
Stira e Moral, no ser difcil ler: - Canc e chanchada28
.
Apesar do pessimismo de Anton Pvlovitch quanto a esse aspecto, o perodo era
de transio e prometia. Em 1882, o Tzar Alexandre III aboliu o monoplio dos Teatros
Imperiais (ento o Aleksandrnski, em So Petersburgo, e o Mli, em Moscou). Isto
permitiu um decisivo arejamento no repertrio dos novos grupos (agora mais propensos
a textos nacionais, contemporneos ou mesmo fora dos padres de expectativas das
comisses de repertrio). Tal mudana se deu em grande parte pela presso de grupos
amadores que almejavam maior espao e que se negavam a aceitar os princpios frreos
que regiam estas instituies estatais: punies, bloqueio de pagamento, obrigatoriedade
para os atores de decorar determinado nmero de linhas do texto por dia etc29
; e de
novos dramaturgos, desejosos de maior espao.
A abertura legal, no entanto, no significou movimento rpido em direo
democratizao do acesso do pblico, mudana estrutural na qualidade do repertrio ou
espao aberto a todos os interessados em produzir. A plateia ainda era reduzida e os
grupos privados nascentes (marcados pelo signo da contradio entre dinamizar o
cenrio teatral e preocupar-se com as bilheterias), abandonavam muitas vezes o discurso
da "iluminao" e se pautavam pelos critrios de empresrios preocupados com a
bilheteria - o que levou predominncia durante muito tempo de um repertrio com
peas pirotcnicas e sensacionalistas. No meio teatral moscovita foi assim com um
desses principais grupos: o Teatro Skomorokh, liderado por Mikhail Lentsvski (o
mesmo ironizado no conto citado acima) e criado em 188130
. O repertrio fora marcado
por grandes clssicos, como Shakespeare, Ggol e Ostrvski, mas boa parte das
encenaes eram peas que privilegiavam a exuberncia, os dramas claros e o riso fcil,
bem ao gosto da classe mdia pagante.
28
TCHKHOV, Anton. A Dama do Cachorrinho e Outros Contos. Trad. Boris Schanaiderman. So
Paulo: Editora 34, 2005, p.30. 29
Idem, 1999, p. 9. 30
" In 1881 Lentovskii founded The Minstrel (Skomorokh) Theatre intended to bring historical plays to
the common people at popular prices; it closed in 1888 owing to poor box office. Lavish spending,
combined with the sparseness of the audience, led to financial ruin. His New (Novii) Theatre, devoted to
legitimate drama, opened in 1882; meant as a popular playhouse, it became famous for the sumptuousness
and imagination of its staging. It was also the first Russian theatre to use electric light on stage."
SENELICK, L. Historical Dictionary of Russian Theather. Lanham/Toronto/Plymouth: The Scarecrow
Press, Inc, 2007, p. 211.
27
Por outro lado, o Teatro Pchkin, assumido por Fidor Korch em 1882, levou
mais a srio a poltica de estmulo aos jovens dramaturgos (tanto que Nemirvitch-
Dntchenko, que tivera intenso trabalho de dramaturgo e crtico antes de atuar com
Stanislvski, tivera peas premiadas no Korch, em seu incio de carreira31
), para no
falar da valorizao do drama literrio e do encorajamento de Tchkhov a escrever
inmeras peas. Korch tambm incentivou descontos para estudantes e levou adiante
uma poltica mais definida de formao de plateias. Para Stanislvski, este Teatro
desempenhou papel decisivo em sua formao, e seria responsvel, segundo ele, por
uma espcie de "preparao de terreno" para as inovaes posteriores do TAM32
.
Mas para Tchkhov o problema era srio: tratava-se de um desleixo crnico com
a atividade cnica. Laurence Senelick enquadraria esse universo de preocupaes em
uma espcie de "compromisso com o teatro"33
, ainda que as manifestaes do
dramaturgo fossem frequentemente de profundo desgosto. Suas cartas e mesmo
comentrios em jornais punham abaixo bastidores, sem nenhuma idealizao dos atores
- presunosos, vaidosos, ou ainda "vacas que se consideram deusas"34
.
A soluo dada pelo dramaturgo , como se mapear com frequncia em suas
cartas e em sua produo, a preocupao com a "proximidade da vida", o
"conhecimento da realidade" e a objetividade, pontos aos quais muitos atores
(preocupados que estavam com o brilho individual em detrimento do trabalho de grupo,
o gesto fcil, explosivo, sem estudo) eram pouco afeitos. Para ele, "os atores no
compreendem, dizem asneiras e no escolhem os papeis adequados"35
. Em partes, tem-
se um paralelo com muito do que ser desenvolvido por Stanislvski, ainda que em
chave diferenciada:
Atores nunca observam as pessoas comuns. Eles no conhecem
fazendeiros, comerciantes, padres aldees ou burocratas. Por
outro lado, eles podem oferecer verdadeiras personificaes de
jogadores desonestos, mulheres oportunistas, trapaceiros
angustiados, em suma, todo tipo de indivduos que eles
observam em seus passeios por bares e despedidas de solteiro.
Algo horrivelmente ignorante36
.
31
Idem, p. 271. 32
Ver: STANISLVSKI, K. Minha Vida na Arte. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1989. 33
SENELICK, 2006, p. 8-28. 34
Idem, p. 12. 35
Carta ao irmo Aleksandr em 24 de outubro de 1887. ANGELIDES, Op. Cit. p.71 36
"Actors never observe ordinary people. They do not know landowners or merchants or village priests or
bureaucrats. On the other hand they can give distinguished impersonations of billiard markers, kept
women, distressed cardsharps, in short all those individuals whom they observe in their rambles through
28
Isto no que se refere prtica dos atores. Por outro lado, via uma nica soluo
para a vulgaridade de empresrios de teatro, diretores, comisses de censura e mesmo
dramaturgos: o amor sincero e o trabalho com a via literria. Esta, no entanto, sem o
apontar de caminhos (como queria a intelligentsia) ou preocupaes comerciais: "
preciso tentar com todas as foras tirar o teatro dessas grossas mos e transferi-las para
as da literatura, ou ento o teatro ir declinar (...). Eu te imploro, apaixone-se pelo
teatro"37
. Para ele, at a massa de populares era mais "elevada e inteligente que o
teatro"38
.
Se suas consideraes so duras, e aparentemente muito presas viso literria,
no se pode ignorar sua preocupao evidente com as condies de realizao do teatro,
o que fica claro no s agora, mas no futuro com seu empenho frequente por
acompanhar ensaios e dar orientaes a diretores e atores, como veremos adiante. O que
importa observar seu zelo, ainda que todo o seu trabalho como dramaturgo orbitasse
ainda em torno dos jornais.
Os contos de Tchkhov escritos sob inmeros pseudnimos tinham boa
circulao e eram amplamente elogiados pelo pblico leitor, mas o Tchkhov
dramaturgo era conhecido apenas em crculos muito especficos, e identificado nica e
exclusivamente como humorista. em meados dos anos de 1880 que ele concebe boa
parte de suas peas em um ato, assim como pequenos dilogos e pardias, publicados
nos jornais e revistas de Moscou e So Pestersburgo. A noiva, ou O Capito Aposentado
(, m)39, a primeira da leva de cenas que jorraro de sua
mo nos prximos anos. Consiste em um pequeno dilogo publicado em Estilhaos
(O) em 1883, e assemelha-se muito s cenas de Ggol e Ostrvski, ainda que
com um desfecho mais "escabroso"40
. Como bem constata Arlete Cavaliere, mesmo que
no se referindo diretamente a estas pequenas esquetes, muito da produo dita "jovem"
de Anton Tchkhov, estabelece uma espcie de fio com a tradio do cmico na Rssia,
pothouses and bachelor parties. Horribly ignorant". Carta a Suvrin em 25 de outubro de 1889.
SENELICK, Op. Cit., p. 12. 37
"One must try with all one's might to transfer the theatre from the grocer's hands tho those of literature,
or else the theatre will decline (...) I implore you, please fall out of love with the treatre". Carta a Suvrin
de 03 de setembro de 1988. Idem, ibidem. 38
Carta a Leontiv enviada em 11 de outubro de 1888. Idem, p. 13. 39
Publicada sob o pseudnimo de Antocha Tchekhont. Ver: CHEKHOV, 2006, p. 267. 40
Idem, p.265.
29
que ser retrabalhada em grande medida em suas "Quatro Grandes Peas"41
, como
veremos adiante.
Em 1884, ano de produo intensa, Tchkhov escreve a pequena esquete Jovem
Homem ( ), publicado em Estilhaos, que surpreendentemente passou
pela censura, pois em poucas linhas a irnica personagem - coincidentemente um jovem
humorista (!) - alfineta uma srie de instituies e oficiais, ante o abobalhado
interlocutor. No mesmo ano publica em O Despertador () uma pardia de um
melodrama alemo (O Limpo e o Leproso) traduzido para o russo por Tarnvski. A
pardia intitula-se Os Trgicos Impuros e os Dramaturgos Leprosos (
)42 e uma clara stira s produes de Mikhail
Lentvski que, como vimos, era um importante "cabea" do meio teatral moscovita. O
texto, que joga com o nonsense da cenografia e do jogo entre as personagens, parodia os
excessos das produes comerciais de Lentsvski, que se baseavam sobretudo na
pirotecnia. Boa parte das personagens levam nomes reais e, anos mais tarde, talvez por
avaliar como irresponsvel a pequena brincadeira, Tchkhov indicaria que este texto
no deveria constar em suas Obras Completas43
.
Ainda em 1884, em Estilhaos, publica Um Exame Ideal (
)44, um leve dilogo entre um professor malicioso e persistente e um aluno
irredutvel. Em outubro publica n'O Despertador o texto Balbrdia em Roma
( )45, tambm numa clara pardia opereta Carnaval em Roma, de
Johann Strauss, produzida pelo Teatro de Lentsvki, em 1884. A esquete recebia o
sugestivo subttulo de "Uma Cmica Excentricidade em Trs Atos, Cinco Cenas, com
Um Prlogo e Dois Fracassos"46
.
Em meio a estas pequenas esquetes, pardias e cenas, surge sua primeira pea
em um ato, escrita para o palco (vale lembrar que nenhum dos citados anteriormente
fora encenado), intitulada Na Estrada Real ( ). O tema para este
41
CAVALIERE, Arlete. Teatro Russo. Percurso para um estudo da pardia e do grotesco. So Paulo:
Humanitas/FAPESP, p. 180-213. 42
Esta pequena cena foi traduzida para o portugus por Jac Guinsburg, com auxlio de Boris
Schnaiderman. Ver: GUINSBURG, Jac. Stanislvski e o Teatro de Arte de Moscou. So Paulo:
Perspectiva, 2001, p. 151-156. Tchkhov a publicou inicialmente sob o pseudnimo de "O Irmo do
Irmo". 43
Idem, p.151. 44
Publicada inicialmente sob o pseudnimo de "Antocha Tchekhont". CHEKHOV, Op. Cit., p. 278. 45
Idem, p.281. 46
Idem, Ibidem.
30
pequeno "estudo dramtico" era o mesmo do conto "Outono", publicado no ano
anterior. A histria se estrutura em torno de um nobre de perfil melanclico e decadente
que, para pagar uma outra dose de vodka, entrega o retrato de sua infiel esposa ao
taberneiro. A mesma que, por coincidncia, aparece para pedir abrigo e quase morta
por um tiro por Igor Merik, que tambm sofrera uma desiluso amorosa no passado. A
fim de tornar a verso um pouco mais "agitada" em relao ao conto (este para
Tchkhov ainda bastante "esttico"), o dramaturgo se utilizou de artifcios comuns ao
melodrama, como a cena-clmax citada acima. V-se, ainda sem definies claras como
ser a posterior condio de Ivnov (), um leve debater-se de tendncias: entre a
construo da "atmosfera", aqui ligada ao tom melanclico, que j se via esboada em
alguns contos desse perodo, e o apego s formas dramticas convencionais (muitas das
quais ele mesmo era um crtico severo), que recorriam ao efeito fcil, s emoes
externas e intensas.
Este pequeno drama, ao qual ele intimamente se referia como "um pouco
nonsense para a cena", no chegou a ser publicado. Vtima da censura, fora lanado
apenas dez anos aps a morte do autor, em 1914. Para o censor, um descendente alemo
chamado E. I. Kaiser, a pea tinha uma "penumbra e uma esqualidez" e no poderia ser
levada cena. Este seria um dos primeiros de toda uma linhagem de crticos que
reclamaria do "pessimismo" e da "melancolia" de Tchkhov47
, algo que se converter,
como veremos, em uma verdadeira "cortina de ferro" para um mais profundo
entendimento de seu teatro.
Neste momento, o dramaturgo j se encontrava no fim de seu curso de medicina
e publica sua primeira coletnea, Contos de Melpmene, alm de outras esquetes como
, que vem do provrbio russo "Quem tem boca vai a Roma"48.
A pequena pea O Pequeno Burgus ( ), tambm em 1884. A cena
Ao p do leito ( ) e O Caso do Ano de 1884 ( 1884 )49
foram escritas no mesmo ano e tambm marcadas pela veia cmica: cenas ligeiras e
situaes inusitadas, com no mais que duas pginas.
47
Idem, p. 222-223. 48
Idem, p. 285-286. 49
Esquete publicada sob o pseudnimo de O Homem sem Spleen, no Estilhaos, em novembro de 1884.
Idem, p. 285-293.
31
Em 1885, Tchkhov faz sua primeira viagem a So Petersburgo e conhece
Aleksei Suvrin, editor do gigantesco jornal conservador Novo Tempo50
e o pintor Isaac
Levitan, com os quais estabelecer relaes duradouras. No ano de 1886, j afastando-
se de boa parte dos jornais, comea uma contribuio intensiva para o jornal de Suvrin,
que ser responsvel por sua definitiva popularizao em grande parte da Rssia. Alm
disso, publica seu segundo livro de contos que, combinado com a seriedade reivindicada
por Grigrovitch, assinado duplamente como Anton P. Tchkhov e Antoncha
Tchekhont, como que a marcar uma espcie de transio para o definitivo empenho
vida literria. No mesmo impulso surgem a minscula cena Drama () e contos
como A Corista e Na Estrada.
No entanto, para o teatro, s em 1886, que os anos comeam a se tornar
produtivos. At ento Tchkhov no tivera nenhuma pea levada cena (ainda que Na
Estrada Real tenha sido pensada mais detidamente para o palco). Dividido entre a
censura, o receio com a gente de teatro, as tendncias comerciais que sufocavam os
impulsos "verdadeiramente literrios e artsticos" e o trauma de juventude que marcara
sua primeira tentativa de flego com Platnov, limitara-se a, como vimos, algumas
esquetes com publicao, mas sem repercusso nos palcos. Temos at agora, portanto,
uma recepo feita apenas por leitores que, se no ajuda a entender o que Tchkhov tem
de vinculao com a prtica cnica no palco, nos leva por vias indiretas compreenso
de algumas preferncias temticas e formais que marcaro toda sua potica51
. Isto vai da
complexificao que mais adiante dar a noo de comdia, at as querelas evidentes
50
A relao entre Tchkhov e Suvrin precisamente pontuada no livro organizado por Aurora
Bernardini e Homero Freitas: TCHKHOV, A. P. Cartas a Suvrin (1886-1891). So Paulo: Edusp,
2002. Na introduo, h um pequeno panorama da relao estabelecida entre o escritor russo e o editor. O
dilogo expresso nas cartas reunidas mostra uma crescente relao, alimentada por discusses literrias,
cooperao em edies dos contos de Tchkhov e debates polticos. No entanto, aps o caso Dreyfus (que
estoura em 1984, mas se estende por vrios anos e envolve a militncia aguerrida de Zola em sua defesa),
Tchkhov no concebe a posio reacionria adotada pelo jornal do amigo e a correspondncia entre os
dois diminui drasticamente. Em carta dirigida ao irmo Aleksandr, em 23 de fevereiro de 1898, Tchkhov
diria: "No episdio Zola, Nvoie Vrimia conduziu-se de modo simplesmente repugnante. Troquei cartas
a esse respeito com o velho sbio (ainda que num tom bastante moderado) e agora deixamos de nos
corresponder." Idem, p. 30. 51
Alm do estudo de Arlete Cavaliere, j citado, vale a meno ao estudo decisivo de GOTTLIEB, Vera.
Chekhov and the vaudeville: A Study of Chekhov's One-Act Plays. Cambridge: Cambridge University
Press, 1982. Neste livro, a estudiosa analisa o perodo "negligenciado" da obra de Tchkhov, mostrando
como as peas escritas a partir de 1885 (suas peas em um ato), so decisivas para estabelecer suas
principais marcas formais, que refletiro em todas as peas de "maturidade". Para isso, faz uma breve
retomada da tradio do vaudeville na Rssia e sua relao com o teatro francs, para evidenciar como
Tchkhov se vincula a uma determinada tradio, mas como tambm inova em seu percurso.
32
que estabelecer com Stanislvski quando este props um sem-nmero de solues
cnicas para o que concebera dramaturgicamente.
A cena moscovita estava repleta de peas geis e cmicas, bem ao gosto mdio,
e o Tchkhov escritor comeava a ser procurado com mais insistncia para escrever
peas em um ato. Nos anos que seguiram, dedicou-se escrita de peas como Os Males
do Tabaco ( ), em sua primeira verso, de 188652. A escrita tem em
vista a realizao cnica, pois Tchkhov concebe a personagem pensando no talentoso
comediante Grdov-Sokolov. No entanto, receoso da recusa do ator por ter escrito
aquele monlogo em pouco mais que duas horas, enviou-a Gazeta de Petersburgo,
mantendo ainda uma vez mais o pseudnimo de Antocha Tchekhont53
. Nesta primeira
verso do monlogo (a segunda viria apenas em 1902) Tchkhov parodia os "leitores
comuns de cincia" que surgiam naqueles anos de sufoco czarista, em um momento de
tentativa de elevao do homem comum e emergncia dos raznotchntzi 54
. O
tratamento da matria dado por Tchkhov nesta primeira verso parece pesar mais para
o jogo exterior, em que a personagem se apresenta como o que no . Em uma palestra
que profere por obrigao em um clube de provncia, Nukhin diz ter sacrificado sua
vida em benefcio da cincia, apesar de no ser nem catedrtico nem pertencer ao meio
cientfico; afirma possuir conhecimento do contedo a ser exposto, mas recorre ao
"papelucho" constantemente para assegurar-se de frmulas e malefcios; afirma ser
fundamental para o bom funcionamento e a excelncia do pensionato conduzido por sua
famlia - j que arruma, leciona e secretaria - no entanto, parece ser a esposa quem tudo
gerencia e realmente define o que ele pode e no pode fazer (desde o que e quando
comer ou quando sair).
A exterioridade dos procedimentos formais est tambm na valorizao de
detalhes sugestivos (trocadilhos, imagens, sonoridades), em si mesmo cmicos: um
52
No Brasil h traduo direta do russo no livro organizado por Homero Freitas de Andrade.
TCHKHOV, Anton. Os Males do Tabaco e Outras Peas em Um Ato. So Paulo: Ateli Editorial, 2003. 53
CHEKHOV, Op. Cit., p.317-323. 54
Boris Schnaiderman pontua bem o sentido que esses setores assumiram ao longo do sculo XIX e o
como estiveram abertos a inmeros debates e transformaes na estrutura social pouco mvel da Rssia
czarista: "A sociedade russa caracterizou-se durante sculos por uma acentuada estratificao e pela
pouca mobilidade entre as diferentes camadas. A partir dos fins do sculo XVIII, foi-se formando, porm,
uma nova camada: a dos que, oriundos das classes inferiores, tinham o nome de raznotchntzi (singular
raznotchnietz). Durante o sculo XIX, os raznotchntzi desempenharam importante papel, como a
camada mais receptiva s diversas tendncias revolucionrias, a menos ligada a uma tradio de
estabilidade poltica e social." SCHNAIDERMAN, Boris. A Potica de Maiaksvski. So Paulo,
Perspectiva, 1971, p. 148.
33
pensionato situado na "esquina da rua Gntali com a travessa dos Cinco Cachorros, no
imvel do Capito Maminha"; os gestos exagerados para que saiam da plateia os
espectadores indesejados; o desequilibrar para pegar um papel; os bocejos constantes da
personagem (que denotam sua velhice sonolenta e conotam o prprio tdio do tema) e o
curioso fato de que sua asma comeou no dia "treze de setembro de mil oitocentos e
sessenta e nove... mesmo dia em que nasceu a filha de minha senhora"55
. A personagem
tem forte acento caricatural e seria equivocado ver ali qualquer jogo entre o cmico e o
trgico, como mostraria Tchkhov em sua segunda verso do texto.
Na transio de 1886 para 1887 escreve uma pea que tem como origem um
conto homnimo, Calkhas (meses depois reescrita como O Canto do Cisne -
/ )56, vinda do mesmo impulso. O "estudo dramtico" tinha em mente o
ator Vladmir Davdov, o qual Tchkhov insistentemente elogiava em cartas aos
conhecidos57
. O ator a levaria ao palco do Korch em 19 de fevereiro de 1888. Nesta
pequena pea em um ato, temos o breve canto de um ator em fim de carreira. Sozinho
no palco escuro rememora seu passado de brilhantes atuaes, mas agora visivelmente
um decadente. De grande ator trgico, foi a bufo. E, ainda que tente recuperar com
palavras suas grandes intervenes em Hamlet ou Rei Lear, sua aparncia ridcula o
desabona. Trata-se, como diz Senelick, de tema caro ao dramaturgo pelo resto da
carreira: a vida posta em termos, as tentativas de sonho no auge da desiluso. A atuao
de Davdov, ainda que no tenha desagradado ao dramaturgo, veio to recheada de
referncias a atores do passado inseridas por ele prprio que o texto, de certa forma,
descaracterizou-se.
Em agosto de 1887 publica em O Despertador a pequena cena, Antes do Eclipse
( ),que no chegaria a ser representada. Ali, duas personagens inslitas
conversam: o Sol e a Lua. Momentos antes do Eclipse, realizam algumas negociaes
para garantir a consumao do fato, envolvendo rublos e promessas de fama para a Lua
que, segundo o Sol, era uma personagem no muito "radiante"58
.
55
TCHKHOV, 2003, p. 13-21. 56
Idem, p. 23 57
"Escrevi uma pea de quatro folhas tipogrficas. Ela ser representada em quinze ou vinte minutos. o
menor drama do mundo. Vai ser interpretada pelo famoso Davidov, que est agora trabalhando no Teatro
Korch. A Saison a est publicando e, por isso, ela ser espalhada por toda parte. Em geral, muito melhor
escrever coisas pequenas do que grandes: h pouca pretenso e fazem sucesso... necessrio mais do que
isso? Escrevi o meu drama em uma hora e cinco minutos. Comecei outro mas no terminei, pois no tinha
tempo." Carta enviada a Maria Kisseliova em 14 de janeiro de 1887. ANGELIDES, Op. Cit. p.61. 58
CHEKHOV, Op. Cit., p. 295-298.
34
em meio a estas inmeras peas em um ato e contos cmicos que Tchkhov
escreve sua primeira pea longa de repercusso no palco. Isto condicionar uma
determinada expectativa do pblico, simbolizada na dbia recepo no dia de estreia da
primeira verso de Ivnov, em 19 de novembro de 1887, no Teatro Korch. Como enredo
bsico, temos a histria de um proprietrio de terras que, portador de um passado
aristocrtico glorioso, vive agora a franca decadncia, a ponto de no ter dinheiro para
pagar ao tratamento da esposa que, segundo o amigo e doutor Lvov, vtima da
tuberculose. O protagonista v aos poucos o esfacelamento de seu mundo, sem
compreender de fato suas causas, e enreda-se num universo de apatia, mesquinhez,
melancolia e fofocas. A montagem foi feita em benefcio de Nikolai Svetlov e mereceu
apenas quatro ensaios, ainda que Korch houvesse prometido dez. Tchkhov vinha
insatisfeito dos ensaios que acompanhava e, como escritor, colocava-se na posio de
algum que deveria zelar pela qualidade do material, e por isso opinava sobre a
distribuio dos papeis e a expresso cnica59
. Sua admirao por Davdov continuava,
e a ele atribuiria o papel principal. Mas o descontentamento com o conjunto, como que
numa busca pelo acerto de tom geral na produo, era frequente. Mais uma vez, o
desleixo dos atores, que pareciam ver ali apenas mais uma pea para incrementar o
repertrio, o incomodava sobremaneira, o que em certo sentido no deixava de ser o
horizonte do prprio condutor do teatro: "Korch um comerciante, e para ele no
importa o sucesso dos artistas e da pea, mas sim a arrecadao total"60
.
Ainda que Tchkhov tenha tentado pegar a pea de volta (a porto de Korch fazer
um "escarcu"), sua estreia o surpreendera. Em carta enviada ao irmo no dia 20 de
novembro, o dramaturgo descreve em detalhes o seu sentimento ao longo de cada ato.
Ao final do primeiro, aps receber uma coroa de flores sob inmeros aplausos, chegaria
a pensar que "aquela no era sua pea". Depois de altos e baixos, anima-se com a
perplexidade momentnea do pblico em silncio, que o substitui por aplausos e bater
de ps (que abafam algumas vaias):
Os frequentadores de teatro dizem que nunca viram tamanha
efervescncia nem tantos aplausos e vaias, e nunca antes
aconteceu de ouvirem tantas discusses quantas viram e
ouviram na minha pea. E no Teatro de Korch no houve outro
caso em que o autor tenha sido aclamado aps o segundo ato. 61
59
Carta ao irmo Aleksandr, enviada no dia 24 de outubro de 1887. ANGELIDES, Op. Cit. p. 71. 60
Carta a Nikolai Likin, enviada em 04 de novembro de 1887. Idem, p. 74. 61
Idem, p. 77-79.
35
No entanto, tal estado de nimo fora momentneo. Dias aps, o comentrio
cauteloso de seu outro irmo Mikhail reconhecera os numerosos aplausos, mas
destacara o fato de que a pea no fora verdadeiramente compreendida, j que a crtica
por um bom tempo ainda precisara "aclarar" o sentido da personagem principal62
.
Tchkhov percebeu que havia ali uma compreenso geral do pblico, e mesmo de parte
da crtica, de que em Ivnov havia um acerto de contas com a gerao de 1880 russa.
Diante da inrcia e incapacidade de ao frente represso e o sufocamento ps-
assassinato de Alexandre II, Ivnov seria uma espcie de "expiao" - seria, nas
palavras do populista Mikhailvski, um "Hamletista", representante de um grupo social
que tenta "racionalizar sua inao e depresso", ou seja, um homem suprfluo63
. Para
alguns crticos, que mesmo diante do sucesso de bilheteria mostravam-se
profundamente irritados (at porque Davdov era um grande chamariz), a pea era
"imoral", uma "repugnante desordem", uma "bobagem cnica"64
, sobretudo por mesclar
procedimentos de uma tragdia domstica e um problema srio de poca.
O dramaturgo ficara particularmente incomodado com tal repercusso.
Inicialmente concebera a pea como expresso de um homem comum, honrado e
educado, que tem de lidar com um presente pouco enobrecedor, e todas as expectativas
elevadas de uma boa educao ou racionalizao da produo na Rssia, que sero
frustradas ao longo de sua vida. Sua tentativa de tentar entender os motivos que levam
a personagem a cair em uma espcie de vazio de vida e atitude contemplativa, ao
contrrio de julg-la com ferocidade, como pareciam querer as plateias e parte da
intelligentsia65
.
Mas o que tambm dificultou em grande parte sua empresa foram as prprias
incongruncias formais com as quais a pea tinha de lidar. O ataque cardaco que mata
Ivnov66
em cena no ltimo ato acentuou o tom melodramtico, e levou o pblico
inclinado s suas comdias ao riso fcil. A personagem exigia complexidade na escrita
e na encenao, como atestam as prprias intenes de Tchkhov ao conceb-la: "Eu
62
CHEKHOV, Op. Cit., p. 324. 63
SENELICK, Op. Cit., p. 17 64
Idem, Ibidem. 65
A carta enviada a Suvrin em 30 de dezembro de 1888, Tchkhov discute em detalhes quais eram suas
reais expectativas com aquele drama, chegando a discorrer sobre cada personagem. Ver: TCHKHOV,
2002, p. 137. 66
Ver primeira verso da pea publicada nas obras completas. CHEKHOV, Op. Cit., p. 324-414.
36
queria fazer uma extravagncia: no criei um malvado, nem anjo algum (mas no
consegui me esquivar dos bufes), no condenei ningum, no absolvi ningum..."67
;
mas o autor tambm tem conscincia de suas limitaes iniciais (mas que,
incrivelmente, tambm sero suas grandes marcas de inovao no futuro):
O argumento complicado e no tolo. Termino cada ato como
os meus contos: conduzo o ato inteiro de maneira tranquila e
mansa, mas ao final dou um tapa na cara do espectador. Usei
toda a minha energia em alguns trechos realmente fortes e vivos,
mas as pontes que ligam esses trechos so insignificantes,
frouxas e estereotipadas. Apesar de tudo estou contente. Mesmo
que a pea seja ruim, criei um tipo que tem uma significao
literria (...)68
Essa frouxido no alinhavamento do entrecho ser decisiva nas peas posteriores
de Tchkhov. No entanto, seu foco aqui est no que ficou de estereotipado e
inconsistente. Sem forar a ligao, possvel sentir um leve choque: o do tema que
pede uma maior profundidade na abordagem psicolgica, com a forma geral que ainda
tem de conviver com estratgias dramticas tradicionais (aqui, no caso, a cena de efeito
e o protagonismo do heroi, que criou polarizaes indesejadas). O efeito final, para
Senelick, parecia indicar que o prprio Tchkhov no tinha definido uma atitude clara
em relao personagem: "Era Ivnov uma pardia ou um tipo de homem
suprfluo?"69
.
A encenao reforou o elemento dramtico, centrado na figura do heroi central,
vtima de uma ardilosa trama de fofocas, diante da qual apenas um mvel inerte.
Frente s fortes crticas recebidas, Tchkhov se dedica a reescrever a pea, chegando
mesmo a encar-la como uma forma no definitiva. A primeira medida foi cortar a cena
do ataque cardaco, que parecia um definitivo ponto fora da reta, e substitu-lo por um
suicdio nos bastidores (o mesmo recurso ser utilizado anos depois em A Gaivota, com
Trepliov). Contudo, as mudanas no vm no sentido de suplantar o choque ao qual nos
referimos. Pelo contrrio, Tchkhov quis mostrar-se capaz de "operar as leis do drama"
(j que muitos acusavam-no do contrrio). Substituiu as passagens demasiado lentas,
67
Carta ao irmo Aleksandr, de 24 de outubro de 1887. ANGELIDES, Op. Cit., p.71. 68
Idem, p. 66-67. 69
"In the first version of Ivanov, unfortunately, he had not managed to clarify his own attitude towards
his protagonist: was Ivanov a parody or a type of the 'superfluous man'?" SENELCIK, Op. Cit., p. 17.
37
irnicas, com detalhes de fundo (o que ento chamara de frouxo ou mal alinhavado), por
cenas mais dramticas, ao modelo do que se tinha como bom drama poca. A crise de
Ivnov ao final no seria mais inesperada e suprflua - ganharia em integridade e
heroificao, com direito a uma espcie de discurso de defesa final, ainda que, como
viria a desenvolver futuramente, o "motivo" no fosse diretamente explcito e tivesse
fortes marcas de ambiguidade70
. De pea com veios cmicos, Tchkhov a convertera,
com todas suas especificidades, em um drama.
No intermezzo da reviso de Ivnov, Tchkhov deu continuidade ao trabalho de
produo de farsas e pequenas cenas cmicas71
que definiram seu reconhecimento junto
ao pblico russo. Elas tinham, como disse, "sucesso garantido", mas nem por isso
devem ser vistas como menores. Em 1888 escreve O Urso () e O pedido de
casamento ()72. A primeira gozou de imediato sucesso junto ao pblico.
Fora representada inclu