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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS Pós-Graduação em Ciência Ambiental TONYA MENEZES FERRAZ O IMAGINÁRIO DE LIXO E SUJEIRA NAS HISTÓRIAS DO PERSONAGEM CASCÃO Niterói 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

Pós-Graduação em Ciência Ambiental

TONYA MENEZES FERRAZ

O IMAGINÁRIO DE LIXO E SUJEIRA NAS HISTÓRIAS DO PERSONAGEM CASCÃO

Niterói 2007

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TONYA MENEZES FERRAZ

O IMAGINÁRIO DE LIXO E SUJEIRA NAS HISTÓRIAS DO PERSONAGEM CASCÃO

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Resíduos Sólidos.

Orientador: Prof. Dr. EMÍLIO MACIEL EIGENHEER

Niterói 2007

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F381 Ferraz, Tonya Menezes

O imaginário de lixo e sujeira nas histórias do personagem

Cascão / Tonya Menezes Ferraz. – Niterói : [s.n.], 2007. 109 f. : il. Dissertação (Mestrado em Ciência Ambiental) – Universidade Federal Fluminense, 2007. 1.Educação ambiental. 2.Resíduo sólido. 3.Lixo. 4.Meio ambiente. I.Título. CDD 372.357

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TONYA MENEZES FERRAZ

O IMAGINÁRIO DE LIXO E SUJEIRA NAS HISTÓRIAS DO PERSONAGEM CASCÃO

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Resíduos Sólidos.

Aprovada em agosto de 2007.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________ Prof. Dr. EMÍLIO MACIEL EIGENHEER - Orientador

UFF

___________________________________________________________________________Profª. Dr. JOEL DE ARAÚJO

UFF

___________________________________________________________________________Prof. Drª. SPERANZA FRANÇA DA MATA

UFRJ

Niterói 2007

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Ao meu irmão, Carlos José Menezes Ferraz (in

memorian), pelo incentivo e carinho silenciosos, pela companhia na busca de conhecimento e por me dar a oportunidade de fazer parte das páginas de sua História.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Emílio –meu orientador – pelo carinho, paciência e contribuições

significativas que se fizeram presentes durante essa longa caminhada de formação.

À minha mãe, Maria da Glória Menezes Ferraz, que desde sempre me apoiou,

ajudou-me, e estimulou-me para o crescimento profissional e humano, através de

grande amor.

Ao meu pai, Pedro Helder Ferraz, pela ajuda na obtenção de recursos.

Ao Carlos Henrique, pelas noites não dormidas, pelo carinho e pela força.

Aos amigos da turma de 2005, pela acolhida, alegria e troca de conhecimento.

À Stela, pela paciência e delicadeza ao atender-me, freqüentemente, em sua casa.

A Maurício de Sousa e sua equipe que construíram o objeto de minha pesquisa.

A todos que, de alguma maneira, direta ou indiretamente, contribuíram para a

realização desse trabalho.

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RESUMO

A produção permanente de lixo e seus impactos tornaram-se um desafio para as sociedades industriais. A quantidade crescente dos mesmos, sua complexidade, a ausência em vários países de políticas públicas adequadas aumentam a dificuldade. No Brasil, a situação é grave, não só em relação à coleta, mas, principalmente, quanto ao destino final. Sabe-se também que o enfrentamento das questões ligadas ao lixo pede tanto medidas técnico-operacionais, como educacionais envolvendo intrincados aspectos culturais. No aspecto educacional, apesar de termos inúmeros manuais e cartilhas sobre a questão do lixo, há dificuldades para se aprofundar as discussões. Alguns trabalhos, por exemplo, têm mostrado a relação do lixo a seculares temores do homem, como a morte, a degenerescência, sem que sejam considerados em propostas educacionais. Assim, analisar como questões ligadas ao lixo vêm sendo tratadas nas histórias em quadrinho de Maurício de Sousa, notadamente através do personagem Cascão, é uma linha de trabalho promissora para a Educação Ambiental.

Palavras-chave: Cultura, Educação, Gestão de Resíduos, Histórias em Quadrinhos, Lixo.

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ABSTRACT The permanent production of garbage and its resulting impacts became a challenge to industrial societies. Its growing quantity, its complexity, the absence in several countries of adequate public policies increase the difficulty. In Brazil, the situation is serious, not only concerning the collection, but mainly, its final destination. It is also known that in order to face the issues related to garbage we need many technical-operational measures, as educational ones, involving intrincate cultural aspects. As regards the educational aspect, in spite of existing countless manuals and books about garbage, there are some difficulties to make a profound discussion in this area. Some works, for example, have shown the relationship between garbage and the secular fears of man, as death and degeneration, without focusing on it for educational proposals. Therefore, to analyze how the cultural issues of garbage have been negotiated in comic strips, through the character Cascão created by Maurício de Sousa, becomes a promising line.

Key-words: culture, education, comic strips, garbage, management of residues.

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SUMÁRIO Resumo vii Abstract viii Introdução 02 Capítulo 1: O papel das histórias em quadrinhos 04 1.1. O olhar sobre as histórias em quadrinhos para crianças 07 1.2. Histórico das histórias em quadrinhos no Brasil 11 Capítulo 2: O mundo mágico de Maurício de Sousa 16 2.1. Breve apresentação de personagens da Turma da Mônica 16 2.2. O garoto do morro: Cascão 19 2.3. O bairro Limoeiro: Universo de atuação do Cascão 21 Capítulo 3: Lixo: aspectos culturais e operacionais 25 3.1. Aspectos culturais e sociais do lixo 25 3.2. À margem 28

3.3. Aspectos operacionais 29 3.4. A desmistificação do lixo 30

Capítulo 4: As histórias do Cascão e o lixo 32 4.1. Caminho percorrido 32

4.2. Lixo, sujeira e o Cascão 37 Capítulo 5: Considerações finais 62 Referências Bibliográficas 64 Anexos 68

1. Notícia do Jornal do Commercio 68 2. Tabela: número de revistas pesquisadas publicadas entre os anos de 1986 até 2006. 70 3. Os banhos do Cascão: publicidade 71 4. Histórias mais significativas para o trabalho 73

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INTRODUÇÃO:

A escolha do tema da dissertação se deu tanto pela trajetória acadêmica (formação em

Psicologia e Biologia), como pelo interesse didático, como professora, no trato da questão do

lixo e de seus aspectos técnicos-culturais.

Minha inserção com o tema da exclusão social se deu no decurso de minhas

graduações. No curso de Psicologia, trabalhei os excluídos sociais: indigentes, doentes

mentais, homossexuais, bandidos e os economicamente desfavorecidos. A participação em um

grupo de pesquisa sobre Psicologia Ambiental me deu a oportunidade de estudar a psique

humana, baseado em Foucalt, Lacan e Freud. Aos poucos, fui me vendo como um agente de

ação, de poder, onde ego, id e superego lutam incessantemente pela repressão ou liberação do

desejo e me fazendo sentir capaz de mudar o mundo físico no qual vivo. Assim, pude

construir uma ponte com a outra graduação, a Biologia, através da Educação Ambiental.

A pesquisa, na área de Psicologia Ambiental, se restringiu, inicialmente, ao estudo de

questões do Campus do Gragoatá, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói.

Foi a partir dela que me defrontei com questões ligadas aos resíduos sólidos.

Nesse ínterim, tive a oportunidade de reencontrar um professor de Filosofia do curso

de Graduação que coordenava um trabalho pioneiro de coleta seletiva no Brasil desenvolvido

no bairro de São Francisco/Niterói onde moro. Esse encontro proporcionou alguns anos de

pesquisa na área dos resíduos sólidos, no Centro de Informações sobre Resíduos Sólidos

(CIRS) – UFF. Nesse período estudei, principalmente, questões ligadas à degenerescência.

Um dos primeiros trabalhos realizado no CIRS foi o levantamento de notícias de

jornais do Rio de Janeiro (de 1850 até 1900). Aos poucos, o contato com as reclamações da

população daquela época, os pareceres da Câmara Municipal, as reclamações sobre as

dificuldades da limpeza urbana do Rio de Janeiro ou sobre os cemitérios da cidade foram

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sedimentando o interesse pelo aprofundamento dos estudos dos aspectos culturais dos

resíduos.

Com o término da pesquisa nos jornais, direcionei-me a temas onde pudesse relacionar

a questão do lixo ao mundo escolar. Busquei isso, em uma perspectiva educacional nas

histórias em quadrinhos, mais especificamente, no personagem Cascão, de Maurício de Sousa.

Vi-me entretida por dezenas de gibis do Cascão, tratando ludicamente de problemas teóricos e

práticos que vinha trabalhando na área dos resíduos sólidos.

Durante muitas manhãs, li o material, rindo das aventuras do personagem. Lembrava

de algumas que havia lido quando criança. As histórias do Cascão passaram a ser vistas como

caminho para se perceber como o universo do lixo é levado ao mundo infantil e que

mensagens as crianças, e também os adultos, vêm recebendo. Serve para perceber como o

drama do lixo é apresentado para as novas gerações. Ou seja, pelas histórias, entender como o

lixo é apresentado em seus aspectos social, econômico, cultural e operacional.

A proposta deste trabalho foi, pois, pesquisar como é transmitido, ao mundo infantil, o

problema dos resíduos sólidos e até onde as histórias do Cascão ajudam a consolidar

crendices e tabus sobre o tema.

No primeiro capítulo é feita uma reflexão sobre o aspecto lúdico e ingênuo das

histórias em quadrinhos, seguido de um pequeno esboço de como ela se desenvolveu no

Brasil, incluindo a produção de Maurício de Sousa.

No segundo, é feita uma caracterização da Turma da Mônica e do personagem Cascão,

ligado à sujeira e ao lixo, relacionando-o com os comportamentos de seus amigos. Neste

capítulo encontramos as mudanças gráficas dos personagens, assim como as mudanças

comportamentais dos mesmos.

No terceiro, são discutidos os tabus e estigmas pertencentes ao mundo do lixo e,

também, aspectos operacionais da área. Nesse capítulo, questões socioeconômicas são

tratadas, principalmente aquelas relacionadas aos catadores de lixo presentes nas grandes

cidades. Como último aspecto a ser tratado, temos a questão da memória e da cultura.

No quarto, se faz um paralelo do olhar teórico-prático sobre o lixo e o universo do

personagem Cascão. Em outras palavras, mostra como as questões culturais, operacionais e

técnicas, referidas no terceiro capítulo, são apresentadas nas histórias do Cascão.

No quinto, uma breve reflexão sobre o trabalho desenvolvido e as propostas de linhas

temáticas para escolas.

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1. O PAPEL DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

Pensar histórias em quadrinhos como apenas uma representação do mundo infantil

pode ser um equívoco, por, pelo menos, duas razões. A primeira se deve ao fato da presença

cada vez mais escassa de escritores veiculados, exclusivamente, ao público infantil. A

segunda porque as obras de arte, e neste ponto podemos incluir entre elas as histórias em

quadrinhos, são fundamentadas na visão de mundo que o autor traz. Ou seja, são repletas de

informações e de formações para além da própria história. Dessa maneira, se torna

fundamental não tratar as histórias em quadrinhos como despretensiosas, como são

costumeiramente consideradas. Na tradição marxista, por exemplo, é dito que:

Numa sociedade dividida em classes são por vezes nítidos na obra de arte os reflexos da visão que não só o artista individualmente considerado mas tal ou tal classe tem da própria sociedade, do juízo que dela faz, da sua atitude perante ela. (CUNHAL,1996, p. 40)

Segundo CIRNE1 (2000, p. 23) os quadrinhos são considerados arte seqüencial. O que

quer dizer que são “uma narrativa gráfico-visual, impulsionada por sucessivos cortes que

agenciam imagens rabiscadas, desenhadas e ou pintadas”. Em outro momento, o mesmo autor

(CIRNE et al. 2002, p. 4) descreve os quadrinhos como “uma narrativa gráfico-visual, com

particularidades próprias, a partir do agenciamento de, no mínimo, duas imagens desenhadas

que se relacionam”. Entremeando as imagens há o corte gráfico que marca “o espaço do

impulso narrativo (espacial e temporal), que abre espaço para a imaginação do leitor”.

Esse corte, portanto, é fundamental, tanto para o autor do quadrinho como para aquele

que lê. Por um lado, possibilita a demarcação imaginária do autor e seu controle sobre o

leitor; por outro, permite que o leitor possa divagar sobre o tema proposto. 1 Moacy Cirne é um dos mais conceituados críticos de quadrinhos no Brasil.

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E os quadrinhos, mais do que o cinema, mais do que o vídeo, mais do que a televisão, investem na possibilidade de uma leitura radical. E o que vem ser a leitura radical? Aquela leitura que se dá, ao mesmo tempo, de forma múltipla e simultânea, que constrói a sua temporalidade específica no interior da narrativa que, se de um lado é a narrativa proposta pelo autor, do outro é a narrativa mentalmente trabalhada pelo leitor. (CIRNE, op. cit., p. 25)

É por essa abertura - o corte - que se torna possível vislumbrar, de maneira sutil, uma das

características marcantes dos quadrinhos, seu cunho político ideológico.

O corte marca a presença do autor na história, marca um tempo concebido por ele através de

sua historicidade. A cadência das histórias, dos quadrinhos, dos cortes, acontece em função

das redes de relação das quais o autor participa e participou, ou seja, das redes das quais ele se

fez. Por conseqüência, suas histórias também trazem consigo marcas dessas redes

(GUATTARI e ROLNIK, 1986, passim). A cadência das histórias também as define e as

confirma no mundo social. As histórias, por mais abstratas, fantásticas, cotidianas ou

futuristas que pareçam ser, trazem consigo uma ideologia vinculada às questões sociais de que

seu autor participa.

BIBE-LUYTEM (1985, p. 3) também considera os quadrinhos como uma produção artística,

ligada à mídia, que se concretiza como um veículo de mensagens de cunho ideológico, na

medida em que expressam não só o cotidiano como situações de transformação social e

política. Portanto, impossível falar de quadrinhos sem considerar, sobretudo, sua base social.

Assim, os quadrinhos reforçam a idéia de que nenhuma arte é gratuita, pois nenhum artista

fica à margem do processo social.

A verdade da realidade social que a arte reflete ou transmite não está num momento da realidade apanhado à superfície. O reflexo é particularmente rico quando o concreto e imediato contém em si, pelas mais variadas formas de expressão, o efeito de um passado que foi a causa de um futuro que será. (CUNHAL, op. cit., p. 158)

Alguns quadrinhos, é certo, trazem de maneira mais explícita, esse teor político e ideológico.

O caricaturista Henfil, por exemplo, utilizava suas historinhas para manifestar sua opinião

diante da conjuntura político-social e histórica de nosso país2.

Artistas como Henfil nos levam a pensar na responsabilidade social do artista. Apesar do neoliberalismo, apesar da globalização, cada vez maiores, não podemos achar que este ou aquele escritor (ou cineasta, músico, teatrólogo, quadrinhista) se encontra à margem do processo social e cultural

2 Henfil foi marcado por seu engajamento na resistência contra o Regime Militar. Na história dos quadrinhos

brasileiros, ele teve um papel preponderante não só pela renovação do desenho humorístico, como também pela criação de personagens tipicamente brasileiros.

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que o forma. Por mais medíocre ou ingênua que seja, nenhuma arte é inocente. Por mais genial ou renovadora que possa ser, nenhuma arte é gratuita. (CIRNE, op. cit., p. 42)

Figura 1: Graúna, Bode Francisco Orelana e Capitão Zeferino – personagens de Henfil.3

Também podemos citar Angeli e Ziraldo. O primeiro fala para jovens e adultos de

maneira despojada e irreverente explorando os aspectos negativos de nossa sociedade. Ziraldo

mostra, de forma direta, sua inserção política nas histórias e, por conseqüência, em seus

personagens4.

Figura 2: Ozzy, o personagem adolescente de Angeli. 5

3 HENFIL (2002, P. 26). 4 É interessante ressaltar que os autores a que me refiro têm como público, excetuando Ziraldo, jovens e adultos.

Ziraldo também escreveu para esse público, em função do antigo “O Pasquim” ou da não tão antiga revista Bundas, mas também escreve para o público infanto-juvenil. Todavia, o material para jovens e crianças não é tão facilmente encontrado nas bancas, sendo assim difundido em livrarias, o que colabora para a propagação de seu viés político-ideológico.

5 ANGELI (2006, p. 36).

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No contexto das revistas em quadrinhos para adultos, a verificação de mensagens

político-ideológicas é, muitas vezes, evidente em função do engajamento de seus autores e

dos pensamentos veiculados em suas obras. Outras vezes, esse tipo de mensagem se apresenta

subentendida como, por exemplo, no caso das revistas de heróis norte-americanos, que trazem

nas entrelinhas a concepção do viver norte-americano, com o poderio e a admitida supremacia

desta cultura, em suas cenas e cortes.

O que dizer, então, das revistas vistas como infantis? Será que suas histórias

manifestam o olhar de uma sociedade?

1.1. O OLHAR SOBRE AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS PARA CRIANÇAS

Não faz muito tempo que pensar história em quadrinhos para crianças era pensar em

um tipo de “paraleitura” (ibid, p. 16), devido ao conteúdo aparentemente simples e ingênuo

delas. A questão da escrita nessas histórias demarca mais uma de suas singulares

características: a busca pela oralidade.

Comumente, a oralidade está vinculada a manifestações de pensamento através de

procedimento verbal. Portanto, para muitos autores corresponde ao processo de internalização

de conhecimento através da língua falada. Assim, características como a coesão realizada por

recursos paralingüísticos e não-verbais e a necessidade de uma contextualização são

fundamentais.

Durante muito tempo, a linguagem falada foi considerada distante da linguagem

escrita, em função de suas diferenças. Entretanto, é cada vez mais freqüente a fusão destas

duas linguagens (escrita e falada) no processo de produção de texto. Muitos autores instigam a

população à leitura de suas obras, na medida em que utilizam expressões populares e

vernáculos simplórios.

Segundo EGUTI (2001, passim), o principal objetivo dos quadrinhos consiste na

narração de fatos em busca de uma conversação natural. Seus personagens interagem, através

de palavras aliadas a elementos visuais que complementam a compreensão tais como o

requadro, a legenda, o balão, as onomatopéias, o prolongamento e a intensificação de sons e

as expressões faciais e corporais. Sendo assim, o processo de oralidade intrinsecamente ligado

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à escrita se manifesta nas histórias em quadrinhos. Todavia, não é somente nesse tipo de

material que essa relação se apresenta.

Segundo EL FAR, (2006, passim) a busca da oralidade na história da leitura brasileira

é marcada pelas questões sociais, econômicas e políticas existentes em nosso país, desde o

final do século XVIII. Nesse período houve a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil. Esse

fato possibilitou a emergência da imprensa e da produção e difusão de livros no país. Todavia,

a veiculação dessas obras era feita para um pequeno número de habitantes, tendo em vista a

grande quantidade de analfabetos.

O império não tinha povo, no sentido político da palavra. O povo brasileiro, escreveu Gilberto Amado, não podia ser o milhão e meio de escravos, o milhão de índios inúteis que a contagem do governo reduz, com evidente imprecisão, a quatrocentos mil apenas: não podia ser cinco milhões de agregados da fazenda e dos engenhos, caipiras, matutos, caboclos, vaqueiros do sertão, capangas, capoeiras, pequenos artífices, operários rurais primitivos, pequenos lavradores dependentes; não podia ser os dois milhões e meio de negociantes, empregados públicos ou particulares, criados e servidores de todas as profissões. O povo brasileiro, existente como realidade viva, não podia deixar de ser apenas as 300.000 ou 400.000 pertencentes às famílias proprietárias de escravos, os fazendeiros, os senhores de engenho de onde saíam os advogados, os médicos, os engenheiros, os altos funcionários, os diplomatas, os chefes de empregos, únicas pessoas que sabiam ler, tinham alguma noção positiva. (LIMA, [s.d], p. 52)

Em função desse panorama, a leitura ficou restrita durante um período significativo de

nossa história (séc XVIII e XIX) a um grupo minoritário da elite brasileira. Esse grupo

apreciava as histórias na medida em que liam, e, ao mesmo tempo, apoderavam-se da escrita e

da leitura enquanto se afastavam da oralidade.

No período de 1870/80(EL FAR, op. cit, p. 24), a leitura começa a alcançar novos

níveis sociais através dos jornais, das revistas ilustradas e de brochuras, principalmente em

função do trabalho realizado por Pedro Quaresma, proprietário da antiga Livraria do Povo,

inaugurada em 1879. Quaresma produziu e vendeu livros baratos e de leitura simples, para os

mais variados leitores. Produzia para crianças, mulheres e para pessoas de poucas posses. Os

escritos produzidos eram mal redigidos, entremeados de expressões ligadas à oralidade, além

de serem recheados de ilustrações. Essas características foram fundamentais para a expansão

da leitura em nossa sociedade.

De fato, os baixos preços e as estratégias de divulgação conseguiram levar o texto impresso, no final do século XIX, para o centro da vida cotidiana de uma parcela cada vez mais significativa da população brasileira. Pelas livrarias, quiosques e charutarias, ou pelas mãos dos engraxates e

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mercadores ambulantes, livros, pequenas brochuras, folhetos, jornais, revistas e até mesmo cartões-postais circulavam em meio a uma camada difusa e heterogênea de leitores. (ibid, p. 36)

Atualmente, uma quantidade significativa de livros se afasta da oralidade, fator

preponderante para o distanciamento destes das camadas populares, assim como do seu alto

custo. Mesmo com a iniciativa de algumas editoras de publicar livros de bolso com preços

baixos e vendidos em lugares bastante diversificados, uma significativa porção da população

não tem acesso a eles.

(...) o elevado preço dos livros dificulta uma maior intimidade com a leitura. Os editores costumam explicar que a pequena procura dos consumidores restringe os novos títulos a baixa tiragem, encarecendo assim o preço de cada exemplar. Essa situação, entretanto, engendra um círculo vicioso: porque poucas pessoas costumam comprar livros, eles se tornam um produto caro e, por serem caros, uma parcela muito pequena da população brasileira pode adquiri-los com freqüência. (ibid, p. 53)

Em contrapartida, o mundo dos gibis ganha cada vez mais leitores tanto pelo fácil

acesso ao texto, como pelo seu custo. É uma leitura impregnada de expressões orais. Essas

características, aliadas ao detalhamento gráfico das histórias, tornaram os quadrinhos

populares nos mais diferentes grupos sociais e nas mais diferentes faixas etárias. É

importante, porém, ressaltar que essa mesma linguagem possibilita, de maneira mais efetiva, o

retorno da oralidade.

A palavra impressa pode ter apaziguado a intensidade do universo da oralidade, mas em nenhum momento silenciou suas vozes. Até hoje, a leitura de textos, a declamação de poemas ou a curiosidade para conhecer o final de uma boa história continuam a seduzir uma platéia ocasional de ouvintes. (ibid, p. 31)

Mesmo com a crítica à forma da linguagem nas histórias em quadrinhos, é comum a

utilização destas, por adultos, como instrumento para incentivar a leitura e a escrita aos

pequenos leitores, através de um material considerado, por muitos, inocente e divertido.

É necessário ressaltar que há, segundo alguns autores, cinco gêneros de história em

quadrinhos. São elas:

a) Girls Strips: cujas histórias são protagonizadas por garotas sensuais e

extremamente eróticas;

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b) Action Strips: que tratam de ação e aventura;

c) Animal Strips: em que os temas são protagonizados por personagens

antropomorfizados e em que defeitos e qualidades humanas são colocados em animais

de modo estereotipado;

d) Family Strips: em que os personagens das histórias são membros da

família;

e) Kids Strips: em que temas são abordados através de personagens infantis,

mesmo trazendo subentendidas propostas sociopolíticas.

A preocupação de nossa sociedade se volta basicamente para as Girls Strips e as

Action Strips, devido à erotização e à violência que expressam. As

Actions Strips ganham, cada vez mais, espaço nas bancas de jornal brasileiras e em séries

televisivas (Super-homem, Batman, X-man). Essas histórias têm como leitores crianças e

adultos, das mais diferentes idades, que se encantam pelo conjunto de imagens, bem como

pelo tempo narrativo em que os cortes são estabelecidos. Em seu pano de fundo, essas

histórias apresentam temáticas políticas, ideológicas e culturais.

As Girls Strips contêm em suas tiras6 um interesse do mercado editorial para o mundo

feminino desde 1920. Essas tiras são impregnadas por ideais feministas, sendo espaço para

afirmação das inquietações sociais e psicológicas do sexo feminino, bem como da valorização

da mulher heroína, independente e emancipada. Já as Actions Strips contêm um universo

masculino que, além das lutas, marcam a virilidade com a imagem de homens altos, fortes e

atléticos que lutam a favor dos oprimidos, sem se preocupar com lugares inóspitos ou

perigosos, tendo, portanto, como lema, a liberdade e a justiça.

Porém, nem sempre fica claro ao leitor o cunho ideológico que os quadrinhos

denominados Kids Strips apresentam, mesmo que de maneira difusa, em sua marca gráfica e

em seus diálogos. Essas histórias, marcadas pela presença de personagens infantis, surgiram,

no Brasil, antes do século XX, baseadas na iconografia européia. Através delas, há a

possibilidade de transmitir, sob o ar inocente, as propostas sociais e políticas sem causar o

desconforto esperado, caso tivessem sido tratadas de maneira direta, por personagens adultos.

6 Tiras: são histórias em quadrinhos normalmente publicadas em jornais ou em livros coletâneas. As histórias das

tiras podem ser completas ou não e possuem de um a quatro quadros, no máximo, em qualquer gênero.

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1.2. HISTÓRICO DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO BRASIL7

Desde a primeira metade do século XIX a história em quadrinhos vem se

estabelecendo no mercado internacional (CIRNE, op. cit, p. 11). Nesse período histórico era

comum a divulgação de histórias ilustradas. Essas, por sua vez, apresentavam como marca um

desencadeamento de imagens, hoje conhecido e presente nas histórias em quadrinhos: o corte.

Elas tinham como instrumento de divulgação, os impressos da época que circulavam nas

mãos de um público intelectual e ganhavam adeptos por seu caráter humorístico.

Os quadrinhos, propriamente ditos, surgiram no Brasil por intermédio de estrangeiros

que produziam trabalhos mantendo uma seqüência ilustrativa com consistência narrativa. Mas

é com Ângelo Agostini, escritor italiano, que os quadrinhos infantis ganham força no Brasil

ao publicar As Cobranças (1867) em O Cambrião (SP), As Aventuras de Nhô Quim

(1869), em Vida Fluminense (RJ) e Zé Caipora (1883), na Revista Ilustrada (RJ).

Figura 3: Quadrinho de Zé Caipora, considerada primeira obra-prima do quadrinho nacional, de

Angelo Agostini. 8

Em 1905, com a impressão da revista infantil O Tico-Tico, ocorreu um avanço nas

histórias em quadrinhos no Brasil. Ela abre espaço para a publicação de alguns quadrinhos

norte-americanos e nacionais como O Talento de Juquinha (1906), produzido por José

Carlos de Brito e Cunha; As Mentiras de Manduca (1907) e Zé Maçado (1919) de Alfredo

Storni; Kaximbown (1908), de Max Yantok ; Carrapicho (1923) e Lamparina (1928), de

7 Esta parte da dissertação tem como base o trabalho realizado por Cirne (CIRNE et al., op. cit.) para a

Biblioteca Nacional. 8 Fonte: Agostini, Ângelo. Zé Caipora. Revista Ilustrada, 27/01; 1883. RJ. 1883.

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José Carlos, e Reco-Reco, Bolão e Azeitona (1931), de Luiz Sá, sendo o último significativo

para o público infantil da época, por seus traços arredondados.

Figura 4: Capa de um exemplar da Revista O Tico-Tico9.

Em 1934 temos um marco em relação às histórias em quadrinhos com a impressão do

Suplemento Infantil editado por Adolfo Aizen, no jornal A Nação (RJ). Depois de um ano O

Suplemento Infantil passou a ser chamar Suplemento Juvenil. Foi aí que os comics norte-

americanos ganharam destaque no Brasil. Também foi através do Suplemento que as histórias

em quadrinhos começaram a fazer parte da indústria cultural no país.

Em 1937, dois fatos importantes ocorreram no mundo dos quadrinhos. No Rio de

Janeiro, Roberto Marinho começou a investir neste campo editorial, publicando Ferdinando,

Brucutu. Já na A Gazeta Juvenil (SP), Francisco Arnond e Renato Silva apresentam a história

em quadrinhos vinculada ao terror com A Garra Cinzenta (1937). Esse tipo de história seria

retomada, na década de 60, com a publicação Zé do Caixão (1968) de José Mojica Marins e

Nico Rosso.

No ano de 1938, as histórias em quadrinhos continuam a se desenvolver no Rio de

Janeiro e em São Paulo. Em 1939, temos outro acontecimento importante: a publicação da

Revista Gibi (RJ), por Roberto Marinho. A popularidade da revista fez com que o Gibi

passasse a designar, até os dias atuais, todas as revistas em quadrinhos brasileiras.

9 O Tico-Tico, nº. 1914. Maio de 1945.

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Figuras 5 e 6: Primeiro e último números da Revista Gibi, editada por Roberto Marinho10.

Na década de 40 entre as publicações, podemos destacar as revistas de Superman e

Sesinho (RJ), esta última voltada para crianças, seguindo os moldes do O Tico-Tico.

Apresentava como colaboradores Ziraldo, Ricardo Forte, Joselito e Gil Brandão.

Figura 7: Capa do número 1 da revista Superman, publicada no Brasil11.

Segundo Batista ([s.d], p.1) nas décadas de 40 e 50, a indústria de quadrinhos

enfrentou uma forte pressão em todo o país, liderada por educadores e intelectuais que a

acusava de ser um perigo moral, social e cultural. No final da década de 40, surge a

publicação da Edição Maravilhosa (RJ). Essa revista deu maior visibilidade aos quadrinhos à

medida que passou a publicar, a partir de 1950, romances brasileiros quadrinizados. 10 Gibi, nº. 1 e Gibi, nº. 40, RGE, capa, 1939 e 1975, respectivamente. 11 Superman, nº. 1, Editora Ebal. Capa. Novembro de 1947.

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Figura 8: Capa de O Guarani, em Edição Maravilhosa12.

Também em 1950, o Pato Donald passa a ser publicado no Brasil, abrindo espaço para

o mundo de Walt Disney.

Figura 9: Capa do número 1 do O Pato Donald 13 .

Nos anos seguintes novos personagens em quadrinhos são apresentados aos leitores.

Pererê (1960), de Ziraldo, ganha força na revista O Cruzeiro (RJ), permanecendo até 1964.

Suas histórias eram voltadas para crianças, mas traziam forte conotação política de resistência

ao regime militar. Nessa época outros personagens de humor sarcástico e lúdico se firmam

nas tiras em quadrinho, como Os Fradinhos, de Henfil.

12 LE BLANC, André. O guarani. Rio de Janeiro: Edição Maravilhosa, nº. 24. Editora Ebal, 2ª edição. Capa.

Fevereiro de 1954. 13 DISNEY, Walt. O pato Donald. São Paulo: Editora Abril, ano I, nº. 1, capa, julho de 1950.

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Figura 10: Fradim Baixim - frade baixinho de humor sádico, tornando-se personagem mais famoso do Henfil e

Fradim Cumprido - frade magrelo, parceiro e vítima do Baixim14.

Ainda na década de 60, revistas dedicadas aos quadrinhos aparecem em outras regiões

do país e não mais apenas no sudeste. Em 1963, surge, por exemplo, a Flama, revista editada

por Deodato Borges, na Paraíba. Também nessa década autores nacionais procuraram se

contrapor ao avanço dos comics norte-americanos com seus super-heróis. Passaram a utilizar

em suas tiras super-heróis nacionais como é o caso de Os Zeróis, de Ziraldo (1967) ou

Capitão Cipó (1968), de Daniel Azulay.

Na década de 70, com a invasão das Actions Strips, os quadrinhos são, em sua

maioria, voltados para o público juvenil e adulto. Mantêm-se nas tiras nacionais a resistência

política e ideológica e, em menor escala, a produção de histórias literárias em quadrinhos. No

âmbito das histórias em quadrinhos exclusivamente para o público infantil, destaca-se

Maurício de Sousa. Esse, em 1970 publica a revista número 1 de Mônica e a sua turma, e, em

1973, é publicada a revista de outro personagem seu: Cebolinha 15.

Figuras 11 e 12: Capas das primeiras revistas da Mônica e do Cebolinha, respectivamente16.

14 HENFIL (2003, p. 13). 15 É interessante ressaltar que, já na primeira capa da revista do personagem Cebolinha, Cascão se apresenta e,

além dele, há a presença de outro personagem: o Capitão Sujo. 16 Mônica nº. 1, Editora Abril. Capa. Maio de 1970 e Cebolinha, nº. 1, Editora Abril. Capa. Janeiro de 1973.

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2. O MUNDO MÁGICO DE MAURÍCIO DE SOUSA

Maurício de Sousa, respeitado autor de histórias em quadrinhos infantis, nasceu em

Santa Isabel (SP) e foi criado em uma cidade próxima, chamada Mogi das Cruzes. Suas

histórias de vida tiveram papel importante em sua ascensão ao mundo mágico dos quadrinhos,

pois foram pessoas que conheceu em sua infância que serviram de inspiração para a criação

de seus personagens. Todos os personagens da Turma da Mônica têm características

singulares como dentes grandes, cabelos arrepiados, medo de água, vontade exagerada de

comer.

Todavia, o personagem que deu início a sua produção não foi a Mônica (como se

costuma pensar), mas o cachorro Bidu e seu dono Franjinha, criados no ano de 1959. Depois

desses dois, mais de 150 personagens surgiram, tendo alguns ganhado revistas exclusivas.17

2.1. BREVE APRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS DA TURMA DA MÔNICA

Mônica, apesar de ser a principal personagem de Maurício de Sousa, foi criada no ano

de 1961, participando pela primeira vez na tira de número 18 do Cebolinha, juntamente com

seu fiel boneco, posteriormente denominado, Sansão. Segundo Maurício de Sousa (1990, p. 6)

a inspiração para esse personagem, que apesar das mudanças de traço tem nos dentes salientes

uma de suas marcas, foi sua filha. 17 Além dos gibis, há uma gama de material que leva o nome da Turma da Mônica como filmes, vídeos, DVD’s,

materiais de papelaria, álbuns de figurinhas, etc.

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Figura 13: O esboço da filha de Maurício de Sousa, dando vida à personagem Mônica.

Figura 14: Três momentos da personagem Mônica. Em 1963, na década de 70 e nos dias atuais18.

Cebolinha foi, como já citado, um dos primeiros personagens de Maurício de Sousa.

Criado em 1960, sua inspiração foi um menino de Mogi das Cruzes que trocava o “R” pelo

“L” e tinha cabelos espetados. Apesar de anteceder a Mônica, esse personagem somente

ganhou sua revista em 1973, sendo que, nesta época, já havia sido consideravelmente

modificado em sua forma.

Figura 15: Modificações do personagem Cebolinha até sua atual concepção19.

18 Almanaque Maurício de Sousa 30 anos. P. 6. Editora Globo. São Paulo: Junho de 1990. 19 Almanaque Maurício de Sousa 30 anos. P. 7. Editora Globo. São Paulo: Junho de 1990.

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Em 1961, surge um personagem inspirado em um menino do Morro de São João, em

Mogi das Cruzes, que Maurício de Sousa conheceu em sua infância. O personagem era o

Cascão, que desde suas primeiras histórias, publicadas na Folha da Manhã - SP, já

apresentava como principal característica seu horror à água. Em 1982, o personagem ganhou

sua revista.

Figura 16: Capa da revista número 1 do personagem Cascão20.

Em 1962, o elefante Jotalhão foi criado e incorporado à Turma da Mônica, juntamente

com seus amigos Raposão, Coelho Caolho e Rita Najura. Jotalhão se tornou rapidamente

estrela de comerciais e de merchandising de produtos comestíveis.

Figura 17: Jotalhão e sua turma21

A segunda filha de Maurício de Sousa também serviu de inspiração, com seu apetite

voraz, para outro personagem: Magali. Criada em 1963, ganhou sua própria revista em 1989.

20 Cascão nº. 1. Editora Abril. Capa. São Paulo: 19 de agosto de 1982. 21 Almanaque Maurício de Sousa 30 anos. P. 9. Editora Globo. São Paulo: Junho de 1990.

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Figura 18: Modificações gráficas da personagem Magali e capa de sua revista de número 122.

No mesmo ano da criação de Magali, surgiu o Horácio, caracterizado por seu estilo

filosófico. Com ele surgiram também Lucinda (sua namorada) e outros amigos “pré-

históricos”23. A inspiração para esse personagem foi o próprio autor que diz se identificar

consideravelmente com ele. Segundo GUSMAN (2006, p. 43) “Maurício expõe muito do que

pensa a respeito do mundo por meio de seu pequenino dinossauro verde”.

Figura 19: Horácio: em dois momentos e com sua turma24.

2.2. O GAROTO DO MORRO: CASCÃO Cascão, o personagem que mais interessa ao trabalho, não gosta de tomar banho, tem

pavor de água e é marcado pela sujeira. Seu dia-a-dia consiste, entre outras coisas, em brincar

com materiais reutilizados, jogar bola e “bafo” com seus amigos do bairro, namorar, elaborar

planos mirabolantes para pegar o coelho de pelúcia de sua amiga Mônica e freqüentar o lixão 22 Almanaque Maurício de Sousa 30 anos. P. 7. Editora Globo. São Paulo: Junho de 1990. 23 Antes dessa data, Horácio era mais uma personagem das tiras de Piteco - o homem das cavernas. 24 Almanaque Maurício de Sousa 30 anos. P. 9. Editora Globo. São Paulo: Junho de 1990.

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da cidade. Nesse local, ele inventa novas brincadeiras, novos brinquedos, busca um lugar de

reflexão e participa de aventuras com seu anti-herói Capitão Feio25.

Figura 20: Quadrinho que retrata o pavor do Cascão à água26.

Figura 21: Cascão e seu processo de criação27.

Desde sua criação, em 1961, Cascão também sofreu algumas modificações em suas

características gráficas. Os traços do desenho ficaram, ao longo dos anos, mais arredondados

e harmoniosos, afastando-se da figura angulosa apresentada nos primórdios do personagem.

Com essa mudança, o personagem tornou-se suave e delicado, favorecendo o interesse pela

leitura de seus pequenos fãs.

25 Coloco-o como anti-herói, em função da imagem dicotômica criada pelo Cascão. Capitão Feio é visto pelo

menino ora como algo que deve ser exterminado em função de seus planos para destruir a limpeza de sua cidade e do mundo, ora como alguém que deve ser auxiliado e ostentado por não gostar de água e, principalmente, por ser tão vinculado à sujeira. Sua revolta diante de seu herói é baseada no mal que este pode produzir em sua turma e em sua família. Sua afinidade também se faz, com a percepção de que não está sozinho no mundo no que compete ao horror à água e a paixão pelo lixo.

26 Revista n°. 447, Editora Globo. São Paulo: 2005. P. 24. “Cascão em Parquinho comigo, não!!” 27 Revista nº. 174, Editora Globo. São Paulo: 1993, p. 10. “Cascão, o repórter”

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Figura 22: Modificações gráficas do personagem Cascão28.

2.3. O BAIRRO LIMOEIRO: UNIVERSO DE ATUAÇÃO DO CASCÃO

A paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também uma matriz porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação – ou seja, da cultura – que canalizam, em um certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza e, portanto, a paisagem do seu ecúmeno. (Berque, In: 2004: ROSENDAHL, Z., p. 84, 85).

Ao pesquisar as histórias do Cascão, percebe-se que estas se passam, em sua maioria,

no bairro fictício do Limoeiro29. Apesar de fictício, esse bairro usa referências da cidade de

São Paulo, como o Rio Tiête, os grandes parques infantis, e os estádios de futebol. Portanto,

sua localização imaginária seria configurada como uma região urbana de São Paulo30.

Tendo, pois, como foco a cidade de São Paulo, é possível considerar como matriz da

paisagem as formações antropomórficas, ou seja, paisagens predominantes produzidas pelo

homem. Assim, indústrias, prédios, favelas e trânsito intenso deveriam formar a paisagem das

histórias do Cascão.31 Contudo, mesmo com a presença de símbolos geográficos e culturais

28 Almanaque Maurício de Sousa 30 anos. P. 8. Editora Globo. São Paulo: Junho de 1990. 29 Há controvérsia sobre o Limoeiro: em algumas histórias ele é considerado bairro e em outras ele é considerado

rua. Todavia, sua extensão territorial não é relevante para este trabalho. 30 Duas histórias contribuem para esta linha de raciocínio. A primeira faz referência ao bairro Tatu em Pé, uma

brincadeira com o bairro Tatuapé, localizado a 30 minutos da casa do Cascão (Revista nº. 309, Editora Globo. São Paulo: 1998). A segunda faz referência ao bairro de Higienópolis ( Revista nº. 461, Editora Globo. São Paulo: 2006).

31 Por outro aspecto, é possível classificar as paisagens de um centro urbano como São Paulo como dominantes, alternativas, residuais ou excluídas. Segundo Corrêa e Rosendahl (2004), a paisagem dominante é um dos meios pelos quais o grupo dominante exerce seu poder, sendo sustentado e produzido pela capacidade de tornar-se como reflexo verdadeiro da realidade de todos. As paisagens alternativas são menos visíveis do que as paisagens dominantes e podem ser do tipo residual, emergente ou excluída.

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que colocam o bairro do Limoeiro como parte da cidade de São Paulo, há nele, porém,

características que o afastam de um grande centro urbano. A região onde o personagem mora

é calma, limpa, com construções simples e organizadas, ruas arborizadas, casas com muros

baixos, janelas abertas e sem grades. O conhecido campinho de várzea, comum na periferia de

São Paulo, não é irregular como o de costume.32

Figura 23: Imagem que retrata os arredores do bairro do Limoeiro33.

O quadrinho mais corriqueiro nas histórias do Cascão é de uma área verde onde os

personagens sempre se encontram. Nessa, há pequenos arbustos ao fundo. Há, também, a

presença de um rio que corta o bairro e onde freqüentemente os personagens da turma da

Mônica tomam banho, exceto o Cascão. Ou seja, um rio de águas claras e límpidas onde

crianças brincam sem medo. Na verdade, nas histórias do Cascão, crianças brincam sem

medo, e sem a preocupação dos adultos tanto na rua, como no campinho, no rio e nas lojas

comerciais.

32 Coloco como vegetação regular de um campinho, um gramado uniforme que não apresenta outra planta senão

gramínea. 33 Revista 448, Editora Globo. São Paulo: 2005. P. 19. “Cascão em Esse é o Meu Lugar! ”

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30

Figura 24 e 25: Alguns dos cenários das histórias do Cascão34.

Porém, uma imagem que não pode ser desconsiderada é a do lixão. Em várias revistas,

Cascão se delicia com o espaço de destino final do lixo, brincando com os materiais que lá

são depositados.

Figura 26: Imagem do lixão onde Cascão costumeiramente brinca.35

34 Revista nº 266, Editora Globo. São Paulo: 199, p. 3. “Cascão O Cascãossauro”. Revista n°. 224, Editora

Globo. São Paulo: 1995. P. 32. “Cascão em Os Inimitáveis”. 35 Revista nº 92, Editora Globo. São Paulo: 1990, p. 3. “Cascão em Caskenstein”.

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31

As imagens do bairro do Limoeiro favorecem, pois, a idéia de um bairro não próximo

ao centro urbano. Prevalecem, paradoxalmente, características de pequena cidade, onde

todos se conhecem e há calma e tranqüilidade.

Figura 27: Cenário comum das histórias do Cascão: crianças brincando livremente pelo gramado36.

Nota-se que a presença de um lixão é, portanto, incompatível com a imagem do bairro.

Mas, Maurício de Sousa precisa dele como um elemento de concretização das marcas

singulares do Cascão.

36 Revista n°. 448, Editora Globo. São Paulo: 2005. P. 43. “Cascão em Fabri(n)cando”.

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3. LIXO: ASPECTOS CULTURAIS E OPERACIONAIS

Antes de prosseguir a análise das histórias do Cascão é importante falar dos resíduos

sólidos. Para tal, duas linhas de pensamento serão destacadas: os aspectos culturais e sociais

do lixo e as questões operacionais relacionadas aos resíduos sólidos.

3.1. ASPECTOS CULTURAIS E SOCIAIS DO LIXO

Cada vez é mais freqüente a preocupação da sociedade ocidental com as questões

ambientais, em função, principalmente, do não comprometimento com a qualidade ambiental

e ameaça de escassez de recursos naturais, decorrente de sua utilização indevida e desenfreada

pelas indústrias e consumidores. Alguns exemplos bastante conhecidos podem ser dados: o

desmatamento indiscriminado de reservas e patrimônios de biodiversidade, o uso não-

sustentável das bacias hidrográficas e destinação inadequada dos resíduos sólidos.

A sociedade brasileira, industrial e de consumo, em busca constante de bem-estar, cria

necessidades cada vez maiores. Com isso, produtos para suprir tais necessidades são criados,

tornando rapidamente obsoletos os existentes. Tal situação gera inúmeros problemas, entre

eles uma significativa produção de lixo.

O Brasil teve em sua formação poucos momentos marcados pela escassez. Viveu

sustentado na idéia de ser rico, que apresentava a utilização de recursos como ilimitada.

Bem ao contrário da tradição européia, onde a escassez de terras, de águas, de fontes de energia – foi sempre uma constante, agiu-se no Brasil como se todos vivessem no Éden sob eterna chuva de maná. Na Europa, ao contrário, a extrema divisão da terra, a ocupação milenar do solo, suas

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qualidades e as rígidas hierarquias sociais associadas a uma variação climática rigorosa implicavam uso parcimonioso, regulado, dos recursos naturais. (...) É através da abundância que se deve compreender o desperdício. (SILVA, 1993, p. 14)

Ao longo de nossa história, o mercado consumidor se estabeleceu e cresceu sem

pensar, adequadamente, no destino a ser dado ao lixo. Somente a partir da década de oitenta,

iniciou-se uma preocupação mais efetiva com o destino final de nosso consumo.

Porém, é importante salientar que a rejeição aos resíduos e a dificuldade de lidar com

ele é recorrente na história da humanidade. As imundícies37, por exemplo, foram, por séculos,

lançadas por escravos, os tigres, às margens da Baía de Guanabara, ou em pontos centrais da

cidade do Rio de Janeiro (BUENO, 2007, p. 39).

(...) os detritos eram atirados ao pátio formando uma montoeira repugnante. E ali ficavam ajudando a criar insetos e originando doenças, à espera de que as chuvas pesadas os levassem. A água que caía no pátio, depois de assim impregnada corria para a rua, por meio de sulcos ou calhas, que passavam por debaixo do assoalho da casa, ou para dentro do poço escavado, bastante fundo para que se comunicasse com a camada arenosa inferior, em que se dissolvia ou através da qual uma parte encontrava o caminho do mar. (DUNLOP, apud AIZEN, 1985, p. 38)

Mesmo quando já na segunda metade do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro passa

a recolher e não mais a lançar nas praias suas imundícies, não o faz de maneira adequada.

Transfere-se, apenas para locais mais distantes, o simples despejo38. Aliado a isso, há o

aumento de moradores no centro político-administrativo do país; a repugnância em relação à

sujeira exposta em frente às casas; o odor desagradável, oriundo da putrefação da matéria

orgânica; e a concepção higienista de que o ar era um transmissor de doenças (teoria

miasmática). A teoria miasmática das doenças colabora também na prática de se aterrar brejos

e pântanos com lixo. Essa postura fez escola no Brasil.

É importante ficar atento a informações sobre locais como pântanos, favelas, cemitérios, redes de esgoto, presídios e asilos, não raro associados também a lixo, imundície e morte. Sabe-se, por exemplo, que os pântanos, tão comumente relacionados à morte (por miasmas) e a perigos, se constituíam até pouco tempo em locais privilegiados para destinação de lixo. Esta prática permitia acabar com o pântano e dar destino ao lixo. (EIGENHEER, 2003, p. 109)

37 Termo utilizado antes da separação de resíduos sólidos e águas servidas. 38 Na cidade do Rio de Janeiro, esse material foi utilizado, por exemplo, no aterro do Caju e era também

armazenado em uma ilha chamada Ilha de Sapucaia.

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34

A característica histórica de afastamento do lixo e de pessoas a que a ele se

relacionam39, mesmo com a queda da teoria miasmática das doenças, se mantém até os dias

atuais.

Da marca negativa da atividade humana, da descontinuidade dos seres e das coisas, de nossa corporeidade e de nossa impotência de ocultá-la do tempo que passa, daquilo que nos é preciso perder para viver, da dimensão mortífera irredutivelmente ligada ao que vive, da vaidade do nosso ideal de domínio, da resistência do real. (...) O lixo reenvia a um julgamento de valor negativo sobre certos aspectos do ciclo vital. Ele é o produto de uma sentença de morte. E a análise das representações do lixo e da poluição nos conduz à exploração do processo de exclusão de certas dimensões da vida psicológica e social. (Tradução nossa). (LHUILER e COCIN, 1999, p. 17) 40

Eigenheer (2003, op. cit., passim) acredita que o lixo remete as pessoas à questão da

finitude das coisas e da própria existência humana, mostrando-se intrinsecamente ligado ao

problema da morte. Nessa perspectiva, a idéia de finitude do homem e de suas criações fez

com que o lixo trouxesse consigo o estigma da repugnância, do perigo, do putrefato e de

oposições clássicas (bem e mal, limpeza e sujeira, ordem e desordem).

A imagem, por exemplo, de um Céu limpo e sem macula, não só da tradição cristã,

mostra como, no plano ideal, o homem procura se afastar do lixo e da sujeira, enfim, do

pecado. Desordem e sujeira nos remetem, pois, ao mal, ao próprio Inferno.

Os vazadouros de lixo em áreas periféricas proliferaram em nossas cidades. A

preocupação era, portanto, afastar o lixo e não em tratá-lo ou diminuir seus impactos.

Todavia, com o crescimento das cidades, foram escasseando os espaços onde se podia

vazar o lixo. Populações de indivíduos sem renda foram se fixando nas proximidades dos

vazadouros em busca de materiais que pudessem ser vendidos.

39 Essas pessoas, condizentes com a relação da sociedade com o lixo, eram os doentes, os inválidos, os que

trabalhavam com o lixo, os coveiros, etc. 40 De la trace négative de l’activité humaine, de la discontinuité des êtres et des choses, de notre corporéité, et de

notre impuissance à l’occulter du temps qui passe, de ce qu’il nous faut perdre pour vivre, de la dimension mortifère irréductiblement liée au vivant, de la vanité de notre idéal de maîtrise, de la résistance du réel... (...)Le dechét renvoie à un jugement de valeur négatif sur certains aspects du cycle vital. Il est le produit d’une condamnation à mort. Et l’analyse des représentations du déchet et de la pollution nous mène à l’exploration du procès d’exclusion de certaines dimensions de la vie psychique et sociale.

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3.2. À MARGEM

(...) a indicação das pessoas empregadas nas práticas e serviços ligados aos dejetos (inclusive destino de cadáveres) é decisiva para se avaliarem a insegurança e a ameaça que representam, especialmente quando se trata de excluídos sociais (prisioneiros de guerra, condenados, escravos, ajudantes de carrascos, prostitutas, mendigos, etc.). De alguma forma permanece, ainda hoje, a prática segundo a qual os “socialmente inferiores” devem-se encarregar dos dejetos. (EIGENHEER, op. cit., p. 32)

A distribuição das riquezas em nosso país favorece a disseminação da pobreza,

notadamente nos centros urbanos e suas periferias. Até o século XIX escravos, mulatos,

cafuzos e, mesmo imigrantes, sobravam em nossa produção. Posteriormente vieram os

favelados e as zonas de pobreza das periferias.41

Alguns desses trabalhadores buscavam, e ainda buscam, na catação de lixo o seu

sustento, não só com a venda de materiais passíveis de reciclagem (papelão, alumínio, etc),

mas também recolhendo comida e objetos reusáveis (roupas, aparelhos domésticos) 42. Alguns

chegam a morar nas próprias áreas de vazamento de lixo. Muitos atuam diretamente nas ruas,

recolhendo o que desejam nas latas de lixo. Por andarem sujos e maltrapilhos são, não raro,

estigmatizados, como marginais ou mendigos. “As pessoas te vêem sujo e trocam de calçada.

Eles sentem medo, acham que quem cata lixo pode vir a assaltar, pode vir a furtar.43”

Eu sustento meu filho. Trabalho aqui e ganho dois salários-mínimos por mês. Tem muita gente que tem vergonha de trabalhar aqui, inclusive eu já recebi o nome de mendigo. A gente não pode cuspir para cima, mas se eu pudesse, eu mudava de trabalho.44

Os garis que cuidam dos resíduos da sociedade ao limparem as ruas e recolherem os

resíduos domiciliares não fogem à estigmatização, apesar de serem trabalhadores formais.

Paradoxalmente não deixam também de serem valorizados pela importante missão de afastar

da sociedade essa indesejável produção.

41 VALLADARES (1989, passim). 42 Essa prática já foi deflagrada em jornal do ano de 1896. Em anexo. 43 Catador de papel, ligado a uma cooperativa, em entrevista difundida pelo Programa Canal Saúde, exibido pela

TV Educativa no dia 15 de junho de 2001. 44 Mulher que trabalha em lixão em entrevista difundida pelo Programa Canal Saúde, exibido pela TV Educativa

no dia 15 de junho de 2001.

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3.3. ASPECTOS OPERACIONAIS

Na maioria das cidades brasileiras, o destino do lixo, oriundo de residências, de

estabelecimentos comerciais e das próprias ruas, quando não despejados de maneira

clandestina em terrenos baldios, são encaminhados a lixões. Esses são depósitos de lixo a céu

aberto e sem nenhum tratamento, que sobrevivem principalmente com a complacência dos

dirigentes municipais, mas também, algumas vezes, por falta de recurso dos municípios.

Com os questionamentos sobre os impactos ambientais desses vazadouros (degradação

do solo, poluição do lençol freático em função da produção de chorume, e poluição do ar

decorrente da queima do lixo e da liberação do gás metano), os resíduos sólidos, formados por

materiais oriundos das mais diversas fontes (residências, comércio, indústrias e hospitais),

tornaram-se ponto relevante de discussão da sociedade.

Hoje é preconizada uma gestão de resíduos sólidos45 em que a coleta, tratamento,

destinação final e aspectos administrativos possam ser vistos de forma harmoniosa e

integrada. Todavia, para que esse tipo de gestão aconteça, várias etapas devem ser

concomitantemente trabalhadas e realizadas de maneira administrativamente correta. Isso

implica, portanto, em custos financeiros altos para os municípios, o que vai de encontro a

falsas idéias referentes à sustentabilidade econômica da gestão de resíduos, através da

reciclagem e venda de energia gerada através da incineração.

Nesse sentido, pode-se dizer que não raro tem-se exagerado com os chamados três

R’s, apresentados muitas vezes como “soluções” para a questão dos resíduos. Ainda referente

aos três R’s, o item redução dos resíduos implica menos produção, empregos e lucro, o que

vai de encontro às idéias correntes de crescimento.

É importante repensar os 3 Rs – reduzir, reutilizar, reciclar – apresentados hoje à população, não raro, como panacéia para o problema dos resíduos na sociedade de consumo. De fato, apenas o reciclar é

45 Segundo JARDIM et al. (2000, p. 3) a gestão integrada de resíduos sólidos corresponde “ao conjunto

articulado de ações normativas, operacionais, financeiras e de planejamento que uma administração municipal desenvolve (com base em critérios sanitários, ambientais e econômicos) para coletar, segregar, tratar e dispor o lixo de uma cidade. Já de acordo com MONTEIRO et al. (2001, p. 8) a gestão integrada de resíduos tem definição similar. Ela corresponde ao “envolvimento” de diferentes órgãos da administração pública e da sociedade civil com o propósito de realizar a limpeza urbana, a coleta, o tratamento e a disposição final do lixo, elevando assim a qualidade de vida da população e promovendo o asseio da cidade, levando em consideração as características das fontes de produção, o volume e os tipos de resíduos, as características sociais, culturais e econômicas dos cidadãos e as peculiaridades demográficas, climáticas e urbanísticas locais. Para tanto, as ações normativas, operacionais, financeiras e de planejamento que envolvem a questão devem se processar de modo articulado, segundo a visão de que todas as ações e operações envolvidas encontram-se interligadas, comprometidas entre si.

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incentivado. A sociedade industrial, em determinadas circunstâncias, tem interesse em recuperar matéria-prima e energia! Reutilizar, por outro lado, contraria a lógica do consumo de massa: enfatiza o conservar, que por sua vez incentiva o zelo e o cuidado, valorizando o durável e o bem feito. Indicar o uso indevido da idéia de reciclagem como forma de controlar os “restos” da produção e do consumo é um mister. Não se deve deixar, também, de salientar as analogias que a idéia de reciclagem guarda com tradicionais concepções religiosas e alquímicas. Reduzir em grande escala a geração de lixo é também antagônico a economias que necessitam crescer permanentemente, incentivadas por uma eficiente máquina de marketing. (EIGENHEER, op. cit., p. 155)

Por outro lado, a compostagem46 é pouco utilizada entre nós como uma ação para

diminuir a quantidade de lixo a ser enviada aos aterros. Isso, apesar da matéria orgânica

constituir mais de 50 % do lixo doméstico. Usada comumente em propriedades rurais, de

maneira simplificada, nos grandes centros urbanos ela se tornou praticamente inexistente.

Assim, de acordo com a realidade de cada município, a gestão de resíduos se faz

buscando ações compatíveis que integram os aspectos operacionais, ligados à coleta,

acondicionamento, tratamento e destinação final, aos socioeconômicos, sem esquecer da

presença dos catadores.

Portanto, responsáveis pela gestão integrada de resíduos devem, além da coleta dos

resíduos, implantar formas de tratamento do lixo (compostagem, reciclagem, etc.), sem

esquecer que os aterros sanitários são partes essenciais desse sistema.

3.4. A DESMISTIFICAÇÃO DO LIXO

Tentar resgatar e conservar o que se esvai com o tempo, e ressignificar ou recriar o que não se deseja mais ou nos ameaça, são aspectos a serem considerados. (EIGENHEER, 2005, p. 26)

A possibilidade de mudar a imagem do lixo como de algo perigoso, a ser evitado, não

é tratada adequadamente pelos meios de comunicação, a não ser no que se refere aos materiais

dedicados à reciclagem. Por outro lado, como já dissemos, a constante criação de novos

produtos e o aumento do consumo pedem medidas técnicas de contenção e tratamento do lixo,

que devem certamente contar com o apoio da população.

A preocupação técnica é pertinente. Mas é preciso discutir costumes e valores. Como

proposta para desmistificar o papel daquilo que descartamos como algo sujo e perigoso, 46 Segundo NAUMOFF e PERES (2000, p. 93), a compostagem é o processo biológico de decomposição

aeróbia de matéria orgânica contida em restos de origem animal e vegetal.

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podemos considerar desde a valorização dos componentes orgânicos e recicláveis do lixo até

mesmo o incentivo ao não descarte de muitos materiais, ligando-os à memória. O

procedimento não é recente. Devemos lembrar que museólogos e arqueólogos, através do

estudo de ruínas e sítios de despejos encontram uma fonte preciosa de acesso ao passado47.

Para difundir tal procedimento, é preciso olhar para o que se descarta, para que, desta

maneira, o véu da morte e da degenerescência seja alterado. É preciso que os materiais sejam

vistos como nobres e de valor social. Portanto, para que esta ressignificação ocorra, a

educação é um fator decisivo. Ela é a base para novas práticas e atitudes estabelecendo novos

vínculos com os resíduos.

Assim, é importante se avaliar como histórias em quadrinhos estão tratando da

questão, já que elas têm um papel importante na formação do público infantil. Que

informações, valores e atitudes são transmitidos ou incentivados? E isso se torna mais crucial

em relação a um personagem que está diretamente ligado à questão do lixo como é o caso do

Cascão.

47 Pessoas comuns que têm o hábito de colecionar objetos antigos também contemplam o passado, mas, neste

caso, há uma carga de valor emocional.

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4. AS HISTÓRIAS DO CASCÃO E O LIXO

4.1. CAMINHO PERCORRIDO

Para a realização deste trabalho, pesquisei o acervo de revistas do Cascão do CIRS -

UFF. A partir daí, iniciou-se também a busca por mais exemplares, notadamente, os mais

recentes.

Na busca por exemplares antigos, foi feito contato com Maurício de Sousa Editora,

que, gentilmente, me enviou alguns. Todavia, aos mais antigos não tive acesso. Uma pesquisa

em São Paulo teria sido oportuna, mas, por questões operacionais, não foi possível.

Das aproximadas quinhentas revistas do Cascão publicadas no Brasil48, foram

pesquisadas cento e oitenta e três49 (publicadas de 1986 até 200650), sendo que cento e trinta e

uma apresentavam histórias diretamente relacionadas ao tema lixo51. As histórias foram

consideradas como de especial interesse em função da presença, direta ou indireta, de termos

tanto no sentido técnico como sócio-culturais.

Dois aspectos, pois, das histórias do Cascão recebem maior atenção: o primeiro

relacionado aos tabus e estigmas ligados ao lixo, o segundo a questão operacional dos 48 Atribuo um valor aproximado do número total de revistas do personagem Cascão, publicadas no Brasil, devido

ao fato das revistas dos personagens da turma da Mônica terem sofrido mudanças de numeração em função da troca de editora. Na passagem da Editora Abril para a Editora Globo, a numeração recomeçou, o que me dificultou a catalogação do número exato de unidades.

49 Os almanaques, por apresentarem histórias repetidas, não foram considerados na análise de material. 50 Como na tabela anexada. 51 A partir de uma estimativa, cerca de mil trezentos e quarenta e cinco histórias do Cascão foram analisadas.

Nestas, pude averiguar duzentos e oito pontuações para as linhas temáticas estudadas.

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resíduos sólidos. A primeira temática é importante para se avaliar como vêm sendo

apresentados e reforçados às crianças, na atualidade, os antigos tabus e interdições. No que

concerne aos aspectos operacionais, é importante percebermos como se apresentam questões

técnicas: destino final, coleta de lixo, coleta seletiva, reciclagem, etc. O objetivo é destacar

como esses dois aspectos se apresentam nas histórias do Cascão para aprofundar o estudo dos

impactos na formação dos conceitos de limpeza urbana nas crianças.

A análise das 183 revistas foi feita de duas maneiras. A primeira consistiu em

investigar as imagens das capas das revistas, por considerá-las sua primeira mensagem e,

portanto, capaz de ressaltar e sintetizar conceitos e estigmas, como também, mobilizar

mudanças e novos olhares. A segunda, na análise das histórias propriamente ditas. Para isso,

as revistas foram classificadas em função dos seguintes temas:

a) Relação limpeza e sujeira;

b) Relação bem e mal;

c) Arte e resíduos;

d) Odores do lixo;

e) Animais relacionados ao lixo;

f) Técnicas ligadas ao lixo;

g) O lixão;

h) A concepção de um anti-herói da sujeira.

Assim, das revistas analisadas, 57 capas continham imagens relacionada a pelo menos

um dos temas de análise. O quadro, a seguir, apresenta a relação entre o número de revistas

e as capas com imagens ligadas aos temas de análise.

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41

Tabela 1: Relação entre o número de revistas do Cascão analisadas e as capas ligadas ao tema da pesquisa.

Fonte: a autora.

Assim, observando os conteúdos escolhidos, pôde-se perceber, de acordo com a tabela

a seguir, que os temas mais apresentados nas capas das revistas do Cascão foram:

A) A dicotomia limpeza e sujeira, marcando a singularidade do personagem, através

de sua inserção no contexto da sujeira;

B) Animais ligados ao lixo: esse tema, amplamente evidenciado nas imagens, denota a

imagem de um Cascão ligado à putrefação, por seu odor inconfundível, quando comparado a

outros membros de sua turma.

ANO DE PUBLICAÇÃO DAS REVISTAS

NÚMERO DE REVISTAS ANALISADAS

CAPAS RELACIONADAS AO TEMA DE ESTUDO

1986 02 0 1987 03 01 1988 09 02 1989 10 04 1990 12 02 1991 08 01 1992 11 05 1993 11 05 1994 11 03 1995 10 05 1996 14 07 1997 10 02 1998 10 02 1999 02 0 2000 07 01 2001 20 05 2002 07 03 2003 01 01 2004 03 01 2005 10 04 2006 12 03 Total 183 57

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42

Tabela 2: Relação quantitativa dos conteúdos analisados nas CAPAS das revistas em quadrinhos do Cascão.

CONTEÚDOS ANALISADOS NAS

CAPAS QUANTIDADE DE

CAPAS NÚMERO DAS REVISTAS

Animais relacionados ao lixo 21 45, 50, 64, 163, 191, 209, 223, 226, 234, 248, 252, 266, 288, 309, 314, 366, 381, 397, 429, 450, 465.

Técnicas ligadas ao lixo 8 52, 88, 204, 246, 257, 365, 371, 456. Odores do lixo 5 151, 173, 255, 259, 397.

Relação Limpeza – Sujeira 25 45, 55, 62, 82, 124, 138, 140, 142, 166, 172, 181, 187, 188, 210, 241, 245, 249, 311, 374, 403, 407, 419, 429, 448, 454.

Lixão 0 Relação Bem-Mal 8 155, 172, 187, 237, 263, 376, 422, 449.

Arte e resíduos 5 12, 47, 212, 215, 279.

Fonte: a autora.

Diante da análise das histórias em relação aos temas, podemos verificar que, os mais

apresentados nas capas das revistas, também são os mais explorados nas histórias. Dessa

maneira, é possível averiguar a marca do personagem e a afirmação de estigmas, ligados ao

lixo, socialmente estabelecidos.

Figuras 28 e 29: Imagens que mostram a relação do Cascão com a sujeira e com os animais ligados ao lixo.52

52 Revistas nº. 374, 2001 e nº. 381, 2001. Capas.

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43

Tabela 3: Relação quantitativa dos conteúdos analisados nas histórias e dos anos das publicações das revistas.

Fonte: a autora.

Tanto nas capas das revistas como nas histórias, é verificada a representação de

aspectos operacionais dos resíduos sólidos. Entretanto, a questão operacional é ofuscada por

equívocos conceituais como, por exemplo, os referentes à reciclagem e reaproveitamento

como saídas para as escolas em relação aos problemas relacionados ao lixo.

Conteúdo Ano

Arte e

resíduos

Concepção de um

anti-herói da sujeira

Lixão Animais relacionados

ao lixo

Odoresdo lixo

Técnicas ligadas ao

lixo

Relação limpeza e sujeira

Relação Bem e Mal

Total

1986 0 0 0 0 0 0 02 0 2 1987 0 0 0 01 01 0 03 0 5 1988 0 0 0 0 02 01 03 0 6 1989 0 0 0 02 04 02 05 0 13 1990 0 0 02 03 01 04 01 0 11 1991 0 0 02 0 02 0 04 01 9 1992 0 0 01 04 04 01 06 0 16 1993 0 01 03 02 02 02 02 0 12 1994 01 01 01 01 03 0 03 0 10 1995 0 01 01 02 03 0 0 0 7 1996 02 03 02 04 03 02 03 0 19 1997 0 01 0 01 03 02 01 0 8 1998 0 0 0 02 02 02 01 0 7 1999 0 01 0 0 0 0 0 0 1 2000 01 01 0 03 01 07 01 0 14 2001 02 0 0 07 06 06 04 01 26 2002 02 0 0 02 03 01 01 0 9 2003 0 0 0 0 01 0 0 0 1 2004 0 0 0 01 01 01 01 01 5 2005 0 01 01 04 03 02 06 0 17 2006 01 0 01 01 02 03 02 0 10

TOTAL 09 10 14 40 47 36 49 03 208

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44

4.2. Lixo, sujeira e o Cascão

“Reluziu... é ouro ou lata

Chegou a grande confusão.”53

Uma crença medieval parece se ajustar ao personagem Cascão: “(...) a sujidade

incrustada na pele parecia natural, capaz até mesmo de proporcionar saúde”. (SENNETT,

1997, p. 218)

A sujeira é um tema comum em suas histórias. Cascão simboliza a sujeira e a

preconiza. Ele brinca com o sujo, se diverte. Em algumas histórias essa relação está tão forte

que o Cascão se identifica com ela. É comum encontrar histórias em que a sujeira já faz parte

de seu corpo. Como contraponto, existem histórias pontuais em que essa simbiose Sujeira-

Personagem é desfeita.

Figuras 30 e 31: No mesmo ano, dois momentos do personagem. Cascão personificado pela sujeira e

Cascão impregnado dela.54 53 “Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia”, samba-enredo composto por Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e

Osmar. 54 Revista nº. 386, 2001, p. 34 e revista nº. 386, 2001, p. 34. Tiras finais.

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45

Histórias recentes indicam que a relação com a sujeira pode ser, na verdade,

conseqüência de seu pavor da água. Assim, o Cascão aceita e busca mecanismos para se

limpar a seco.

Figuras 32 e 33: Desmembramento da relação do personagem com a sujeira através de mecanismos de limpeza

sem o uso da água.55

55 Revista nº. 379, 2001, p. 34 e revista nº. 453, 2005, p. 53. Tira final e “Cascão em O Supertênis”,

respectivamente.

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46

A sujeira e seu odor de carniça são decisivos para a vinculação de mais uma

característica desse personagem: sua representação com animais asquerosos. Moscas, ratos,

porcos e urubus freqüentemente o perseguem por considerá-lo semelhante. Algumas vezes,

até mesmo, apaixonam-se pelo Cascão.

Figuras 34 e 35: Relação Cascão e animais ligados ao lixo.56

Figura 36: Outra imagem que enfatiza a relação de animais asquerosos e o Cascão.57

56 Revista nº. 105, 1990, p. 19. “Cascão em A Flauta”. 57 Revista nº. 295, 1998, p.19

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47

O autor, por sua vez, parece salientar a sobreposição do personagem com esses

animais. Há histórias em que Cascão vira um cachorro sarnento e vira-lata; em outras, ele vira

porco. Todavia, há uma capa de revista que demonstra essa sobreposição não na aparente

imagem do personagem, mas na sua essência.

Figura 37: A essência do personagem.58

É importante ressaltar que, mesmo com a afinidade do personagem com esses animais,

Cascão já foi considerado, até mesmo, por eles, como sinônimo de perigo em função de sua

sujeira. Há uma história em que um mosquito sofre represálias de um outro, por ter picado o

Cascão. A justificativa para tal represália foi devido ao personagem estar “fechado” para

mosquitos, pela Saúde Pública.

Figura 38: O malefício causado pelo personagem.59

58 Revista nº. 288, 1998. Capa. 59 Revista nº. 242, 1996, p. 33. “Cascão em Um dia na vida de um mosquito”.

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48

Mesmo assim, a permanência da idéia de lixo e sujeira ligada ao personagem Cascão

ainda se configura, não somente em função de sua imagem, mas também em relação às

dicotomias presentes em algumas das histórias.

A dicotomia lixo/limpeza não aparece distante de outras ambigüidades nas revistas do

Cascão. Ordem e desordem, assim como o bem e o mal são bem marcados em algumas

histórias, favorecendo e enfatizando, assim, a ligação histórica e social que mostram que estas

negatividades estão ligadas à sujeira. Ou seja, o mundo do lixo é marcado pela desordem, pelo

mal, pela degenerescência. Portanto, é necessário que todos, principalmente as crianças, se

afastem dele.60

Figura 39: O personagem atravessado pela dicotomia Bem e Mal.61

Todavia, esse afastamento, apesar de ser enfatizado por Maurício de Sousa, não se

concretiza definitivamente com o próprio Cascão. O personagem traz estas ambigüidades em

seu comportamento. Em algumas histórias, Cascão é um “amigo camarada”, mantendo

mesmo um caráter angelical. Em outras, é apresentado como aquele que deve ser afastado, um

monstro que só pode ser salvo com um banho.

60 Duas histórias que deflagram as dicotomias e as ambigüidades ligadas ao lixo estão, integralmente, anexadas. 61 Revista nº. 110, 1991, p. 10. “Cascão em Coração Sujinho!”.

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49

Figura 40: Mais um exemplo de ligação do personagem com a dicotomia Bem e Mal.62

Figura 41: Cascão, amigo inseparável de um Anjo.63

O banho do personagem, mesmo com sua ojeriza diante da água, em algumas poucas

histórias, aconteceu. Cascão entra em contato direto com ela, na tentativa, feita pelo autor, de

62 Revista nº. 263, 1997. Capa. 63 Revista nº. 376, 2001. Capa.

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50

incentivar a higiene pessoal e a boa educação e de demonstrar o como é importante ser

solidário.64

Nas revistas, a superação do medo da água foi retratada duas vezes. A primeira ligada

a uma busca do personagem pela inserção social. A necessidade de convívio fez com que o

personagem se rendesse aos padrões culturais de higiene, fazendo-o lavar as mãos para comer

à mesa. Todavia, a limpeza também foi motivo de exclusão, por impedi-lo de brincar com

seus colegas.

Figuras 42, 43 e 44: Cascão já lavou as mãos.65

64 Cascão já lavou as mãos para sentar à mesa para jantar, ou para visitar um hospital. Também tomou dois

banhos em sua vida. O primeiro foi um banho censurado, apresentado em uma campanha publicitária, que durou cerca de nove meses e que foi retirada do ar ao ser considerada, por Maurício de Sousa, ofensiva à moral do personagem. Entretanto, o segundo banho foi vinculado à sua imagem por enfatizar uma ação humanitária ao participar de uma campanha solidária às pessoas ilhadas pela enchente de Santa Catarina, em julho de 1983. As imagens desses dois banhos estão anexadas, por serem veiculadas em campanhas empresarial e solidária, e não nas revistas do Cascão.

65 Revista nº. 451, 2005, p. 50, 50 e 51. “Cascão em Mãos”.

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Na segunda história, o banho do Cascão, o interesse do roteirista em estimular a

higiene, é refeito, no meio da história, para manter a singularidade do personagem. O que, no

início da referida história era um banho de verdade, passa a ser, nos últimos quadrinhos, um

banho de tinta, e não de água, que colaborou ainda mais com a sujeira do personagem.

Figura 45: O banho do Cascão. Ao longo da história, o roteirista muda este fato para que Cascão não perca sua

singularidade.66

Assim, a inter-relação sujeira e limpeza é apresentada, nessas duas histórias, de

maneira direta, contribuindo para uma das muitas ambigüidades relacionadas ao lixo e

presentes no Cascão.

Quanto à dicotomia bem e mal ligada ao lixo nas histórias do Cascão, a presença de

um suposto herói é decisiva. O herói na visão do Cascão, o Capitão Feio, é considerado

inimigo da sociedade e, por conseqüência, da Turma da Mônica, por fazer planos infindáveis

para sujar o mundo. Esse desejo o faz ser o retrato da relação sujeira e feiúra, assim como,

sujeira e maldade.

66 Revista nº. 366, 2001, p. 3. “Cascão em O Jeitinho do Cascão”.

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Figura 46: O anti-herói: Capitão Feio. Esse personagem confronta a sujeira com o belo. Mais um estigma

difundido por nossa sociedade. 67

Figuras 47 e 48: A ambigüidade do personagem. O sujo como o bem e o mal.68

É o mesmo sonho que afasta o Capitão Feio da Turma da Mônica que o aproxima do

Cascão, fazendo-os manter uma relação amigável. Cascão é idolatrado por Capitão Feio por

sua estreita relação com a sujeira e com o lixo, sendo considerado por ele como uma

referência mundial de sujeira. Em contrapartida, o Capitão Feio é o modelo de Super-Herói

para o Cascão, à medida que o enxerga como um igual.69

67 Revista nº. 118, 1991, p.18. “Cascão em O Mais Sujo do Mundo”. 68 Revistas nº. 422, 2002 e nº. 449, 2005, respectivamente. Capa. 69 Há uma única história que retrata uma possível turma do Cascão, de indivíduos semelhantes. No entanto, a

inexistência do medo da água nos seus integrantes, a necessidade de se integrar à sociedade e as mazelas expressadas no corpo impedem a efetivação desse novo grupo. Esta história está anexada.

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Figura 49: Cascão fantasiado de seu herói.70

Figura 50: Cascão representando um herói imaginário baseado em referências do Capitão Feio.71

Porém, mesmo com o respeito e admiração que sente pelo Capitão Feio, Cascão, em

vários momentos, toma os interesses de sua turma como seus, impedindo os planos de seu

70 Revista nº. 155, 1992. Capa. 71 Revista nº. 322, 1999, p. 3. “Cascão em Mamãe de Herói”.

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herói e, portanto, seu desejo de ter ao seu redor pessoas sujas como ele. Ou seja, o Cascão não

adere, totalmente, ao Capitão Feio.

Outro ponto que deve ser retomado nesta análise consiste nas paisagens observadas

nos quadrinhos do Cascão. Maurício de Sousa e sua equipe não podem, como já dito,

trabalhar com as paisagens dominantes de uma grande cidade. Suas histórias vendem para

todo o Brasil e também para vários países do mundo. Trabalhar imagens que deflagram

desigualdades sociais, poluição exagerada e violência poderiam modificar o perfil de sua

clientela.

Para manter o referencial do autor, as histórias do Cascão trazem um mundo

idealizado. Assim, a paisagem, expressa nas histórias, facilita e alavanca o interesse dos mais

diferentes leitores, como também provoca um encantamento no público infantil de nosso país.

Cascão é um personagem que retrata um menino de classe média de nossa sociedade.

Apresenta costumes corriqueiros: joga bola, se diverte com brinquedos eletrônicos, freqüenta

a casa de amigos, tem seu próprio quarto, faz coleções, brinca com sucatas. Todas essas

características são comuns a garotos de classe média.

É sabido, entretanto, que Cascão tem também como área de lazer o lixão. Essa

característica o afasta de ser um menino comum e acentua sua singularidade.

Contudo, é preciso olhar o personagem, antes de qualquer coisa, através de suas

características comuns, que o colocam como imagem de uma criança brasileira de classe

média. Brincar é uma marca registrada. Mas brincadeiras realizadas de que forma? Cascão

brinca em vários espaços. A rua é um deles. É o acesso ao campo de futebol, ao rio, aos

amigos, ao jogo de bafo - jogo este que quase sempre ganha por prender chiclete em sua mão.

No campo de futebol é onde ele se mostra o melhor da turma, com seu futebol-espetáculo.

Todavia, é também no campo, correndo sob o sol escaldante, que os amigo sentem, ainda

mais, seu cheiro desagradável. Cheiro de gambá, de podre, de lixo.

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Figura 51: Cascão e seu aroma.72

Figura 52: Ainda sobre o aroma do Cascão.73

É também na rua que Cascão entra em contato com as novidades. Novos

brinquedos expandem seu interesse e seu consumo. Afinal, é o brinquedo que marca a

inserção das crianças no consumismo e, como representante do universo infantil, Cascão

não poderia ser diferente.

72 Revista nº. 151, 1992, capa. 73 Revista nº. 120, 1991, p. 22. “Cascão em O Invencível”.

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Ele instiga seus pais à busca de novidades, consideradas fundamentais para a

existência. E como boa referência infantil, rejeita um não. Quando consegue adquirir

alguma novidade, ela fica armazenada em algum lugar para que mais tarde seja descartada.

Também é na rua que Cascão mostra, por outro lado, seu interesse ambiental. A

importância da água para a sobrevivência humana, da coleta de lixo, a reutilização e a

reciclagem de materiais aparecem, paradoxalmente, em suas ações.

É importante detalhar as questões da coleta, do reaproveitamento e da reciclagem,

quando tratadas nas revistas do Cascão. Idéias equivocadas, comuns na sociedade, são

repetidas nas histórias.

Em alguns momentos, a coleta seletiva é colocada como sustentável por si só, sem

estar englobada na gestão de resíduos. Em outras, a coleta seletiva é confusa à medida que

o personagem coleta cada material reciclável, mas os deposita na lata de lixo. Essa prática

ainda é comum em escolas de nosso país, como medida aparente de sensibilização

ambiental desvinculada de práticas operacionais adequadas.

Figuras 53 e 54: No meio das brincadeiras, a coleta seletiva. 74

74 Revistas nº. 371, 2001, capa; e nº. 257, 1996, capa, respectivamente.

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Figura 55: No jogo de basquete, papel e lata são lixo.75

O reaproveitamento é também apresentado com equívocos. A idéia de

reaproveitamento como diminuidor de agressões ambientais é ressaltada unicamente pela

confecção de brinquedos de sucata. Assim, a questão lúdica é destacada, sem que a

diminuição do consumo seja tratada.

Figura 56: Reaproveitando no lúdico.76

75 Revista nº. 52, 2006, capa. 76 Revista nº. 102, 1990, p. 19. “Cascão em O Criativo”.

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O processo de reciclagem é apresentado, algumas vezes, como acontece nos meios

de comunicação, como sinônimo de reaproveitamento. Além disso, há várias histórias em

que a reciclagem é colocada como solução sustentável para o problema do lixo em nossa

sociedade. Em nenhum momento se mostra que a reciclagem industrial também pode

trazer problemas se não for cuidadosa e que há limites para ela.

Figura 57: Confusão entre os conceitos de Reaproveitamento e Reciclagem.77

Figuras 58: Mais uma vez confusão entre os conceitos de Reciclagem e Reutilização. 78

77 Revista n°.146, 1992, p. 27. “Cascão apresenta A odisséia de um lixo!” História completa anexada. 78 Revista n°448, 2005, p. 38. “Cascão em Fabri(n)cando”. História completa anexada.

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Mesmo com a presença desses e de outros equívocos, Cascão foi ganhando mais

histórias nas quais sua figura se colocava como “ecologicamente correta”. Freqüentemente,

encontra-se coletando seletivamente os resíduos sólidos na rua, em busca de uma

consciência ecológica da população.

Figura 59: Cascão ecologicamente correto.79

Em sua casa, Cascão utiliza todos os espaços para brincar. Nesse meio, brinquedos

velhos e de sucata são expostos (mais uma vez valorizando o reaproveitamento lúdico).

Junto a esses brinquedos, a existência de coleções de bonecos de marca, de brinquedos

processados pelo marketing se faz, evidenciando o impulso pelo gasto e pelo consumo,

também presentes no personagem.

79 Revista nº. 367, 2001, p. 19. “Cascão em Nada Dentro”.

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60

Figura 60: A ambigüidade do personagem através da fascinação pelos brinquedos incentivados pela

mídia ...80

Figura 61: ... e suas sucatas.81

Há, ainda, a presença do porco, animal ligado ao lixo e à sujeira pela sociedade. No

quarto, as imagens desse animal estão em todos os detalhes: na parede, na cama, nas

roupas de dormir. No quintal, Chovinista, o porco de estimação, se mantém como “cão

fiel”, marcando a relação do personagem com a sujeira e seus estigmas.

80 Revista nº. 287, 1996, p. 4. “Cascão Guerra nas Prateleiras”. 81 Revista nº. 287, 1996, p. 17. “Cascão Guerra nas Prateleiras”.

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Figura 62: Imagem do porco - animal de estimação do Cascão.82

É também no âmbito da casa que o personagem apresenta mais uma peculiaridade:

seu prazer por colecionar. Cascão coleciona os mais diversos objetos, principalmente

tampinhas de refrigerante e moedas. O olhar diferenciado sobre o possível descarte,

transfigurando-o em algo de valor e de respeito, é mencionado nas histórias. A relação do

velho e da memória é, assim, sutilmente apresentada.

Figura 63: A referência ao arqueólogo.83

82 Revista 212, Editora Globo. São Paulo: 1995, Capa. 83 Revista nº. 266, 1997, p. 8. “Cascão em O Cascãossauro”.

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Figura 64: Cascão como colecionador. 84

Figura 65: O valor do antigo.85

Além da relação de valor dada a alguns objetos tidos como lixo, a transfiguração do

lixo em arte está presente nas revistas do Cascão. A mídia vem, com cada vez mais

freqüência, incentivando a utilização dos resíduos sólidos como matéria-prima de obras de

84 Revista nº. 341, 2000, p. 6. “Cascão em Dia de Faxina”. 85 Revista nº. 249, 1996, p. 6. “Cascão em a Moeda dos Piratas”.

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arte. Nas revistas analisadas, a transfiguração é exposta sutilmente, sem aprofundamento

do assunto. Contudo, acaba induzindo o leitor a ver, nessa atitude, uma forma de se

minimizar a produção do lixo, o que, tecnicamente, é sem sentido. A quantidade de

materiais que pode ser trabalhada de forma apenas artística é irrelevante à limpeza urbana.

Figura 66: O valor do olhar sobre o lixo.86

Mesmo com o olhar de valor sobre materiais culturais, expresso em algumas

histórias, mesmo com a valorização da reutilização (por mais precária que se apresente) e a

reciclagem, estas propostas são apresentadas, não raro com a idéia de que são os “loucos”,

os mais atentos à questão. Ou seja, os loucos e os presos, os marginais é que estariam

propensos a trabalhar o lixo.

86 Revista nº. 12, ano de 1987. Capa.

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Figuras 67 e 68: Lixo e loucura.87

É importante também registrar que o Cascão tem seu depósito de lixo. E merece

também consideração a sua fala: “Se não fede, ainda dá para aproveitar”. Com ela, Cascão

repele de seu mundo os resíduos putrescíveis, o que é também comum ao se valorizar

materiais recicláveis. Como conseqüência, por mais ecologicamente correto que pareça ser,

não apresenta em qualquer de suas histórias a compostagem como um recurso de tratamento

87 Revista nº. 236, 1996, p. 28 e 32. “Cascão em O Artista do Lixo”.

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do lixo. Isso é importante se considerarmos que a parcela orgânica representa cerca de 60%

do lixo doméstico brasileiro.

Figura 69: “O que fede”. 88

Outro espaço percorrido pelo Cascão e de grande importância, é o lixão. É nele que

busca suas descobertas e, assim, se descobre. É nele que o universo do personagem mais se

explicita. Esse é o elemento de interseção entre a paisagem de um grande centro urbano e a

paisagem alternativa apresentada nas revistas. Esse é o elemento chave no qual o personagem

se insere.

Elemento das periferias dos centros urbanos, um lixão tem duas características

importantes de serem ressaltadas neste trabalho:

• Desorganização em função do vazamento indiscriminado de lixo, via

de regra com catadores trabalhando incessantemente em busca de sustento, e presença

de animais domésticos;

• Afastamento do centro da cidade e de bairros nobres.

Não obstante, o lixão nas histórias do Cascão é amenizado. Suas características básicas

são diluídas e substituídas pela ausência de pessoas trabalhando no lugar, de matéria orgânica

em grande quantidade, e de caminhões que trazem e acomodam o lixo. Parece ser, nas

histórias, um local tranqüilo e organizado.

88 Revista nº. 369, 2001, p. 8. “Cascão e Cebolinha em Um Cenário para meus Bonecos”.

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É necessário esclarecer que Cascão freqüenta o lixão de suas histórias sozinho e a todo

o momento. Seus pequenos amigos também vão procurá-lo nesse lugar. Essas situações fazem

pensar que o lixão fica no bairro onde ele vive. Em uma das revistas pesquisadas, o local de

busca de lixo pelo Cascão é um terreno baldio. Contudo, essa idéia não é recorrente nas

histórias. Todavia, a forma como este terreno baldio é ilustrado não deixa de ter algumas

semelhanças com as imagens usadas para o lixão, o que pode, certamente, confundir o leitor.

Figura 70: O Terreno Baldio.89

Figura 71: O lixão. 90

89 Revista nº. 257, 1996, p. 3. “Cascão em Terreno Baldio”. 90 Revista nº. 191, Editora Globo. São Paulo: 1994, p. 32.

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Como contribuição a essa linha de pensamento é curioso encontrarmos numa história

recente o Cascão sentindo repugnância ao entrar em contato com um suposto primo que vive

com sua família no lixo. Sente nojo e revolta por alguém se submeter a essa condição de

sobrevivência. Parece nunca ter tomado conhecimento do fato de que pessoas chegam a viver

no próprio lixão, e que o seu “lixão” não tem as características do lixão do primo.

Figura 72: O nojo do Cascão..91

É importante, entretanto, destacar que, no ano de 2006, o lixão das histórias do Cascão

sofreu alterações. A primeira delas é sua extensão, percebida pela própria turma da Mônica.

Essa mudança reflete a preocupação com a produção crescente de resíduos e o descontrole das

áreas de destinação final.

É também nesse novo “lixão” que aparecem resíduos de grande porte, restos de obra,

sofás, colchões, restos orgânicos. Esses são agora significantemente indicados, contrapondo

com as imagens do lixão até então apresentado.

É necessário ressaltar que as histórias em quadrinhos não podem ser observadas de

uma perspectiva puramente didática, mas não deixa de ser relevante perceber que estigmas,

tabus e concepções que usamos sobre limpeza urbana estão muito presentes nas histórias do

Cascão.

91 Revista nº. 454, 2005, p. 6. “Cascão em Alguém mais sujinho do que Eu”. História completa anexada.

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Figura 73 e 74: O lixão recente. 92

Ao longo dos anos foi possível notar uma diminuição considerável da permanência do

Cascão em um “depósito de lixo”. Esse fato talvez seja conseqüência da difusão da idéia dos

necessários aterros sanitários e que não há glamour no lixão.

92 Revista nº. 457, 2006, p. 6 e 15. “Cascão em O Fantasma do Lixão”.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAL

As histórias em quadrinhos são arte! Elas remetem a seu tempo histórico, ao pensar de

uma época. As histórias do Cascão também o fazem.

O conteúdo das histórias de Maurício de Sousa é, como o próprio autor coloca em

entrevistas, de cunho comercial. As revistas são organizadas no intuito de agradar o leitor e,

dessa maneira, incentivá-lo à compra.

A presença de assuntos importantes para a vida social é tratada nas revistas sem que,

contudo, atrapalhe a divulgação dos personagens. Dessa maneira, os assuntos são

apresentados matizados pelas características do imaginário infantil. Estão presentes, nas

histórias do Cascão, as brincadeiras, as disputas, as implicâncias, a família, entre outras

questões comuns ao cotidiano das crianças e também aspectos da limpeza urbana.

As histórias do Cascão mostram também um personagem com engajamento ecológico,

reflexo certamente das freqüentes conferências e encontros ambientais dos quais o Brasil

participa. Dessa forma, a temática ambiental não pode ficar ausente da configuração de um

personagem ligado à questão da água, da sujeira e do lixo. Isso, porém, não deve levar a uma

perda de características que são caras ao mundo infantil. Assim, em meio a mensagens

escolhidas para servirem como bandeiras ambientais, encontramos a reprodução e o

fortalecimento de preconceitos e equívocos técnicos correntes na área de resíduos sólidos. Ou

seja, em alguns casos o engajamento ecológico vem permeado de equívocos (reciclagem

como solução total para o lixo, lixão como única forma de destino final, etc.).

Como já exposto, as histórias em quadrinhos não devem ser vistas como livros

didáticos. Contudo, é desejável que não utilizem imagens e informações contrárias ao estado

da arte em uma área tão importante como a limpeza urbana.

Cascão, o personagem de cabelo sarará, craque de futebol de várzea e esperto, está

impregnado de elementos considerados negativos no lixo:, como a ligação com a sujeira r

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O lixo é uma produção inexorável à vida humana e precisa ser encarado com

naturalidade. Pensar a produção do lixo e suas conseqüências é refletir sobre a nossa

existência, sobre o que ela tem de real e efetivo, ou seja, sobre a degenerescência, a morte.

Daí a importância de se ter um personagem com essas características que nos levam a tratar o

tema de forma lúdica e simples.

Se o lixo toca o tabu da morte, a questão é raramente tratada nas histórias do Cascão,

sendo presente na Turma do Penadinho93. Nas revistas esse tema pode ficar para um outro

personagem. Para o artista esse corte é permitido. Na vida real não. Deixá-lo para depois,

fingir que não nos ameaça é escamotear.

A morte das pessoas é inevitável, assim como as de suas criações e produções. Ao

convivermos com isso de forma menos conflitante, estaremos diminuindo nossas angústias e

medos. Também o lixo, nossos restos, poderia ser tratado de maneira mais adequada. Esse ato

de se aproximar da degenerescência humana pode ser um indício de um caminho didático,

capaz de romper complexas amarras culturais. Tais amarras dificultam, não só o

relacionamento individual com o lixo, como também as ações administrativas e técnicas que

envolvem a sua coleta, tratamento e destinação final.

Os quadrinhos são, sem dúvida, também veículo de mensagem. As kids strips, por

serem histórias em quadrinho, também o são. O que o personagem Cascão não deve fazer é

reforçar equívocos que cercam o mundo do lixo.

Cascão expressa as ambigüidades do lixo. Essas ambigüidades e contradições não

precisam ser suprimidas, pois expressam o que se dá no cotidiano, mas podem ser discutidas

ou, pelo menos, não reforçadas. O ideal seria que o mundo infantil fosse tocado por novas

perspectivas, tanto operacionais como culturais. Contribuiria indiretamente para se ter

suportes culturais para a implementação de gestões de resíduos mais adequadas nas cidades

brasileiras.

Uma reflexão sobre o lixo, ainda no período infantil, ajuda a promover uma atitude em

relação ao tema consumo. Até mesmo a questão da memória, individual e social que se perde

como o descarte cotidiano poderia ser vista através do Cascão colecionador que resiste ao ver

tanta coisa significativa indo para o lixo.

93 A Turma do Penadinho corresponde a um grupo de personagens de Maurício de Sousa, cujos integrantes são monstros e assombrações e, o cenário das histórias é um cemitério.

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ANEXOS: 1. NOTÍCIA DO JORNAL DO COMMERCIO

Publicação sobre a utilização do lixo pelos estrangeiros na cidade do Rio de Janeiro.

Jornal do Commercio, 5 de janeiro de 1896

Sabem vosmecês qual a indústria mais curiosa do Rio de Janeiro?

A do lixo, com laboratório nas ilhas de Sapucaia e do Bom Jesus. Para alli vão todos

os residuos da grande Capital. O immenso acerbo de lixo já aterrou parte do mar

circunvizinho, e ameaça emendar as duas ilhas, transformando-as em um único banco de

immundicies acumuladas. Uns oficiaes inválidos da pátria, que residem na Ilha do Bom Jesus,

na face fronteira à da Sapucaia, vendo imminente a invasão daquella estrumeira até à frente de

suas casas, resolverão defender-se a tiro!

Quando os lixeiros se approximão um pouco, elles agarrão nas carabinas e fazem fogo.

De pólvora secca, está visto, mas os lixeiros disparão em todas as direcções, porque

estão bem avisados de que a terceira descarga é de bala.

Ri-me a valer, acompanhando as peripécias deste sitio sui generis.

Os lixeiros são todos ilhéos, hespanhóes ou filhos da Galliza.

Explorão aquelle monturo como se explora uma empreza vasta, complicada e rendosa.

Uma verdadeira alfândega.

São uns quarenta ou cincoenta, muito unidos amigos, e que, do Rio de Janeiro só

conhecem a Sapucaia. Dividem entre si, com todo o methodo e ordem, os variados serviços

das diversas repartições do lixo.

Tudo alli é aproveitado, renovado, re-utilisado e revendido.

Os viveres deteriorados servem para o sustento da corporação. O rancho é um

alpendre, construído no meio da Sapucaia; sobre a mesa figurão as victualhas pescadas

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naquelle oceano de sujidades e cacos, restos de carne secca, trechos de bacalháo, raspas de

goiabada, massas, frutas verdoengas ou semi-podres, formando tudo um conjuncto

esquipatico de manjares que elles devorão como se fosse leitão assado com farofinha.

Só comprão o sal e o Paraty.

Como as moscas enxaméão alli em quantidade prodigiosa, a illustre companhia se

biparte por occasião das refeições: emquanto uma das turmas está a comer a outra occupa-se

em enxotar com grandes abanos os importunos insectos.

E transformão tudo em dinheiro.

Trapos, vendem às fabricas de papel; garrafas, às ditas de cerveja; ferros e metaes, às

fundições; folhas de flandres, aos funileiros; cacos de louças e crystaes, às fabricas de vidro.

Só não vendem os viveres deteriorados, com medo do Instituto Sanitário. Comem-nos!

De vez em quando dão sorte, fazendo achados extraordinários.

Os colxões velhos gozão naquellas paragens de uma reputação miraculosa. Espécie de

bilhete de loteria, gravido de alguma sorte grande...

Há muitos avarentos que escondem a bolada em colxões velhos... há lixeiros

enriquecidos pelos colxões...

Esses hespanhóes e ilhéos são muito dóceis, trabalhadores e disciplinados... vivem

satisfeitos e tranqüilos, só sahindo da Sapucaia para regressarem à terra, recheiados de libras.

Où lê bonheur va-t-il se nicher?

Num monturo!!

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2.TABELA: NÚMERO DAS REVISTAS PESQUISADAS, PUBLICADAS ENTRE OS ANOS DE 1986 E 2006

1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006103 10 27 52 82 108 133 158 187 209 236 262 287 314 341 365 392 429 438 444 456 113 12 30 55 83 110 138 161 188 210 237 263 288 322 350 366 397 440 447 457 19 31 56 85 114 139 162 190 212 241 266 291 356 367 402 442 448 458 39 58 86 118 140 163 191 215 242 267 295 360 368 403 449 459 45 61 87 120 142 166 192 223 243 269 298 362 369 407 450 460 47 62 88 122 146 172 196 224 245 270 300 363 370 419 451 461 49 64 92 124 149 173 200 225 246 273 301 364 371 422 452 462 50 65 95 S/N* 150 174 201 226 248 277 302 372 453 463 51 69 96 151 178 202 228 249 279 309 373 454 464 72 97 152 180 203 234 252 284 311 374 455 465 102 155 181 204 255 375 466 105 257 376 467 258 377 259 379 381 384 386 387 388 389

Total: 183.

* Do ano de 1991 foi resgatada uma revista com capa rasgada; característica que impossibilitou a verificação de sua numeração.

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3. DOIS BANHOS DO CASCÃO.

A. Crônica solidária às pessoas ilhadas pela enchente de Santa Catarina

Publicação: Folhinha de São Paulo, 31 de julho de 1983.

“O primeiro banho do Cascão”

Tudo tem uma primeira vez. E o Cascão sentiu que era chegado o momento. Ele havia escapado de banhos, chuvas e respingos por toda vida. Mas hoje, por sua própria vontade, enfrentaria o sacrifício. Venceria o medo e entraria

na água. Engoliu em seco (é lógico) enquanto se preparava psicologicamente. Lembrou-se das

inúmeras vezes em que escapou das armadilhas preparadas pela Mônica, pelo Cebolinha, até por sua mãe, que tentavam pega-lo para o primeiro banho.

Jamais conseguiram. Foi preciso que acontecesse algo mais forte do que uma coelhada da Mônica para se

decidir. E hoje ele já está pronto para o primeiro banho e para uma ação mais nobre. Devagarinho, tateando com o dedão. Depois sentindo a água, sensação desconhecida,

até os tornozelos. E em seguida, com água até a cintura, lá vai o Cascão, com uma trouxinha de roupas e biscoitos, em direção às crianças assustadas, ilhadas pela enchente de Santa Catarina.

Fonte: http:// www. Mônica.com.br/maurício/crônicas 134. htm. Acesso em 30 de novembro de 2000. 01:20:33.

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B. O banho pirata do Cascão: propaganda de uma marca de chuveiro

Fonte: http:// www. monica.com.br/mauricio/crônicas/cron169.htm. Acesso em 30 de novembro de 2000. 01:22:50. É ele e só e

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4. HISTÓRIAS MAIS SIGNIFICATIVAS PARA O TRABALHO

Revista nº 110, Editora Globo. São Paulo: 1990, p 03 - 13.

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se rona com o lixo de forma natural.

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Revista nº 458, Editora Globo. São Paulo: 2006, p. 46 – 55.

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Revista nº 19, Editora Globo. São Paulo: 1987, p. 20 – 23.

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Revista nº 146, Editora Globo. São Paulo: 1992, p. 27 - 33.

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Revista nº 448, Editora Globo. São Paulo: 2005, p. 38 – 42.

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Revista nº 454, Editora Globo. São Paulo: 2005, p. 03 – 20.

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