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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO DÉBORA ROCHA DE ABREU Itajaí, novembro de 2008.

TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEOsiaibib01.univali.br/pdf/Debora Rocha de Abreu.pdf · 3S IL VA ,D eP lác ido . ab urJ í co 1996 p .84 v II 4SIL VA ,D eP lác id o . ab u rJí co

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

    TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

    DÉBORA ROCHA DE ABREU

    Itajaí, novembro de 2008.

  • UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

    TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

    DÉBORA ROCHA DE ABREU

    Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como

    requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

    Orientador: Professor Silvio Noel de Oliveira Júnior

    Itajaí, novembro de 2008.

  • AGRADECIMENTO

    Agradeço o apoio e compreensão dos meus pais e da minha irmã na realização deste trabalho.

  • DEDICATÓRIA

    Dedico este trabalho à todos que sofreram e ainda sofrem com o trabalho escravo e também àqueles que se dedicam para a sua erradicação

    definitiva no nosso país e no mundo.

  • TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

    Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo

    aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

    Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o

    Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

    Itajaí, novembro de 2008.

    Débora Rocha de Abreu Graduando

  • PÁGINA DE APROVAÇÃO

    A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale

    do Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Débora Rocha de Abreu, sob o

    título Trabalho Escravo Contemporâneo, foi submetida em 20 de novembro de

    2008 à banca examinadora composta pelos seguintes professores: Silvio Noel de

    Oliveira Júnior (professor orientador) e Rosane Maria Rosa (professora

    examinadora), e aprovada com a nota___________.

    Itajaí, novembro de 2008.

    Professor Silvio Noel de Oliveira Júnior Orientador e Presidente da Banca

    Prof. MSc Antônio Augusto Lapa Coordenação da Monografia

  • ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CP Código Penal Brasileiro CRFB/88 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 MTE Ministério do Trabalho e Emprego OIT Organização Internacional do Trabalho

    IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturas Renováveis INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

    ANAMATRA Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho TRT Tribunal Regional do Trabalho CLT Consolidação das Leis do Trabalho ANPT Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho PGT Procuradoria Geral do Trabalho OAB Ordem dos Advogados do Brasil MPT Ministério Público do Trabalho

  • ROL DE CATEGORIAS

    Rol de categorias que a Autora considera estratégicas

    à compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos

    operacionais.

    Direito do Trabalho:

    È o conjunto de princípios, regras e instituições atinentes à relação de

    trabalho subordinado e situações análogas, visando assegurar melhores

    condições de trabalho e sociais ao trabalhador, de acordo com as

    medidas de proteção que lhe são destinadas.1

    Direitos Humanos

    É um conjunto mínimo de direitos que permitem ao ser humano viver com

    dignidade. Nesses termos, cabe aduzir que é a dignidade o parâmetro

    que pensamos deva ser utilizado para definir o que deve ser considerado

    como integrante dos Direitos Humanos.2

    Liberdade

    Do latim libertas, de líber (livre), indicando genericamente a condição de

    livre ou estado de livre, significa, no conceito jurídico, a faculdade ou

    poder outorgado à pessoa para que possa agir segundo sua própria

    determinação, respeitadas, entretanto, as regras legais instituídas. A

    liberdade, pois, exprime a faculdade de se fazer ou não fazer o que se

    quer, de pensar como se entende, de ir e vir a qualquer atividade, tudo

    conforme a livre determinação da pessoa, quando não haja regra

    1MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho .24. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.16. 2FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 126.

  • proibitiva para a prática do ato ou não se institua principio restritivo ao

    exercício da atividade.3

    Trabalho

    Entender-se-á, todo esforço físico, ou mesmo intelectual, na intenção de

    realizar ou fazer qualquer coisa. No sentido econômico e jurídico, porém,

    trabalho não é simplesmente tomado nesta acepção física: é toda ação,

    ou todo esforço, ou todo desenvolvimento ordenado de energias do

    homem, sejam psíquicas, ou sejam corporais, dirigidas a um fim

    econômico, isto é, para produzir uma riqueza, ou uma utilidade, suscetível

    de uma avaliação, ou apreciação monetária.4

    Trabalho Decente

    É um conjunto mínimo de direitos do trabalhador que corresponde: à

    existência de trabalho; à liberdade de trabalho; à igualdade no trabalho;

    ao trabalho em condições justas, incluindo a remuneração, e a

    preservação de sua saúde e segurança; à proibição do trabalho infantil; à

    liberdade sindical; e à proteção contra os riscos sociais.5

    3SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico,1996. p. 84. v. III. 4SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 392. v. III. 5FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise à partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. Gabriel Velosso, Marcos Neves Fava, coordenadores. São Paulo: LTr, 2006. p. 128.

  • SUMÁRIO

    RESUMO ............................................................................................................... XII

    INTRODUÇÃO ............................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.

    CAPÍTULO 1.......................................................................................................... 04

    PARTE HISTÓRICA ................................................................................................ 04 1.1 PARTE HISTÓRICA .......................................................................................... 04 1.2 PRÉ-HISTÓRICA .............................................................................................. 05 1.3 ANTIGUIDADE ORIENTAL .............................................................................. 06 1.3.1 EGITO ............................................................................................................ 07 1.3.2 MESOPOTÂMIA ............................................................................................... 08 1.4 GRÉCIA. ......................................................................................................... 08 1.4.1 GRÉCIA ANTIGA E PERÍODO HELENÍSTICA ............................................................ 08 1.4.2 ESPARTA ......................................................................................................... 09 1.4.2 ATENAS .......................................................................................................... 10 1.4.2.1 A escravidão por dívidas ................................................................... 10 1.5 ROMA ............................................................................................................. 11 1.6 IDADE MÉDIA ................................................................................................. 12 1.7 IDADE MODERNA .......................................................................................... 14 1.8 BRASIL ............................................................................................................ 15 1.8.1 A ESCRAVIZAÇÃO DO INDÍGENA ........................................................................ 16 1.8.2 A ESCRAVIZAÇÃO DO NEGRO AFRICANO............................................................. 18 1.8.2.1 ANTECEDENTES DA ABOLIÇÃO ......................................................................... 21

  • CAPÍTULO 2.......................................................................................................... 26

    CONCEITOS CONTEMPORÂNEOS ...................................................................... 26 2.1 O RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL ................................................................................................................ 26 2.2 O ESCRAVO CONTEMPORÂNEO ............................................................... 26 2.3 O ESCRAVIZADOR CONTEMPORÂNEO..................................................... 29 2.4 TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO .............................................. 32 2.4.1 DENOMINAÇÃO ADOTADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ................ 35 2.4.2 TRABALHO EM COMDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO ...................................... 35 2.4.2.1 TRABALHO FORÇADO ................................................................................... 38 2.4.2.2 RESTRIÇÃO DA LOCOMOÇÃO DO TRABALHADOR, POR QUALQUER MEIO, EM RAZÃO DE DÍVIDA CONTRAÍDA COM O EMPREGADOR OU PREPOSTO ........................................ 41 2.4.2.3 CONDIÇÃO DEGRADANTE DE TRABALHO ........................................................ 43 2.4.2.4 JORNADA EXAUSTIVA ................................................................................... 44 2.4.3 AS DIFICULDADES NA APLICAÇÃO DO ART. 149 DO CÓDIGO PENAL ..................... 45 2.5 REINCIDÊNCIA NA PRÁTICA DO TRABALHO ESCRAVO......................... 46

    CAPÍTULO 3................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO.

    INSTRUMENTOS JURÍDICO-INSTITUCIONAIS PARA A ERRADICAÇÃO DO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO .... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. 3.1 O TRABALHO ESCRAVO EM DIFERENTES SISTEMAS NORMATIVOS ..................................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. 3.2 O TRABALHO ESCRAVO NA NORMA CONSTITUCIONAL ....................... 49 3.2.1 O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO .................. ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. 3.3 O TRABALHO ESCRAVO NO ÂMBITO INTERNACIONAL ......................... 55 3.3.1 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO - OIT .......................................... 58 3.4 AS MEDIDAS DE COMBATE AO TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO ADOTADAS NO BRASIL ................................... 60 3.4.1 GRUPO MÓVEL DE FISCALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO ....... 60 3.4.1.1 A EXPERIÊNCIA DAS VARAS ITINERANTES DA OITAVA REGIÃO (PARÁ E AMAPÁ).. 63 3.4.2 GRUPO EXECUTIVO DE REPRESSÃO AO TRABALHO FORÇADO - GERTRAF ............. 65 3.4.3 O PRIMEIRO PLANO NACIONAL PARA A ERRADICAÇÃO AO TRABALHO ESCRAVO ... 67 3.4.4 O SEGUNDO PLANO NACIONAL PARA A ERRADICAÇÃO AO TRABALHO ESCRAVO ... 71 3.4.5 COMISSÃO NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO - CONATRAE.... 75 3.4.6 CADASTRO DE EMPREGADORES QUE TENHAM MANTIDO TRABALHORES EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO - LISTA SUJA .................................................. 77

    CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 80

    REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ................................................................... 83

  • RESUMO

    O Trabalho Escravo Contemporâneo é reconhecido a

    partir do momento em que há o desrespeito ao atributo maior do ser

    humano, que é a sua dignidade; tem origem eminentemente econômica

    e como conseqüência a exclusão social. É considerado uma prática ilegal

    sob vários aspectos: criminal, civil, trabalhista, administrativo e

    constitucional. O artigo 149 do Código Penal Brasileiro buscou dar ao

    trabalho escravo tratamento amplo, para isso, adotou a expressão

    “trabalho análogo à de escravo”, assegurando proteção à liberdade

    plena do trabalhador e das condições dignas para o exercício do

    trabalho. Desta forma, temos quatro modalidades que, de forma isolada,

    ou integrada, podem caracterizar o trabalho como análogo ao de

    escravo, que são: Trabalho Forçado; Jornada Exaustiva; Condição

    Degradante de Trabalho; e Restrição da Locomoção do Trabalhador, por

    qualquer meio, em razão de dívida contraída com o empregador ou

    preposto. Atualmente no Brasil estão em curso diversas iniciativas para a

    erradicação do trabalho escravo, dentre as quais, o Segundo Plano

    Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, o Cadastro de

    Empregadores que Tenham Mantido Trabalhadores em Condições

    Análogas à de Escravo e o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do

    Trabalho e Emprego.

  • INTRODUÇÃO

    A presente Monografia tem como objeto a

    investigação dos aspectos fundamentais do Trabalho Escravo

    Contemporâneo no Ordenamento Jurídico Brasileiro, assim como apontar

    Instrumentos Jurídico-Institucionais para a sua erradicação definitiva no

    Brasil Contemporâneo.

    O estudo desse tema é de extrema significância para

    o ordenamento jurídico vigente, justificando uma pesquisa aprofundada,

    não somente por sua importância social, mas por ser considerado uma

    prática ilegal perante a norma constitucional, legislação

    infraconstitucional e normas internacionais.

    Esta pesquisa tem como objetivos: institucional,

    produzir monografia para obtenção do grau de bacharel em Direito, pela

    Universidade do Vale do Itajaí – Univali; geral, investigar as peculiaridades

    do Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil; específicos, 1) Identificar as

    quatro modalidades de trabalho em condições análogas à de escravo

    previstas no artigo 149 do Código Penal (ilícito penal); 2)identificar a

    ilicitude do Trabalho Escravo Contemporâneo perante a Constituição

    Federal vigente e legislação infraconstitucional; e, 3) investigar algumas

    das mais relevantes formas de prevenção e repressão ao Trabalho Escravo

    no Brasil.

    A pesquisa foi desenvolvida tendo como base os

    seguintes problemas:

    1ª Qual é a origem do trabalho escravo

    contemporâneo?

    2ª Quais são as ações pró-ativas adotadas pelo Poder

  • Judiciário visando o combate do trabalho escravo?

    3ª Por que mesmo diante de medidas repressivas

    observa-se a reincidência na prática da escravidão?

    Diretamente relacionadas a cada problema

    formulado, foram levantadas as seguintes hipóteses:

    a) O trabalho escravo contemporâneo tem origem

    eminentemente econômica;

    b) O Poder judiciário adota uma postura ativa e

    transformadora em face à prática de trabalho

    escravo, com ações repressivas e preventivas capazes

    de provocar mudanças sociais necessárias e urgentes;

    c) A problema da reincidência na prática do trabalho

    escravo coloca em discussão a efetividade dos

    mecanismos de repressão adotados no Brasil.

    Para a investigação do objeto e alcance dos objetivos

    propostos, adotou-se o método indutivo6, operacionalizado com as

    técnicas7 do referente8, da categoria9, dos conceitos operacionais10 e da

    pesquisa bibliográfica, dividindo-se o relatório final em três capítulos.

    6 O método indutivo consiste em ‘pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral’. [Pasold, 2001, p. 87]. 7 “Técnica é um conjunto diferenciado de informações reunidas e acionadas em forma instrumental para realizar operações intelectuais ou físicas, sob o comando de uma ou mais bases lógicas investigatórias”. [Pasold, 2001, p. 88]. 8 Referente “é a explicitação prévia do motivo, objetivo e produto desejado, delimitando o seu alcance temático e de abordagem para uma atividade intelectual, especial-mente para uma pesquisa”. [Pasold, 2001, p. 63]. 9 Categoria “é a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia”. [Pasold, 2001, p. 37]. 10Conceito Operacional é a “definição para uma palavra e/ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos”. [Pasold, 2001, p. 51].

  • No primeiro capítulo tratar-se-á sobre a parte histórica

    do trabalho escravo no mundo, com ênfase na apresentação das

    particularidades inerentes de cada época sobre a prática do trabalho

    escravo, inicia-se, portanto pela Pré-História, seguida pela Antiguidade

    Oriental, Grécia, Roma, Idade Média, Idade Moderna e chegando ao

    Brasil Colonial até a Abolição da Escravatura em 1888 pela Lei Áurea.

    No segundo capítulo, discorrer-se-á sobre o Trabalho

    Escravo Contemporâneo no Brasil, abordando-se as características

    contemporâneas de quem é o escravo, daquele que escraviza, de que

    forma e em que local se realiza e a ilicitude penal, abordando as

    características das quatro modalidades de trabalho com redução

    análoga à de escravo admitidas pelo art. 149 do Código Penal.

    No terceiro e último capítulo, investigar-se-á a

    ilegalidade do trabalho escravo perante a norma constitucional, normas

    internacionais e legislação infraconstitucional; e os instrumentos jurídico-

    institucionais adotados para a sua erradicação.

    O presente relatório da pesquisa se encerra com as

    considerações finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos

    destacados, estabelecendo-se breve síntese de cada capítulo, seguidos

    da estimulação à continuidade dos estudos e demonstração sobre as

    hipóteses básicas da pesquisa, verificando se as mesmas restaram ou não

    confirmadas.

  • CAPÍTULO 1

    PARTE HISTÓRICA

    1.1 PARTE HISTÓRICA

    “Antiga instituição na história da humanidade, a

    escravidão, em cada época, tem apresentado as suas

    particularidades”.11

    “Daí a necessidade de analisar como a escravidão era

    vivenciada e como foi transformando até atingir o perfil atual.”12

    “O estudo do passado, longe de ser operação

    saudosista, [...] pode ser uma arma para abrir caminho aos grandes

    movimentos democráticos integrais [...].”13

    Mas surge aqui uma dúvida: o que reacende com tanto vigor esta matéria quando, ao estudarmos a evolução da civilização brasileira sobre o tema, iremos nos deparar com o fato de que a escravidão nunca deixou de existir no Brasil?Talvez não seja possível dizer se o panorama social melhorou, mas com certeza, o fenômeno da escravidão é mais sutil, mais dissimulado. [...] Se algum dia conseguirmos erradicar com qualquer espécie de trabalho escravo, o homem que viver nesta época irá também voltar seus olhos indignados para este passado da nossa atual história.14

    11CARLOS, Vera Lúcia. Estratégia de atuação do Ministério Público do Trabalho no combate ao trabalho escravo urbano. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 269. 12PEDROSO, Eliane. Da negação ao reconhecimento da escravidão contemporânea. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 19. 13PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006.p. 17. 14PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 19.

  • 1.2 PRÉ-HISTÓRIA

    O período registrado desde o aparecimento do homem na Terra até a invenção da escrita é convencionalmente conhecido como Pré-História e se divide em três períodos: Paleolítico ou período da pedra lascada, que se estendeu por mais de 2,5 milhoes de anos; Neolítico ou período da pedra polida, que teve inicio há mais de 20 mil anos; e Idade dos metais. A esses períodos correspondem as denominações: selvageria, barbárie e civilização.15

    Deste longo período, o que merece nosso destaque é

    a Idade dos Metais, isso porque foi o primeiro registro de trabalho escravo.

    Porém, para entendermos como surgiu este instituto,

    faz-se necessário o entendimento dos outros dois períodos anteriores, pois,

    a maneira como o homem passou a organizar a vida em sociedade, a

    relação dele com o meio ambiente e a conquista de novas áreas, são

    fatores determinantes para a prática do trabalho escravo, independente

    da época histórica, conforme veremos no decorrer do trabalho.

    Iniciaremos pelo período Paleolítico na

    contextualização histórica de Arruda e Pileti:

    O Paleolítico é o período mais extenso período da história da humanidade[...]. Sem conhecer a agricultura e a criação de animais, eles se alimentavam da caça, da pesca e da coleta de frutos, o que os obrigava a uma vida nômade. Uma descoberta-chave nesse período foi o domínio do fogo. [...] Os instrumentos utilizados, a princípio, eram de osso e madeira; depois, de pedra e marfim.16

    15MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao Terceiro Milênio. São Paulo: Moderna, 1998. p. 04, grifo dos autores. 16ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil. 8. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 10.

  • Passamos então para as características dos dois

    períodos seguintes, Neolítico e da Idade dos Metais, na concepção de

    Mota e Braick:

    A característica fundamental do período neolítico pode ser atribuída às transformações aceleradas nas relações entre o homem e o ambiente. A prática da agricultura e a domesticação dos animais permitiu às sociedades primitivas o controle da produção de alimentos, a sedentarização e, conseqüentemente, o aumento da população. [...] Os bandos nômades cederam lugar às tribos que passaram a viver em aldeias, em casas feitas de madeira, barro ou adobe. Os grupos neolíticos aperfeiçoaram as técnicas de construção de armas e utensílios, construíram canoas, jangadas e barcos, importantes para suas migrações e a conquista de novos espaços. [...]A Idade dos Metais ocorreu ao mesmo tempo que a revolução urbana, com a transformação das aldeias agrícolas auto-suficientes em aglomerados urbanos. Os instrumentos de pedra foram aos poucos substituídos pelos de metal, primeiro pelo cobre (6000 a. C.), depois pelo bronze e, mais tarde, de ferro. [...] O uso de armas de metal favoreceu a prática da guerra, possibilitando a dominação de um povo sobre outro, com a conquista de cidades e territórios e a escravização dos vencidos. Foi neste contexto que se desenvolveram as grandes civilizações da Antiguidade Oriental. 17

    1.3 ANTIGUIDADE ORIENTAL

    A história do Egito e das outras sociedades orientais da

    Antiguidade são objetos de estudo de muitos pesquisadores do mundo

    todo, porque “a civilização ocidental tem suas raízes nos povos do

    Oriente, que nos deixaram uma herança inestimável.”18

    17MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao Terceiro Milênio. São Paulo: Editora Moderna, 1998. p. 5-7. 18MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao Terceiro Milênio, 1998. p. 12.

  • Nesta época houve registros de trabalho escravo,

    conforme Vera Lúcia Carlos:

    Na Idade Antiga, por conseqüência direta das guerras travadas entre os povos e tribos, o extermínio do inimigo vencido deu lugar ao aprisionamento e escravização dos mesmos. Os inimigos-escravos passaram a ser utilizados na realização de serviços agrícolas, nas construções, nas atividades domésticas e em outras áreas da conveniência dos respectivos dominadores, ou seja, passaram a substituir os dominadores nas atividades laborais. 19

    1.3.1 Egito

    O Egito está localizado no Nordeste da África, sua

    economia se baseava na agricultura, pois tinha solo fértil, sua sociedade

    era hierárquica e tendia ao imobilismo, vejamos sua organização social na

    descrição de Arruda e Piletti:

    No Egito, o faraó ocupava o topo da hierarquia social. [...] A população estava organizada em diversas camadas sociais, como o dos sacerdotes, nobres, escribas, soldados, camponeses, artesãos e escravos. [...] Os escravos, inteiramente dependentes de seus senhores, eram em geral bem tratados. Os egípcios, mais tolerantes que os outros povos contemporâneos, consideravam-se obrigados a oferecer certa segurança aos escravos – que eram numerosos em época de guerra.20

    A procedência dos escravos no Egito, segundo

    Mocellin, “eram a captura na guerra, o comércio, a prole dos escravos e

    o tributo das regiões dominadas que incluía cativos. [...] O escravo egípcio

    tinha personalidade jurídica [...].”21

    19CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006, p. 269. 20ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil, 2000, p. 20-21. 21 MOCELLIN, Renato. História: ensino médio. São Paulo: IBEP, 2004. p. 30.

  • 1.3.2 Mesopotâmia

    Aproximadamente na mesma época em que se

    desenvolveu a sociedade egípcia, outros povos também começaram a se

    organizar na região que recebeu o nome de Mesopotâmia, e que

    também teve a escravidão presente na sua organização social, conforme

    podemos verificar na obra de Arruda e Piletti:

    Na Mesopotâmia – que em grego significa entre rios – viveram muitos povos. A região, localizada entre os rios Tigre e Eufrates, era fértil e menos protegida que a do vale do rio Nilo, o que facilitava a fixação de populações, a formação de cidades e uma intensa disputa pelas melhores terras. [...] A organização social dos povos mesopotâmicos estava sedimentada na antiga estrutura tribal, dividida em clãs e famílias. [...] O rei impunha-se pelo caráter divino de sua missão, mas não era considerado um deus, como entre os egípcios. Acumulava riquezas fabulosas, tinha palácios e uma corte. Ligado ao Estado, surgiu um grupo social formado por nobres, funcionários e sacerdotes, que usufruíam dos impostos arrecadados. [...] Na Mesopotâmia predominavam as pessoas livres. Os escravos surgiram sobretudo durante as guerras e pertenciam a comunidade. [...] Os escravos eram utilizados nos trabalhos mais duros, como o das minas. Vendidos como animais, andavam sempre de cabeça raspada e podiam ter a testa marcada a ferro quente. Muitos eram antigos homens livres que, para fugir à pobreza, acabaram se vendendo como escravos. 22

    1.4 GRÉCIA

    1.4.1 Grécia Antiga e Período Helenístico

    A história da Grécia Antiga estende-se do século XX ao

    século IV a.C., e é normalmente dividida em quatro períodos, Pré-

    Homérico, Homérico, Arcaico e Clássico. 22ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil, 2000, p. 24-26.

  • No período Pré-Homérico não há vestígios de trabalho

    escravo, somente encontramos a escravidão no período Homérico, mas

    só se recorria ao trabalho de escravos em casos excepcionais, como por

    exemplo, quando a família não era numerosa ou não dominava

    determinada técnica de produção.

    Somente a partir da segunda metade do século IV a.

    C., período conhecido como Helenístico, é que os escravos aparecem

    como fonte de mão-de-obra, mas eles constituíam uma pequena parcela

    da população e não tinham grande importância na vida econômica das

    cidades-estados. Portanto, ainda não havia uma sociedade escravista.

    1.4.2 Esparta

    Localizada na península do Peloponeso, a cidade de

    Esparta foi fundada pelos invasores dórios no século IX a. C., na planície

    fértil da Lacônia, que dominaram os antigos habitantes e manteve seu

    domínio através de uma ação militar permanente, pois se consideravam

    descendentes dos dórios, de quem herdaram o espírito guerreiro e

    encontravam na guerra sua vocação. Sobre a organização social

    adotada nesta sociedade, descrevem Arruda e Piletti:

    Foi uma das primeiras pólis a surgir na Grécia. [...] O crescimento da população e o esgotamento das terras levaram os espartanos a empreender, em fins do século VIII a. C., novas campanhas de conquistas a oeste do Peloponeso, dominando a Messênia. Em 650 a.C., os messênios revoltaram-se contra Esparta, numa guerra que durou cerca de trinta anos. Ao final, vencidos, foram reduzidos à condição de escravos. O grande número de escravos passou a representar para Esparta um perigo permanente. Com medo de revoltas, os dórios voltaram-se inteiramente para o controle dessa população. As guerras de conquista foram interrompidas e as intervenções externas limitadas às cidades próximas, apenas para garantir a hegemonia na região. [...] A economia e a

  • sociedade espartana sofreram profundas transformações. [...] Os escravos, conhecidos como hilotas, passaram a ser também propriedade do Estado e foram distribuídos à razão aproximadamente de seis por lote. Eles eram obrigados a pagar uma renda fixa a quem detinha usufruto do lote. Essa renda era composta por cevada, frutas, vinho, azeite e produtos artesanais de uso diário. Com o tempo, passaram a ter de entregar metade da produção do lote. Os dórios não podiam matá-los nem mutila-los, a não ser por ordem do Estado. Com pequena proteção da lei, as condições de vida desse grupo social eram das mais miseráveis do mundo antigo. 23

    1.4.3 Atenas

    Em Atenas, hoje capital da Grécia, no período clássico,

    predominou o modo de produção escravista.

    Os escravos eram geralmente capturados na guerra

    ou adquiridos por compra e trabalhavam em todas as atividades. Não

    eram considerados cidadãos, como também as mulheres e crianças.

    1.4.3.1 Escravidão por dívida

    Em Atenas, também se admitiu a modalidade de

    escravidão por dívida.

    A origem desta modalidade estava diretamente

    relacionada com o poder econômico e político da aristocracia, pois

    quando o rei passou a acumular funções de chefe religioso, militar e

    jurídico, a aristocracia se fortaleceu em detrimento dos reis e das

    camadas menos favorecidas da sociedade. Isto porque estes acabaram

    recorrendo àqueles para resolverem seus problemas e conseqüentemente

    isto não era gratuito, nem uma troca de favores, pois eles davam como

    garantia suas terras ou a liberdade. 23ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil, 2000, p. 45.

  • Consecutivamente, veremos justificações idênticas na

    obra de Arruda e Piletti e na de Mota e Braick para a criação desta

    modalidade de escravidão:

    No século VIII a. C., a economia ateniense era essencialmente rural. A camada social dominante era constituída pelos eupátridas, os bem-nascidos. Eram proprietário de terras férteis, cultivadas pos escravos, rendeiros ou assalariados. [...] Outra camada da sociedade ateniense era formada pelos proprietários de terra pouco férteis localizadas junto às montanhas. Com o aumento da atividade comercial, a situação desse grupo tornou-se difícil, pois os cereais importados passaram a concorrer com seus produtos. Quando a colheita era ruim, esses proprietários recorriam aos empréstimos dos eupátridas. Como garantia, davam a terra ou o próprio corpo. Como resultado muitos perdiam suas propriedades e tornavam-se rendeiros. Se tivessem empenhado o corpo tornavam-se escravos e podiam ser vendidos. 24

    À medida que a nobreza se apropriava das terras cultiváveis e, conseqüentemente, adquiria maior poder político, os pequenos proprietários empobreciam e se endividavam. Não conseguindo saldar as dívidas, perdiam suas propriedades e até mesmo a liberdade. Era a escravidão por dividas. Gregos tornavam-se escravos de gregos, ao lado de cativos de outras origens, como os prisioneiros de guerra e escravos adquiridos em mercados especializados. [...] Em 594 a.C. a eleição de Sólon trouxe reformas socioeconômicas e políticas, como o fim da escravidão por dividas e a libertação de todos devedores escravizados. 25

    1.5 ROMA

    Em Roma, a partir do século III a. C., o modo de

    produção escravista passou a predominar e o escravo exercia diversas 24ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a História: História Geral e História do Brasil, 2000, p. 47. 25MOTA, Myriam Becho; BRAICK, Patrícia Ramos. História: das cavernas ao Terceiro Milênio, 1998, p. 38. grifo dos autores.

  • funções em diferentes setores: de agricultor a professor; de artesão a

    carregador. Além disso, o tráfico de escravos foi um importante setor do

    comércio romano.

    Michèle Ducos aborda sobre a situação jurídica do

    escravo em Roma:

    O escravo pertencia a um senhor e, juridicamente, era definido como uma res, ou seja, um bem sobre o qual se exerce plenamente o direito de propriedade. Isso significava que ele podia ser vendido, comprado ou alugado e mesmo compartilhado por dois senhores. Além disso, ele era objeto de reivindicação na justiça. Seu senhor possuía sobre ele um poder absoluto, expresso, em geral, pelo termo potestas. Este substantivo, utilizado por designar todo o poder reconhecido pelo Direito, aparece para manifestar o direito do senhor, que é o de coerção e de vida e de morte. Uma situação assim implicava, para o escravo, um dever de obediência que, durante muito tempo não sofreu exceção, mas parece abrandar-se com o tempo [...] Progressivamente, o fato de o escravo ser considerado uma res foi sendo esquecido e ele começou a ser visto como ser humano, suscetível de ser protegido pelo poder imperial. [...] Uma atitude assim não está relacionada apenas com a integridade física do escravo. Este possuía também a inteligência, o que diferenciava de um objeto inanimado.26

    1.6 IDADE MÉDIA

    É o período compreendido do século V ao século XV.

    Seu início foi marcado pela queda do Império Romano

    do Ocidente, em 476; e o fim, pela tomada de Constantinopla pelos

    turcos, em 1453.

    26DUCOS, Michèle. Roma e o Direito. Tradução Silvia Sarzana; Mário Pugliesi Netto. São Paulo: Madras, 2007. p. 52-53.

  • O feudalismo foi o sistema econômico, político, social e

    cultural característico da Europa na Idade Média.

    Para o nosso trabalho o mais importante para se

    destacar deste período é como se deu a passagem do trabalho escravo

    para a servidão, que foi a forma de trabalho característica do feudalismo.

    Mocellin aborda didaticamente esta transição:

    Como vimos anteriormente, no Mundo Romano predominou o modo de produção escravista. A partir do século III, o escravismo romano entrou em crise. A produção agrícola caiu. O comércio e a produção artesanal urbana retraíram-se. Para sustentar a crise, os imperadores do século proibiram os colonos de abandonarem as terras onde trabalhavam e fixaram pessoas às suas profissões e ofícios. Nesta época, muitos senhores libertaram seus escravos, transformando-os em colonos. Os colonos eram ex-escravos ou camponeses livres, aos quais um grande proprietário arrendava parcela de suas terras, recebendo em troca a renda correspondente, quase sempre em gênero.

    Embora esta mudança do modo de produção tenha

    sido bem ilustrada por Mocellin, faz-se necessário a complementação de

    Vera Lúcia Carlos:

    A passagem do regime de escravidão para a servidão foi gradativa, sendo representada pela transferência da relação de domínio da pessoa para a propriedade. Assim, os servos não eram mais escravos, mas, na verdade, acessórios das propriedades dos senhores feudais.27

    Apesar do modo de produção feudal ter tido o seu

    apogeu no século XIII, esta forma de trabalho predominou até os séculos

    XIV – XV, quando a Europa passou por uma série de transformações

    econômicas, políticas, sociais e culturais, com as quais “se iniciou o

    27CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006, p. 269.

  • processo de desintegração do sistema feudal, possibilitando o

    desenvolvimento do capitalismo comercial e da centralização política.”28

    1.7 IDADE MODERNA

    Neste período, os particularismos feudais e o

    universalismo da Igreja foram superados pela centralização monárquica e

    o conseqüente fortalecimento do poder real. A dissolução das relações

    de servidão foram um dos motivos dessa centralização.

    Sendo extremamente necessário destacar que a

    constituição das monarquias nacionais “é um processo histórico muito

    mais amplo, que, em hipótese alguma, se limita apenas ao período de

    transição do feudalismo ao capitalismo,”29que se deu de forma bem

    complexa, pois envolveu uma grave crise econômica e social, de

    enormes proporções, que se passava na Europa, marcada por guerras,

    rebeliões populares, diminuição da produção agrícola, fome prolongada

    e uma epidemia de peste negra. Uma das saídas encontradas para a

    superação das crises foram as Grandes Navegações.

    Apenas os Estados efetivamente centralizados tinham condições de levar adiante tal empreendimento, dada a necessidade de um grande investimento e principalmente de uma figura que atuasse como coordenador – no caso, o rei. [...] Portugal foi o primeiro país a iniciar a expansão ultramarina. Isso foi favorecido por sua privilegiada posição geográfica [...] e por sua precocidade no processo de centralização monárquica [...]. A primeira conquista portuguesa foi Ceuta (primeiro centro de atração para os portugueses, por ser o ponto de confluência de duas importantes rotas terrestres: de especiarias e sedas orientais; e de ouro e escravos da África negra.), em 1415. [...] A rota

    28PAZZINATO, Alceu Luiz; SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea. 11. ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 7. 29FARIA, Ricardo de Moura; MARQUES, Adhemar Martins; BERUTTI, Flávio Costa. História.. Belo Horizonte: Editora Lê, 1993. p. 24. 3. vol.

  • do ouro sudanês, controlada pelos árabes, foi então desviada de Ceuta para o interior do Marrocos. Isso obrigou os portugueses a continuarem sua expansão marítima em direção ao sul da África [...], assim os portugueses iniciaram o périplo africano (contorno da costa africana), dominando as zonas litorâneas e as ilhas do Atlântico. Em seguida, fundaram entrepostos comerciais (feitorias) em toda a costa, o que lhes permitiu aumentar o volume de comércio, com a aquisição de ouro, escravos e especiarias. [...] A descoberta do Brasil em 1500 foi, uma conseqüência da expansão ultramarina portuguesa.30

    Na Idade Moderna, a escravidão dos negros, oriundos

    da África, bem como dos indígenas, mostrou-se presente. Porém, neste

    período o trabalho dos escravos adquiriu outra característica e

    justificativa, diretamente relacionada com o mercantilismo e com o

    Sistema Colonial, porque passaram a dar ênfase à escravidão, não como

    forma de “exclusão dos cidadãos do labor, como nos casos das

    civilizações da Antiga Grécia, mas como fonte de lucro, por representar

    mão-de-obra barata.31

    1.8 BRASIL

    Nesta parte será abordada a escravidão no Brasil do

    Período Colonial, passando pelo Período Imperial, até a sua abolição, em

    13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.

    “A contextualização histórica é necessária para uma

    visão globalizante do problema, assim como o relato da situação do

    trabalho em condições análogas às de escravo na atualidade no Brasil.”32

    30PAZZINATO, Alceu Luiz; SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea, 1997. p. 12. 31CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 270. 32SIMÓN, Sandra Lia; MELO, Luis Antonio Camargo. Produção, consumo e escravidão – restrições econômicas e fiscais. Lista suja, certificados e selos de garantia de respeito às leis ambientais trabalhistas na cadeia produtiva. In:

  • No início da colonização, a economia brasileira se

    desenvolveu ligada aos interesses mercantilistas que vigoravam em

    Portugal e em toda a Europa.

    Portugal não tinha interesse em povoar as suas

    colônias, mas sim prosseguir em busca do ouro e da prata, além de

    desenvolver contato com novos mercados produtores e consumidores.

    Conforme explica John Manuel Monteiro, a origem da

    escravidão “encontrava-se na articulação de um sistema colonial que

    buscava criar excedentes agrícolas e extrativistas, transformando riqueza

    comercial, e apropriar-se dele.”33

    A colônia deveria atender aos interesses da metrópole

    através do chamado pacto colonial, no qual a Coroa Portuguesa detinha

    monopólio sobre o comércio do Brasil. Desta forma, o colonizador europeu

    vinha para cá em busca de lucro fácil. Porém, havia escassez

    populacional, o que levou a Coroa Portuguesa, inicialmente, logo após o

    descobrimento, em 1500, a utilizar a mão-de-obra indígena para o corte e

    transporte do pau-brasil para o litoral. Por isso, os portugueses impuseram

    aos índios o trabalho forçado.

    Esta mão-de-obra escrava do indígena foi substituída

    pelo trabalho do negro africano, pois era economicamente mais atraente,

    como veremos na próxima seção.

    1.8.1 A escravização do indígena

    A escravidão indígena, apesar de ter sido intensa, é

    pouco conhecida e tratada de forma rápida e superficial pela

    historiografia. VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 223. 33MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 129.

  • Com um estudo mais avançado e aprofundado

    verificamos como se deu esta substituição, no artigo de Elaine Pedroso:

    [...] é bem mais correto dizer que as vantagens inerentes à escravização dos negros contribuíram para a substituição da mão-de-obra indígena do que afirmar que foi um mau negócio representado pela escravização indígena que obrigou os portugueses a encontrar novas fontes de mão-de-obra mais favoráveis ao lucro imensurável. [...]Como se viu, o que reduz a escravização dos índios, transformando-a em uma fonte secundária de exploração da mão-de-obra [...] foi um conjunto de fatores marcados pela dizimação dos nativos, as fugas constantes, as insurreições belicosas que perturbavam a paz nos engenhos, o aumento das distâncias e dos custos para o aprisionamento de índios e a tumultuada administração que não conseguia solucionar os conflitos inter-relacionados entre colonos, índios e jesuítas. Neste contexto, a escravização de índios, que no início parecia barata e lucrativa, tornava-se dispendiosa e desgastante, ao passo que a escravização de negros poderia solucionar, pelo menos à primeira vista, todos estes males, o que, sem dúvida, substitui todo o interesse da escravização de índios, que só continua a existir em regiões menos prósperas e, mesmo assim, através de proprietários pouco abastados. 34

    Geralmente costumam reforçar a idéia de que índio foi

    culpado pelo insucesso, por ser preguiçoso ou agressivo, e que não servia

    para o trabalho, e por isso logo foram substituídos pelos escravos negros,

    mas o que pesou nesta substituição foi uma decisão puramente

    econômica.

    Impõe-se, porém, concluir relembrando dois importantíssimos dados, poucos reconhecidos socialmente, e não poucas vezes pela história, mas que não podem deixar de ser incutidos na nossa memória, para sempre, em respeito às origens do povo brasileiro: a mão-de-obra

    34PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 37, 49-50.

  • indígena foi um fator de contribuição decisivo no desenvolvimento econômico da colônia e o escravismo praticado levou a um efetivo genocídio do indígena de proporções incomparáveis.35

    Vista a transição da mão-de-obra escrava indígena

    para a do negro africano, passemos para esta modalidade na próxima

    seção.

    1.8.2 A escravização do negro africano

    Como vimos acima, os portugueses foram os primeiros

    europeus a explorar a costa da África; estes iam em busca de riquezas,

    principalmente do ouro, mas descobriram que o tráfico de escravos

    poderia ser também uma ótima fonte de lucros.

    A escravidão já era utilizada por eles (portugueses e

    outros europeus), desde o século XV, mas a partir de 1550, os escravos

    negros começaram a ser enviados também para as suas colônias na

    América, para substituir a mão-de-obra escrava do indígena.

    Desta forma, a escravidão foi uma das atividades

    comerciais mais lucrativas da Idade Moderna. Permitia lucro duplo aos

    portugueses, que ganhavam com o tráfico e com a exploração de sua

    mão-de-obra na colônia.

    Para entender como os negros africanos foram

    submetidos à escravização pelos europeus, em especial neste caso pelos

    portugueses, faz-se necessário saber que a escravidão também já existia

    na África. Entretanto, com características diferentes das encontradas nas

    sociedades européias, na adaptação de Jonh Thornton citada por

    Azevedo e Seriacopi, poderemos entender essas diferenças:

    35PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 50.

  • A escravidão na África estava enraizada em estruturas legais e institucionais arraigadas das sociedades africanas, e sua operacionalização se diferia muito da que subsistia nas sociedades européias. A escravidão era difundida na África atlântica porque os escravos eram a única forma de propriedade privada reconhecida pelas leis africanas que produzia rendimentos. Em contraste, nos sistemas legais europeus a terra era a principal forma de propriedade privada lucrativa, e a escravidão ocupava posição relativamente inferior. De fato, a posse de terras em geral era uma precondição na Europa para a utilização produtiva de escravos, ao menos na agricultura. Nesse sentido, foi a ausência de propriedade de terras – ou, para ser mais preciso, foi a propriedade corporativa de terra – que levou a escravidão a ser tão difundida na sociedade africana. O sistema colonial africano não era retrógrado ou igualitário, mas apenas legalmente divergente, o que permitiu às elites políticas e econômicas da África vender um grande número de escravos e, assim, fomentar o comércio atlântico de escravos. Essa característica legal expandiu a escravidão, seu comércio e seu papel em produzir uma riqueza estável, aliada ao desenvolvimento econômico. 36

    Diversas foram as formar com que os portugueses

    capturaram os negros africanos. Iniciaram com ataques às aldeias

    situadas no litoral, depois passaram a fazer aliança com chefes tribais e

    reis e trocavam escravos por mercadorias, passaram inclusive a estimular

    guerras entre as tribos africanas para estimular a venda dos escravos

    vencidos, mas a forma mais utilizada era a contratação de mercadores

    que compravam escravos no interior do continente africano em troca de

    mercadorias e os levavam para o mercado de escravos no litoral.

    Os negros eram trazidos para o colônia de Portugal,

    hoje Brasil, acorrentados, em navios negreiros, em condições degradantes,

    como descreve Gislane Azevedo e Reinaldo Seriacopi: 36THORTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico. Rio de Janeiro: Campus, 2004. p. 125-7 apud AZEVEDO, Gislane; SERIACOPI, Reinaldo. História: série Brasil. São Paulo: Ática, 2005. p. 201.

  • A maior parte dos navios negreiros era de pequeno porte. [...] Amontoados nos porões, durante o percurso os escravos tinham de permanecer sentados, acorrentados uns aos outros e com a cabeça inclinada. A alimentação era composta quase sempre de uma tigela de mingau cru de milho e pequenas porções de água. Por ingerirem pouco líquido, muitos cativos de desidratavam; outros enjoavam com o movimento do navio e vomitavam; outros ainda, eram acometidos de diarréia. [...] As estimativas indicam que de 15% a 20% dos africanos escravizados morreram nessas viagens durante o período em que durou o tráfico negreiro. 37

    Os negros, que sobreviviam à esta terrível e

    degradante viagem, começavam a chegar no Brasil no século XVI, para

    trabalhar principalmente nos engenhos de açúcar que se localizavam no

    litoral, sobretudo nas capitanias de Pernambuco e da Bahia. Porém o

    trabalho escravo também era utilizado nos mais variados fins: no engenho,

    no canavial, na casa grande, como pedreiro, carpinteiro, pintores de

    parede, carregadores, remadores, vendedores ambulantes, etc. Não

    houve atividade em que o negro não fosse utilizado.

    Quando a economia se deslocou do nordeste para o

    sudeste, entre os séculos XVIII e XIX, para a exploração das minas e

    diamantes na região das Minas Gerais e para a produção do café, a

    mão-de-obra escrava também foi largamente utilizada.

    “O tratamento dispensado aos escravos era

    extremamente desumano. Via de regra, eles cumpriam jornadas de

    trabalho de até dezoito horas diárias.”38

    37AZEVEDO, Gislane; SERIACOPI, Reinaldo. História: série Brasil. São Paulo: Ática, 2005. p. 203. 38AZEVEDO, Gislane; SERIACOPI, Reinaldo. História: série Brasil, 2005, p. 206.

  • Os negros além do excesso de trabalho, eram

    submetidos à violência física quando não executassem as tarefas do

    modo correto, cometessem furtos, tentassem fugir ou se rebelassem.

    Estas foram as condições de vida e de trabalho desses

    escravos, que procuraram, durante este longo período, muitas formas de

    resistir à esta forma cruel de domínio: fugindo, reduzindo o ritmo de

    trabalho, paralisando a produção, sabotando máquinas, incendiando

    plantações, destruindo ferramentas, entre outras formas.

    Os escravos que fugiam se escondiam nas florestas e

    serras, em comunidades conhecidas como quilombos. O mais famoso

    deles da história foi o de Palmares, no qual viviam cerca de 20 mil

    africanos ou afrodescendentes.

    1.8.2.1 Antecedentes da abolição

    O comércio de escravos africanos foi, até o começo

    do século XIX, uma atividade extremamente lucrativa, visto maciçamente

    nas seções acima, porém para entendermos os antecedentes da

    abolição da escravatura no Brasil faz-se necessário entender o panorama

    econômico mundial, em especial o que chamamos de Revolução

    Industrial.

    Em linhas gerais, “convencionou-se chamar de

    Revolução Industrial o processo de transformações econômicas e sociais,

    caracterizadas pela aceleração do processo produtivo e pela

    consolidação da produção capitalista”.39

    Foi um movimento que se iniciou na segunda metade

    do século XVIII na Europa, que teve como pioneira a Inglaterra.

    39 MOCELLIN, Renato. História, 2004. p. 299.

  • “Constata-se, nessa época, que a principal causa

    econômica do surgimento da Revolução Industrial foi o aparecimento da

    máquina a vapor como fonte energética.”40

    O trabalho passou a ter uma nova conotação a partir da Revolução Industrial, [...] quando uma série numerosa de inventos, com destaque para o aproveitamento da energia a vapor, transformou radicalmente o modo de produção. Houve uma passagem da produção manufatureira para a produção industrial, com o uso cada vez mais aperfeiçoado de máquinas. Aos poucos a força física do homem foi sendo substituída pela força das máquinas e o homem passou a ser colocado a serviço das máquinas. Não é mais o homem que produz. É a máquina. [...] O trabalho é colocado a serviço da máquina. Capital e trabalho passam a viver intimamente associados, como uma espécie de verso e anverso de uma mesma moeda, de forma que o capital não vive sem o trabalho e este não tem espaço fora do capital. Como a fonte geradora de lucros, no sistema capitalista, é a máquina, o trabalho e o trabalhador passaram a ser tratados como adendos do capital.41

    “A Revolução Industrial acabou transformando o

    trabalho em emprego. Os trabalhadores, de maneira geral, passaram a

    trabalhar por salários.”42 Passou-se a entender o trabalho como uma

    mercadoria, com preço estipulado pelas leis de mercado.

    Se a oferta de trabalho superasse a procura o preço do trabalho tenderia a subir. Na razão inversa, o valor do trabalho teria tendência em baixa. Como a procura pelo trabalho sempre foi superior à oferta, o liberalismo econômico pouco valorizou o trabalho. Assim, houve um aumento espantoso dos lucros, para os donos do capital,

    40 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 2008. p. 5. 41GIRARDI, Leopoldo Justino. O trabalho no Direito. São Paulo: Coli Gráfica e Editora Ltda, 2005. p. 15. 42MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 2008. p. 5.

  • em detrimento da valorização do trabalho, uma mercadoria barata provocada pelo excesso de oferta.

    Segundo Sérgio Pinto Martins:

    Afirma-se que o Direito do Trabalho e o contrato de trabalho passaram a desenvolver-se com o surgimento da Revolução Industrial. [...] Passa-se, portanto, a haver um intervencionismo do Estado, principalmente para realizar o bem-estar social e melhorar as condições de trabalho. O trabalhador passa a ser protegido jurídica e economicamente. [...] A lei passa a estabelecer normas mínimas sobre condições de trabalho, que devem ser respeitadas pelo empregador. 43

    Na mesma linha leciona Leopoldo Justino Girardi:

    É nesta sociedade, envolta na Revolução Industrial, que surgirá o direito do trabalho, um conjunto de normas, protegendo os trabalhadores, vinculados à pressão das organizações dos operários, com apoio de entidades preocupadas com as conseqüências da questão social e à intervenção dos poderes públicos no campo econômico, estabelecendo limitações ao poder dos donos do capital atingindo a jornada de trabalho, a remuneração, o descanso, os intervalos, as condições de trabalho. O Estado, consciente de que não pode deixar o mundo do trabalho à mercê dos interesses dos donos do capital, intervém no mercado de trabalho e impõe limites à liberdade do empregador.44

    “Com a mudança, houve uma nova cultura a ser

    apreendida e uma antiga a ser desconsiderada.”45Por isso, muitos ingleses

    passaram a combater o tráfico de escravos e a escravidão, pois se os

    escravos se transformassem em trabalhadores assalariados, poderiam

    tornar-se consumidores, em especial das manufaturas britânicas.

    43MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 2008. p. 5-6. 44GIRARDI, Leopoldo Justino. O trabalho no Direito, 2005. p. 24. 45MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 2008. p. 5.

  • O governo britânico proibiu em 1807 o tráfico de

    escravos para suas colônias, e em 1826 conseguiu do Brasil um tratado

    que, em três anos após a sua ratificação, declararia ilegal o tráfico

    negreiro. Esta lei não foi cumprida.

    Em contrapartida, o Parlamento Britânico, em 1845,

    aprovou a lei proposta pelo deputado George Aberdeen, que legitimou o

    ataque a navios negreiros como se fossem navios piratas.

    O Brasil não agüenta a pressão e em 1850, o então

    ministro da Justiça, Eusébio de Queirós, apresenta ao Parlamento um

    projeto de Lei para acabar com o tráfico de escravos, que foi aprovado, e

    o referido projeto converte-se em Lei, em setembro do mesmo ano e leva

    o nome do seu autor, Lei Eusébio de Queirós. Esta lei foi a primeira que

    antecedeu a abolição, três séculos após a sua instituição aqui no Brasil,

    antes colônia.

    Em 1865, os Estados Unidos aboliram a escravidão e

    esta notícia reacendeu aqui no Brasil o debate sobre a abolição, e logo

    depois, com o fim da Guerra do Paraguai (1870), o movimento

    abolicionista ganhou força. A maneira que o governo encontrou de

    conciliar os interesses conflitantes, dos abolicionistas e dos fazendeiros, foi

    com a promulgação de outras leis.

    Com “a Lei n. 1.695 de 15 de setembro de 1869, é que,

    nas vendas de escravos, passou a ser proibida a separação de casais,

    bem com filhos menores de quinze anos.”46

    A próxima lei que foi promulgada foi a Lei Rio Branco,

    mais conhecida como Lei do Ventre Livre - Lei ordinária, número 2.040 de

    28 de setembro de 1871, que estabelecia que os filhos de escravos

    46PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 52.

  • nascidos a partir daquela data seriam considerados livres, mas deveriam

    permanecer sob os cuidados de seus senhores até completarem 8 anos

    de idade.

    O movimento abolicionista não se deu por contente, e

    a partir de 1880 ganhou força e apoio dos mais diversos setores da

    economia, e em 1883 formam a Confederação Abolicionista, configurado

    como um movimento com grande apelo popular.

    Em 02 de outubro de 1885, é promulgada a Lei Saraiva-

    Cotegipe, mais conhecida como Lei dos Sexagenários, pois libertava os

    escravos com mais de 60 anos de idade. A alforria para este grupo não

    era imediata, pois deveriam trabalhar por mais três anos a titulo de

    indenização. A critica em cima desta lei consiste em que esta medida

    favorecia os latifundiários e não os escravos, pois livres, eles iriam morrer

    como indigentes.

    O golpe final contra a escravidão no Brasil só foi dado

    em 13 de maio de 1888, trezentos e oitenta e oito anos após o seu início,

    quando, a Princesa Isabel (à frente do governo na ausência de D. Pedro

    II), assinou a Lei Áurea, abolindo definitivamente a escravidão no Brasil.

    No próximo capítulo abordaremos o trabalho escravo

    no Brasil Contemporâneo, ou seja, após a sua extinção formal, em 1888,

    com a promulgação da Lei Áurea. Antes disto, nos resta apenas parar e

    refletir que a referida lei colocou fim a escravidão, o que é de

    fundamental importância, mas não veio acompanhada de nenhum outro

    tipo de Lei ou de política pública para amparar essas pessoas, que eram

    trabalhadores escravos e agora se tornam homens livres, sujeitos de

    direitos e obrigações.

  • CAPÍTULO 2

    CONCEITOS CONTEMPORÂNEOS

    2.1 O RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL

    Embora o Brasil tenha abolido oficialmente a

    escravidão em 1888, com a promulgação da Lei Áurea, o trabalho

    escravo ainda continua existindo em nosso país, em pleno século XXI.

    No dia 08 de março de 2004, em Genebra, na Suíça, por ocasião de reunião realizada na sede da Organização das Nações Unidas, o Embaixador brasileiro Tadeu Valadares, chefe da divisão de Direitos Humanos do Itamaraty, reconheceu a existência de trabalho em condições análogas à de escravos no Brasil. O mérito, desse fato, é que pela primeira vez um país admite a existência desse trabalho em seu território, o que demonstra a intenção brasileira na erradicação dessa prática vergonhosa em nosso país. 47

    A escravidão contemporânea no Brasil se manifesta de

    forma mais sutil, mais dissimulada, pode-se dizer até de forma mascarada,

    porque é uma prática ilegal sob vários aspectos (criminal, constitucional,

    civil e trabalhista) e a sua erradicação “revela-se como uma das diretrizes

    da legislação pátria e internacional, não apenas como forma de garantir

    um trabalho decente, mas, sobretudo, para se promover a efetivação dos

    Direitos Humanos”.48

    2.2 O ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

    Iniciaremos com o conceito de Vera Lúcia Carlos:

    47CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 279-280. 48DELGADO, Gabriela Neves; NOGUEIRA, Lílian Katiusca; Melo Nogueira; RIOS, Sâmara Eller. Trabalho Escravo: Instrumento Jurídico-Institucionais para a Erradicação no Brasil Contemporâneo. Revista Magister de Direito Trabalhista e Previdenciário. Porto Alegre, n. 1. p. 57, julho-ago. 2004.

  • Na sua definição etimológica, originária, clássica, escravo é

    aquele que está inteiramente sujeito a um senhor, como

    propriedade dele. Não é considerado uma pessoa, mas um

    objeto que tem um proprietário, um “senhor”. Escravo é

    alguém sem qualquer tipo de direitos, sem liberdade, sujeito

    à opressão e a dependência. Aquele que trabalha em

    demasia. A força do trabalhador é voltada para os fins

    econômicos daqueles que são seus “donos”.49

    “A figura jurídica do escravo, enquanto sujeito de

    propriedade, não mais existe desde a Lei Áurea.”50 Diversos autores

    buscam identificar quem é atualmente o escravo no Brasil, e seus estudos

    trazem esta definição, que pouco diferem entre si.

    Vejamos como Bastos conceitua:

    (...) iniciaria afirmando que, no meu entender, o escravo é o

    excluído socialmente falando, o insignificante da história, na

    melhor expressão de Dom Tomaz Balbuíno, os pobres e os

    famintos, que vão aumentando em profusão, e isto se dá

    em função do mercado perverso, incondicionado, sem

    restrições. Sabemos que são vítimas principalmente da

    fome, e que pertencem a grupos vulneráveis, mas que não

    dependem mais de cor, mas do nível de pobreza.(...) são

    vítimas desse mal homens, mulheres, crianças, índios,

    garimpeiros, prostitutas e principalmente, em maior número,

    49CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 270. 50LIMA, Maurício Pessoa. O Trabalho em Condições Análogas à de Escravo no Brasil Contemporâneo. Oficina do Fórum Social Mundial 2003 da Organização Internacional do Trabalho, OIT.. Disponível em: . Acesso em 05 de setembro de 2008.

    http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documentos/trab_esc_

  • os irmãos nordestinos. São aqueles invisíveis, inexistentes, as

    vezes sem qualquer registro civil. 51

    Que é o mesmo entendimento de Jorge Antonio

    Ramos Vieira:

    [...] o escravo moderno pode ser entendido como o trabalhador, de qualquer idade ou sexo, que, não tendo como subsistir em sua cidade de origem, é levado pela necessidade a procurar trabalho em regiões distantes, através de aliciamento feito por pessoas que lucram com o fornecimento e a utilização de sua força de trabalho em propriedades rurais, geralmente localizadas na Região Amazônica, onde o acesso é difícil ou quase impossível, dadas as enormes distâncias a serem percorridas e as dificuldades impostas pela própria floresta, o que impossibilita a fuga do trabalhador escravo ou suas localização e resgate, pois, na maioria das vezes, sequer sabe, ou pode-se saber, onde se encontra, sendo inútil fugir, ou procurá-lo, até porque não teria mesmo para onde ir, ou como ser encontrado não fossem as denúncias dos poucos que conseguem escapar e chegar até um órgão confiável. Fuga sempre perigosa e muito arriscada. Assim, o “escravo moderno” é menos que o boi (que é cuidado, vacinado e bem alimentado), que a terra (que é protegida e bem vigiada) e que a propriedade (sempre defendida com firmeza).52

    Completamos com o entendimento de Patrícia Audi:

    A escravidão contemporânea no Brasil então persiste e ainda insiste, de forma mais cruel e sutil daquela abolida pela Princesa Isabel em 1888: os escravos modernos são pessoas descartáveis, sem valor agregado a produção – simplesmente não valem nada e por isso, não merecem

    51BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Trabalho Escravo: uma chaga humana. Revista LTr. vol. 70. n. 3. p. 368, março. 2006. 52VIEIRA, Jorge Antonio Ramos. TRABALHO ESCRAVO: Quem é o escravo, quem escraviza, e o que liberta. OIT.Disponível em: . Acesso em 05 de setembro de 2008.

    http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documentos/amb_escravos

  • segundo uma lógica puramente econômica, nenhum tipo de cuidado ou garantia de suas vidas. O fenômeno acontece com mais freqüência, sutilmente nos rincões distantes do meio rural brasileiro, sem que a sociedade tenha conhecimento e acredite na perversidade de sua prática. Persistem situações em que milhares de brasileiros vivem sem liberdade, milhares de quilômetros de seus municípios de origem, no meio da floresta, sem que tenham a possibilidade de fugir ou deixar as fazendas, rompendo assim, essa relação fraudulenta de trabalho. [...] Esses humildes brasileiros, recrutados em municípios muito carentes, de baixíssimo IDH, são oriundos principalmente dos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. Caracterizam-se por serem pessoas iletradas, analfabetas ou com pouquíssimos anos de estudo. Quando traçamos um perfil de gênero, descobrimos que são homens em sua grande maioria (98%), entre 18 e 40 anos (75%), que possuem como único capital de trabalho a força bruta e por isso são utilizados em árduas tarefas, principalmente na derrubada da floresta ou na limpeza da área já devastada (o conhecido roço da juquira) para o plantio de pastos (80% dos casos) ou de insumos agrícolas.53

    Segundo dados do Relatório Global de 2005 da

    Organização Internacional do Trabalho, “a estimativa do número de

    trabalhadores mantidos sob as condições análogas à de escravidão no

    Brasil chega a 25.000 (vinte e cinco mil) pessoas”, principalmente nos

    estados do Pará e Mato Grosso. 54

    2.3 O ESCRAVIZADOR CONTEMPORÂNEO

    A figura clássica daquele que escraviza é o sujeito

    conhecido como “gato”, que recruta trabalhadores em regiões muito

    53AUDI, Patrícia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 76-77. 54VIDOTT, Tárcio José. Exploração de crianças e adolescentes em condições análogas à de escravo. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 139.

  • pobres para trabalhar em local bem distante da contratação, onde ele

    “vende” as suas aquisições aos futuros exploradores da força de trabalho.

    No início eles “prometem bons salários, boas

    condições de trabalho e algumas vezes até adiantam algum dinheiro à

    família, iniciando assim o ciclo de servidão por dívida.”55Eles se aproveitam

    da vulnerabilidade de pessoas desempregadas e sem perspectiva de

    emprego para a prática do trabalho escravo. São verdadeiros aliciadores.

    Mas não trabalham sozinhos, como podemos verificar no artigo de Patrícia

    Audi:

    Esse aliciamento, onde toda uma rede criminosa existe para transportar trabalhadores ilegais com fim de explorá-los pode facilmente ser identificado como tráfico e deve ser motivo de atenção por parte da sociedade, do Governo e alvo de criação de políticas públicas específicas para sua repressão e prevenção.56

    A rede criminosa que a autora acima se refere é

    descrita por Guilherme Augusto Caputo Bastos:

    [...] quem escraviza nunca está só, sendo trabalho de uma rede criminosa, organizada, composta por vários agentes, cada um com uma finalidade própria. Assim, há os que aliciam os trabalhadores, há os que disponibilizam os locais para facilitar o aliciamento, e há aqueles que se utilizam do trabalho escravo que ainda mantém as cantinas onde vendem bens que deveriam ser oferecidos gratuitamente.57

    Faz-se necessário destacar que como não existe mais a

    figura da propriedade como elo entre senhores e escravos desde a

    55AUDI, Patrícia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 78. 56AUDI, Patrícia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 78. 57BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Trabalho Escravo: uma chaga humana. Revista LTr. vol. 70. n. 3. p. 369, março. 2006.

  • abolição da escravatura, estes atualmente “continuam ligados através de

    artifícios, tais como dívidas, ameaças e violência e estas circunstâncias,

    igualmente, cerceiam à liberdade individual.”58

    Apesar de já termos visto na primeira abordagem de

    Guilherme Augusto Caputo Bastos sobre quem escraviza, o referido autor,

    trabalha neste mesmo artigo outros “sujeitos” que também escravizam,

    vejamos:

    [...] já se pode vislumbrar uma resposta bastante palpável [sobre quem escraviza]: é o sistema, é o capital selvagem, insensível e desumano, sem responsabilidade social alguma. É a mais valia buscada pela classe dominante de forma cruel. A obtenção de lucros exagerados, a diminuição de despesas, a viabilização de empreendimentos econômicos no campo e na cidade. [...] Quem escraviza é a brutal concentração de renda em nosso país [...], são as estruturas e mecanismos repressivos ineficientes – fiscalização, polícia e Ministério Público. [...] quem escraviza é o próprio Estado que, devendo coibir esta prática desumana de trabalho, não o faz [...]. É o estado, então, quem, em última análise, que escraviza, porque se mostra frágil ou inexistente, incapaz de impor suas próprias regras e cumprir com seus objetivos.59

    Esta crítica acima ao sistema e estrutura

    socioeconômica em que vivemos pode parecer um pouco severa,

    entretanto devemos admitir que o autor não está criticando de forma

    isolada um único responsável pela prática do trabalho escravo, mas

    responsabilizando diversas entidades e organismos, que também é o

    entendimento de outros diversos autores, que são unânimes em concluir e

    admitir que somente uma ação conjunta de toda a sociedade brasileira,

    envolvendo o Poder Público, Organizações Não Governamentais, 58PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 68-69. 59BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Trabalho Escravo: uma chaga humana. Revista LTr. vol. 70. n. 3. p. 369, março. 2006.

  • Organismos Internacionais, entidades de classe, sindicatos e cidadãos em

    geral, é que permitirá que esta chaga humana seja erradicada

    definitivamente de nossa realidade.

    2.4 TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

    O trabalho escravo contemporâneo tem origem

    eminentemente econômica e é um dos principais exemplos de

    exploração humana na contemporaneidade. É neste sentido o

    posicionamento de Valena Jacob Chaves:

    Hoje, a conotação para trabalho escravo é outra, mas o significado é o mesmo: exploração pelo poder econômico do homem, oprimido pela falta de opções, de profissão, de expectativas e pela miséria. [...] o fenômeno da escravidão moderna surge no seio do sistema capitalista de produção, em que predomina a racionalidade econômica do cálculo que visa a otimização e a maximização de seus lucros. [...] porque a dinâmica na prática do trabalho escravo acompanha a dinâmica econômica da reprodução de capital. 60

    O modo contemporâneo de escravização do homem,

    sem a sua classificação em um grupo inimigo, surge como um dado a

    mais para que se observe a gravidade com que este fato social está

    transformando o seu modo. Pois as diferenças étnicas não são mais

    fundamentais para escolher a mão-de-obra. A seleção se dá pela

    capacidade da força física de trabalho

    Não estamos justificando a escravização de pessoas

    externas ao grupo, seja pela raça, credo ou cor (como ocorreu em

    diversos momentos históricos - vistos no capítulo anterior), mas apenas

    relatando que sob a ótica da nossa civilização contemporânea, este tipo 60CHAVES, Valena Jacob. A utilização de mão-de-obra escrava na colonização e ocupação da Amazônia. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 90-94.

  • de escravização, de pessoas externas ao grupo não existe mais, ocorreu

    uma mudança neste sistema, podemos dizer que atingiu uma das suas

    piores formas, e na obra de Elaine Pedroso podemos identificar esta

    significante diferença:

    No Brasil já não há mais a escravização de um grupo por outro, mas de modo cada vez mais mesquinho, mais sem móbil, escraviza-se qualquer homem, de qualquer grupo, até mesmo do próprio grupo a que pertence o escravizador, basta para tanto que as circunstâncias favoreçam esse objetivo. Talvez esta seja a razão para que, após mais de um século após a abolição da escravatura, o trabalho escravo seja uma das grandes preocupações nacionais.61

    O trabalho escravo atualmente alcança de forma

    desproporcional os grupos socialmente mais vulneráveis, como as

    mulheres, as meninas, as populações afro-descendentes e as populações

    socialmente excluídas, como vimos nas seções acima, pois a

    “vulnerabilidade facilita a criação de condições propicias à prática do

    trabalho escravo”62.

    O exemplo clássico de escravidão contemporânea

    ocorre geralmente em remotas áreas rurais, consistindo basicamente em

    pessoas que são empregadas em condições degradantes e perigosas,

    com ou nenhuma compensação, desta forma, constitui uma grave

    violação dos direitos humanos e uma restrição da liberdade do

    trabalhador, independente da sua modalidade.

    Segundo Vera Lúcia Carlos:

    Em razão do vasto território brasileiro é difícil fiscalizar o trabalho escravo ou de situação análoga à de escravidão,

    61PEDROSO, Eliane. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 19. 62AUDI, Patrícia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 78.

  • pois, estes, ocorrem em todos os Estados, com maior incidência em madeireiras do sul do Pará e parte do Amazonas, além dos Estados de Pernambuco, Mato Grosso e Tocantins. No entanto, apesar de ser mais comum em grandes pedaços de terra, longe dos centros urbanos, tal prática também existe na área urbana, normalmente com estrangeiros em situação irregular trabalhando na confecção e na venda de vestuário bem como também na venda de produtos ilegais, (“piratas”). 63

    Flávio Piovesan expõe de maneira objetiva e didática

    a violação aos direitos humanos e fundamentais do homem que a prática

    do trabalho escravo faz:

    Sob o prisma da concepção contemporânea de direitos humanos e da indivisibilidade e interdependência desses direitos, conclui-se que o trabalho escravo constitui flagrante violação aos direitos humanos, sendo ao mesmo tempo, causa e resultado de grave padrão de violação de direitos. Vale dizer, o trabalho escravo se manifesta quando direitos fundamentais são violados, como o direito a condições justas de um trabalho que seja livremente escolhido e aceito, o direito à educação e o direito à uma vida digna.64

    “O trabalho em condições análogas à de escravo

    estará presente sempre que [...] se verifique o trabalho humano em que

    haja negação ao seu principal atributo do ser humano, a sua

    dignidade.”65

    63CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 278. 64PIOVESAN, Flávia. Trabalho escravo e degradante como forma de violação aos direitos humanos. In: VELLOSO, Gabriel; FAVA, Marcos Neves (Org). Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 163-164. 65FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise à partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. Gabriel Velosso, Marcos Neves Fava, coordenadores. São Paulo: LTr, 2006. p. 137.

  • 2.4.1 Denominação adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro

    O ordenamento jurídico brasileiro utiliza a expressão

    “trabalho análogo ao de escravo”, pois abrange uma série de situações

    próximas à escravidão, e não somente o “trabalho escravo”.

    Sobre a denominação que se adota no Brasil, José

    Cláudio Monteiro de Brito Filho nos ensina a diferença entre elas:

    A denominação própria para o ato ilícito em gênero é trabalho em condições análogas à de escravo. Nada impede, todavia, que se utilize essa expressão de forma mais reduzida, ou seja, trabalho escravo. É preciso ter em mente, entretanto, que esta é apenas uma redução da expressão mais ampla e utilizada pela lei. É que, não sendo a escravidão prática admitida no ordenamento jurídico, não se pode admitir que a pessoa humana, mesmo em razão da conduta ilícita de outrem, possa vir a ser considerada escrava, no máximo ela estará em condição análoga à de escravo. Trabalho escravo, entretanto, é expressão que tem conotação forte, sendo quase impossível não utilizá-la; apenas, deve-se ter em mente seu efetivo sentido. 66

    Esclarecida a questão relativa à denominação,

    passemos para a tipificação penal, na próxima seção.

    2.4.2 Trabalho em condições análogas à de escravo

    O delito de redução à condição análoga à de

    escravo é definido pelo artigo 149 do Código Penal, que teve sua

    redação alterada pela Lei n. 10.803, de 11 de setembro de 2003:

    Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua

    66FILHO, José Cláudio Monteiro de Brito. Trabalho com redução do homem à condição análoga à de escravo e dignidade da pessoa humana. Revista Mestrado em Direito. Osasco, vol. 1. n. 137. p. 677, maio. 2004.

  • locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem:

    I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I - contra criança ou adolescente; II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. 67 O legislador buscou uma proteção legal ampla, pois

    assegura proteção à liberdade plena do trabalhador e das condições

    dignas para o exercício do trabalho. Desta forma, temos quatro

    modalidades que, de forma isolada, ou integrada, podem caracterizar o

    trabalho como análogo ao de escravo, que são: Trabalho Forçado;

    Jornada Exaustiva; Condição Degradante de Trabalho; e Restrição da

    Locomoção do Trabalhador, por qualquer meio, em razão de dívida

    contraída com o empregador ou preposto.

    No entanto, com relação às modalidades acima citadas, podemos dividi-las ainda em dois grupos; um primeiro grupo, em que a coerção física ou moral faz-se claramente identificada e necessária, e, um segundo grupo, em que, para a caracterização do delito, referidas normas de coação, em tese, não seriam expressamente exigidas, bastando a ocorrência de uma das hipóteses previstas. O primeiro grupo é formado pelas modalidades condizentes ao trabalho forçado e à restrição, por qualquer meio, da liberdade de locomoção do trabalhador, em razão de dívida, as quais possuem, necessariamente, como requisito

    67 BRASIL, DECRETO-LEI NO 2.848/1940. Código Penal. Disponível em: . Acesso em 31 de outubro de 2008.

    http://www.presidencia.gov.br/legislacao/>

  • caracterizador a coerção física ou moral por parte do empregador. [...] Fazem parte do segundo grupo as modalidades relativas à Jornada Exaustiva e à Condição Degradante de Trabalho, bastando para fins de caracterização do ilícito, a ocorrência de uma delas.68

    “Enfim, todo trabalho que reduz o ser humano a

    condição análoga à de escravo é degradante, priva sua liberdade,

    sujeitando-o a condições indignas de sobrevivência.”69

    Antes de abordamos as diferentes modalidades,

    vejamos sobre as características gerais deste delito, conforme leciona Júlio

    Fabrini Mirabete:

    O bem jurídico protegido é a liberdade individual, em especial a status libertatis do homem, que á de ser livre de servidão ou do poder de fato de outra pessoa. [...] Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito, excetuados os casos em que, sendo o agente funcionário público, pode ocorrer delito especial (art. 350 do Código Penal, por exemplo).70Sujeito ativo do crime é aquele que pratica a conduta descrita na lei, ou seja, o fato típico. [...] O conceito abrange não só aquele que pratica o núcleo da figura típica (o que mata, o que subtrai etc.), como também o co-autor ou partícipe, que colaboram de alguma forma na conduta típica. Sujeito passivo do crime é o titular do bem jurídico lesado ou ameaçado pela conduta criminosa. 71 Todo ser humano, sem distinção de raça, sexo ou idade pode ser vítima do delito, não importando que seja pessoa civilizada ou não. A inconsciência da vítima de estar em condição análoga à de escravo não elide o crime. Também o consentimento da

    68CARLOS, Vera Lúcia. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação, 2006. p. 271-272. 69DELGADO, Gabriela Neves; NOGUEIRA, Lílian Katiusca; Melo Nogueira; RIOS, Sâmara Eller. Trabalho Escravo: Instrumento Jurídico-Institucionais para a Erradicação no Brasil Contemporâneo. Revista Magister de Direito Trabalhista e Previdenciário. Porto Alegre, n. 1. p. 60, julho-ago. 2004. 70MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. 15. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 190. v. II. 71MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 122 -125. v. I.

  • vítima não retira a ilicitude do fato, pois o status libertatis, ao contrário da mera liberdade individual de locomoção, é de interesse do Estado. A conduta típica é a de sujeitar alguém totalmente à vontade do agente [...]. Refere-se a lei à condição análoga à de escravo por não mais existir a situação jurídica de escravo no país. [...] Trata-se de crime doloso em que se exige a consciência do agente de estar reduzindo alguém a um estado de submissão com a supressão do status libertatis. 72

    O Código Penal dispõe sobre o dolo no seu artigo 18,

    vejamos:

    Art. 18 - Diz-se o crime: Crime doloso I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.73

    “Como resultado deve-se entender a lesão ou perigo

    de lesão de um bem jurídico.”74

    Consumado está o crime quando o sujeito passivo passa ao domínio de outrem, suprimindo que foi seu status libertatis. [...] Ocorre a tentativa quando o agente não consegue o resultado de submissão à sua vontade apesar da prática de atos de execução (violência, ameaça etc.)Pode haver concurso com outros delitos tais como lesões, homicídios etc.75

    Passemos para as próximas seções que abordaremos

    sobre as características de cada uma das quatro modalidades de

    trabalho análogo ao de escravo.

    2.4.2.1 Trabalho Forçado

    72MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal, 1999. p. 190-191. v. II. 73BRASIL, DECRETO-LEI NO 2.848/1940. Código Penal. Disponível em: . Acesso em 31 de outubro de 2008. 74MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal, 2005. p. 140. v. I. 75MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal, 1999. p. 192. v. II.

    http://www.presidencia.gov.br/legislacao/>

  • O trabalho forçado também pode ser denominado de

    trabalho obrigatório. “Podemos encontrar, a