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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
UM TREM RUMO ÀS ESTRELAS: A Oficina de Formação Docente para o Ensino de História
(O Curso de História da FAFIC)
Everardo Paiva de Andrade
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da FE/UFF, como
parte das exigências para a obtenção do título de Doutor em Educação.
Orientadora: Profª Drª Sandra Lúcia Escovedo Selles
Niterói, Outono / Inverno de 2006
i
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Tese: Um Trem Rumo às Estrelas:
A Oficina de Formação Docente para o Ensino de História (O Curso de História da FAFIC)
Autor: Everardo Paiva de Andrade Orientadora: Profª Drª Sandra Lúcia Escovedo Selles Julgamento:
Niterói, _____ de ____________________ de _______ .
Banca Examinadora: Profª Drª Sandra Lúcia Escovedo Selles (Presidente) _______________________________ Profª Drª Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro _________________________________ Profª Drª Cecília Maria Aldigueri Goulart _______________________________________ Profª Drª Célia Frazão Soares Linhares _________________________________________ Profª Drª Magali Gouveia Engel _______________________________________________ Profª Drª Márcia Serra Ferreira _______________________________________________ Profª Drª Selva Guimarães Fonseca ____________________________________________
ii
Hoje posso dormir até mais tarde Cleir, Emmanuel, Fernando, Julio & Thais
O sonho ainda não acabou
embora a tese...
Bem, a tese, o tempo, a antítese, sim
Dedico tudo a vocês: o começo, o meio e o fim!
iii
A vida não é um argumento; entre as condições da vida se poderia
encontrar o erro.
(F. Nietzsche)
iv
AGRADECIMENTOS
Que fazer para evitar que os agradecimentos se tornem um capítulo extra da tese? Ao mesmo
tempo, como não permitir a falsa impressão de que posso fazer tudo sozinho ou (quem sabe?)
não aceitar a ingratidão de esquecer o quanto houve de solidário e coletivo em todo este
trabalho? Difícil encontrar o equilíbrio, mas ainda pior é não tentar.
As primeiras dívidas são com a família, incluindo aquela que me dei pelos afetos: meus pais
(Aquiles e Isabel) acreditando sempre; meus irmãos (Emmanuel, Evandro, Maria Luzia,
Elaine e José Maurício), tantos que é quase impossível não ter algum por perto; meus filhos
(Julio & Priscila, Thais, Emmanuel e Fernando) e seus filhos, meus netos (Leonardo e Julia),
todos imprescindíveis; minha esposa (Clair ou Cleir do Valle), com quem compartilhei por
dentro e por fora a autoria da tese. Quanto tempo eu perdi de vocês! Quanto não perderei...
Os amigos foram, são e serão essenciais. Neila Ferraz está presente em cada página deste
texto, mesmo que nem sempre se reconheça – e com razão! Rodrigo Rosselini e Cecília me
ajudavam a dobrar os acessos de tosse quando a emoção desafinava. Marcele Torres parecia
só alegria, sempre, só entusiasmo e contagiante superação quando meu sentimento era de
desânimo e pântano...
Na UFF, desfrutei do privilégio de conviver com o grupo de pesquisa Formação Inicial de
Professores e Processos de Produção do Conhecimento Escolar, liderado por Sandra Selles.
Falo especialmente de Ana Cléa (companheira presente desde a primeira hora, e ainda agora),
Márcia Serra, Mariana Vilela, Margarida Gomes, Daniele Tavares e Maicon. Também a
turma de doutorandos de 2002, mesmo depois que cada um buscou um caminho próprio,
nunca me deixou estar inteiramente sozinho: compartilhávamos, quando nada, a dúvida do
fim. Na secretaria do Programa, Isabela foi sempre uma referência segura para um retardatário
na matrícula.
O ambiente acadêmico seria mais acadêmico e menos habitável sem pessoas como Célia
Linhares e Silvia Alicia Martinez. A Banca de Qualificação fez críticas que ajudaram a
construir e reconstruir o trabalho: além de Célia Linhares e Silvia Martinez, devo muito à
inspiração de Ana Maria Monteiro.
v
Na FAFIC as dívidas se multiplicam. A Diretora Regina Sardinha e o Vice-Diretor Luiz
Cláudio Barbosa me concederam a cumplicidade da licença parcial, sobretudo na fase mais
aguda da produção do texto. Norberto Gusmão, senhor de quase todas as chaves da FAFIC,
franqueou portas – de salas e de armários – com desprendimento. Mariane, no Setor de
Pessoal, conseguiu entender meus tempos flutuantes.
À Coordenação de História devo mais do que um objeto de pesquisa: devo a motivação para o
doutorado, a energia para persistir e o interesse sempre estimulante dos colegas. Eduardo
Peixoto e Neila Ferraz, coordenadores, Dircéa, Carlos Eugênio, Maria Lúcia Ravela, Flávia,
Edivaldo, Synthio, Ana Lúcia e Sérgio, além, é claro, de Marcele e Rodrigo. Pertence a cada
um, um pouco desta tese.
Meus alunos da graduação e da pós-graduação suportaram com grandeza minhas experiências
pedagógicas, inclusive quando percebiam que eu não sabia direito o que estava dizendo: se
houver uma próxima tese, prometo a eles o tema dos saberes discentes...
Na Secretaria Municipal de Fazenda, em Campos dos Goytacazes, agradeço o
companheirismo e a grandeza dos colegas, nomeando especialmente Bolão e Samira, sem
olvidar a memória emocionada de Albino: onde estiver, creio que estará feliz comigo!
Agradeço também ao Colégio Santos Dumont / Anglo Campos e à Associação Educacional
Amigos de Clóvis Tavares, especialmente à inspiração de Hilda Mussa Tavares, pela
oportunidade de me sentir, na cidade que me acolheu e me adotou, menos estrangeiro e mais
pioneiro na realização de um sonho de todos nós.
Finalmente, devo reconhecer que Sandra Selles é a principal responsável por tudo isso. Quase
uma década de convivência fraterna, de confiança pessoal e intelectual, de idéias e projetos
compartilhados, enfim, fazem de Sandra muito mais do que uma Orientadora. Ela criou o
ambiente que tornou possível a pesquisa e a tese. O ambiente em que gostaria de permanecer,
mesmo agora, quando este trabalho chegou ao fim.
vi
RESUMO
O foco principal deste trabalho dirige-se para a formação do professor de História, a partir da
referência concreta a uma licenciatura particular – o Curso de História da Faculdade de
Filosofia de Campos – em um tempo preciso – a turbulência institucional e curricular que
marca o período compreendido entre 1998 e 2005. O panorama da análise, no entanto, recua
até dois ângulos de observação distintos e complementares: por um lado, discute significados
de formar, sobretudo aqueles localizados na interface entre licenciatura e bacharelado, em
perspectiva tanto sincrônica quanto diacrônica, mas também sem elidir a especificidade
representada pela disciplina escolar História, nesse contexto; por outro lado, analisa saberes e
práticas envolvidas num modo concreto de formar, num lócus particular cujos sujeitos
formadores reinventam dispositivos, atribuindo-lhes significados próprios. Do ponto de vista
teórico-metodológico, o trabalho situa-se no interior de uma concepção fenomenológica de
pesquisa, referência fundamental para uma perspectiva investigativa situada e não-normativa
segundo a qual o conhecimento é sempre contextualizado, isto é, indissociável sempre da
experiência vivida pelo sujeito. O problema fundamental tratado pela pesquisa consiste na
apreciação do impacto produzido pelo aporte de determinados conceitos (saber escolar,
saberes docentes) ainda insuficientemente incorporados ao debate e às experiências
formativas, sobretudo de professores de História. Nesse sentido, procura conceber a formação
como um espaço – a Oficina – articulado em torno de três eixos – sujeitos, saberes e práticas –
e seu currículo triangularmente estruturado em vértices ou fontes da formação – os
conhecimentos universitários, a cultura da escola e os saberes experienciais docentes. Além
da própria literatura sobre a formação, tomada como fonte na medida em que produz sentidos
e faz circular significados, sobretudo nos ambientes acadêmicos, a pesquisa utilizou-se de
fontes documentais produzidas pela instituição e pela licenciatura considerada, além de
produzir outras, entrevistando formadores e observando espaços formativos. Finalmente, a
tese pretendeu oferecer uma contribuição ao esforço de reafirmação dos valores de
diversidade e de diferenciação nos debates e nas experiências concretas, opondo-se às
expectativas de uniformidade e de imposição de um modelo único para a formação de
professores.
vii
ABSTRACT
This work aims to study the initial education of History teachers focusing on a particular
course – the Course of History of the Faculty of Philosophy of Campos – in a particular time
– the institutional and curricular turmoil that characterizes the period between 1998 and 2005.
The scenario of the analysis, however, moves back up to two different and complementary
standpoints: on one hand, the research discusses some meanings related to the concept of
initial teacher education, especially those involved in the interface between the initial teacher
education courses and the other degrees. These meanings are investigated not only on
synchronic as diachronic perspectives, but also considering the particular context and
specificity of the History school discipline; on the other hand, the research analyses the
variety of knowledge and practices involved during the course of initial teacher preparation,
particularly the ones created by the university tutors when they reinvent teaching devices,
attributing them particular meanings. From the theoretical and methodological point of view,
the work is oriented by a phenomenological research conception, which has formed the basic
reference to analyses knowledge in the context, i.e. attached to what is experienced by the
educational subjects. The basic problem treated by the research consists on analyze to what
extent the inclusion of determined concepts – school knowledge, teacher knowledge – have
been incorporated to the discussions and practices of the initial education of History teachers.
Thus, the research regards the initial education of History teachers as a particular “teaching
workshop” which is, on one hand, articulated by three axles – teaching subjects, knowledge
and practices – and on the other, by a curriculum dimension that includes – university
knowledge, school culture and teachers experiential knowledge. The research has made use of
sources such as the teacher education literature itself, documentary sources produced by the
higher education institution and by the initial teacher education course. It has also included
interviews to the tutors and observation of the educational institution environment. Finally,
the thesis intends to contribute to reassure the diversity and differentiation of the initial
teacher education debate and practices, opposing to the expectation of uniformity and
imposition of a single model for the initial teacher education.
viii
RESUMEN
El foco principal de este trabajo se direcciona hacia la formación del profesor de Historia, a
partir de la referencia concreta a un profesorado particular – el Curso de Grado de Historia de
la Facultad de Filosofía de Campos – en un tiempo preciso – la turbulencia institucional y
curricular que marca el periodo comprendido entre 1998 y 2005. El panorama de análise
retrocede a dos ángulos de observación distintos y complementares: por un lado, discute los
significados de formar, sobretodo los que se encuentran en la intersección entre profesorado y
licenciatura1, en perspectiva sincrónica y diacrónica, también abordando la especificidad de la
Historia como materia escolar; por el otro, analisa saberes y prácticas relacionados a un modo
concreto de formar – en un locus particular – donde los sujetos formadores reinventan
dispositivos, atribuyendoles significados propios. Del punto de vista teórico-metodológico, el
trabajo se situa en el interior de una concepción fenomenológica de investigación, referencia
fundamental para una perspectiva situada e normativa, según la cual el conocimiento es
siempre contextualizado, o sea, indisociable de la experiencia vivida por el sujeto. El
problema fundamental tratado consiste en entender el impacto producido por el aporte de
determinados conceptos (saber escolar, saberes docentes) todavía insuficientemente
incorporados al debate y a las experiencias formativas, sobretodo de profesores de Historia.
En ese sentido, se busca conceber la formación como un espacio – el Taller – articulado
alrededor de tres ejes – sujetos, saberes y prácticas – y su curriculum triangularmente
estructurado en vértices o fuentes de formación – los conocimientos universitarios, la cultura
de la escuela y los saberes experienciales docentes. Además de la literatura sobre formación,
tomada como fuente en la medida en que produce sentidos y hace circular significados,
sobretodo en los ambientes académicos, la investigación se valió de fuentes documentales
producidas por la institución y por el profesorado en estudio, además de producir otras,
entrevistando formadores y observando espacios formativos. Finalmente, la tesis pretendió
contribuir con el esfuerzo de reafirmación de los valores de diversidad y diferenciación en los
debates y experiencias concretas, oponiéndose a las expectativas de uniformidad y de
imposición de un modelo único para la formación de profesores. 1 Em especial na Argentina, mas também em boa parte da tradição educacional hispânica, o curso superior que prepara para a pesquisa (o bacharelado brasileiro) denomina-se licenciatura, ao passo que profesorado refere-se à formação do professor para o ensino escolar (nossa licenciatura) (NT).
ix
SUMÁRIO INTRODUÇÃO
01. Apresentação do tema: cultivando bananas – 2 02. Do tema ao problema de pesquisa: a dança, os dançarinos... – 6 03. Justificando o tema e o problema: a perspectiva da especificidade – 11 04. Afinal, o que é a pesquisa? (Se a vida não é um argumento...) – 14
PARTE I – O QUE SIGNIFICA FORMAR?
CAPÍTULO 1 – Da Provisão à Formação de Professores no Brasil (Estudos de Pedagogia e História) – 19 01. Preliminares – 19 02. Sobre a identidade da licenciatura – 20 03. “Não só do seu préstimo, mas dos seus costumes”: provisão de professores
– 21 04. Dirigentes imperiais e formadores do povo: primeiros tempos da formação
– 28 05. A formação de professores em nível superior: da tensão polarizada à tensa
triangulação de modelos – 37
CAPÍTULO 2 – A Oficina de Ensino e a Formação de Professores – 45 01. Da oficina de História à oficina de Ensino – 45 02. O debate sobre modelos na formação de professores – 48 03. Formar professores no Brasil: quem se habilita? – 54 04. A escola, os professores e seus saberes: referências para a licenciatura – 61
CAPÍTULO 3 – Cultura Escolar, Transposição Didática e História Ensinada (Em Busca
de Alternativas para a Formação de Professores) – 69 PARTE II – O QUE FAZEMOS PARA FORMAR?
CAPÍTULO 4 – (PREÂMBULO) A Crônica da FAFIC no Ensino Superior Brasileiro –
88 A – A família que me dei: Olhares internos na percepção da FAFIC (Apontamentos para uma crônica, 1961-2005) – 88
01. Os pioneiros anos 60 – 88 02. A escalada nos anos 70 – 90 03. Estabilização nos anos 80 e terremotos nos 90 – 91 04. Algumas certezas nos anos 2000 – 93 05. Para não concluir – 95
B – A FAFIC na expansão do ensino superior brasileiro – 96 01. A FAFIC e o ensino superior – 96 02. A FCC e a estratégia de privatização do público – 99
x
CAPÍTULO 5 – (UMA CIDADE INVISÍVEL) A Formação de Professores de História na FAFIC - 101
CAPÍTULO 6 – (OUVINDO ESTRELAS) Os Professores pela Mão dos Formadores –
143 CAPÍTULO 7 – (DIGRESSÃO) A Dimensão Prática na Formação do Professor (Contribuições para uma análise de sentidos na legislação atual) – 181
01. Primeira contribuição – 181 02. Segunda contribuição – 184 03. Terceira contribuição – 187
CAPÍTULO 8 – (UM TREM PRAS ESTRELAS) As Práticas, os Formandos e o
Percurso Formativo – 197 CONSIDERAÇÕES FINAIS – 242 BIBLIOGRAFIA – 249 FONTES – 260 ANEXOS – 267 APÊNDICES – 280
xi
01. Apresentação do tema: cultivando bananas
Este trabalho pretende correr o risco de percorrer um caminho já bastante pisado, retomando
um tema muito estudado na pesquisa educacional: a formação de professores. Por esse motivo
é duplamente arriscado: porque a literatura é quase inesgotável e porque é possível que tudo
ou quase tudo já tenha sido dito. Realmente, para quem se encontre solidamente ancorado em
muitas certezas e concepções consolidadas, o tema é “bananeira que já deu cacho”. Para
outros, no entanto, que não se desconectaram o suficiente do chão da escola, tal como
efetivamente o pisam sujeitos escolares diversos (mas especialmente os professores),
conectados, por outro lado, aos terremotos que uma legislação recente prenuncia para o
campo, considera-se que talvez existam ainda algumas poucas mudas de espécies variadas de
bananeiras a serem cultivadas.
Se a instituição de processos formais de preparação de professores é um fato relativamente
tardio na história da educação e no percurso de institucionalização da escola no Brasil, muito
mais recente ainda é o advento dessa formação em nível superior, para as disciplinas do
currículo escolar, em cursos denominados de licenciatura. Constituída historicamente no
mesmo movimento que fundou a universidade no Brasil, a partir da década de 1930, com um
papel específico a desempenhar no modelo de formação que a concebeu, ao lado de cursos
específicos de “conhecimentos desinteressados” nos campos disciplinares, a licenciatura, isto
é, o modo de preparação dos profissionais para a oficina do Ensino representa, portanto, nos
termos deste trabalho, uma daquelas espécies de bananeira que se pretende cultivar.
Além disso, o modo particular como ocorreu a articulação entre ambos os processos
formativos, de professores e de bacharéis, no âmbito de cada área específica do
conhecimento, justifica uma abordagem focada mais precisamente nessa particularidade: a
rigor, a despeito das conformações mais gerais que a legislação impôs, quase que se pode
dizer que cada caso é um caso, ou seja, que a formação de professores de História e de
historiadores, por exemplo, apresenta peculiaridades ausentes em outras graduações, ao
mesmo tempo em que não contempla todas as possibilidades dessa articulação. A referência
explícita, neste caso, à área de História, não é mera casualidade, finalmente. Antes, reflete as
vinculações pessoais e profissionais deste autor. Completa-se, assim, a circunscrição mais
externa de um tema de pesquisa com a adaptação de uma espécie de bananeira ao solo: trata-
se de um estudo sobre a formação de professores de História.
2
Mas isso ainda não é tudo. É preciso dizer que este não é um trabalho de História da
Educação. Mesmo que se recorra, em diversos momentos, a uma leitura diacrônica do
processo da formação e da docência, esta não é sua opção e sua marca original. A rigor, a
abordagem que se pretendeu fazer e a estratégia de pesquisa que se decidiu adotar valorizam e
se concentram muito mais numa perspectiva sincrônica de análise dos mecanismos
institucionais e curriculares da formação, partindo de duas perguntas cruciais:
1ª) O que significa formar professores (de História)? 2ª) O que fazemos para formar professores (de História)?
Se a primeira pergunta remete a distintas concepções e a diferentes modelos de formação (o
que por si só questiona e duvida das certezas de quem colheu o cacho que a bananeira deu), a
segunda põe em evidência, mediante uma pesquisa de base eminentemente empírica, uma
concepção e um modelo particular. Nesse caso, então, não se pretende inventariar todas as
concepções e todos os modelos conforme efetivamente foram e são implementados na extensa
diversidade das práticas formativas da graduação em História, no Brasil. Era preciso optar. A
opção poderia dirigir-se, por exemplo, à leitura daquilo que se faz em um grande centro
formador2 ou à natureza do que em outro se ensina, focalizando as tensões entre a produção e
o ensino da História3. Entre ambos – centros de excelência no ensino de História em nível
superior –, a característica comum da indiscutível qualidade, amplamente evidenciada por
indicadores de produção.
Optou-se, no entanto, por um modelo reconhecidamente precário que, sob muitos aspectos,
deve ser considerado marginal: trata-se de um modelo escolar de formação de professores de
História, dissociado da formação de historiadores, em uma instituição não pública e não
universitária, de curso funcionando em um único turno, em horário noturno, atendendo a um
público constituído principalmente por alunos trabalhadores, situado um tanto fora da órbita
dos grandes centros econômicos e culturais do país, que há 40 anos, no entanto, vem se
especializando no empreendimento diuturno da formação. Longe de se constituir em um caso
único e isolado de formação, contudo, tal modelo marginal, implementado nas antigas
2 Sily (1993) trata do Curso de História da UFF. 3 Ciampi (2000) focaliza o Curso de História na PUC-SP.
3
faculdades de filosofia, encontra-se amplamente difundido no ensino superior brasileiro4, o
que, todavia, em nada alivia sua condição de marginalidade.
Que razões justificariam uma opção por essa aparente marginalidade? A pergunta merece
pelo menos três respostas. Em primeiro lugar, porque a marginalidade, se for quantitativa é
aparente, mas se for qualitativa deve ser colocada em discussão: haverá alguma competência
possível num tal percurso de formação? A segunda parte do trabalho aborda esse assunto ao
tratar de uma instituição e de um curso específico. Em segundo lugar, porque este lugar
marginal constitui precisamente o posto de observação a partir do qual vislumbra-se
concretamente a oficina da formação em pleno funcionamento, ou melhor, uma oficina, na
qual este autor exerce seu ofício de formador. Finalmente, em terceiro lugar, há também uma
justificativa de ordem metodológica importada de outras leituras: a marginalidade pode
fornecer, segundo alguns historiadores, a chave, ou pelo menos uma outra chave de acesso ao
universo da formação.
Sidney Chalhoub, na Introdução a Visões da liberdade5, discute o método de investigação de
Ginzburg e de Darnton (mas também de Zadig e de Guilherme de Baskerville, de Morelli e de
Freud), identificando o que, na tradição inaugurada por Ginzburg, denomina-se “paradigma
conjectural”. Trata-se de uma “proposta de criação de um método interpretativo no qual
detalhes aparentemente marginais e irrelevantes são formas essenciais de acesso a uma
determinada realidade”. Segundo Chalhoub (2003: 17), “são tais detalhes que podem dar a
chave para redes de significados sociais e psicológicos mais profundos, inacessíveis por
outros métodos”. Guardando as devidas proporções e ressalvando-se as particularidades de
cada caso, acredita-se que um tal posto de observação, fincado desde o marginal e o precário,
possa contribuir na apreensão do perfil, ou de um perfil formativo provável, do professor de
História, habitante das salas de aula de História espalhadas pelo Brasil.
Não que se pretenda fundar qualquer método ou modelo novo, a partir do qual, de um caso
singular ou, como ficou dito, marginal, seja possível vislumbrar a totalidade da face do
universal. Não se pretende aqui, ingenuamente, propor um novo típico, muito menos ainda
delinear os contornos da formação, em geral. A relação entre o particular e o universal, no
4 A bibliografia sobre o assunto é relativamente vasta. A indicação aqui, não exaustiva, remete à bibliografia geral desta tese: Dourado (2001), Sampaio (2000), Romanelli (1997), Sguissardi (1993). 5 Chalhoub (2003).
4
entanto, pode-se beneficiar daquela percepção de Robert Darnton (1986: XVII) a respeito da
História Cultural e do método antropológico da História, segundo a qual “a expressão
individual ocorre dentro de um idioma geral”6. Aliás, o próprio historiador, incentivando essa
procura de percursos alternativos para acessar a realidade cultural do Antigo Regime, lá,
incentiva também a busca de novos cachos em bananeiras inexploradas na formação de
professores, cá. Afinal de contas,
“desviar-se do caminho batido talvez não seja uma grande metodologia, mas cria a possibilidade de se apreciar alguns pontos de vista incomuns, que podem ser os mais reveladores”.
Até aqui, falou-se de formação evitando-se a limitação imposta pelo adjetivo inicial. É de
propósito que seja assim. Do ponto de vista mais amplo da aprendizagem profissional no
magistério, o foco na conclusão do curso de graduação, embora importante, não deve ignorar
as análises que procuram articular suas dimensões propriamente institucionais e curriculares
ao exercício da profissão, especialmente no início da docência. A perda da tutela, tanto da
instituição quanto dos próprios agentes formadores, colocam os professores iniciantes numa
situação esperada, porém nova. Desde então, será preciso organizar informações e
conhecimentos, interpretar situações vividas, acomodar-se no ambiente das relações sócio-
profissionais, principalmente escolares, mas não só, tomando decisões e agindo por conta
própria. A análise de projetos e dispositivos que, de alguma forma, possam contribuir na
condição de solvente para a tinta que divide essa fronteira, sobretudo na prática de ensino dos
currículos de graduação, constitui uma dimensão crucial deste trabalho.
Enfim, talvez seja possível agora formular mais ampla e claramente o tema em questão. Trata-
se de uma investigação sobre a formação do professor de História num tempo que inclui a
formação inicial na licenciatura, mas que comporta elementos de abertura em direção ao
mundo da escola e ao exercício profissional docente, focalizando tanto concepções e modelos
de formação quanto a análise de um caso concreto de formação, numa instituição que se
poderia considerar como precária e marginal no contexto do ensino superior brasileiro. Tanto
o tema da formação de professores quanto a natureza da instituição investigada e o modelo de
formação que empreende parecem encontrar-se, todavia, relativamente fora de alguns padrões
contemporâneos de nobreza acadêmica, sobretudo para uma tese doutoral.
6 Darnton (1988).
5
Não obstante, espera-se que não seja desprovido totalmente de utilidade este esperançoso
esforço de cultivar bananas...
02. Do tema ao problema: a dança, os dançarinos...
Procurando descrever o universo substituindo uma concepção mecanicista por outra
essencialmente relacional, Fritjof Capra sugere que nele “há movimento, mas não existe em
última análise objetos moventes; há atividade, mas não existem atores; não há dançarinos,
somente dança”7. Tal imagem em que a realidade da ação vai além da materialidade física do
ator aparece também na obra literária de Ítalo Calvino (1993) contraposta a uma outra, em que
o sujeito é só matéria, sem identidade entre matérias, nos personagens de O cavaleiro
inexistente. Por um lado, Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz
e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, paladino de Carlos Magno e um dos pares de
França, experimenta a insustentável tragédia pessoal de não existir. Por outro lado, Gurdulu,
“prisioneiro do tapete das coisas” (Calvino, 1993: 101), que jamais decidira se pescava os
peixes ou deixava-se pescar entre eles, se comia a sopa ou se deveria ser comido por ela...
Agilulfo necessitava estar sempre em movimento para evitar dissolver-se na sua própria
inexistência. Não entendia como era possível, por exemplo, simplesmente dormir, “aquele
fechar de olhos, aquela perda de consciência de si próprio, aquele afundar num vazio das
próprias horas e depois, ao despertar, descobrir-se igual a antes, juntando os fios da própria
vida” (Calvino, 1993: 14). Enumerar as coisas, dispor objetos, organizar e ordenar trabalhos,
falar mais do que ouvir, sentar-se à mesa sem poder comer, deitar-se e não dormir, falar de
amor sem fisicamente amar: eis a que estava condenado aquele Cavaleiro Inexistente.
Finalmente, numa espécie de estratégia para reconciliar consciência e matéria, Calvino faz
com que Carlos Magno conceda Gurdulu como escudeiro a Agilulfo. No fundo, talvez haja
um pouco de ambos, ou da cumplicidade e da complementaridade que entre ambos se instaura
e se estabelece, no objeto que esta tese pretende construir.
7 Cit. por Soares (1999), in: www.eps.ufsc.br/disserta99/felipe/cap8.html .
6
Seu tema remete, fundamentalmente, à formação inicial de professores de História, entendida
como etapa e percurso de preparação de profissionais comprometidos com a tentativa de
ensinar História na escola. Envolve, no entanto, um momento especial dessa formação cuja
vocação consiste na tentativa de síntese entre elementos de contextos diversos: por um lado,
os dispositivos próprios de um tempo de formação e, por outro lado, o foco na escola e na
experiência docente. A despeito do postulado onipresente no pensamento educacional
brasileiro segundo o qual teoria(s) e prática(s) devem manter-se em unidade indissolúvel, em
cada um desses lados parece subsistir um Agilulfo sem Gurdulu e vice-versa. Por isso mesmo,
trata-se de um momento de tensão, em que saberes produzidos no contexto de determinadas
práticas buscam outras práticas; e em que práticas buscam constituir seus próprios saberes,
sejam eles efetivamente novos ou ressignificados num outro contexto. Ao reconhecimento
desse descompasso entre saberes, práticas e contextos e ao esforço de reestruturação de suas
articulações, atribui-se o termo reorquestração.
No início, pensava-se na questão de pesquisa como um estudo envolvendo uma
“reorquestração de saberes” distendida no tempo, isto é, como um percurso quase linear,
progressivo e contínuo, que enfatizava a aquisição e o acréscimo de determinados saberes
numa etapa e de outros saberes na etapa seguinte. Concretamente, saberes de origem
universitária (disciplinares e pedagógico-profissionais) na formação inicial e saberes mais
conectados à vivência de práticas e à competência no exercício da profissão (saberes escolares
e experienciais) na formação continuada. Tratava-se, como se vê, de uma problematização
derivada quase que diretamente da problemática dos saberes docentes, de Maurice Tardif
(1991). No projeto de tese, elaborado no princípio de tudo, o subtítulo assumia não só esse
caráter de transitoriedade, de algum modo ainda presente, mas também de expansão e
cumulatividade na passagem “da formação inicial à competência profissional”.
Hoje, concluída a pesquisa, ainda vê-se a coisa como uma espécie de reorquestração, mas de
um tipo um pouco modificado, na perspectiva de uma resignificação de saberes e de práticas,
ainda durante a formação inicial. Pensa-se na reorquestração, de um modo geral, como um
movimento permanente articulando, na formação como na docência, saberes e práticas,
envolvidos num processo de circularidade – como na execução de uma melodia em que
formandos e formadores, mesmo vivenciando experiências num plano pessoal, não podem
individualmente decidir parar: como se houvesse dança, portanto, mas não fosse possível
distinguir os dançarinos. Uma execução que, do ponto de vista de determinados instrumentos
7
e instrumentistas, focalizados em sua performance individual (o desenho melódico de
determinados professores, de determinadas concepções e práticas ou de determinados centros
de formação), pode parecer repetitiva, rotineira, enfadonha. O que, sem dúvida, reforçaria
uma tendência à rejeição de qualquer ponto de vista que reputasse à dimensão prática da
formação, ou mesmo ao exercício profissional, a capacidade intrínseca de produção e não
meramente de reprodução de saberes.
A idéia de reorquestração, aqui e agora, portanto, refere-se não mais a um sujeito profissional
imaginário que adquire e constrói saberes progressivos e cumulativos, numa divisão espacial e
cronológica dos saberes da formação e da profissão, mas a um processo de circularidade
ininterrupta de passos, de partes, de arranjos, de aspectos, de elementos variados dos saberes
característicos de um em outro contexto, mas sempre ressignificados no processo mesmo de
sua circulação. Assim, traços característicos do exercício da docência podem ser antecipados
na formação inicial, seja na prática de ensino, no estágio supervisionado ou mesmo nas
chamadas disciplinas pedagógicas ou de conteúdo específico, mas a lógica que preside a sua
antecipação será, necessariamente, a lógica da formação. Inversamente, estratégias,
conteúdos, elementos e aspectos característicos da formação inicial reaparecem na docência,
mas subordinados às exigências concretas do ensino na sala de aula e na escola. O problema,
no entanto, consiste em reconhecer isto ainda na formação inicial para que o futuro professor
não se veja na condição de reinventar a pólvora por conta própria.
Mas, ainda mais: em se tratando de professores que atuam no universo de corpos disciplinares
institucional e socialmente bem definidos (como é o caso da História e/ou da História escolar,
entre outros), essa idéia de reorquestração não pode subestimar sua importância na
constituição de representações dos próprios professores acerca de si mesmos, de seu trabalho
e dos conhecimentos que ele envolve, da profissão, enfim, como um todo. De modo que,
especialmente durante a formação inicial e naqueles tempos iniciais da profissão, a disciplina
(em sua versão escolar ou não) se apresente ao licenciando e ao licenciado como o verdadeiro
e principal responsável pelo fato de se encontrarem ali. Tal fato permite reencontrar, por outro
lado, a própria motivação deste autor para a pesquisa que realiza, remetendo a uma história da
pesquisa e ao mesmo tempo a uma história de vida que torna ainda mais complexa a relação
entre investigação e vivência, entre ciência e existência.
8
Ora, se em muitos casos de teses doutorais a motivação principal para a pesquisa relaciona-se
a suspeitas e insights teoricamente controlados e se seus desdobramentos conduzem a
importantes descobertas, no caso particular desta pesquisa o ponto de partida e seu motor são,
antes de tudo, uma angústia, uma melancolia e uma incômoda sensação de identidade partida.
Tais sentimentos, há tempos experimentados pelo próprio autor, parecem ainda atuais na
observação de licenciandos e de jovens professores de História, às voltas com o dilema
original de se identificar: a História ou a docência? Atuais também pelo fato de não se ter a
oferecer senão uma resposta sempre provisória e em muitos sentidos precária: a tensão. Mas é
preciso reconhecer que a tensão condena o sujeito a uma espécie de nostalgia perpétua da
outra face. Posto que, quase sempre, uma das duas faces acaba preterida diante dos
imperativos concretos do exercício da profissão.
Mas, afinal de contas, em que consiste esta tese? No início, tratava-se, pois, de conceber uma
reorquestração de saberes na passagem entre a formação inicial e os primeiros tempos da
docência, o que pressupunha, naturalmente, duas orquestrações distintas e sucessivas, cada
qual necessária e única em seu tempo. Ora, deixava-se de considerar que, na verdade, seja na
formação inicial, seja nos momentos iniciais da docência ou mesmo nas etapas subseqüentes
de construção da carreira, cada um desses tempos envolve múltiplas possibilidades de
orquestração de saberes e práticas, devendo abandonar-se por ilusória a idéia de um caminho
paradigmático único a ser seguido tanto na formação quanto na profissão. Desse modo, a
questão fundamental de pesquisa passou a traduzir o esforço de descrição de uma determinada
orquestração – aqui denominada de Oficina de Formação Docente para o Ensino de História –
cuja base empírica fornecesse elementos para uma teorização sobre a formação de professores
que, por sua vez, servisse de estímulo ao movimento instituinte e à multiplicação de
experiências formativas de docentes, especialmente aquelas situadas na interface com os
diferentes campos disciplinares de conhecimentos acadêmico-científico-culturais.
Partindo, portanto, da hipótese inicial de uma reorquestração de saberes, a pesquisa
deslocou-se em direção aos processos de ressignificação de determinados dispositivos de
formação (a prática de ensino, o estágio supervisionado, as práticas investigativas), na
perspectiva de que pudessem contribuir com a construção de pontes para re-conectar
formação e profissão. Tais dispositivos, na verdade, constituem aqueles elementos que, ainda
na formação inicial, propiciam uma abertura (de natureza teórico-prática e não apenas teórica)
para os contextos e as condições reais de exercício da profissão. Tal orquestração ou, dizendo
9
de outro modo, tal Oficina de Formação, estrutura-se em três eixos fundamentais: os sujeitos
(formadores e formandos), os saberes (universitários, escolares e docentes) e as práticas
(institucionais, curriculares e proto-profissionais); por outro lado, ela articula, também um
projeto de currículo que favorece a triangulação, em espaços formativos internos e externos à
instituição formadora, entre os conhecimentos universitários, a cultura escolar e os saberes
experienciais docentes.
Reorquestração de saberes na formação inicial, ressignificação de dispositivos e constituição
espacial de uma Oficina de Formação, triangulação de fontes para a organização curricular, a
que se acrescente a importância da disciplina na constituição da identidade dos professores:
eis aí, portanto, algumas questões capitais na problemática que se procura esboçar. Entretanto,
elas não serão pensadas no plano abstrato e geral de qualquer tempo e de qualquer contexto.
Sem deixar de falar da formação e da identidade de professores em geral, as reflexões aqui
lançarão âncora num estudo de caso, específico e contingente como todo caso. Trata-se de um
centro formador e seus particulares sujeitos, saberes e práticas – a Licenciatura em História da
Faculdade de Filosofia de Campos – criado praticamente nos primeiros tempos de fundação
da FAFIC, em meados da década de 1960, no bojo de um processo mais amplo de expansão e
de interiorização do ensino superior, no Brasil, constituindo juntamente com Matemática,
Letras e Pedagogia o perfil institucional de uma escola de formação de professores.
Este perfil institucional, por outro lado, coaduna-se ao formato jurídico com que a FAFIC se
inscreve no interior daquele processo de expansão e de interiorização do ensino superior e das
licenciaturas, mencionado acima: sua natureza fundacional. Essa dupla caracterização,
portanto, envolvendo a natureza e o perfil da instituição, constituindo o modelo bastante
difundido das faculdades de filosofia, se, por um lado, é fonte de seu vigor e condição que
viabiliza sua criação, por outro lado, do ponto de vista do debate educacional brasileiro,
constitui precisamente seu ponto frágil: trata-se, segundo alguns autores, de um modelo
institucional de privatização do público, responsável pelo caráter não-universitário da
expansão do ensino superior, em geral, e, particularmente, da formação de professores, no
Brasil. Que, no entanto, responde à dupla demanda colocada pelo processo de urbanização e
de modernização da sociedade brasileira, na segunda metade do século passado: o acesso ao
ensino superior e a expansão da escolarização básica.
10
A partir de sua implantação, finalmente, viabilizada pela confluência de professores de
variadas origens e distintas formações, o curso de História da FAFIC inaugura um modelo
basicamente endógeno de reprodução de seus quadros formadores, cujo horizonte de
qualificação, até os anos 1980 era a própria graduação e, pelo menos até o final dos anos
1990, não passava ainda da especialização em nível de lato senso. Funcionando
exclusivamente em horário noturno, dirigia-se a uma camada específica da sociedade
regional, constituída por trabalhadores do setor de serviços, quase sempre com forte presença
de professores cuja formação limitava-se até então ao nível médio. Uns e outros, formadores e
formandos, sujeitos envolvidos pela tensão entre saberes e práticas em processo de
reorquestração, construindo a si próprios, construíram para si uma identidade pautada no que
compreendiam como sendo a História, bem distante da França do tempo de Carlos Magno ou
da Itália de Calvino.
Agilulfos e Gurdulus nunca completamente reconciliados, em ambos e em cada um, na
experiência concreta de suas respectivas trajetórias, experimentam a cumplicidade, a
complementaridade e a contradição que leva do movimento aos moventes, da atividade aos
atores, enfim, dos dançarinos à dança cujas existências executam.
03. Justificando o tema e o problema: a perspectiva da especificidade
Algumas perguntas nem sempre evidentes no dia a dia de trabalho com a formação iam aos
poucos sendo formuladas, na medida em que as bananas, ou melhor, as idéias amadureciam.
Primeiro: em que se formam os professores de História? Segundo: o que exatamente eles
ensinam aos seus alunos? Terceiro: como eles adquirem, constroem, dão sentido e
ressignificam esses saberes? Quarto: qual a concepção que deles têm os formadores de
professores? Tais perguntas, por sua vez, foram dando origem a novas questões mais gerais,
importantes para o delineamento do trabalho. Afinal, i) qual é o contexto histórico em que
emerge esse tipo de problematização? Ou ainda, ii) qual o contexto teórico em que ele
emerge, em que paradigma epistemológico e no diálogo com que tradições? E mais, iii) é
possível articular essas questões a uma problemática dos centros de formação, aproximando-
as de uma experiência formativa concreta, em uma instituição e um curso específico,
acompanhando a trajetória de sujeitos reais, compartilhando saberes e práticas?
11
Tais questionamentos põem em evidência alguns elementos importantes para justificar o tema
e sua problematização. O primeiro deles tem a ver, sem dúvida, com a especificidade da
licenciatura como um curso de formação inicial de professores. Constituída originalmente
como irmã siamesa do bacharelado, ela jamais pode afirmar-se com voz própria e timbre
específico no debate acadêmico, garantindo a legitimidade de seu componente disciplinar,
mesmo que sem restringir-se a ele. Tal especificidade funda-se, em primeiro lugar, no
reconhecimento de uma especificidade da escola como instituição com finalidades educativas
e instrucionais. De fato, conforme sugere um enfoque renovado da sociologia da educação,
deve-se considerar que
“uma abordagem mais explícita e diretamente centrada nos conteúdos cognitivos e simbólicos das transmissões escolares levaria mais em conta aquilo que faz a especificidade das instituições de ensino, ou seja, o fato de serem locais e meios organizados com vistas a transmitir a um público numeroso e diversificado e por meios sistemáticos conjuntos de conhecimentos, de competências, de representações e de disposições correspondendo a uma programação deliberada. A escola não é apenas, com efeito, um local onde circulam fluxos humanos, onde se investem e se gerem riquezas materiais, onde se travam interações sociais e relações de poder; ela é também um local – o local por excelência nas sociedades modernas – de gestão e de transmissão de saberes e símbolos”8.
Tal especificidade, por sua vez, remete à consideração do trabalho docente também como
provido de algo que lhe é específico. A esse respeito, Tardif (2000: 113) afirma que é preciso
“considerar os professores como sujeitos que possuem, utilizam e produzem saberes
específicos ao seu ofício, ao seu trabalho” e que tal fato se reveste de maior importância na
medida em que se compreende o papel estratégico dos professores em relação ao conjunto dos
agentes escolares. Segundo esse autor, interessar-se pelos saberes e pela subjetividade dos
professores, isto é, por aquilo que confere especificidade ao seu trabalho, permite “penetrar
no próprio cerne do processo concreto de escolarização” (Idem, ibidem: 113). Quase duas
décadas antes, embora numa outra perspectiva, Saviani (2002) pedia aos professores que não
ignorassem a importância de relacionar os conteúdos específicos de sua disciplina às suas
finalidades sociais mais amplas. Segundo Saviani (2002: 80),
“um professor de história ou de matemática, de ciências ou estudos sociais, de comunicação e expressão ou de literatura brasileira etc, têm cada um uma contribuição específica a dar, em vista da democratização da sociedade
8 Forquin (1992: 28).
12
brasileira, do atendimento aos interesses das camadas populares, da transformação estrutural da sociedade”.
As especificidades da escola e do trabalho docente articulam-se, ambas, ao caráter também
específico das disciplinas escolares. Segundo Chervel (1990: 180), o termo disciplina trouxe à
língua um valor específico, segundo o qual
“os conteúdos de ensino são concebidos como entidades sui generis, próprios da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda realidade cultural exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer, à sua própria história”.
Considerar, portanto, que existe algo de específico à escola, ao trabalho docente e às
disciplinas escolares, na esteira dos autores e das argumentações citadas, exige que se coloque
em questão também a perspectiva de uma especificidade para a formação de professores,
particularmente no âmbito das licenciaturas, compreendidas como processos, estratégias e
meios de aquisição e de construção de saberes e habilidades que influem necessariamente na
configuração de uma identidade profissional. Reivindicar tal especificidade, porém, não
implica em exigir ruptura ou desligamento em face das antigas amarras existentes entre a
licenciatura e o bacharelado. Pelo contrário, torna-se ainda mais indispensável explicitar a
natureza das conexões que a formação e a docência mantêm em suas fronteiras (embora sem
hierarquias ou subordinações), quer com o campo propriamente pedagógico, quer com os
saberes e práticas dos campos científicos de viés disciplinar.
Se tivesse, enfim, que definir um objetivo principal para esta tese, diria que ela deve
contribuir para pensar o timbre particular que identifica a voz da licenciatura em meio ao
vozerio do debate acadêmico no campo da educação e da formação. Mas este não haveria de
ser seu único objetivo. Ela não pode nem pretende esquivar-se de estabelecer um duplo
diálogo no interior da Faculdade de Filosofia de Campos: primeiro, com a instituição, sobre a
licenciatura, seus projetos e diferentes suportes, particularmente sobre a miragem de um
bacharelado que, de fato, ali nunca existiu, deduzida apenas da forte opacidade em que se
envolvem as relações entre licenciatura e bacharelado; segundo, com as coordenações de
História e de Pedagogia em torno das concepções de formação e de docência, de
conhecimento e de conteúdo, de ensino e de prática, em torno, enfim, das estratégias
propostas para a organização das próprias licenciaturas, na FAFIC.
13
04. Afinal, o que é a pesquisa? (Se a vida não é um argumento...)
Terá resultado frutífero todo o esforço empreendido naquela segunda seção desta Introdução –
quando se procurava evidenciar uma certa problematização do tema pelo artifício criador de
neologismos (por prefixação), entre reorquestrações e ressignificações de práticas e de
saberes – para tornar suficientemente claro aquilo que constitui o eixo fundamental desta tese?
As alusões feitas à dança e aos dançarinos, aos agilulfos e gurdulus, à atividade e aos atores,
enfim, como recursos cujo objetivo era conferir visibilidade, quase materialidade ao
problema, terão feito jus ao seu propósito? A composição do texto, a linguagem empregada
terá sido adequada, por exemplo, para fazer compreender que se, por um lado, afirmar que a
ação transcende o ator porque fora da ação o ator mergulha na própria inexistência (como
Agilulfo), o que se pergunta, na verdade é se haverá um professor em geral, formado em
geral, apenas no domínio de conhecimentos acadêmico-científico-culturais, ou se o docente é
sempre indissociável da docência e de seu lugar por excelência – a escola e o currículo? O que
faz interrogar, afinal, se é possível formar professores deixando de fora da formação a escola
e a docência...
Terá feito compreender, por outro lado, que um ator só ação (como Gurdulu) torna-se
prisioneiro no tapete das coisas? E que, por fim, reorquestrações e ressignificações remetem
à necessidade de articular ação e ator, dança e dançarino, concedendo Gurdulu como
escudeiro a Agilulfo, o cavaleiro inexistente, desde a formação inicial dos professores... Nesse
sentido, então, a pesquisa e a tese consistem, fundamentalmente, numa busca de alternativas
de formação, partindo das discussões acerca do sentido de formar (O que significa formar? é
o título da primeira parte), mas também de uma experiência concreta que procura instituir um
certo jeito de formar (a segunda parte intitula-se O que fazemos para formar?), para
desenvolver teorizações que possam contribuir, mediante o aporte de conceitos ainda não
suficientemente incorporados ao debate – a cultura escolar e os saberes docentes, sobretudo –
, para rejeitar um modelo único e potencializar aquilo que Linhares e Silva (2003: 26)
identificam como um ambiente de “efervescência instituinte”. Não por outro motivo, ambas
as perguntas que dividem quase que como duas teses a tese inteira poderiam, em síntese,
traduzir-se numa indagação central: que saberes e práticas interessam aos sujeitos
14
comprometidos naquele encontro e diálogo de gerações, de que fala Arroyo (2000: 10), que
forma professores?
A hipótese que a pesquisa configura consiste em conceber a formação como um espaço
articulado em três eixos perpendiculares fundamentais: o eixo dos sujeitos, sejam eles
formadores ou formandos; o eixo dos saberes não só acadêmicos, como também saberes
escolares e docentes, e o eixo das práticas institucionais, curriculares e proto-profissionais. A
esse espaço de formar denominou-se Oficina de Formação Docente para o Ensino de
História. Note-se que, nessa Oficina, os saberes e as práticas não são independentes dos
sujeitos que os constituem ou que, por outro lado, são por eles constituídos. Os componentes
– conteúdos, prática, estágio e atividades diversas – que, no interior da Oficina, constituem o
currículo da formação, por sua vez, remontam à triangulação de três fontes principais: o
conhecimento ou a produção acadêmico-científico-cultural, a escola ou a cultura escolar e a
profissão, mas especialmente os saberes experienciais docentes. Concebidas como fontes do
currículo de formação, a escola e a docência não podem ser tratadas apenas como objeto dos
conhecimentos universitários, constituídas a partir de demandas desses conhecimentos e não a
partir de suas próprias referências lógicas e temporais.
A primeira parte do texto – O Que Significa Formar? – procura responder a esta questão em
três capítulos nos quais os sentidos de formar são abordados em perspectiva sincrônica e
diacrônica. O primeiro capítulo realiza um rápido esboço de história da profissão, mas,
sobretudo, da formação docente, no Brasil. O segundo capítulo, em abordagem sincrônica,
trata a formação na perspectiva do ensino, isto é, como empreendimento que se realiza no
interior de uma Oficina de Formação tributária, por sua vez, de uma Oficina de Ensino. O
terceiro capítulo introduz na discussão um elemento fundamental que, não obstante, nem
sempre tem estado presente no debate sobre a formação: trata-se da disciplina, mas a partir de
um enfoque em que o adjetivo escolar modifica radicalmente seu sentido em relação à
disciplina científica, conferindo-lhe a especificidade de disciplina escolar – nesse caso, então,
a disciplina escolar História ou a História Ensinada, de que fala Gabriel (2002). Vistos à
distância e em conjunto, os três capítulos buscam identificar uma certa insuficiência no
tratamento recebido pela formação de professores em nível superior, em cursos de
licenciatura, no debate e na pesquisa acadêmica, ao mesmo tempo em que vislumbra
alternativas a partir de questões propostas desde o campo do ensino.
15
A segunda parte – O Que Fazemos Para Formar? – compõe-se de cinco capítulos que, em
comum, dirigem o foco para a análise empírica de um caso de formação – o Curso de História
da Faculdade de Filosofia de Campos – cujo interesse maior repousa no desenvolvimento de
uma experiência instituinte estabelecida a partir das próprias demandas de seu grupo de
formadores, da apropriação que fazem do debate mais amplo sobre a formação docente, mas
também dos mecanismos de coerção que a política oficial de formação impõe sobre uma
instituição desprovida da proteção conferida pelo estatuto da autonomia universitária. No
primeiro capítulo, apresenta-se a FAFIC em um estilo despojado, quase literário (que serve,
inclusive, para explicitar os vínculos pessoais entre autor e instituição), além de situá-la
brevemente no processo de expansão do ensino superior, no Brasil. No segundo capítulo, o
Curso de História começa a ser examinado por dentro, identificando-se um longo tempo de
calmaria substituído, mais recentemente, por uma trajetória em que seus sujeitos, com
obstinada urgência, atiram-se em busca de soluções sem medo de experimentar – podendo
errar. Mas, afinal, de que matéria se faz esse tempo de turbulência? – é a pergunta que norteia
todo o capítulo. As fontes nas quais as respostas são procuradas constituem um vasto conjunto
de documentos curriculares produzidos no dia-a-dia da formação concreta.
O terceiro capítulo analisa o corpo de formadores, mas, sobretudo, uma parte deles – entre
novos e antigos, de formação endógena e exógena, com maiores ou menores vínculos com a
Educação Básica –, a partir de dois eixos principais: por um lado, num esboço de análise
praxeológica¸ pergunta-se como esses formadores percebem, concebem e se inserem no eco-
sistema da formação; por outro lado, em uma análise mais propriamente epistemológica,
pede-se que reflitam sobre os conhecimentos, os lugares e os dispositivos envolvidos na ação
concreta de formar. O quarto capítulo desvia-se momentaneamente do foco na instituição e no
Curso para mergulhar, de modo mais compreensivo do que explicativo, na legislação da
reforma (sobretudo Pareceres nº 9 e nº 28 de 2001, do Conselho Pleno do Conselho Nacional
de Educação). Trata-se de um estudo cujo objetivo é circunscrever os diferentes sentidos do
termo prática na legislação, preparando, na verdade, o último capítulo. Finalmente, partindo
de uma interrogação sobre a identidade do Curso – intenção acadêmica ou vocação
profissional –, o quinto capítulo dedica-se à análise do estágio, das práticas investigativas e da
produção discente de um trabalho de conclusão do Curso como modalidades de prática de
ensino ou simplesmente práticas, procurando evidenciar, nesse percurso, o processo de
autonomização de uma reflexão pedagógica entre os formadores capaz de inspirar o desenho
16
institucional e curricular de uma Oficina de Ensino, ou melhor, daquela Oficina de Formação
Docente para o Ensino de História, mencionada anteriormente.
Eis, enfim, no que consiste esta tese. Trata-se, no fundo e no final das contas, de uma tentativa
de por sentido em duas coisas ou, talvez, em duas direções: primeiro, na realidade tal como
ela se apresenta envolvendo sujeitos, seus conhecimentos e suas ações, esses artigos de fé,
segundo Nietzsche (2006: 126), sem os quais “ninguém suportaria viver!”; segundo, na
ambígua experiência deste autor, como sujeito entre sujeitos, formador entre formadores, mas
ao mesmo tempo, imaginando talvez que o método lhe confira o poder de descolar-se dessa
primeira realidade de modo que possa experimentar uma outra, quase uma supra-realidade,
submergindo na atividade de pesquisa para emergir um outro sujeito – agora do
conhecimento. À revelia dos formadores, no entanto, com seus artigos de fé, e deste autor
com sua tese, também em certo sentido um artigo de fé, restaria dizer que o fato de não ser
possível ou suportável viver sem tais qualidades e sem tais condições não prova nada em
favor delas. Isto porque, para prosseguir com Nietzsche (idem, ibidem) até as últimas
conseqüências, talvez não seja mesmo possível designar o nome que se inscreve por detrás da
verdade. Ou (o que dá no mesmo) para retomar a citação que serve de epígrafe geral a esta
tese:
“A vida não é um argumento; entre as condições da vida se poderia encontrar o erro”.
17
CAPÍTULO 1 – Da Provisão à Formação de Professores no Brasil (Estudos de
Pedagogia e História)
01. Preliminares
Os recentes terremotos provocados pela legislação que vem transformando a formação de
professores no Brasil, desde meados da década de 1990, tem um alvo a atingir e, portanto,
uma torre a derrubar: em busca de uma identidade própria, comum a todas as licenciaturas,
por contraste com a especificidade dos diversos bacharelados, trata de desconectar a formação
de professores da formação de pesquisadores e produtores de conhecimento nas áreas
específicas, sob o argumento de que é pedagógica e profissionalmente indispensável demolir
o famigerado “modelo 3 + 1”.
Os pareceres que fundamentam o arsenal da reforma, parte integrante do que a literatura vem
denominando de “labirinto legal”, empenham-se em construir um passado para si próprios,
em cuja lógica apareçam como a irrupção do “novo” na ordem dos fatos9. No contexto pós-
industrial e pós-moderno, de redemocratização e resgate da cidadania, característico da
década de 1980, as novas condições impõem a criação de uma nova escola e engendram os
materiais para uma nova concepção de um novo professor. Este novíssimo gênese produziu
uma primeira geração de reformas no campo educacional, entre a Constituição de 1988 e a
LDB de 1996, ingressando, desde então, numa segunda geração que tem na formação de
professores um de seus focos principais10.
O mergulho compreensivo frontal nesse universo da reforma – quase diria, na Matrix – é, de
fato, uma estratégia arriscada pela solidez da rede lógica que a constitui. Envolvendo e
articulando elementos numa política de “terra arrasada” que, simplesmente, desqualifica e
descarta o “velho”, os textos normativos procuram evidenciar o caráter inexorável e unívoco
das mudanças em curso. Assim, muda-se a formação de professores porque muda a educação
básica, porque mudou a sociedade brasileira e, afinal de contas, porque o mundo já não é mais
o mesmo. Neste contexto de reforma total, em que as estruturas educacionais vão-se
9 Sobre o “labirinto legal”, ver especialmente Linhares & Silva (2003). 10 O Parecer CNE/CP nº 9/2001 trata dessa questão especificamente no capítulo primeiro do Relatório. Saviani (1998) discute o delineamento da política educacional do período, sobretudo do ponto de vista das medidas que regulamentam a Lei nº 9394/1996. Segundo ele, tal política se traduz numa legislação complementar que paradoxalmente é não somente posterior, mas também prévia e concomitante à própria LDB.
19
adequando às novas estruturas sociais e culturais globais, a formação de professores,
obstáculo renitente à implementação de políticas educacionais, em todos os níveis, também
para adequar-se, deve se reformar. Essa reforma implica no enfrentamento de questões em
dois níveis distintos: o campo institucional e o campo curricular.
Ora, instituição e currículo, além de um presente, têm, também, ambos, um passado. Daí que
os problemas a que os documentos fazem referência e que buscam identificar e, por
conseguinte, superar, no bojo da reforma, podem ser considerados nessa dupla dimensão: uma
dimensão diacrônica ou histórica, implícita numa história da formação de professores, e,
ainda, uma dimensão sincrônica, propriamente pedagógica, envolvendo o esforço de leitura e
análise de práticas e modelos vigentes na formação. Essa dupla apreensão de questões
inerentes à formação de professores permite tentar uma aproximação alternativa ao software
da reforma. O presente trabalho reflete, ao menos, essa tentativa.
02. Sobre a identidade da licenciatura
A tendência expressa na atual legislação, de preparação exclusiva de professores, com
currículos e em institutos próprios, acenando para a especificidade e, portanto, para a
necessidade de construção de uma identidade das licenciaturas, no Brasil, contrasta, em
muitos sentidos, com o passado recente ou remoto. Em primeiro lugar, remete ao conjunto das
licenciaturas, como um todo, atravessando as segmentações tradicionais da formação, em
sentido longitudinal (separando professores primários e secundários) e transversal
(respeitando idiossincrasias nos diferentes campos disciplinares). Em segundo lugar, reflete o
estágio atual do processo de institucionalização da escola e o modo como trata a questão
recorrente do embate entre perspectivas de unidade e dualidade da estrutura escolar, tendo em
vista os objetivos dos diferentes sistemas, níveis e ramos do ensino11.
Mas também, e por último, sua consideração sinaliza para o próprio significado, ou para a
mudança de significados contidos na idéia de formação, permitindo que se desnaturalize a
impressão de que sempre houve ou de que sempre se considerou necessária a preparação para
o ensino. Nesse sentido, será possível distinguir entre formação e provisão de professores12,
11 Sobre o assunto, ver Nunes (2000). 12 Tema da seção 3 deste capítulo, resumido sobretudo na p. 28.
20
recuperando o processo em que se deu a consolidação da tese segundo a qual “o professorado
merecia preparo regular”13. A perspectiva histórica, portanto, ao derramar alguma luz sobre
esses três aspectos, mesmo que não esgote o assunto (e certamente estará longe disso nos
limites deste trabalho), deverá contribuir para o entendimento do projeto de formação docente
em pauta, das disputas que vem travando, além do próprio presente – que às vezes parece
pretender-se um presente eterno – das reformas.
Nesse sentido, então, fica inteiramente descartada a possibilidade de se pensar numa história
free-lance dos professores, de livre-pensadores desencarnados, em trajetória intelectual
fluindo solta no universo da cultura. Pelo contrário, a história social dos professores como
grupo que progressivamente se distingue, esboça uma identidade própria, institui modelos e
práticas de formação e pouco a pouco se profissionaliza, é, não só uma parte da história da
sociedade, como também uma dimensão inseparável da história da instituição e, portanto, da
institucionalização escolar no Brasil. Instituição e sujeitos, nesse caso, engendram e
mutuamente se enredam numa história comum. Segundo Giroux (1997: 28),
“qualquer tentativa de reformular o papel dos educadores deve partir da questão mais ampla de como encarar o propósito da escolarização”.
03. “Não só do seu préstimo, mas dos seus costumes”14:
a provisão de professores
Concluindo seu trabalho magistral na década de 1970, Romanelli (1997) procura sustentar a
tese de que a educação brasileira, refletindo a integração de fatores econômicos, sociais,
políticos e culturais, experimentou uma longa continuidade desde as primeiras iniciativas
catequéticas empreendidas pelos jesuítas, no século XVI, até as décadas iniciais do século
XX. Segundo a autora, o desequilíbrio causado pela expansão da demanda potencial e efetiva
da educação acabou por desintegrar aqueles fatores, levando a um descompasso entre as
exigências do desenvolvimento e as permanências estruturais do velho modelo educacional,
cuja crise manifesta-se nas tentativas reformistas que marcaram o período compreendido entre
1930 e 1964.
13 Cf. Tanuri (2000: 67). 14 Brasil (1768). In: www.unicamp.br/iel/memoria/Acervo/ .
21
Assim, o crescimento demográfico fazendo expandir a demanda potencial e pressionando a
estreita oferta de ensino, mas, sobretudo, os processos de industrialização e de urbanização,
ampliando a demanda efetiva e colocando em cheque os limites do velho modelo
aristocrático, derivado do sistema jesuítico, sobre-determinados pela modernização
conservadora e pelo modelo de desenvolvimento calcado na dependência externa, explicam,
segundo Romanelli (1997: 35), a expansão deficiente da educação no período, tanto do ponto
de vista quantitativo (baixa oferta, baixo rendimento, discriminação e elitismo) quanto
estrutural (expansão sem mudança), a despeito da crítica liberal e de sua relativa influência
nas reformas, ou mesmo por sua causa. Para a autora,
“foi ela, a educação dada pelos jesuítas, transformada em educação de classe, com as características que tão bem distinguiam a aristocracia rural brasileira, que atravessou todo o período colonial e imperial e atingiu o período republicano, sem ter sofrido, em suas bases, qualquer modificação estrutural, mesmo quando a demanda social de educação começou a aumentar, atingindo as camadas mais baixas da população e obrigando a sociedade a ampliar sua oferta escolar”.
Certamente, os historiadores da educação e os historiadores em geral relutariam em persistir
na aceitação da tese da “grande continuidade”, quer se refira ao sistema educacional, quer
mesmo, e talvez principalmente, remeta às estruturas sociais. Pesquisas mais recentes, de
caráter menos ensaístico15 e apoiadas em acervos documentais mais amplos e mais variados,
sobretudo no rastro da expansão dos programas de pós-graduação em História e Educação,
têm contribuído para matizar um pouco mais essa interpretação. Assim, segundo Falcon
(1982)16, no quadro de uma “problemática européia” distingue-se uma “perspectiva ibérica”
em que os elementos definidores da modernidade são firmemente barrados em Portugal, até o
século XVIII, quando, então, inicia-se o processo de desmantelamento da estrutura jesuítica
de ensino.
Movidos pelo duplo objetivo de formar letrados eruditos, mas principalmente de recrutar fiéis
e servidores, no contexto da contra-reforma católica da Europa moderna, os padres jesuítas
foram capazes de organizar e administrar, sobretudo no Novo Mundo, um verdadeiro sistema
educacional, incluindo praticamente todos os níveis de ensino, cuja expressão mais acabada
foram os dezenove colégios criados entre Belém e Sacramento. Para além deles, contudo, a 15 Embora não seja esse o caso de Romanelli (1997), tal caráter era relativamente comum na produção historiográfica daquele período. 16 Falcon (1982, especialmente “A problemática ibérica”, pp. 149-160).
22
estrutura comportava ainda escolas elementares, núcleos missionários nas aldeias, instrução
doméstica para as famílias mais abonadas, além das aulas avulsas na Congregação do
Oratório, em fins do século XVII, e dos seminários episcopais criados, um no Rio de Janeiro,
em 1739, e outro em Mariana, em 175017.
Para além dessa obra monumental, contudo, que consolidava a forma escolar colégio em toda
a extensão da novidade que ela então representava18, os colégios jesuíticos instalaram uma
dualidade essencial e duradoura no coração da estrutura educacional que a emergente
sociedade nacional brasileira do século XIX receberá por herança desses tempos coloniais.
Segundo Nunes (2000: 38),
“nasceram (os colégios) da política de separação instaurada pela ordem jesuítica entre o ensino de humanidades destinado aos filhos dos colonos mais abastados e o ensino destinado aos indígenas, voltado preponderantemente para a catequese e oferecido nas casas de ensino”.
Pode-se observar, assim, uma apreciação no mínimo ambígua na forma pela qual a literatura
se refere a este sistema jesuítico. De um lado, Romanelli (1997: 34) parece denunciar seu
apego ao dogma e à tradição escolástica, o desinteresse e a repugnância que dispensa à ciência
e às atividades técnicas e artísticas, o que, em última análise, caracterizaria, na Colônia, a
educação modelada pela Metrópole, “que se manteve fechada e irredutível ao espírito crítico
e de análise, à pesquisa e à experimentação”. Por outro lado, Neves (2000: 55)19 procura
compreender tais características à luz de seu próprio tempo, assinalando que
“ao reunir a preocupação da ‘devotio moderna’ de aprimorar a fé com a cultura clássica do humanismo renascentista, foram os jesuítas no mundo católico, os que melhor revelaram o potencial de uma ‘pedagogia’, ao transformá-la em contra-ofensiva ao desafio protestante”.
17 Segundo Romanelli (1997), “os padres acabaram ministrando, em princípio, educação elementar para a população índia e branca em geral (salvo as mulheres), educação média para os homens da classe dominante, parte da qual continuou nos colégios preparando-se para o ingresso na classe sacerdotal, e educação superior religiosa só para essa última. A parte da população escolar que não seguia a carreira eclesiástica encaminhava-se para a Europa, a fim de completar os estudos na Universidade de Coimbra, de onde deviam voltar os letrados” (p. 35). De acordo ainda com Mendonça (2000), até o início do século XIX, Coimbra havia “graduado mais de 2500 jovens nascidos no Brasil” (p. 133). 18 Conforme Nunes (2000), os colégios representava uma inovação em quatro dimensões: o espaço, o tempo, a seleção de aspectos sócio-culturais e a estrutura de poder. Ver especialmente p. 37. 19 Neves (2000).
23
Entretanto, para toda essa diversidade de formas e a despeito das interpretações que tenha
suscitado a ação educacional dos jesuítas, os professores dentre eles tinham uma mesma e
única modalidade de recrutamento e de preparação. A rigor, transmitia-se não só o que se
sabia, mas fundamentalmente o que se era ou o que se tornava desejável ser. Segundo Neves
(2000: 55), sobretudo nos colégios, a programação minuciosa de atividades e a criação de um
ambiente artificial para o ensino onde fosse possível recortar e elidir a cultura externa, trazida
de berço, constituíam “instrumentos disciplinadores de uma população turbulenta”,
estratégia crucial na educação dos fiéis. Levando em conta, pois, que a atribuição de mestres
era constitutiva da condição de servidores, observa-se que
“especialmente com a Ratio studiorum de 1599, eles desenvolveram um conjunto de instruções para seus professores, verdadeiras referências para todas as iniciativas educacionais posteriores”.
A percepção da vulnerabilidade portuguesa no concerto das monarquias européias, desde fins
do século XVII, despertando setores importantes da administração pública – os chamados
“estrangeirados” – para a necessidade de reestruturar as instituições do Reino, preparando
novos quadros sintonizados com a emergência de uma “razão de Estado”, característica de
uma modernidade tardia em Portugal, põe em xeque o controle que os padres exerciam sobre
o trabalho de formação das novas gerações. A perspectiva de um ensino leigo, mais adequado
ao caráter secular e imanente da nova realidade e dos novos tempos, manifesta-se, por
exemplo, na publicação dos “Apontamentos para educação de um menino nobre”, de
Martinho de Mendonça de Pina e Proença, em 1734, e do “Verdadeiro método de estudar”,
de Luís António Verney, em 1746.
É nesse contexto que, em meados do século XVIII, deflagra-se em Portugal um forte
movimento reformista, capitaneado pelo Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal, cuja
primeira fase, entre 1759 e 1768, inicia-se com o fechamento dos colégios inacianos,
condenação de seus métodos, criação das aulas régias e abertura de exame de admissão para
licenciar e prover os novos mestres, cujo trabalho deveria pautar-se nas “Instruções para os
Professores de Gramática Latina, Grega, Hebraica, e de Retórica, ordenadas e mandadas
publicar, por El Rei Nosso Senhor, para o uso nas Escolas novamente fundadas nestes
Reinos, e seus Domínios”, em 175920. A multiplicação das aulas régias, sobretudo a partir de
20 Fonseca (2003: 108). Tais instruções acompanham o Alvará Régio de 28 de junho de 1759.
24
1768, com a criação do subsídio literário e a inclusão de cadeiras de ler e escrever, implica,
segundo Romanelli (1997: 36), na origem da presença estatal no campo da educação. Segundo
essa autora,
“a uniformidade da ação pedagógica, a perfeita transição de um nível escolar para outro, a graduação, foram substituídas pela diversificação das disciplinas isoladas. Leigos começavam a ser introduzidos no ensino e o Estado assumiu, pela primeira vez, os encargos da educação”.
Desprovidos de qualquer formação prévia, licenciados e providos no curso da própria
admissão, conduzindo de forma independente suas aulas, geralmente em suas próprias casas,
sem noção de turma ou de seriação, reunindo em torno de si um grupamento numeroso e
heterogêneo, plurietário e multiseriado de alunos recebendo atenção individualizada, os novos
professores régios encarnavam o sentido da secularização moderna em Portugal,
particularmente no que se refere ao ingresso de leigos no ensino. Razoável supor que seu
recrutamento dar-se-á naquele pequeno contingente de letrados não religiosos, egressos do
sistema jesuítico de ensino – mesmo que uma boa parte dos novos mestres ainda seja
constituída por padres21 e mesmo que o preenchimento dos cargos volte a ser feito
principalmente por eclesiásticos com a ascensão de D. Maria I, a partir de 1777.
Na América Portuguesa, as aulas régias serão regulamentadas mediante iniciativas como a
que fez aparecer, em 12 de maio de 1768, o “Estatuto que hão de observar os mestres das
escollas dos meninos nesta capitania de S. Paulo, remetido pelo Governador e Capitão-
general de São Paulo, Luís António de Souza ao Conde de Oeiras”. Note-se de passagem
que, querendo organizar e estruturar as aulas régias na capitania, o Estatuto dirige-se aos
mestres para disciplinar-lhes os passos, evidenciando, ao mesmo tempo, um determinado
modelo de formação quando ainda não havia propriamente formação. Tal processo de
institucionalização do sujeito impõe regras de admissão na categoria, estabelece
procedimentos de administração para controle da escolla que está nos mestres e define,
mesmo que de forma rudimentar, enfim, na dimensão do ensino stricto sensu, suas finalidades
gerais, seus conteúdos e materiais didático-pedagógicos, além de dispositivos internos e
externos de avaliação não só do adiantamento dos alunos, como também dos methodos
adotados pelos professores.
21 Padres não jesuítas, evidentemente. A propósito, Sangenis (2006) investiga o processo de silenciamento da atuação de outras ordens religiosas, sobretudo os franciscanos, na educação brasileira.
25
Proposto pela Câmara e provisionado ou licenciado mediante aprovação do General, o
quantitativo de professores é rigorosamente fixado “para que não suceda ser instruída a
mocidade com pessoas menos idôneas” (item 4 do Estatuto). Tal verificação e aprovação,
sujeita a exame “com pleno conhecimento e exacta indagação, não só do seu préstimo, mas
dos seus costumes” (item 6), pode ser suspensa ou revogada a qualquer tempo, especialmente
ao final do ano letivo, quando, conduzindo os meninos para demonstração na Sala do General,
o mestre deve submeter o methodo de sua escola, “não só para ser louvado o seu
merecimento, se o tiver, como para se lhe darem as providencias que forem necessárias”
(item 8). Dentre as atribuições do mestre provisionado, além de admitir seus meninos com
despacho do General, “para que os possão castigar livremente” (item 2), exige-se que
controle a evasão, encaminhe anualmente relação nominal à Secretaria e conduza os próprios
alunos ao ato público de avaliação no dia do patrono escolhido pela escola.
Quanto ao ensino, em tese o professor escolhe seu methodo (ao final avaliado no ato da Salla
do General), mas os objetivos, os materiais, o nivelamento e a promoção, além dos
procedimentos de avaliação, são todos fixados no Estatuto. Por exemplo, a passagem do
menino ao estudo da língua latina e estudos maiores dar-se-á mediante licença, informada
pelo mestre, evidenciando que “se achão bem instruídos no ler, escrever e contar, e bons
costumes, (...) e mais necessários fundamentos, da Religião Christã e obrigações civis” (item
3). Quanto ao material didático, serão os mestres “obrigados a ensinar pelo livro do Andrade,
e seguir em tudo aquellas regras que no principio do dito livro se prescrevem” (item 7),
recomendando-se ainda o livro “Educação de hum menino nobre” e as “Obrigações civis”,
de Cícero. Exceto ao nomear expressamente conteúdos conceituais a serem aprendidos, o
Estatuto tem a emoldurá-lo a preocupação primeira e constante com a formação religiosa,
moral e civil, tanto dos Meninos quanto dos Mestres. Afinal, restam cada vez menos dúvidas
quanto à importância da instrução para esse mundo reformado, constituído senão mais de
servidores eclesiásticos e de fiéis, ao menos de súditos obedientes ao poder do Estado.
Do ponto de vista, portanto, da institucionalização da escola, no sentido em que Nunes (2000:
37) se refere ao surgimento e à multiplicação da forma escolar colégio na Europa, a partir do
século XIII, como um processo que resulta na criação de “instituições organizadas e
regulamentadas com um método moderno de ensino”, ao mesmo tempo “menos complexas
que a Universitas medieval e, portanto, mais funcionais e eficazes para a transmissão dos
26
conhecimentos”, parece não haver dúvidas de que as aulas régias configuram um recuo ou
uma involução, em face do sistema jesuítico. De fato, toda a concepção inovadora que os
colégios inauguraram, sobretudo no início dos tempos modernos, i) substituindo locais
dispersos mantidos por professores independentes por um prédio único, com diversas salas de
aulas, tornando possível “o controle, a racionalização e a planificação dos estudos, a
vigilância dos alunos, a gestão centralizada”, além ii) da sistematização e do reordenamento
do tempo em função da rotina escolar, iii) da gradação sistemática e da divisão das matérias,
iv) subordinando tudo isso a um “poder moderno mediante uma organização burocrática”, ia
sendo irremediavelmente perdida com a criação das aulas isoladas e avulsas.
Considerando, então, o grau de abrangência e de inclusão da população atendida no âmbito
dos conflitos que faziam recuar a estrita oralidade em face da cultura letrada, como também
os limites da presença do Estado em um contexto em que a escola e seus serviços (instrução,
formação, civilização) não constituíam ainda, claramente, demandas sociais e valores
cultivados como um bem em si mesmo, o desastre pode ter sido ainda maior. Talvez sob um
único aspecto – o do comprometimento do poder público com a educação e a conseqüente
laicização relativa do ensino – as aulas régias expressem um lampejo de contemporaneidade.
Mesmo assim, é preciso cuidado com a contraposição entre espaços e ações públicas e
privadas no período, na medida em que sua imbricação constitui, segundo Gouvêa (2000: 16),
“um dado estrutural da sociedade colonial, aproximando-a, portanto, das sociedades típicas
de Antigo Regime”22. Isso talvez explique, afinal, o extremo cuidado com que o Estatuto de
1768 estabelece a regulação e o controle dos mestres, posto que agora, mais do que nunca,
eles são a escola.
A propósito, há um último aspecto a considerar nesse momento crítico de substituição do
modelo jesuítico pelas aulas e professores régios. Trata-se do processo de recrutamento,
seleção, posse e investidura dos mestres em suas atividades de ensino. Mesmo que não se
possa dizer que entre os padres houvesse propriamente um esforço deliberado de formação,
no sentido de processos formais mediante os quais fosse constituída “uma mentalidade, um
caráter ou um conhecimento profissional”23, suas atividades de ensino ultrapassavam o
conjunto de instruções contidas na Ratio Studiorum, de 1599, articulando-se ao projeto
missionário e unindo-se de forma indissociável à própria condição de sacerdote. A reposição
22 Gouvea (2000). 23 Ferreira (s/d: 645).
27
tanto de padres quanto de professores, naquelas condições, era um único e mesmo processo:
filhos de famílias proprietárias freqüentando os seminários e colégios da Ordem,
transformavam-se em elementos do clero secular, retornando à sociedade como tios-padres e
capelães de engenho, por extensão, mestres-escola e preceptores, reiniciando o processo nas
escolas elementares, núcleos missionários e instrução doméstica...
Interrompida essa circularidade duplamente formadora – de padres e de professores –, devem
agora as próprias autoridades providenciar o suprimento de mestres (e certamente do
segmento acima sairá uma outra parte dos novos professores régios, ao lado daquele
contingente de letrados não religiosos, mencionado anteriormente) e seu enquadramento nas
regras, agora públicas, da docência. Aos procedimentos que visam a investir alguém nos
misteres do ofício, concedendo-lhe permissão para exercer como prático uma determinada
profissão, denomina-se provisão. A idéia de provisionamento esteve, por muito tempo,
associada aos exames mediante os quais eram os mestres admitidos publicamente à prática do
magistério, nas cadeiras ou cargos então existentes. Provisão sem formação, finalmente, de
professores para as aulas régias, exige cuidados e supõe controle e coerção: sob o signo
estreito da vigilância do Estado e da violência simbólica nascia, no Brasil, a carreira do
magistério.
04. Dirigentes imperiais e formadores do povo:
primeiros tempos da formação
Terá ficado claro, até aqui, a direção que se procura imprimir ao texto? A rigor, freqüenta-se
neste capítulo uma história da formação de professores (antes que uma outra dimensão
sincrônica ou propriamente pedagógica, dedicada à análise de práticas e modelos) como
estratégia que visa apreciar e apreender o significado da Reforma em curso, no âmbito da
formação de professores, no Brasil, desde a segunda metade da década de 199024. A
abordagem histórica, longe de pretender uma improvável “reconstituição de tudo”,
reconhecendo mesmo que a política implementada pela Reforma focaliza principalmente os
níveis institucional e curricular, acompanha fundamentalmente o curso de três eixos
principais, embora não fique inteiramente restrita a eles. Trata, em primeiro lugar, de
24 Que, por sua vez, insurge contra o modelo original de formação de professores, criado no bojo do processo de fundação tardia da universidade, no Brasil, na década de 1930.
28
considerar a tensão existente entre uma perspectiva que busca uma identidade para a
docência, em contraste com as diversas segmentações que atravessam o campo. Tal
identidade parece estar ligada à importância assumida pela noção de prática no novo
paradigma, tanto no contexto da formação quanto no processo de profissionalização do
professor.
Em segundo lugar, posto que a história do formar não se dissocia da história dos espaços onde
não só se forma, mas também para os quais se forma, trata de envolver e articular a história da
formação a uma história da instituição e da institucionalização escolar. Marcada pela
dualidade estrutural básica, de que fala Nunes (2000), o processo de escolarização, no Brasil,
transcende a formação, a ela atribuindo significado e sentido. Finalmente, discutindo
concepções de “formação”, ao distinguir dela e especificar a idéia de “provisão”, na
perspectiva de processos mutuamente implicados no atendimento à demanda pelo ensino,
trata de considerar o fato de que, afinal de contas, a exigência de formar não esteve presente
desde o princípio do reconhecimento da necessidade de ensinar. Os problemas,
respectivamente, de identidade, escolarização e concepções de formar e prover, então (e não a
crença na existência de alguma improvável continuidade entre o passado e o presente),
estiveram presentes no esboço anterior – como estarão na seqüência – desta breve história da
formação de professores no Brasil.
Assim, pois, na virada dos séculos XVIII e XIX, pouca coisa havia mudado em relação ao que
se viu anteriormente, e talvez para pior. Alvorecia o oitocentos sob o signo da desorganização
e do abandono do ensino, sem que o poder público se ocupasse efetivamente de sua expansão
e sem que a sociedade reconhecesse nele um valor e um bem por cuja conquista valesse a
pena lutar; nascia com ele, também, uma instrução, agora pública, reduzida às aulas régias
avulsas e insuficientes, tanto do ponto de vista da garantia da aquisição de conhecimentos
quanto da atenção a uma demanda, de fato inexistente; nascia, enfim, como um tempo em que
os professores eram providos, mas não formados, brevemente instruídos em regras e
exigências burocráticas e longamente fiscalizados pelo olhar vigilante de estatutos e
regulamentos, além de mal remunerados e em número reduzido. A relativa laicização das
aulas, ou melhor, a introdução parcial de leigos na atividade do ensino e a presença reguladora
do Estado, que assumia, pela primeira vez, os encargos da educação, parecia não representar,
desse modo, ganhos reais nem de extensão, nem de qualidade, embora representasse, isso sim,
um acréscimo de autoridade.
29
O impacto da chegada da corte ao Rio de Janeiro, em princípios de 1808, e sua longa
permanência na antiga colônia, subitamente erigida à condição de sede do império português,
altera em muitos aspectos a rotina dos fatos. A esse respeito, Cardoso (1990: 105 e 107,
respectivamente) afirma mesmo que “com a instalação da corte e do governo de Portugal no
Rio o Brasil deixou, na prática e definitivamente, de ser uma colônia”, muito embora,
observando de um outro ponto de vista, continuasse sendo “estruturalmente, uma sociedade
colonial”. Segundo o historiador, a antiga capital
“tornara-se sede de ministérios, secretarias, tribunais, repartições públicas, de um Conselho de Estado, outro de Fazenda (...); sua população aumentara de chofre talvez em 50 %, o que trouxe imensos problemas num primeiro momento. Depois, tal população continuou a crescer, em ritmo superior ao do já considerável incremento que vinha sofrendo desde o século anterior (...). A presença da corte, as medidas de fomento e o próprio aumento demográfico fizeram surgir numerosas manufaturas na cidade.” (Cardoso, 1990: 105 e 106).
Se a instrução primária, pública e “popular”, apresentava-se desorganizada e em abandono
quase completo, com professores apenas providos e em número insuficiente, se bem que a
demanda não chegasse a criar uma urgência para as autoridades portuguesas estabelecidas na
colônia desde 1808, o ambiente cultural tendia a se expandir e ganhar uma certa sofisticação
com a chegada da Corte e a criação dos primeiros cursos superiores não-teológicos no
Brasil25. Segundo Cunha (2003), inspirado no modelo francês, o príncipe regente criou
cátedras isoladas e avulsas de ensino superior para a formação de profissionais: de Anatomia
e de Cirurgia, em 1808, e de Engenharia, no interior da Academia Militar, em 1810. Outros
cursos, além de equipamentos culturais diversos que garantissem a sobrevivência da corte na
colônia, iam sendo criados, completando-se, em 1827, a tríade de cursos profissionais
superiores, com a criação dos cursos jurídicos26. Segundo Cunha (2003: 154):
“Essas eram unidades de ensino de extrema simplicidade, consistindo num professor que com seus próprios meios ensinava seus alunos em locais improvisados”.
25 Conforme assinala Neves (2000), uma visão secular não estaria de todo ausente mesmo no currículo dos cursos jesuíticos. O Seminário de Olinda, por exemplo, criado em 1800, incluía os conhecimentos úteis das ciências naturais no interior da cadeira de filosofia. 26 Uma cronologia parcial de cursos superiores e de equipamentos culturais encontra-se no Apêndice I.
30
Com a atenção voltada especificamente para o processo de constituição do ensino superior no
Brasil, Cunha (2003: 153) destaca ainda a ruptura e a novidade que então se verifica: trata-se,
pois, não de uma longa continuidade – em Romanelli (1997), derivada das permanências
estruturais supostamente presentes na sociedade brasileira –, mas de uma tardia refundação e
da constituição de um sistema todo estatal, sob responsabilidade do governo imperial:
“o ensino superior brasileiro como o conhecemos hoje não descendeu, em nenhum aspecto, do enorme edifício que os jesuítas erigiram na colônia. As instituições de ensino superior atualmente existentes resultaram da multiplicação e da diferenciação das instituições criadas no início do século XIX (...). O novo ensino superior nasceu, assim, sob o signo do Estado nacional.”.
Para além daquela expansão demográfica, mencionada linhas atrás, como também de toda
essa dilatação do ambiente cultural destinado à Corte, a diversificação de funções públicas e o
desenvolvimento de atividades econômicas contribuem para tornar a sociedade mais
complexa e estratificada, sobretudo após a emancipação política, em 1822, com o surgimento
e a expansão de setores intermediários urbanos, de onde serão recrutados os novos quadros
para as funções burocráticas, administrativas e intelectuais, para o jornalismo, as letras, as
profissões liberais e a política. A interpretação de Romanelli (1997: 38) atribui importância
histórica transcendental a esta camada intermediária, identificando nela uma contradição
fundamental: se de um lado ela não pode evitar “relações de dependência com a aristocracia
rural”, por outro lado ela mantém (talvez mais pela exigência lógica do próprio modelo
explicativo utilizado pela autora, a instaurar uma teleologia na ordem dos fatos, do que
propriamente pela explicitação de um projeto de classe) uma “ligação com a ideologia
burguesa”, revolucionária na Europa.
A solução dessa contradição, favorável ao pólo progressista e revolucionário, traduz-se na
vitória burguesa que explica, para a autora, num primeiro momento, a abolição e a república
e, no momento seguinte, o advento do capitalismo industrial no Brasil. Enquanto não se
produzem as condições históricas objetivas, demoradas, mas inevitáveis, a camada
intermediária urbana, em sua expansão, faz crescer a demanda pela educação escolar. Aliás,
sua importância na política, como dependente e aliada da classe oligárquico-rural, “se deve
sobretudo ao instrumento de que dispôs para afirmar-se como classe: a educação
escolarizada” (Romanelli, 1997: 37). Por isso mesmo, “o ensino que essa classe procura era
justamente aquele que se proporcionava à própria classe dominante, porque era o único que
31
‘classificava’” (idem, ibidem: 37). Eis, portanto, o significado último da instrução pública
para a autora: um ensino que funcionava como distintivo de classe, símbolo de status e meio
de individualização e ascensão social. As condições do futuro parecem inexoravelmente dadas
no passado.
No entanto, fica a impressão de que faltam outras mediações nessa visão de Romanelli
(1997). Sobretudo, parece faltar a explicitação de um movimento na constituição da classe e
de uma dinâmica na sua relação com outras classes, como numa pintura em que os sujeitos se
encontram na iminência do gesto pressentido, jamais completamente realizado27. As classes,
nesta leitura (embora um dado estrutural da sociedade em questão) irrompem como
construções lógicas do próprio modelo explicativo, não tendo jamais que percorrer um
caminho concreto, feito de circunstâncias inesperadas e de escolhas imprevisíveis, para
construírem-se historicamente. As mediações, de cuja ausência se ressente aqui, parecem em
parte contempladas, por exemplo, na leitura de Mattos (1999), para quem esses setores
médios urbanos constituem não propriamente uma classe (ou pelo menos não se diferenciam
nem se constroem enquanto tal, no período em questão), mas espaço social de expansão da
classe senhorial28, em construção entre as décadas de 1830 e 1850, período denominado pelo
autor de Tempo Saquarema.
Mattos (1999: 142-143) concebe a existência desses grupos intermediários no interior de uma dimensão pública profundamente hierarquizada. Tal hierarquização, segundo o autor:
“unia, de um lado, todos os súditos ao imperador, desde o mais pobre dos cidadãos da mais distante freguesia do ‘Sertão’ até o senador do Império ou o conselheiro de Estado; e ligava, de outro, cada um dos homens livres tanto àqueles que se encontravam acima quanto aos que se encontravam abaixo na escala hierárquica, por meio de uma cadeia de lealdades e fidelidades, gerada por um processo cumulativo de favores e encargos recíprocos, cadeia essa que ‘não só promovia, sucessivamente, a eliminação de um existir autônomo’, como também conferia a cada um daqueles que se distinguiam por serem homens –isto é, livres – um lugar no cosmos social”.
27 Como na leitura de Foucault para o quadro Las Meninas, de Velásquez. Cf. FOUCAULT (1981). 28 “Quando operamos com o conceito de classe senhorial estamos operando com uma categoria histórica, e não com uma mera classificação que leva em consideração o lugar ocupado por um conjunto de indivíduos no mundo da produção e a relação que mantêm com uma outra classe fundamental. Estamos considerando, antes de mais nada, uma trajetória assinalada por inúmeras lutas, trajetória essa à qual não é estranha a direção saquarema. Assim, a natureza da classe e seus elementos de coesão –sua identidade, em suma – aparecem como resultados de experiências comuns vividas por determinados homens, experiências essas que lhes possibilitam sentir e identificar seus interesses como algo que lhes é comum, e desta forma contrapor-se a outros grupos de homens cujos interesses são diferentes e mesmo antagônicos aos seus”. Cf. MATTOS (1999).
32
Mas, ainda mais, para além da eliminação de qualquer descontinuidade no bojo dessa
totalidade hierarquizada, que tendesse, no limite, a romper com a própria hierarquia, o projeto
saquarema incluía, no entender do historiador, a promoção de associações e a difusão de uma
civilização que implicava na constituição da Coroa como um Partido. Nesse sentido:
“Ela se apresenta por meio da figura do imperador – homem culto e ilustrado, de cuja formação se cuidara com esmero –, mas não se resume a ele. Ela deve conter, e efetivamente contém, diversificados elementos, agrupados em segmentos, os quais, neste Império que tem o seu território reificado por aqueles que o dominam e dirigem, parecem estar dispostos em círculos concêntricos traçados a partir do Paço” (1999: 170).
Os segmentos que se dispõem em “círculos concêntricos”, desde o Paço, distinguem o que o
autor denomina de dirigentes29 imperiais “mais próximos” e “mais distantes”, além de “um
estrato intermediário, constituído por aqueles elementos que articulam os ‘mais distantes’ e
os ‘mais próximos’, colocando-os (...) ‘em contato não só físico, mas moral e intelectual’”30.
Referindo-se aos elementos que ocupavam os “círculos concêntricos” mais distantes do Paço,
Mattos (1999) inclui entre eles “aqueles contingentes que, vivendo em cidades de diverso
porte, exercem atividades no comércio a retalho, no tabelionato e no funcionalismo, entre
outras” (idem, inidem: 170). Inclui também um determinado conjunto de homens livres que,
aderindo a uma Ordem “fundada no nexo colonial e na existência da escravidão (...) não
derivavam diretamente dela, embora dela não deixassem de depender: notários e
subdelegados de polícia; pequenos comerciantes e empregados públicos; clérigos e
professores” (idem ibidem: 269).
Incluir esses segmentos, além de outros, no projeto de expansão da classe senhorial,
preservando as hierarquias e exclusões previamente constituídas, implica, para Mattos (1999),
não só em fundar e garantir a unidade territorial e política do Império, mas também em criar
29 “Ora, se quando assim procedemos o Estado deixa de ser entendido unicamente como um aparelho de dominação, também não deixamos de ‘deslocar’ ou ‘ampliar’ o conceito de dirigentes (propriamente falando, de dirigentes saquaremas), os quais não mais se restringem aos ‘empregados públicos’ encarregados da administração do Estado nos seus diferentes níveis. Por dirigentes saquaremas estamos entendendo um conjunto que engloba tanto a alta burocracia imperial – senadores, magistrados, ministros e conselheiros de Estados, bispos, entre outros – quanto os proprietários rurais localizados nas mais diversas regiões e nos mais distantes pontos do Império, mas que orientam suas ações pelos parâmetros fixados pelos dirigentes imperiais, além dos professores, médicos, jornalistas, literatos e demais agentes ‘não-públicos’ –um conjunto unificado tanto pela adesão aos princípios de Ordem e Civilização quanto pela ação visando a sua difusão”. Cf. Mattos (1999: 3-4) 30 Cf. 1999: 171. No final desta citação o autor transcreve palavras de A. Gramsci, extraídas de “Maquiavel, a política e o Estado moderno”.
33
as condições essenciais para a produção de um consenso que constitui, em última análise, o
processo crucial de formação do povo31. Neste processo, em que a educação desempenha um
papel central,
“ganhava um significado vivo a definição constitucional de que ‘o Império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros’” (Mattos, 1999: 261).
Compreende-se aqui o cerne da divergência entre Mattos (1999) e Romanelli (1997):
enquanto para esta a educação constitui instrumento de individualização da camada média
urbana como classe, para aquele representa a estratégia fundamental dos dirigentes
saquaremas para orientar o processo de formação do povo, produzindo o consenso que, em
última análise, garante a expansão da classe senhorial. Entende-se também, neste quadro
teórico de referência, o significado profundo daquela dualidade básica percebida por Nunes
(2000), segundo a qual a instrução primária forma o povo, em geral; o ensino secundário, com
seu caráter propedêutico, destina-se à elite ou àquelas parcelas superiores do povo cujas
atividades não chegam a demandar o ensino superior; e, finalmente, o ensino superior
destinado especialmente aos segmentos “mais próximos” dos dirigentes imperiais.
Este é o quadro mais amplo de referências teóricas em que é preciso pensar o significado de
formar no século XIX, sempre articulado não só aos sujeitos e espaços de formação, mas
também à institucionalização escolar, destino último de atuação profissional dos formados.
Afinal, será indispensável a formação para o reconhecimento da condição de professor e para
o exercício do magistério? Em que consiste, exatamente, o processo formativo, em que nível
se situa e a que modalidade de instrução se destina? Em que saberes se forma, mas, sobretudo,
para que práticas? Antes de mais nada, é preciso que se diga que, no sentido estrito de formar,
não se conheceu no período em questão outra formação que não fosse a do professor
primário. Mesmo assim, à exceção talvez do laboratório saquarema, em que se transformara
a província fluminense, esta formação foi, por todo lado, incerta e atribulada.
31 “A formação do povo consistia, em primeiro lugar, tanto em distinguir cada um dos cidadãos futuros da massa de escravos quanto em resgatá-los da barbárie. Mas não deveria deter-se aí: o abandono (de ‘idéias errôneas de um falso liberalismo’, no entender de um contemporâneo) a que se procedia era também a retomada dos princípios diferenciadores e hierarquizantes presentes na sociedade, de modo a evidenciar para cada um o papel que se lhe reservava em função da posição que ocupava”. Cf. Mattos (1999: 260).
34
Talvez não fosse demais lembrar que, se a formação de professores permanecia ausente em
boa parte do dezenove (ou em todo ele, se se pensar em mestres portadores de saberes
específicos, relacionados ao currículo do ensino secundário), sua provisão beneficiava-se
potencialmente, pelo menos, de um ambiente mais rico, que progressivamente se diferenciava
e sofisticava. Se ainda não se reconhecia de todo a necessidade de um saber para ensinar,
tornava-se mais evidente a necessidade de que, para além dos conteúdos específicos a ensinar,
importava socializar, isto é, criar condições regulares e estáveis para que mestres e alunos
compartilhassem de todo um ambiente de civilização e ordem que então se constituía. Talvez
se possa dizer que, naquele contexto, um professor se fazia com um pouco de conhecimento a
instruir e bastante de civilização e ordem a compartilhar, ou melhor, de bastante a educar. E
que o fundamental era o domínio dos objetos de instrução e de educação, e não propriamente
dos meios ou dos modos pelos quais se instruía e educava.
Dizendo de outro modo, o século XIX parece apresentar-se, de fato, como o domínio do
inespecífico: aparentemente, há muito pouco, quase nenhuma especificidade a formar,
imprimindo-se no professor, tanto do ponto de vista do saber a ensinar ou dos conteúdos do
ensino, quanto do ponto de vista do saber ensinar ou do domínio de meios apropriados para
desenvolver a aprendizagem de outrem. Alguns almanaques publicados em Campos dos
Goytacazes – RJ, na segunda metade do século XIX, estão repletos de anúncios de
professores oriundos do Rio de Janeiro, que fundam escolas e oferecem seus serviços à
sociedade local32. Na maioria dos casos, eles são os únicos professores de um sem número de
conteúdos, às vezes de todos, passando pelo ensino da língua pátria, noções de história e de
geografia, matemática até o nível de proporções, além de religião, atividades domésticas e
conhecimentos do comércio33.
Nesse sentido, é preciso cautela para lidar com o tempo. A importância do passado para a
compreensão do presente pode estar principalmente na percepção do contraste e da diferença,
e não exatamente numa simples confirmação dos mesmos problemas e das mesmas respostas,
ou na extensão para trás de uma linha contínua de acontecimentos dispostos em sucessão e
seqüência. O tempo aparece, desse modo, como expressão de relações entre os homens e, ao 32 Cf. Alvarenga (1881 e 1884). 33 Embora A Constituição de 1824 seja absolutamente econômica no que se refere à instrução, tratando do assunto apenas em dois incisos do artigo 179, o último da Carta outorgada, a questão do ensino parece ter sido objeto de discussões mais amplas (cf. Fávero, 1996). O artigo 252 do chamado Projeto Antônio Carlos, de fato, dispunha que “é livre a cada cidadão abrir aulas para o ensino público, contando que responda pelos abusos” (Sucupira, 1996: 55).
35
mesmo tempo, como algo que existe para desempenhar um papel: “o papel de um agente
histórico ele também (...) como uma espécie de novo personagem que tende a englobar e
subordinar todos os demais, necessariamente” (Mattos, 1999: 271).
Assim, dizer que boa parte do século XIX, para a sociedade concreta que se constituía no
Brasil, apresentava-se como o domínio de um tempo onde os conhecimentos preservavam
ainda um forte caráter de inespecificidade, significa dizer que tais conhecimentos
permanecem, em grande medida, tributários de uma cultura literária, em que as ciências
representam, quando muito, um vulto à distância. Buscar nesse tempo o fio da continuidade e
da sucessão, que o torna ligado a um presente de hiperespecialização dos conhecimentos, de
verdadeira hipertrofia da ciência e da técnica, pode levar a que se procure lá o que não está
presente senão aqui. De fato, nesse sentido tornam-se oportunas as palavras do memorialista
que, ao término da segunda década do dezenove, não encontrando, segundo seus critérios,
condições pessoais e culturais para o dizer (a verdade científica da História), resigna-se a
coligir subsídios na composição de suas memórias:
“Persuadido por último de ser útil à História, e muitas vezes preciso narrar certas miudezas de fatos, receei menos o fastio do leitor, cuja censura devo supor que seja modificada; e confio na benignidade do Público, haja de desculpar o atrevimento desta empresa, certo de que, cuidadozo só de lhe dirigir o fruto das minhas aplicações, não me desvelei na arte, na pureza, e na graça de dizer (circunstâncias menos precisas que a verdade, ídolo principal da História), ocupando-me mais em coligir os subsídios, que devem servir de base a quem, com pena culta, destra, hábil e judiciosa, convier a composição de uma História perfeita do Continente Brasiliense, e muito particularmente dos que serviram de assunto para se formalizarem as presentes Memórias”34.
É, portanto, nesse contexto que é preciso considerar os limites da noção de formar – de
formar o professor, bem especificado – e a importância que segue tendo, até fins daquele
século, das práticas e dos procedimentos próprios do prover: indispensável será o
recrutamento daqueles que se encontram plenamente inseridos no interior de uma cultura
geral, letrada e literária, para compartilhar saberes e valores necessários à construção e
diuturna reconstrução de um determinado projeto, no qual pontificam ideais de ordem e de
civilização (mais tarde de progresso). Quanto a iniciar-se no domínio de conhecimentos e
saberes específicos do campo científico e docente, trata-se de questão de outro tempo,
emergente apenas no contexto de criação da universidade, no Brasil, e de início da formação 34 ARAÚJO (1945). O texto foi produzido em 1819. Grifos adicionados.
36
de professores destinados ao tratamento dessa mesma especificidade, por esse motivo,
necessariamente em nível superior.
05. A formação de professores em nível superior:
da tensão polarizada à tensa triangulação de modelos
Baseando-se em pesquisas de António Nóvoa, Monteiro (2005) localiza o momento de
estruturação da escola em fins da Idade Média. Seu desenvolvimento, a partir do século XVI,
articulado à atuação da Igreja Católica, baseia-se na idéia de que o homem é moldável pela
ação racional organizada. O estímulo à leitura da Bíblia e de sua interpretação livre pelo fiel,
no âmbito da Reforma, contribui para a emergência de uma cultura dominada pela escrita.
Entre os séculos XVI e XVIII, o papel educativo das comunidades e da família desloca-se
para a escola e para os professores, fazendo com que leigos e religiosos dedicassem
progressivamente mais tempo ao ensino. Se ainda não se pode falar propriamente em
profissão ou profissionalização, é certa a emergência dos professores como um grupo social
específico e autônomo, dotado de um corpo de saberes e de técnicas, de um conjunto de
normas e valores correspondentes, responsáveis pelo ensino. Por intermédio da escolarização
da sociedade, da especialização do ensino e da diferenciação social dos responsáveis por ele –
os professores – construía-se o campo educacional.
A consolidação dos modernos Estados nacionais, no século XVIII, e a exigência de controle
ideológico visando sua própria reprodução, força a secularização do sistema escolar e sua
conseqüente estatização. No Brasil, este processo foi descrito por Mattos (1999), no âmbito
da implementação do que o historiador denomina de um projeto ou de um tempo saquarema,
sobretudo entre a quarta e quinta década do século XIX. Ao processo segundo o qual o Estado
assume a responsabilidade pela provisão dos mestres – isto é, seu recrutamento, seleção e
nomeação, mas também enquadramento e fiscalização de seus préstimos e de seus costumes,
conforme se viu anteriormente – desvinculando-os da comunidade e concedendo-lhes
autonomia em relação aos párocos e autoridades locais, delimitando o campo profissional do
ensino e definindo um determinado perfil de competências técnicas, denomina-se
funcionarização. Por isso se diz que é “o enquadramento estatal que institui os professores
como corpo profissional, e não uma concepção corporativa de ofício” (Nóvoa, apud
Monteiro, 2005: 158).
37
Secularização, estatização, funcionarização, provisão, enfim, dos professores, sem que, no
entanto, se possa falar em formação: pode-se dizer que o magistério ia sendo
profissionalizado mediante a construção de uma unidade apenas extrínseca, ainda, dos
professores, sem uma identidade intrínseca. Tal identidade esboça-se a partir do
reconhecimento da importância de uma formação específica e especializada, por um lado, e
do empenho na organização de associações profissionais, por outro. Tais organizações se
estruturam em torno de três reivindicações principais, segundo Monteiro (2005: 160):
“melhora do estatuto, controle da profissão e definição de uma carreira”. Já a formação
institucionaliza-se, em meados do século XIX, com a criação das escolas normais,
permanecendo restrita à preparação dos professores para a escola primária. Os professores das
disciplinas específicas do currículo da escola secundária permanecerão providos e sem
formação sistemática ainda por muito tempo, por mais um século, pelo menos.
Importante observar que o movimento de configuração da profissão docente, do qual a
formação inicial de professores constitui um dispositivo essencial, como se viu, na medida em
que contribui para a construção de sua identidade intrínseca, complexifica-se no final do
século XIX, com a tendência à feminização do magistério, atingindo seu apogeu, segundo
Monteiro (2005: 161), nas primeiras décadas do século seguinte. No Brasil, tal percurso irá
desembocar, juntamente com outros afluentes, no caudal dos anos da década de 1930, em que
o aparecimento da universidade, reunindo os antigos cursos profissionais de nível superior
(ver Apêndice I) e acrescentando a eles a novidade acadêmica dos “altos estudos
desinteressados”, institui também, a meio caminho entre o acadêmico e o profissional, a
formação de professores para as disciplinas do currículo da escola secundária, em cursos de
licenciatura. Pela primeira vez com formação em nível superior, o professor terá, desde então,
sua identidade cindida entre o bacharel acadêmico e o profissional com habilitação para o
trabalho especializado no ensino.
Outro parece ter sido o percurso que deveria culminar, também nos anos 30 do século
passado, por um lado, na criação dos cursos de História no interior das recém-fundadas
universidades brasileiras e, por outro lado, no aparecimento quase sincronizado de um
conjunto de trabalhos historiográficos, marco da moderna historiografia brasileira, cujos
autores e cujas obras inaugurais configuram um momento que se poderia qualificar como de
38
uma certa “invenção do Brasil”35. Dentre eles, pode-se mencionar “Evolução política do
Brasil” (1933), mas, sobretudo, “Formação do Brasil contemporâneo” (1942), de Caio Prado
Jr; “Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia
patriarcal” (1933), de Gilberto Freyre; e “Raízes do Brasil” (1936), de Sérgio Buarque de
Holanda. Ambos os percursos – de formação universitária de professores e de invenção
historiográfica do Brasil –, embora paralelos, afluem em parte para a universidade, que os põe
em contato mediante a manipulação química de substâncias curriculares, configurando o que a
literatura especializada denomina de modelo 3 + 1.
Praticamente desde a origem – ou desde esse primeiro gênese na construção de uma
identidade intrínseca para a profissão docente, cuja formação passa a se dar em nível
superior36 – os professores são submetidos, no dizer de Monteiro (2005: 160-162), a uma
dupla desqualificação37: desqualificação teórico-política, por um lado, seja pela valorização
de aspectos científicos na educação, cuja ênfase transita do ensinar ao aprender, no âmbito das
formulações renovadoras, seja ainda pela crítica à escola como agência de reprodução das
desigualdades, no interior da qual os professores se apresentam como agentes responsáveis
pelo controle simbólico e pela inculcação da ideologia dominante; desqualificação sócio-
cultural, por outro lado, na medida em que os processos correlatos de industrialização e de
urbanização da sociedade brasileira, a partir dos anos 50, redefinindo as demandas pela
escolarização, exigem recrutamento em massa de professores crescentemente proletarizados e
subordinados no interior de estruturas educacionais cada vez mais amplas e complexas. Nesse
sentido,
“a atividade docente foi se tornando alvo de reformas que buscavam simplificar e controlar suas ações, através da implantação de um modelo técnico-burocrático com procedimentos padronizados, e que eram ensinados e divulgados nas instâncias de formação inicial e continuada” (Monteiro, 2005: 162).
35 A revista Novos Estudos CEBRAP, nº 18, de setembro de 1987, celebra a tríade formada por Caio Prado Jr, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, como os “Inventores do Brasil”. 36 Note-se que está sendo tratada aqui a formação docente em licenciatura, isto é, para as disciplinas do currículo da escola pós-primária, sem que se queira subestimar a importância pioneira da escola normal para a construção daquela mencionada identidade intrínseca da profissão docente. 37 Ayres (2005: 186-188) sugere ainda, com exemplos abundantes nas fontes, que se possa falar de uma desqualificação sutil também no próprio ambiente acadêmico de formação. Apenas a título de exemplo, a argumentação da autora registra opiniões que vão de Lourenço Filho, para quem aos professores não são exigidas a mesma capacidade ou as mesmas aptidões intelectuais que aos pesquisadores, até Menezes (apud Ayres, 2005: 188), segundo o qual “a universidade tem aceitado formar professores como espécie de tarifa que ela paga para poder ‘fazer ciência em paz’”.
39
Tal tendência desqualificadora do trabalho e da profissão docente parece não só presente
ainda hoje na sociedade brasileira, mas talvez até mesmo ampliada e aprofundada, sobretudo
em face da concorrência oferecida pela mídia no que se refere às artes de ensinar (ou, melhor
dizendo, aos recursos de que dispõe para transmitir e fixar conhecimentos e informações) e à
superação das distâncias e dos tempos (mediante estratégias de tele-educação cujo impacto
deve ser avaliado em se tratando de um país com as dimensões físicas e os contrastes sociais
do Brasil), características da condição pós-moderna. Não obstante tudo isso, é possível
observar em segmentos da pesquisa acadêmico-científica e, em menor escala ainda, no
interior da própria profissão docente, a articulação de mecanismos teóricos e práticos de
resistência, sobretudo a partir da década de 1980. Tais mecanismos vêm sendo inventariados38
a partir de suas origens vinculadas a uma perspectiva pragmatista, segundo a qual a melhoria
da educação depende, dentre outros fatores, do efeito docente e da melhoria da formação, por
sua vez, apoiada na investigação dos saberes próprios da profissão.
Importante contribuição, nesse sentido, apresenta-se como desdobramento do trabalho
realizado pelo pesquisador canadense Maurice Tardif, envolvendo pesquisas sobre a
formação, mas, sobretudo, sobre a socialização e a profissão docente na perspectiva dos
saberes utilizados, produzidos e mobilizados pelos professores na ação concreta de trabalho.
Partindo de um enfoque interacionista e subjetivista de pesquisa, em que os conhecimentos
são indissociáveis dos atores e seus contextos de produção, Tardif tem inspirado o
desenvolvimento de uma postura e de uma atitude não-normativa de pesquisa, segundo a qual
importa compreender a identidade profissional dos professores, buscando identificar aquilo
que eles são, sabem e fazem, e não prescrever, de forma apriorística e externa em relação à
sua prática, o que eles devem ser, saber e fazer. Tal enfoque aponta no sentido da constituição
de um novo profissionalismo (ou, nos termos utilizados em uma versão mais atualizada do
artigo seminal de Tardif, Lessard e Lahaye, publicado no Brasil em 1991, de uma nova
profissionalidade), cuja âncora fundamental sejam os saberes experienciais docentes.
Segundo Tardif (2002: 54),
“os saberes experienciais surgem como núcleo vital do saber docente, núcleo a partir do qual os professores tentam transformar suas relações de exterioridade com os saberes em relações de interioridade com sua própria prática. Nesse sentido, os saberes experienciais não são saberes como os demais; são, ao contrário, formados de todos os demais, mas retraduzidos, ‘polidos’ e
38 Ver, sobretudo, Gauthier (1998) e Monteiro (2002).
40
submetidos às certezas construídas na prática e na experiência. Entretanto, para concluir, caberia perguntar se o corpo docente não lucraria em liberar os seus saberes da prática cotidiana e da experiência vivida, de modo a levá-los a serem reconhecidos por outros grupos produtores de saberes e impor-se, desse modo, enquanto grupo produtor de um saber oriundo de sua prática e sobre o qual poderia reivindicar um controle socialmente legítimo”.
Eis, portanto, a tensão que parece se colocar, no presente, para a profissão e para a formação
docente: por um lado, aprofunda-se o processo de sua desqualificação teórico-política e sócio-
cultural (além daquela nem sempre implícita – por vezes explícita, mesmo – que consiste em
ignorar sua especificidade no próprio ambiente da formação); por outro lado, estratégias de
resistência e de afirmação de uma identidade sócio-profissional, empreendendo a busca por
um novo profissionalismo com foco nos saberes e ênfase na experiência construída na ação
concreta de trabalho docente, assumindo a centralidade constitutiva de uma forte articulação
teoria-prática. Como responder a ela ou, por outra, como esta tese e a pesquisa que lhe deu
origem assume e procura responder a essa tensão? Ora, talvez se possa apontar em direção a
três estratégias fundamentais que se procura desenvolver aqui.
A primeira delas consiste em colocar a formação de professores, em geral, mas
particularmente aquela que se dá em nível superior, nos cursos de licenciatura, em perspectiva
histórica, identificando seus dois gêneses ou, dizendo de outro modo, o ato inaugural de suas
duas supostas tradições, embora reconhecendo a impossibilidade de reduzir o complexo
quadro de concepções e alternativas práticas de formação à lógica razoavelmente homogênea
que as identifica. O primeiro gênese, identificado a uma condição de atopia intrínseca,
corresponderia a um panorama de afirmação discursiva da importância da licenciatura39 em
um contexto institucional de subordinação ou de pura e simples indiferença, formando-se o
professor como conseqüência de se formar bacharel nos diversos campos de conhecimento
acadêmico-científico-cultural. Tal contexto consiste naquilo a que a literatura especializada
denomina, do ponto de vista teórico, de modelo da racionalidade técnica (Contreras, 2002) ou
ainda, do ponto de vista da organização institucional e curricular, de modelo 3 + 1. O segundo
gênese, analisado, sobretudo na dimensão das concepções de prática que procura expressar,
39 Segundo Ayres (2005: 187 e 188, respectivamente), nos tempos do Ministro Capanema, “se, por um lado, os professores da FNFi tinham como expectativa desenvolver a ciência brasileira, por meio da formação de um bacharel-pesquisador, por outro lado, não podiam abrir mão, ao menos em nível do discurso, da formação de professores e esta servia como argumento e defesa para suas pretensões”. Por ocasião da Reforma Universitária de 1968, “a separação entre as Faculdades de Educação e os Institutos específicos faz com que os cursos de licenciatura não pertençam organicamente a nenhuma das duas unidades, tendo ficado abandonados no interior das universidades, constituindo-se em um patinho feio que ninguém queria verdadeiramente assumir”
41
no capítulo 7 desta tese, identifica-se a uma formação de resultados, consistindo em um
modelo de racionalidade prática.
A segunda estratégia mediante a qual se procura enfrentar, nesta tese, a tensão entre a
desqualificação e a resistência e re-identificação sócio-profissional dos professores como
questão teórico-prática consiste em avaliar o modo mesmo como essa questão tem sido
proposta no debate acadêmico que focaliza a formação docente. O ponto de partida, nesse
caso, deve ser, naturalmente, o reconhecimento de que nem tudo anda bem na formação ou de
que, por outro lado, a tensão, de fato, existe. Uma posição bastante fértil parece ser aquela que
traduz a tensão acima numa tensão entre matrizes que remete a projetos formativos expressos
em cursos de licenciatura e de bacharelado: basicamente, tensão entre a formação do
professor e a formação do bacharel, em cada área específica. A relação entre ambos os
projetos, no entanto, muito mais do que por contatos externos ou meramente formais, invade e
conforma o interior de cada formação, reproduzindo endogenamente a tensão entre matrizes.
No interior da licenciatura, em particular, as matrizes são então traduzidas em conhecimentos
de bacharel – a disciplina específica e suas fronteiras – e conhecimentos de professor –
educacionais ou pedagógicos lato sensu –, em todo caso conhecimentos acadêmicos, sempre,
justapostos no currículo da formação.
Ora, o que se pergunta, no entanto, é se raciocinar a partir de uma tensão polarizada entre
matrizes no projeto da formação de professores permitiria, de fato, romper com os esquemas
postos em vigor pelas tradições inerentes ao modelo teórico da racionalidade técnica ou pelo
modelo institucional e curricular chamado 3 + 1. Até que ponto esse raciocínio levaria a
considerar os mesmos antigos elementos em jogo na formação, operando com a sua própria
lógica e alterando apenas a sua economia interna, sem conseguir ultrapassar, efetivamente,
aqueles modelos, na medida em que, ou mantém a escola e a experiência docente alijadas do
processo de formação de novos profissionais, tendo em vista o desenvolvimento da missão
institucional da escola e a reconstrução da experiência docente, os se os considera – a escola e
a docência – considera-os apenas na perspectiva de objetos do conhecimento acadêmico-
científico. Nesse caso, então, parecem mantidas as velhas hierarquias entre universidade e
escola, entre teoria e prática e, enfim, entre ciência e existência.
Poder-se-ia argumentar que a afirmação reiterada de uma identidade específica da licenciatura
que aprofunde a sua distinção em relação ao bacharelado contribuiria para rebaixar e
42
desqualificar a formação de professores, na medida em que se colocaria a serviço (ou pelo
menos iria ao encontro dos interesses) de grupos econômicos e sociais hegemônicos, por um
lado, e que, por outro, poderia desconectar os professores do lugar da ciência e da pesquisa
acadêmica. Não obstante, a atopia intrínseca a que se fez referência anteriormente, assim
como o discurso idiossincrático de setores acadêmicos em relação ao ensino, à escola e ao
escolar, à profissão e à profissionalização docente permite interrogar se uma vinculação
subordinada estaria contribuindo para valorizar a licenciatura ou se, pelo contrário, i)
prosseguiria impedindo o desenvolvimento de uma reflexão mais consistente sobre a
formação de professores; ii) viria contribuir para a consolidação de uma opacidade em relação
à disciplina escolar, pressupondo sua identidade prolongada desde a ciência de referência; ou
ainda, iii) contribuiria para ampliar uma relativa miopia em relação ao chão da escola e à sala
de aula, bem como aos sujeitos que nela transitam.
Nesse sentido, a perspectiva que se procura considerar aqui sugere a possibilidade de ir além
de uma tensão polarizada de matrizes, avançando em direção a uma triangulação tensa de
matrizes ou de fontes da formação docente, partindo do pressuposto de que a produção
científica do conhecimento e o ensino escolar dos saberes são atividades diferentes, mas nem
por isso opostas e contraditórias. Ambas são necessárias e devem ser tratadas na formação,
seja em espaços internos à universidade, seja ainda em espaços externos, sobretudo escolares,
articulando-se em torno de três eixos curriculares fundamentais: o eixo da produção científica,
tanto na ciência específica quanto no campo educacional; o eixo dos saberes profissionais tais
como se apresentam na reflexão acadêmica ou como saberes docentes, liberados da ação para
reconhecimento por outros grupos produtores de saberes e expressos sob a forma de cultura
em ação; e, finalmente, o eixo dos saberes escolares. Note-se que essa triangulação de
matrizes não impõe o deslocamento da formação da universidade para a escola, muito embora
reconheça a impossibilidade de se formar sem a escola e sem a docência40 consideradas em si
mesmas, e não como objeto dos conhecimentos universitários.
Finalmente, a terceira e última estratégia para o enfrentamento da tensão desqualificação
versus afirmação identitária de professores, na perspectiva de sua formação inicial, consiste
40 Do mesmo modo, a relação entre universidade, por um lado, e escola e docência, por outro, não se traduz em uma segmentação e em uma respectiva espacialização da relação entre teorias e práticas. Mais uma vez, segundo Tardif (2000:121), “a relação entre a pesquisa universitária e o trabalho docente nunca é a relação entre uma teoria e uma prática, mas é sempre, ao contrário, uma relação entre atores, entre sujeitos cujas práticas são portadoras de saberes”.
43
em desenvolver uma pesquisa empírica que permita considerar a importância dos múltiplos
caminhos e movimentos instituintes que constroem a riqueza de experiências formativas no
panorama plural e diverso da realidade educacional brasileira. Trata-se, nesse caso, do
processo de formação de professores de História empreendido pelo Curso de História da
Faculdade de Filosofia de Campos, em um determinado contexto institucional e segundo um
desenho curricular que se procurou denominar de Oficina de Formação Docente para o ensino
de História. Toda a segunda parte desta tese dedica-se à apresentação e às discussões dos
resultados obtidos e das questões suscitadas pela pesquisa.
44
CAPÍTULO 2 – A Oficina de Ensino e a Formação de Professores
Perceber é conceber
(Octavio Paz)
01. Da oficina de História à oficina de Ensino
Numa obra metodológica que deixara inacabada ao morrer, fuzilado que fora pelos nazistas na
Segunda Guerra Mundial, o historiador francês Marc Bloch dirigia-se expressamente a duas
audiências especiais. A primeira, um menino filho de historiador que pedia: “Papai, me
explica então para que serve a história” (Bloch, 2001: 41). A segunda, o soldado que assistia
atônito à ocupação de Paris pelos alemães, em junho de 1940, perguntando-se: “É possível
acreditar que a história nos tenha enganado?” (idem, ibidem: 43). Grande refundador da
ciência histórica, Bloch não poderia permitir-se, simplesmente, concordar, por um lado, com
Langlois e Seignobos, descartando por ociosidade o problema colocado pelo menino;
tampouco deveria decidir-se pela irremediável condenação da história, dada a sua
incapacidade de servir utilitariamente à ação. Ambos mereciam uma resposta e o historiador
pôs-se a escrevê-la.
Mas sua tarefa não era simples. Estava convencido de que ambas as questões remetiam ao
problema da legitimidade da história, portanto ao imperativo de “saber falar, no mesmo tom,
aos doutos e aos escolares” (idem, ibidem: 41). Sabia que era preciso, em sua resposta,
dirigir-se a todos, “mas simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos” (idem,
ibidem: 41). Ciente de que era preciso escrever não “unicamente, nem tampouco sobretudo,
para o uso interno da oficina” (idem, ibidem: 49), põe-se a refletir sobre a história e o ofício
de historiador. A utilidade pragmática, aqui, não pode ser senão secundária em relação à
legitimidade intelectual, para a qual é preciso compreender primeiro para agir sensatamente
depois, estabelecendo relações explicativas entre os fenômenos e explicitando
progressivamente sua própria intelegibilidade.
As lições fundamentais de Bloch ajudaram a formar, desde então, mais de uma geração de
historiadores, convencidos da necessidade de superar o paradigma constituído a partir das
ciências da natureza, de inspiração positivista. Entretanto, a despeito de todo reconhecimento
45
e de tantas ressalvas, parece não ter sido possível contemplar integralmente o projeto
ecumênico de, no mesmo tom, falar para todos: o historiador permanece grandioso, de pé no
umbral da oficina, dirigindo-se a esta terceira audiência especial – seus pares –, mesmo que
para lembrá-la incessantemente de um certo compromisso com o projeto irrealizado.
Em outra parte, ainda, Bloch lembrará que a história “não é apenas uma ciência em marcha.
É também uma ciência na infância” (idem, ibidem: 47). Até o final daquele século, a história
irá se distanciar progressivamente dessa infância, enfrentando, não obstante, dolorosas crises
de crescimento e renovando, algumas vezes, seus problemas, suas abordagens e seus objetos.
Nessa trajetória, no interior do discurso histórico e das exigências de sua produção,
rigorosamente instituída pela comunidade profissional dos historiadores, aprimora-se cada vez
mais esta palavra dirigida aos doutos41. Do mesmo modo, as demandas específicas daquelas
outras duas audiências – os escolares e, de uma maneira geral, em termos mais adequados aos
tempos que correm, o público consumidor de mídia – complexificam-se e exigem,
progressivamente, um produto em uma linguagem mais compatível com suas respectivas
identidades.
Interessa aqui, mais precisamente, essa especificidade do produto e da linguagem histórica ou
historiográfica dirigida aos escolares, isto é, aos alunos da escola. E, ainda mais, a
especificidade também dos sujeitos socialmente encarregados da orquestração de ambos –
produto e linguagem – em condições especialmente constituídas para tal, ou seja, em
condições escolares: os professores. Enfim, professores e alunos, sujeitos da escola,
encontram-se diante de algo que é um conhecimento: a História. Mas que História é essa?
Teria chegado finalmente o momento da realização plena daquela legitimidade proposta pelo
historiador – para o qual tornou-se possível falar, “no mesmo tom, aos doutos e aos
escolares” – ou a oficina aqui é outra?
De fato, o problema em questão pode ser formulado da seguinte maneira: se existe uma
oficina da História com sujeitos próprios, construindo objetos a partir de práticas e
instrumentos teóricos e metodológicos específicos, existirá também uma outra oficina, vizinha
a ela e comunicante por acessos internos, com seus respectivos sujeitos, saberes e práticas: a
41 Sobre o assunto, ver a coleção “História” (novos problemas, novas abordagens e novos objetos), organizada por J. Le Goff e P. Nora, publicada no Brasil em 3 volumes pela Editora Francisco Alves, em meados dos anos 70. Ver também Boutier & Julia (1998).
46
oficina do Ensino? Certamente, embora com aspectos epistemológicos e axiológicos
particulares, o problema não é exclusivo da História. Antes, segue compartilhado por todos
aqueles campos do conhecimento que lograram uma correspondência neste lugar
relativamente autônomo e absolutamente relevante (estratégico, dirão alguns) que é o
currículo escolar. É preciso tratá-lo, por isso mesmo, de dois pontos de vista distintos e
complementares: o da História e o da Educação42.
A própria utilização do termo Ensino de História remete a uma tensão intrínseca
incontornável: por um lado, trata-se de ensino, sobretudo escolar, de conteúdos curriculares,
isto é, subordinados a finalidades escolares, destinados à aprendizagem de alunos em distintas
faixas etárias e, portanto, em diferentes momentos de formação pessoal e de socialização,
ensino esse dispensado por sujeitos profissionais, especialmente formados para tal e
reconhecidamente dotados de saberes e de subjetividade; por outro lado, trata-se do ensino da
História, uma legítima ciência, segundo Bloch, e uma disciplina que, para Ana Monteiro
(2002: 3) é essencial porque deve “auxiliar os alunos a compreender a historicidade da vida
social, superando visões imediatistas, fatalistas, que naturalizam o social”.
Pensar a relação entre História e Ensino na perspectiva de uma relativa duplicidade de
oficinas exige que se coloque em questão o problema da relação – mas também da distinção –
entre as identidades de historiadores e de professores. Trata-se, de fato, de identidades cujas
naturezas são verdadeiramente singulares e irredutíveis, referentes a sujeitos sociais e
profissionais distintos, ipso facto, embora envolvidos numa relação de complementaridade
dialógica, ou de apenas uma identidade que se desdobra em diferentes ocupações, ambas
produtoras do conhecimento historiográfico em “diferentes níveis de registro”43?
Ana Monteiro investigou a oficina de saberes e práticas no Ensino de História em sua tese de
doutorado (embora aparentemente não se deva atribuir a ela a radicalidade com que a questão
vem sendo tratada aqui), procurando entender de que forma quatro professores de História
bem sucedidos “mobilizam os saberes que dominam para lidar com os saberes que ensinam”
(Monteiro, 2003: 7). Outra maneira de acessar essa oficina de Ensino por contraste com a
oficina da História consiste em focalizar o modo pelo qual esses profissionais – professores e
42 Gabriel (2002) propõe o conceito de História-Ensinada, situando-o na tensão entre a razão histórica e a razão pedagógica. 43 Fonseca (1993: 118-133, passim).
47
historiadores, respectivamente – são formados. Nesse caso, então, a discussão desvia-se para a
questão das diferentes concepções ou dos diferentes modelos de formação de professores e de
bacharéis, iniciados no Brasil concomitantemente à criação da universidade, na primeira
metade do século passado44.
02. O debate sobre modelos na formação de professores
Pensar neste problema do ponto de vista dos modelos ou concepções de formação permite,
por outro lado, simultaneamente, uma interpretação das origens e uma inserção no debate
contemporâneo acerca dos novos rumos que uma legislação recente vem propondo, sobretudo
a partir da Lei nº 9394/96 (LDBEN). Numa pequena obra produzida no calor da hora, Célia
Linhares e Waldeck Carneiro da Silva45 sugerem que a reforma em curso na formação de
professores, no Brasil, adota uma perspectiva de terra arrasada em relação ao passado.
Pretendendo constituir-se sobre os escombros de um mundo em ruínas, num espetáculo em
que se parece pretender criar tudo de novo, desde o verbo, a reforma apresenta-se, de fato,
como uma espécie de novo gênese.
Se isto é verdade, presencia-se então, na atualidade, um segundo gênese, posto que o primeiro
efetivamente ocorreu no momento em que se instalou a formação de professores em nível
superior, nos cursos de licenciatura, e a formação respectiva e concomitante de bacharéis, no
contexto dos anos 1930. Cada um desses dois gêneses, no entanto, parece engendrar um
paradigma próprio para a formação, a partir de racionalidades distintas – embora não
necessariamente contraditórias. No primeiro caso, observa-se o que vai sendo chamado de
modelo ou paradigma da racionalidade técnica; no segundo, o paradigma ou o modelo da
racionalidade prática.
Paralelamente a isso, a consciência social crítica que emerge dos movimentos organizados de
educadores – não sei se diria que também constitui um outro modelo ou paradigma –
44 As discussões aqui apresentadas beneficiaram-se do esforço coletivo do grupo de pesquisa em formação de professores, do Programa de Pós-Graduação em Educação, da FE/UFF, especialmente em face do texto “Compreendendo distintas concepções de formar: uma análise das relações entre teoria e prática nos modelos de formação de professores”, produzido por Mariana Lima Vilela. Integram o referido grupo: Sandra Escovedo Selles (Coord.), Ana Cléa B. M. Ayres, Daniele Tavares, Everardo Paiva de Andrade, Marcele Xavier Torres, Márcia Serra Ferreira, Margarida Gomes e Mariana Lima Vilela. 45 Linhares & Silva (2003).
48
apresenta uma interpelação e uma contraposição aos modelos vigentes, cujo caráter oficial
decorre do fato de que sua vigência é fruto de políticas públicas mediante as quais o Estado
brasileiro interfere na educação, em geral, e na formação de professores, em particular. Essa
interpelação tem-se apresentado como expressão do modelo de professor como intelectual
crítico que, não obstante expressas divergências antepostas aos dois modelos, anteriormente
mencionados, deixa dúvidas quanto à efetividade de uma ruptura em relação a eles. Digamos,
então, que estamos em face de dois modelos de formação e de docência e de uma interpelação
crítica permanente, que, em todo caso, nunca chegam a instaurar uma contradição que resulte
em ruptura, mas tão somente diferenças, divergências e complementaridades recíprocas.
Ainda que não se pretenda uma apreciação conclusiva ou exaustiva do debate acerca dos
modelos, nunca é demais apontar para um horizonte de superação de seus impasses, seja
sublinhando, por um lado, a extrema persistência de uma lógica pautada na racionalidade
técnica, seja ainda, por outro lado, buscando conexões entre elementos não contraditórios de
uma lógica da racionalidade prática e daquela interpelação crítica. O objetivo aqui é
procurar incorporar outras contribuições ao pensar a formação e a docência, particularmente
as problemáticas da cultura escolar e dos saberes docentes, sem ignorar as hierarquias sociais
e as relações de poder que determinam, em última instância, o fenômeno educativo. Daí a
importância de explicitar concepções de docência e de formar, de teoria e de prática (e suas
respectivas matrizes teórico-metodológicas), além dos distintos projetos de sociedade,
implícitos nas políticas públicas para o setor.
Em primeiro lugar, por que se diz que o paradigma da racionalidade técnica constitui um
gênese? Porque, sob seu domínio, constitui-se o ato inaugural da licenciatura, concomitante
ao ato inaugural do bacharelado e da própria instituição universitária, no Brasil. Ao fazer
surgir tudo ao mesmo tempo, o demiurgo trouxe para a formação de professores aquilo que,
segundo Isabelle Stengers (apud Vilela, 2004), constitui a primeira expressão da racionalidade
científica moderna: a construção do objeto galileano. As conseqüentes concepções de teoria,
de prática, de técnica, de relação entre teoria e prática, de professor e de formar trazem, todas,
a marca original da supervalorização, ou melhor, da sacralização do conhecimento científico
legitimado (a causa naturalizada), que subordina a técnica (como ciência aplicada) que
subordina a prática (como aplicação da técnica).
49
De acordo com essa concepção, o professor é o sujeito da aplicação prática – sujeito
desprovido de saber próprio – e a formação implica na apropriação hábil, mas sem
questionamento do que (a ciência) e do como (a técnica) ensinar, prescritos externamente.
Pode-se acrescentar ainda outros problemas, para além das muitas objeções que uma
racionalidade prática irá opor a esse modelo. Se, em tese, na formação, o professor deveria
apropriar-se do que e do como ensinar, sem questionamento, apenas para desenvolver
habilidades de aplicação, na prática, como os formadores de professores são sujeitos da teoria
e da técnica, pelo modo como esse primeiro gênese sobrepôs o bacharelado à licenciatura,
instaura-se uma fenda precoce – quase diria, uma esquizofrenia – na identidade docente: o
professor assim formado insiste em ser, ao mesmo tempo, sujeito da teoria e da técnica, por
um lado, e da aplicação prática, por outro.
Paralelamente a isso, a racionalidade técnica criou um senso comum segundo o qual aquilo
que se ensina é ou deve ser o conhecimento científico (a causa naturalizada, o saber
sacralizado): por isso é que o professor é um sujeito que se define sempre aquém de uma
condição ideal, de sublime porta-voz da ciência intocável. E se, porém, a escola for
considerada “verdadeiramente criadora de configurações cognitivas e de habitus
originais”46? Finalmente, a articulação entre teoria e prática, nesse modelo, constitui um
continuum que se estende desde um máximo de teoria (onde supostamente a prática aproxima-
se de zero), passando pela técnica como ciência aplicada (onde a prática é prescrita), até o
mundo de máxima prática (desprovido de teoria ou próximo de um ponto de teoria zero). A
esse vazio na interseção é que se atribui a característica de uma dicotomia entre teoria e
prática.
E o segundo gênese, ou melhor, por que a racionalidade prática constituiria um novo gênese?
Ora, porque ele se constrói a partir de um aprofundamento, de uma inversão e de uma outra
sacralização, mas sempre manuseando os mesmos materiais do gênese anterior, embora numa
perspectiva que pretenda a sua desconstrução e a sua completa substituição: do velho mundo
não restará pedra sobre pedra, mas com as mesmas pedras será edificado um novo mundo que
se distingue do outro e que supera, ponto por ponto, o antigo. Denuncia a simplificação do
processo educativo na racionalidade técnica, concebido como mera aplicação de soluções já
46 Lopes (1999).
50
disponíveis a problemas já formulados. Afirma, inversamente, a complexidade do real, onde
problemas e soluções não estão colocados e os conhecimentos devem ser, afinal, produzidos.
Questiona, além disso, a noção de objetividade (correspondência entre coisa e causa isenta
dos equívocos e imprecisões do sujeito), na medida em que o sujeito compreende e modifica a
realidade e, nesse mesmo movimento, elabora o conhecimento pela via da reflexão. Recusa a
mediação técnica na educação a partir da distinção aristotélica entre técnica e prática e elabora
suas próprias concepções de professor, de formar, de prática, de teoria e de relação entre
teoria e prática. Nesse último caso, para melhor compreender a relação entre teoria e prática, é
preciso transitar de Aristóteles a Dewey.
Nessa perspectiva, compreende-se melhor a aparente contradição, no processo de constituição
do conhecimento, entre uma dimensão ontológica (o universal, necessário e inteligível
precede o particular, contingente e sensível) e outra gnosiológica (que inverte a precedência).
Ou seja, começa-se a conhecer a partir da experiência, em contato com o particular (o mundo
dos efeitos), mas ali estão apenas manifestações fenomenológicas do conhecimento, isto é, do
universal (o mundo das causas). Conhece-se, a partir do particular, aquilo que o antecede e
que independe dele: o universal. Esta fundamentação aristotélica justificaria a recolocação
noutros termos do problema da articulação entre teoria e prática no modelo em pauta. Mas
Dewey e seu instrumentalismo ou funcionalismo vai ainda mais longe na percepção de uma
razão prática. Partindo de uma crítica às filosofias especulativas, e premido pelos grandes
problemas sociais e econômicos de seu tempo (sobretudo a virada dos séculos XIX e XX),
Dewey “opôs-se às tradicionais teorias sobre a verdade que a consideram como
correspondência entre pensamento e pensado ou coerência das idéias entre si” (Pensadores,
1980: VII).
Denunciando as dualidades matéria–espírito, exterior–interior e pensado–pensamento como
falsos problemas e rejeitando as dicotomias entre o ideal e o real, entre o espírito e a natureza,
consideradas decorrências de um tratamento da consciência como contemplação, Dewey
pretende contribuir para “o restabelecimento de uma unidade espiritual” (idem, ibidem: VIII)
na qual o conhecimento é, não um fim em si mesmo, mas “atividade dirigida e parte
funcional da experiência (...) uma fase da vida, um acontecimento que se produz num ser
vivo” (idem, ibidem: VII). Para Dewey, enfim,
51
“o pensamento seria o esforço para reconstruir a atividade do indivíduo e colocá-lo em condições de se adaptar à nova situação. Nesse sentido, as idéias funcionariam como hipóteses de ação referentes exclusivamente ao futuro e verdadeiras na medida em que pudessem funcionar como guias para a ação” (idem, ibidem: VII, grifos adicionados).
Como se vê, uma determinada forma de se pensar a articulação entre teoria e prática inspirada
em Dewey deve considerar não uma perspectiva de unidade entre duas coisas diversas, mas
como momentos de uma mesma coisa, isto é, a ação do sujeito. O pensamento é, como se viu,
“uma fase da vida” ou, dizendo de outro modo, “uma fase indispensável da ação, quando
esta é complexa e progressiva” (idem, ibidem: X).
Seria possível enxergar aqui aproximações entre as racionalidades técnica e prática? Ora,
observe-se que, em primeiro lugar, não parece haver uma ruptura entre ambos os modelos,
mas, sob determinados aspectos, até mesmo um aprofundamento. Se na racionalidade técnica
era possível perceber uma sacralização da teoria (a causa naturalizada), na racionalidade
prática, seja pela precedência aristotélica do universal ao particular, seja pela consideração
deweyana do conhecimento como momento ou fase da ação, a realidade é que se torna
sacralizada por naturalização ou essencialização: uma realidade pronta, ideal, pré-existente,
imutável, inquestionável, a que não cabe ao sujeito senão adaptar-se e, nesse processo de
adaptação, produzir conhecimento.
Por remeter a esse outro universo original e sagrado (não mais da teoria, senão da prática) é
que se fala num novo gênese instituído a partir das reformas educacionais, sobretudo na
formação de professores, no Brasil, nestes tempos que contornam a nova Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBEN, Lei nº 9394/96). Mas, nesse aprofundamento, pode-se
perceber, também, uma inversão na passagem de um a outro modelo: da prática subordinada à
teoria sacralizada, na racionalidade técnica, para uma teoria constituída a partir da, na e pela
prática, via reflexão, na racionalidade prática. Nesse sentido, teorias (o conhecimento
científico, fundamento dos conteúdos e dos métodos de ensino) ou práticas (a ação social, a
sociedade realmente existente e seus saberes, na qual se ancora irremediavelmente a
educação) sacralizadas inviabilizam sua transformação crítica.
Assim, resta pensar até que ponto, de fato, a realidade ou a sociedade pode ser modificada,
nessa última perspectiva. De acordo com a fundamentação aristotélica, não há realmente nada
52
a fazer: o universal é cognoscível, mas não modificável pela ação do sujeito. No pragmatismo
funcionalista de Dewey, no entanto, a coisa é um pouco diferente. Se a realidade não é, em si
mesma, transformável pela ação consciente do sujeito – até porque não há nenhum além
filosófico, nenhuma verdade depois da linha do horizonte, em nome da qual propor uma outra
realidade ou uma outra sociedade radicalmente distinta da que aí está –, será sempre possível,
no entanto, corrigir seu funcionamento, ajustar suas partes, diminuir suas disfunções e
melhorar seu modo de existência. Talvez isso ajude a esclarecer, também, porque se atribui
(especialmente a partir de Contreras, 2002) à racionalidade prática um sentido limitado de
emancipação: afinal, pode-se conhecer para melhorar o mundo, no sentido de se buscar
democraticamente uma verdade que funciona, mas nunca para transformar ou inventar um
mundo efetivamente diferente e melhor.
Finalmente, entre um e outro gênese, que modelo, que racionalidade ou que paradigma
atribuir à configuração do professor como intelectual crítico? Uma coisa parece certa: uma tal
perspectiva não ignora (muito pelo contrário, constitui-se a partir da consciência desse fato)
que o real é produto de hierarquias sociais e de relações de poder. Partindo de referenciais
teóricos distintos daqueles que fundamentam os dois gêneses comentados acima, chega-se a
uma concepção de prática como prática social e de professor como agente de transformação
da realidade. A teoria, nesse caso, tensionando a imaginação nos limites do possível, ocupa
lugar privilegiado na medida em que, a partir do que existe, é preciso pensar no que não
existe, mas que poderá vir a existir. Essa teoria, que se constitui na pesquisa sobre a realidade,
é, portanto, instrumento para uma racionalidade crítica, questionadora e, em última análise,
potencialmente transformadora da realidade, e não a teoria, no mesmo sentido da
racionalidade técnica, a ser ensinada ou a ensinar a ensinar.
Persiste, então, a questão de saber se basta à identidade docente sua condição de intelectual
crítico ou se é preciso considerar outros elementos, particularmente articulados à prática ou ao
ofício concreto de ensinar. Na primeira hipótese, em que os conteúdos de ensino e, portanto,
os conhecimentos de referência, são claramente secundarizados, o professor se constitui como
um generalista, de alguma forma próximo da concepção vigente na racionalidade prática.
Valoriza-se, como lá, o seu fazer, a sua prática, ainda que aqui se trate de uma prática social e
não de uma prática pedagógica stricto sensu. Enfim, entre valorizar a teoria, mas não aquela
que fundamenta os conteúdos de ensino, e valorizar a prática, mas não a prática escolar
53
docente, a concepção de professor como intelectual crítico parece aprisionada na teia das
racionalidades contra as quais dirige sua interpelação e suas objeções.
03. Formar professores no Brasil: quem se habilita?
Da discussão acima, acerca dos modelos de formação de professores, a questão da articulação
entre teoria(s) e prática(s), nos diversos sentidos que se pode atribuir a cada um desses termos,
isoladamente ou na relação entre eles, desponta como essencial, na medida em que envolve
distintas concepções de formar, tanto no âmbito das licenciaturas quanto nos bacharelados,
em cada uma das respectivas áreas de conhecimento, mas particularmente em História47.
Afinal, de que teoria se fala? Da historiografia, da(s) ciência(s) da educação ou da teoria
social, em geral? A qual prática se refere? À prática curricular, docente (stricto sensu),
pedagógica, (lato sensu), científica ou às práticas sociais, em geral? Quais as tantas
combinações possíveis entre todos esses significados de teoria(s) e de prática(s)? Hierarquia,
unidade (práxis) ou continuidade (pragma)? Envolvendo distintas concepções de formar, a
discussão envolve, também, por isso mesmo, o problema das responsabilidades institucionais
com a formação, isto é, da definição sobre a quem cabe formar professores, de que forma e
atendendo a que finalidades.
Evidentemente, formam-se professores em cursos regulares de licenciatura, mas o que
representam as licenciaturas, no âmbito do ensino superior, e qual a natureza das relações que
historicamente elas mantêm com os bacharelados? Particularmente, importa definir tais
relações precisamente na interface entre licenciaturas e bacharelados de um mesmo campo de
conhecimento, como, por exemplo, a História, formando professores e historiadores. Será
possível identificar o timbre particular que identifica a voz da licenciatura em meio ao vozerio
do debate acadêmico ou simplesmente não existe esse timbre particular, posto que não há
nenhuma especificidade para ela? A política de formação vigente no Brasil distribui as
responsabilidades formativas entre os institutos específicos e as faculdades de educação.
Caberia perguntar, então, o seguinte: há ao menos uma visão comum a respeito da formação,
compartilhada consensualmente por ambas as instituições?
47 O tema da dimensão prática na formação e na docência será tratado nos capítulos 7 e 8 desta tese.
54
A resposta aparenta ser não somente negativa, como aponta, principalmente, para concepções
contraditórias. Não obstante, esse dissenso carece de explicitação, na medida em que ambas
parecem ignorar-se mutuamente num típico diálogo de surdos onde cada qual segue pensando,
respondendo – e fazendo – exatamente aquilo que entenda que deva ser feito, a despeito do
que a outra pensa, pergunta e efetivamente faz. E não são raras as oportunidades em que se
manifestam explicitamente discursos e práticas detratoras, especialmente em relação às
chamadas disciplinas pedagógicas oferecidas pelas faculdades de educação a estudantes
oriundos dos institutos específicos. As coordenações acadêmicas, institucionalmente criadas
para organizar as licenciaturas no interior das universidades, onde e quando existem,
costumam fazer ecoar esse diálogo de surdos, enquanto a licenciatura segue sendo, ao mesmo
tempo, ironicamente, território em disputa e terra de ninguém.
Quais seriam, portanto, as concepções particulares, senão consensuais, ao menos largamente
difundidas e talvez, mesmo, dominantes a respeito das licenciaturas, em cada um desses
espaços formativos institucionais? Comecemos por insistir nessa mencionada ausência de
consenso. Estudando os debates em torno da reforma curricular paulista, no final dos anos
1980, contexto em que as tradicionais relações entre universidade e escola parecem ter sido,
senão abaladas, ao menos explicitadas em suas contradições e hierarquias, Ricci (1999: 114)
chama a atenção para a heterogeneidade que impera não apenas entre sujeitos escolares, mas
também universitários, no caso da História. Suas conclusões são expressas da seguinte forma:
“É preciso ressaltar que, se o trabalho e a postura dos profissionais de História, no ensino fundamental e médio, mostraram-se extremamente heterogêneos e que muitas concepções atribuídas a estes, se são predominantes, não são consensuais, o mesmo revelou-se em relação à universidade. As reflexões produzidas na Academia sobre o ensino de História são acentuadamente diversificadas. Não há uma fala única, homogênea. A partir dos vários momentos em que se debateu o ensino de História e que professores de todos os graus de ensino posicionaram-se em acirradas discussões, sobressaíam não só posicionamentos divergentes entre a universidade e o ensino fundamental e médio, mas entre professores com concepções diferenciadas sobre História.”.
Diferentes concepções de História, portanto, do mesmo modo que diferentes concepções de
Educação, servem de pano de fundo para correspondentes concepções acerca das relações
entre universidade e escola e entre teoria(s) e prática(s) universitárias e escolares. Nesse
sentido, então, a questão da procura de um timbre particular que identifica a voz da
licenciatura não poderá ter uma resposta única, consensual e homogênea, prevalecendo,
55
enfim, toda essa heterogeneidade de concepções. Entretanto, isso não impede que se observe e
registre concepções predominantes, cujo predomínio é importante na medida em que imprime
uma determinada marca indelével nos debates, nas políticas educacionais, nos desenhos
institucionais tanto das licenciaturas quanto dos bacharelados, nas concepções de formadores,
mas principalmente nas concepções de formandos, impregnando-se no universo de saberes e
de conhecimentos cotidianos, até constituir-se praticamente em um senso comum, geralmente
desfavorável à licenciatura e tendendo a subordiná-la ao bacharelado.
Assim, a visão predominante nas faculdades de educação parece apontar no sentido da
formação do educador, antes que do professor, como intelectual crítico cuja prática seja
transformadora da realidade social mais ampla. Pensar na licenciatura, admitindo sua
especificidade e sua autonomia em relação ao bacharelado, corresponderia ao reforço de um
projeto que interessa apenas às instituições privadas de ensino superior, de formação sem
pesquisa, aligeirada e de baixo custo, pautada em conhecimentos de segunda mão, ministrados
em salas de aula superlotadas por formadores proletarizados e mal preparados. Representaria,
pois, a vitória do modelo dos escolões, expressão circulante em alguns meios acadêmicos que
não deixa de denotar um certo desprezo pela hipertrofia da escola e do escolar, estendido no
aumentativo ao nível superior para acentuar ainda mais seus aspectos negativos, senão sua
negatividade intrínseca e integral.
A formação que deveria servir de inspiração e modelo, portanto, ou pelo menos aquela que
efetivamente se pratica nas faculdades de educação, em defesa da qual constituiu-se um
movimento nacional de resistência em face do Decreto nº 3276/9948, do Presidente da
República, consiste na habilitação de professores para a Educação Infantil e séries iniciais do
Ensino Fundamental no interior dos cursos de Pedagogia, sobretudo nas universidades
públicas, cujo modelo baseia-se no pressuposto de que o professor é antes de tudo um
pesquisador do campo da Educação. Nesse caso, então, forma-se o educador, o pedagogo, o
pesquisador que também se encarrega das atividades de ensino, para cujo encargo a formação
lhe acrescenta teorias e práticas adequadas, mas não específicas, isto é, que só passam a fazer
sentido no contexto mais amplo onde se aprende a pensar a Educação.
48 Esse decreto estabelecia que a formação de professores para a Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, em nível superior, seria realizada exclusivamente pelo Curso Normal Superior, retirando essa atribuição, como habilitação, do Curso de Pedagogia. O governo recuou em seguida, editando o Decreto nº 3554/00, substituindo o termo exclusivamente por preferencialmente.
56
Como a licenciatura não pode prescindir da particularidade dos conteúdos das áreas
específicas, que geralmente ocupam a maior parte da carga horária global da formação,
introduz-se no processo formativo algo que, para as faculdades de educação, constituem uma
espécie de elemento estranho ou de acessório hipertrofiado. Nesse caso, então, das duas uma:
ou se pactua uma espécie de compromisso tácito, de acordo pelo alto, com os institutos
específicos, espacializando territórios de domínio distintos, com escassas perspectivas de
acessos mútuos; ou abandona-se o interesse teórico e prático pela licenciatura, na medida
mesma de sua impotência em face de procedimentos e mecanismos quantitativos e
qualitativos da formação. Observa-se nesse último caso, por conseqüência, o reforço ainda
maior da desqualificação da licenciatura que, se considerada em sua especificidade e
autonomia em relação ao bacharelado, amplia sua identificação como instrumento responsável
pelo implemento daquele modelo dos escolões, nas instituições privadas de ensino superior,
na medida em que configura a perda de suas duas âncoras de qualidade: a(s) ciência(s) da
educação e a ciência de referência.
Por outro lado, a concepção predominante nos institutos específicos indica que é necessário
formar o especialista primeiro – e só depois o professor – como sujeito que assume a
responsabilidade por um amplo conjunto de tarefas inerentes ao campo profissional de sua
área específica, dentre as quais inclui-se o ensino da disciplina em todos os níveis. O
conhecimento ou a ciência de referência deve estar no centro de todas as atividades
formativas. Quem quer que opere com esses conhecimentos, em qualquer circunstância social
ou profissional, deve, antes de tudo, adquirir não só uma cultura, baseada nos conteúdos
produzidos e acumulados na área, mas principalmente o domínio dos procedimentos
necessários à sua produção, considerados válidos pela respectiva comunidade de especialistas.
No caso da História, argumenta-se que é impossível fazer qualquer uso dela, inclusive ou
especialmente ensiná-la, sem estar primeiro habilitado a transitar no interior da oficina.
Desse modo, o ensino não passa de uma tarefa contida no campo mais amplo de
possibilidades de atuação profissional do especialista no conhecimento de referência (no caso,
então, do historiador). Habilitar, portanto, esse sujeito que se ocupa ou se encarrega da
atividade de ensino é prática derivada e subordinada à formação do especialista, da qual não
passa de um caso particular. Em sua forma mais extrema, essa formação ou habilitação ou,
ainda, preparação do professor encarregado se dá por complementação pedagógica, após o
término da formação do profissional. Faz parte de uma cultura onde se naturaliza tal
57
convicção, a expectativa ou a concepção de que a formação pedagógica, ou seja, o acréscimo
de saberes relativos especificamente ao campo educacional e profissional, constitui a parte,
por assim dizer, prática agregada ao currículo.
Ana Monteiro evidenciou essa concepção ou essa expectativa instrumental em professores de
História (mesmo que já longamente iniciados na profissão e convencidos de que com a prática
do ofício se aprende experiência), de que na formação inicial, isto é, no tempo da graduação,
as disciplinas pedagógicas constituem a parte prática agregada ao currículo. Note-se que tal
consideração aproxima-se daquela hierarquia de conhecimentos no currículo normativo da
formação de profissionais, de que fala Schön (1992: 22), na perspectiva da racionalidade
técnica, envolvendo “i) las ciências básicas; ii) las ciencias aplicadas; iii) las habilidades
técnicas de la práctica cotidiana”, constituindo-se, portanto, numa estratégia de rebaixamento
de status dos conhecimentos pedagógicos. Os professores observados por Monteiro afirmam
textualmente:
“Ana (34 anos de profissão): (...) porque me parece que essa questão da, da passagem da parte prática ela acontece só no final do curso... (2003: 37). “Luíza (trabalha como professora há 23 anos): (...) quando eu fiz educação, foi ruim pra caramba não é, a parte de prática, didática... (2003: 43). “Marcelos (professor desde 1988): (...) o que eu acho que falta é o seguinte, por exemplo, é... vamos estudar Piaget... tudo bem vamos lá e tal. Aquelas fases de desenvolvimento, aquela coisa toda, legal... agora então vamos fazer uma oficina, vou lidar com uma situação, eu acho que você partir disso pra prática, isso faltou... (2003:46)49.
Neste contexto, então, visto que a licenciatura aparece como desprovida de qualquer
especificidade intrínseca, para além do mero acréscimo exterior e posterior dessa parte
prática constituída pelos conhecimentos pedagógicos, destinada apenas a oferecer uma
espécie de treinamento rápido para que o especialista no conhecimento habilite-se ao encargo
do ensino, os institutos específicos configuram-na como modelo subordinado e complementar
em relação ao bacharelado. Definitivamente não se pode dizer que esteja contemplado, aqui, o
reconhecimento da importância de uma razão pedagógica na formação do professor, pari
passu com uma outra, relacionada ao campo científico de referência, no caso uma razão
49 Vale registrar que apenas um dos quatro professores elabora uma perspectiva diferenciada em relação à parte pedagógica do currículo de formação: “Paulo Rogério: Acho que as pessoas não conhecem, quer dizer, as pessoas não conseguem ver a educação, né? Como uma área de pesquisa, uma área de, de metodologia mesmo, científica, de uma coisa séria... (...) pra muita gente... são técnicas e métodos de aprendizagem.” (Monteiro, 2003: 49-50). Note-se que Paulo Rogério é o único que foi fazer mestrado na área de Educação.
58
histórica. Trata-se, portanto, em resumo, de uma leitura positivamente disciplinar da
formação de professores e da licenciatura, defendendo-se uma sólida formação teórica – na
área – e a pesquisa – na área – como princípios formativos essenciais.
Ora, o que ambas as concepções, predominantes nas faculdades de educação e nos institutos
específicos, parecem apresentar em comum? Em primeiro lugar, ambas postergam a formação
do professor, concebendo-a como apenas uma habilitação tardia, desprovida de
especificidade, oferecida por acréscimo no interior de processos formativos mais prestigiados
e gerais. Em segundo lugar, ambas compartilham uma concepção de professor não
exatamente como profissional, mas como encarregado do ensino, no âmbito de configurações
profissionais mais amplas: a de educador e a de especialista no conhecimento de referência,
no caso de que aqui se ocupa, de historiador. Em terceiro lugar, ambas admitem a
centralidade da pesquisa e produção de conhecimento no processo formativo, embora em cada
caso a construção do objeto esteja referenciado ao seu próprio domínio: a pesquisa
educacional aqui, a pesquisa historiográfica acolá.
Por último, o reconhecimento da importância de uma cultura universitária na formação, na
medida em que esta seja capaz de constituir no aluno um habitus que irá presidir todo o seu
processo de desenvolvimento profissional. A universidade, portanto, que se prolonga em seus
graduados na medida em que esses assumem os encargos inerentes ao exercício da profissão,
constitui-se, de acordo com esse ponto de vista, como instituição essencial de transformação
da realidade. Por outro lado, no entanto, a escola permanece como um problema teórico (a ser
formulado) e como um problema prático (a ser resolvido). Concebida como instituição que
não produz os conhecimentos que utiliza e repassa, considerada fundamentalmente como
lugar da prática, segue sendo, por isso mesmo, o lugar do erro: erro como equívoco ou como
expressão de uma consciência imperfeita.
Finalmente, que conseqüências decorrem dessas concepções? A primeira, derivada
diretamente do exposto acima, é que, a despeito de um discurso que afirma a unidade
indissolúvel entre teoria e prática, em ambos os casos a teoria é sacralizada e seus espaços e
processos de produção e de formação (a universidade, a pesquisa e o bacharelado) são
supervalorizados, em detrimento da prática, a ela indissoluvelmente unida e subordinada, com
espaços e processos de realização e de formação (a escola, o ensino e a licenciatura)
subestimados e esvaziados de identidade e autonomia próprias. A rigor, o pressuposto da
59
unidade indissolúvel entre teoria e prática, nesses casos, identifica o diverso, espacializando e
ocultando a tensão, acabando por funcionar dissimulada e perversamente como instrumento
de hierarquização e de subordinação da teoria sobre a prática, da universidade sobre a escola,
da pesquisa sobre o ensino e, finalmente, do bacharelado sobre a licenciatura.
A esse respeito, adquire especial relevância a observação de Maurice Tardif (2000: 121), para
quem
“a pesquisa universitária na área da educação (e também nas áreas específicas de conhecimento – o acréscimo é nosso) e a prática do ofício de professor não são regidas pela relação entre teoria e prática, pois ambas são portadoras e produtoras de práticas e de saberes, de teorias e de ações, e ambas comprometem os atores, seus conhecimentos e suas subjetividades. Desse ponto de vista, a relação entre a pesquisa universitária e o trabalho docente nunca é uma relação entre uma teoria e uma prática, mas é sempre, ao contrário, uma relação entre atores, entre sujeitos cujas práticas são portadoras de saberes”.
É verdade que se poderia distinguir no debate acadêmico, na atualidade, uma perspectiva
crítica em relação ao paradigma da racionalidade técnica, segundo o qual o professor não
elabora (portanto não tem autoridade para questionar) nem a teoria / ciência (objeto da
transmissão), nem a ciência aplicada / técnica (método de transmissão e de definição de
problemas e fins), mas tão somente reproduz e aplica técnicas a problemas e fins elaborados e
definidos fora da prática, arena própria do professor. Entretanto, e a despeito do profundo
enraizamento, talvez até do predomínio ainda, desse paradigma nos processos de formação
vigentes, o questionamento empreendido pela reflexão acadêmica não foi capaz de romper
com alguns de seus aspectos essenciais. Um desses questionamentos insiste em afirmar que o
professor participa também da elaboração da teoria / ciência (qual e em que nível de registro?
– é preciso esclarecer) ou, se não participa, trata-se de um defeito da formação, pois deveria
participar50.
Justifica-se mais uma vez a exigência de prévia formação como pesquisador, seja no campo
educacional, lato sensu, seja na especificidade de sua área de conhecimento. E dessa forma
recoloca-se uma questão crucial no âmbito da própria racionalidade técnica – a sacralização
da teoria – na medida em que somente nela, e nos termos em que é autorizada e reconhecida
pelas respectivas comunidades acadêmicas, seria possível distinguir no horizonte a
50 Fonseca (1993: 118-133, passim).
60
valorização do professor. Portanto, não estaria propriamente na dimensão do ensino e dos
saberes provenientes de sua prática o fator essencial para a construção de uma identidade
profissional docente.
Além das conseqüências mencionadas até aqui, as concepções acerca da formação e da
licenciatura vigentes ou predominantes nas faculdades de educação e nos institutos
específicos evidenciam algumas tendências significativas. Uma delas manifesta-se no baixo
status acadêmico da pesquisa em ensino. Outra está relacionada ao esvaziamento e à redução
da prática de ensino e do estágio curricular supervisionado de ensino a uma atividade quase
que meramente instrumental. Além disso, registre-se a desconexão e a permanência de uma
relação hierarquizada – a despeito, muitas vezes, de afirmações discursivas em contrário –
entre universidade e escola, com flagrante preconceito contra o que se identifica com o
escolar. Por último, mas sem querer estabelecer aqui um inventário conclusivo, importa
salientar a insistência na diferenciação entre educação e ensino e conseqüente redução deste à
condição de mera atividade de transferência de conteúdos.
Tudo isso, enfim, torna ainda mais imperativa e urgente a necessidade de se buscar outras
contribuições que renovem o pensar a formação e a docência. A incorporação dos conceitos
de cultura escolar e de saberes docentes, assim como uma perspectiva de análise que coloque
ênfase na especificidade da escola e do escolar, da docência e da formação e,
conseqüentemente, da licenciatura, parece apontar precisamente nessa direção.
04. A escola, os professores e seus saberes: referências para a licenciatura
Este capítulo tem se desdobrado até aqui para sustentar duas coisas. Primeiro, que do mesmo
modo que Bloch sugeria a existência de uma oficina de História, é possível falar também de
uma oficina de Ensino, operada51 por seus próprios sujeitos, dotados de subjetividade e
portadores de saberes, mediante um conjunto específico de práticas inerentes ao ofício. Não
sendo exclusiva da História, essa oficina de Ensino envolve todos os campos das disciplinas
escolares presentes no currículo, tanto em suas características peculiares especiais quanto em
51 Recusando a existência de um além filosófico transcendental, exterior ao trabalho do historiador, Certeau (1979: 18) refere-se à operação historiográfica ou ao fazer História como a combinação entre um lugar social e práticas científicas.
61
seus traços e aspectos comuns. Segundo, que a preparação dos profissionais para a atuação no
interior dessa oficina deve cumprir seus próprios rituais, envolvendo procedimentos
específicos e, como toda profissão, implicando no domínio de saberes particulares e em
questões ético–políticas mais gerais. O lugar institucional onde se realiza inicialmente essa
preparação, em nível superior, é a licenciatura.
A compreensão da especificidade e da relativa autonomia tanto da oficina de Ensino quanto
da licenciatura, contudo, não significa postular sua independência e desconexão em relação a
processos e instâncias necessariamente correlatos, situando-os como objetos livres e
desgarrados de articulações e determinações sócio-culturais. Pelo contrário, apenas do ponto
de vista da especificidade e da autonomia será possível investigar a particularidade dessas
conexões e dessas determinações. Nesse sentido, é fundamental, antes de tudo, compreender o
que Saviani (2002: 31) identifica como sendo a natureza específica da educação. Na crítica
empreendida por esse autor, no início dos anos 1980, ao que denomina de pedagogias da
essência (tradicional) e da existência (nova), mas também às concepções crítico-
reprodutivistas em educação, na perspectiva da constituição de uma pedagogia histórico-
crítica, há elementos para pensar tais questões.
De acordo com Saviani (2002: 63-64), por um lado, falta às pedagogias tradicional e renovada
“a consciência dos condicionantes histórico-sociais da educação”, na medida em que, caindo
na armadilha da inversão idealista, elas acreditam na possibilidade de transformar a sociedade
por meio da educação: “de elemento determinado pela estrutura social, a educação é
convertida em elemento determinante”. Isso não significa, no entanto, mais do que
reconhecendo tais condicionamentos, que se deva admitir a determinação unidirecional da
educação pela estrutura social, dissolvendo-se a sua especificidade na convicção de que “a
função própria da educação consiste na reprodução da sociedade em que ela se insere”
(idem, ibidem: 16), inerentes às teorias crítico-reprodutivistas. A compreensão da
especificidade da educação, portanto, passa pelo entendimento de que
“a educação se relaciona dialeticamente com a sociedade. Nesse sentido, ainda que elemento determinado, não deixa de influenciar o elemento determinante. Ainda que secundário, nem por isso deixa de ser instrumento importante e por vezes decisivo no processo de transformação da sociedade.” (idem, ibidem: 66).
62
Da compreensão dessa natureza específica da educação, é preciso caminhar na direção do
reconhecimento da especificidade da escola como instituição da sociedade. Nesse sentido,
partindo do ponto de vista de que as duas funções básicas tradicionais da escola – a
apropriação do conhecimento socialmente relevante e a formação para a cidadania –
encontram-se em crise, Candau (2002: 14) considera a questão da necessidade de se
reinventar a escola. Segunda ela,
“a escola está chamada a ser, nos próximos anos, mais do que um lócus de apropriação do conhecimento socialmente relevante, o científico, um espaço de diálogo entre diferentes saberes –científico, social, escolar, etc – e linguagens. De análise crítica, estímulo ao exercício da capacidade reflexiva e de uma visão plural e histórica do conhecimento, da ciência, da tecnologia e das diferentes linguagens.”.
Por outro lado, ainda segundo a mesma autora (idem, ibidem: 15), a dimensão atual dos
conflitos e movimentos culturais, trazendo para o front da cena social a questão da articulação
entre igualdade e diferença, coloca em xeque a tradicional concepção de cidadania. Nesse
sentido,
“na reinvenção da escola, a questão da cidadania é fundamental. Não de uma perspectiva puramente formal do tema, mas a partir de uma abordagem que concebe a cidadania como uma prática social cotidiana, que perpassa os diferentes âmbitos da vida, articula o cotidiano, o conjuntural e o estrutural, assim como o local e o global, numa progressiva ampliação do seu horizonte, sempre na perspectiva de um projeto diferente de sociedade e humanidade.”.
Numa perspectiva igualmente pluralista da cultura e do conhecimento, de certo modo na
vizinhança de Candau, também Forquin (1992: 28) reitera a especificidade da escola e da
cultura escolar. Segundo ele, a abordagem renovada da sociologia da educação, ao dirigir-se
para o interior da escola e da sala de aula, focalizando no detalhe os “conteúdos cognitivos e
simbólicos das transmissões escolares”, contribui para revelar aquilo que é específico da
escola, ou seja,
“o fato de serem locais e meios organizados com vistas a transmitir a um público numeroso e diversificado e por meios sistemáticos conjuntos de conhecimentos, de competências, de representações e de disposições correspondendo a uma programação deliberada. A escola (...) é também um
63
local – o local por excelência nas sociedades modernas – de gestão e de transmissão de saberes e de símbolos.”52.
No centro da construção dessa especificidade, porém, encontra-se aquilo que confere sentido
ao conceito de cultura escolar, ou seja, i) um processo de seleção cultural, ii) um conjunto de
imperativos de didatização ou de transformação dos objetos da cultura em objetos de ensino
(no qual o mecanismo da transposição didática53 é fundamental, porém não exclusivo) e,
principalmente, iii) aquilo que é criação original da escola e que, transpondo de dentro para
fora os muros escolares, impregna profundamente a sociedade externa. Para além das tarefas
escolares de seleção e de didatização, portanto, Forquin (1992: 34-35) pergunta-se
“se não se pode considerar a escola como sendo também verdadeiramente produtora ou criadora de configurações cognitivas e de habitus originais que constituem de qualquer forma o elemento nuclear de uma cultura escolar sui generis.”.
Essa parece ser uma perspectiva renovada e fértil, em que se poderia conceber as disciplinas
escolares constituindo menos derivação, reflexo ou substitutivo simplificado e adaptado das
ciências de referência (mesmo que na perspectiva da transposição didática) e muito mais
configurações cognitivas tipicamente escolares. Pelo menos essa é a perspectiva de André
Chervel (1990: 180), para quem o conceito de disciplina, forjado entre fins do século XIX e
os tempos da Primeira Guerra, não se consolida sem antes vencer duas etapas cruciais:
primeiro, ultrapassar o sentido geral, de disciplinar o espírito, para o particular, de matéria de
ensino suscetível de servir de exercício intelectual; segundo, nesse processo de rebaixamento
ou de enfraquecimento, trazer à língua um valor específico, segundo o qual
“os conteúdos de ensino são concebidos como entidades sui generis, próprios da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda realidade cultural exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer, à sua própria história.”54.
Partindo da análise histórico-concreta da gramática escolar francesa, Chervel (1990) sinaliza
três pistas para a consideração da especificidade das disciplinas escolares. Primeiro, que a
gramática escolar não é a “expressão das ciências ditas, ou presumidas, de referência, mas
52 Ver p. 12. 53 Cf. Chevallard (1998). 54 Ver p. 13.
64
que ela foi historicamente criada pela própria escola, na escola e para a escola” (idem,
ibidem: 181). Segundo, que o conhecimento dela “não faz parte – com exceção de alguns
conceitos gerais, como o nome, o adjetivo ou o epíteto – da cultura do homem cultivado”
(idem, ibidem: 181), consumindo-se no próprio processo de escolarização e depois esquecida.
Terceiro, que sua origem atende a uma finalidade real, a um projeto pedagógico, enfim, à
“grande empresa nacional de aprendizagem da ortografia” (idem, ibidem: 182). Desse
modo, Chervel (1990: 181) desfere sua crítica às concepções de disciplina-vulgarização e de
pedagogia-lubrificante, afirmando finalmente que
“a escola não se define por uma função de transmissão de saberes, ou de iniciação às ciências de referência”.
Por outro lado, essa crítica a uma concepção dicotômica e segmentada de disciplina e
pedagogia na configuração da disciplina escolar, baseada na idéia de que os métodos
pedagógicos não são coisas externas aplicadas aos conteúdos, mas “componentes internos do
ensino” (idem, ibidem: 182), sobretudo a partir de uma perspectiva orgânica segundo a qual
“a pedagogia, longe de ser um lubrificante espalhado sobre o mecanismo, não é senão um elemento desse mecanismo, aquele que transforma os ensinos em aprendizagens”,
contribui na compreensão das resistências e dificuldades que enfrentam os professores
universitários – dificuldades e resistências profundamente agravadas quando se trata de
formadores de professores, que muitas vezes transferem-se e conformam também a
consciência profissional dos próprios professores – para reconhecer a diferença crucial entre o
ensino na educação básica, de uma maneira geral fundado em disciplinas escolares destinadas
a instruir e educar alunos de acordo com as finalidades propriamente escolares, e o ensino em
nível superior, significando a comunicação de um saber sábio a estudantes, cuja finalidade
esgota-se em si mesma. Para ser mais preciso, citando Chervel (1990: 185):
“O que caracteriza o ensino de nível superior é que ele transmite diretamente o saber. Suas práticas coincidem amplamente com suas finalidades. Nenhum hiato entre os objetivos distantes e os conteúdos do ensino. O mestre ignora aqui a necessidade de adaptar a seu público os conteúdos de acesso difícil, e de modificar esses conteúdos em função das variações de seu público: nessa relação pedagógica, o conteúdo é uma invariante. Todos os seus problemas de ensino se remetem aos problemas da comunicação: eles são, quando muito, de ordem retórica. E tudo que se solicita ao aluno é
65
‘estudar’ esta matéria para dominá-la e assimilá-la: é um ‘estudante’. Alcançada a idade adulta, ele não reivindica didática particular à sua idade”.
Eis aí, portanto, explicitada pelo contraste em relação ao conhecimento veiculado em
processos educativos de nível superior, a afirmação da especificidade desse conhecimento ou
desse conteúdo de ensino efetivamente escolar: trata-se de um amálgama particular de
disciplina e pedagogia, e somente por ser assim é que ele está pronto para transformar-se de
ensino em aprendizagem. Alice Lopes (1999) acrescentaria ainda a esse amálgama o
conhecimento cotidiano. Segundo essa autora, a partir de uma reflexão de base no Ensino de
Ciências, o que se ensina é um misto de ciência e conhecimento cotidiano (senso comum e
saberes populares), devidamente re-construído mediante processos de disciplinarização e de
mediação didática, de modo que ambos venham a ser desafiados no sentido de “socializar o
conhecimento científico” (despindo-o de sua arrogância) e “formar o conhecimento
cotidiano” (superando sua habitual e autoritária ingenuidade para torná-lo crítico) (Lopes,
1999: 234).
Parece já um pouco distante a concepção de que a formação de profissionais para o ensino na
educação básica deve contemplar a apreensão do que – a ciência de referência –, a
incorporação do como – a didática e a prática de ensino – e a referência, no horizonte, ao por
que e ao para que – a pedagogia – ensinar. Por mais que tais componentes devam permanecer
de alguma forma presentes na formação, não se pode deixar de reconhecer que, precisamente
a construção de um processo formativo baseado nesse percurso, aprofundou (e aprofunda
ainda) o abismo que separa a formação inicial do efetivo início da atividade docente, ou seja,
aquilo que em outro trabalho denominamos de “a angústia original”, na medida em que
conduz inevitavelmente ao reconhecimento, por parte dos professores iniciantes na prática
docente, do fato de que “este mundo é diferente!”55. E de que, enquanto não forem
construídos laços de solidariedade e mecanismos de socialização profissional, será preciso
nele caminhar sozinho.
Finalmente, a compreensão da especificidade e da relativa autonomia da oficina de Ensino e
da licenciatura – sem independência e confinamento, contudo –, que depende, como até aqui
se viu, da compreensão da natureza específica da educação, do reconhecimento da
especificidade da instituição e da cultura escolar, de uma concepção de disciplina como
55 Andrade (2002: 115-122).
66
produção original da escola, deve contribuir poderosamente para a crítica da razão técnica e
instrumental aplicada ao ensino e à formação, ainda que sem descuidar, no entanto, das
relações presentes no interior dos estabelecimentos escolares e das salas de aula. Precisamente
por permitir esses constantes deslocamentos entre a escola e a sociedade e vice-versa é que
uma tal perspectiva reforça aquela exigência mencionada por Giroux (1997: 159) para a
formação de professores, segundo a qual é preciso “educar os alunos para que eles examinem
a natureza subjacente dos problemas escolares”.
Mas certamente este quadro não estaria completo se não levasse em conta, também, a
consideração de que o professor não é apenas um técnico que aplica conhecimentos
produzidos externamente, um técnico que mantém com sua atividade e com seu trabalho uma
relação puramente instrumental, por isso mesmo desprovido de subjetividade e de saberes
próprios. Segundo Maurice Tardif (2000: 115), um professor de profissão
“é um ator no sentido forte do termo, isto é, um sujeito que assume sua prática a partir dos significados que ele mesmo lhe dá, um sujeito que possui conhecimentos e um saber-fazer provenientes de sua própria atividade e a partir dos quais ele a estrutura e a orienta. Nessa perspectiva, toda pesquisa sobre o ensino tem, por conseguinte, o dever de registrar o ponto de vista dos professores, ou seja, sua subjetividade de atores em ação, assim como os conhecimentos e o saber-fazer por eles mobilizados na ação cotidiana. De modo mais radical, isso quer dizer também que a pesquisa sobre o ensino deve se basear num diálogo fecundo com os professores, considerados não como objetos de pesquisa, mas como sujeitos competentes que detêm saberes específicos ao seu trabalho.”.
É na direção apontada acima que caminha, como se viu, a pesquisa de Ana Monteiro (2002:
7), investigando a forma pela qual os “professores de história mobilizam os saberes que
dominam para lidar com os saberes que ensinam”. Nesse percurso, e exatamente porque
contribui para investigar a construção da identidade docente utilizando uma focalização e um
instrumental teórico renovado, Monteiro (2002) menciona a pesquisa de Ludke, cujos
objetivos são semelhantes, registrando a necessidade de compreender esse plus, esse algo
mais sempre presente no trabalho docente e que escapa a uma perspectiva puramente
instrumental de observação, baseada na lógica do claro-escuro, do interno-externo. Referindo-
se ao trabalho na formação inicial, Ludke (apud Monteiro, 2002: 16) insiste em que
67
“esses estudantes estão dizendo à Faculdade de Educação (e à universidade em geral) que existe, na atividade do professor, algo mais do que conhecimento; do que reflexão cognitiva sobre a prática, ainda que coletiva; do que saber fazer, do que saber fazer ‘passar conteúdo’. O nosso desafio é entender o que é esse algo mais...”.
Pois bem, o desafio de entender esse algo mais, que está profundamente articulado à
dimensão subjetiva do trabalho docente, a atenção e a sensibilidade para com essa aparente
alquimia que consiste em identificar a mão e o ponto quando professores manipulam a
química da docência, misturando saberes explícitos de variadas origens, deve também
encontrar espaço na formação. A licenciatura e a licenciatura em História, particularmente,
deve, pois, abrir-se a uma compreensão construtiva do espaço e da dinâmica da oficina de
Ensino, aquela em que os sujeitos aparecem efetivamente fazendo o que fazem não porque
não lhes reste outra opção, não porque seja inevitável seguir adiante no fluxo contínuo do
tempo, mas porque, sujeitos de sua subjetividade, de seus saberes e de suas práticas,
constroem desde agora o futuro e a história, a história que, para Walter Benjamin (apud
Fonseca, 2003: 43),
“é objeto de uma construção cujo lugar não é tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras”.
68
CAPÍTULO 3 – Cultura Escolar, Transposição Didática e História Ensinada (Em busca
de Alternativas para a Formação de Professores)
[1]
“A verdade freqüentemente soa paradoxal”
(Lao Tse)
Os professores de ofício parecem viver um paradoxo difícil de compreender e ainda mais
difícil de superar. Tanto mais importante é refletir sobre isto nos dias de hoje, quanto mais se
pretende, por um lado, encontrar elementos que afirmem a identidade própria das
licenciaturas como curso de formação de professores em nível superior (por contraste com os
bacharelados) e, por outro lado, garantir o reconhecimento do magistério como profissão e do
professor como profissional. Indo mais diretamente ao assunto, a questão é a seguinte:
entende-se comumente por qualificação do professor a ação, de iniciativa pessoal e/ou
institucional, que lhe proporciona acesso ao conhecimento científico-cultural de referência em
seu campo particular de saber: quanto mais conhece sua disciplina, em extensão e
profundidade, mais qualificado se encontra para a atividade profissional; para ensinar, no
entanto, ele precisa definitivamente comprometer-se com a aprendizagem do aluno, com a
gestão da classe e, em última análise, com a sobrevivência na selva da escola.
Dizendo de outro modo, a reflexão sobre a docência e a formação de docentes deve considerar
o fato de que, de acordo com uma certa tradição, para qualificar-se, o professor deve se
aprofundar cada vez mais no conhecimento disciplinar, o que o faz distanciar-se das questões
cotidianas e da lógica do chamado senso comum, para mergulhar no conhecimento produzido
e no modo de produzir conhecimento dentro de um campo específico; mas, para ensinar, ele
deve estabelecer conexões com o aluno, seu modo de aprender, o contexto no qual aprende e a
cultura global em que ele se encontra imerso, distanciando-se progressivamente da
problemática estritamente disciplinar, mesmo que a disciplina continue sendo mediação
importante na relação que entre ambos se estabelece. Considerando que professor algum
almeja fazer de seu aluno um pequeno especialista em sua disciplina, resta uma pergunta que
não quer calar: afinal, onde fica a saída?
69
E, no entanto, o paradoxo acima parece ser verdadeiramente paradoxal apenas no interior de
um paradigma ou de um modelo de formação e de docência que a literatura vem
caracterizando como de racionalidade técnica. Nessa perspectiva, distingue-se o saber a
ensinar, o saber ensinar e o ensinar, respectivamente como uma ciência, uma técnica e uma
prática. De acordo ainda com esse ponto de vista, o professor ensina efetivamente, na prática
da sala de aula, um saber que outros especialistas produziram na atividade de pesquisa,
embora devidamente facilitado ou lubrificado por técnicas didático-pedagógicas, também
produzidas por outros e alhures. Nessa hierarquia de saberes e fazeres, qualificar-se significa,
em primeiro lugar, adquirir um conhecimento acerca do saber a ensinar e, em segundo lugar
(mas também num segundo plano), aprimorar técnicas relativas ao saber ensinar. Por fim,
ensinar consiste numa atividade prática desprovida de saberes próprios, na qual se aplicam
saberes externamente produzidos, que os professores empunham para se defrontar com seus
alunos no anonimato sem sujeito das salas de aula.
Eis de volta o paradoxo, mas agora o paradigma correspondente também.
[2]
Em muitos sentidos se diz que a FAFIC vem enfrentando violentos terremotos nos últimos
cinco anos, pelo menos. Alguns deles têm seu epicentro localizado do lado de fora do Parque
Universitário, mas outros resultam das contradições geradas pelo próprio perfil institucional
construído ao longo desse quase meio século de existência. No primeiro caso, é preciso
considerar que a oferta de vagas em Campos e região ampliou-se substancialmente, sobretudo
na área das licenciaturas, como resultado do recente processo de expansão e interiorização de
grandes empresas de ensino superior, inscrevendo definitivamente tal atividade na lógica do
mercado hipertrofiado. Para responder ao desafio colocado pela nova realidade foram sendo
pavimentados alguns novos caminhos, dentre os quais incluem-se a tentativa de repensar a
natureza e a estrutura global da instituição, cujo resultado mais importante consistiu na
construção do projeto do Centro Universitário, e o recurso talvez inevitável (dadas as
características sócio-econômicas da demanda) a uma política de bolsas de estudo que tornou o
poder público municipal parceiro indispensável da instituição.
70
Ainda nesse primeiro caso, considerando as motivações externas dos abalos que a FAFIC vem
enfrentando nesses últimos anos, é importante registrar os efeitos produzidos pela política do
Estado, de reforma mais ampla da educação, sobretudo a partir da Lei nº 9394/96 (LDBEN),
de reforma do ensino superior em geral e, particularmente, da formação de professores para a
Educação Básica em nível superior, em cursos de licenciatura, que corresponde, em última
análise, ao tipo de atividade que historicamente confere identidade às tradicionais faculdades
de filosofias. Chegando à FAFIC em meados de 1999, a discussão da reforma contribuiu para
deflagrar um amplo movimento no sentido de se repensar a natureza da instituição, o projeto
político-pedagógico de caráter profissional dos cursos que oferecia, o perfil básico tanto da
demanda a que atendia quanto do profissional que licenciava e devolvia à sociedade. Dois
eixos fundamentais norteavam as discussões: a questão curricular e o problema da duração e
carga horária dos cursos. Como os temas eram novos e não se dispunha de base conceitual e
reflexão longa e solidamente acumulada pelos sujeitos, as divergências eram muitas e
algumas vezes traumáticas.
Em meio a tais terremotos, no entanto, talvez tenha sido possível perceber qual o paradigma
de formação em que se inscreviam as licenciaturas da FAFIC. E porque, como diria o poeta,
“perceber é conceber” (Paz, 1996), parece tornar-se a cada dia mais possível, também,
explicitar seu paradoxo. Ou melhor, o tempo e o dissenso vão construindo práticas na FAFIC
que aos poucos tornam evidente o paradoxo entre qualificação e ensino no interior do
paradigma da racionalidade técnica.
[3]
Perceber é tocar a realidade com o corpo e os sentidos. Conceber é elaborar o toque nos
meandros da sensibilidade e da razão. Entre ambos, a continuidade que sustenta a elaboração
do que se percebe, mas também a ruptura que permite conceber mesmo o intangível. A
percepção do paradigma e de seu paradoxo compreende já uma tomada de consciência que
permite formular o problema, condição necessária (embora não suficiente) para sua
superação. A solução ou as possíveis soluções alternativas, porém, demandam novas
perspectivas para imaginar o que é que se pretende, onde se deseja chegar, que caminhos para
lá conduzem, além dos termos em que tudo isso se expressa e se torna inteligível. Como
pensar, afinal, naqueles elementos que afirmam uma identidade específica para os cursos de
71
licenciatura, contribuindo, assim, para avançar no reconhecimento efetivo do magistério como
profissão e do professor como profissional, rompendo com o paradigma da racionalidade
técnica e superando o paradoxo entre a qualificação do professor e a afirmação de sua
identidade no ensino?
Essa questão, por um lado, deve ser situada: como fazê-lo no interior das discussões em curso
na FAFIC, mas pensando ainda mais particularmente no seu curso de História? Por outro
lado, a partir dela será preciso considerar mais cuidadosamente alguns conceitos postos em
circulação pelo debate recente no campo educacional, construídos no âmbito da crítica à
racionalidade técnica, provenientes de três fontes principais: i) de uma análise das práticas
que leve em conta suas características de “complexidade, incerteza, instabilidade,
singularidade e conflito de valores” (Gómez apud Monteiro, 2002: 77); ii) do campo da
epistemologia, considerando a relatividade do conhecimento científico e, ao mesmo tempo, a
legitimidade de outras modalidades de saber, particularmente aquelas que importem na
identificação de uma problemática dos saberes docentes e no reconhecimento da centralidade
do saber da experiência para a construção de um novo profissionalismo, como diria Tardif
(2002), e finalmente; iii) do campo do currículo, concebido como
“campo de criação simbólica e cultural, permeado por conflitos e contradições, de constituição complexa e híbrida, com diferentes instâncias de realização: currículo formal, currículo real ou em ação, currículo oculto” (Monteiro, 2002: 76).
Ainda que seja possível e necessário aprofundar a crítica à racionalidade técnica e ao
paradoxo a que deu origem, relativamente à identidade do professor, mergulhando em cada
uma das fontes indicadas acima, este trabalho tem ambições mais modestas. O que aqui se
pretende é tratar apenas de algumas contribuições emergentes do campo do currículo em
contato com os problemas vigentes no ensino de História, muito embora as questões que
aborda não sejam de todo estranhas às demais áreas científico-culturais, que são objeto das
licenciaturas, particularmente aquelas oferecidas pelos diferentes cursos da FAFIC: a
Matemática, a Filosofia, as Letras e a Pedagogia. De fato, embora com traços iniludivelmente
comuns, conferidos mais amplamente pela profissão ou localizados na instituição, cada uma
dessas áreas encontra na história das disciplinas escolares e na economia interna de seus
respectivos ensinos uma razão profunda para que sejam pensadas e tratadas como
72
particularidades que a formação não pode ignorar. Assim, segundo Chervel (1990: 185), as
disciplinas escolares
“constituem em cada época um conjunto acabado e com limites claramente traçados. Sua delimitação e sua designação realçam problemas de natureza diversa, dos quais a solução não pode surgir a não ser de um estudo detalhado de cada caso (...): todas essas matérias de ensino trazem de fato sua problemática própria”.
O tratamento aqui de tais contribuições, portanto, baseia-se na discussão estabelecida por Ana
Monteiro (2002) em sua tese doutoral, defendida no Departamento de Educação da PUC do
Rio de Janeiro, envolvendo uma literatura específica na construção de três conceitos
principais: a cultura escolar, a transposição didática e o saber histórico escolar.
[4]
A problemática de que parte o trabalho de Monteiro (2002) articula, por um lado, “o
reconhecimento da especificidade e complexidade do campo educacional” (idem: 77) e, por
outro lado, uma “concepção compreensiva, relativista, pluralista” da cultura (idem: ibidem),
redefinindo a escola como espaço configurado por e configurador de uma cultura escolar. Se
na racionalidade técnica os saberes eram inquestionáveis, eles aqui são interpelados por uma
perspectiva que investiga: primeiro, sua natureza resultante de um processo de seleção
cultural; segundo, sua constituição fundada em imperativos de didatização e na exigência de
axiologização, transformando objetos da cultura em objetos de ensino e deslocando
prioridades da exposição teórica (fazer compreender) para a exposição didática (fazer
aprender) e; terceiro, sua especificidade, que considera
“a escola como sendo também verdadeiramente produtora ou criadora de configurações cognitivas e de habitus originais que constituem de qualquer forma o elemento nuclear de uma cultura escolar sui generis” (Forquin, 1992: 35).
Essa abordagem reconhece, sem dúvida, a importância da reflexão proposta originalmente por
Michel Verret e desenvolvida em seguida por Yves Chevallard, do ponto de vista de uma
didática das matemáticas, partindo do pressuposto da pluralidade dos saberes, da anterioridade
temporal e moral do saber acadêmico e da constatação de que o saber a ensinar (Chevallard
73
evita a expressão saber escolar) aparece na escola como um saber exilado de suas origens,
desgarrado de um tempo, qualquer que seja ele, de um lugar ou autoria, com a “evidência
incontestável das coisas naturais” (Monteiro, 2002: 80). Em Chevallard, a transposição
didática consiste num processo de didatização do saber sábio ou acadêmico que ocorre em
duas esferas distintas e subseqüentes: uma externa – a noosfera – na qual técnicos,
representantes de associações, professores etc selecionam e estruturam didaticamente o saber
a ensinar, e outra interna, onde professores em ação produzem a variante local do texto do
saber ou o saber ensinado concretamente na experiência de suas aulas.
Essa descontextualização do conhecimento em face do campo científico stricto sensu e a sua
conseqüente recontextualização no campo educacional, configurando saberes didatizados e
originais, envolve, segundo Chevallard, cinco processos básicos: a dessincretização ou
decomposição do saber em saberes parciais e a constituição de uma nova síntese, em outra
racionalidade; a despersonalização, que expulsa os sujeitos do interior de suas produções,
tornando o saber a ensinar um texto, por assim dizer, de domínio público; a programabilidade
ou a definição de seqüências para aquisição progressiva pelo aluno; a publicidade, definindo
explicitamente o saber a ensinar e, finalmente; o controle social das aprendizagens, que
estabelece mecanismos e rotinas de verificação e de certificação dos conhecimentos
adquiridos. Se, com o tempo, esse saber a ensinar experimenta um desgaste biológico (por
distanciamento da academia) e um desgaste moral (afastando-se do campo de experiências e
vivências sociais dos alunos), ele perde legitimidade que deverá ser restabelecida mediante a
retomada, desde o princípio, do processo de transposição.
A despeito do reconhecimento de méritos evidentes na reflexão de Chevallard, especialmente
no que se refere ao reconhecimento de uma razão didática inerente ao saber a ensinar,
Monteiro (2002) esboça um breve inventário das críticas dirigidas à sua concepção de
transposição didática. A primeira é que o próprio termo sugere uma transposição, mas não
uma ruptura ou uma descontinuidade no plano epistemológico. A segunda é que a ênfase está
posta no saber acadêmico, negando a existência de outros saberes de referência, já que o
restabelecimento da legitimidade do saber a ensinar se dá sempre e necessariamente por via
do resgate de seus nexos com o saber sábio. A terceira é que, embora enfatizando o campo da
didática, Chevallard negligencia dimensões mais amplas, do escolar e do educacional,
recusando outras referências de transposição e desconsiderando os saberes sociais dos alunos,
senão no intuito de que sejam corrigidos, além de ignorar o enraizamento sócio-político-
74
cultral não só dos saberes a ensinar e ensinado, mas do próprio conhecimento acadêmico. Por
fim, desenvolvida para o campo das matemáticas, resta evidenciar as possibilidades de sua
aplicação em outras áreas.
Finalmente, procurando rever o conceito para torna-lo aplicável à compreensão do saber
histórico escolar, Monteiro recorre à tentativa desenvolvida por M. Develay no sentido de
ampliar e flexibilizar a operação de transposição didática considerando, primeiro, que é
impossível restringir as referências do saber a ensinar apenas ao saber acadêmico, trazendo
para a análise o conceito de prática social de referência, referindo-se
“a atividades sociais diversas (atividades de pesquisa, de produção, de engenharia, domésticas e culturais) que podem servir de referência às atividades escolares e a partir das quais se pode examinar, no interior de uma disciplina dada, o objeto de trabalho, ou seja, o domínio empírico que constitui a base de experiência real ou simbólica sobre a qual irá se basear o ensino” (Develay apud Monteiro, 2002: 86);
além disso, Develay considera também que as articulações envolvendo o saber acadêmico e a
prática social de referência, por um lado, e o saber a ensinar e o saber ensinado, por outro
lado, não são unidirecionais e descendentes, mas também ascendentes, de mão dupla ou
reciprocamente legitimados. Desse modo, seria possível pensar num outro programa para a
transposição didática que levasse em conta não apenas processos de didatização (embora
melhorados, posto que não necessariamente dessincretizados, despersonalizados e linearmente
programados), mas também de axiologização, enraizando os saberes num conjunto de valores
e de escolhas éticas que configuram o currículo oculto.
[5]
Por maior que seja a importância do conceito de transposição didática na possível renovação
paradigmática da compreensão do ensino, da docência e, por extensão, da formação de
professores, é preciso reconhecer que, nem ele dá conta do universo de mediações e
determinações expresso pelo conceito de cultura escolar, nem todos os saberes, práticas e
representações que circulam em seu interior resultam de um processo de transposição. Afinal
de contas, conforme ficou dito anteriormente, nem todas as seleções culturais realizadas pelas
escolas e pelos docentes, pelos agentes das dimensões externas e internas da transposição,
75
aproveitam exclusivamente materiais dos saberes acadêmicos. Também a prática social em
geral, no sentido de Develay, em seu trabalho de produção da memória coletiva (aquilo que
não se quer deixar esquecer, mesmo que necessariamente ressignificado para que seja mais do
que uma simples sobrevivência anacrônica do passado) e de seleção de maneiras de viver,
num dado momento da cultura, constituem referências fundamentais de transposição. De
acordo com D. Lawton (apud Forquin, 1992: 31),
“certos aspectos de nosso modo de vida, certos tipos de conhecimento, certas atitudes e certos valores são considerados, na verdade, como tendo suficiente importância para que sua transmissão à geração seguinte não seja deixada ao acaso em nossa sociedade, mas seja confiada a profissionais especialmente formados (os docentes) no contexto de instituições complexas e custosas (as escolas)”.
Além disso, mais do que envolver aquelas dimensões e processos de transposição, de que trata
Chevallard (às quais se fez referência no item anterior), é preciso considerar também –
primeiro – que não se trata apenas de transpor ou transformar um objeto da cultura em objeto
de ensino, mas de incluir uma atenção sistemática em relação às estratégias de interiorização
desse objeto (cf. Verret apud Forquin, 1992: 33), tendo em vista sua aprendizagem ou sua
incorporação pelo aluno sob a forma de esquemas operatórios ou de habitus e – segundo –
que essa transformação ou transposição traz a marca “da natureza do contexto institucional
no qual se desenrolam as aprendizagens”, que lhe impõe um determinado conjunto de traços
morfológicos e estilísticos característicos de um “produto escolar” (Forquin, 1992: 33, 34).
Ademais, o risco de se instalar uma concepção aplicacionista de transposição surge também
como decorrência do fato de que, conforme já se mencionou anteriormente, Chevallard não
considera em sua análise a dimensão educativa que, para Ana Monteiro (2002: 83)
“é um elemento estruturante fundamental para que se possa entender o processo de constituição do saber escolar. O contexto sócio-político-cultural configura um quadro dentro do qual opções são realizadas para a constituição dos saberes a ensinar e ensinado e também inclusive para a definição e orientação das diferentes linhas de pesquisa que dão origem ao saber acadêmico. Ao se referir às demandas do entorno ou ao desgaste do saber ensinado face às inovações, mudanças e demandas sociais, ele nos remete ao saber acadêmico para corrigi-las e atualizá-lo. Percebe-se um posicionamento que busca manter a análise e seus referenciais dentro de um enquadramento científico, e que encontra dificuldades para reconhecer o enraizamento sócio-político-cultural da construção dos saberes acadêmico e escolar”.
76
Finalmente, Forquin (1992: 35) salienta o fato de que a escola também produz materiais
culturais que não estavam previamente dados na cultura externa, nem nos saberes acadêmicos,
nem mesmo nas práticas sociais em geral. Tais materiais culturais, que
“não podem ser consideradas, propriamente falando, nem como o reflexo nem como o substitutivo de saberes de referência em uso na vida social ou elaborados pelos profissionais do conhecimento científico ou erudito, mas constituem entidades culturais próprias, criações didáticas originais” (grifos adicionados),
assumindo a forma de saberes típicos ou de formas típicas de atividades intelectuais,
modelam habitus e influenciam práticas culturais e modos de pensamento, cumprindo, por
isso mesmo, “uma função de integração lógica ao mesmo tempo que de integração moral e
social” (idem: 36).
[6]
É nesse sentido e nesse contexto mais amplo da cultura escolar, como espaço sócio-cultural de
integração lógica, moral e social dos indivíduos, que se poderia encontrar uma compreensão
profunda para as disciplinas escolares. De acordo, ainda, com Forquin (1992: 37),
“uma das características morfológicas essenciais do saber escolar é sua organização sob a forma de matérias (disciplinas) de ensino, dotadas de uma forte identidade institucional e entre as quais existem fronteiras bem nítidas”.
Mas este saber escolar, do mesmo modo que cada disciplina escolar a que dá origem e em
que ele se estrutura e se organiza, não é mais um saber independente de práticas
contextualizadas na escola, não é mais reflexo nem substitutivo de produtos externamente
produzidos. Transitando de uma história do currículo em sentido lato para uma história social
das disciplinas escolares, Ivor Goodson analisa padrões de nascimento e de evolução de
algumas disciplinas, dentre as quais a Geografia e a Biologia. Particularmente no caso da
primeira delas, Goodson mostra que a relação entre disciplina acadêmica e matéria escolar,
para além de um razoável consenso aceito tanto por educadores quanto por leigos, sustentado
por instâncias e sujeitos díspares tais como porta-vozes governamentais, agências
educacionais, associações de disciplinas e pela mídia em geral, freqüentemente ultrapassa o
77
senso comum. “Surpreendentemente”, o estudo histórico da Geografia como disciplina
escolar revela que
“a história não é uma história da tradução de uma disciplina acadêmica, planejada por grupos (‘dominantes’) de acadêmicos nas universidades, para uma versão pedagógica, a ser usada como uma Matéria escolar. (...) O processo de evolução das matérias escolares pode ser visto não como um padrão de disciplinas ‘traduzidas’ para baixo ou de ‘dominação’ para baixo, mas muito mais como um processo de ‘aspiração’ para cima” (Goodson, 1990: 249).
Também Chervel (1990) questiona essa concepção da matéria escolar como a justaposição de
uma disciplina-vulgarização, em que conteúdos de ensino são externamente impostos à escola
pela sociedade e pela cultura, sobretudo a partir de conhecimentos acadêmicos simplificados e
vulgarizados, e de uma pedagogia-lubrificante que lhe arranja os métodos mais adequados.
Segundo Chervel (1990: 182), os métodos pedagógicos não são coisas externas aplicadas aos
conteúdos, mas “componentes internos dos ensinos”. Dizendo mais amplamente,
“a pedagogia, longe de ser um lubrificante espalhado sobre o mecanismo, não é senão um elemento desse mecanismo, aquele que transforma os ensinos em aprendizagens”56.
Nesse sentido, então, as disciplinas escolares aparecem como criações originais da escola,
com suas próprias e respectivas histórias, articulando uma problemática que envolve: primeiro
– finalidades educacionais, ou melhor, a missão que a sociedade confia à instituição escolar e
esta repassa aos ensinos; segundo – os ensinos propriamente ditos, concebidos como
finalidades postas em ação mediante a produção original de configurações disciplinares e;
terceiro – os resultados que traduzem a aprendizagem como um processo de aculturação
escolar dos alunos. Tal problemática, enfim, se enraíza os conteúdos de ensino na sociedade e
na cultura mais ampla, viabilizando uma história social das disciplinas escolares, nem por isso
deixa de considerar a especificidade da escola e das disciplinas. Mais uma vez lembrando
Chervel (1990: 180),
“os conteúdos de ensino são concebidos como entidades sui generis, próprios da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda realidade cultural exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer, à sua própria história”.
56 Ver p. 65.
78
[7]
A História, além de uma disciplina acadêmica que envolve, no dizer de Certeau (1979), um
lugar social e práticas científicas controladas por uma comunidade de ofício rigorosa e
extensa, socialmente reconhecida e prestigiada, é também uma disciplina escolar entre
disciplinas escolares, devendo verificar-se em que medida a ela se aplicam aquelas três
hipóteses desenvolvidas por Ivor Goodson a respeito da Geografia, quais sejam: i) de que as
matérias escolares não são entidades monolíticas, mas “se apresentam antes como agregados
instáveis de subgrupos e de tradições heterogêneas”; ii) de que o processo de sua
implantação passa “pela substituição de uma legitimação acadêmica a uma justificação
puramente pedagógica ou utilitária” e, finalmente; iii) de que a incorporação curricular de
matérias novas representa “um elemento conflituoso para as disciplinas já existentes (...)
devido aos problemas de definição de estatuto, de divisão de recursos, de delimitações
territoriais colocadas por sua admissão no corpus de saberes escolares e por sua introdução
nos horários escolares” (cf. Forquin, 1992: 40). Obviamente, a amplitude de análise
anunciada aqui escapa aos objetivos e aos limites estreitos deste trabalho.
Como disciplina escolar, e para realçar essa especificidade construída para e adquirida no
ensino, a literatura tem procurado empregar denominações próprias tais como História
Ensinada ou Saber Histórico Escolar. De acordo com Monteiro (2002), levar em conta a
dimensão propriamente educativa da História como disciplina escolar impõe a consideração e
o enfrentamento de um duplo desafio: de um lado, estabelecer as articulações necessárias que
mantém com o conhecimento histórico; de outro lado, buscar reconhecer, na História
Ensinada, as determinações que fazem dela um saber escolar e que permitem reconhecer, ali,
“um conteúdo de instrução a serviço de uma finalidade educativa” (Monteiro, 2002: 92). No
primeiro caso, predominam aspectos inerentes a uma dimensão propriamente epistemológica
do Saber Histórico Escolar, na medida em que, a partir de referências historiográficas, é
preciso considerar a pluralidade de concepções e regimes de verdade, a relação entre o
conhecimento histórico e a realidade e o problema da produção ou da escrita da História; no
segundo caso, o que está em jogo são questões relativas à produção de sentidos para a vida
coletiva, ao contexto sócio-cultural e aos valores e subjetividades interagindo no ensino,
característicos de uma dimensão axiológica da História escolar.
79
Segundo, ainda, Monteiro (2002), a História é, além de um termo polissêmico, um conceito
histórico. Dizer isto significa reconhecer que, ao longo do tempo, variaram as maneiras de
conceber seu significado e de empreender sua escrita. A autora identifica três grandes
paradigmas historiográficos, verdadeiros modos de apreensão global da história como
conhecimento e como processo, sendo que pelo menos dois deles encontram-se solidamente
incorporados ao pensamento de senso comum, constituindo uma visão de mundo corrente e
cotidiana que, por essa via, parece impregnar em profundidade também o saber escolar, em
geral, mas particularmente o Saber Histórico Escolar. Não se trata de recuperar aqui uma
tradição de pesquisa do final dos anos 1980 e início dos 90 que procurava identificar
concepções de mundo e de história como mediadoras da prática do ensino da História, mas de
considerar que tais paradigmas, incorporados à história vivida, no sentido de Moniot (apud
Monteiro, 2002: 105), como “uma linguagem compartilhada e uma prática”, constituem
referências fundamentais transpostas para o ensino.
Considerar as coisas desse modo contribui para compreender as razões profundas de algumas
permanências na História Ensinada, mesmo que amplamente denunciadas e criticadas por
uma certa abordagem, digamos, de perfil disciplinar acerca dos problemas do ensino. É o
caso, por exemplo, da sobrevivência largamente difundida do famoso (e famigerado) modelo
quadripartite francês (cf., entre outros, Fonseca, 2004: 43-44). Analisando os livros didáticos
aprovados pelo PNLD, em 2002, Abud (2004) descobre “um fato até certo ponto espantoso”
no artigo intitulado “História que não muda”, publicado na edição nº 9 da revista Nossa
História: trata-se do viés genético-cronológico-integrado com que são organizados e
apresentados os conteúdos na maioria daqueles manuais. Resta refletir se mais espantoso
ainda não seria o esforço de tentar atualizar os materiais de ensino a cada nova descoberta da
historiografia (de resto tão plural), ou mesmo, negando qualquer especificidade à História
escolar, considerar que, sempre, porque muda a ciência (uma das esferas) de referência,
imediatamente o saber escolar deveria ser corrigido e atualizado...
Particularmente em relação ao referido modelo quadripartite, não se trata aqui de defendê-lo,
mas de questionar se, para além de meramente condenar o anacronismo de que se reveste sua
permanência no ensino, mais fértil não seria, porventura, compreender por que persiste. Se ele
não mais se legitima pela Razão Histórica, existiriam outras razões necessárias e suficientes
para prosseguir em sua legitimação, de modo a mantê-lo vivo nas concepções dos autores dos
livros didáticos, no conhecimento cotidiano dos sujeitos sociais e nas estratégias de
80
aprendizagens pactuadas por professores e alunos? Se, de fato, ele já se encontra
definitivamente banido do debate historiográfico e se, por hipótese, nem mesmo na
organização curricular dos cursos de bacharelado ou de licenciatura em História é possível
encontrar vestígios daquela antiga estrutura que combinava eixos espaciais e cronológicos na
definição das disciplinas, moldando as concepções dos novos historiadores e professores, sua
sobrevivência, então, representaria apenas um tributo a ser pago à socialização ancestral e à
memória?
[8]
O Saber Histórico Escolar, portanto, se constitui em um movimento cuja leitura se desdobra
em dupla dimensão: uma epistemológica e outra axiológica. Do ponto de vista
epistemológico, ele incorpora questões colocadas por aqueles paradigmas historiográficos
mencionados no item anterior, acerca da concepção de verdade, da relação entre
conhecimento e realidade e do problema de sua escrita. No primeiro deles, a historia rerum
gestarum, criada por Cícero, na Antigüidade ocidental, e vigente pelo menos ate o século
XVIII, a História é magistra vitae, narrativa daquilo que aconteceu. Distinguindo o continuum
do que aconteceu e sua narrativa, considera que o historiador-filósofo tem por ofício
selecionar, na pluralidade dos acontecimentos passados, aqueles que pela exemplaridade
devem ser imitados ou evitados nas atitudes do presente, de modo a constituírem o futuro
desejado. Tal concepção de História como mestra da vida, ensinando com o passado a
compreender melhor o presente e produzir o futuro, ainda parece encontrar eco nas práticas de
professores de História, instados a justificar para si mesmo e para seus alunos, a importância
da disciplina que ensinam.
De acordo com o segundo paradigma, a história (Geschichte) é, simultânea e
inseparavelmente, história e História, auto-explicitação progressiva dos fatos no devir e sua
apropriação científica, neutra, objetiva e verdadeira, para a qual o historiador não passa de
instrumento. Expressa, sobretudo, pelo historicismo alemão do século XIX, a história é
sucessão de fatos singulares, únicos e irrepetíveis, estabelecidos mediante crítica e análise de
documentos organizados em arquivos, totalizados pela narrativa, que deve recuperar o fluxo
do devir acelerado pelo progresso. Como ação e conhecimento não se separam, a história fala
por si mesma e essa auto-explicitação oculta o sujeito de sua narrativa; expressando a
81
linguagem da história, os fatos devem ser estabelecidos na ordem mesma de seu
aparecimento: desse modo, a cronologia é a sintaxe por meio da qual a história fala de si.
Elidindo sujeitos e subjetividades, a Geschichte constitui um conhecimento objetivo e neutro
que é a própria manifestação dos fatos, tal qual realmente aconteceram. Nessa medida,
preenchendo os requisitos de cientificidade de seu tempo, essa história que se justifica não no
passado, mas no devir e no progresso, é verdadeira enquanto tal.
Sob muitos aspectos, a Geschichte se faz presente no Saber Histórico Escolar, a começar pela
pretensão à neutralidade, pela objetividade e pelo estatuto de realidade de que se revestem os
fatos e processos históricos em sua organização e apresentação. Independentemente de
posicionamentos historiográficos ou mesmo políticos explicitamente assumidos pelos
professores, o discurso histórico escolar é um discurso sem sujeito (a despeito da importância
da performance individual do professor), ou melhor, sem autoria, não só em função do
requisito de despersonalização inerente ao processo da transposição didática, mas também
porque a história é explicada ou contada aos alunos como se correspondesse realmente, em
toda sua extensão, à verdade dos fatos que se quer explicar ou narrar. Nenhum desvão
falseando a relação entre conhecimento e realidade, nenhuma sobressalto interrompendo a
linearidade objetivamente cronológica dos fatos, nenhuma dúvida que novos e aprofundados
estudos (ou novas pesquisas) não possam dirimir, para que impere, soberana, a versão
inquestionável da verdade escolar.
Salvo se o paradigma é outro. A partir dos Annales, tem início o gesto de repúdio à narrativa
linear e cronológica da histoire événementielle na edificação de um projeto que faz a reflexão
transitar do indivíduo ao social, do tempo curto às conjunturas e estruturas, da história política
à história para a qual nada do que é humano lhe é indiferente. Um projeto em que o tempo não
é reificado, mas socialmente construído, e sua apreensão, sendo ela também histórica, não
pode se dar senão por reconstrução, isto é, resgatando o historiador do oculto da objetividade,
na Geschichte, e obrigando-o a assumir sua subjetividade no ato da produção do
conhecimento, formulando seus problemas, reunindo suas fontes, explicitando suas teorias e
métodos, construindo seus objetos, produzindo, enfim, novas sínteses articulando diferentes
temporalidades. O presente é o tempo do historiador e seus problemas. E é desse lugar que a
História escolar vem sendo incessantemente interpelada por uma história-problema, a lhe
desafiar os limites, testar a resistência, questionar as certezas e ameaçar a força com que a
tradição consagra o pacto que sustenta sua hegemonia e permanência na escola.
82
Enfim, historia rerum gestarum, Geschichte e história-problema sobrevivem no Saber
Histórico Escolar, embora na tensão. E sobrevivem não como tradução literal do debate
historiográfico, mas como um amálgama de História e vida, de História e memória, posto que
o conhecimento histórico, talvez diferentemente de outros objetos do conhecimento, recusa-se
a permanecer confinado à essa pura e simples condição de objeto de conhecimento,
reafirmando insistentemente sua vocação de linguagem compartilhada e de prática social, com
diferentes usos, nos termos sugeridos por Moniot.
[9]
“A História escolar é uma enorme e polivalente lição de coisas sociais, morais e intelectuais.”
(Henri Moniot)
Finalmente, tomando por base os trabalhos de H. Moniot e N. Allieu, Monteiro (2002) discute
a especificidade da História Ensinada, do ponto de vista das possibilidades e limites de
utilização dos conceitos de saber escolar e de transposição didática, tanto na dimensão
epistemológica quanto axiológica. E o faz levando em conta alguns eixos fundamentais de
discussão. Em primeiro lugar, problematizando a relação entre História escolar e História
acadêmica, reconhece, com Moniot, a precedência da segunda em relação à primeira, mas
nem considera que seja essa a ordem exclusiva das legitimações, já que entre ambas se
estabelece uma reciprocidade nesse aspecto (ou seja, se uma legitima a outra no campo
acadêmico, inversamente é na escola se produz “uma reverência e uma segurança pública”
para o conhecimento historiográfico, cf. Moniot apud Monteiro, 2002: 100), por um lado, nem
considera, por outro, que seja possível partir de uma definição clara dos conhecimentos
propriamente acadêmicos de referência, dadas as diferentes perspectivas de intelegibilidade e
os diferentes eixos de análise da História. Allieu acrescentaria, ainda, diferentemente de
Chevallard, que saber acadêmico e saber escolar não se constituem por um movimento
descendente e de transposição, mas ascendente e de interpelação.
Em segundo lugar, considera que não é possível ignorar o debate em torno da questão da
verdade ou dos regimes de verdade e da natureza do conhecimento. Em História, não é
83
possível sustentar mais do que a prevalência de uma verdade relativa e parcial (histórica, na
verdade), uma vez que seu objeto é sempre contextualizado e construído desde um
determinado ponto de vista (e não de outros). Tal fato é o que lhe confere o estatuto de uma
ciência hermenêutica, na qual é possível compreender e interpretar, mais do que desvelar e
explicar fenômenos históricos, resgatando a subjetividade daquele oculto em que a linearidade
cronológica havia encerrado o sujeito. No ensino, diferentemente, será preciso distinguir um
primeiro estrato onde, então, se produz um relativo consenso sobre os fatos, cuja dimensão
epistemológica passa por uma legitimação acadêmica, e um segundo em que os conteúdos são
selecionados e apresentados segundo exigências impostas pela especificidade da educação
escolar, numa dimensão claramente axiológica.
Em terceiro lugar, Monteiro (2002) examina a questão da multiplicidade de referências para o
saber escolar, retomando uma vez mais a perspectiva da reciprocidade de legitimações entre
as Histórias acadêmica e ensinada. Considera, com Allieu, que na História escolar não é
possível passar ao largo dos sentidos a ela atribuídos pelo professor, reinventando a História a
cada aula, e pelos diferentes sujeitos na interação escolar (professores, alunos e instituições),
de resto, atores imersos num mundo que lhes modela a própria capacidade de produzir
sentidos. Nesse sentido é que Allieu fala em interpelação, mais do que em transposição, na
medida em que, se o professor recorre à História para legitimar seu saber no campo
acadêmico, ele também seleciona, recorta, recontextualiza, sincretiza, enfim, ressignifica não
uma, apenas, mas muitas Histórias, em função de suas necessidades propriamente educativas
e escolares. E, ainda mais, conforme já se mencionou anteriormente, não há apenas uma
ciência de referência para a transposição, na medida em que, mais do que apenas um objeto, a
história “é uma linguagem compartilhada e uma prática” (Monteiro, 2002: 105) com muitos
usos e, como história vivida, ela é sua própria “prática social de referência” (cf. Develay),
dialogando com outras práticas sociais específicas. Enfim, a História acadêmica, os valores e
a produção de sentidos pelos sujeitos, além da própria cultura como ambiente de mergulho,
são, todos, referências essenciais para o processo da transposição.
Por fim, em quarto e último lugar, Monteiro (2002) considera questões relativas à
organização, justificativa e finalidade da História Ensinada. Do ponto de vista de sua
organização, diferentemente de outras disciplinas escolares, a História não tem exercícios ou
atividades específicas, definindo-se pelos seus próprios conteúdos, para os quais a tradição de
exigência de controle e rotinização das aprendizagens escolares inventou o perfil de uma
84
disciplina de memorização. Quanto às justificativas e finalidades do seu ensino, muitas seriam
as respostas possíveis para uma só pergunta: afinal, por que e para que se ensina a História?
Moniot aponta pelo menos três delas: porque contribui para compreender o mundo e seu caos,
porque fornece um método para lidar com os acontecimentos e porque, afinal, não deixando
que se perca o que quer que se considere socialmente relevante, porque alimenta a memória
coletiva. O professor Joel Rufino (1993: 10-11) também oferece algumas respostas
sugestivas, numa pequena publicação destinada à formação continuada de professores, no 2º
Programa Especial de Educação, do Governo do Estado do Rio de Janeiro, no início dos anos
1990. Segundo ele, a História serve para não deixar esquecer, para não deixar mentir e para
não deixar morrer. Serve também para alertar que tudo muda sempre na vida dos homens e
das sociedades. Para ilustrar essa última justificativa, o professor conta aos professores esta
pequena história:
“A maioria dos motorneiros e condutores dos bondes (no tempo do bonde, em Tomás Coelho, no Rio de Janeiro) eram portugueses. (...) Havia de tudo entre aqueles dedicados profissionais, mas vocês ficarão surpresos em saber que havia um filósofo. Era condutor da linha 98, Irajá – Cascadura. Chegava sempre para trabalhar com uma tabuleta debaixo do braço. Pendurava-a de frente para os usuários, orgulhosamente, e só depois ordenava a partida: ‘Vai sair o 98!’. A tabuleta era esta:
‘Na vida, tirando o condutor e o motorneiro, tudo é passageiro’”.
[10]
O foco nos conceitos de cultura escolar, de transposição didática e de saber escolar,
particularmente deste saber específico que é a História Ensinada ou o Saber Histórico
Escolar (permanecendo ainda em dívida com relação à problemática dos saberes docentes),
parece ter deixado para trás a discussão sobre a formação de professores e sobre as práticas
formativas vigentes na licenciatura em História da FAFIC. Deixar para trás, no entanto, não
significa deixar de lado: o objetivo deste texto consiste, fundamentalmente, na procura de
referências alternativas que ousem sustentar um outro modelo, quiçá um outro paradigma para
a formação. Desde já, é preciso não perder de vista que, nessa outra perspectiva, formar não
significa apenas certificar na licenciatura, mas também iniciar nos movimentos da docência.
Não significa também algo permanente, que começou desde sempre e que não acaba nunca:
algo que, de tão permanente, tenha perdido qualquer especificidade e qualquer duração. É
85
preciso reconhecer, afinal de contas, que a formação de professores tem um início (quando
deliberadamente começa a preparação para a docência), tem uma estrutura (integrando
práticas formativas e saberes da docência, dentre os quais a disciplina escolar, esse patinho
feio que para a academia é fonte de todas as deformidades e de nenhuma beleza, necessita ser
urgentemente revisitada) e tem um fim (quando então se diz que o professor está preparado,
não para ser professor pronto e acabado, mas para prosseguir caminhando com as próprias
pernas). A formação tem um começo e tem um fim, mesmo que esteja enraizada num antes e
que estenda seus ramos na direção esperançosa de um depois...
86
CAPÍTULO 4 – (PREÂMBULO) A Crônica da FAFIC no Ensino Superior Brasileiro
A – A família que me dei: Olhares internos na percepção da FAFIC
(Apontamentos para uma crônica, 1961-2005)57
Todo homem pressupõe
outras condutas antes dele 58
(Norbert Elias)
Esta narrativa, ainda bastante imprecisa, não pretende senão iniciar a realização de uma
necessidade e de um desejo. A necessidade prende-se à exigência, nesses tempos de retomada
e concretização do ideal da universidade, de apropriação explícita do passado da Faculdade de
Filosofia de Campos. Se é verdade que seu passado, de fato, lhe pertence, esse pertencimento
só se realiza na transformação do óbvio esquecido e, por isso mesmo, oculto, em presente
cultural e objetivamente apropriado, com todas as suas muitas versões e em toda a extensão
de sua memória.
Quanto ao desejo, há nele um quase nada de metodológico (para além da precariedade,
embora flexível, de uma periodização decenal). Envolve uma Filosofia que seja como o lugar
almejado pelo poeta, posto que:
“Ali um vôo termina, outro vôo se inicia” 59.
01. Os pioneiros anos 60
A Faculdade de Filosofia de Campos iniciou suas atividades em 20 de maio de 1961,
funcionando provisoriamente no velho prédio do Ginásio Industrial Nilo Peçanha, com aula
inaugural ministrada pelo professor José Carlos Lisboa. Sua primeira Direção, integrada por
57 Comentários impressionistas, fontes coloquiais, referências imprecisas, tudo nesta seção contraria as exigências rigorosas do trabalho acadêmico. Não obstante, o formato do texto contribui para explicitar os vínculos pessoais e afetivos que subjetivamente aproximam o autor e a instituição. 58 ELIAS (1998: 19). 59 PAES (1992: 13).
88
Maria Thereza da Silva Venâncio (Diretora) e Jerônymo Ribeiro (Vice-Diretor), esteve à
frente da instituição durante o biênio 1961-1963.
O Curso de Letras Neo-Latinas foi o primeiro a ser implantado, autorizado pelo Decreto nº
50.401, de 3 de abril de 1961, publicado no DOU de 6 de abril do mesmo ano. A primeira
turma contava com apenas 9 alunos. Até seu reconhecimento, no entanto, pelo Parecer nº 362,
de 13 de novembro de 1964, e Decreto nº 55.908, de 12 de abril de 1965, o número de alunos
irá saltar para 64.
Com o reconhecimento do Curso de Letras, no ano seguinte surgiram três novos cursos: o
Parecer nº 21, de 4 de fevereiro de 1965, e o Decreto nº 55.910, de 12 de abril do mesmo ano,
autorizaram os cursos de Jornalismo, História e Pedagogia. Um ano depois foi a vez da
autorização do Curso de Matemática (Parecer nº 1.014, de 24 de janeiro de 1966, e Decreto nº
58424, de 17 de maio de 1966).
A velha sede ficava pequena demais para acompanhar o crescimento das matrículas. O curso
supletivo do Nilo Peçanha, que também funcionava em horário noturno, foi transferido para o
Grupo Escolar XV de Novembro. O problema da acomodação persistia, no entanto, para os
cinco cursos que funcionavam no horário das 17h30m às 22h. Em 1968, a Faculdade de
Filosofia mudava para o Pavilhão João Batista Tavares da Hora, anexo ao velho solar do
Barão da Lagoa Dourada, onde funcionava o Liceu de Humanidades de Campos.
Então com importante influência de elementos ligados ao clero católico local, de perfil
conservador, uma questão de fundo comportamental mobilizou professores e, sobretudo,
estudantes, naqueles tempos de Liceu: afinal, as alunas poderiam ou não freqüentar as aulas
de calças compridas? Participavam do Centro Acadêmico de então, dentre outros, os futuros
professores Carlos Alexandre e Luciano Dângelo, conforme depoimento da professora Neila
Ferraz.
Em fins dos anos 60, a Faculdade de Filosofia de Campos consolidava seus cursos,
inaugurando novos horizontes para a formação profissional, em especial para a formação de
professores em nível superior, em Campos e nas regiões norte e noroeste fluminense. Ao
encerrar a primeira década de atividade, a diretora era ainda a professora Maria Thereza da
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Silva Venâncio, embora os vice-diretores tenham sido sucessivamente substituídos por Álano
Barcelos (1964-1967) e Fernando de Andrade (1967-1970).
Os cursos de Jornalismo, Matemática, Pedagogia e História foram reconhecidos pelo Parecer
nº 544, de 30 de abril de 1968, que deu origem ao Decreto nº 64.105, de 12 de fevereiro de
1969, publicada no DOU dois dias depois. A sede própria estava a caminho, iniciada sua
construção também em 1969, em terreno cedido pela municipalidade, no Parque Leopoldina.
Em 1970, a Faculdade de Filosofia de Campos contava com 371 alunos matriculados em seus
cinco cursos.
Havia muito ainda por fazer, mas o indispensável ia sendo feito. A modernização autoritária
imposta ao país, sobretudo naquele contexto da longa noite dos generais, de um lado, fazia
crescer a demanda por uma mão-de-obra qualificada, com formação em nível superior. Mas
não era apenas por isso que, em Campos dos Goytacazes, a FFC pontificava: uma perspectiva
menos restrita de acesso ao ensino superior também prenunciava novos tempos...
02. A escalada nos anos 70
Assim como a década de 1960 identifica-se como um tempo de Maria Thereza Venâncio à
frente da Faculdade de Filosofia de Campos, os anos 70 serão de Nancy Barros de Castro
Faria (1971-1975, novamente com Álano Barcelos na vice-direção), mas, sobretudo, tempos
de Vera Lúcia de Moraes Passos Almeida (1975-1979 e 1979-1983, tendo sempre Carlos
Roberto Alexandre como vice-diretor). Vera Passos será ainda vice-diretora na primeira
gestão de Zuleima de Oliveira Faria (1983-1987), fixando mais de uma década de
envolvimento com os destinos da instituição.
O crescimento das matrículas foi acelerado naqueles tempos. A FFC dobra o número de
alunos entre 1971 e 1973 e, ainda antes da metade da década, ultrapassa a marca de mil alunos
(1135 alunos matriculados, em 1974), permanecendo acima da faixa de 1200 alunos entre
1975 e 1984. Todos os cursos, na verdade, anotam um crescimento de seu corpo discente, mas
o crescimento é capitaneado, sobretudo, pelo Curso de Pedagogia, com mais de quatrocentos
alunos matriculados em 1974.
90
Para além das muitas habilitações oferecidas pelo Curso de Pedagogia (Magistério das
Matérias Pedagógicas do Ensino Médio, Administração Educacional, Supervisão Educacional
e Orientação Educacional), os anos 70 representam um tempo de hegemonia da dimensão
pedagógica, tanto na organização da escola quanto no processo de formação de professores.
Isso parece refletir a sofisticação dos mecanismos de controle do Estado brasileiro sobre a
prática educativa, não obstante o aumento da resistência dos educadores, sobretudo do campo
pedagógico, comprometido com a reconstrução democrática da sociedade.
Mas a verdade é que o processo de expansão e complexificação do Ensino Superior atinge
praticamente todos os cursos da FFC. O Curso de Letras, segundo maior em número de
alunos, oferece quatro habilitações (Português e Literaturas de Língua Portuguesa, Português
– Inglês, Português – Espanhol e Português – Francês). O Curso de Jornalismo transforma-se
em Curso de Comunicação Social, a partir de 1976, oferecendo habilitações em Jornalismo,
Relações Públicas e Publicidade e Propaganda.
Também o Curso de Matemática deu lugar ao Curso de Ciências, a partir de 1975, habilitando
em Ciências (1º Grau), Ciências (2º Grau) e Matemática, retornando a sua concepção original,
de Curso de Matemática, apenas no ano 2000. Somente o curso de História permaneceu na
mesma condição desde sua criação, em 1965, embora oferecendo prática de ensino (mas não
habilitação) em Geografia, no 1º Grau. Ao longo dos anos 70, manterá uma média em torno
de 130 alunos matriculados.
Conquista fundamental, entretanto, para sustentar esse processo de crescimento da Filosofia, é
a mudança para a sede própria, à Rua Visconde de Alvarenga, s/n, no Parque Leopoldina,
desde então denominado Parque Universitário. Iniciada a obra nos idos de 1969, a
inauguração acontece em 28 de fevereiro de 1972, disponibilizando 36 salas de aula, um
auditório, dependências completas de administração e demais instalações.
03. Estabilização nos anos 80 e terremotos nos 90
Aqueles anos 80 constituem tempos de Zuleima de Oliveira Faria, em parte com Vera Passos
na vice-direção (1983-1987) e em parte com Regina Coeli Sardinha Silva (1987-1991). No
mínimo curiosa essa articulação passado / presente: quer se coloque ênfase na força das
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tradições, quer se valorize a perspectiva da experiência administrativa, a FFC forma, por
assim dizer, seus quadros dirigentes comprometidos com uma certa linha de continuidade.
Com raríssimas exceções, observa-se que os diretores permanecem por mais de um mandato à
frente da instituição.
No que se refere ao quantitativo de alunos matriculados, a década de 1980 manteve uma certa
estabilidade pelo alto, com média superior a 1150 matrículas por ano. Do ponto de vista do
perfil geral dos cursos implantados, também aqueles foram tempos menos de mudança e mais
de consolidação. Afinal, nenhum deles alterou sua concepção estabelecida no período
anterior. Mas é provável, no entanto, que tenhamos novidades importantes em outros campos,
sobretudo no âmbito propriamente curricular e nas relações entre a instituição e o contexto
regional em que se inscreve.
Nesse sentido, há que se escrever ainda o capítulo da luta, em grande parte liderada pela
Faculdade de Filosofia, pela construção de uma universidade estadual no norte fluminense,
cujo resultado, supostamente privilegiando a vanguarda e a excelência, desprezou o conteúdo
social da própria luta. Desse modo, talvez não seja grande equívoco afirmar que o sacrifício
das articulações mais profundas com a sociedade e a cultura local foi o preço a ser pago pela
implantação de um projeto que pretendia inspirar-se em modelos e padrões internacionais.
Importante registrar, também, na virada dos anos 80 e 90, a chegada da pós-graduação. Se até
então os professores buscavam sua especialização fora de Campos (e o antigo PREPES, em
Belo Horizonte, era um dos pontos mais procurados), tornava-se uma realidade a oferta de
cursos de lato sensu em praticamente todas as áreas. Eram cursos em formato de longa
duração, menos no sentido de sua carga horária (mantido o mínimo legal de 360 horas) e mais
na sua extensão ao longo de dois anos de estudos, com aulas em regime de tempo integral no
período das férias escolares.
Mas as tensões internas tendem a se acirrar nesse mesmo período, aprofundando uma cisão
entre grupos identificados, ou pelo menos que se percebiam dessa forma, como tendências
conservadoras e progressistas. A sucessão de Zuleima Faria foi crítica e a vitória de Carlos
Roberto Alexandre (1991-1995), com Álano Barcelos na vice, deu-se, de acordo com um
certo folclore presente na memória dos sujeitos, pela singela diferença de um voto rasgado no
fundo da urna.
92
Ex-vice-diretor de Vera Passos por dois mandatos consecutivos, nos anos 70, e compondo
com Álano Barcelos, vice-diretor de Thereza Venâncio em meados dos anos 60, Carlos
Alexandre inaugura os anos 90 como depositário das esperanças de uma renovação mais
profunda na vida da instituição. De fato, segmentos mais jovens, sobretudo no corpo docente,
pressionavam no sentido da introdução de mecanismos mais transparentes e democráticos de
participação, incluindo a substituição de professores. Nesse sentido, ao que parece, o Curso de
História foi pioneiro no processo de seleção pública para o preenchimento de vagas docentes.
Igualmente tensas foram as eleições para a sucessão de Carlos Alexandre e Álano Barcelos.
As pressões pelo aprofundamento das mudanças se acentuavam ainda mais, num momento em
que as matrículas iniciavam uma queda sensível. Certamente, novas análises deverão
considerar um dado oculto sob a aparência meramente quantitativa do número total de alunos.
Trata-se, por um lado, da taxa de inadimplência no pagamento das mensalidades, mas
também, por outro lado, da necessidade de novos e crescentes investimentos na ampliação e
modernização institucional.
É, pois, sob o signo do acirramento da concorrência no Ensino Superior em Campos e na
região, com a chegada de poderosas organizações do setor privado, que se elegem Regina
Coeli Sardinha Silva, ex-vice-diretora de Zuleima e então presidente da ADOFIC, e Wainer
Teixeira de Castro, professor de Filosofia e ligado à área de recursos humanos, para dois
mandatos consecutivos (1995-1999 e 1999-2003). São tempos difíceis aqueles, sobretudo o
ano de 1997, quando as matrículas atingem o nível histórico mais baixo, desde 1972, fixando-
se em 883 alunos.
A lenta recuperação até a virada da década dependerá de uma série de políticas ainda em
curso, que redefinem o perfil e, até certo ponto, a própria identidade da instituição. A política
de bolsas e a parceria com a Prefeitura Municipal certamente figuram entre as medidas mais
importantes adotadas pela direção. De fato, as matrículas lentamente recuperam a tendência
ao crescimento, fechando a década com 1095 alunos, nível compatível com a marca de
meados dos anos 80.
04. Algumas certezas nos anos 2000
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Uma segunda fase da gestão de Regina Sardinha parece solidamente associada à retomada do
crescimento e da diversificação institucional. De fato, em 2000 a Filosofia atinge 1196 alunos
e, a partir do ano seguinte, estabelece um novo patamar histórico, acima de 1400 alunos. A
marca que permeia a discussão interna, tanto do ponto de vista administrativo quanto
propriamente no prisma acadêmico, é o discurso da mudança e a meta da qualidade. Por esse
caminho, define-se, consciente ou inconscientemente, a estratégia segundo a qual a FFC irá
assumir os desafios colocados pelas novas condições do mercado do Ensino Superior na
região.
No âmbito do corpo docente, a noção de qualidade é entendida como estímulo à qualificação
do quadro de professores, mesmo porque este constitui um dos itens fundamentais do
processo mais amplo de avaliação, implantado pelos órgãos superiores da política
educacional. De fato, na recente avaliação da comissão encarregada de emitir parecer sobre as
condições de transformação das instituições mantidas pela Fundação Cultural de Campos em
Centro Universitário60, dos eixos avaliados, o corpo docente foi o único que mereceu conceito
máximo (MB).
A política de qualificação do corpo docente traduziu-se no incentivo à pós-graduação,
inclusive sob a forma de licença remunerada, refletindo-se também no plano de carreira da
instituição. O número de mestres e doutores multiplicou-se rapidamente e, se o programa de
pós-graduação já vinha se consolidando desde a segunda metade da década anterior, a ponto
de constituir uma direção adjunta com relativa autonomia, gerando importantes receitas
alternativas para a instituição, sua importância torna-se ainda maior a partir do convênio com
a UFRJ, que trouxe os cursos de Mestrado e Doutorado em Comunicação Social e Filosofia.
Uma série de medidas, ainda não completamente inventariadas pela própria instituição,
certamente ilustra esse processo de retomada do crescimento e complexificação institucional.
Instituíram-se procedimentos internos de avaliação, mesmo que embrionários e identificados
como simples “coleta de dados”, na expressão de uma recente comissão de avaliadores
externos. Tratou-se com mais cuidado da imagem visual da instituição, inclusive mudando
60 No exato momento em que se escreve esta seção (2005), a transformação das faculdades isoladas de Filosofia, Odontologia e Direito, ligadas à Fundação Cultural de Campos, em Centro Universitário Fluminense (UNIFLU) já foi aprovada pelo CNE e homologada pelo MEC, encontrando-se, finalmente, em processo de implantação.
94
sua sigla tradicional, de FFC para FAFIC. Introduziu-se a semestralidade a partir de 2001, ano
em que também foi implantado o curso de licenciatura plena em Filosofia (Parecer CNE /
CES nº 1085, de 06/08, Portaria Ministerial nº 1874, de 22/08, publicada no DOU em
24/08/2001).
O “labirinto legal”61 embutido na política do governo para o Ensino Superior no país, por
outro lado, impõe sucessivas alterações curriculares, especialmente aquelas que redefinem o
modelo anteriormente vigente para a formação de professores. É certamente a partir desse
quadro de instabilidades, e em grande medida em função dele, que se inicia a luta pela
construção do Centro Universitário, retomando uma aspiração antiga da comunidade
acadêmica, abortada entre fins dos anos 80 e início da década seguinte.
05. Para não concluir
Em meados de 2003, uma ruptura interna no núcleo do poder acadêmico opôs Regina
Sardinha e Wainer Teixeira de Castro, originando uma dura disputa pelo atual mandato na
direção da FAFIC. A vitória da chapa integrada por Regina Sardinha e Luiz Cláudio Barbosa
da Silva redefiniu compromissos, parecendo representar a opção da comunidade acadêmica
pela continuidade do crescimento, mas, sobretudo, pelas perspectivas descortinadas pelo
iminente funcionamento do Centro Universitário, ideal tão bem encarnado pela Profª Regina.
Mas esse tempo ainda não começou, efetivamente. O padrão de convivência com as
instituições co-irmãs, da Odontologia e da Direito, é ainda uma incógnita, na medida em que,
embora siamesas no corpo da Fundação Cultural de Campos, foram capazes de criar tradições
inteiramente distintas. Por outro lado, sabe-se que a legislação não exige a atividade de
pesquisa dos Centros Universitários, mas o avanço na qualificação do corpo docente se dá
justamente pela ampliação do número de mestres e doutores, formados segundo critérios que
incluem incondicionalmente a investigação, seja em ensino, seja nas respectivas áreas
específicas.
61 Linhares & Silva (2003).
95
Mas, certamente, isso não é tudo: como ficou dito no início, essa breve narrativa, ainda tão
imprecisa, passa longe de esgotar o assunto. Uma simples conversa pelos corredores da
Faculdade, na sala de professores ou em qualquer lugar onde seja possível trocar meia dúzia
de palavras será, talvez, suficiente para revelar um espaço infinito de aspectos e versões, de
histórias e sensações, de possibilidades, enfim, pelas quais a Filosofia se manifesta na
existência de cada um de seus sujeitos. Por isso mesmo, esse relato terá cumprido sua tarefa
mais essencial se puder, parafraseando o poeta, assegurar que
“Aqui um vôo termina, outro vôo se inicia”.
B – A FAFIC na expansão do ensino superior brasileiro
01. A FAFIC e o ensino superior
O sistema de Ensino Superior aparece na literatura com uma dupla definição: em sentido
estrito, constitui um agregado de instituições e entidades formais; em sentido lato, surge como
um universo de sujeitos que desenvolvem atividades no ensino pós-secundário. Do ponto de
vista da origem de seu financiamento, dois setores podem ainda ser identificados: o setor
público e o setor privado62. Segundo Sampaio (2000), o crescimento de ambos os setores nas
últimas décadas do século passado procurou responder a duas demandas complementares: da
clientela estudantil por ensino superior, por um lado, e do mercado ocupacional por
portadores de diploma de nível superior, por outro.
Entretanto, vinculado a processos mais amplos tais como a industrialização, a urbanização e a
necessidade de atendimento à Educação Básica no país, o setor privado cresceu mais
velozmente, chegando a representar, segundo dados de 1994, 58 % das matrículas e 75 % das
instituições. Por outro lado, ainda segundo Sampaio (2000: 24),
“no Brasil, um estabelecimento privado de ensino superior pode distinguir-se de outro, também particular, sob vários aspectos formais: sua natureza
62 Há, no Brasil, inúmeras modalidades de financiamento do Ensino Superior privado, algumas delas, inclusive, de natureza pública. O pagamento de anuidades pelos estudantes é a forma mais comum, mas há também o crédito educativo, a isenção fiscal, a constituição de patrimônio e a transferência pura e simples de receita mediante bolsas de estudo concedidas pelo poder público.
96
institucional (universidade, centro universitário, federação de escolas ou escolas integradas, ou faculdade isolada); a personalidade jurídica de sua mantenedora (fundação, associação civil, sociedade civil de direito privado), se tem ou não fim lucrativo, sua definição como instituição laica ou confessional e, se confessional, a religião à qual está vinculada”.
Nesse sentido, pode-se definir a FAFIC – Faculdade de Filosofia de Campos como uma
instituição isolada de Ensino Superior, do setor privado, laica e sem fim lucrativo, mantida
por uma personalidade jurídica de direito privado, instituída pelo poder público municipal (a
FCC – Fundação Cultural de Campos), de caráter não-universitário, dedicada à formação
profissional em nível superior, em processo de transformação em Centro Universitário.
A FAFIC mantém ou está autorizada a manter em funcionamento sete cursos de nível
superior63, sendo cinco licenciaturas (Filosofia, História, Letras, Matemática e Pedagogia),
totalizando nove habilitações (Filosofia; História; Português e Literaturas de Língua
Portuguesa, Português – Inglês, Português – Espanhol e Português – Francês, em Letras;
Matemática; Magistério das Matérias Pedagógicas do Ensino Médio e Magistério da
Educação Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental, em Pedagogia), e dois
bacharelados (Comunicação Social e Pedagogia), com seis habilitações (Jornalismo,
Publicidade e Propaganda e Relações Públicas, em Comunicação Social, e Administração,
Supervisão e Orientação Educacional, em Pedagogia).
Do ponto de vista dos estabelecimentos de Ensino Superior privado e das matrículas
registradas, Sampaio (2000: 43) propõe a distinção de duas grandes etapas em seu processo de
expansão. A primeira delas, compreendida entre 1930 e 1980, identifica-se como um tempo
de estruturação, consolidação e crescimento do setor, subdividindo-se internamente em dois
períodos: o primeiro de “consolidação e estabilidade no crescimento da participação relativa
do setor privado no sistema” (1933-1965) e o segundo correspondendo “à mudança de
patamar no crescimento das matrículas privadas”, levando ao seu predomínio no sistema
(1965-1980).
A etapa iniciada em 1980 e ainda em curso, por seu turno, corresponde a um período de
transformações estruturais no sistema e, particularmente, no setor privado. De acordo com
Sampaio (2000: 75), são as seguintes as principais transformações experimentadas pelo setor: 63 Posteriormente, a partir da instalação formal do UNIFLU – Centro Universitário Fluminense, em 2005, foram criados os cursos de Turismo, Arquitetura e Artes Visuais.
97
“a) estabilidade seguida de declínio da participação relativa das matrículas privadas no sistema de ensino superior (como efeito da redução da demanda pelo ensino superior no país); b) diminuição do número de estabelecimentos isolados, simultaneamente ao aumento de universidades particulares; c) desconcentração regional e interiorização dos estabelecimentos particulares e de suas matrículas; d) crescimento acelerado do número de cursos e ampliação do leque de carreiras oferecidas pelo setor privado”.
Os dados disponíveis para a FAFIC, cotejados com as perspectivas desenvolvidas por
Sampaio (2000), permitem uma leitura mais ampla da história institucional, na medida em que
permite articular o singular e o universal, inserindo a parte no todo e a especificidade local
nos processos históricos mais gerais. Assim, se na década de 1960 a Faculdade consolida sua
estrutura, com a criação e o reconhecimento de seus cursos (primeiro período), nos anos 70
ela muda de patamar (segundo período), elevando suas matrículas de pouco mais de trezentas
para mais de mil.
Entretanto, as grandes transformações anunciadas para a década de 1980 irão propagar-se de
modo não homogêneo e uniforme sobre o conjunto do país, representando mais exatamente
uma tendência do que uma fatalidade. Nesse sentido, Campos dos Goytacazes parece ilustrar
o caso de uma depressão de demanda, apenas liberada na década seguinte, com a
desconcentração e interiorização dos estabelecimentos privados, ampliando o número de
cursos. De fato, nos anos 90, além da UENF, inúmeras outras universidades privadas
instalam-se na região ou ampliam a oferta já instalada, levando a uma recomposição na
relação entre oferta e procura.
Neste novo momento, o Ensino Superior em Campos dos Goytacazes vive um período de
grandes expectativas: de um lado, o mercado tornou-se efetivamente mais competitivo,
renovando cursos, flexibilizando currículos, qualificando o trabalho docente e investindo em
marketing institucional; mas, sem dúvida, há que se avaliar, por outro lado, o peso dos
incentivos que o poder público municipal tem oferecido ao setor, em toda a região, sobretudo
sob a forma de bolsas de estudo concedidas a parcelas da população local até então excluídas
do acesso ao Ensino Superior. Esta é uma pergunta que não quer calar: o que restará de tudo
isso quando os recursos públicos retornarem (se é que retornarão) para seus investimentos
tradicionais?
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02. A FCC e a estratégia de privatização do público
Conforme procuramos evidenciar no item anterior, a FAFIC estruturou-se na década de 1960,
expandindo-se para um novo patamar de crescimento, situado acima de mil alunos, até
meados dos anos 70. Pois é exatamente a natureza e o caráter dessa expansão, ocorrida no
interior de um processo mais amplo de expansão e de interiorização do Ensino Superior e
efetivada sob o discurso da modernização e do desenvolvimento regional (fixação dos jovens
e qualificação da mão-de-obra), que é necessário desvendar.
Segundo Dourado (2001), uma série de instrumentos combinados permitem acompanhar essa
expansão, destacando-se dentre eles a Lei nº 4.024/1961 (LDBEN), mas, sobretudo, a revisão
do Plano Nacional de Educação (CFE, 12/03/1965), a articulação MEC / Usaid (Documenta
nº 38, p. 56) e a Reforma Universitária de 1968 (Lei nº 5.540/68). Seu significado, contudo,
expressando a tensão entre a necessária expansão de vagas no setor e a política de contenção
de verbas, aponta para a crescente privatização do Ensino Superior no Brasil.
Tal expansão via privatização ganha impulso a partir de três frentes, com a chegada do regime
militar: “a expansão de matrículas nas faculdades e universidades públicas –expansão com
contenção; o estabelecimento pelo poder público de incentivos e subvenções às faculdades e
universidades particulares (crédito educativo, isenção de impostos, bolsas); e a
implementação de fundações educacionais”, conforme Dourado (2001: 47).
É especificamente em relação a esse último caso – a implementação de fundações pelo poder
público municipal, assumindo grande variedade de formas locais –, que o autor se refere
como um processo de “emergência de uma política de privatização do público” (Dourado:
56-57), na medida em que, ao misturar natureza pública e caráter privado, autoriza-se a
transferência de prédios, equipamentos e subsídios financeiros do poder público para
entidades mantenedoras privadas.
É, portanto, ao assumir a forma de uma instituição de Ensino Superior mantida por uma
fundação instituída pelo poder público municipal, mas de natureza jurídica privada, no
contexto de interiorização e de expansão via privatização do Ensino Superior e como
expressão desse processo, sob um discurso de estímulos ao desenvolvimento regional, que a
99
FCC e a FFC (depois FAFIC) são criadas e funcionam provisoriamente em prédios públicos
(Nilo Peçanha, Liceu) até obter, também por interveniência do poder público, sua sede
própria.
Finalmente, integrando os argumentos de Sampaio (2000), expostos no primeiro item desta
parte, e os de Dourado (2001), neste segundo item, pode-se estabelecer uma primeira
aproximação explicativa para o processo de expansão da FCC / FAFIC, a partir, sobretudo, da
década de 1970. Tratou-se, por um lado, de atender às demandas da população estudantil e do
mercado ocupacional; isto num contexto em que os processos de industrialização e de
urbanização faziam crescer a necessidade de atendimento à Educação Básica no país; mas foi
também, por outro lado, assumindo a forma precisa que assumiu, qual seja, de uma instituição
fundacional beneficiada pela política privatista do Estado brasileiro, no interior de um
processo mais amplo de expansão e de interiorização do Ensino Superior, que ambas puderam
se consolidar e expandir.
100
CAPÍTULO 5 – (UMA CIDADE INVISÍVEL) A Formação de Professores de História
na FAFIC
“O Atlas do Grande Khan também
contém os mapas de terras prometidas visitadas na imaginação mas ainda não descobertas ou fundadas: a Nova Atlântida, Utopia, a Cidade do Sol, Oceana, Tamoé, Harmonia, New-Lanark, Icária.
Kublai perguntou para Marco: – Você, que explora em profundidade e
é capaz de interpretar os símbolos, saberia me dizer em direção a qual desses futuros nos levam os ventos propícios?
– Por esses portos eu não saberia traçar a rota nos mapas nem fixar a data da atracação. Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta. Se digo que a cidade para a qual tende a minha viagem é descontínua no espaço e no tempo, ora mais rala, ora mais densa, você não deve crer que pode parar de procurá-la. Pode ser que enquanto falamos ela esteja aflorando dispersa dentro dos confins do seu império; é possível encontrá-la, mas da maneira como eu disse.”64
A Profissão Docente e a Formação de Professores guardam um pouco de semelhança com
essas terras prometidas e ainda não descobertas ou fundadas, mesmo que tenham sido
exaustivamente freqüentadas pelos exploradores nos últimos anos. A diversidade de
experiências concretas e a proliferação das pesquisas configuram, certamente, ventos
propícios que, no entanto, quando confrontados aos desafios colocados pela velocidade das
transformações em curso nesses tempos chamados pós-modernos, a que futuros nos levam?
Que a soberba de uma razão arbitrária não julgue ter atingido a configuração da cidade
perfeita, mas que a resignação jamais disponha e alimente a crença de que o tempo permite,
então, parar de procurá-la. Um Imperador e um Viajante habitam entre a norma e a
promessa, de modo complementar e contraditório, na imensa riqueza das formas instituídas e
na força inesgotável dos movimentos instituintes, no campo da educação.
64 Calvino: 1998, 149.
101
O presente capítulo dedica-se ao estudo de um caso singular e único de formação, ao mesmo
tempo situado e datado, sem deixar de ser, ainda, tão idêntico a tantas outras experiências
comuns nesse vasto território da formação de professores: trata-se do Curso de História da
Faculdade de Filosofia de Campos. Talvez nessa tensão entre o singular e o comum resida
propriamente seu interesse maior para o debate e para a pesquisa. Pode ser que o óbvio,
quando sondado ao microscópio e relativizado como em perspectiva antropológica,
precisamente ao não ser tratado como óbvio e pronto, revele senão uma face inteira, ao menos
alguns traços ou algumas expressões insuspeitas daquilo que se julgava familiar e próximo
por inteiro. Tal é o caso, por exemplo, da expressão Curso de História, tão genérica e usual,
tão simples e corrente não só no ambiente acadêmico da FAFIC, mas em espaços sociais
externos ou em outras instituições, tão despretensiosa e tão aparentemente ingênua que
perturba menos pelo que revela quanto pelo que mascara e oculta.
O que significa a expressão Curso de História? O mais evidente e que em primeiro lugar se
afirma é o substantivo próprio cuja inicial maiúscula constitui reserva que a tradição da língua
autoriza atribuir aos nomes das ciências: é a História que se cursa. Seguir um determinado
Curso, no entanto, significa assistir a uma “série de aulas, conferências ou palestras sobre
um tema, ou sobre vários temas, conexos ou não”, informa Aurélio (Ferreira, s/d: 412). Como
se trata de uma assistência ou de um ensino em nível superior, sua conclusão implica em
conferir um certo título ou grau, donde se fala, então, de maneira mais completa, em um
Curso de Graduação de História. Tal conclusão ou graduação, por outro lado, remete ao
sentido correntemente atribuído ao termo formação, tanto por se dar em nível superior,
configurando uma espécie de rito de passagem, quanto por referir-se à iniciação de alguém em
um dado repertório de conhecimentos admitidos como profissionais.
A expressão Curso de História, portanto, remete ao formar e ao conhecimento em que se
forma, mas não identifica, no leque de possibilidades formativas abertas ao nível superior de
ensino, o que é, precisamente, que se está formando. E ao não fazê-lo, contribui talvez menos
para esclarecer do que para agravar o quadro de incertezas e indefinições conceituais reinantes
no ensino superior brasileiro, particularmente no que se refere às relações entre cursos de
licenciatura e de bacharelado. Trata-se de opções formativas em que se pode meramente
habilitar ou constituem carreiras alternativas de várias naturezas e distintos percursos
acadêmicos? Até que ponto, ao não identificar e ao não especificar e esclarecer, a referência
genérica a um Curso de Graduação de História hipertrofia a dimensão do conhecimento em
102
que se forma, por exemplo, no âmbito da formação profissional – especialmente na formação
docente – fragilizando a necessária articulação entre teoria(s) e prática(s)?
Há quem faça sublimar essa tal indefinição, dispensando a necessidade de precisão no
delineamento das fronteiras entre a licenciatura e o bacharelado, afirmando (e substituindo a
explicação pela justificativa) que a situação acima resultou da necessidade histórica de
economia de recursos no processo de implantação do ensino superior, no Brasil, evitando
duplicidade ao prover conhecimentos considerados próximos, senão idênticos, entre as
concorrentes formações científico-cultural e profissional. Em outros momentos, sobretudo na
primeira parte desta tese, houve oportunidade de abordar a discussão acerca dos limites dessa
suposta concorrência, do mesmo modo que a natureza dos conhecimentos envolvidos em
ambos os processos formativos: pode-se dizer que tal situação acabou por configurar um
padrão de formação que a literatura especializada vem denominando de princípio ou de
modelo da racionalidade técnica. E que na FAFIC aproxima-se do que estamos chamando de
formação de conhecimento, baseada, fundamentalmente, na transmissão de saberes
acadêmicos, instaurando uma expectativa geral a que a formadora Neila Ferraz,
informalmente, costuma referir-se como uma espécie de complexo de bacharel.
Mas é preciso avançar com método, um passo a cada vez. As cidades invisíveis, prometidas e
ainda não descobertas ou fundadas, aqui e agora, materializam-se nos contornos de um
território preciso: o Curso de História da Faculdade de Filosofia de Campos. Sua fundação
remonta ao ano da graça de mil novecentos e sessenta e cinco. Em suas origens estão
presentes duas motivações principais, convergentes e complementares: por um lado, a
formação utilitária de profissionais para o magistério, em nível superior; por outro lado, o
polimento de uma dada sociabilidade com base numa noção difusa de cultura como
ornamento e ilustração. De acordo com memória da Professora Maria Thereza da Silva
Venancio, diretora da instituição ao longo de toda aquela década, os cursos de História,
Jornalismo e Pedagogia, vieram complementar o Curso de Letras, fundado em 1961, na
medida em que os diplomas de seus primeiros formandos só teriam validade se a Faculdade
de Filosofia fosse reconhecida, cumprindo a exigência legal de manter, no mínimo, quatro
cursos funcionando. Segundo a diretora da FAFIC:
“A opção por esses três cursos não obedeceu a critérios relacionados exclusivamente com a necessidade de mercado de trabalho e sim à constatação
103
de serem eles de mais fácil implantação pela não-necessidade de compra de equipamentos caros e, principalmente, pela possibilidade de formação de corpo docente com a participação, em boa parte, de professores de Campos, que tinha uma tradição de excelentes professores de História, como José Hipólito Drevet de Vasconcelos, já falecido na época, José Revelles Castanho, Aldano Séllos de Barros e a jovem professora Maria Rita dos Santos Silva.” (Venancio, 2005: 66).
As palavras de Venancio (2005) precisam ser contextualizadas, no entanto, e seu significado
apreendido na particularidade em que se inscreve e produz sentido: não se trata de uma
carência expressa de professores nessas áreas em que se vai formar (Letras, História ou
Pedagogia), mas não há dúvidas de que, na maioria dos casos, serão professores os formados.
O mercado de trabalho a que se refere não é o magistério em geral, já que todos os cursos,
menos um, serão de licenciatura; o que não está sendo necessariamente levado em conta é a
demanda específica por professores desta ou daquela disciplina do currículo da escola, mas
sim o fato de que diferentes licenciaturas podem apresentar, e de fato apresentam, custos
diferenciados de implantação e dificuldades variadas na composição do corpo docente. Daí o
problema, a médio e longo prazo, da carência de professores de Biologia, Química, Física e
mesmo Geografia, por exemplo. O mesmo raciocínio aplica-se com perfeição à justificativa
para o Curso de Jornalismo: um curso de baixo custo em Campos (para os padrões da época),
cuja imprensa tem tradição de excelentes profissionais...
No quadro dessas justificativas quase oficiais, Venâncio (2005: 67-68) acrescenta também o
papel que a crônica histórica haveria de desempenhar no reconhecimento da importância de
Campos para a história do país, evidenciada tanto pela riqueza da produção açucareira, quanto
pela participação de campistas como Patrocínio e Lacerda nas lutas abolicionistas ou ainda
pela ascensão do campista Nilo Peçanha à presidência da República. Retomava-se assim, na
efervescência dos anos da década de 1960, abrigando um sentimento patriótico e bairrista
amplamente repercutido na imprensa local, o elogio ao passado da cultura, das tradições e da
opulência, incrustando nele a antiga demanda por uma Universidade de Campos65. A
Faculdade de Filosofia e, em especial, seu Curso de História, deveriam articular em sua
origem a dupla tarefa de formar profissionais, por um lado, e de explicitar o acorde que a
civilização campista incluía na harmonia da civilização nacional brasileira.
65 E ecoando, talvez, a demanda histórica pela elevação da cidade à condição de capital do Estado.
104
Para além dos muros de sua sede (ainda inexistente nos anos 60, diga-se de passagem), a
Faculdade de Filosofia oferecia sua contribuição para a dinâmica da cultura e da sociedade de
Campos, promovendo eventos e desenvolvendo atividades de extensão acadêmica.
Internamente, seguia organizando seus cursos, atraindo e aglutinando parcelas significativas
da intelectualidade local. Um breve exame do perfil biográfico do corpo docente do Curso de
História vem ao encontro desse conjunto de impressões manifestas em Venancio (2005)66.
Dos treze professores de disciplinas específicas que atuaram no Curso ao longo daquela
década, oito são homens e cinco mulheres, configurando um quadro de ligeiro predomínio
masculino. Quanto à naturalidade, os documentos omitem três, mas seis são campistas,
podendo-se presumir que os quatro restantes, embora estrangeiros, encontrem-se enraizados
em Campos por outros motivos que não o exclusivo trabalho docente no Curso. Tal é o caso
do Bispo Diocesano, natural de Campinas – SP, responsável por duas disciplinas.
Doze dentre treze professores têm menos de 50 anos, sendo que cinco deles encontram-se na
faixa dos 20 anos. A mais nova, Diva dos Santos Abreu, conta apenas 22 anos e o mais velho,
o Bispo Antônio de Castro Mayer tem 61, no ano da fundação do Curso. A média de idade,
nesse momento, é de 35,7 anos. Apenas seis professores aparecem como licenciados em curso
superior de História; outros três são advogados, com registro de suficiência para o magistério
secundário e médio, reconhecido pelo MEC; três, ainda, têm curso superior (sendo o bispo
diocesano doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma), mas não
consta que tenham registro formal; uma professora tem apenas o curso normal médio, sem
diploma de nível superior. Desde a primeira turma, recorre-se ao expediente da endogenia,
através do qual os melhores alunos incorporam-se como monitores e tão logo concluem o
curso, são aproveitados na docência. É o caso, por exemplo, de Antônio Dumas Louro, que
ingressou no Curso em 1965, atuou como monitor entre 1966 e 1968 e foi contratado como
professor de História Moderna a partir do início de 1969.
A maioria dos currículos dos docentes não faz constar sua experiência profissional. Em pelo
menos cinco deles ela é bastante extensa e amplamente reconhecida ao seu tempo, sendo
Conceição de Maria Sardinha Azevedo um caso paradigmático. Licenciada em História e
66 Até 1971, a instituição manteve atualizado um livro de registro nominal dos professores de todos os cursos em funcionamento, seguido de um breve curriculum vitae de cada um deles. Este livro, mantido atualmente sob a guarda do Setor de Pessoal da FAFIC, relaciona um total de 13 docentes que ministraram disciplinas específicas no Curso de História, incluindo aqueles que atuaram em sua primeira turma, entre 1965 e 1968. As análises seguintes referem-se, portanto, a esse corpo de professores.
105
Geografia pelo Instituto Santa Úrsula, no Rio de Janeiro, Conceição Sardinha era professora
de História no Liceu de Humanidades e na Escola Agrotécnica de Campos. Participou de
várias bancas examinadoras, nas Provas de Seleção e Classificação de Professores de História,
(na Escola Técnica de Campos), no Concurso de História da Inspetoria Seccional de Ensino
Secundário e no Curso de Orientação aos Exames de Suficiência, ainda no início dos anos 60.
Publicou, por iniciativa própria, a brochura “História romana. As tentativas de reforma dos
Irmãos Gracos. Estudo sobre a situação agrária no II século a. C.”, em 1963. Em 1965, foi
convidada para colaborar na organização do primeiro vestibular do Curso de História. Sobre
ela, Venancio (2005: 65) comenta em sua memória:
“Conceição gostava muito de relatar, com aquela risada que lhe era peculiar, que fora encontrada por nós em um circo (em Atafona). No dia seguinte, veio para Campos, cumpriu o que lhe foi solicitado e demonstrou o maior interesse pelo curso. Precisávamos colocar em atividade o corpo docente da primeira série imediatamente e ela, sem titubear, aceitou responsabilizar-se por duas disciplinas: História Antiga (Roma era a sua paixão) e Introdução aos Estudos Históricos. (Foi) eleita chefe do Departamento, cargo no qual permaneceu por vinte e cinco anos e durante todo esse tempo dedicou-se com empenho, inteligência e comunicação fácil.”
Daquela primeira turma, além de Antônio Dumas Louro, vários outros alunos tornaram-se
professores do Curso, dentre os quais Antônio Francisco Abreu, Maria Nilza Patrão Dias e a
atual professora de História do Brasil e Coordenadora Pedagógica do Curso, Profª Neila
Ferraz Moreira Nunes. Considerando-se que dos vinte e quatro alunos matriculados em 1965,
apenas seis colaram grau em 1968, e desses pelo menos quatro foram ou ainda são professores
do Curso, conclui-se por uma endogenia da ordem de 66 %67. A formação de professores em
nível superior não tinha, então, mais do que trinta anos, no Brasil, e, nas escolas, o
provimento das vagas ainda se dava, em grande parte, por mestres de formação não
especializada, sobretudo em escolas normais de nível médio. No próprio Curso de formação,
em Campos, um dos pioneiros no interior do Estado, menos da metade dos docentes possuía
graduação em História e, mesmo assim, a procura era relativamente pequena e a evasão
bastante alta, conforme ilustra o Anexo I.
67 Deve-se notar, também, o elevado índice de evasão nas primeiras turmas. Dentre suas possíveis causas, além daquelas relacionadas ao seu caráter de ensino superior noturno e pago, Venâncio (2005: 70) menciona o que qualifica como “críticas descabidas (...) dentre elas a de que o curso era impossível de ser seguido tal a exigência dos professores”.
106
Algo, porém, adquiria evidência incontrastável sob tais condições sócio-culturais objetivas e a
despeito de justificativas variadas: em meados dos anos 1960, fundava-se na FAFIC, em toda
a ambiciosa generalidade de sua denominação, um Curso de História, mas seus sujeitos
fundadores e o ato inaugural de sua fundação, acolhendo as intenções gerais nos limites
estreitos da particularidade local, cuidaram de imprimir-lhe a marca de uma iniludível
vocação. Tratava-se, de fato, de um Curso voltado para a formação de professores de História.
Durante algum tempo (“quando terá sido o óbvio”, como diria o poeta68), pode tal fato
permanecer oculto, evitando que se explicitasse o confronto e se pronunciasse o conflito entre
as opções de licenciatura e bacharelado. Na verdade, nem mesmo aquela motivação cultural
ufanista e difusa, presente em suas origens, deve ser confundida com o projeto acadêmico de
uma formação voltada para o trabalho historiográfico stricto sensu, característico de um curso
de bacharelado.
Mas é preciso também que se diga que este capítulo não pretende fazer História da Educação,
nem mesmo aquela que, na perspectiva de uma história das instituições escolares, permita
reconstruir o Curso de História da FAFIC de modo que se possa integrá-lo ao sistema
educativo de que faz parte, contextualizá-lo na evolução de uma comunidade e de uma região
e, enfim, reescrever seu itinerário de vida69. Tal tarefa, sem dúvida importante, haveria de
desvendar mais amplamente os mecanismos institucionais de renovação de quadros, as
iniciativas individuais e coletivas de atualização teórica e política de seus sujeitos, bem como
o esforço de tradução de ambos no conjunto constituído pelos discursos e pelas práticas
acadêmicas. O objetivo aqui é outro, no entanto: trata-se de permitir que se compreenda o que
fazemos para formar, isto é, de explicitar em que moldura institucional e curricular se situa o
foco desta Parte II da pesquisa. Seu tempo é o presente, sua perspectiva é a da sincronia e o
breve retorno às suas origens constitui estratégia de evidenciação da longa permanência de
sua identidade de centro de formação docente.
O problema, no entanto, é que o presente desta identidade constituída no vir a ser da
instituição e na (re)construção incessante de seu currículo não é senão um presente limitado e
provisório, como todo presente; estado passageiro de um percurso que lhe antecede e
atravessa, sobretudo quando percebido numa perspectiva temporal de médio prazo, como todo
68 Veloso (1992). 69 Sobre a questão da história das instituições escolares e da história da cultura escolar no estudo de um caso de formação de professores de nível médio, em Campos dos Goytacazes, ver Martinez, 2005.
107
presente; um presente que é como um agora concebido num tempo que é sucessão de agoras,
no sentido benjaminiano, sem dúvida, e que não é, inversamente, a instantânea e vitoriosa
expressão do contínuo e do permanente. Compreender tal presente como percurso e processo
pressupõe conceber, na tecitura do real, descontinuidades lentamente urdidas na planura das
permanências. Concretamente, o presente do Curso de História da FAFIC implica em
perceber uma ruptura na segunda metade da década de 1990, após a irrupção dos efeitos da
LDBEN no ensino superior brasileiro, sobretudo por força da normatização instituída pelos
pareceres e resoluções emanados do CNE70. Tal presente tem sido percebido internamente,
pelos sujeitos formadores, como um tempo de turbulência.
Um tempo de turbulência, por contraste com um tempo de calmaria, que lhe antecedeu.
Antes, porém, de evidenciar as características e os traços que constituem a expressão daquele,
será preciso explicitar, em linhas gerais, o que distingue este tempo de calmaria,
compreendido entre o momento da fundação do Curso (1965) e as circunstâncias de sua
desestabilização (1998). Ao longo desse período, foram praticadas apenas quatro matrizes
curriculares, todas elas ancoradas solidamente no que dispunha a legislação vigente, que, por
sua vez, fixava um quadro de disciplinas obrigatórias constitutivas de um currículo mínimo
para os cursos de graduação. Quatro alterações curriculares em trinta e dois anos de existência
traduzem uma razoável estabilidade curricular, atravessando incólume disputas porventura
existentes entre diferentes gerações de professores, distintas administrações institucionais e
ventos historiográficos e/ou pedagógicos renovadores das concepções teóricas dominantes.
Não obstante, entre calmarias e turbulências, o Curso evidencia sua identidade numa longa
permanência: a formação de professores de História.
De acordo com Nunes (2004), as mudanças na organização curricular, durante esse período,
responderam a circunstâncias bastante específicas, relacionadas tanto às imposições legais,
por um lado, quanto aos interesses da instituição e aos esforços de atualização do próprio
curso, por outro, resultando por vezes da articulação combinada de alguns desses fatores.
Assim, a primeira matriz curricular do Curso de História (conferir no Anexo II), inspirava-se
na experiência de formação de sua organizadora, Conceição Sardinha, seguindo o modelo do
Instituto Santa Úrsula, do Rio de Janeiro, limitando-se, ainda, às possibilidades estreitas de
um corpo docente disponível em Campos (embora seguindo a tradição de excelentes
70 Este é um dos fatores importantes, embora não o único, como se verá adiante, na instauração de um tempo de turbulência na FAFIC e em seu Curso de História, sobretudo a partir de 1998.
108
professores, como afirma Venancio). Com apenas 1410 horas, sendo 840 horas (59 %) de
disciplinas específicas de História, constituía uma matriz bastante enxuta, no dizer de Nunes
(2004), oferecendo um núcleo de disciplinas do currículo mínimo, acrescido de um quadro de
disciplinas optativas. Tais disciplinas, no entanto, de caráter não específico, eram optativas
para a instituição, que oferecia uma disciplina a cada ano, segundo suas próprias
conveniências.
A segunda matriz, implementada a partir de 1972, representaria, segundo Nunes (2004), a
efetiva consolidação do Curso, incorporando diretrizes da Reforma Universitária de 1968,
mas atendendo, sobretudo, aos dispositivos da Lei 5692/71. A carga horária total do Curso
salta de 1410 para 2310 horas, acrescentando algumas novas disciplinas obrigatórias, tais
como Estudos de Problemas Brasileiros e Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º
Grau, além da obrigatoriedade da Educação Física, mas a base das disciplinas específicas do
campo obrigatório continua praticamente a mesma. Curiosa a exorbitância da carga horária da
disciplina de História Antiga: enquanto Medieval e Moderna contavam com 180 horas cada e
Contemporânea 240, Antiga somava 300 horas distribuídas ao longo de dois anos. Afinal,
Conceição Sardinha era ainda a Chefe do Departamento e, como diria Venâncio (2005), Roma
era a sua paixão. A terceira matriz (1976) trouxe pouquíssimas modificações em relação à
anterior, reduzindo a carga horária de 2310 para 2280 horas, substituindo algumas disciplinas
optativas e fixando a expressão ou a fórmula do componente curricular Prática de Ensino /
Estágio Supervisionado, a ser cumprida na 4ª série do Curso, embora sem especificação
precisa de carga horária.
A matriz de 1976 e a que lhe substituiu em 1987 foram, ambas, as mais longevas do Curso:
duraram, cada uma, onze anos. A quarta matriz do Curso – última desse tempo de calmaria –
elevou a carga horária total para 2650 horas, fixando a carga horária de Prática de Ensino /
Estágio Supervisionado (PE/ES) em 100 horas, cumpridas, ainda, na 4ª série. A carga horária
de História Antiga será finalmente redimensionada (quem sabe refletindo uma quebra da
autoridade de Conceição Sardinha?), tornando-se compatível com as demais disciplinas do
núcleo específico do Curso. Além disso, surgem novas disciplinas no currículo, como
Antropologia, seguindo-se a ascensão da Geografia, que deixa de ser meramente uma
disciplina optativa, com 60 horas de duração, para tornar-se obrigatória, com 180 horas
distribuídas entre o 2º e o 3º ano. A justificativa parecerá pragmática: os egressos do Curso
109
ocupam, na prática, esta disciplina no currículo escolar, recebendo, inclusive, pelo menos nos
primeiros anos, registro oficial do MEC para o magistério de Geografia no 1º Grau.
Sujeitos formadores percebendo temporalidades distintas, exprimindo e aprofundando a
concepção de uma identidade na licenciatura, dizia-se há algumas linhas atrás. Talvez tenha
chegado o momento de explicitar com decisão e o mais claramente possível, não sem uma
certa dose de autocrítica e resignação, a cilada metodológica implícita na opção inicial desta
tese. De resto, uma cilada quase sempre presente onde quer que a atividade pesquisadora não
configure ocupação exclusiva, embora nem sempre traduzida de forma tão crua e despida de
temperos, que dispõe o desejo ou a exigência da pesquisa, por um lado, e as condições
pessoais e institucionais de sua realização, por outro.
Tivesse como Malinowski optado pela convivência entre os argonautas do Pacífico Ocidental,
ou como Ilmar Mattos mergulhado em busca da explicitação de um percurso histórico de
construção do Estado brasileiro sob a égide do princípio conservador, implícito no projeto
imperial da Trindade Saquarema, nas décadas iniciais do século XIX, e o objeto que se
procura construir estaria agora tão distante no espaço quanto no tempo da experiência pessoal
e profissional do pesquisador. Se ao menos todas as mediações que a cultura permite numa
perspectiva antropológica relativizadora estivessem disponíveis na constituição de um
princípio metodológico, favorecendo a percepção da diferença pelo contraste, seria possível
evitar a suspeita de que, prévia e inevitavelmente, aquilo que se procura na própria realização
da pesquisa já se encontrava presente e dado desde o princípio. No projeto desta tese, pois, o
objeto não apenas envolve existencialmente o pesquisador, como é, em parte, produto de sua
atuação, resultado de seu trabalho e fruto (geneticamente modificado, embora) de suas
convicções. Que fazer?
É possível conhecer em tais condições? Que conhecimento seria possível que não fosse mera
opinião ou relato de êxitos e fracassos? Em que se distinguem as atitudes de conhecer pela
pesquisa e de conhecer pelo trabalho? Se o trabalho envolve uma formação que pressupõe
teorias e práticas, a pesquisa (que também pressupõe teorias e práticas, segundo Tardif, 2000)
exigiria uma perspectiva, por assim dizer, mais transcendente, ou ambos, pesquisa e trabalho,
especialmente na formação docente, constituem esferas dialogantes por múltiplas interfaces?
Que mediações construir que não contemple a renúncia ou do que se fez ou do que se pensa,
recuperando da esquizofrenia a identidade e a saúde do pesquisador? De fato, tudo o que se
110
aprendeu durante o tempo da pesquisa, aprendeu-se também para o trabalho cotidiano na
formação. Ajudaria considerar, como Marx, que os homens fazem a história, mas não como
querem, não empunhando uma vontade onipotente e demiúrgica que lhes permita entrever na
realidade o espelho de sua própria consciência?71
Ou ajudaria considerar, não por consolo, mas apoderando-se dessa consideração na sua
qualidade de princípio metodológico, que se os sujeitos fazem o processo, na perspectiva da
história vivida, inversamente o processo constrói o sujeito histórico, na sua generalidade, mas
também constrói cada sujeito na sua particularidade? E que, portanto, conhecimento e
trabalho são categorias e são também práticas mutuamente referentes e construídas, ambas, na
história? No caso específico desse presente que os sujeitos percebem, na FAFIC, como um
tempo de turbulência, e que dura desde 1997 até este agora, em relação a este Autor, pode-se
dizer que ele transforma conhecimento em trabalho e trabalho em conhecimento,
transformando no percurso o próprio Autor. Mas transforma também outros sujeitos, senão
todos os sujeitos, na medida em que não reserva a ninguém ou a nenhum lugar o poder de
situar-se metafisicamente para além da história. Nessa medida, transformou também,
assumidamente, a Profª Neila Ferraz, de resto um profissional cuja história de vida evidencia
o hábito inconformista de revolucionar-se.
No calor dessa turbulência, o percurso intelectual e profissional de Neila Ferraz atinge seu
ponto de não regressão, no sentido de Hannah Arendt72, em 2003, por ocasião das discussões
em torno de mais uma das matrizes do Curso: de professora sensível aos problemas
enfrentados pela Coordenação e simpatizante da causa da formação de professores e do
Ensino de História, na FAFIC, Ferraz se vê e se faz, desde então, progressivamente
comprometida com a produção do destino do Curso. Ela própria se refere a esse momento em
um texto escrito um ano depois, de forma comedida, como sempre, afirmando que “há
momentos na vida em que, por motivos que fogem a nossa vontade, nos vemos
repentinamente envolvidos em certos projetos que despertam o interesse e a curiosidade e
cada vez mais nos envolve no sentido do aprofundamento de determinados temas”. 71 “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”, afirma Marx (1988: 7) n’O 18 brumário de Luís Bonaparte. 72 Analisando as revoluções modernas, Arendt (1971: 41) afirma que “a enorme insistência numa nova era, que encontramos nos termos quase idênticos e nas intermináveis variações proferidas pelos actores da Revolução Americana e da Revolução Francesa, só surgiu depois de eles terem chegado, muito contra vontade, a um ponto de não regressão”.
111
Certamente, trata-se de algo mais do que apenas curiosidade ou do que o tratamento exterior e
superficial e distante de determinados temas.
Neila Ferraz formou-se professora pela Escola Normal e atuou em todos os níveis de ensino,
desde o antigo Curso Primário até o Ensino Técnico de nível médio (na antiga Escola Técnica
Federal de Campos, atual CEFET) e há pouco mais de dez anos dedica-se com exclusividade
ao Ensino Superior, como professora de História do Brasil, tendo se licenciado na primeira
turma do Curso de História da FAFIC. Do mesmo modo que Conceição Sardinha emprestou
sua marca a um tempo de calmaria, Neila Ferraz é paradigmática desse novo tempo de
turbulência. No princípio, menos por uma opção pela instabilidade e pela precariedade
características desse tempo do que pela convicção de que os desafios, os perigos e as
fraquezas do Curso e da instituição estariam exigindo um envolvimento seu e um empenho
mais profundo de suas forças. É possível que se perceba nesta convicção a marca sutil de uma
mística de salvação e de uma restauração, ocultas na perspectiva conservadora de quem deseja
fazer voltar um tempo de opulência perdida. É possível, mas pouco provável. Ainda assim,
Arendt (1971) ajudaria a esclarecer o quanto de procura pelo passado se gasta nos processos
necessariamente incertos de invenção do futuro.
No final do primeiro semestre de 2004, Neila Ferraz tornou-se Coordenadora Pedagógica, ao
lado de Eduardo Peixoto, Coordenador Geral do Curso. A rigor, a estrutura administrativa da
FAFIC fala em Coordenador e Sub-Coordenador, mas a divisão de responsabilidades, de
tarefas e de espaços de atuação, no interior do próprio Curso de História, redefiniu essa
terminologia. Desde então, boa parte daquilo que constitui o acervo documental do Curso,
incluindo vestígios de sua participação como representante da História em comissões de
normatização das condições de trabalho docente, na instituição, mas, sobretudo, a liderança
do processo de organização curricular, envolvendo projetos, matrizes, práticas, estágio, TCC e
pesquisa, leva a marca indelével de sua concepção e a sua assinatura. Se a força do presente,
com seu poder de ressignificar aquilo que envolve, faz submergir o passado no esquecimento,
apagando as distâncias e as diferenças, tornando sutis mesmo as evidências mais duras, a
atuação de Neila Ferraz como formadora e professora de História, embora – e não como
historiadora, como ela mesma insiste em dizer, em depoimento citado no capítulo seguinte
desta tese –, confirma que a História nos obriga a romper a neblina e reconstruir o tempo.
112
Mas, afinal, de que matéria se faz esse tempo de turbulência? Trata-se de um tempo
constituído na confluência de várias linhas de força e a primeira delas traz para o centro das
discussões as expectativas e demandas do corpo docente. Com experiências e formações
variadas, o Curso de História contou, em 2005, com um total de 17 professores no primeiro
semestre e 16 no segundo. Desse total, 64 % são da área de História, 24 % foram cedidos pela
Coordenação de Pedagogia e 12 % vieram de outras coordenações. São, sobretudo, os
professores da área de História que integram o coletivo da reunião semanal de Coordenação73,
debatendo questões acadêmicas e administrativas de interesse do Curso. Tal proporção
explica, naturalmente, a preocupação predominante com a transmissão de conhecimentos
historiográficos, muito embora o reconhecimento e a explicitação recente da identidade do
Curso, voltada para a formação de professores de História, tenha feito expandir internamente
o interesse pelas questões relativas ao ensino, mas não exatamente entre os formadores
oriundos da Pedagogia, senão entre os próprios professores de História.
Ainda daquele quantitativo docente, em média 33 % são especialistas, 18 % mestrandos, 40 %
mestres e 9 % doutorandos, segundo o Projeto Pedagógico – 2005 do Curso de História
(PPH). O processo de qualificação e titulação dos formadores, iniciado no final da década
passada, reflete tanto um compromisso pessoal com a própria carreira quanto o interesse
institucional, em face das normas instituídas no âmbito da política reformista oficial. A
simples exposição desses números revela, no entanto, a fase intermediária e transitória
experimentada pelo Curso, neste momento: até o ano 2000, apenas dois professores eram
mestres e muitos deles apenas graduados; em pouco mais de cinco anos, praticamente a
metade deles titulou-se e alguns avançam em direção ao doutoramento. Tendo ultrapassado
um primeiro momento de forte procura pela titulação, esse movimento arrefeceu e o empenho
atual parece voltar-se para a consolidação dos ganhos acadêmicos e para o aprofundamento da
qualificação.
O recrutamento de professores, mediante processo seletivo público, com edital amplamente
divulgado na imprensa e banca examinadora com participação externa ao Curso, permanece,
no entanto, reconhecidamente endógeno, embora tenha recuado em face das exigências de se
73 Todos os professores devem reservar em suas jornadas ou em seu respectivo total de aulas o correspondente a 2 h/a para as reuniões semanais da Coordenação, sempre às quartas-feiras, no final da tarde. Os professores oriundos de outras coordenações geralmente cumprem essa carga horária nos espaços acadêmicos de origem.
113
garantir níveis mínimos de titulação. De certo modo, o Projeto Pedagógico (CH.FAFIC74,
2005: 29) justifica esse expediente, afirmando que,
“durante muitos anos, a FAFIC foi praticamente a única instituição de ensino superior formando profissionais para a educação superior em Campos dos Goytacazes. Daí que ela deveria formar seus próprios quadros formadores, seja na formação inicial ou continuada”.
As condições de trabalho do corpo docente também experimentam avanços e recuos no
período considerado. Se a partir do ano 2000 o horismo foi superado pela instituição universal
das jornadas de trabalho de 20 e 40 horas, sob a justificativa da necessidade de envolvimento
maior dos professores com a vida institucional e com os projetos acadêmicos, aos poucos essa
situação vem sendo revertida. O Projeto Pedagógico (CH.FAFIC, 2005: 30) detecta e
expressa também esse problema, apontando inclusive para a contradição expressa no fato de
que os professores sejam chamados a participar de inúmeras comissões institucionais, em um
tempo de trabalho “que nem sempre é remunerado”, afirmando que
“esse quadro atual é negativo uma vez que, como se sabe, o ‘aulismo’ é responsável pela baixa qualidade de cursos e instituições, sobretudo no setor privado, e o professor necessita de carga horária excedente para que possa desenvolver projeto, atividades mais criativas e dar atendimento aos alunos”.
Funcionando em 2005 com um total de 181 alunos distribuídos por 8 períodos de turma única
(média de 22,62 alunos por período) e com 17 professores no primeiro semestre do ano
(média de 10,62 alunos por professor), o Curso de História, por força de orientação
institucional mais ampla, enquadra seu corpo docente em plano de carreira que, entre outras
coisas, prevê remuneração por jornada de trabalho (em reversão para o “horismo” parcial,
como se viu) e incentivos para a capacitação, que inclui, segundo o Projeto Pedagógico
(CH.FAFIC, 2005: 31):
• licença remunerada para Mestrado e Doutorado; • bolsa de ajuda de custo para professores sem licença, cursando Mestrado ou
Doutorado; • redução de carga horária, mantida a remuneração, para Mestrado e
Doutorado; • bolsa de ajuda de custo para especialização;
74 Esta referência remete ao quadro geral construído no processo de organização sistemática das fontes documentais do Curso de História, reproduzido no final desta tese.
114
• ajuda de custo para participação em congressos, seminários etc.
Finalmente, no ano de 2004, o Conselho Superior da FAFIC (órgão colegiado cuja
composição, atribuição e modo de funcionamento constitui objeto regimental) instituiu uma
Comissão de Legislação e Normas para rever a política da instituição relativa ao seu corpo
docente. Dentre outros temas, a Comissão procurou contemplar as seguintes questões: i)
lotação dos professores nas coordenações; ii) carga-horária mínima para o professor, em sala
de aula; iii) normas para escolha de disciplinas, nas coordenações; iv) normas para
regulamentação das licenças; e v) definição do colegiado para eleição de Coordenador e Sub-
Coordenador de Curso. Obviamente, todas essas questões envolvendo situações particulares,
convicções e concepções teóricas em contextos acadêmicos incertos e mutantes trouxeram
aproximações e distanciamentos, convergências e divergências internas, algumas vezes
abrindo o conflito onde até então se imaginava o consenso. Após tudo isso, será possível
adotar um conceito comum de qualidade em nome do qual seja possível pugnar?
A segunda linha de força constitutiva desse tempo de turbulência (1998/2005) com que se
defronta o Curso de História relaciona-se ao perfil geral da própria instituição, seus limites e
sua fraqueza, mas também suas possibilidades e sua força, que se manifesta concretamente no
modo de existência de cada um de seus cursos. Trata-se de uma instituição de natureza
fundacional e finalidade não-lucrativa, com meios democráticos de provisão de seus cargos
diretores, administrativos e pedagógicos, e processo seletivo para docentes e funcionários.
Seu planejamento financeiro, baseado na receita exclusiva de mensalidades necessariamente
compatíveis com o perfil dos alunos que atrai (trabalhadores de serviço, em geral), bem como
com a natureza dos cursos que oferece (licenciatura, quase que somente, em horário noturno),
constitui limite estreito para as despesas materiais e a política de remuneração, fato que não
impede, no entanto, a execução de um plano de carreira docente e de um plano de cargos e
salários para funcionários administrativos e de apoio.
Equilibrando-se entre a crise econômica que afeta cronicamente o público alvo para os cursos
que oferece, por um lado, e, por outro lado, a competição privada que, na segunda metade da
década de 1990, viu estabelecer-se na região os tentáculos do grande capital de serviços
educacionais (tentáculos financeiros e midiáticos, mas também aqueles que se expressam por
intermédio de uma rede sutil de influências e privilégios), a FAFIC é também uma instituição
isolada de ensino superior, não-universitária e desprovida, portanto, de autonomia tanto para a
115
criação de novos cursos quanto para a alteração do número de vagas nos cursos existentes.
Em tais circunstâncias, não é de todo incomum que as divergências e os conflitos, sem se
diluírem, sejam periodicamente aplainados em parcerias instáveis e consensos pontuais, a bem
da instituição, com a qual, em última instância, talvez todos se comprometam. Afinal, a
FAFIC é fonte provedora de postos de trabalho e os ventos da política interna, de resto como
toda conjuntura política, também mudam periodicamente.
Finalmente, na perspectiva do enfrentamento permanente desse contexto marcado pela
competição no mercado hipertrofiado e pela necessidade de auto-preservação institucional, a
FAFIC tem se beneficiado de alguns expedientes comuns às demais instituições de ensino
superior, em Campos e região, e criado também suas próprias estratégias. Os expedientes
consistem no estabelecimento de parcerias com os poderes públicos municipais para a
execução de um programa de bolsas de amplitude tanto mais inquietante quanto se torna vital
para sua sobrevivência; e, ainda mais, da expansão de um programa de pós-graduação lato
sensu que, não obstante, já dá sinais claros de esgotamento, na medida em que a explosão da
oferta fez extinguir rapidamente uma demanda reprimida ao longo de décadas e as prefeituras
locais reduzem drasticamente a concessão de bolsas nesse nível.
Quanto às estratégias próprias, a mais importante, sem dúvida, consiste na mudança de
estatuto de faculdade isolada para centro universitário. Na apresentação do Programa
MINTER / DINTER (1995: 7), de parceria com a UFF para a implantação da pós-graduação
stricto sensu, a Coordenação de História assim se expressa: a FAFIC
“é uma instituição que atravessa hoje um momento de grande expectativa, quando vivencia sua transformação em Centro Universitário – o UNIFLU75. O processo, já aprovado pelo Conselho Federal de Educação, acaba de ser homologado pelo Sr. Ministro da Educação. Uma vez consolidado o processo, a FAFIC (Faculdade de Filosofia de Campos), a FOC (Faculdade de Odontologia de Campos) e a FDC (Faculdade de Direito de Campos) estarão integrados no UNIFLU, tanto para um necessário processo de ampliação, como para sua futura transformação em universidade”.
A terceira linha de força igualmente importante na constituição desse tempo de turbulência
consiste precisamente no acirramento da concorrência pela oferta do ensino superior no
Município de Campos dos Goytacazes e em toda a região norte-noroeste fluminense. Pode-se 75 O UNIFLU – Centro Universitário Fluminense permanecerá com seu formato jurídico fundacional, vinculando-se à Fundação Cultural de Campos, mesma entidade mantenedora de suas três unidades operacionais.
116
dizer que, ao longo de quase toda a segunda metade do século passado, estabeleceu-se e se
manteve estável e consolidado, em Campos, um sistema tradicional de ensino superior,
constituído basicamente pela oferta de cursos de natureza profissional em instituições
públicas, comunitárias e privadas. Dentre as primeiras encontram-se os campi avançados da
UFF (Serviço Social) e da UFRRJ, além da criação, no início da década de 1990, da UENF –
Universidade Estadual do Norte-Fluminense. No segundo grupo estão as antigas fundações
locais mantenedoras da Faculdade de Medicina (Fundação Benedito Pereira Nunes) e das
faculdades de Filosofia, Direito e Odontologia (Fundação Cultural de Campos). A UCAM –
Universidade Cândido Mendes é representativa das instituições privadas tradicionais em
Campos, oferecendo um número limitado de cursos profissionais.
Por outro lado, os anos finais do século passado assistiram à chegada a Campos daquilo que
Silva (2004: 125) identifica como sendo a “nova burguesia de serviços”76. Segundo a Autora,
este segmento subordinado do grande capital se estabelece, consolida e amplia, no Brasil, no
bojo da implementação de políticas neoliberais, a partir do governo Collor, sobretudo no
momento em que tais políticas alcançam o setor educacional, em meados dos anos 1990, com
as reformas da Educação e da Formação de Professores, propostas pelo Governo FHC. Além
de se beneficiar diretamente do processo de desmonte do Estado através da
“desregulamentação do mercado de trabalho e da supressão de direitos sociais” (Silva,
2004: 126), a nova burguesia de serviços educacionais também influi na elaboração e
implementação de políticas de transferência pura e simples de recursos públicos, através de
um amplo programa de bolsas de estudos concedidas e transferidas direta e generosamente
para as próprias instituições77.
Se o padrão de concorrência no sistema tradicional de ensino superior, em Campos,
caracterizava-se por um perfil horizontalizado de convivência, isto é, sem que houvesse a
superposição da oferta de cursos idênticos ou semelhantes, ela não só se verticaliza como
76 Em Campos, este segmento encontra-se representado pela Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) e pela Universidade Estácio de Sá (UESA). 77 Segundo Silva (2004: 126), “a nova burguesia de serviços ocupa uma posição singular no bloco do poder, mesmo sendo interessada apenas na política de desregulamentação do mercado de trabalho e de supressão de direitos sociais. Ela é favorecida pela posição estratégica que ocupa na política neoliberal, pois tanto o imperialismo quanto todas as frações burguesas presentes no bloco do poder pressionam o Estado para a redução de seus gastos sociais. Deste modo, estes segmentos convergem na defesa dos interesses da nova burguesia de serviços: a redução da educação, da saúde e da previdência públicas e um maior estímulo para o crescimento do mercado no qual atua essa nova burguesia. Além disso, o neoliberalismo contribui para sua legitimação social ao fazer a apologia do mercado e criticar os serviços públicos”.
117
assume uma agressividade inaudita nos novos tempos, a ponto de se procurar atrair candidatos
aprovados em concursos vestibulares de outras instituições mediante dispensa de novo
concurso e isenção de taxas e mensalidades iniciais. Mas o congestionado campo do ensino
superior regional torna-se ainda mais denso e competitivo com a emergência de novas
instituições a partir de antigas e tradicionais escolas de Ensino Médio, como é o caso do
CEFET – Campos e do ISECENSA78. Internamente, na FAFIC, as opiniões se dividem e as
posições se radicalizam em torno da estratégia adequada para o enfrentamento da
concorrência: persistir no formato tradicional com ênfase em determinado padrão de
qualidade, respaldado num capital de confiança longamente acumulado, ou adotar modelos de
organização e gestão com características empresariais?
Finalmente, o tempo de turbulência na FAFIC e em seu Curso de História inclui uma quarta e
última linha de força: as pressões políticas da reforma educacional e da reforma na formação
de professores, no Brasil. Silva (2004) situa essas reformas no contexto de adoção de políticas
neoliberais e de implementação do que denomina de projeto societal liberal-conservador, a
partir dos governos Collor e Itamar, em sua primeira fase, no princípio da década de 199079.
Segundo a autora:
“Na perspectiva do capital, caberia à educação desenvolver a nova sociabilidade indispensável para a adaptação do trabalhador às exigências da modernização da sociedade brasileira, entendida como adequação aos padrões de produção e organização social do capitalismo central. À educação escolar caberia a disseminação de valores e normas para o exercício de uma cidadania restrita aos limites de uma democracia formal. No campo da formação para o trabalho, a educação ofereceria habilidades e aptidões abstratas para a inserção em um mundo produtivo reestruturado” (Silva, 2004: 137; grifos adicionados).
Entretanto, é somente a partir de sua segunda fase, no início do primeiro Governo FHC, que o
reformismo alcança definitivamente o campo educacional, “constituindo-se como um dos
meios de consolidação do projeto liberal-corporativo” (Silva, 2004: 193). O Plano Diretor da
Reforma do Aparelho de Estado, apresentado à sociedade em 1995, afirma textualmente a
intenção de reduzir seu papel de “executor e prestador direto de serviços, mantendo-se,
entretanto, no papel regulador e provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços 78 Instituto Superior de Educação do Centro Educacional Nossa Senhora Auxiliadora, oferecendo Curso Normal Superior e Engenharia de Produção, dentre outros cursos. 79 Apenas para situar essas medidas no plano político-institucional formal: i) Governo Collor / Itamar: 1990-1993; ii) Governo FHC: 1994-1997 (1º) e 1998-2001 (2º); Governo Lula: 2002-2006.
118
sociais como educação e saúde” (Apud Silva, 2004: 143). É também a partir desse momento,
“em decorrência da ocidentalização da sociedade brasileira”, que as velhas classes
dominantes se vêm obrigadas “a buscar o consenso e a legitimação hegemônica para seu
projeto de sociedade”, sobretudo em face da contraposição das entidades do campo do
trabalho e seu projeto democrático de massas, tornando-se, “além de classe dominante uma
classe dirigente” (Silva, 2004: 148)80.
Sob a inspiração e a orientação de políticas formuladas a partir de organismos internacionais
de financiamento, especialmente o Banco Mundial, embora parcialmente adaptadas às
particularidades do país, as reformas educacionais avançaram em direção à organização dos
sistemas de ensino e às diretrizes e parâmetros que norteiam a educação. Segundo Silva
(2004: 150-151), elas se estruturam em torno de quatro eixos principais: a adequação da
educação escolar aos imperativos do mercado, o foco das ações estatais no ensino
fundamental, a privatização do ensino superior e o conseqüente deslocamento do Estado para
a esfera da regulação e da coordenação e, finalmente, a criação de um sistema nacional de
avaliação. Concentrando-se, a princípio, no Congresso Nacional, a elaboração da política
educacional, em especial a regulamentação da formação de professores após a LDBEN (Lei nº
9394/96), deslocou-se progressivamente em direção ao Conselho Nacional de Educação.
No detalhamento da análise das reformas educacionais que vai elaborando, Silva (2004)
chama a atenção não apenas para a importância estratégica adquirida pela formação de
professores “para a adaptação da formação dos trabalhadores às mudanças geradas pelo
modelo de acumulação flexível do capital e pelas novas relações sociais de produção
capitalista”, lógica essa que impõe a “adequação da formação de professor ao novo modelo
de formação do trabalhador no país, ou seja, a formação por competências que ganhou
espaço na reforma educacional implantada pelo Governo FHC e orientou a elaboração das
diretrizes curriculares nacionais para a educação profissional, para o ensino médio e para a
formação de professores” (p. 328), mas também para o seu caráter integrador, na medida em
que “a proposta de diretrizes para a formação de professores objetivou sintetizar o conjunto
80 É nesse sentido de busca do consenso em torno de suas políticas que vão sendo deflagradas as campanhas publicitárias oficiais que envolvem programas como “Acorda Brasil, está na hora da escola”, “Toda Criança na Escola”, “Merenda Escolar – dinheiro direto na escola”, além do projeto “TV-Escola” e do estímulo ao voluntariado, do Provão e do ENEM.
119
da reforma educacional brasileira, propondo a preparação de um profissional adequado à
sua operacionalização” (p. 348).
Dupla importância, portanto, da intervenção reformista oficial na formação de professores:
preparar profissionais predispostos organicamente a formar trabalhadores adequados à nova
lógica do capital e que, ao fazê-lo, possam justamente implementar as orientações, os
princípios, as diretrizes, os parâmetros, as normas, enfim, que materializam o quadro global
da reforma educacional, de resto criada tendo em vista este mesmo fim.
Mas há, no entanto, que atravessar essa macro-análise das reformas a fim de que se possa
observar com lente apropriada a formação do professor de História, e numa instituição como a
FAFIC. De fato, interessa a este trabalho as mudanças implementadas na formação de
professores para a Educação Básica, mas mais particularmente para sua atuação nas séries
finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, precisamente aquela que ocorre em nível
superior nos cursos de licenciatura, articulados às disciplinas do currículo desses níveis de
ensino. Ao procurar ajustar o foco do contexto para o conteúdo mesmo das reformas, será
preciso ir deixando, aos poucos, a profícua companhia de Silva (2004); não sem antes pontuar
um último aspecto importante de sua leitura, qual seja, aquele que contrapõe concepções
presentes nos documentos oficiais, de um lado, e as posições históricas do movimento de
educadores. O quadro abaixo procura resumir alguns pontos dessa contraposição:
QUADRO COMPARATIVO ENTRE DOCUMENTOS OFICIAIS
E POSIÇÃO DOS EDUCADORES81 NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Temas Documentos oficiais Posição dos educadores 01. Concepção de professor.
• Profissional do ensino, responsável pela aprendizagem do aluno.
• Profissional da educação, intelectual crítico e transformador.
02. Princípios formativos.
• Competência: conhecimento não basta; é preciso mobilizar conhecimentos para a resolução de situações-problema;
• Qualificação: títulos e diplomas atestando o domínio de conceitos técnico-científicos (específico, pedagógico e social);
81 De acordo com Silva (2004), as entidades representativas do campo do trabalho – seja pela inexistência de discussões conjuntas acerca da natureza do trabalho do professor e de sua formação, seja pela simples divergência entre os especialistas – permaneceram ora “presas à defesa de suas propostas históricas”, ora enfatizando “questões referentes ao curso de Pedagogia” (p. 353-354), não conseguindo acompanhar o aprofundamento nem chegar ao conteúdo mesmo da concepção de formação de professores apresentado na proposta do governo. A impossibilidade de consensos gerais e os impasses por vezes imobilizantes indicam que essa tentativa de definir uma “posição dos educadores” não pode ser senão precária e provisória.
120
• Simetria invertida: coerência entre a formação oferecida e a prática esperada;
• Pesquisa com foco na aprendizagem.
• Base comum nacional garantindo unidade de experiências;
• Docência como base da identidade profissional;
03. Nível e lócus de formação
• Nível superior; • Instituto Superior de Educação
(ISE).
• Nível superior; • Universidade (Curso de
Pedagogia) 04. Características gerais
• Privatização e empresariamento da formação;
• Diversificação institucional; • Formação à distância e em
serviço; • Aligeiramento da formação
(treinamento em habilidades e competências específicas);
• Foco no ensino.
• Investimento público; • Formação universitária; • Formação presencial; • Longa e sólida formação
teórica (3200 h.); • Foco na pesquisa.
Talvez mais do que todas as outras linhas de força constitutivas desse tempo de turbulência,
discutidas até aqui, as pressões políticas da reforma educacional e da reforma na formação de
professores, originárias do processo de regulamentação da LDBEN por força dos pareceres e
resoluções do Conselho Nacional de Educação, lograram produzir um impacto mais
decisivamente avassalador sobre a FAFIC, como instituição isolada dedicada, sobretudo, à
formação de professores em nível superior, e seu Curso de História, cuja extremada atenção à
questão historiográfica não diminui, antes reforça, sua vocação histórica para a formação de
professores de História. Um dos primeiros efeitos desse impacto foi a exigência de que se
tornasse explícito o perfil identitário tanto do Curso quanto de seu egresso, colocando na
ordem do dia um problema de natureza: afinal, do que trata este Curso, de uma licenciatura ou
de um bacharelado? Durante todo o tempo de calmaria tal problema permanecera
inquestionado na sonolência genérica da denominação de Curso de História: formava-se
professores sem que se perguntasse o que se estava, de fato, fazendo.
Outros conflitos puderam ter abalado a trajetória de três décadas do Curso, fossem de
gerações ou de concepções historiográficas e/ou políticas, sem que colocassem em xeque, no
entanto, percepções implícitas e enraizadas nas práticas de formar longamente assentadas na
própria tradição do Curso, com seus mecanismos endógenos de recrutamento de formadores.
“As coisas por sabidas se calam e por caladas se olvidam”, disse certa vez um camponês do
121
sul do Chile82; os formadores de História da FAFIC, despertos pelo estampido e sacudidos
pelo impacto da reforma, voltaram a falar, pois, de coisas esquecidas e, ao fazê-lo, tomaram
posse tanto do que, de fato, faziam, quanto do que acreditavam que faziam, ou do que
gostariam de estar fazendo, ou ainda do que pretendiam mesmo fazer. Apropriando-se do
presente, eles puderam realizar escolhas, pesando alternativas de resto absolutamente não
consensuais, aprofundando diferenças, radicalizando posições e, nesse percurso, fazendo
aumentar a tensão no ambiente em que se desenrolava a formação.
O preâmbulo de todo esse processo – suas afirmações, suas contradições e também seus
equívocos – surgiu a princípio no bojo de um amplo consenso em torno da idéia de que se
tornava inadiável a reformulação da matriz curricular de 1987. Um primeiro aspecto a
contemplar dizia respeito à sua adequação à letra da Lei 9394/96 (LDBEN), sancionada em 20
de dezembro de 1996, que, dispunha, em seu artigo 65, o seguinte:
“Art. 65. A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas” (in Niskier, 1997: 50).
Ou seja, a carga horária do componente curricular denominado de Prática de Ensino / Estágio
Supervisionado, na tradição das matrizes do Curso de História da FAFIC, passava, a partir de
então, de 100 para 300 horas. Falava-se, em tom tão baixo que quase nem se ouvia, que o
antigo currículo mínimo dos cursos de graduação e da formação de professores, até então
vigentes83, achava-se automaticamente revogado, mas não se via interesse nem empenho (nem
talvez ousadia) que apostasse na direção de uma renovação radical da estrutura curricular do
Curso. O que significava, naquele contexto e na concepção de seus formadores, reformar a
grade ou matriz curricular? Nunes (2004: 4) fala em “adaptação aos novos tempos”, em
adaptar a matriz “às demandas de seus alunos e professores” e em “oxigenar o curso”.
Falava-se à época em atualização, tomando como referência as principais universidades
públicas do Grande Rio. Especialistas ilustres84 trouxeram experiências diversas e inovadoras
82 Cf. Brandão (1982: 7). 83 A lei nº 4024/61 (LDBEN) estabelecia em seu artigo 9º, alínea “e”, a competência do Conselho Federal de Educação para indicar uma lista mínima de disciplinas obrigatórias para os cursos de ensino superior. Entre 1962 e o início da década de 1970, o CFE fixou, através de pareceres e resoluções, o currículo mínimo dos cursos, nas modalidades de bacharelado e licenciatura, posteriormente homologados por portarias ministeriais. O currículo mínimo do Curso de História foi estabelecido pela Resolução CFE nº 99.998, de 19/12/1962, e a carga horária das matérias de formação pedagógica, fixada em 1/8 (um oitavo) da duração prevista para o curso, no mínimo, definida pelo Parecer CFE nº 292, de 14/11/1962. 84 Estiveram na FAFIC, em ocasiões diferentes durante o ano de 1997, a Profª Maria Manuela Ramos Souza da Silva e o Prof. Francisco Carlos Teixeira da Silva, ambos do IFCS/UFRJ.
122
para compartilhar com professores e alunos, mas suas sugestões eram filtradas, adaptadas e
traduzidas segundo a cultura local.
A Profª Maria Manuela, por exemplo, sugeriu a eliminação da disciplina Geografia e a
liberação de mais tempo para disciplinas de História, mas a sugestão não foi acatada sob o
argumento de que os egressos precisariam da Geografia porque iriam assumir, de fato embora
não de direito, sua docência nas escolas de Educação Básica da região. Sugeriu também a
inclusão de disciplinas introdutórias e gerais de História do Brasil e Contemporânea, nas
séries iniciais (uma vez que essas disciplinas apareciam no currículo somente a partir do
último quartel do Curso), sugestão dessa vez aceita, resultando na introdução das disciplinas
de Observatório do Mundo Contemporâneo e de História e Historiografia Brasileira. Ambos
os professores levantaram a possibilidade de se adotar uma alternativa temática à orientação
cronológico-espacial norteadora da matriz; enfatizaram também a importância da pesquisa,
seja no interior das disciplinas, seja como prática integrada ao Curso: seria excessivamente
ousado?
A atualização teórica e (secundariamente) metodológica era a demanda mais visível, assumida
e declarada por todos, mas a adequação ao ensino servia de argumento decisivo nas decisões,
principalmente quando se tratava de resistir às mudanças mais ousadas, para as quais não se
tinha total segurança. Isto, porém, sem que o ensino, especialmente o ensino da História, fosse
objetivamente alçado à condição de fator importante na organização curricular. Pelo menos
não naquele momento inicial em que mal se anunciava ao longe, próximo do horizonte, a
chegada de um tempo de turbulência. Porque, se a turbulência atingiu, de fato, praticamente
todas as esferas tanto da vida acadêmica quanto da estrutura institucional, foi certamente no
currículo da formação, no revigoramento da idéia que se tinha de licenciatura, na
ressignificação da noção de prática e no deslocamento da preocupação com o ensino para o
centro das atividades formativas que ela foi mais profundamente transformadora.
De fato, o debate acerca da licenciatura e da formação de professores, da identificação do
público-alvo regional e da definição do perfil do egresso, da reestruturação institucional e
curricular de forma articulada, enfim, chegou à FAFIC, como um bólido, em fins de 1999. De
repente, tudo começava a mudar. A natureza fundacional e o processo regimental de definição
das regras gerais de funcionamento e de alternância no comando da vida institucional, numa
unidade isolada de ensino superior que não dispunha da prerrogativa de autonomia própria do
123
sistema universitário, num contexto de indefinição ou de labirinto legal e, ao mesmo tempo,
de forte expansão e interiorização do ensino superior, sob o comando da burguesia de
serviços educacionais, emolduravam as mudanças. Mais do que um ajuste, apenas, a
instituição e seus diferentes cursos mergulharam, desde então, num clima de mudancismo e
conseqüente instabilidade cujo circuito engolfava os sujeitos e suas certezas, as definições e
seus efeitos, os planos, as ações e os compromissos, tornando tudo muito fugaz e
ameaçadoramente provisório.
A estrutura departamental, tida como rígida, isolada e fragmentária, diluiu-se na amplitude
inespecífica das coordenações de curso, mais flexíveis e relativamente autônomas; nessas
coordenações, as reuniões docentes, com participação da representação estudantil, tornaram-
se regulares, com periodicidade semanal; no que diz respeito à infraestrutura material, elas
ganharam espaço próprio, estagiários e funcionários designados, além de recursos didático-
pedagógicos e de mídia; os antigos conselhos e colegiados deram lugar a novos fóruns de
discussão coletiva, com novas regras e novas interdições85; a duração dos cursos, a extensão
do ano letivo (de 180 dias ou 30 semanas para 200 dias ou 40 semanas), os limites diários e
semanais de carga horária e até mesmo a duração da hora-aula (identificada, depois dissociada
da hora-relógio) desceram por água abaixo, na enxurrada das reformas nas matrizes
curriculares; mudou o regime de ingresso nos cursos, de seriado para periódico, com dois
concursos vestibulares anuais e a abertura de turmas de meio de ano; revisaram-se as
denominações das disciplinas bem como seus respectivos conteúdos, e também a concepção
de prática de ensino e o projeto de estágio supervisionado.
As coordenações ganharam relativa autonomia também no que se refere às disciplinas
pedagógicas e à provisão dos docentes; teve início a era dos projetos: projetos de pesquisa
(chamados, no Curso de História, de práticas investigativas), de ensino, de extensão e mesmo
de ações ou atividades um tanto ou quanto indefinidas; incluiu-se a elaboração de um
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) como exigência final da graduação e, no curso de
História, esse trabalho vinculou-se à experiência do Estágio Supervisionado; além disso, as
85 A título de ilustração, na nova estrutura do Conselho Superior da FAFIC, sob o argumento de que a participação nas decisões deveria ser ampliada e democratizada com autonomia, sem a vigilância dos ocupantes de cargos e funções administrativas e acadêmicas, os antigos chefes de departamento, atuais coordenadores de curso, e os próprios diretores da instituição, deixaram de ter assento, com direito a voz e voto, ainda que pudessem estar presentes na condição de convidados. Sem a liderança dos coordenadores e diretores, todos eleitos pela própria comunidade acadêmica, o debate e o próprio CS resultou esvaziado de sua importância política.
124
coordenações passaram a assumir a organização de cursos de pós-graduação lato sensu,
oferecidos à comunidade e relativamente articulados à própria graduação; com a mudança no
regimento, alterava-se também o regime de trabalho e o plano de cargos e salários dos
professores, superando o horismo e instituindo as jornadas (de 10, 20 e 40 horas)86; no bojo
dos processos de avaliação institucional interna e externa, elevou-se a febre da titulação e da
qualificação docente, desencadeando a corrida à pós-graduação stricto sensu; finalmente,
estratégias de marketing sugeriram a mudança da própria sigla que identificava a instituição:
de FFC para FAFIC.
Parece, pois, que tudo se desfaz ponto por ponto, que tudo se desmonta feito um móbile solto
num furacão (como dizia a canção87), tanto a organização curricular quanto a estrutura
institucional anteriormente existente. Mas será possível enxergar, então, alguma direção e
algum sentido em meio à turbulência desse tempo? Alguma partícula reveladora “no meio de
uma paisagem incongruente”, um tênue fio de luz atravessando a espessa neblina, o diálogo
acaso estabelecido entre dois sujeitos “passantes que se encontram no vaivém” e, partindo
dali, iniciar a procura por essas terras prometidas, “mas ainda não descobertas ou fundadas”
– a Formação de Professores, a Profissão Docente –, presentes, aqui como lá, no diálogo
ficcional entre Marco Polo e Kublai Khan, que encerra a bela obra de Calvino? Acaso
existiria um porto que fosse seguro de onde partir ou para onde dirigir o angustiado olhar?
Talvez recolocando a mesma pergunta que sempre esteve presente neste texto, incerta demais
para ser tomada como pressuposto ou evidente demais para se impor na base da fertilidade de
uma hipótese heurística: afinal, o que reflete mais fielmente a face verdadeira desse Curso de
História da FAFIC?
Talvez não seja de todo inoportuno sublinhar, seguindo pistas realçadas por Monteiro (2005),
o lugar estratégico da formação inicial de professores, a partir do reconhecimento da
importância de uma formação específica e especializada (ao lado da organização de
associações profissionais, reivindicando “melhora do estatuto, controle da profissão e
definição de uma carreira”88), para a constituição de uma identidade intrínseca ao magistério
86 Como se viu anteriormente, esse processo encontra-se, no momento, em fase de regressão, ao que parece voltando a predominar o horismo com alguns pequenos acréscimos de carga horária para atividades ou projetos específicos e/ou formalmente determinados. É o caso, por exemplo, das 2 horas semanais de reuniões nas coordenações ou de professores que possuem projetos de pesquisa e de iniciação científica aprovados pela Fenorte. 87 Moska (1999) 88 Monteiro (2005: 160).
125
– para além da unidade extrínseca que lentamente se formava, primeiro por intermédio da
escolarização da sociedade, da especialização do ensino e da diferenciação social daqueles
que se responsabilizavam por ele, entre os séculos XVI e XVIII; depois pela secularização e
estatização do sistema escolar, pela provisão e enquadramento dos mestres, delimitando o
campo profissional do ensino e definindo um determinado perfil de competências técnicas,
num percurso de funcionarização concomitante à consolidação dos modernos Estados
nacionais, nos séculos XVIII e XIX –, identidade essa que se institucionaliza em meados do
século XIX com a criação das escolas normais para professores da escola primária e se
aprofunda a partir da década de 1930 com a formação, agora em nível superior, de professores
para as disciplinas do currículo da escola secundária, em cursos de licenciatura.
Mas qual direção e qual sentido, enfim, permitiria identificar a substância mesma de que se
faz esse tempo de turbulência, de modo a fazer emergir nele aquilo que configura a face
verdadeira do Curso de História da FAFIC? A resposta não deverá estar descolada da
tentativa e do empenho dos sujeitos – professores e formadores – em estabelecer um desenho
próprio para a licenciatura, procurando, a um só tempo, recolher (assumindo) e explicitar
(fazendo-se conhecer e reconhecer, confrontando) uma determinada identidade curricular e
institucional. Mas qual identidade? Uma identidade de modelo certamente não será, em meio
ao reconhecimento da rica diversidade de configurações curriculares e de experiências
formativas concretas e suas particularidades institucionais e regionais89. Uma identidade na
formação de professores, talvez, que experimenta estratégias e dispositivos de formação
inicial, tendo em vista a procura incessante de elementos que permitam responder, afinal, o
“que é essa especificidade do trabalho do professor que lhe confere identidade, que o
transforma em um ‘sei lá o que’ diferente?” (Macedo; Lopes, 1998: 49)90.
Digamos, pois, que a face procurada do curso de História da FAFIC assemelha-se a uma
oficina de formação de profissionais cujo foco é o ensino, tributária, portanto, de uma oficina 89 Relatando o debate no Grupo de Discussão Políticas Públicas para a Formação de Professores, no I ENEBIO & III EREBIO (RJ/ES), Vilela (2005) organiza as idéias e questões circulantes em torno de três eixos principais, cada qual, por seu turno, expressando a rica diversidade de concepções e configurações curriculares na formação do professor de Biologia. Os eixos são os seguintes: i) a fragmentação e a tensão entre a formação pedagógica e a formação específica; ii) a relação entre universidade e escola e a variedade de espaços de realização da prática de ensino e do estágio supervisionado; e, finalmente, iii) a identidade profissional do professor de Biologia. 90 Macedo e Lopes (1988: 51-52), interrogando-se sobre a socialização profissional de professores e ouvindo estudantes de várias licenciaturas na UERJ, chegam a um passo do imponderável. “Argumentamos (afirmam) que esses estudantes estão dizendo à Faculdade de Educação (...) que existe na atividade do professor, algo mais do que conhecimento; do que reflexão cognitiva sobre a prática, ainda que coletiva; do que saber fazer; do que saber ‘passar’ o conteúdo. O nosso desafio é entender o que é esse algo mais”.
126
de ensino, em sentido mais amplo. O desafio que aqui se coloca deverá consistir, então, na
tentativa de descrever tal oficina em sua estrutura e em seu modo de funcionamento, isto é,
seus limites institucionais e seu(s) desenho(s) curricular(es), suas estratégias e dispositivos de
formação, o modo particular como responde às exigências e condicionamentos externos (o
impacto do labirinto legal e a hipertrofia do mercado no ensino e da concorrência regional,
especialmente), mas também as demandas de seus corpos docente e discente envolvendo
necessidades e comportamentos, convicções e tendências, virtudes e limites, enfim. Nesse
sentido, a descrição da oficina de formação impõe que se examine, em primeiro lugar, a sua
organização curricular, particularmente a maneira como ela se materializa numa matriz que
estabelece tempos e espaços de formação.
A turbulência a que insistentemente se faz referência neste texto manifesta-se com mais
intensidade e de modo mais pleno, talvez como em nenhuma outra forma ou dimensão,
através da organização curricular e da instabilidade expressa na dança das matrizes vivida
pelo Curso na última década. Se fosse possível apontar alguma lógica na instabilidade, poder-
se-ia dizer que ela expressa uma tentativa de superar o procedimento aditivo tradicionalmente
vigente na organização dos saberes do currículo da formação, mediante matrizes que
constituem listagem de disciplinas e dispõem lado a lado teoria e prática, disciplinas
específicas e pedagógicas, vida acadêmica e estágio escolar, alterando aqui e ali sua economia
interna bem como a denominação dos componentes, para avançar na direção de uma
concepção e de um formato mais sintético, mediante construções e dispositivos teórico-
práticos tais como as práticas curriculares, além da abertura da formação inicial para a
compreensão e o tratamento da disciplina escolar91, concebida, no sentido de Chervel (1990),
como algo mais do que o simples e precário arranjo entre uma disciplina-vulgarização e uma
pedagogia-lubrificante.
Nesse sentido, se a matriz curricular de 1998 abriu a temporada oficial de instabilidade das
matrizes, procurando explicitamente adequar o Curso de História à nova Lei da Educação
(LDBEN/1996) e adaptá-lo aos novos tempos e às demandas de seus alunos e professores,
conforme se viu anteriormente, será, contudo, a matriz de 2000 a primeira a refletir não
somente as turbulências institucionais, mas também as preocupações, as concepções e o 91 Nunca será demais esclarecer que não se trata de formar professores no mesmo nível de saberes e conhecimentos que aquele expresso em livros e materiais didáticos. Levar a disciplina escolar para o espaço e a reflexão acadêmica significa, pelo contrário, construir com os licenciandos uma problematização em torno de um objeto de pesquisa, e em torno, também, de objeto de trabalho.
127
formato expressos acima. De fato, ressonando o amplo debate travado internamente na
FAFIC, sobretudo na segunda metade do ano de 199992, em que o ano letivo cresceu de 30
semanas ou 180 dias para 40 semanas ou 200 dias e a duração da aula passou de 45 para 60
minutos, igualando-se hora-aula e hora-relógio, a duração total do Curso passou de 2820
horas-aula para 3200 horas, o que equivale a um crescimento real da ordem de 36%. Para dar
conta dessa expansão quantitativa do Curso, mas também para que pudessem se fazer
presentes nas atividades das coordenações de curso, que substituíam os antigos
departamentos, nas comissões e nos conselhos acadêmicos, os professores, até então
contratados por número de horas de aula efetivamente trabalhadas, passam a ser contratados
por jornada fixa de trabalho de 10, 20 ou 40 horas.
Porém, a grande novidade no âmbito propriamente curricular consistiu na introdução de 260
horas de Práticas Investigativas previstas na matriz do Curso. Os professores foram, então,
estimulados a elaborar projetos temáticos de pesquisa93, envolvendo neles os alunos que, por
sua vez, deveriam cumprir a carga horária prevista acima como requisito para a colação de
grau. Ao longo do ano 2000, foram se organizando na Coordenação de História quatro grupos
de pesquisa: Ensino de História, Arte & Cultura, Livro Didático e Mídia & História. Ainda
que envolvendo uma reflexão um tanto incipiente, pela primeira vez o ensino – mas
particularmente o ensino de História – ocupa posição importante na organização curricular,
para além das disciplinas tradicionais que integravam a matrícula, fossem elas específicas ou
pedagógicas e do estágio curricular. Entretanto, a duração extensa da matriz, carga horária
elevada das disciplinas e a adesão dos professores às jornadas de trabalho tornaram elevados
os custos em face das mensalidades e do próprio poder de pagamento para um corpo discente
com perfil de trabalhador, num curso de licenciatura. O acirramento da concorrência no
ensino superior regional precipitou a instabilidade econômica e a crise da instituição.
Refletindo o aprofundamento do debate institucional e curricular anterior, mas sobretudo em
face dos problemas deflagrados a partir da adoção da matriz de 2000, ao longo deste ano as
opiniões se radicalizaram em torno de duas posições, dividindo a comunidade acadêmica e a
própria Direção da FAFIC. Por um lado, havia quem avaliasse a conjuntura com foco na 92 Nessa ocasião, a Direção da FAFIC contrata os serviços especiais do Prof. Carlos Roberto Alexandre para prestar assesoramento e capitanear as mudanças que se julgava impositivas e inadiáveis, tendo em vista a travessia do labirinto legal da reforma instituída a partir da regulamentação da LDB. 93 Eles próprios aprendiam, talvez, a fazer pesquisa, na medida em que, no bojo das reformas e com o apoio concreto da instituição, traduzido em ajuda financeira e/ou redução remunerada de carga horária, a grande maioria dos docentes procurava qualificação em cursos de pós-graduação stricto sensu.
128
tradição, destacando o enraizamento sócio-cultural da instituição e enfatizando a natureza
pública das funções da Fundação Cultural de Campos, entidade mantenedora da FAFIC.
Nesse caso, então, quantidade e qualidade constituíam marcas distintivas de um padrão
tradicional dos cursos de licenciatura da FAFIC, devendo ser, por isso mesmo, preservados.
Por outro lado, havia também quem procurasse raciocinar a partir do cálculo econômico
imposto pelas regras do mercado, advogando para a FAFIC uma gestão empresarial e a
adoção de um paradigma baseado na qualidade total. Nesse caso, a instituição deveria reduzir
seus custos de funcionamento, sobretudo redimensionando a matriz curricular na sua duração
e na extensão da hora-aula, em relação à matriz vigente naquele ano, propondo-se, ainda, a
instituição da periodicidade semestral para os cursos como estratégia para facilitar a
renegociação das dívidas dos alunos inadimplentes.
A matriz de 2001 terá, portanto, a marca desta segunda posição, apresentada à comunidade
acadêmica como a única saída diante da fragilidade institucional da FAFIC. Instituiu a
semestralidade, em substituição ao regime seriado, reduziu a hora-aula para 50 minutos e a
duração da matriz de 3200 horas para 2500 horas-aula, incluídas aí as 300 horas de Estágio
Supervisionado, numa redução real de aproximadamente 50% do tempo de formação. As
Práticas Investigativas foram retiradas da matriz, embora os professores e a Coordenação do
Curso continuassem tentando inutilmente mantê-las como obrigatórias: o grupo de Mídia &
História extingue-se, os demais permanecem e, em homenagem aos 40 anos de fundação da
instituição, cria-se o grupo de História da FAFIC; em 2002, ainda sob a vigência da mesma
matriz, constitui-se o grupo de pesquisa de História Regional94. Ainda nessa perspectiva
(embora não explicitamente assumida) de síntese profissional, surge pela primeira vez na
matriz curricular a disciplina de Ensino de História (80 horas-aula distribuídas entre o 3º e 4º
períodos) e de História Regional / TCC (também com 80 horas, no 7º/8º períodos), com o
propósito de articular a história local, o estágio supervisionado e a exigência de produção de
um trabalho monográfico de conclusão do curso.
A aprovação pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação dos Pareceres nº 9, em
maio, e nº 28, em outubro de 2001, tratando respectivamente das diretrizes curriculares para a 94 Pouco a pouco os grupos de pesquisa foram sendo desativados. Em 2003, alguns deles tiveram ainda uma sobrevida, prolongando-se através apoio da FENORTE – Fundação Estadual Norte-Fluminense, contemplando alunos com bolsas de iniciação científica. Conseguiram bolsas alunos dos grupos de História Regional, História da FAFIC e Geografia Regional, resistindo, mesmo sem bolsas, os grupos de Ensino de História e de Arte & Cultura. Em 2004, apenas o grupo de História da FAFIC permaneceu com bolsa, persistindo ainda o de História Regional. Os demais foram finalmente extintos.
129
formação de professores e da duração e carga horária dos cursos de licenciatura, bem como
das Resoluções nº 1 e nº 2, em fevereiro de 2002, regulamentando os mesmos assuntos, longe
de pacificar entendimentos e questões, trouxe novas contribuições ao debate, à instabilidade
curricular e à turbulência institucional. Cada um dos cursos da FAFIC produziu a sua própria
interpretação isolada, traduzindo ao seu modo as normas recém-instituídas, de resto carregada
de imprecisões conceituais e distorções operacionais, refletindo a falta de experiência e de
unidade orgânica da instituição. Tais circunstâncias resultaram na elaboração da matriz de
2003 que, além de elevar o patamar de duração para 2860 horas-aula, pela primeira vez,
deixou de se apresentar como uma simples lista de disciplinas justapostas para assumir a
configuração de um conjunto estruturado de núcleos. Quatro núcleos, ao todo: o Núcleo das
Disciplinas, o Núcleo Pedagógico ou das Práticas Curriculares, o Núcleo de Estágio
Supervisionado e o Núcleo das Atividades de Enriquecimento Didático-Cultural.
O Núcleo das Disciplinas, com 1840 horas-aula distribuídas ao longo dos quatro anos do
Curso, contemplava as tradicionais disciplinas específicas e do campo das Ciências Humanas
e Sociais, sem maiores novidades, a não ser que o TCC descolava-se da História Regional,
assumindo a forma do componente Laboratório de Pesquisa e Produção do Conhecimento
(TCC), com mesma carga horária e mesmo posicionamento na matriz (80 horas-aula nos 7º/8º
períodos). O Núcleo Pedagógico ou das Práticas Curriculares, com duração de 440 horas-
aula distribuídas na primeira metade do Curso, alimentava a expectativa de realizar reflexões
teóricas sobre a educação e a escola. A rigor, consistia basicamente nos conteúdos das antigas
disciplinas pedagógicas do currículo mínimo, reinterpretadas como práticas, com alguns
poucos acréscimos, apresentadas sob novo formato constituindo quatro Seminários (de
Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento, de Política Educacional, de Ensino e
Aprendizagem e de História da Educação) e duas Oficinas (de Ensino e Aprendizagem e de
Arte em História e Educação).
O Núcleo de Estágio Supervisionado viria na seqüência do anterior, com 400 horas cumpridas
na segunda metade do Curso, constituindo um projeto próprio, de que se falará mais adiante.
Finalmente, reservava-se 200 horas para as Atividades de Enriquecimento Didático-Cultural
que o aluno deveria cumprir por conta própria, documentando sua participação em cursos,
congressos, seminários, pesquisas e eventos de diversas naturezas, desde que relacionados ou
à História ou à Educação, em sentido amplo. Nota-se, portanto, na instabilidade e na
turbulência, uma inquietação com relação à busca de estratégias formativas que, como se
130
disse, fossem além das antigas listas de disciplinas acadêmicas, instituindo, ao lado delas,
componentes curriculares que reivindicavam formatos diferenciados de Observatórios,
Laboratórios, Seminários, Oficinas e Atividades. A matriz de 2003 apresentava ainda, em
anexo, uma Observação em que se revela, pela primeira vez, a preocupação explícita com a
maneira pela qual deverá ocorrer a articulação entre teoria e prática, durante o percurso
formativo. Dizia-se no documento:
“A articulação teoria / prática estará presente de várias formas, podendo ser assinaladas nas seguinte situações, dentre outras.
01. As ementas das diversas disciplinas deverão contemplar o modo como o conhecimento é produzido naquele campo, e não somente o saber acumulado.
02. Os seminários exigirão um empreendimento de busca e reflexão para identificar temas e problemas, além de bibliografia, adequados.
03. Oficinas, laboratório e observatório envolverão manuseio de informações e fontes, processamento e produção de conhecimento e de materiais didático-pedagógico” (Nunes, 2004; Anexo III: Planejamento Curricular de História).
Finalmente, a continuidade do debate institucional, o aprofundamento dos estudos, a
clarificação dos distintos projetos formativos em disputa, no âmbito da discussão nacional
sobre a Educação e o amadurecimento dos sujeitos da FAFIC permitiram uma reavaliação da
matriz de 2003 e a compreensão de seus equívocos conceituais, engendrando as condições
para um novo projeto curricular. No primeiro semestre de 2004, a Direção de Graduação da
FAFIC95 constituiu uma Comissão Especial de Licenciatura, reunindo representantes de todos
os cursos (Letras, Pedagogia, Matemática e Filosofia, além de História) com o objetivo
primordial de buscar uma concepção unificada para a Licenciatura e estabelecer uma
organização curricular com formatação única que fosse comum a todos. A Comissão teria o
difícil encargo de atravessar o vazio que separa culturas disciplinares tradicionais, práticas
longamente assentadas nas coordenações, muitas vezes baseadas em relações personalizadas,
aproveitando ou induzindo convergências através do estudo da legislação vigente, avaliando
as distorções anteriores e construindo sugestões e novas propostas, a serem encaminhadas às
respectivas coordenações e/ou, na falta de consenso, decididas pela Direção.
95 Note-se que pela primeira vez um professor do Curso de História (a Profª Dircéa Branco de Menezes Gomes) ocupa a Direção de Graduação da FAFIC, refletindo, talvez, o profundo envolvimento daquela Coordenação não apenas com as questões relacionadas a si mesma, mas também com a compreensão de que os seus problemas particulares, sendo parte de uma totalidade mais ampla de problemas relativos aos cursos de licenciatura, da FAFIC ou em geral, estarão profundamente vinculados também aos problemas nessas esferas ampliadas.
131
Todo esse esforço materializa-se em uma nova matriz curricular, elaborada ao longo do ano
de 2004 e implementada a partir de 2005. A ligeira elevação da carga horária para 2976 horas-
aula ou a inclusão de algumas disciplinas novas, tais como Língua Portuguesa, História da
África ou Teorias Sociais Contemporâneas e História não constituíram, de fato, suas
mudanças mais expressivas. Antes, ao buscar concluir aquela ultrapassagem de modelos, de
uma organização curricular que se exprime na justaposição linear de disciplinas em direção a
um novo modelo capaz de favorecer a síntese de múltiplos dispositivos e diversificar as
estratégias de formação, o projeto curricular elaborado e implementado pelo Curso de História
da FAFIC, mesmo sem o saber, desloca o foco do debate travado em torno da licenciatura,
centrado na tensão entre matrizes ou pólos de formação, opondo, de um lado, disciplinas
específicas ou de referência, e, de outro, disciplinas pedagógicas ou profissionais.
De fato, será preciso interrogar até que ponto o reconhecimento e a explicitação de uma
tensão entre matrizes, no sentido proposto por Ayres (2005), não faria incorporar pela análise,
como pressuposto, os fatos ou as evidências empíricas a que justamente pretende interpretar e
explicar, polarizando e dicotomizando elementos formativos – as disciplinas específicas, o
conhecimento pedagógico – que, na verdade, não aparecem senão sintetizados no trabalho
docente, para o qual se pretende formar. Não será precisamente esta síntese que, de resto,
parece abolida tanto da análise quanto da realidade concreta de formar, que será preciso
resgatar? Compreende-se a dificuldade de considerar isto. Afinal, historicamente, a
licenciatura constituiu-se por um acréscimo pedagógico, apenas, ao bacharelado, no chamado
modelo 3+1; afinal, também, boa parte das experiências de formação profissional docente em
cursos de licenciatura, vigentes no ensino superior brasileiro, organiza-se em projetos
secundarizados, constituídos na confluência de ações didático-pedagógicas cujo foco
principal não é esta mesma formação, seja a formação do pesquisador nos institutos
específicos aqui ou a formação do pedagogo e do educador lato sensu acolá.
A licenciatura parece, pois, acometida de uma atopia crônica e original que, justamente,
contribui para desqualificar vozes e intenções que reivindiquem o reconhecimento de sua
especificidade, num ocultamento que silencia por oclusão ou por grave desvalorização
daquilo que deveria ocupar um lugar estratégico na formação de professores: a cultura e o
conhecimento escolar96. Pode-se mesmo perguntar se a vinculação sempre subordinada ao
96 Este tema foi tratado mais detidamente na quinta seção do Capítulo 1 (sobretudo páginas 42 e 43) e nas seções 3 e 4 do Capítulo 2, desta tese.
132
bacharelado, afinal, valorizou a licenciatura pela proximidade com a pesquisa e a produção do
conhecimento científico e cultural de alto nível ou se, pelo contrário, impediu que se
desenvolvesse uma reflexão mais consistente e original acerca de sua própria natureza. Nesse
caso, então, tal subordinação teria contribuído para que se ignorasse a disciplina escolar,
pressupondo sua identidade prolongada e degradada desde a ciência de referência; teria no
mínimo subestimado, também, os problemas e desafios concretos enfrentados pelos
professores no chão da escola e da sala de aula, supondo, muitas vezes, que eles possam ser
resolvidos a partir da constituição de um arsenal de conhecimentos teóricos e de uma
predisposição para a pesquisa acadêmica.
A emergência da escola e do escolar, por outro lado, entre as fontes constitutivas de um
projeto de formação inicial, pode ser que contribua, senão para desfazer a tensão, ao menos
para superar sua forma de tensão polarizada em direção a uma triangulação tensa de matrizes
ou fontes: a produção científica e/ou cultural na área específica e no campo educacional, num
primeiro vértice; os saberes profissionais, tanto em sua dimensão acadêmica quanto sob a
forma de cultura docente em ação, como diria Tardif (a) (2002: 49) ou construídos pela
experiência e liberados e submetidos “ao reconhecimento por parte dos grupos produtores de
saberes da comunidade científica” (Monteiro, 2005: 167), num segundo vértice; a cultura e a
disciplina escolar, por fim. Tal abordagem exigiria que se repensasse, também, a clássica
questão (em sua clássica formulação) do papel da escola na formação inicial: nesse caso,
então, a escola deixaria de ter um papel, passando a estar constitutivamente presente em seu
projeto. Não se trata, evidentemente, de propor a simples transferência da formação para o
espaço escolar, mas de considerar que, se as falas disciplinares e pedagógicas se tornaram
bastante audíveis (e a formação inicial, de certo modo, tem sido seu amplificador e sua caixa
de ressonância), a escola também necessita falar e, sobretudo, ser ouvida.
Pois bem, qual é, então, a estrutura e a lógica de funcionamento da matriz de 2005 e, afinal de
contas, de que estratégias de formação ela está a serviço e que elementos e dispositivos ela
articula? Vista à distância, a organização curricular do Curso de História articula tempos e
espaços na formação de professores. Por um lado, ela dimensiona fisicamente os tempos dos
diversos componentes, mas também trata de suas durações e de suas inserções em momentos
do percurso formativo, numa perspectiva, por assim dizer, pedagógica; de um modo geral, os
tempos estruturam em dois grandes momentos esse percurso: o Momento do Saber,
constituindo o Núcleo Acadêmico do Curso, e o Momento do Fazer, correspondente ao seu
133
Núcleo Profissional. Por outro lado, também os espaços admitem uma leitura física, dos
diferentes lugares, e outra pedagógica, vinculada a formatos institucionais e contextos sociais;
em termos de sua realização concreta, configuram-se dois campos de práticas formativas: um
Campo Intramuros, das atividades desenvolvidas na própria instituição, inclusive nas salas de
aula, e um Campo Extra-muros, formado por atividades realizadas na escola ou em outros
espaços institucionais.
Quanto aos diversos componentes curriculares, que constituem os elementos ou as unidades
mínimas, por assim dizer, com visibilidade na matriz curricular, eles se agrupam e se
organizam em quatro grandes blocos, setores ou áreas: (1) as Disciplinas de Conteúdo
Acadêmico-Científico-Cultural, (2) as Práticas como Componente Curricular, (3) o Estágio
Curricular Supervisionado de Ensino e (4) as Atividades Acadêmico-Científico-Culturais. De
uma maneira geral, o quadro do Anexo III pretende explicitar essas articulações espaço-
temporais em cada um desses agrupamentos (ou blocos ou setores ou áreas) dos componentes
curriculares. Presididos pela antecedência do conhecimento produzido e acumulado ou pelos
processos de sua produção, os grupamentos (1) e (4) pertencem ao Momento do Saber,
constituindo o Núcleo Acadêmico do Curso; focalizando a transformação ou a mobilização
desses conhecimentos em situações de ensino, os grupamentos (3) e (4) pertencem ao
Momento do Fazer, constituindo seu Núcleo Profissional. Enquanto Disciplinas (1) e Práticas
(2) realizam-se em um Campo Intramuros, o Estágio (3) e as Atividades (4) ocorrem num
Campo Extra-muros.
Por outro lado, a qualquer momento pode ser que se questione se a utilização dos termos, da
forma como ocorre na apresentação e discussão dessa organização curricular, não contribuiria
para reforçar uma leitura dicotômica, além de contraditória em relação a essa exigência
verdadeiramente seminal do campo da Educação, qual seja, a da necessária articulação entre
teorias e práticas. Afinal, isto é o que sugere expressões e polarizações tais como Núcleo
Acadêmico e Núcleo Profissional, Momento do Saber e Momento do Fazer, componentes do
âmbito das Disciplinas e das Práticas, espaços e tempos físico e pedagógico, enfim. As
incongruências e as inconsistências da utilização de alguns desses termos na legislação,
especialmente nos Pareceres a que já se fez referência, foram apontadas, no calor da hora, por
Linhares & Silva (2003: 57), questionando, entre outras coisas, a indefinição do termo
prática, sua desconexão do estágio, e a abrangência do que denomina de conteúdos científico-
culturais, a serem desenvolvidos como aulas, interrogando o seguinte:
134
“Não fica claro (...) que os conteúdos do campo pedagógico-educacional, oferecidos pelas faculdades de educação, estejam ali inseridos, o que provoca um sério questionamento: admite-se que formação pedagógica/educacional dos professores nos cursos de licenciatura possa se desenvolver apenas na dimensão prática?”.
A leitura empreendida pelos sujeitos responsáveis pela formação dos professores de História,
na FAFIC, não poderia ignorar esses questionamentos e, se a princípio as questões talvez
parecessem pantanosas e os conceitos um tanto nebulosos, especialmente para aqueles cujos
interesses estiveram tradicionalmente voltados para as discussões teóricas em sua área
específica – a História –, compartilhando muitas vezes concepções utilitárias e estreitas de
licenciatura, mesmo atuando na formação e contribuindo para ela de forma competente e
decisiva, a matriz de 2005 representa, sob vários aspectos, uma correção de rota. Se, conforme
se viu, os sujeitos constroem a história e, dialeticamente, também a história constitui os
sujeitos, os debates contribuíram para o amadurecimento coletivo e para a procura de saídas
que contra-inventavam uma tradição97, porque nova e por isso mesmo tensa e contraditória,
até então ausente no horizonte dos formadores. Assim os termos e expressões citados acima
foram sendo construídos conceitualmente na inteligência para o uso curricular, ultrapassando
sua primeira apreensão como simples expressão lingüística, nas palavras de Severino (2002:
188), em direção aos atributos de compreensão e de extensão, que identifiquem e
individualizem a experiência em curso.
Além disso, idéias, documentos e textos circulavam no ambiente da formação, depurando
alguns entendimentos e criando o que se poderia denominar de um novo senso comum
modificado. Particularmente em relação às articulações entre teoria e prática na formação
profissional dos professores, os sujeitos puderam considerar, em suas conseqüências para a
discussão do currículo formativo, seguindo as proposições de Tardif (2000: 121), que
“a pesquisa universitária na área da educação e a prática do ofício de professor não são regidas pela relação entre teoria e prática, pois ambas são portadoras e
97 A expressão invenção da tradição é do historiador inglês Eric J. Hobsbawn, tendo sido apropriada por Ivor F. Goodson (2003) em sentido próximo daquele em que aparece aqui, embora para representar uma situação inversa. Segundo Goodson (2003: 27), “a elaboração de currículo pode ser considerada um processo pelo qual se inventa tradição. Com efeito, esta linguagem é com freqüência empregada quando as ‘disciplinas tradicionais’ ou ‘matérias tradicionais’ são justapostas, contra alguma inovação recente sobre temas integrados ou centralizados na criança, (favorecendo a) mistificação e reprodução de currículo tradicional, tanto na forma quanto no conteúdo”.
135
produtoras de práticas e de saberes, de teorias e de ações, e ambas comprometem os atores, seus conhecimentos e suas subjetividades. Desse ponto de vista, a relação entre a pesquisa universitária e o trabalho docente nunca é uma relação entre uma teoria e uma prática, mas é sempre, ao contrário, uma relação entre atores, entre sujeitos cujas práticas são portadoras de saberes”98.
Talvez o melhor exemplo dessa contra-invenção de tradição ou da criação desse novo senso
comum modificado possa ser encontrado nas Práticas como Componente Curricular,
conforme entendimento tensa e contraditoriamente produzido e apropriado no coletivo dos
formadores. Justamente, elas são estabelecidas e instituídas declaradamente no intuito de ir
além ou de ultrapassar o tradicional formato curricular baseado na justaposição de
componentes disciplinares, apenas acrescida de uma complementação externa e escassamente
valorizada no estágio supervisionado. A relação que se procura estabelecer aqui será aquela
cujos sentidos correspondem, nas distinções recolhidas por Goodson (2003: 18-19) na
literatura, à preponderância do elemento posterior sobre o anterior entre condicionamentos
prévios e potencial criador, entre definição pré-ativa e realização interativa de currículo
(Jackson, 1968), entre estrutura e possibilidade (Greene, 1971) ou, finalmente, entre
currículo como fato e currículo como prática (Young, 1977). Para melhor compreender o
significado destas distinções, considere-se que:
“Em certo sentido, a promoção do conceito de ‘currículo como fato’ responde pela priorização do ‘estabelecimento’ intelectual e político do passado, tal como está inserido no currículo escrito. Já o ‘currículo como prática’ dá precedência à ação contemporânea e faz concessões à ação contraditória, anômala ou transcendente em relação à definição pré-ativa” (Goodson, 2003: 19).
Essa talvez seja a face mais verdadeiramente criativa da tradição que se procura contra-
inventar no Curso de História da FAFIC. Ele representa, guardadas as devidas
particularidades e as devidas proporções, um empreendimento e um esforço comparável
àquele desenvolvido no Programa UERJ de Formação de Professores, descrito por Macedo
(1998). É certo, no entanto, que ambas as tentativas enveredam-se em buscas diversas e por
caminhos diversos, já que, lá,
“o Programa achou por bem construir um currículo disciplinar que, alicerçado na experiência que já vem sendo desenvolvida, possa supera-lo num futuro próximo. Essa superação tem visivelmente dois momentos: o primeiro dedicado à integração entre as disciplinas e o segundo em que se buscará por em
98 Esta citação apareceu anteriormente, em outro contexto, na p. 60.
136
discussão outras alternativas não disciplinares de currículo” (Macedo, 1998: 32).
A desarticulação e o isolamento entre as diversas experiências no campo da formação de
professores, dentre outras conseqüências, impedem que sejam criadas redes de socialização,
quem sabe fortes e frutíferas o suficiente para instaurar e/ou ampliar o debate e municiar com
evidências as propostas alternativas, de modo a permitir o enfrentamento das iniciativas
oficiais pelas entidades representativas do campo do trabalho, no sentido daquela avaliação
crítica expressa nas conclusões da tese de Silva (2004)99. Assim, a perspectiva da formação
profissional docente, implementada na FAFIC, particularmente em seu Curso de História,
procura conquistar espaços não exatamente pela diluição das tradicionais distinções entre
disciplinas de conteúdo e disciplinas de pedagogia (no sentido, também, daquela tensão entre
matrizes, discutida anteriormente a partir das considerações de Ayres, 2005). Na condição de
corpos de conhecimentos historicamente produzidos e acumulados segundo tradições
estabelecidas, ambas subsistem no currículo no chamado Núcleo Acadêmico (conferir, de
acordo com o Anexo IV, a Matriz Curricular de 2005).
Por outro lado, as fronteiras entre conteúdo e pedagogia e entre teoria e prática vão se
diluindo mas é precisamente nas tentativas de construção desse outro espaço do currículo: as
Práticas como Componente Curricular. Nesse caso, por mais que os sujeitos permaneçam
considerando os conteúdos nelas tratados como História, percebe-se nitidamente que esta
História tem conexões mais profundas com a escola do que com a academia, que é uma
História constituída mais para agir do que propriamente para saber e que, por isso mesmo, os
artefatos do arsenal didático-pedagógico – constitutivos dos saberes profissionais que, no
entender de Tardif (b) (2002: 65), “como as diferentes ferramentas de um artesão, (...) fazem
parte da mesma caixa de ferramentas” – constituem objetos essenciais com os quais e sobre
os quais trabalhar e refletir. Tal concepção, que não surgiu pronta como um raio num dia de
céu azul, foi sendo lentamente construída pelos sujeitos nas discussões internas e nas
experiências curriculares que desenvolviam naquele laboratório pulsante e vivo em que se
convertia o curso de História da FAFIC.
99 “Nesse sentido (conclui a autora), as entidades do campo do trabalho não conseguiram sistematizar um projeto alternativo de formação docente, mas reafirmaram proposições que sinalizam um projeto de formação que não foi explicitado com clareza nos debates com as propostas do Governo FHC” (Silva, 2004: 367).
137
As Práticas como Componente Curricular emergiram explicitamente, pela primeira vez, na
Matriz de 2001, segundo Nunes & Andrade (2005: 95). “Ao tempo de sua implantação, ele (o
conceito de prática) incluía basicamente o conjunto das disciplinas pedagógicas do Curso de
História, acrescidas de outras cujo caráter se aproximasse de uma perspectiva técnico-
instrumental, ou que pudessem ser focalizadas dessa forma”. Em seguida, já na Matriz de
2003, – confirmando o temor de Linhares & Silva (2002)100 de que pudessem significar um
desvio para a prática dos conhecimentos educacionais e pedagógicos – elas permanecem com
o mesmo significado anterior, embora recebendo um tratamento relativamente diferente, pelo
menos na intenção ou no projeto. “O que se privilegiou nesse momento foi o tratamento
diferenciado dos diversos conteúdos trabalhados sob a forma de seminários e oficinas, o que
permitiria uma reflexão mais ampla que fosse voltada para o fazer” (Nunes & Andrade,
2005: 95). A ruptura que recupera a autonomia própria dos conhecimentos pedagógicos e
procura inventar um outro significado para as práticas, virá, finalmente, com a Matriz
Curricular de 2005101. Segundo Nunes & Andrade (2005: 88):
“Pela legislação, as práticas constituem um conceito pouco definido, fato que dá margem a controvérsias e interpretações variadas. Porém, uma leitura intensiva do texto legal pode mostrar que as práticas como componente curricular constituem um saber que pressupõe a apreciação de determinados conteúdos, seguida de uma reflexão sobre a sua constituição no percurso da ação, tendo em vista o exercício da profissão a que se destina. No nosso caso específico, tratando-se de uma licenciatura que prepara a docência em História, essas práticas devem produzir uma reflexão e um saber voltados para a prática do magistério. Essas atividades devem ter, ainda, no mínimo 400 horas. Serão realizadas, basicamente, em contexto de sala de aula com horário fixado, não se tratando de uma aula no sentido tradicional. Deve ter outra dinâmica, na qual teoria e prática formem uma unidade, interpenetrada e focada no exercício futuro da profissão”.
Vislumbra-se, por essa forma, a perspectiva de que a formação profissional do professor de
História possa constituir, mais do que apenas uma demanda ou uma responsabilidade restrita
ao Curso de Pedagogia (ou, lato sensu, às faculdades de educação) – já que o Curso de
História (ou, lato sensu, os institutos específicos) contribuiria apenas proporcionando o
conhecimento disciplinar, e em alto nível, ficando por conta do futuro professor, depois de
formado, a tarefa de adaptá-lo da melhor maneira possível à realidade da sala de aula e à 100 “Admite-se que a formação pedagógica/educacional dos professores nos cursos de licenciatura possa se desenvolver apenas na dimensão prática?”, interrogam-se Linhares e Silva (2002: 57), a respeito da Resolução CNE/CP nº 2, de 19/02/2002. 101 Além da Matriz Curricular de 2005, no Anexo IV, conferir também as Ementas das Práticas Curriculares, conforme aparecem no Projeto Pedagógico do Curso de História – 2005, no Anexo V.
138
particularidade sócio-etária e espacial dos alunos – possa constituir, pois, um encargo também
deste curso (ou destes institutos). Afinal, aquilo em que consiste o objeto fundamental de
trabalho do professor de História, na relação inter-geracional que deverá estabelecer com seus
alunos no interior da escola – a disciplina escolar História – não pode mais ser concebida
segundo a lógica do senso comum, como diria Chervel (1990), combinando conteúdos
vulgarizados e impostos à escola pela sociedade e métodos externos de ensino arranjados por
uma pedagogia lubrificante. Segundo Chervel (1990: 182),
“os métodos pedagógicos postos em ação nas aprendizagens são muito menos manifestação de uma ciência pedagógica que operaria sobre uma matéria exterior do que de alguns dos componentes internos do ensino. (...) A pedagogia, longe de ser um lubrificante espalhado sobre o mecanismo, não é senão um elemento desse mecanismo, aquele que transforma os ensinos em aprendizagens”.
Pois bem, as Práticas como Componente Curricular querem conhecer melhor essa
pedagogia, de que fala Chervel (1990), integrante e internamente constitutiva da disciplina
escolar e que, por isso mesmo, torna incompleta qualquer tentativa de formar professores de
História sem que se contemple essa dimensão crucial de seu objeto mesmo de trabalho. Uma
vez mais, não se trata de formar professores no mesmo nível em que eles deverão atuar
posteriormente, na relação de sala de aula com seus alunos, pelo contrário. Trata-se de
aumentar a complexidade de sua formação pela inclusão de todas aquelas partes constitutivas
da História como disciplina escolar, desde seu núcleo, integrado pela vulgata – que, segundo
Chervel (1990: 203), constitui-se de “corpos de conhecimentos, providos de uma lógica
interna, articulados em torno de alguns temas específicos, organizados em planos sucessivos
claramente distintos e desembocando em algumas idéias simples e claras” – e pelos
exercícios de fixação, até as estratégias e os materiais que sirvam à motivação e à incitação ao
estudo, pelo prazer e pelo desejo de aprender, além de, finalmente, de acordo ainda com
Chervel (1990), seu respectivo aparelho docimológico ou práticas de avaliação102.
Obviamente, esta análise da organização curricular do Curso de História da FAFIC deveria
contemplar, ainda, antes que findasse, aqueles outros dispositivos da formação, 102 Houve um tempo em que se desejou que o formador em sua respectiva disciplina, na formação, trabalhasse a didática que lhe fosse correspondente. Seria ilusório tal desejo, ou seja, poder-se-ia esperar que o professor da disciplina específica, na formação, fizesse isso, ou quisesse fazer, ou mesmo soubesse fazê-lo? Além do mais, tal desejo não corresponderia a uma perspectiva que ainda considera de forma dicotômica a existência de uma disciplina, por um lado, e de seus métodos, por outro, perdendo-se irremediavelmente a vocação de síntese das disciplinas escolares?
139
particularmente o Estágio Curricular Supervisionado de Ensino, o Trabalho de Conclusão de
Curso (ou TCC, sob a forma de um relatório ou de uma monografia final), além do lugar da
pesquisa na formação ou, mais concretamente, seu lugar nesta formação particular.
Entretanto, estes três dispositivos ou percursos formativos – estágio, pesquisa e TCC – serão
tratados de forma articulada no último capítulo desta tese. Note-se que desta articulação
resulta, concretamente, uma importante produção discente, que permanece sob a guarda
institucional, configurando um corpus documental formado por relatórios finais de estágio,
conforme se pode observar, a título de ilustração, nos Anexos VI e VII. Cada um desses
relatórios consiste em dois instrumentos básicos: a pasta de estágio, contendo os registros e
materiais produzidos durante a vivência do estagiário no espaço da instituição escolar, e a
monografia resultante de sua reflexão a partir daquela vivência, considerando ainda alguns
elementos teóricos que favoreçam o enquadramento das questões observadas e
experimentadas no estágio.
Para concluir, resta apenas retomar uma questão formulada anteriormente, em mais de uma
ocasião neste mesmo capítulo: afinal, o que traduz mais fielmente a face verdadeira do Curso
de História da FAFIC, uma intenção acadêmica voltada para o fazer historiográfico e a
preparação para o ofício de historiador ou uma vocação profissional dirigida à atividade de
ensino e à formação para o ofício de professor? Tal questão, é preciso fugir de mal-
entendidos, não exige nem supõe uma resposta universal, contendo elementos para um
desenho necessário à compreensão de todo e qualquer curso de História, como também
dispensa uma abordagem normativa que o tome como um modelo ideal a ser seguido em
quaisquer circunstâncias e contextos. Pelo contrário, trata-se de uma experiência particular na
diversidade de experiências de formação em História, que combina elementos e que inventa
um percurso para si próprio a partir de seus condicionantes históricos e sociais e do perfil de
seus sujeitos, formadores, professores e formandos, mesmo que, ao fazê-lo, necessariamente
esteja produzindo respostas a questões comuns às demais experiências formativas.
Entretanto, não se pretende, nem mesmo seria possível, estabelecer generalizações nos limites
concretos desta pesquisa, seja porque ela não ultrapassa a amplitude de um estudo de caso, ou
mesmo pela extrema raridade de estudos e pesquisas focalizando experiências de formação a
140
partir de abordagens institucionais e curriculares103. Nesse ponto, é preciso constatar que a
hora das sínteses parece ainda não ter soado. Não obstante, o estudo deste caso particular
revela que, ao enfrentar questões e desafios comuns a outros casos, senão a todos os casos,
suas escolhas e suas respostas, quando tomadas em perspectiva, acabam por apontar no
sentido da elaboração de uma alternativa de formação cujo desenho parece configurar o que
estamos chamando de uma Oficina de Formação Docente, com foco no ensino de História,
tributária, portanto, de uma Oficina de Ensino de História, domínio particular de uma Oficina
de Ensino, em geral. Certamente, reivindicar tamanha especificidade para o ensino e para a
formação é fato polêmico no debate acadêmico e na literatura especializada, mas é
precisamente este o desafio maior a ser enfrentado nas tentativas de elaboração teórico-
conceitual em nível de doutorado.
Retoma-se aqui a discussão já estabelecida anteriormente, sobretudo na primeira seção do
Capítulo 2, intitulada “Da oficina de História à oficina de Ensino”. A problematização nascia
ali a partir da consideração do historiador francês Marc Bloch (2001: 49) de que, já em sua
época, o historiador, no exercício de seu ofício, deveria escrever não “unicamente, nem
tampouco sobretudo, para uso interno da oficina”. Argumentava-se, então, que os avanços da
palavra dirigida aos doutos – a ciência histórica –, desde então, ao mesmo tempo em que as
demandas específicas da audiência escolar – a disciplina escolar História –, pareciam
pavimentar caminhos próprios e paralelos cujo ponto de chegada fossem justamente distintas
oficinas. Dizia-se o seguinte:
“De fato, o problema em questão pode ser formulado da seguinte maneira: se existe uma oficina da História com sujeitos próprios, construindo objetos a partir de práticas e instrumentos teóricos e metodológicos específicos, existirá também uma outra oficina, vizinha a ela e comunicante por acessos internos, com seus respectivos sujeitos, saberes e práticas: a oficina do Ensino? Certamente, embora com aspectos epistemológicos e axiológicos particulares, o problema não é exclusivo da História. Antes, segue compartilhado por todos aqueles campos do conhecimento que lograram uma correspondência neste lugar relativamente autônomo e absolutamente relevante (estratégico, dirão alguns) que é o currículo escolar. É preciso tratá-lo, por isso mesmo, de dois pontos de vista distintos e complementares: o da História e o da Educação” (cf. p. 46-47 desta tese).
103 Dois exemplos interessantes, embora a partir de enfoques diferentes tanto entre si quanto em relação ao adotado nesta tese, podem ser encontrados em Sily (1993) e Ciampi (2000), também citados, em contextos diversos, nas notas 1 e 2 da Introdução.
141
É, portanto, para dar conta da complexidade da disciplina escolar, desde um ponto de vista
interno que articula conteúdos e pedagogia, que o Curso de História da FAFIC assume para si
(e explicita para os outros) a identidade de um curso formador de profissionais para a Oficina
de Ensino; e é porque essa oficina, de resto como qualquer outra oficina, articula internamente
os três eixos constituídos por seus sujeitos, saberes e práticas – saberes e práticas, analisados
neste capítulo, sintetizados na História escolar; sujeitos formadores de professores de História,
analisados no capítulo seguinte – que ele não pode deixar de estreitar essa identidade geral na
particularidade de uma identidade de curso formador de profissionais para a Oficina de
Ensino de História; finalmente, o compromisso que assume com os saberes e as práticas no
processo de constituição de novos sujeitos, descobrindo ou inventando alternativas que
realimentem incessantemente aquelas oficinas, que o Curso de História da FAFIC reafirma
essa sua identidade de uma Oficina de Formação Docente para o Ensino de História.
E é como tal que se pretende havê-lo tornado um pouco mais visível no horizonte do vasto
império do Grande Khan, sem o pessimismo que julga inevitável os pesadelos e as maldições
das cidades infernais; é como tal, constituindo sujeitos e sendo por eles construído e
reconstruído incessantemente na história, que se acredita, enfim, que, em meio à riqueza das
formas instituídas e com a força inesgotável dos movimentos instituintes, no campo da
educação, como se dizia no início deste texto, ele possa preservar e abrir espaço para, em
meio ao inferno, tudo aquilo que não é inferno. Ou, para encerrar, nas palavras finais, de
Calvino (1990: 149-150): “O Grande Khan já estava folheando
em seu Atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Brave New World.
Disse: – É tudo inútil, se o último porto só
pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.
E Pólo: – O inferno dos vivos não é algo que
será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.
142
CAPÍTULO 6 – (OUVINDO ESTRELAS) Os Professores pela Mão dos Formadores
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto...
(O. Bilac)
A relação entre formandos e formadores na formação de professores tem sido tratada (e,
talvez, por isso mesmo descartada), ora como extensão pura e simples da relação entre
professores e alunos, portanto como expressão particular da relação genérica de ensino e
aprendizagem, mediada pelo conhecimento que se ensina e aprende, ora na perspectiva da
construção de conhecimento pelo aluno, investindo-se o sujeito do ensino na condição de
professor-mediador. Com o agravante de se constituir como modalidade de ensino superior,
cuja tradição de ensino, geralmente articulada à pesquisa e à produção do conhecimento,
alimenta a ilusão de que ali não existe propriamente “prática de ensino” ou que seus sujeitos
não são exatamente “profissionais do ensino”, esse tratamento acaba contribuindo para uma
certa naturalização das relações entre os sujeitos e destes com o conhecimento.
Uma literatura recente tem se encarregado de questionar tais modelos e convicções,
assentados solidamente na formação de professores, insistindo na consideração do ensino
como base da profissão. Nesse sentido, se a profissionalização do ensino – e
conseqüentemente a preocupação com a formação profissional dos professores e com o
tratamento da docência como profissão – constitui um movimento cuja história vem se
construindo internacionalmente a partir das duas últimas décadas do século passado, também
a profissionalização dos formadores de professores – compreendida a um só tempo como
desdobramento e como condição de desenvolvimento daquele processo – constitui um
problema que necessita ser colocado em discussão. É, pois, nesse sentido de
profissionalização dos formadores que se coloca aqui em questão a relação entre sujeitos,
saberes e práticas na formação de professores.
Preocupado justamente com a ausência de reflexão crítica e de pesquisa cujo foco possa se
abrir em direção à compreensão do que há de implícito e, portanto, de aparentemente óbvio,
nessas relações; particularmente interessado nos problemas epistemológicos do modelo
universitário de formação de professores, Maurice Tardif (2002: 276) assim se pronuncia a
respeito do assunto:
143
“Não problematizada, nossa relação com os saberes adquire, com o passar do tempo, a opacidade de um véu que turva nossa visão e restringe nossas capacidades de reação”.
A tentativa de focalizar a relação entre formadores e formandos, problematizando em especial
o conhecimento profissional dos formadores de professores, deve começar, portanto, pela sua
distinção em relação ao conhecimento profissional dos professores, stricto sensu. Como
afirmam Altet, Paquay e Perrenoud (2003: 243), a profissionalização de formadores de
professores provenientes de corpos profissionais variados – processo que, no presente,
encontra-se talvez ainda mais no domínio do ideal do que do real – deverá conduzir a uma
“dúvida identitária” fundamental em que o formador, afinal, se pergunta: “ainda sou um
professor?”. Tal dúvida identitária, que de resto também não parece visível no horizonte da
formação de professores no Brasil, especialmente nas licenciaturas, deverá conduzir a um
conjunto de novas representações tais como:
“* formar é partir da prática, encorajar, provocar, depois acompanhar uma transformação voluntária de uma pessoa em todas as suas dimensões; “* formar é ajudar a construir competências, a trabalhar a mobilização e a transposição de recursos; “* formar é parar de prescrever e favorecer uma escolha pensada, esclarecida, levando em conta missões, projeto pessoal, expectativas, limites do ofício de professor; “* formar é ajudar a construir modelos de análise e de experiência e conecta-los com saberes extraídos da pesquisa”.
A tentativa de compreender a cultura profissional dos formadores de professores do ponto de
vista da profissionalização do ensino e do conhecimento profissional, a par de seus excessos
generalistas, envolve pelo menos duas importantes conseqüências teórico-metodológicas: por
um lado, favorece uma postura fenomenológica de pesquisa que implica numa “volta à
realidade”, incentivando o estudo dos saberes dos formadores de professores em seu contexto
real de trabalho; por outro lado, favorece também uma perspectiva não-normativa de pesquisa
que consiste em estabelecer o que os formadores de professores são, sabem e efetivamente
fazem e não o que deveriam ser, saber e supostamente fazer. Ambas convergindo no sentido
de uma busca que muito se assemelha àquela segunda maneira de não sofrer, de que fala o
Marco Pólo na literatura de Calvino, exigindo
144
“atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço” (Calvino, 1998: 150).
Caminhando em paralelo com a crise do profissionalismo e da perícia tais como se definem
no âmbito da racionalidade técnica (Tardif, 2002: 250-254), tais conseqüências
comprometem-se, ainda, com a renovação dos fundamentos epistemológicos do ofício de
professor. Longamente enraizada na formação e na prática docente, a perspectiva da
racionalidade técnica aproveita-se de uma predisposição ao mesmo tempo legítima e ingênua
dos formadores de professores, que consiste em formular, explícita ou implicitamente,
questões tais como:
i) o que é ser um bom professor?
ii) o que faço para ser um bom professor (já que antes e ao mesmo tempo também
sou professor)?
iii) como posso contribuir para formar bons professores?
No centro de todas essas questões encontra-se a concepção que se tem de “bom professor”
que, na perspectiva dos formadores de professores, no âmbito da racionalidade técnica, tem
como eixo principal o conhecimento e seu lugar, isto é, a instituição formadora universitária,
concebida, desse modo, como lugar-só-de-conhecimento, descarnado de práticas, produzindo
e prescrevendo saberes para esse lugar-só-de-práticas que é a instituição escolar, desprovida,
por sua vez, de conhecimentos próprios e, por isso mesmo, subordinada ao influxo de
conhecimentos externamente produzidos e prescritos. É o conhecimento, portanto, articulando
modelos de conduta e expectativas de desempenho a serem observados e seguidos, que está na
base da configuração de um paradigma em função do qual os formadores de professores
procuram dar “o melhor de si”.
A perspectiva da profissionalização do ensino investe contra esta concepção hierarquizada e
aplicacionista da relação entre teoria e prática a partir de duas ordens principais de
questionamentos. Primeiro: existe uma profissionalidade de formador de professor? Segundo:
pode-se observar algum movimento no sentido de sua profissionalização? Baseando-se em
estudos empíricos realizados em países francófonos, Altet, Paquay & Perrenoud (2003)
concluem pelo predomínio de uma complexidade heterogênea e múltipla de perfis.
Formadores porque o são na prática, sem formação universitária específica, trazem marcas
145
identitárias variadas: i) de formadores de adultos e portadores de competências oriundas de
outros setores, ii) de professores especialistas, pertencentes ao mesmo ofício dos que estão
formando, iii) de formadores disciplinares com alguma especialização no ensino e,
finalmente, iv) de formadores com perfil polivalente, reunindo várias especializações numa
profissionalidade global.
O termo profissionalidade é utilizado aqui no sentido de um conjunto de características
específicas e relativamente estáveis, fundando uma imagem pública, uma identidade coletiva
e uma evolução progressiva ou brutal de um ofício. No caso do formador de professores, o
núcleo de sua profissionalidade parece constituído, segundo aqueles autores: i) de “pólos de
conhecimentos mobilizáveis” (saberes das ciências humanas, das pesquisas educacionais, em
gestão de grupos etc), ii) de “uma postura de formador de professores” (centralizada no
estágio em situação profissional e na prática de ensino), iii) de uma cultura de formação
compartilhada, iv) de “competências específicas para administrar a complexidade” e v) de
“uma metacompetência, a análise reflexiva de práticas de formação” (Altet, Paquay &
Perrenoud, 2003: 239-240).
Quanto à profissionalização, no sentido em que aparece na pesquisa desses autores,
compreende um processo de construção profissional, podendo representar apenas a evolução
pura e simples de uma profissionalidade ou, mais decisivamente, a transformação de uma
função em profissão, delineando competências específicas e procedimentos mediante os quais
elas são construídas. Tais competências e procedimentos incluem: 1º) a experiência advinda
do exercício concreto da função de formador; 2º) a análise de situações reais e a supervisão de
seqüências de formação; 3º) as interações entre formadores, coletivizando experiências e
formalizando-as; 4º) a realização de projetos e de pesquisas em parceria; e, finalmente, 5º) a
constituição de saberes profissionais a partir da aplicação de uma estratégia e de dispositivos
de formação de formadores.
Tais questionamentos, quando trazidos para a observação de experiências brasileiras em
processos de formação de professores, sugerem um estado de profissionalidade e um
movimento de profissionalização, ambos em grande parte submersos em meio à exacerbação
de uma razão técnica. Particularmente no caso das licenciaturas, o termo formador de
professores sequer circula pelo corpo docente, que segue reivindicando uma identidade, ora
de professor universitário, lato sensu, ora de especialista em um determinado campo de
146
conhecimento. O foco no ensino e a problematização dos saberes dele derivado constitui,
talvez, mais uma promessa do que uma tendência objetivamente verificável nas práticas
formativas concretas e, ainda assim, evidenciando, no mais das vezes, uma preocupação com
o ensinar a pensar conhecimentos e conteúdos, antes que o ensinar a pensar como professor.
Mas esta é, no entanto, a realidade que é preciso conhecer no detalhe, na perspectiva daquela
postura fenomenológica e não-normativa de pesquisa, mencionada anteriormente, se se
pretende conhecer algo a respeito dos saberes profissionais dos professores e dos formadores
de professores. Esta é a realidade em que esses profissionais do ensino e da formação
trabalham, pensam e falam, e que deve ser considerada pela análise numa dupla dimensão:
praxeológica, por um lado, focalizando o contexto e as interações mantidas pelos sujeitos;
epistemológica, por outro lado, tratando dos conhecimentos por eles mobilizados e
construídos. Afinal, uma vez mais, segundo Tardif (2002: 259),
“a legitimidade da contribuição das ciências da educação para a compreensão do ensino não poderá ser garantida enquanto os pesquisadores construírem discursos longe dos atores e dos fenômenos de campo que eles afirmam representar ou compreender”.
Nesse sentido, a pesquisa empírica volta-se para o espaço concreto da formação de
professores de História da Faculdade de Filosofia de Campos – FAFIC, na forma como o
constituem e o concebem seus formadores. Trata-se de um caso de formação que equilibra
formadores antigos e novos, com um modelo de recrutamento predominantemente endógeno,
que traz a marca da escola pelos vínculos que os formadores mantêm com a Educação Básica,
experimentando, pelo menos nos últimos cinco anos, uma forte tendência à qualificação e à
titulação do corpo de formadores, fato que também equilibra o número de especialistas e
mestres, embora ainda não conte, por enquanto, com doutores em seus quadros. Ao todo, o
curso funciona com um quantitativo que flutua em torno de dezesseis formadores.
A distinção entre formadores antigos e novos, acompanhando uma tendência internacional de
pesquisa, situa-se próximo à linha dos sete anos de carreira, muito embora não se deva
considerar uma noção exclusivamente cronológica de tempo. Segundo diversos autores, os
primeiros cinco a sete anos vividos na carreira, com seus acontecimentos constitutivos que
incluem as condições de exercício profissional, “representam um período crítico de
aprendizagem intensa da profissão” (Tardif, 2002: 84). Considerado como tempo vivido
147
(Bicudo, 2003), isto é, nunca repetido, sempre diferenciado, imediatamente nomeado e, desse
modo, singularizado numa sucessão discreta de agoras, é provável que os formadores de
História, na FAFIC, experimentem um processo de intensa socialização, manifesta em
concentração do trabalho apenas em sessões noturnas, espaço físico compartilhado e reuniões
semanais. Segundo esse critério, dos dezesseis formadores, oito são antigos e oito são novos.
Além disso, considera-se também como importante contribuição para a socialização o fato de
que o recrutamento seja fundamentalmente endógeno: a despeito da existência de um
processo público de seleção, treze formadores formaram-se no próprio curso e apenas três
vieram de outras instituições. Certamente isso se deve em parte, mas não totalmente, ao fato
de ser este o único curso há quatro décadas formando professores de História na região.
Acrescente-se ainda, como fator de coesão sócio-profissional (o que não exclui idiossincrasias
e disposições afetivas pessoais) o forte enraizamento do corpo de formadores na Educação
Básica, tanto na rede pública quanto privada: dos dezesseis formadores, apenas quatro não são
também professores ou profissionais da educação atuando na escola, com reflexos não
desprezíveis, por exemplo, nas opções de estágio curricular dos licenciandos e na iniciação
profissional dos licenciados.
Desse grupo de dezesseis formadores, constituiu-se uma amostra com três formadores antigos
e formados na própria instituição e dois novos e formados externamente, todos eles mestres e
apenas um sem experiência na Educação Básica. Além disso, todos são formados em História
e identificados como professores do curso, por contraste com aqueles oriundos de outras
coordenações e nele atuando temporariamente, como a de Pedagogia ou de Letras, por
exemplo. A eles foi proposto, entre dezembro de 2004 e janeiro de 2005, um questionário
contendo perguntas que pudessem revelar percepções e concepções tanto institucionais quanto
a respeito da formação de professores, além de informações pessoais e profissionais. As
respostas foram elaboradas com o tempo que os formadores necessitaram e apresentadas por
escrito. Suas identidades foram protegidas por pseudônimos que expressam nomes de estrelas:
afinal, até que ponto escutá-los consiste num disparate compatível com aquele “ouvir
estrelas”, de Bilac, citado na epígrafe. Ou próximo à constatação de Castro (2005: 96):
“Quando penso nos critérios usados para selecionar quem vai ser o professor do professor, lembro que nunca ouvi falar de uma busca pelas grandes estrelas em sala de aula”.
148
São os seguintes os formadores depoentes:
*Vega da Constelação de Lira – Licenciado e mestre em História pela UFF desde 2001,
*Vega tem um ano de experiência na formação e pouco mais do que isso no Ensino
Fundamental. Permaneceu apenas um ano e meio como formador na FAFIC. Parece conceber
a formação como espaço de convergência do trabalho de especialistas, dentre os quais se
inclui como especialista em História. Suas respostas, no entanto, fazem supor que a
experiência cotidiana como professor de História na Educação Básica possa estar operando
ressignificações importantes nos conhecimentos adquiridos em sua formação acadêmica.
*Hamal da Constelação de Áries – Licenciado na própria FAFIC há dez anos e mestre em
Comunicação Social pela UFRJ (2003), está há sete anos na formação e há treze na Educação
Básica. Com opiniões e reflexões muito pessoais sobre a educação e sobre sua própria
inserção nos meandros da profissão, revela uma sensibilidade que o torna um tanto ou quanto
intuitivo: não “sacraliza” o acadêmico, mas também não compactua com a “banalização” do
cotidiano. Suas respostas são curtas e objetivas e, talvez por isso, exprime com clareza e
segurança suas posições.
*Dubhe da Constelação de Ursa Maior – Licenciado e mestre em História pela UFRJ,
desde 2003. Teve uma rápida experiência como professor temporário na própria UFRJ,
estagiou no Colégio Pedro II, trabalha há quatro anos como professor virtual num projeto
financiado pelo Banco Mundial, mas não tem maiores experiências com a Educação Básica.
Declara viver um período de aprendizagem intensa: “Mudei muito desde minha entrada nesta
instituição, que embora tenha acontecido há pouco mais de um ano, parece-me ter se dado há
dezenas de anos, visto o que aprendi nesta jornada”.
*Ankaa da Constelação de Fenix – Licenciado pela FAFIC em sua primeira turma (1965-
1968), é mestre em Ciências Políticas pelo IUPERJ, desde 2003. Cursou escola normal e
atuou em todos os níveis da Educação Básica, sendo aposentado da rede pública estadual e do
CEFET. Está há mais de dez anos na formação. A vasta experiência docente contribui para
algumas convicções cristalinas no que se refere à licenciatura: “O curso de História da
FAFIC nasceu como licenciatura e assim permanece até hoje, portanto seu objetivo foi e
continua sendo formar professores”. Tem clareza também sobre sua identidade de professor:
149
“Mas também é verdade que intimamente eu sempre me senti professor. Eu me recordo de
uma passagem quando uma amiga se referiu a mim como historiador:
- Eu não sabia que você era historiador! – Disse ele.
Imediatamente eu respondi sem pensar:
- Não, eu sou professor de História”.
*Polaris da Constelação de Ursa Menor – Licenciado pela FAFIC (1987) e mestre em
Ciências Sociais pelo IUPERJ (2003), está há cerca de dez anos na formação, tendo atuado
também em todos os níveis da Educação Básica. Expressa uma visão sui generis da formação,
segundo a qual o curso apenas aporta conhecimentos e favorece convivências para
desenvolver um talento, de resto inato, de professor: “A Faculdade de Filosofia certamente
não forma professores. Os professores egressos da instituição ou já entraram com o ‘tino
professoral’ (é possível observarmos isso nos primeiros seminários, no 1º período) ou,
instintivamente, ou por observação / identificação com um(a) professor(a), acabam
desenvolvendo esse talento”. *Polaris é reconhecidamente (e talvez isto esclareça, em parte,
suas opiniões) um caso de talento em sala de aula.
Numa primeira aproximação aos depoimentos, os formadores revelam impressões sobre o
contexto e sobre as interações que os diferentes sujeitos estabelecem no espaço ou, melhor
dizendo, no “ecossistema” da formação. Tardif (2002: 259-260) chama a atenção para essa
perspectiva ecológica que faz emergir as construções dos saberes docentes a partir do trabalho
cotidiano dos próprios professores, que estamos tratando aqui como uma dimensão
praxeológica de análise. Mais adiante veremos que ela é indissociável da dimensão
propriamente epistemológica. Importa aqui, entretanto, destacar percepções acerca da
instituição e do curso, do grupo de formadores e dos formandos, além de concepções sobre o
formar e perspectivas sobre o egresso.
*Vega, *Dubhe e *Ankaa convergem no sentido de uma representação mais positiva da
instituição; *Polaris oscila entre “o prazer e o descontentamento” e *Hamal critica o
predomínio de interesses pessoais no comando do espaço acadêmico. O ambiente da
Coordenação de História, acolhedor e democrático, proporciona oportunidade de aprendizado
(*Dubhe) e de boas discussões sobre História e sobre formação (*Ankaa). *Polaris, porém,
põe reserva nas constantes flutuações ocorridas na matriz curricular, nos últimos anos. O
grupo de formadores é cooperativo e comprometido, atualizado e de muito bom nível,
150
permitindo discussões e divergências, troca de informações e debate sobre leituras e métodos.
Nota-se a presença velada de diferenças superadas (*Ankaa) ou de cataclismas (*Polaris) num
passado recente, em contraste com a harmonia que parece imperar no presente.
A relação entre esses formadores e seus formandos oscila desde o respeito mútuo, que não
exclui conflitos, de *Vega, ou a dificuldade que faz *Dubhe sentir-se “estrangeiro” em
relação a eles, numa tentativa de aproximação “sempre muito tensa”, até o relaxamento um
tanto blasé de *Hamal, fazendo o que pode para tornar “as aulas prazerosas para eles e para
mim”, ou a segurança incontida de *Polaris: “Percebo que sou respeitado e querido por
aqueles que já foram meus alunos e também pelos que não foram”. Mas é *Ankaa quem
racionaliza e formula a compreensão de que se está diante de um aluno trabalhador, de baixo
poder aquisitivo e que não teve oportunidade de cursar um bom Ensino Médio. “O primeiro
passo – diz *Ankaa – é ter consciência do aluno que temos: trabalhar com o real e não com o
ideal. A partir daí procurar vencer os obstáculos, buscando construir um profissional de
qualidade a partir da precariedade”.
Mas é na apreciação que fazem do contexto e das práticas reais de formação, tomada em
relação às suas respectivas concepções de formar, que mais se revelam e se explicitam as
diferenças entre eles. O pessimismo de *Vega e a posição de expectativa de *Dubhe,
formadores novos e recrutados externamente, se aproximam na medida em que ambos elegem
o conhecimento como eixo principal da formação concebida. Para *Vega, um curso noturno,
em que os alunos demonstram pouco tempo e/ou interesse pelas leituras e avidez por aulas
expositivas, deverá produzir, como perfil esperado, um professor pouco afeito à pesquisa e
apegado ao livro didático e à quantidade de informações nele contidas. A aprovação em
concursos, a absorção pelas escolas e a chegada à pós-graduação seriam indicadores da
qualidade do profissional formado, a serem conferidos empiricamente.
O trabalho de *Dubhe ancora-se na esperança de que esteja contribuindo para que se formem
profissionais críticos, criativos e ousados (e não meros repetidores do livro didático), que não
tomem o conhecimento como algo absoluto, mas que tenham uma visão ampliada das
discussões e que possam aproximar a disciplina do cotidiano de seus alunos. “Não acredito –
diz ele – numa formação ideal. Podemos disponibilizar saberes, técnicas, métodos e fazê-lo
com afeto e orgulho, inserindo o aluno no processo formador”. Talvez os cuidados de
*Dubhe, no que se refere à afirmação muito peremptória de um modelo ou de um perfil,
151
resulte mesmo da incerteza diante de um futuro que não produziu precedentes: afinal, seu
curto tempo de formador não lhe permitiu, ainda, defrontar-se com a objetividade do que
possa identificar como fruto do seu trabalho.
As apreciações e concepções de *Polaris – um formador experiente e endogenamente
recrutado –, por outro lado, são as que mais se aproximam de uma visão tradicional do
magistério como dom ou condição inata, já que, para ele, o professor já vem pronto. Quem
não tem talento jamais se tornará professor, podendo no máximo, os que conseguirem seus
empregos, tornarem-se “novos leitores de livros didáticos! Uma lástima!”. O ceticismo de
*Polaris leva-o a crer que a FAFIC não forma, já que não existe formação para aquilo cuja
presença ou ausência é, naturalmente, apenas um dado da natureza humana: trata-se, pois, não
de formar, mas de tão-somente disponibilizar recursos cognitivos (“um mínimo necessário de
conhecimento de conteúdos na disciplina e com referenciais bibliográficos”) e oportunidades
de treinamento prático (“no mínimo, uma escola de aplicação – de verdade!”) para
desenvolver seu “tino professoral”.
Finalmente, *Hamal e *Ankaa – igualmente formadores experientes e formados na própria
FAFIC – manifestam apreciações e concepções senão próximas, ao menos comparáveis, na
medida em que parecem relativamente descentradas de um viés cognitivista e disciplinar
muito estrito. *Hamal expressa uma postura crítica em relação à formação real empreendida
na FAFIC, segundo ele de bom perfil acadêmico, mas “nem sempre muito criativo e antenado
com outras áreas do conhecimento”. No equilíbrio entre a busca da autonomia e os interesses
coletivos constrói *Hamal sua concepção de formar que significa, em última instância,
“compartilhar o caminho do aprender a aprender”. Talvez *Ankaa possa assinar em baixo
dessa definição, associando esse “aprender a aprender” a uma perspectiva reflexiva na
formação e na docência.
De fato, a postura de *Ankaa em relação ao percurso formativo vigente no Curso de História
da FAFIC é de confiança construtiva. De acordo com ele, vem amadurecendo nos últimos
anos uma consciência de licenciatura, apoiada na evidência de que 85% dos professores de
História da região são formados ali, segundo uma pesquisa da própria Coordenação. Seus
eixos fundamentais seriam tanto o conhecimento quanto a reflexão sobre a docência como
prática profissional, aliados ao esforço de construção de habilidades que permitam ao
licenciado enfrentar os desafios da e colocados pela escola. Em suas próprias palavras,
152
“formar significa construir o professor”. A formação ideal – prossegue – “seria aquela
capaz de dotar o professor de habilidades que serão capazes de dar conta dos grandes
desafios que o professor irá encontrar na escola e para isto penso que não basta apenas o
conhecimento específico da História”.
Por fim, vale a pena destacar a nota crítica, o tom severo e até certo ponto desqualificador
presente em todas as ocasiões em que o livro didático aparece citado nos depoimentos dos
formadores. “Talvez na prática de sala de aula tenhamos um professor pouco afeito à
pesquisa, demasiadamente preso ao livro didático e ao volume de informações nele contidas”
– supõe *Vega, como resultado de uma formação com as características daquela empreendida
pelo Curso de História da FAFIC. ”Espero que estejamos formando profissionais críticos,
criativos e ousados e não meros repetidores de conteúdo amparados em livros didáticos” –
emenda *Dubhe, manifestando mais um desejo do que efetivamente uma convicção. “Outros
jamais serão professores e, o que é pior, muitos conseguirão seus empregos e tornar-se-ão os
novos leitores de livros didáticos!”, lamenta-se *Polaris, atribuindo ao livro didático o triste
papel de sucedâneo à falta de “tino professoral”.
Mesmo *Ankaa, embora situando a hipertrofia do papel do livro didático num contexto de
escassas reflexões sobre a especificidade do saber escolar, não deixa de fazer um contraponto
entre ele e a produção acadêmica do saber historiográfico. Segundo ele, “em muitos casos o
professor iniciante, diante das dificuldades, parece que se esquece de tudo que discutiu na
graduação e, sem nenhuma reflexão, toma o livro didático como a sua principal fonte de
conhecimento, fato que empobrece muito o ensino. Neste caso, o livro didático se transforma
no ‘senhor do conhecimento’”. Apenas *Hamal não deixa pistas para que se perceba sua
visão do livro didático. Mesmo assim, o silêncio pode ser revelador, especialmente quando
enumera recursos utilizados em suas aulas e, dentre eles, não inclui o livro didático: “peço
aos alunos para articularem o passado com o presente, uso documentários, reportagens e
entrevistas” – afirma ele. “É claro que nem todo dia a coisa sai legal”.
Evidentemente, mesmo não sendo este o momento nem o local apropriado para aprofundar a
discussão sobre o livro didático, não se deve deixar passar a oportunidade de mencionar, por
um lado, que pesquisas recentes vêm apontando o livro didático de História “como peça-
chave da prática educativa dos professores de história, desempenhando um papel
fundamental tanto na preparação como na execução das suas aulas”, além de sua
153
importância estratégica “na produção e divulgação do saber histórico escolar” (Gabriel,
2002: 241). E que, por outro lado, a tentativa de medir esta “peça-chave da prática
educativa” com uma unidade de medida cuja escala de rigor teórico e metodológico seja
compatível com a produção acadêmico-científica pode servir para desqualificá-la justamente
pelas concessões e pelos sacrifícios imperdoáveis que faz à comunicação e à aprendizagem
dos alunos, ou seja, por ela ser precisamente aquilo que ela é: uma obra didática.
Talvez fosse interessante contrastar as concepções daqueles formadores com a idéia de um
livro didático percebido como expressão de uma historiografia escolar, produto particular de
uma cultura escolar, elemento constitutivo de uma disciplina escolar (a História, ou melhor, a
História Ensinada ou o Saber Histórico Escolar), literatura específica dotada de relativa
autonomia em face da própria historiografia, stricto sensu. O fato de que ele represente uma
literatura de uso, para o uso de professores e alunos, não estaria a lhe conferir ainda mais
autonomia, tendo em vista as condições objetivas de vida e as perspectivas subjetivas de
existência desses sujeitos? Do mesmo modo que, nessas condições, não seria desejável uma
revisão – como objeto de reflexão e como fonte de conhecimento e não como depósito de
informações – na perspectiva que o baniu do ambiente e das práticas de formação de
professores?
Levando tais idéias às suas últimas conseqüências, o historiador André Chervel (1990) acha
que a disciplina escolar é resposta a uma demanda, não do conhecimento ou da ciência, mas
da sociedade e da instituição escolar, embora constituído no diálogo com esse mesmo
conhecimento ou essa mesma ciência. Desse modo, a literatura da disciplina escolar
remeteria, antes de tudo, às demandas que lhe deram origem, devendo contribuir, pois, para
que a escola, através de suas criações originais – as disciplinas escolares – cumpra a contento
com as suas finalidades, dentre as quais pontifica aquela missão crucial de aculturar as jovens
gerações e seus “pequenos selvagens”. Nesse sentido, então, sem que se perca de vista a
exigência de uma atitude crítica em face de seus problemas, redime-se o livro didático pelo
pecado de não cumprir aquilo que nunca prometeu: expressar o rigor da ciência no espaço da
cultura escolar.
Para além dessa aproximação de ordem praxeológica aos depoimentos dos formadores da
FAFIC que a análise vem procurando estabelecer, segundo a qual cumpre observar e registrar
suas impressões sobre o contexto da formação e sobre as interações entre seus sujeitos, tendo
154
em vista a interpretação dessas impressões, de resto imediatamente referenciadas à maneira
mesma como os formadores trabalham, pensam e falam no “ecossistema” da formação,
importa considerar tais depoimentos em outra dimensão: agora epistemológica. Nesse sentido,
o foco da pesquisa dirige-se para o conhecimento sob um duplo ponto de vista: por um lado,
como conhecimento mobilizado e/ou (re)construído por eles para utilizar, para compreender
ou para justificar aquilo que efetivamente fazem; por outro lado, numa perspectiva mais
reflexiva, procura-se compreender o significado que atribuem a esses conhecimentos e suas
articulações, no âmbito de suas respectivas experiências de formadores.
Note-se que as condições sob as quais funciona o modelo de formação de professores na
FAFIC – uma formação de conhecimento, conforme dizíamos anteriormente, de baixa
articulação com o trabalho e a prática docente na escola – contribui para que se instaure uma
dicotomia entre conhecimentos acadêmicos e conhecimentos escolares, que só não é ainda
mais definitiva e irreconciliável por um fator relativamente fortuito e alheio à
intencionalidade das práticas formadoras: a inserção dos formadores na cultura da escola104.
Por conhecimentos acadêmicos entenda-se tanto o corpo de conhecimentos específicos da
área em questão – no caso, a História – quanto os conhecimentos pedagógicos ou do campo
das ciências da educação. Os conhecimentos escolares, por seu turno, contemplam não apenas
os saberes em e de ensino (saber ensinar e saber a ensinar), como também os saberes
necessários à sobrevivência profissional no chão da escola.
A articulação entre todos esses saberes – saber historiográfico, saber pedagógico, saber
curricular e saber da escola, lato sensu – se dá pela intervenção sistemática, embora não
intencional ou não racionalmente elaborada (no sentido da aplicação ou da elaboração de
modelos prévios), da experiência docente em construção no exercício cotidiano e concreto da
profissão, constituindo aquilo que Tardif (2002: 48-49) denomina de saberes práticos ou
experienciais. Segundo esse autor.
“pode-se chamar de saberes experienciais o conjunto de saberes atualizados, adquiridos e necessários no âmbito da prática da profissão docente e que não provêm das instituições de formação nem dos currículos. Estes saberes não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes práticos (e não da prática: eles não se superpõem à prática para melhor conhecê-la, mas se
104 Se é verdade que os sujeitos fazem a história na mesma medida em que são por ela constituídos, deve-se esperar que aquele tempo de turbulência na FAFIC e em seu Curso de História esteja modificando intimamente essa perspectiva.
155
integram a ela e dela são partes constituintes enquanto prática docente) e formam um conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam, compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as suas dimensões. Eles constituem, por assim dizer, a cultura docente em ação”.
Portanto – e independentemente do fato de que essas idéias tenham sido originalmente
formuladas tendo em vista a problemática dos saberes docentes, e não da formação de
docentes –, o conjunto de conhecimentos dos formadores, conforme expresso em seus
próprios depoimentos e tomado aqui como objeto de consideração e de análise, constitui-se
fundamentalmente a partir de representações deles próprios acerca da mobilização e da
produção de conhecimentos em condições de trabalho, configurando, por isso mesmo, saberes
práticos ou experienciais, e não saberes acadêmicos, nem tampouco escolares. Instados a
refletir e a falar sobre o que são e o que fazem, eles explicitam um discurso que emerge da
maneira mesma como vivenciam a prática da formação: por isso ainda faz sentido cada uma
daquelas diferenciações entre formadores antigos e novos, de recrutamento endógeno e
exógeno e com raízes mais ou menos profundas na escola.
Por conseguinte, pode-se afirmar que o modelo de formação de professores colocado em
prática pela FAFIC, ao menos da maneira como essa prática se realiza na licenciatura em
História, constitui um modelo dependente da capacidade articuladora dos saberes
experienciais de seus formadores. Tal fato reforça ainda mais a importância de uma
abordagem epistemológica e situada cujo foco se dirige para a reflexão e para a fala dos
próprios sujeitos, a partir das condições e do lugar que efetivamente ocupam no processo
formativo.
Não obstante, a maneira como esses saberes oriundos da experiência diuturna da profissão
articula o conhecimento, tanto em dimensão acadêmica quanto escolar, e se funde com ele nos
desdobramentos da prática e da produção de sentido dos formadores de professores, não pode
ser idealizada em expectativas ou juízos de valor. Ou seja, mais ou menos conhecimento e
experiência, articulados e fundidos em situações concretas de trabalho produzem... a
complexidade da vida profissional, e não situações estáveis e prescritas idealmente em
modelos abstratos. A elaboração dos dados da pesquisa a partir dos depoimentos dos
formadores da FAFIC mostrou que substituir um modelo de interpretação, centrado na
instituição formadora universitária e seus conhecimentos formais, por outro de sinal
156
valorativo invertido e focado na instituição escolar ou na experiência de seus sujeitos, apenas
simplifica unilateralmente o problema.
Nesse sentido, é preciso insistir em que as diferenciações sugeridas acima não sejam
transformadas em classificações para distinguir o bom e o mal formador de professores ou
para contrapor hierarquicamente dois conjuntos de formadores: antigos, endógenos e
enraizados na escola versus novos, exógenos e de escasso envolvimento com o universo
escolar. Até porque, tais diferenciações constituem perspectivas acerca da formação que se
encontram em processo, permanentemente sujeitas, por isso mesmo, a reajustes, mudanças de
rumo e transformações. Se para todos esses formadores, de uma maneira geral, a formação de
professores constitui, em maior ou menor grau, um processo e um percurso, por assim dizer,
cognitivo ou de conhecimento (e não prático ou que eleja a prática como eixo que estrutura e
orienta o trabalho formativo), as concepções que puderam construir acerca do conhecimento,
encontram-se sob influência daquelas diferenciações.
A análise em dimensão epistemológica, por outro lado, permite também que se coloque em
seus devidos termos a própria importância da experiência e dos saberes dela derivados no
trabalho da formação. Na verdade, não se pode subestimar a importância crítica de uma sólida
base teórica, sob pena de se instaurar um praticismo ou um pragmatismo a partir do qual se
constitui uma formação meramente de resultados, baseada em noções muitas vezes extraídas
do senso comum, acolhendo idéias anacrônicas há muito superadas no debate educacional,
embora nem sempre erradicadas da prática da profissão. Se a ausência de vínculos explícitos e
sistemáticos com a prática profissional realmente existente nas escolas constitui um problema
nada desprezível no projeto formativo de uma instituição como a FAFIC, por exemplo,
tampouco a reflexão teórica focada na profissão, alimentando concepções e significados na
constituição dos sujeitos, deve ser negligenciada.
Se nosso quadro inicial de referência pressupunha a diferenciação da amostra de formadores
em dois conjuntos de perfis aparentemente dicotômicos, a serem confirmados, apenas, em
seus próprios depoimentos (uma vez mais: antigos, endógenos, enraizados na escola e
qualificados, por um lado; novos, exógenos, sem raízes escolares e, também, qualificados, por
outro), tal diferenciação sociográfica, cuja representatividade no âmbito da amostragem pode
ser conferida no Quadro I, abaixo, ao ser confrontada com os depoimentos dos formadores,
revela a constituição de pelo menos três (e não apenas duas) concepções de prática e de
157
formação: uma visão idealizada da prática e da formação, predominante entre os formadores
mais jovens e menos experientes; uma visão reflexiva e compreensiva, mas também uma
visão detratora da prática e da formação, ambas presentes, e às vezes intercambiantes, entre os
formadores mais experientes.
QUADRO I – FAFIC: Critérios de diferenciação dos formadores de professores
Tempo Recrutamento Raízes na escola Formadores Titulação
Antigos Novos Endógeno Exógeno Maiores Menores
*Veja Mestre * * *
*Hamal Mestre * * *
*Dubhe Mestre * * *
*Ankaa Mestre * * *
*Polaris Mestre * * *
Nossa suspeita é de que tais concepções, mas sobretudo essa bifurcação que se observa no
conjunto dos formadores mais experientes, resultam de um contexto de formação que ainda
não rompeu, ou pelo menos não rompeu o suficiente, com uma perspectiva fundada na
racionalidade técnica, em que teoria e prática constituem dimensões fragilmente articuladas.
As teorias utilizadas e re-construídas por eles, em geral não dizem respeito à formação: trata-
se, de fato, de teorias constitutivas do campo disciplinar da História; por outro lado, as
práticas desses formadores também não se conectam a referenciais teóricos explícitos,
ancorando-se na própria experiência empírica, fundada na memória pessoal de erros a se
evitar e de acertos intuitivos tomados como regras constitutivas e justificadoras de certezas, a
conferir segurança à própria prática. As perguntas dirigidas aos formadores, nessa dimensão
epistemológica de pesquisa, apontaram para três ordens de questionamentos.
Interroga-se, em primeiro lugar, sobre o papel dos conhecimentos específicos e pedagógicos,
enquanto tais e na relação que estabelecem com o conhecimento escolar, no processo da
formação. Em segundo lugar, pede-se que reflitam sobre a diferença entre os conhecimentos
necessários e/ou desejáveis aos formadores e aos formandos: o formador ensina ao formando
tudo aquilo que sabe ou existe alguma especificidade em seu saber que somente a ele diz
respeito? Finalmente, os formadores manifestam opiniões sobre algumas ações, estratégias ou
dispositivos de formação, tais como a aula, a prática de ensino, o estágio supervisionado e a
158
pesquisa. Uma pergunta atravessa todos esses questionamentos: afinal, o trabalho na formação
reflete sobre a missão e as finalidades da Educação e da Escola, sobre a contribuição da
disciplina específica para tal fim, mobilizando conhecimentos que favoreçam a fecundação
dessas reflexões, ou todos esses conhecimentos encontram-se circunscritos apenas à sua
própria lógica de produção?
O conhecimento específico na área, considerado em si mesmo como o saber a ensinar, em
nenhum momento é secundário ou secundarizado no âmbito da licenciatura em História;
muitas vezes, considera-se como tudo aquilo que faz a diferença na constituição de um bom
professor. Nesse caso, então, quando o domínio de conteúdo não está posto em questão,
desloca-se o problema restante na produtividade do ensino para algo que não é o saber a
ensinar, mas que supostamente se encontraria na mediação entre ensinar e aprender, sendo,
portanto, um problema de ordem metodológica ou do como ensinar. Redimidos os conteúdos
específicos, ampliam-se as exigências sobre a pedagogia: pode estar aí a origem de sua
culpabilização pelo fracasso da aprendizagem. De fato, o único problema que diz respeito ao
conhecimento específico, na visão geral desses formadores, reside não no próprio conteúdo,
mas em seu domínio: se não é suficiente, deve-se acrescentá-lo; se o é, o problema está em
outro lugar...
*Vega considera o conhecimento específico “a espinha dorsal da aula”, mesmo que não
venha sozinho; *Dubhe vê nele a reunião de todas as nossas “ferramentas de trabalho: a tela
em branco, as tintas, os pincéis e a palheta”. E ponto final. Os formadores mais experientes
não deixam de compartilhar desta atribuição de centralidade ao conhecimento específico;
contudo, após reafirmá-la, complementam sua percepção incluindo uma preocupação com
aquilo que se encontra fora dele: o mundo do aluno. *Hamal reconhece sua importância, na
medida em que “alimenta o observatório em que você se encontra com o aluno para buscar
respostas provisórias sobre os dilemas da atualidade”. Para *Ankaa, ele é “a matéria
prima”. Seu domínio “dará ao professor a segurança para que ele possa escolher e moldar
os conteúdos de acordo com a necessidade do aluno e da escola”.
Admitindo uma “visão muito conteudista no ensino de História”, que o faz priorizar a aula
expositiva por acreditar que nela seja possível “apresentar o maior volume de conteúdo
possível”, *Polaris amplia o consenso: também considera imprescindível seu domínio. Para
ele, no entanto, os conhecimentos específicos “poderão ser adquiridos na formação e/ou no
159
desempenho profissional”. Curiosa essa referência ao lugar de aquisição dos conhecimentos
específicos que não distingue outra especificidade na relação entre o historiográfico e o
escolar, num formador experimentado como *Polaris. Mesmo um formador jovem como
*Dubhe, embora refletindo a partir de sua história pessoal e não da experiência profissional,
reconhecia diferenças e traduzia especificidades em espacialidades: seus primeiros tempos de
faculdade distanciavam-se de suas vivências como aluno de escola; mas havia ainda um outro
lugar, “lá na Praia Vermelha”, onde funcionava um “curso de licenciatura”...
Assim *Dubhe distingue e articula esses três lugares específicos:
“O conhecimento que eu havia trazido do ensino médio havia sido tão somente meu passaporte de entrada. Uma vez dentro, este havia sido descartado tão rapidamente como um sapato velho. Fiquei assustado! Do que diabo estas pessoas estão falando??? Lógico, era um curso para formação de bacharéis. Logo, a relação entre os conhecimentos necessários a essa formação e os que circulam no ensino escolar era... deixa eu ver... absolutamente nenhum! Tudo bem, vamos à licenciatura. Lá eu vou poder dominar algum conhecimento de sala de aula. Pois bem, lá na Praia Vermelha, no curso de licenciatura, eu aprendi finalmente... a apagar o quadro”.
Por que *Polaris opera com a extensão e a continuidade e *Dubhe com a ruptura e a
descontinuidade? Qual o significado e as conseqüências para a formação de professores, em
particular, dessas diferentes concepções acerca da relação entre as dimensões acadêmica e
escolar do conhecimento específico, no caso a História? Ouçamos o que diz *Polaris:
“Os conhecimentos que circulam na formação devem ser básicos, o mínimo necessário para o desempenho da função. Esses conhecimentos devem avançar ao longo de toda a vida profissional, numa interação regular com a academia. (...) Há muitos ‘ruídos’ entre a produção do conhecimento acadêmico e o trabalho do professor na escola, tais como: interpretações, escolhas, simplificações / reduções que podem adulterar o significado original dado pelo pesquisador que produziu o conhecimento que está sendo trabalhado (...). O professor tem um ímpeto de inventar fatos, ‘viajar’, como um esforço para facilitar o entendimento do aluno. Já criei e continuo criando muitas histórias! A sorte é que nunca me perguntaram sobre as fontes!”.
Os conhecimentos escolares de *Dubhe, tratados como mero passaporte para o acesso à
universidade, logo em seguida serão descartados e substituídos por “teorias, metodologias,
historiografia... hegel, heiddegger, bloch, febvre, braudel, thompson, caio prado, gilberto
freyre...”. Em *Polaris, não há conhecimentos escolares e acadêmicos, mas apenas
160
conhecimentos que tanto podem ser adquiridos na formação, portanto na faculdade, quanto no
“desempenho da profissão”. No primeiro caso, embora a continuidade fosse esperada, a
descontinuidade se impõe concreta e inesperadamente. O diagnóstico da História realmente
ensinada na escola é trágico:
“O que posso observar é uma total e terrível falta de preparo em lidar com as mais corriqueiras questões relativas ao saber histórico, (o que faz com que a disciplina acabe) se tornando um fardo para os alunos e também para os professores”.
Os formadores novos são categóricos em seu diagnóstico sobre a situação dos conhecimentos
específicos na escola. Considerados por *Vega como “a espinha dorsal da aula”, lamenta, no
entanto, o fato de que lá aconteça “um trabalho complicado”, prevalecendo a mera narrativa
de fatos do passado. Entretanto, o que de fato identifica esses formadores, cujas trajetórias
acadêmicas se aproximam desde a graduação universitária até o mestrado cumprido na
própria área, para além de perceberem e enfatizarem a existência de uma distância teórica e
metodológica e de um tempo entre a produção e o desgaste dos conhecimentos, é a
expectativa de que ambos, tempo e distância, possam ser superados, no fim, por uma mudança
de qualidade tanto na formação de novos professores quanto no ensino escolar.
Evidentemente, o fiel da balança da qualidade não poderá deixar de pender para o lado de um
conhecimento de alto nível, identificado iniludivelmente com aquele que a academia produz.
Nas palavras de *Vega,
“acho importante que o formando tenha condições de relativizar as informações dos livros e desta forma aproximar os alunos daquilo que vejo como sendo a essência da História: a dinâmica, o movimento... a dialética, as incertezas, as possibilidades de análise...”.
O movimento configurador, portanto, dessa visão idealizada da prática e da formação,
subjacente ao trabalho desses formadores novos, segue um percurso que tem, no início, a
suposição prévia de uma continuidade entre os conhecimentos acadêmicos e escolares;
desdobra-se na descoberta da ruptura para, finalmente, se fechar na expectativa de uma
transformação pela qualidade: permeabilizando e fecundando o ensino a partir da
precipitação, na escola, de uma concepção que resgata a “essência da História” (*Vega),
restaura-se a importância e o interesse por uma disciplina “que é simplesmente deliciosa”
(*Dubhe).
161
Por outro lado, se o diagnóstico de *Polaris para a História que se ensinar na escola também é
trágico, é-o de outra maneira e por razões diferentes: a degradação dos conhecimentos na
passagem da produção acadêmica para o ensino na escola é um fenômeno genético, mais do
que inevitável, que tanto se deve aos estragos provocados pelo livro didático quanto ao
comodismo rotineiro e inercial dos professores. Segundo ele, o trabalho com o ensino da
História na Educação Básica é,
“em geral, uma mera repetição do livro didático, salvo honrosas exceções. Uma vez alcançado o emprego / trabalho os professores procuram fazer aquilo que é mais fácil e cômodo para si. Neste caso, o livro didático é a aula! (...) Mas, nem tudo está perdido. Há os colegas engajados e responsáveis que conseguem despertar em seus alunos a paixão pela História. No mínimo, conseguem dar um pouco de sabor à disciplina tornando-a palatável!”.
O experiente *Polaris constrói e explicita, na extensão e na continuidade, o que se poderia
identificar como uma concepção detratora da escola e do ensino escolar de História, logo
também sem maiores perspectivas para a formação, a partir de seu próprio diagnóstico das
condições reais desse ensino: raros e excepcionais são os professores com tino professoral,
individualmente comprometidos e resistentes, embora submersos na rotina e no comodismo
geral; o conhecimento acadêmico sofre “reduções, transposições, simplificações e
deturpações” no ensino escolar e, particularmente, no livro didático; no caso da FAFIC, cujos
alunos são oriundos das “camadas populares, principalmente os alunos trabalhadores, (...) o
curso se reduz às aulas e às anotações em seus cadernos! Não é o ideal, mas é o real”.
Enfim, há muito pouco a ser feito neste cenário desolador para a formação de professores, e o
que resta fazer remete a escolhas de foro íntimo, quase uma predestinação...
Outros formadores, no entanto, elaboram e exprimem uma compreensão mais cuidadosa e
refinada quando procuram diagnosticar o ensino escolar da História. *Hamal evita
generalizações, apontando para a diversidade de situações e a irregularidade de práticas: “já
melhorou bastante, mas ainda há muitos professores trabalhando numa perspectiva muito
tradicional”. Embora não deixe explícito o que entende por uma “perspectiva muito
tradicional”, em outras afirmativas de *Hamal seria possível encontrar referências à
necessidade de atualização, não somente em História, mas em outros campos de
conhecimento, como também a um certo antenamento com o mundo, isto é, à reunião de
162
capacidades que possibilitem processar e interpretar informações da mídia, do contexto sócio-
cultural e político e, enfim, do “caos da realidade”.
Também *Ankaa é cuidadoso na definição da amplitude de seus comentários e observações.
“Não se pode afirmar que o ensino de História na Educação Básica tenha sido sempre um
sucesso” – avalia. No entanto, a medida desse sucesso, mais do que propriamente cognitiva
ou pautada na transferência e no acúmulo de conteúdos, é pedagógica e social, apontando para
a importância de que os conhecimentos façam sentido no contexto da escola e na experiência
de vida do aluno. Em suas palavras:
“Muitas vezes os alunos não entendem a importância da História, o seu sentido e o porque de seu ensino. (...) O trabalho do professor deveria estar focado nas necessidades do aluno, nas características do curso no qual trabalha e nas peculiaridades do local onde está localizada a escola. Não adianta passar ao aluno grandes conhecimentos historiográficos que nada significam para ele”.
Experientes como *Polaris, *Hamal e *Ankaa constroem e explicitam uma visão que dispensa
o frontal enfrentamento do problema da extensão ou da ruptura, da continuidade ou da
descontinuidade entre a História acadêmica e escolar, com reflexos importantes na maneira
como concebem e praticam a formação. É provável que ambos não tenham uma resposta
definitiva para tal dilema, o que se traduz em posições flutuantes, ora admitindo a
centralidade da História, em sua face acadêmica, na formação de professores, ora apontando
para a necessidade de reflexões profissionais e de conexões entre o conhecimento
historiográfico, o mundo da escola e do aluno e o “caos da realidade”. Existirá, de fato,
algum objeto – a disciplina escolar História, por exemplo – capaz de mediar e contribuir para
a construção das conexões entre, por um lado, o conhecimento historiográfico e, por outro
lado, o mundo da escola e do aluno? Evitando juízos definitivos, *Hamal e *Ankaa elaboram
uma concepção reflexiva e compreensiva da prática e da formação, respondendo sim aqui,
talvez ali e não acolá...
Talvez por isso mesmo, ou seja, talvez por manifestarem posições flutuantes entre a
continuidade e a descontinuidade, entre a extensão e a ruptura na maneira de conceber a
relação entre dimensões acadêmica e escolar do conhecimento histórico, esses formadores se
mostram extremamente cautelosos em suas diferenciações e hierarquias. *Hamal considera
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que a escola faz “uma leitura específica”, nem melhor nem pior, definitivamente, do
conhecimento, em função de suas próprias particularidades. Segundo ele,
“no ensino, os professores mais ‘safos’ têm valorizado a flexibilidade, a criatividade, uma leitura específica do que é produzido pela academia. Às vezes, o que se faz na escola ultrapassa o que vem sendo produzido pelos pesquisadores, porque não está comprometido apenas com a objetividade da pesquisa, mas também com a objetividade dos sujeitos, envolvidos no processo de conhecimento, com os seus desejos e subjetividades” (grifos adicionados).
A percepção de *Ankaa, por sua vez, transita entre o reconhecimento profundo de uma
diferença e a expressão atenuada de uma filtragem de conteúdos. No primeiro caso, afirma
que
“nem sempre há uma reflexão sobre a diferença entre o saber historiográfico e o saber escolar e o entendimento de que este último é um saber específico que circula no ambiente escolar”;
por outro lado, não deixa também de justificar que
“na formação, tem havido a predominância do conhecimento historiográfico, o qual servirá de base para o trabalho do professor, porque lhe dará a segurança necessária para resolver dúvidas e exercer as escolhas dos conteúdos a serem trabalhados. O conhecimento irá alimentar o conhecimento que circula no ensino, e este será fruto de uma filtragem realizada de acordo com os interesses e as necessidades da escola”.
Com relação aos conhecimentos pedagógicos presentes na formação do professor de História,
observa-se, entre os formadores, uma tendência geral à reprodução dos mesmos mecanismos
de compreensão até então apontados: a ruptura na visão idealista dos novos, a continuidade
numa visão detratora e a flutuação que valoriza alternadamente tanto o historiográfico quanto
o escolar, na visão mais reflexiva, ambas entre formadores mais experientes. Sobre eles,
*Vega afirma, um tanto declarativamente, que é “fundamental conhecer os mecanismos que
favorecem o aprendizado, ter clareza nos objetivos e nos critérios de avaliação”, mas garante
que esta não é a ênfase do professor especialista: – “Isso é assunto pra você. Sou
especialista” – afirma, entre risos, ao entrevistador, identificado por ele como pesquisador do
campo pedagógico.
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O mesmo tom declarativo está presente na fala de *Dubhe: “compreender as linhas de
pensamento de Piaget, Vigotsky, Skinner, Paulo Freire, seus métodos e conclusões, suas
sugestões, tudo isso é extremamente valioso na formação do educador”. Mas qual é mesmo a
base desse valor? Sim, a compreensão das linhas de pensamento dos autores, de resto uma
atividade tipicamente intelectual, não necessariamente articulada ao dia-a-dia do trabalho
profissional e seus saberes, no âmbito da escola. Inversamente, *Polaris, uma vez mais,
prolonga conhecimentos da formação na atividade prática. Para ele, os conhecimentos
pedagógicos são “irrelevantes quando dissociados de uma prática correspondente.
Importantes quando observáveis na prática”. O que praticamente significa dizer que esses
conhecimentos não têm importância alguma na formação, já que a prática futura dos formados
estará mergulhada na rotina e no comodismo, salvo exceções.
Formadores reflexivos, *Hamal e *Ankaa, por seu turno, fazem flutuar suas ponderações
entre o saber pedagógico e a prática profissional. Para *Hamal, o saber pedagógico não se
resume ou não se dilui na prática, mas nem por isso deixa de se articular a ela. Em suas
próprias palavras, ele “oxigena a prática e alimenta a auto-crítica”. *Ankaa coloca em
perspectiva, não incondicionalmente, por certo, a importância dos conhecimentos
pedagógicos: “se bem trabalhados, forneceriam a base necessária para uma reflexão sobre a
profissão docente”. A condicional, que coloca o verbo simultaneamente no passado e no
futuro, entre o forneceu e o fornecerá, sugere uma importante discussão, que se desdobra em
duas questões, relativamente ao papel dos conhecimentos pedagógicos em um curso de
licenciatura: eles já estão lá, na licenciatura, mas não como poderiam ou como deveriam estar.
Esse entendimento tende ao consenso entre os formadores.
Por um lado, os conhecimentos pedagógicos estão presentes na formação, tal qual se processa
na licenciatura de História, segundo a visão dos formadores, como um conjunto de saberes
instrumentais, aplicáveis à prática da profissão, por isso mesmo apresentando-se como uma
técnica que tende a favorecer o ensino e a aprendizagem de determinados conteúdos
previamente determinados. Uns de forma mais incisiva, outros menos, praticamente todos os
formadores compartilham dessa concepção aplicacionista e instrumental dos saberes
pedagógicos. Associado a ela, uma atitude e uma postura que beiram ao repúdio a tudo o que
identificam como pedagógico, incluindo seu sujeito, chamado pedagogo num tom muito
pouco lisonjeiro. Tal concepção do e tal repúdio ao pedagógico – colhidos aqui e ali nos
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depoimentos dos formadores – recusa-se a reconhecer a legitimidade dos conhecimentos que
ele funda, especialmente em face dos conhecimentos específicos da área em que se forma.
“Duvido que a ênfase do especialista esteja nisto (a aprendizagem, os objetivos, a avaliação).
Deve haver algo de errado com o especialista e/ou com a produção / condução desses
saberes pedagógicos” – raciocina *Vega. Ainda mais irônico e desabusado, *Dubhe
acrescenta que
“lá, na Praia Vermelha, no curso de licenciatura, eu aprendi finalmente... a apagar o quadro. Sempre em movimentos circulares e olhando para a turma, nunca de costas, numa fantástica demonstração de contorcionismo circense”.
Se mais tarde *Dubhe veio a descobrir que a pedagogia “tinha alguma serventia, afinal”, ele
lamenta “não poder dizer o mesmo dos pedagogos, ao menos, não dos que conheci”. Mesmo
que esse depoimento contenha em si boa parcela de exagero ou de inverdade, além de um
certo ar de anedota e brincadeira (de gosto duvidoso, é bem verdade, mas que pertence a um
folclore razoavelmente difundido entre licenciados e licenciandos), caberia perguntar por que
é assim: por que a piada encontra público disposto a ouvi-la? *Ankaa, menos disposto a
brincadeiras e anedotas, nem por isso deixa de lamentar-se pelo fato de que esses
conhecimentos acabem ficando “nas mãos dos pedagogos, descolados da realidade da sala
de aula”. Num depoimento mais longo, ele assim se expressa:
“Tenho péssima recordação das aulas e dos conhecimentos pedagógicos que me foram passados durante minha graduação. Este trauma foi de tal monta que passei anos resistindo a qualquer leitura e reflexão sobre educação, o que era tremenda contradição. Só muito tempo depois, quando já trabalhava e tentava fazer um trabalho honesto e no próprio ambiente escolar foi que entendi a necessidade de pensar os conteúdos pedagógicos. Afinal, é aos professores que cabe refletir sobre a educação”.
Entre os depoimentos de *Ankaa e *Dubhe, referidos às suas respectivas graduações, trinta
anos de distância, desde o curso de História da FAFIC, em fins da década de 1960, até a
formação na UFRJ, por volta do ano 2000. A mesma experiência vivida por gerações
sucessivas, em instituições isoladas ou em universidades, parece referendar a impressão de
*Ankaa de que ela seja “comum aos mais diversos cursos de licenciatura, das mais diversas
instituições ao longo do tempo”. Impressões semelhantes também foram colhidas na pesquisa
de Monteiro (2002), no primeiro semestre de 2001, com professores de uma escola pública no
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Rio de Janeiro, de diferentes origens institucionais e em distintos momentos de suas
respectivas carreiras. Somente a título de ilustração, pode-se observar que Ana associa a
formação pedagógica à passagem para a “parte prática” do curso (p. 37); ou que Luiza
lembra com “horror” o tempo em que fez educação: “foi ruim pra caramba, não é, a parte
de prática, didática” (p. 43).
O segundo eixo de interrogação dirigido aos formadores trata de problematizar ou provocar
neles uma reflexão acerca da diferença entre os conhecimentos necessários e/ou desejáveis
aos formadores e aos formandos. Os formandos serão professores; mas, e os formadores,
ainda o são? É na condição de professores que eles atuam na formação de iguais? O que eles
sabem é precisamente aquilo que se faz necessário ensinar aos formandos para que se tornem
professores ou haverá saberes necessários especificamente aos formadores, que a eles
interessam nessa condição, mas que não dizem respeito a um professor genérico? Os
formadores devem formar também pelo exemplo, fazendo com que seu trabalho na formação
configure modelos úteis aos formandos, depois transpostos para a escola, ou as respectivas
especificidades constituirão obstáculos e opacidades intransponíveis entre um espaço e outro?
Serão, de fato, um espaço e outro ou as articulações circunstanciais e institucionais
ultrapassam este paradigma? O que pensam os formadores de professores de História a
respeito dessas questões?
Traduzindo tudo isso ainda de uma outra maneira, resta saber se os formadores em questão
compartilham daquela dúvida identitária de que falam Altet, Paquay e Perrenoud (2003: 243),
a conduzi-los a uma pergunta fundamental: “ainda sou um professor?”. Tal dúvida, segundo
esses autores, deverá ser capaz de engendrar novas representações sobre a formação, segundo
as quais formar significa: i) partir da prática, ii) ajudar a construir competências, iii) parar de
prescrever e iv) ajudar a construir modelos e a conectá-los com a pesquisa. Ora, quando se
tem uma formação concebida como um processo voltado essencialmente para a aquisição de
conhecimentos – uma formação de conhecimento, como dissemos anteriormente – não se
pode, de fato, esperar muita coisa no sentido de uma formação mais profissionalizada de
profissionais, ou na perspectiva de que a profissionalização dos formadores – constitutiva de
uma específica profissionalidade – possa ser considerada como “uma alavanca da
profissionalização do ensino” (Idem: ibidem).
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Em *Hamal, por exemplo, se tudo isso ainda não se encontra pronto, parece convincente, pelo
menos no plano da expressão discursiva, a manifestação de uma maturidade crítica que o
predispõe a conduzir seu trabalho concreto nessa direção. Interrogado a respeito do
significado da formação, ele responde lapidarmente: “formar significa compartilhar o
caminho do aprender a aprender”. Em sua resposta curta e densa, sobressai, primeiro, a
suspeita de que formar talvez não seja tão-somente uma atividade cerebral, de apreender
idéias onde quer que elas se encontrem, mas uma caminhada empreendida, lado a lado, por
formadores e formandos. Além disso, tal caminhada não se encerrando no apreender idéias,
não se restringe ao aprender conteúdos, desdobrando-se no aprender a aprender, isto é, no
aprender ao quadrado, potência do aprender que jamais ocorre solitariamente, como um
monólogo da consciência: pelo contrário, aprender, aqui, será sempre uma trajetória dialógica
e compartilhada.
Embora formador experiente e reflexivo como *Hamal, *Ankaa parece menos disposto a
aprofundar as articulações teórico-práticas em suas concepções: formar significa “construir o
professor”, passando pela aquisição do conhecimento histórico e de seus processos de
produção, aliada a “uma grande reflexão sobre o papel do professor e sua prática”, reflexão
essa cuja base fundamental são os conhecimentos pedagógicos. A formação, nesse caso, é
uma espécie de aprender a pensar, inclusive sobre a prática, mas não exatamente, ou pelo
menos não articuladamente e na mesma medida, um aprender a fazer. Entretanto, mais até do
que em *Hamal, encontra-se sempre presente em *Ankaa referências explícitas à profissão e
ao sujeito e à dimensão profissional. “Aos formadores – afirma ele – é preciso que tenham
clareza do tipo de profissional que estão a construir”. E que profissional será esse?
“é preciso que formandos e formados – prossegue *Ankaa – tenham o domínio de dois grandes planos do conhecimento: a) o conhecimento dos conteúdos específicos da história; b) o conhecimento do processo ensino-aprendizagem, em geral, e da história em particular. O professor bem formado deverá ser capaz de olhar para seu aluno, para as especificidades da escola na qual vai atuar e a partir destas coordenadas adequar o conhecimento histórico que possui à realidade encontrada em sua prática profissional”.
Sintomaticamente, se formandos e formados são profissionais do conhecimento, as exigências
atribuídas aos formadores devem necessariamente incluir esses mesmos conhecimentos, além
da mencionada clareza sobre “o tipo de profissional que estão a formar”. Porém, o que fazer
para que se adquira, desde a formação, uma sensibilidade (ou será também um
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conhecimento?) que possibilite ao professor olhar para o aluno e a escola, fazendo refletir
suas respectivas realidades nos conteúdos da História ensinada? Eis a resposta:
“Penso que os formadores de professores deveriam ter alguma experiência na escola básica, onde poderiam vivenciar seus desafios e experimentar soluções”.
Ou seja, para esses formadores experientes e reflexivos, formandos e formadores têm em
comum o conhecimento, ainda que em níveis diversos de aprofundamento; a distinguí-los,
porém, algumas exigências e demandas específicas de formadores: a atenção ao professor que
desejam formar; o cuidado com o ensinar a compartilhar, compartilhando, particularmente, o
aprender como se aprende; o saber experiencial de professor da escola, de modo que possam
dotar seus ensinos de um certo grau de realidade em relação ao contexto de trabalho dos
futuros professores que estão a formar; enfim, mesmo que situado em um plano mais
implícito do que explícito, o saber experiencial construído na própria experiência da formação
ou, parafraseando Tardif (2002: 49), a cultura formadora em ação.
A visão idealizada de *Vega e *Dubhe também não interrompe o fio de continuidade que
mantém unidos, substantiva e indissoluvelmente unidos os estados de formadores e
formandos. O que é necessário aos formandos? Conhecimentos, sejam eles específicos
“naquilo que está sendo ensinado”, psicológicos, envolvendo “os processos de ensino-
aprendizagem” ou outros (pedagógicos?) que permitam domínio e adequação da linguagem,
“clareza de objetivos e coerência nas avaliações”, segundo *Vega; embora fertilizando uma
cultura ou uma “memória pessoal”, temperada com muita “paixão pelo que se faz e pelo que
se ensina”, acrescenta *Dubhe. O sentido aplicacionista e instrumental adquire contorno
ainda mais explícito quando *Dubhe arremata: “é preciso mais do que apertar parafusos”.
Indisfarçável a distinção entre o mundo da prática (de “apertar parafusos”) e o do
conhecimento (com seu algo “mais”, que permite dominar, por exemplo, a matéria de que são
feitos os parafusos e a ciência de saber apertá-los): “é preciso mais do que o conhecimento
prático” – conclui.
E aos formadores, o que se prescreve? *Vega responde: os mesmos conhecimentos – nesta
ordem: históricos (ênfase no conhecimento do especialista), psicológicos (presidindo a relação
de ensino-aprendizagem) e pedagógicos (relativos a linguagem, objetivos e avaliações) –
“acrescidos de maior experiência”. Note-se a ambigüidade da expressão maior experiência:
169
trata-se de uma diferença de grau no domínio e na aplicação de conhecimentos dos
formadores sobre os formandos, e não de uma experiência que admita ou inclua a produção
autônoma de saberes do outro lado dos conhecimentos envolvidos na formação, isto é, pelos
professores, no âmbito da escola, e pelos formadores de professores, na própria instituição
formadora. *Dubhe traduz experiência em quantidade, insistindo em que “somos diferentes
de nossos alunos apenas pelo acúmulo que possuímos”. Mais experiência ou experiência
acumulada, portanto, é basicamente o que constitui o diferencial dos formadores em relação
aos formandos, nesta concepção radicalizada de uma formação de conhecimentos.
Coerente com sua visão detratora da escola e do escolar e, por extensão, de qualquer iniciativa
de formação de professores que a ela se destine – de resto, uma atividade improvável na
perspectiva de que as qualidades verdadeiramente docentes seriam inatas ao professor –,
*Polaris leva às últimas conseqüências a dissociação hierárquica entre teoria e prática: na
escola nada se aprende; interessa aos formandos conhecimentos teóricos na área,
conhecimentos teóricos em pedagogia e ensino e aplicação desses conhecimentos por ensaio
controlado nessa espécie de laboratório em que concebe a escola de aplicação; ao longo da
carreira, requalificação mediante contato permanente com a academia, a fim de depurar o
trabalho daqueles vícios e equívocos porventura incorporados na prática, “seguidos de
avaliações regulares de desempenho no trabalho”.
Quanto aos formadores, distingue basicamente dois perfis: os formadores da área, que “devem
dominar minimamente os conteúdos básicos da disciplina que lecionam”, apenas, e o
professor de “prática de ensino, didática e outras disciplinas pedagógicas”, responsável por
construir a mediação entre o conhecimento da área, incorporado pelo professor, e o
desconhecimento do aluno: “deve saber tornar prática a teoria que ensina. No mínimo,
praticar a teoria que defende!”. Note-se, em *Polaris, a configuração do pedagógico como
saber técnico, funcionando como uma ponte entre a teoria historiográfica e a prática docente
desprovida de saberes, como também a permanência daquela concepção de extensão e
continuidade entre o historiográfico e a História Escolar, embora constantemente ameaçada
pelo que poderíamos denominar, nessa perspectiva que hipertrofia o conhecimento, de risco-
escola. O antídoto deve ser obtido numa mistura que manipula saber acadêmico,
requalificação do professor e avaliação de desempenho. Obviamente, os formadores serão, em
*Polaris, agentes acadêmicos da qualificação e da requalificação.
170
Finalmente, o terceiro eixo de questionamentos dirigidos aos formadores, nessa dimensão
epistemológica da pesquisa, menos que uma interrogação, trata de instigá-los a emitir uma
opinião sobre determinadas ações, estratégias e dispositivos de formação, dentre os quais a
aula, a prática de ensino, o estágio supervisionado e a pesquisa.
A aula em primeiro lugar. Inúmeros caminhos vão se cruzando nas concepções que os
formadores elaboram acerca da aula, sua estrutura, as estratégias e os recursos que imaginam
e mobilizam em sua execução. Não obstante, persistem características articuladas àquelas
distinções de percursos envolvendo os formadores, na medida em que tais concepções
ancoram-se ora nas informações de conteúdo, ora na própria formação ou nas finalidades do
educar. Um formador como *Polaris, cuja experiência é tão vasta quanto circunscrita (aliás,
como toda experiência, considerada individualmente), julga “imprescindível” o momento da
aula. Para ele, este é “o principal momento em que os conteúdos da formação são
apresentados, discutidos e entendidos”. “Para muitos alunos – prossegue ele – o curso se
reduz às aulas e às anotações em seus cadernos! Não é o ideal, mas é o real”. Na verdade,
*Polaris faz uma verdadeira profissão de fé em relação à importância da aula, sobretudo
expositiva:
“Tenho uma visão muito ‘conteudista’ no ensino de História (creio ter que apresentar o maior volume de conteúdo possível) o que me faz priorizar a aula expositiva. No entanto, procuro utilizar a organização de seminários e de filmes para debate de temas afins ao curso. Não gosto de propor leituras de texto em sala de aula. Os textos são tarefas de casa”.
A palavra de *Polaris parece trair uma enorme confiança em sua capacidade narrativa (de
resto, corroborada por muitos de seus alunos), além de uma certeza irrestrita em relação aos
conteúdos que veicula. Os conteúdos, em sua visão “conteudista”, como ele mesmo diz,
constituem finalidades últimas do ensino, quiçá da educação, na medida em que dispensam,
mesmo, nexos mais evidentes com a realidade circundante.
“Fiquei muito tranqüilo quando li um artigo de um importante historiador brasileiro criticando o enxugamento das matrizes curriculares de História (em todos os níveis de ensino) em detrimento da priorização de conteúdos ligados à contemporaneidade. Reduz-se o tempo das aulas e, conseqüentemente, a possibilidade de expansão dos conteúdos”.
171
Se, em *Polaris, explicita-se a supervalorização da aula expositiva, quase ditada (para uma
participação empenhada dos alunos, anotando em seus cadernos), centrada em conteúdos
históricos stricto sensu, subordinando as estratégias e os recursos (textos, filmes, seminários)
à palavra comunicadora e informativa do formador, a concepção de *Hamal situa-se no
diâmetro oposto. Aqui, a aula é importante, “desde que participante”. Os conteúdos não estão
dados a priori: serão construídos na interação que constitui a aula, articulando passado e
presente. A exposição é breve porque a aprendizagem deve partir de um desafio proposto, em
função do qual conhecimentos serão mobilizados para tratar de problemas atuais. Ao lado de
documentos históricos, utiliza reportagens e entrevistas veiculadas na imprensa, como
documentos do presente. Um ex-aluno deste formador, agora professor de História na
Educação Básica, comentava sem saber ao certo se elogiava ou ressalvava, que ele não dava o
peixe, mas ensinava a pescar...105 Nessa aula reiteradamente inventada e aberta ao imprevisto,
“é claro, nem todo dia a coisa sai legal”, pode-se concordar com *Hamal.
Entre as posições polares de *Polaris e *Hamal situam-se concepções que delas se aproximam
ou afastam, explicitadas nas falas dos outros formadores. *Ankaa justifica a importância da
aula a partir de três argumentos fundamentais: em primeiro lugar, a aula, em um momento
necessariamente expositivo, ajuda a organizar temas e conteúdos “na mentalidade do aluno”;
depois, atividades de leitura e discussão de textos em sala de aula cumprem a finalidade de
“ensinar o aluno a ler, exercitar a leitura e orientar uma análise crítica”; por fim, “o estilo
de aula dos professores serve também de modelo didático (positivo ou negativo) para os
futuros profissionais”. Particularmente interessante é a reflexão que faz acerca da importância
da aula expositiva.
“Acho que a exposição – afirma *Ankaa – é indispensável no processo de ensino – aprendizagem. (...) A crítica ao excesso de aulas expositivas, que tanto marcou o ensino no passado, tem produzido um erro ao inverso: erradicar as aulas expositivas do processo ensino – aprendizagem. (...) Entregar textos e mais textos aos alunos, sem aula expositiva para organizá-los, não me parece um bom método de aprendizagem, principalmente se levarmos em conta o perfil do aluno com o qual trabalhamos na FAFIC”.
*Vega e *Dubhe expressam visões convergentes para a aula, porque centradas nos recursos
que utilizam, particularmente no trabalho com os textos. *Dubhe explicita uma concepção
105 O depoimento acima foi tomado ao acaso, durante o trabalho de campo na instituição formadora, e está sendo utilizado aqui porque reforça a concepção de aula do formador em questão.
172
bastante imprecisa, talvez ainda imatura, do ponto de vista de sua condição de formador de
professores. Considera, de maneira mais ou menos genérica, que “a aula é o pontapé inicial
em que se despertam interesses e se travam novas discussões”, mas que não é possível
estabelecer uma estrutura para ela: “acho que não existe um método monolítico e dar aula
pode ser tudo, menos monolítico. Cada turma é especial e possui uma dinâmica própria.
Assim, sempre procuro ver o que funcionaria da melhor maneira para determinada turma”.
Gosta de trabalhar com filmes e textos de apoio, para os quais solicita a elaboração de
fichamentos: “Embora exista uma resistência aos fichamentos – desvia-se ele –, procuro
fazer com que eles entendam que esse trabalho não é para obrigá-los a ler, mas sim para
poupá-los de ter que fazer uma segunda leitura”.
*Vega, por sua vez, referindo-se, embora, ao caráter fundamental da aula como espaço de
interação e troca, não deixa de considerar que interação e troca, contudo, pressupõe a
mediação dos textos e da leitura, como condição para o desenvolvimento de um espírito
crítico no futuro professor. Em suas próprias palavras:
“Gosto das aulas expositivas, mas num curso de formação de professor vejo como sendo primordial o espaço para leitura / discussão de textos. O futuro professor deve ser capaz de processar suas próprias impressões de leitura, desenvolvendo espírito crítico”.
Em suma, buscando articular as concepções elaboradas pelos formadores acerca da
importância da aula na formação, de sua estrutura e dos recursos que mobiliza, às suas
diferenças construídas no percurso que empreendem na experiência de formar, destaca-se, em
primeiro lugar, na perspectiva da continuidade detratora de *Polaris, a proeminência da aula
expositiva de conteúdos programáticos, como estratégia para a aquisição do maior volume
possível de informações históricas, configurando, de resto, um modelo a ser observado e
seguido também na Educação Básica. Em segundo lugar, com ênfase maior (*Ankaa) ou
menor (*Hamal) na aula expositiva de conhecimentos históricos, ambos convergem – embora
não se confundam – em suas concepções, coerentes cada um à sua maneira com uma
perspectiva reflexiva que não opera com categorias e modelos fixos ou muito rígidos, repletos
de referências que ora ressaltam a continuidade, ora a ruptura entre a formação e a prática
docente, enfatizando sempre as finalidades do educar ou do formar, seja para a profissão
(*Ankaa), ou, mais amplamente, para a vida (*Hamal).
173
Finalmente, na perspectiva idealizada que transita entre uma continuidade esperada e uma
descontinuidade surpreendida, *Vega e *Dubhe elaboram uma concepção que parece
expressar vigorosamente uma hipertrofia dos recursos – em especial dos textos – a serviço de
uma formação para o domínio de conhecimentos universitários disciplinares. Nesse caso,
então, toda a expectativa construída em torno da formação de professores como formação
profissional, se é que se pode dizer assim, encontra-se ancorada, sobretudo, na capacidade
crítica e na qualidade da informação histórica que se deve dominar. Para o conjunto dos
formadores, se há consenso, portanto, em torno da importância da aula, as diferenças situam-
se entre um máximo de exposição, em *Polaris e um mínimo em *Hamal; entre o descarte do
trabalho com textos em aula, para *Polaris, seu uso clínico-pedagógico, por *Ankaa e *Hamal
e a própria identificação da aula com o trabalho de leitura e discussão de textos, para *Vega e,
até certo ponto, também para *Dubhe, como condição primordial para desenvolver no
professor o espírito crítico indispensável ao exercício futuro da profissão.
Depois da aula, a prática e o estágio. Ou, como queira, na qualidade de componentes
curriculares e dispositivos essenciais para a formação profissional docente, a Prática de
Ensino e o Estágio Supervisionado. Em geral, os formadores não se aventuram a falar mais do
que algumas poucas generalidades acerca dessa espécie de caixa preta em uma formação de
conhecimento. *Vega e *Dubhe, formadores novos, de boa formação historiográfica e tênue
inserção na escola, não vão além de comentários vagos e alusões metafóricas, tais como
“dirigir com instrutor” ou “sair do ninho”, respectivamente. A percepção um tanto
desencontrada, como “espaço do medo, que desequilibra e estrutura (ou não)”, faz com que
*Vega atribua à prática e ao estágio uma importância apenas relativa, já que representam
apenas “um ensaio”: afinal, “só se aprende mesmo quando estamos sós e sabemos que é pra
valer”. *Dubhe não sabe se fala sério ou se brinca: considera o estágio como um momento de
decisão, “em que você descobre se quer realmente ser professor ou largar tudo e formar uma
banda cover dos beatles”.
*Hamal transmite a impressão de que nunca pensou seriamente nessas dimensões da
formação inicial, diluindo os conceitos de prática e de estágio numa assertiva sobre a prática,
em geral, de importância condicional: “quando constantemente repensada, é tudo de bom”!
*Polaris considera prática e estágio como um momento tão importante da formação que
deveria acontecer ao longo de todo o curso, “com acompanhamento sistemático pelos
professores, com debate das situações enfrentadas em sala de aula etc”. Difícil seria, no
174
entanto, conciliar as palavras de *Polaris com um projeto de formação inicial de professores
compartilhado entre a instituição superior de ensino, de um lado, e a escola e seus professores,
instituição e sujeitos que considera contaminados por práticas viciadas e defeituosas, tão
marcadas pela acomodação e pela rotina, de outro lado.
Apenas *Ankaa esforça-se para explicitar uma distinção entre prática e estágio como dois
momentos distintos do currículo da formação. Considera, por um lado, a prática como o
momento de refletir mais concretamente sobre o fazer do professor, “como trabalhar os
conteúdos, como se relacionar com uma turma e exercer a atividade docente”; por outro
lado, concebe o estágio como um momento de experimentar antecipadamente o ser professor:
nele, “o formando enfrenta a realidade, fato que pode levá-lo a repensar sua prática
pedagógica e avaliar seus acertos e erros”. Nesse sentido, ou seja, no âmbito das concepções
expressas por formadores acerca da caixa preta da prática e do estágio no currículo da
formação, pontifica uma vez mais a visão reflexiva de *Ankaa, distinguindo, ainda que não de
forma inteiramente radical, sua condição de formador, que pensa a formação em perspectiva
profissional, da condição de professor, apenas, que ensina conteúdos a serem posteriormente
repassados pelos futuros professores a seus alunos da Educação Básica.
Depois da aula, da prática e do estágio, finalmente, a pesquisa como estratégia, princípio ou
dispositivo da formação: o que pensam os formadores a esse respeito? Também aqui não há
consenso, mas há coerência entre as concepções acerca do significado e do papel da pesquisa
na formação, por um lado, e as diferentes visões construídas pelos formadores, por outro.
Coerência de *Polaris, identificando pesquisa com produção de conhecimento histórico (na
continuidade, isto é, produzido tanto na academia quanto na escola): “considero como
pesquisa todo trabalho sistemático de investigação de um problema, baseando-se em uma
teoria e um método, mediante o uso de documentos”. Sendo assim, a pesquisa é importante
porque desenvolve o espírito crítico, a criatividade e a curiosidade investigativa. Concepção
parcialmente compartilhada por *Vega, cuja perspectiva na descontinuidade lhe permite
extrair conseqüências radicalmente distintas. A pesquisa representa
“uma experiência de produção de conhecimento que permite ao futuro professor uma experiência com a fonte e a produção do saber histórico. Não é essencial para formar um professor, mas enriquece” (grifos adicionados).
175
*Dubhe, por seu torno, amplia o conceito de pesquisa o suficiente para fazer caber distinções
e hierarquias que fundamentem a máxima segundo a qual “o professor é intrinsecamente um
pesquisador”. A pesquisa, para ele, não se restringe a uma atividade acadêmica, ou seja, não
significa apenas produção de conhecimento, mas também produção de novos materiais e
recursos (sutilmente hierarquizado, por supuesto, já que descontinuamente constituído).
Assim, pode concluir que:
“Um novo material didático que se busca para utilizar em sala de aula é pesquisa. Livros para-didáticos, filmes, novos recursos, tudo isso é pesquisa. Tendemos a enxergar como pesquisa apenas o que é produzido pela academia. E nada mais distante do ensino básico do que a academia”.
Distinta também, por diferentes motivos, e coerente com sua visão reflexiva da formação, é a
concepção de *Hamal: a pesquisa é “fundamental”. Qual pesquisa? “Pesquisar o mundo” –
responde ele, expressando uma visão inespecífica, embora não independente do ensino de sua
disciplina: a História. *Hamal parece identificar a pesquisa com o processo de edificação de
uma postura investigativa e interrogativa ampla, por isso mesmo indispensável ao professor
que ensina conteúdos ensinando a pensar o mundo, sobretudo a partir de um desafio ou de um
problema que lhe permita articular passado e presente, conforme se viu anteriormente.
Distinção e coerência que se observa ainda em *Ankaa, sobretudo por seu comprometimento
com uma perspectiva profissional da formação: a pesquisa deve existir, mas admite faltar
clareza quanto à natureza daquela que se faz necessário em um curso de licenciatura. Afinal,
qual pesquisa implementar, historiográfica ou em ensino de História? Sob qual formato, como
prática investigativa disseminada pela formação, numa monografia de final de curso ou como
uma espécie de TCC articulado ao estágio? Com qual finalidade, já que se trata específica e
reconhecidamente de uma licenciatura?
“A pesquisa stricto sensu, meta ideal que paira um tanto idealizada na mente dos professores, é na verdade objeto dos cursos de pós-graduação. Comungo, porém, da idéia de que, na graduação, o aluno de história pode e deve ter contato com processos de pesquisa. Saber pesquisar será de grande importância na formação do professor porque lhe dará os instrumentos necessários para desenvolver seu próprio conhecimento, assim como despertar em seus alunos a curiosidade intelectual e dar-lhes os meios para descobrir situações e conhecimentos novos”.
Assim falou *Ankaa; assim falaram *Hamal e *Polaris; assim falaram também *Vega e
*Dubhe: formadores de professores de História da FAFIC, que não hesitaram em explicitar
176
por escrito suas crenças e reflexões acerca da maneira pela qual reafirmam em ações
cotidianas a experiência de formar. A esse pequeno grupo, representando o conjunto dos
formadores da Licenciatura em História da FAFIC, como penhor de reconhecido
agradecimento, dedico este estudo.
* * *
O presente capítulo procurou por em evidência, mediante a construção de argumentos e
categorias colados, por assim dizer, às falas e concepções dos próprios formadores, o fato de
que a Licenciatura em História da FAFIC implementa um modelo formativo cujas estratégias
e dispositivos configuram o que se poderia chamar de uma formação de conhecimento, de
baixa articulação teoria/prática, tributário daquilo que a literatura especializada vem
denominando de modelo da racionalidade técnica na formação profissional. Tal modelo, em
última análise, privilegia o conhecimento e seu lugar, em detrimento do lugar da prática, que
se considera desprovido de saberes próprios.
As análises empreendidas adotaram uma estratégia subjacente que consiste em indagar se
acaso existe, na FAFIC e em seu Curso de História, um acúmulo de experiências,
conhecimentos e reflexões teórico–práticas que sinalizem para a ultrapassagem desse modelo
de formação de conhecimento, em direção a uma formação profissional e profissionalizada de
professores. A resposta a essa indagação – sim e não; talvez mais não do que sim, a despeito
de alguns percursos promissores, que bem poderiam ser estimulados e fortalecidos – leva em
consideração o fato de que, a par de seus condicionamentos institucionais e de sua
organização curricular, tal modelo é fortemente dependente da capacidade articuladora dos
saberes experienciais de seus formadores.
Tal dependência – importante que se diga – se deve ao fato de que os formadores não só se
encontram numa condição tal que lhes permite colocar em movimento o modelo formativo,
mas, sobretudo, porque são eles próprios os grandes responsáveis por sua formulação. Como
afirmam Altet, Paquay e Perrenoud (2003: 9), “os formadores, em grande parte, são também
os idealizadores dos dispositivos (de formação) ou seus interlocutores diretos”. Para o bem
e/ou para o mal, se os formadores de professores formulam e fazem funcionar uma formação
de conhecimento, é a partir de seus saberes experienciais que o fazem, mais do que de uma
explícita manipulação de conhecimentos teóricos sobre a formação. O que, por outro lado,
177
permite refletir sobre a extensão, mas também sobre os limites da experiência, relativizando
seu alcance.
Se a experiência docente e se a experiência no trabalho da formação engendram saberes
particulares, uma parte deles, pelo menos, deve ser passível de explicitação no discurso dos
atores. A composição de uma amostra constituída por cinco formadores que se dispusessem a
examinar o próprio percurso e as próprias convicções, baseou-se em critérios sociográficos
que procuram expressar uma determinada configuração global, observável no conjunto dos
formadores: todos eles são reconhecidos como “de História” e possuem titulação de
“mestre” (uma tendência forte no curso, nesses últimos anos); contempla formadores antigos
e novos (segundo o tempo de trabalho), de recrutamento endógeno e exógeno (de acordo com
o lócus de formação) e com maior ou menor enraizamento na educação escolar.
As análises identificaram contornos mais ou menos nítidos de três visões sobre a formação e a
prática docente e sobre as dimensões acadêmica e escolar da disciplina História: uma visão
idealizada, feita de ruptura e descontinuidade, elaborada como recurso para expressar a
surpresa e o inesperado nos primeiros tempos da docência, presente em formadores mais
novos; uma visão detratora, fundada na extensão e na continuidade, que hierarquiza e
subordina a prática à teoria, a escola básica ao ensino superior e a História Escolar à
historiografia; mas também uma visão reflexiva e compreensiva, que evita generalizações,
assume a incerteza e a diversidade, tanto no que se refere à missão da educação quanto ao
processo de formação e de profissionalização do magistério.
Finalmente, as visões dos formadores de professores de História da FAFIC sobre a formação,
a docência e a História, construídas na perspectiva de seus próprios saberes experienciais,
tanto desvelam quanto ocultam; tanto delimitam espaços e iluminam objetos que percebem
pelo que concebem (já que, como diria Octavio Paz, 1996, “perceber é conceber”) quanto,
inversamente, reservam outros espaços e outros objetos, senão ao silêncio, à opacidade e às
sombras. Neste momento de conclusão do capítulo, portanto, tão importante quanto sublinhar
as visões dos formadores, seria dirigir o foco para objetos e espaços que elas vêem, mas não
enxergam, isto é, para as zonas de opacidade que necessariamente constituem.
O historiador Robert Darnton (1988) refere-se com insistência aos termos opaco e opacidade,
tanto na Apresentação quanto na Conclusão de seu livro sobre a história cultural francesa do
178
século XVIII. Fazendo contraponto entre as prospecções do antropólogo e do historiador, ele
sugere que “a vegetação rasteira da mente pode ser tão impenetrável no campo quanto na
biblioteca”: ambas se deparam, na informação do nativo e nas entrelinhas do texto escrito,
com “áreas de opacidade e silêncio” (Darnton, 1988: XIV). As pistas metodológicas de
Darnton são preciosas, especialmente quando afirma:
“O que era sabedoria proverbial para nossos ancestrais permanece completamente opaco para nós. (...) Quando não conseguimos entender um provérbio, uma piada, um ritual ou um poema, temos a certeza de que encontramos algo. Analisando o documento onde ele é mais opaco, talvez se consiga descobrir um sistema de significados estranhos” (1988: XV).
Pois bem, e o que era opaco nos depoimentos dos formadores? As análises – sobretudo
quando, na dimensão epistemológica da pesquisa, dirigiram três ordens de questionamentos
aos formadores – procuraram confrontar seus depoimentos a três objetos ou espaços que se
mostraram particularmente opacos em seus discursos: a disciplina escolar, a denominação
mesma de formador de professores e a noção de prática. No primeiro caso, permanece no
mínimo ambígua a relação entre a História como conhecimento acadêmico e como disciplina
escolar (seus conteúdos disciplinares explícitos, seus exercícios de fixação, seus mecanismos
de motivação ou incitação ao estudo e seu aparelho docimológico ou de avaliação, segundo a
caracterização de Chervel, 1990). De um modo geral, os formadores tendem a identificar o
saber a ensinar ao conjunto de conteúdos explícitos, apenas, e mesmo assim na forma como
eles se apresentam no âmbito da historiografia, transferindo tanto o problema da transposição
quanto as demais partes constitutivas da disciplina escolar para o momento ou o domínio do
saber ensinar, exterior, distinto e independente dela.
No segundo caso, o fato de que não haja nem uma reflexão concreta, nem um auto-
reconhecimento explícito e muito menos uma reivindicação expressa da identidade de
formador por parte de quem atua na formação, faz com que a expressão formador de
professores simplesmente não circule no Curso de História ou na FAFIC como um todo. O
silêncio que substitui a denominação não só impede uma tomada de consciência, mas,
sobretudo, cria uma impressão de falsa homogeneidade geral e monolítica de todos os
envolvidos: todos são professores, todos ensinam, cada um ensinando a sua parte, numa
orquestração cujo produto final é o formando. Sequer se cogita, por exemplo, ora de distinguir
essa espécie de face oculta da licenciatura (a cultura escolar, os formadores de campo, o
179
estágio e a prática), ora de estimular entre os próprios formadores a emergência daquela
dúvida identitária, de que falam Altet, Paquay e Perrenoud (2003), já muitas vezes
mencionada neste estudo.
Por fim, num modelo formativo que se caracteriza como uma formação de conhecimento, em
nenhum caso e em nenhum momento admite-se francamente a possibilidade de que a prática
possa se constituir no eixo que estrutura a matriz curricular do curso. Para os formadores,
importantes são os conteúdos, a pesquisa, as leituras e os textos, enfim, tudo aquilo que
remeta, em primeiro lugar à História, secundariamente aos conhecimentos das Ciências
Sociais, situados na fronteira com a História e, finalmente, aos conhecimentos oriundos das
Ciências da Educação, quase sempre numa perspectiva instrumental. A noção corrente de
prática no discurso dos formadores passa ao largo da distinção aristotélica, mencionada por
Contreras (2002: 122) entre téchne e práxis, ou seja, entre atividades que obtêm como
resultados coisas que são diferentes delas próprias (a técnica) e atividades que realizam seus
valores no próprio percurso da ação (prática), constituindo finalidades em si mesmas.
Eis, portanto, o que se tinha a acrescentar antes de concluir: ao conduzir pela mão cada um de
seus formandos, futuros professores de História, os formadores de professores de História da
FAFIC, estrelas da formação no caminho entre as estrelas, avançam em direção a algo que
acreditam conhecer, ao mesmo tempo em que se afastam também daquilo que consideram
dever evitar. Se na caminhada constroem saberes e experiências, explícitos às vezes, às vezes
indizíveis e opacos, imaginando colisões e pavimentando desvios, esses saberes não são como
troféus, nem como adereços pessoais, nem mesmo como um segredo que se possui, individual
e intransferível, e que somente a cada um privadamente pertence.
Contrariamente, talvez pudessem repetir, com o etnógrafo de Borges (1969: 21):
“O segredo, ademais, não vale o que valem os caminhos que a ele me conduziram. Esses caminhos há que andá-los”.
180
CAPÍTULO 7 – (DIGRESSÃO) A Dimensão Prática na Formação do Professor
(Contribuições para uma análise de sentidos na legislação atual)
01. Primeira Contribuição
Compreende-se que a preparação de professores, além de uma história que é possível
recuperar, articula-se também através de modelos e de práticas de formação. A Reforma em
curso, no Brasil, desencadeada a partir da promulgação da LDB e cujo arsenal compõe-se de
Pareceres e Resoluções do CNE, além de documentos produzidos pela comunidade acadêmica
chamada a participar (ainda que precariamente, no ritmo imprimido pelas autoridades e em
espaços insuficientes, permeados por silêncios, compreendidos como “permissão não
utilizada para falar”106), constitui, portanto, um modelo de formação e sugere um
determinado conjunto de práticas, ou melhor, ancora-se em determinada concepção de
prática.
Contudo, essa concepção não emerge claramente dos textos legais, fato ainda mais agravado
pela própria polissemia do termo “prática”. Estabelecendo um mínimo de 800 horas para a
formação prática, por exemplo, divididas ao meio entre “prática como componente
curricular” e “estágio curricular supervisionado de ensino”, a Resolução nº 2/2002, do
CNE, multiplica seus sentidos. Só aí é possível entrever níveis ou dimensões de um mesmo
conceito (ou serão conceitos diferentes, abrigados numa mesma expressão verbal?). De
acordo com Linhares & Silva (2003: 57),
“a concepção de formação prática desenvolvida por meio de estágios encontra resistência em várias IES. O componente “prática”, que permanece indefinido na Resolução e para o qual se devem destinar 400 horas no mínimo, encontra-se separado do “estágio”, que não deixa de ser, ou melhor, que é claramente uma modalidade de formação prática, o que gera confusão”.
Nosso objetivo aqui é, portanto, operar uma espécie de exegese do termo prática, ao menos
no universo de suas possibilidades na legislação atual107, ficando para outro momento uma
pesquisa mais ampla sobre os significados de prática em outros contextos108. Para tanto,
106 Linhares & Silva ( 2003: 16). 107 Mais especificamente, os Pareceres 9 e 28 / 2001 e as Resoluções 1 e 2 / 2002, do CNE. Cf., respectivamente, Brasil 2003a, b, c, d. 108 O assunto será tratado no Capítulo 8, sobretudo no diálogo com Pimenta (2002).
181
vamos inicialmente considerar três sentidos gerais possíveis para, em seguida, destacar
passagens da legislação onde o termo aparece, discutindo brevemente seus significados
situados. Antes, porém, vale lembrar que este problema é particularmente importante no
campo educacional, talvez por conta da exigência de intervenção e do ímpeto reformista
presente nas Ciências da Educação. No Prefácio à obra fundamental de Romanelli (1997: 9),
Francisco Iglésias enuncia de modo cristalino que
“na denúncia das distorções na educação está o desejo de reforma”.
Consideremos então os três principais sentidos com que o termo “prática” pode freqüentar os
textos legais. Em primeiro lugar, como princípio numa dimensão filosófica, a prática constitui
uma unidade com a teoria na produção tanto do conhecimento quanto da própria condição
humana. Marx e Engels expressam esse sentido de práxis sustentando que:
“As idéias nunca podem executar coisa alguma. Para a execução das idéias são necessários homens que ponham em ação uma força prática”109.
Assim, a prática é sempre práxis no humano, e nunca somente ação descolada de significados.
Isto tanto no âmbito da consciência (do senso) comum ou não teoricamente fundamentada,
quanto na consciência filosófica ou teoricamente fundamentada. Mas a prática é também
práxis, em unidade indissolúvel com a teoria, no processo da produção de conhecimentos e
saberes, seja porque toda pesquisa ou atividade cognitiva tem sempre um fazer (não se trata
apenas de um movimento virtual de teorias que se procuram), seja mesmo pela dimensão
ontológica do conhecimento, que o remete sempre ao ser ou à coisa em si, existente fora
dele110.
Mas a prática implica também, em segundo lugar, num sentido de ação, numa dimensão
propriamente profissional, na medida em que toda profissão pressupõe a utilização prática de
conhecimentos previamente adquiridos, além da construção de um saber prático, na ação, que
se constitui numa espécie de patrimônio coletivo (mesmo que apropriado individualmente)
sob a forma de um saber da experiência. A articulação entre esse saber adquirido na
formação inicial e o saber construído na experiência ou no exercício da profissão é uma
questão central em toda aprendizagem profissional. No caso concreto da Reforma da 109 Marx, K. & F. Engels, cit. p. Ribeiro (2001: 35). 110 Cardoso (1986: 121).
182
formação de professores, a proposta oficial pretende dar conta dessa articulação através dos
conceitos de “simetria invertida” e de “aprendizagem por competências”111.
Nesse caso, então, o termo “prática” remete à ação profissional docente ou ao movimento
por meio do qual o professor atualiza um saber em seu trabalho cotidiano. Recupera-se aqui,
obviamente, o sentido anterior de práxis, na medida em que o trabalho não é um agir
irrefletido, mas uma ação que mobiliza e articula saberes da formação e saberes práticos ou
da experiência, produzidos na prática, mas sempre considerados numa dimensão dinâmica, de
modificação da realidade. Referindo-se a esses “saberes experienciais”, Tardif (2002: 49)
afirma que
“eles não se superpõem à prática para melhor conhecê-la, mas se integram a ela e dela são partes constituintes enquanto prática docente (...). Eles constituem, por assim dizer, a cultura docente em ação”.
Outro é o caso, finalmente, da prática numa dimensão curricular ou, nos termos do Parecer nº
9 do CNE, da “prática como componente curricular”: nesse caso, embora ela também possa
ser considerada como um saber, trata-se de um saber que remete à ação, quer se antecipe à ou
se construa a partir da ação, existindo em si mesmo e disponível para uso, embora num dado
momento possa não estar em plena mobilização. Trata-se, de fato, de um repertório de saberes
situados, potencialmente utilizáveis, razoavelmente sistematizados, constituindo algo próximo
daquilo que Lee Shulman denomina de conteúdo pedagógico ou conteúdo pedagogizado
(“pedagogical content knowledge”)112.
Além disso, esse “modo de se fazer a prática”, de que fala especialmente o Parecer CNE CP
nº 28 / 2001, que juntamente com o “estágio curricular supervisionado de ensino” aparece
como um dos dois “componentes próprios do momento do fazer”, deve permitir ao formando
empreender, também, i) uma “busca de significados na gestão, administração e resolução de
situações “ no ambiente escolar; ii) uma articulação com “os órgãos normativos e com os
órgãos executivos do sistema” e, ainda; iii) com as “agências educacionais não-escolares”
(representação profissional, famílias dos alunos etc).
111 Cf. especialmente Brasil (2003a: 100-101). 112 Shulman, L. S., cit. p. Andrade (2002: 150 e 227).
183
Em face do exposto, parece possível, desde já, reunir elementos para enfrentar o seguinte
problema: quais seriam as possibilidades de entendimento do que, por vezes, aparece
genericamente denominado como “prática pedagógica” (tanto na institucionalização da
Reforma quanto fora dela) referindo-se ao trabalho no magistério? Ora, essa parece ser
exatamente uma expressão de síntese, reunindo os três significados mencionados até aqui: i)
como práxis, isto é, parte de uma unidade indissolúvel com a teoria e, portanto, princípio
essencial da docência, numa dimensão filosófica; ii) como ação, propriamente dita, no
exercício cotidiano do ofício, numa dimensão profissional e, finalmente; iii) como saber que
constitui um repertório de saberes que tornam menos incerto e mais possível o indeclinável
compromisso com a docência.
02. Segunda Contribuição
Os recentes terremotos provocados pela legislação que vem transformando a formação de
professores no Brasil, desde meados da década de 1990, tem um alvo a atingir e, portanto,
uma torre a derrubar: em busca de uma identidade própria, comum a todas as licenciaturas,
por contraste com a especificidade dos diversos bacharelados, trata de desconectar a formação
de professores da formação de pesquisadores e produtores de conhecimento nas áreas
específicas, sob o argumento de que é pedagógica e profissionalmente indispensável demolir
o famigerado “modelo 3 + 1”.
Se a Reforma acerta o alvo (e é difícil ignorar igualmente o alvo e o tiro113), deixa, no entanto,
um grito parado no ar: o novo paradigma que propõe para a formação será melhor, então, do
que aquele que se procura superar e esquecer? Difícil dizer, especialmente se não nos
prendemos ao passado apenas por um vínculo (e um vício) de origem: o fato de termos
nascidos juntos, professores das disciplinas para a Educação Básica e pesquisadores para a
produção do conhecimento “desinteressado” nas ciências e humanidades, no contexto de
fundação tardia da universidade, no Brasil. 113 “As questões a serem enfrentadas na formação são históricas. No caso da formação nos cursos de licenciatura, em seus moldes tradicionais, a ênfase está contida na formação nos conteúdos da área, onde o bacharelado surge como a opção natural que possibilitaria, como apêndice, também, o diploma de licenciado. Nesse sentido, nos cursos existentes, é a atuação do físico, do historiador, do biólogo, por exemplo, que ganha importância, sendo que a atuação destes como ‘licenciados’ torna-se residual e é vista, dentro dos muros da universidade, como ‘inferior’, em meio à complexidade dos conteúdos da ‘área´, passando muito mais como atividade ‘vocacional’ ou que permitiria grande dose de improviso e autoformulação do ‘jeito de dar aula.’”. (Cf. Brasil, 2003a: 89).
184
Este brevíssimo texto não tem a ambição de possuir a resposta. Procura apenas enumerar
algumas críticas que andam circulando nas cabeças e nas bocas de quem se preocupa, sincera
e profissionalmente, com os destinos da formação de professores. Algumas críticas já estão
publicadas, por isso são mais conhecidas e mais bem assentadas. Outras, apenas sussurradas,
estão menos fundamentadas e mais imprecisas, motivo pelo qual ainda não se pode avaliar sua
propriedade e seu alcance. Constituem, por assim dizer, críticas ainda em processo... Vamos,
pois, a elas.
01. Os pareceres que fundamentam o arsenal da reforma, parte integrante do que a literatura
vem denominando de “labirinto legal”, empenham-se em construir um passado para si
próprios, em cuja lógica apareçam como a irrupção do “novo” na ordem dos fatos114. No
contexto pós-industrial e pós-moderno, de redemocratização e resgate da cidadania,
característico da década de 1980, as novas condições impõem a criação de uma nova escola e
engendram os materiais para uma nova concepção de um novo professor. Este novíssimo
gênese produziu uma primeira geração de reformas no campo educacional, entre a
Constituição de 1988 e a LDB de 1996, ingressando, desde então, numa segunda geração cujo
foco principal parece ser a formação de professores.
02. Essa “obsessão pelo novo”, traduzida numa política de “terra arrasada” que
simplesmente desqualifica e descarta o passado, expressão do “velho” que se quer finalmente
abandonar, faz com que a fundamentação dos textos normativos procure evidenciar o caráter
necessário, inexorável e unívoco das mudanças em curso. Assim, muda-se a formação de
professores porque muda a educação básica, porque mudou a sociedade brasileira e, afinal de
contas, porque o mundo já não é mais o mesmo.
03. Neste contexto de reforma total, em que as estruturas educacionais vão-se adequando às
novas estruturas sociais e culturais globais, a formação de professores, também, para adequar-
se, deve se reformar, tanto no campo institucional quanto no campo curricular. Está implícito,
portanto, o princípio de que os professores devem ser formados na perspectiva conservadora
de adequação à ordem, e não de sua transformação. Por isso mesmo, importantes experiências
114 Sobre o “labirinto legal”, ver especialmente Linhares & Silva (2003).
185
instituintes em formação de professores e mesmo a cultura de formação produzida e
acumulada por formadores, também devem ser esquecidas.
04. Ao fazer a crítica do modelo 3 + 1 e propor seu desarme, a reforma passa de passagem por
sobre algumas questões que talvez valesse a pena considerar com mais cautela, sobretudo ao:
a) desarticular a formação de professores e a formação de produtores de conhecimentos nas
“áreas” específicas, o que, se não significa em si mesmo uma desarticulação entre teoria e
prática (parece descartada essa crítica ingênua, posto que há teorias e práticas tanto na
docência quanto na pesquisa básica), na prática descompromete os professores dos rumos da
produção de conhecimento na área ou ciência de referência;
b) desconsiderar relações historicamente constituídas entre universidade e escola, descartadas
em meio a um passado integralmente descartável;
c) ignorar a situação concreta da formação dos profissionais que atuam na formação de
professores (os formadores dos professores), cuja história profissional e de formação pertence
a um modelo disciplinar que não parece prestes a naufragar (embora não sejam poucas ou
desprezíveis as críticas a ele dirigidas, inclusive oriundas do próprio meio acadêmico);
d) apontar abstratamente para saberes e práticas que, sem que estejam constituídos e sem que
se perceba num horizonte próximo a articulação concreta de pesquisas que visem a sua
produção em quantidade e qualidade suficientes, não estão propriamente disponíveis (tanto
saberes e práticas quanto seus sujeitos), para imediata utilização na formação;
05. Ainda que se possa admitir, finalmente, algum avanço na Reforma, em relação aos
abismos entre teoria e prática (como princípio filosófico), entre formação e prática (como
ação profissional) e entre conteúdos e práticas (como saberes curriculares), implícitos no
modelo 3+1 e suas variações, o novo paradigma parece apontar para uma excessiva
ancoragem na prática, por exemplo, ao tomar as idéias de “competência” e de “simetria
invertida” como conceitos-chave e princípios orientadores nucleares da nova formação. O
resultado é que a aventura intelectual fica secundarizada e a dimensão política da formação
naufraga em face de uma concepção utilitária que bem poderia ser qualificada como uma
“formação de resultados”.
186
03. Terceira Contribuição
a) Generalidades
O objetivo neste ponto é simples: já que, no item anterior, terminou-se por identificar no novo
paradigma uma “excessiva ancoragem na prática”, motivo pelo qual se fala numa “reforma
de resultados”, pretende-se, agora, buscar referências à prática, em geral, nos textos
normativos da Reforma, especialmente Pareceres nº 9 (Brasil, 2003a) e nº 28 (Brasil, 2003b),
ambos de 2001, do CNE / CP. O que se pretende é transcrever a referência ou registrar o mais
fielmente possível seu significado, evitando, por hora, a interferência de juízos e opiniões. O
momento é de ouvir o documento, de deixá-lo falar por si mesmo.
Note-se, no entanto, que é importante ter em mente que a Reforma proclama insistentemente a
necessidade de se criar uma identidade própria para a Licenciatura. Os dois fragmentos a
seguir ratificam esse fato. Primeiro, a colocação do problema:
“As questões a serem enfrentadas na formação são históricas. No caso da formação nos cursos de licenciatura, em seus moldes tradicionais, a ênfase está contida na formação nos conteúdos da área, onde o bacharelado surge como a opção natural que possibilitaria, como apêndice, também o diploma de licenciado Nesse sentido, nos cursos existentes, é a atuação do físico, do historiador, do biólogo, por exemplo, que ganha importância, sendo que a atuação destes como ‘licenciados’ torna-se residual e é vista, dentro dos muros da universidade, como ‘inferior’, em meio à complexidade dos conteúdos da ‘área’, passando muito mais como atividade ‘vocacional’ ou que permitiria grande dose de improviso e autoformulação do ‘jeito de dar aula’” (Brasil, 2003a: 89)115.
Sendo assim, detectado este problema, que é a “inferioridade” atribuída à licenciatura em
face da complexidade da formação no bacharelado, o legislador ergue a espada. Agora a
solução prescrita:
“O processo de elaboração das propostas de diretrizes curriculares para a graduação, conduzido pela SESu, consolidou a direção da formação para três categorias de carreiras: Bacharelado Acadêmico, Bacharelado
115 Esta citação apareceu também na nota nº 8 deste mesmo capítulo.
187
Profissionalizante e Licenciatura. Dessa forma, a Licenciatura ganhou, como determina a nova legislação, terminalidade e integralidade própria em relação ao Bacharelado, constituindo-se um projeto específico. Isso exige a definição de currículos próprios da Licenciatura que não se confundem com o Bacharelado ou com a antiga formação de professores que ficou caracterizada como modelo ‘3+1’” (Brasil, 2003a: 80).
Quer dizer, então, que pelo novo paradigma a ênfase não deverá estar mais nos “conteúdos da
área”. Onde estará, então? O documento responde um pouco mais adiante:
“Nos cursos de formação para as séries finais do ensino fundamental e ensino médio, a inovação exigida para as licenciaturas é a identificação de procedimentos de seleção, organização e tratamento dos conteúdos, de forma diferenciada daquelas utilizadas em cursos de bacharelado; nas licenciaturas, os conteúdos disciplinares específicos da área são eixos articuladores do currículo116, que devem articular grande parte do saber pedagógico necessário ao exercício profissional e estarem constantemente referidos ao ensino da disciplina para as faixas etárias e as etapas correspondentes da educação básica” (Brasil, 2003a: 116).
Contra o modelo existente de graduação que subordina a Licenciatura ao Bacharelado,
propõe-se resgatar a especificidade pela via da autonomização da Licenciatura pautada, do
ponto de vista curricular, em novos procedimentos de seleção, organização e tratamento dos
conteúdos, senão propriamente em conteúdos de uma outra natureza.
b) Parecer CNE / CP nº 9 / 2001117
b.1) Estrutura do Parecer
* Sócio-profissional
* De reforma prévia na Educação Básica
Contexto
* Das bases legais para a formação de professores
Institucional
ESTRU-
TURA
RELATÓRIO:
Produzindo
um passado Diagnóstico:
problemas
da formação
existente
* Nos campos Curricular
116 Ver, especialmente, as “diretrizes para a organização da matriz curricular”, na última parte do documento. Cf. Brasil, 2003a: 120-126. 117 As referências de páginas estão sempre de Brasil (2003a) in Linhares & Silva (2003).
188
* Nuclearidade da concepção de competência
* Coerência formação recebida / prática esperada
Princípios
* Essencialidade da pesquisa
Concepção, desenvolvimento e abrangência
Competências a construir
Âmbitos de desenvolvimento profissional
Organização institucional
* Para o
curso
Avaliação
DO
PARE-
CER
nº 9
VOTO: A
proposta de
um novo
paradigma
Diretrizes
* Para a
matriz
Eixos de competências (versus disciplinas)
como critérios para a organização
b.2) O contexto sócio-profissional e institucional da reforma
01. Dentre as características inerentes à atividade docente, ausentes na preparação
tradicional, o documento menciona: “* desenvolver práticas investigativas” (Brasil,
2003a: 78). Sobre esse assunto, ver Parecer CNE / CES nº 1070/99, sobre autorização
e reconhecimento de cursos.
02. Tratando de diretrizes para uma base comum de formação docente: “* dar relevo à
docência como base da formação, relacionando teoria e prática” (Brasil, 2003a: 79).
03. Reportando à LDB, faz referência ao primeiro dos fundamentos metodológicos que
deverão presidir a formação, citando seu artigo 61: “1. a associação entre teorias e
práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço” (Brasil, 2003a: 86). É nessa
perspectiva que será desenvolvido o estágio, conforme o Parecer nº 28.
Mas, além disso, se “aprendizagens significativas” (“que remetem continuamente o
conhecimento à realidade prática do aluno”) constituem fundamento da educação
básica, deve constituir fundamento também da formação de professores: “para
construir junto com os seus futuros alunos experiências significativas e ensiná-los a
relacionar teoria e prática, é preciso que a formação de professores seja orientada
por situações equivalentes de ensino e de aprendizagem” (Brasil, 2003a: 87). Ou
seja, fazer também na formação de professores o que deve ser feito na Educação
Básica.
189
b.3) O diagnóstico da formação existente
04. Segundo o Parecer, a Reforma deverá enfrentar os problemas da formação
tradicional de professores nos campos institucional e curricular. Um dos principais
problemas, neste último campo, é o que denomina de “concepção restrita de
prática” (prática ativista ou praticista). A caracterização que dele faz o documento
aproxima-se do que outros autores chamam de “modelo da racionalidade técnica”,
embora essa expressão não esteja presente aqui. Trata de separar teoria e prática em
dois pólos complementares, mas distintos: i) o das aulas, que supervaloriza o
conhecimento teórico, prescritivo e analítico, a ser aplicado posteriormente (“visão
aplicacionista da teoria”), e; ii) o do estágio, que supervaloriza o fazer pedagógico
entendido como aplicação de teorias (“visão ativista da prática”). Qual a alternativa
que a legislação apresenta ao problema? Propõe-se, então, partir da “prática como
componente curricular”, isto é, de uma concepção de prática “como dimensão do
conhecimento”, envolvendo e articulando tanto i) uma reflexão sobre a atividade
profissional (aulas), quanto; ii) um exercício da atividade profissional (estágio).
Nesse sentido, finalmente, o conceito de prática (ou melhor, as práticas como
componentes curriculares) emerge como elemento integrador do currículo, nas
dimensões dos conteúdos e do estágio (papel esse que já vinha sendo reservado,
discursivamente, à prática de ensino nesses últimos tempos que antecederam aos
Pareceres). Cf. Brasil, 2003a: 94-95.
05. Outro aspecto considerado nesse mesmo contexto, da identificação de problemas e
definição de alternativas para o novo paradigma de formação, é o tratamento
academicista da pesquisa, que a concebe apenas no momento da teoria. Para o
documento, é necessário reconhecer a importância da pesquisa sistemática na
construção teórica, mas também de uma atividade investigativa na atuação prática
(pesquisa bibliográfica, seleção de materiais etc, na construção do projeto
pedagógico, do programa de curso e do plano de aula). Ambas as dimensões – de
pesquisa teórica e de investigação prática – devem estar sistematicamente presentes
na formação. Note-se que o documento não fala, mas seria possível acrescentar, aqui,
a concepção de Tardif no texto do ENDIPE / 2000, segundo a qual há teorias e
práticas tanto na teoria quanto na prática, o que multiplicaria exponencialmente essas
190
possibilidades de se considerar a articulação teoria / prática, indo além dessa
distinção meio envergonhada entre pesquisa e investigação.
b.4) A proposta de um novo paradigma
06. Feito o diagnóstico dos problemas, o documento inicia sua proposta para o novo
paradigma formulando seus princípios norteadores. O primeiro princípio trata da
nuclearidade da concepção de competência. Partindo da idéia de que a noção de
competência é fundamental para o estabelecimento de um novo profissionalismo,
posto que não basta “ter conhecimentos”, mas é preciso saber mobilizá-los e
transformá-los em ação, insiste em que essa noção deverá ser fundamental também
para a formação, na medida em que “permite a articulação entre teoria e prática e
supera a tradicional dicotomia entre essas duas dimensões”. Refletindo-se, pois, em
todos os aspectos da formação mediante uma “ação teórico-prática” (fórmula: “toda
sistematização teórica articulada com o fazer e todo fazer articulado com a
reflexão”; isto é uma “formação de resultados”, onde não há espaços para maiores
vôos intelectuais desinteressados!), “o desenvolvimento de competências pede uma
outra organização do percurso de aprendizagem, no qual o exercício das práticas
profissionais e da reflexão sistemática sobre elas ocupa um lugar central”. Cf.
Brasil, 2003a:100-101.
07. O segundo princípio trata da necessidade de coerência entre a formação oferecida
e a prática esperada do futuro professor. Partindo da constatação de que: i) na
formação, o professor aprende a profissão em um lugar similar ao que vai atuar
depois, mas em situação invertida, além de que; ii) na socialização escolar anterior, já
tenha vivido como aluno a etapa onde irá atuar como professor, o texto propõe o
conceito de “simetria invertida” para descrever o fato de que essa dupla experiência
como aluno “é constitutiva do papel que exercerá futuramente como docente”, sem
que isso signifique “infantilizar a educação do professor”. Cf. Brasil, 2003a:101.
08. Ao estabelecer as diretrizes para a organização do curso, além de referir-se
explicitamente às competências que deverão nortear essa organização, refere-se
também aos âmbitos de conhecimento para o desenvolvimento profissional, como
requisitos para a construção de competências. Um desses âmbitos é o “conhecimento
191
da experiência”, construído na e pela experiência (em condições de trabalho) e não
sobre ela (como aprender uma teoria ou um conceito). Alerta, no entanto, para a
necessidade de enriquecer esse conhecimento por intermédio da reflexão sistemática.
09. Finalmente, partindo do princípio metodológico geral de que “todo fazer implica
uma reflexão e toda reflexão implica um fazer”, ao estabelecer diretrizes para a
organização da matriz, o Parecer propõe a definição de espaços e tempos para as
práticas, cujo objetivo é antecipar, ainda na formação, mediante situações didáticas
planejadas, problemas característicos da atuação profissional. Esses tempos e espaços
incluem: i) o interior das áreas ou disciplinas, trabalhando suas dimensões práticas
(aplicação ao mundo, didática específica); ii) uma coordenação da dimensão prática,
que não depende apenas da observação direta, podendo ser conduzida até a formação
mediante tecnologias, narrativas, simulações etc, e; iii) o estágio curricular
supervisionado de ensino, na escola, a partir da segunda metade do curso,
envolvendo todos os formadores.
b.5) Alguns pontos para desdobramento da análise
No item a desta parte procuramos explicitar uma espécie de justificativa geral para a Reforma,
pelo menos da forma como ela parece transparecer no texto do documento: identifica-se um
problema (a relação histórica entre Bacharelado e Licenciatura) e prescreve-se uma solução
(reconhecimento da especificidade e construção de uma identidade para a Licenciatura). Os
princípios definidos no próprio Parecer sugerem a importância que se atribui à dimensão
prática no paradigma proposto. Por esse motivo, o objetivo aqui consistiu, basicamente, na
identificação de passagens no texto onde aparecessem referências expressas à prática ou às
práticas, qualquer que fosse seu sentido, a fim, justamente, de que se reunisse algum material
para análise posterior.
Entretanto, outros aspectos estão em conexão com o objetivo explicitado acima, mesmo que
não contenham as tais referências expressas à(s) prática(s). Antes de finalizar, portanto,
gostaríamos de acrescentar uma simples referência a esses aspectos, sem aprofundar sua
discussão.
192
01. Concepção de professor: * “profissional do ensino que tem como principal tarefa
cuidar da aprendizagem dos alunos, respeitada a sua diversidade pessoal, social e
cultural” (p. 83); * traçado geral de um perfil profissional para os professores, citando
o Art. 13 da LDB (p. 85); * implícita numa formação que deseja promover “o
compromisso do professor com as aprendizagens de seus futuros alunos” (Brasil,
2003a:103).
02. O lugar da pesquisa na formação: * o que se quer na formação, via criação dos ISE,
é, entre outras coisas, “o desenvolvimento da pesquisa sobre os objetos de ensino”
(Brasil, 2003a: 88); * a pesquisa é apontada como um dos três princípios orientadores
da Reforma (ao lado das competências e da simetria invertida), da seguinte forma: “O
curso de formação de professores deve, assim, ser fundamentalmente um espaço de
construção coletiva de conhecimento sobre o ensino e a aprendizagem”. Mais
adiante, sublinha o duplo papel da pesquisa: “Assim, a pesquisa constitui um
instrumento de ensino e um conteúdo de aprendizagem na formação” (idem, ibidem:
105-106); * Aparece também como uma das competências a serem desenvolvidas na
formação (ver diretrizes para a organização do curso de formação, especialmente, p.
113).
03. Finalmente, a questão dos conteúdos: o que ensinar na formação de professores?
Conforme foi dito no item a desta parte, se a Licenciatura não é a mesma coisa que
um bacharelado, então por certo não haverá de ensinar as mesmas coisas. No
diagnóstico dos problemas da formação tradicional, no campo curricular, o Parecer diz
o seguinte:
“Entretanto, nem sempre há clareza sobre quais são os conteúdos que o professor em formação deve aprender, em razão de precisar saber mais do que vai ensinar, e quais os conteúdos que serão objeto de sua atividade de ensino. São, assim, freqüentemente desconsideradas a distinção e a necessária relação que existe entre o conhecimento do objeto de ensino, de um lado e, de outro, sua expressão escolar, também chamada de transposição didática. (...) É preciso indicar com clareza para o aluno qual a relação entre o que está aprendendo na licenciatura e o currículo que ensinará no segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio. (...) Esses dois níveis de apropriação do conteúdo devem estar presentes na formação do professor” (Brasil, 2003a: 93-94).
193
Por outro lado, nas diretrizes para a organização do curso, o documento enfatiza
especialmente que “os conteúdos a serem ensinados na escolaridade básica devem
ser tratados de modo articulado com suas didáticas específicas” (Brasil, 2003a: 108-
109). Do mesmo modo, eles são objeto da formulação de uma competência específica,
a ser construída no curso de formação (ver, nesse caso, as “competências referentes
aos domínios dos conteúdos a serem socializados, de seus significados em diferentes
contextos e de sua articulação interdisciplinar”, idem, ibidem: 111-112).
Finalmente, eles também estão entre os diferentes âmbitos de conhecimentos para o
desenvolvimento profissional (Brasil, 2003a: 116-117), assim como se fazem
presentes em dois dos eixos articuladores, nas diretrizes para a organização da matriz
curricular: o eixo da “disciplinaridade e interdisciplinaridade” e o eixo dos
“conhecimentos a serem ensinados e dos conhecimentos educacionais e pedagógicos”
(respectivamente, pp. 122-123 e 123-124).
c) Parecer CNE / CP nº 28 / 2001118
01. Tratando da duração e da carga horária das licenciaturas, antes da LDB: “A Resolução
CFE 1/72 fixava entre 3 e 7 anos com duração variável de 2.200 horas e 2.500 horas
as diferentes licenciaturas, respeitados os 180 dias letivos, estágio e prática de
ensino” (Brasil, 2003b: 135). O atual modelo amplia para 2.800 horas, cumpridas no
mínimo em 3 anos, considerados 200 dias letivos por ano, dando novo tratamento à
dimensão prática da formação.
02. Referindo-se ao padrão de qualidade do modelo que a Reforma deseja implantar e à
centralidade da relação teoria / prática: “O Parecer CNE / CP 9/2001, ao interpretar
e normatizar a exigência formativa desses profissionais estabelece um novo
paradigma para esta formação. O padrão de qualidade se dirige para uma formação
holística que atinge todas as atividades teóricas e práticas articulando-as em torno de
eixos que redefinem e alteram o processo formativo das legislações passadas. A
relação teoria e prática deve perpassar todas estas atividades as quais devem estar
118 As referências de pp. são sempre de Brasil (2003b) in Linhares & Silva (2003).
194
articuladas entre si tendo como objetivo fundamental formar o docente em nível
superior” (Brasil, 2003b: 136).
03. Referindo-se à fixação de currículos pelas IES, a partir da LDB: “No seu conjunto,
elas prevêem uma composição de elementos obrigatórios e facultativos articulados
entre si. Entre os elementos obrigatórios apontados, ela distingue e compõe, ao
mesmo tempo, dias letivos, prática de ensino, estágio e atividades acadêmico-
científicas” (Brasil, 2003b: 138).
04. Em seguida, procura distinguir prática de ensino de estágio:
“No caso de prática de ensino, deve-se respeitar o art. 65 da LDB, verbis: “‘A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas.’
“Logo, um mínimo de 300 horas de prática de ensino é um componente obrigatório na duração do tempo necessário para a integralização das atividades acadêmicas próprias da formação docente.
“Além disso, há a obrigatoriedade dos estágios” (A seguir, discute a
normatização dos estágios...) “A Lei nº 6.494/77, modificada pela Medida Provisória
nº 7.709/98, e o seu Decreto regulamentador nº 87.497/82 ao serem recebidos pela
Lei nº 9.346/96 exigem, para o estágio supervisionado de ensino, um mínimo de 1
(um) semestre letivo, ou seja, 100 dias letivos” (Brasil, 2003b: 138-139). Conclui-se,
pois, que existem duas exigências distintas: 300 horas para a prática de ensino e 100
dias letivos para o estágio supervisionado de ensino.
05. O Parecer cuida, também, de justificar a extensão da carga horária da prática de
ensino, para além das 300 horas da LDB: i) discutindo a relação entre prática (“fazer
algo”) e teoria (“significar”), como princípio que perpassa todos os componentes
curriculares, e ii) falando em “vários modos de se fazer a prática”: seja a “prática
como componente curricular”, propriamente dita (antiga prática de ensino), seja
como “estágio curricular supervisionado de ensino” (ou somente estágio).
195
06. A prática sob a forma de “prática como componente curricular”: i) fala de sua
articulação, com o “projeto pedagógico” do curso e da necessidade de sua presença
ao longo de toda a formação; ii) diz o que, de fato, inclui: a) uma “busca de
significados na gestão, administração e resolução de situações” no ambiente escolar,
mas também, transcendendo seus muros; b) a articulação, por um lado, “com os
órgãos normativos e com os órgãos executivos do sistema” e; c) por outro lado, com
“agências educacionais não-escolares” (representação profissional, famílias de
estudantes etc); iii) finalmente, conclui sobre a necessidade de se acrescentar mais 100
horas sobre o mínimo legal (o que, então, permite associar, claramente, as “práticas
como componentes curriculares” à prática de ensino que até então se fazia e de que
trata a LDB, que não se confunde com o estágio). Cf. Brasil, 2003b: 141-142.
07. A prática sob a forma de “estágio curricular supervisionado de ensino”: i) define
como a relação pedagógica entre “alguém que já é um profissional”, um “aluno
estagiário”, um “ambiente institucional de trabalho” e um “período de
permanência”, como um modo especial de “capacitação em serviço”; ii) formula três
objetivos principais: a) o “conhecimento do real em situação de trabalho”; b) a
verificação e prova da realização das competências exigidas, “especialmente quanto à
regência” e, enfim; c) o acompanhamento de momentos e aspectos de organização da
vida escolar (elaboração do projeto pedagógico, matrícula, organização de turmas,
horários e espaços etc); iii) quanto ao tempo, deve ser concentrado, consolidado a
partir da segunda metade do curso, expresso não necessariamente em dias letivos mas
em carga horária (400 horas e não mais 100 dias letivos). Cf. Brasil, 2003b: 142-145.
08. A esses dois “componentes curriculares próprios do momento do fazer” o Parecer
contrapõe o “componente curricular formativo do trabalho acadêmico”, que inclui “o
ensino que se desenvolve em aula” ou ensino presencial (mínimo de 1.800 horas),
além de outras “atividades de caráter científico, cultural e acadêmico” de
enriquecimento (seminários, participação em eventos, estudos, visitas, produções,
projetos, relatórios etc), com mínimo de 200 horas.
196
CAPÍTULO 8 – (UM TREM PRAS ESTRELAS) As Práticas, os Formandos e o
Percurso Formativo
Num trem pras estrelas depois dos navios negreiros outras correntezas... (G. Gil & Cazuza)
Se o Curso de História da FAFIC, naqueles termos em que foi apresentado no Capítulo 5,
assemelha-se a uma cidade invisível na imaginação de autoridades imperiais com suas normas
e de exploradores com suas abordagens e embarcações; e se seus formadores, focalizados em
suas falas, em suas concepções e em suas práticas, no capítulo seguinte, são como estrelas
sinalizando algum caminho; o que dizer, então de seus licenciandos? Talvez que tomem um
trem rumo às estrelas, seguindo a correnteza de currículos e relações que não governam de
todo, no princípio, para se descobrirem profissionais em prosa e verso depois, nas salas de
aula de uma escola qualquer, de uma cidade qualquer, levados por diversas águas paraíbas,
aqui onde emergiu o Ururau, nos Campos dos Goytacazes, ou acolá por águas guanabaras que
banham os pés do Cristo Redentor, com os braços sempre abertos, mas sem proteger
ninguém, num Rio de Janeiro... Tomar um trem para as estrelas significa, em todo caso, então,
embarcar na formação e desembarcar (ou nunca desembarcar, talvez) no trabalho e na
profissão, depois dos navios negreiros, em outras correntezas...
Este último capítulo deveria abordá-los – os licenciandos – na viagem. Na verdade, deveria
abordá-los já preparando o desembarque, ainda no trem, embora antevendo outras cidades
invisíveis na profissão, imaginando a docência. Não obstante, a opção desta tese restringiu-se
à descrição da embarcação, isto é, da Oficina de Formação. Hora de recolocar, portanto, mais
uma vez, aquela pergunta tantas vezes repetida em outros capítulos (especialmente o segundo
desta parte): afinal, o que traduz melhor a verdadeira face do Curso de História da FAFIC, a
intenção acadêmica ou sua vocação profissional? A historiografia ou o ensino da História? Já
se alertou alhures, também, para o fato de que as respostas que ensaia refletem menos uma
verdade geral e mais a versão de uma experiência particular, em meio à diversidade de
experiências formadoras. Que, por isso mesmo, combina elementos, projeta dispositivos e
inventa um percurso situado e sitiado, sujeito a condicionamentos sociais e institucionais que
circunscrevem, necessariamente, respostas particulares, mesmo que para questões gerais. São,
portanto, os licenciandos, passageiros deste trem, e não de um outro qualquer.
197
Mas, que respostas ensaia e que face revela, verdadeiramente? Que reconhece – primeiro – a
existência de uma Oficina de Ensino, cujo funcionamento pressupõe sujeitos construindo
objetos a partir de práticas e instrumentos (ou saberes) teóricos e metodológicos específicos.
Que descobre no foco deste ofício e desta produção, o ensino da disciplina escolar, objeto que
se constitui na unidade tensa e complexa entre conteúdo e pedagogia – segundo. Que se
percebe – terceiro – como um Curso formador de profissionais para a atuação nesta Oficina de
Ensino, em conexão interna e estreita com aquela outra oficina de Marc Bloch, a Oficina de
História. Que explicita – finalmente – uma identidade historicamente construída; durante
muito tempo mantida implícita e silenciosa; depois cada vez mais evidente, embora
envergonhada; que agora ousa expor-se e confrontar o diverso e orgulhar-se de si: uma
identidade, enfim, de Oficina de Formação Docente para o Ensino de História, descrita
enquanto tal – ou seja, enquanto espaço constituído na convergência de três eixos
fundamentais (sujeitos, saberes e práticas) – em capítulos precedentes (cf. figura abaixo).
198
O Capítulo 5 procurou, de fato, descrever determinados aspectos do espaço interno da oficina,
precisamente aquele em que se manifesta de modo mais intenso a turbulência da segunda
metade dos anos 90 e primeiros desta década: sua organização curricular e a dança frenética
das matrizes, cuja instabilidade reflete menos uma opção pelo provisório e pelo precário e
mais uma persistente procura. Na verdade, procura-se ultrapassar uma configuração do
currículo ainda como listagem de disciplinas, que não supera de todo a perspectiva dicotômica
que denuncia (separando, de um lado e de outro, a teoria e a prática, as disciplinas específicas
e as pedagógicas, a vida acadêmica como pólo teórico e o estágio escolar como pólo prático
do Curso), para avançar em direção a uma concepção e a um formato triangular do currículo
cujos vértices são ocupados: i) pela produção científica e/ou cultural (tanto na área específica
quanto no campo educacional), ii) pelos saberes profissionais (em sua dimensão acadêmica
mas também, e principalmente, como expressão da cultura e da experiência docente) e iii)
pela cultura escolar (em seu espaço próprio ou mediante deslocamentos de elementos seus
para o interior da instituição formadora).
Os componentes curriculares – os conteúdos, as práticas, o estágio e as atividades –, circulam
entre esses vértices de modo que este movimento constitua, de fato, o processo da formação
em sua dimensão propriamente curricular (cf. figura). Entretanto, se a descrição da oficina pôs
em evidência seus contornos gerais, acompanhando um pouco mais de perto o movimento de
alguns desses componentes do currículo – como é o caso das matrizes e das práticas,
sobretudo –, outros permaneceram apenas indicados, e é bom que a análise também os
evidencie e desdobre. Assim é, particularmente, com o estágio e alguns outros dispositivos e
estratégias formativas, dentre as quais assume uma importância especial no projeto
pedagógico do Curso de História da FAFIC uma determinada concepção, implícita, na
maioria das vezes, de pesquisa ou de prática investigativa, e sua culminância na elaboração
do trabalho de conclusão do curso ou TCC. Este capítulo deverá empreender, portanto, além
de uma breve exegese que sinalize, ao menos, essa furiosa e fértil proliferação do termo
prática119, uma tentativa de apreender a forma e o significado atribuído àqueles componentes
e dispositivos ou estratégias pelos próprios sujeitos no ofício.
Mas isso não é tudo, ainda. O Capítulo 6 auscultou sujeitos, estrelas da profissão e da
formação, escutou suas falas, relacionou-as ao contexto; explorou diferentes percepções da
119 Nesse sentido, amplia o esforço iniciado no capítulo anterior.
199
oficina, explicitou perspectivas praxeológicas e epistemológicas constituídas no percurso do
ofício, enfim; mas esses sujeitos não eram os exclusivos habitantes ou seus solitários e
sazonais freqüentadores, nem mesmo os mais importantes deles, senão uma parte desses
principais: a parte constituída pelos formadores profissionais docentes. A pesquisa deveria,
pois, encerrar-se ouvindo a outra parte, isto é, fazendo repercutir a voz daqueles que
restauram concreta e objetivamente a unidade do sujeito na formação profissional: os
licenciandos, futuros profissionais docentes, quiçá formadores também, pelo vigente
mecanismo da endogenia. Mas, ao mesmo tempo, como fazê-lo e por que meios? Tal desafio
ultrapassaria em muito não apenas o propósito deste capítulo, mas da própria tese: além de
analisar o estágio, a pesquisa e o TCC (também como modalidades de práticas curriculares),
conforme seu sentido no Curso de História, entreouvir e criticamente fazer ecoar, inolvidável,
a voz dos formandos...
Registre-se, portanto, essa estratégia para desdobramentos futuros de pesquisa: partindo da
própria organização e da dinâmica implementada pelo projeto pedagógico do curso de
História, considerar uma determinada concepção de pesquisa ou de prática investigativa
(mesmo que implícita, como se disse acima) articulada à elaboração do TCC (como relatório
científico ou modalidade de trabalho monográfico) cujo foco dirija-se às atividades do
estágio, incluindo um momento de imersão na instituição escolar. Tal organização resulta,
muito objetivamente, na apresentação formal, por cada aluno, no momento da conclusão do
Curso, de um documento acadêmico constituído por duas partes distintas e complementares: a
pasta de estágio, contendo todos os materiais produzidos e utilizados pelo aluno-mestre e um
trabalho monográfico elaborado segundo as exigências lógico-formais de produção escrita
indispensáveis a qualquer trabalho acadêmico, problematizando justamente aquelas atividades
e vivências desenvolvidas no estágio. Os anexos VI e VII identificam os formandos das
turmas seriadas dos anos de 2003 e 2004 e seus respectivos trabalhos, preservados em
arquivos mantidos pela própria instituição.
O presente capítulo deve então dedicar-se ao exame das condições institucionais e
curriculares de toda essa produção discente, desde uma perspectiva crítica, à luz das reflexões
que a literatura específica tem proporcionado, focalizando as concepções e as dinâmicas
curriculares do estágio, da pesquisa e do TCC, tal como se encontram vigentes na FAFIC, de
uma maneira geral, mas particularmente em seu Curso de História. Tal exame deve também
explicitar suas articulações com a prática de ensino, na medida em que alguns autores
200
referem-se a ela sem a preocupação de esclarecer se se trata de uma referência stricto ou lato
sensu, isto é, a uma disciplina ou a um eixo ou núcleo do currículo, respectivamente. Como
disciplina, a Prática de Ensino envolve tempos e espaços que se traduzem em aulas com
horários, programas, atividades e registros formais; como eixo ou núcleo curricular, a prática
de ensino (ou tão-somente as práticas) constitui, basicamente, o núcleo profissional da
formação inicial, ao lado de seu núcleo propriamente acadêmico, incluindo as práticas
curriculares, no sentido em que este componente foi tratado no primeiro capítulo, e o estágio,
com seu projeto específico, analisado mais adiante120.
Por outro lado, os pressupostos, ou melhor, o ponto de partida do exame dessas concepções
(de estágio, pesquisa e TCC, como práticas, na FAFIC) não pode ser outro senão aquele que,
em primeiro lugar, reconhece a importância crucial da escola como espaço de produção, e não
apenas da aplicação de saberes121, de onde decorre também sua importância para a formação
inicial de seus profissionais docentes; aquele que compreende, em segundo lugar, que a ação
docente significa bem mais do que uma simples aplicação de princípios ou reprodução de
modelos previamente aprendidos e intuitivamente incorporados, consistindo, pelo contrário,
num esforço de invenção e de construção e reconstrução permanente de saberes e de certezas;
em terceiro lugar, aquele que considera que a prática de ensino (ou as práticas, lato sensu)
necessita ser amplamente discutida e ressignificada, tanto no sentido de reafirmar sua
importância (às vezes contestada) para a formação inicial de professores quanto para
aprofundar e radicalizar uma ruptura com a racionalidade técnica122, aproximando-se da
escola123, com seus saberes e sua cultura, e dos saberes constituídos pelos docentes na
experiência concreta do trabalho profissional.
120 Esse segundo sentido é o adotado, por exemplo, em Ferreira, Vilela e Selles (2003: 31). Tais autores esclarecem que “com a expressão Prática de Ensino estamos nos referindo tanto ao estágio supervisionado quanto às atividades formativas a ele relacionadas. Esta acepção se distingue, portanto, dos sentidos que os termos prática e estágio adquirem na legislação em vigor”. No caso deste capítulo, também a prática de ensino estará se referindo a esta dimensão lato sensu, de eixo ou núcleo curricular. 121 Cf. Monteiro, 2000. 122 Na verdade, Monteiro (2000: 131-134) não somente faz a crítica do modelo da racionalidade técnica na formação de professores, mas também alerta contra o risco de um retrocesso ao empirismo voluntarista que reduz a formação à socialização e à indução profissional na prática cotidiana. 123 Esta é a problematização central do artigo de Ferreira, Vilela e Selles (2003: 32). “Apesar dos avanços encontrados – afirmam os autores –, evidenciamos que o componente curricular em questão (a Prática de Ensino) tem se distanciado da escola como lugar privilegiado na formação docente. Com base nessa evidência, argumentamos que a prática de ensino permanece mantendo determinados vínculos com a referida racionalidade (técnica), na medida em que pouco dialoga com os saberes experienciais na formação inicial, fato que contribui para a construção de um modelo idealizado de escola como espaço de atuação profissional”.
201
A partir dessa nova significação, pode ser que seja possível considerar a prática de ensino
(uma vez mais, as práticas, lato sensu) como o momento inaugural no processo de construção
de uma identidade profissional docente, tanto no sentido da “constituição da
profissionalidade, com a sensibilidade necessária para a educação das novas gerações”
(Monteiro, 2000: 141) quanto, talvez, na contribuição que porventura possa oferecer ao
enriquecimento dessa identidade o acréscimo do perfil de um professor pesquisador de sua
própria prática, no sentido em que fala Boulter (2003), sem, contudo, ignorar o aporte de
contribuições oriundas da especificidade de suas respectivas disciplinas escolares. Tais
pressupostos, ao mesmo tempo em que se tornam possíveis a partir de, contribuem também
para colocar em circulação os conceitos de saber escolar (nele contida a compreensão de que
as disciplinas escolares constituem elementos deste saber124) e de saber docente, incluindo a
importância crítica da experiência e dos saberes experienciais, dela decorrente125.
Talvez não seja má estratégia iniciar, portanto, o exame daquelas concepções (estágio,
pesquisa, TCC) a partir de uma breve consideração acerca da multiplicidade de sentidos com
que se pronuncia, neste trabalho como de resto no debate educacional presente, a palavra ou o
termo: prática. No capítulo anterior já se ensaiou um primeiro esboço, ainda muito impreciso,
desta tentativa, identificando pelo menos três sentidos de prática: um sentido filosófico, outro
profissional, e um terceiro curricular. Quase sempre adjetivado, ora ele aparece como prática
concreta, referindo-se à ação, fonte da experiência profissional do professor, ora como prática
pedagógica ou como prática docente, agora como práxis, isto é, como unidade indissolúvel
entre teoria e prática (e ainda aqui, novamente como ação concreta ou, no processo de
produção do conhecimento, como dimensão da empiria ou das evidências do real enquanto
tal). Também se diz prática como componente curricular, significando um dos quatro
componentes do currículo do curso de História (disciplinas, práticas, estágio e atividades) e
prática investigativa, no sentido de uma atividade incipiente de pesquisa ou de iniciação
científica, desenvolvida em nível de graduação.
Em termos mais gerais, o Núcleo Profissional do Curso de História, incluindo tanto a Prática
como Componente Curricular quanto o Estágio Curricular Supervisionado de Ensino e,
dentro dele, aquilo que o Projeto Pedagógico do Curso de História identifica como a Prática
de Ensino (componente curricular explicitado no projeto específico de estágio e presente na
124 Cf. Monteiro (2001: 124-129) e Monteiro (2005: 439-445). 125 Cf. Tardif (2002) e Monteiro (2001: 129-137),
202
matriz do curso, com tempo e duração, ementa e programa, professor responsável e
mecanismos de avaliação e registro), identifica-se também como prática (ou práticas, no
plural), lato sensu. Finalmente, o esboço espacial de uma Oficina de Formação estabeleceu o
eixo das práticas (representado em convergência com outros dois eixos – vertical, dos
sujeitos; horizontal, dos saberes –, de forma perpendicular ao plano definido por eles)
incluindo dispositivos e estratégias institucionais, curriculares e protoprofissionais de
formação (cf. figura). Nesse caso, então, as práticas, como também os saberes, não são
independentes dos sujeitos que os constituem, do mesmo modo que estes são por eles
constituídos.
Portanto, afirmar que o estágio, a pesquisa e o TCC, no Curso de História da FAFIC, estão
articulados à prática exige no mínimo o estabelecimento de parâmetros que sinalizem o
caminho em direção a uma concepção mais adequada para a noção de prática, na floresta de
significados que ela constitui. Tal caminho parece sugerir que ela seja tratada não como
realidade fechada em si mesma, dotada de características particulares, mas na relação de
recíprocas implicações e reflexos, de unidade intrínseca (para além de uma unidade apenas
extrínseca) que estabelece com aquela outra noção também espelhada: a teoria. De fato, teoria
e prática não se parecem com realidades estáveis e fixas, de contornos nítidos e atributos
específicos, por isso mesmo distintas e mutuamente excludentes. Pelo contrário, o fato de que
seja sempre possível identificar teorias e práticas tanto na teoria quanto na prática,
constitutivas de suas respectivas e íntimas realidades, faz pensar num estado de permanente
deslizamento de uma em direção à outra. Como no país dos quanta, onde se diz que “massa é
energia e energia é massa”, talvez se possa dizer que, em educação, prática é teoria e teoria
é prática” (Gilmore, 1998: 26).
Nesse sentido, a abordagem que aqui se ensaia da formação de professores na perspectiva da
configuração de uma oficina (de formação, tributária de uma oficina de ensino, como se disse
anteriormente) e de um currículo triangularmente articulado, permite também explicitar um
equívoco quase que de senso comum na elaboração crítica que contrapõe formação teórica,
por um lado, e formação prática, por outro, no curso da formação docente. De fato, já no
início deste capítulo sublinhava-se o fato de que o tempo de turbulência, na FAFIC, refletia
em parte o esforço de ultrapassagem tanto de uma concepção dicotômica de currículo quanto
de uma formação unilateralmente centrada nos conhecimentos acadêmicos, em detrimento da
cultura escolar e dos saberes docentes considerados em sua relativa autonomia e eles próprios
203
articuladores de teorias e práticas. Suspeitava-se (porque a teorização nem sempre se impunha
à intuição e à experimentação empírica) que teorias e práticas não constituíam duas
formações, mas uma só, indissociável, articulando-se aos pares e se projetando
reciprocamente como espelhos confrontados e se multiplicando ao infinito, em todas as
dimensões que estruturam e organizam o processo formativo.
Assim, tanto teoria alguma pode existir sem práticas que lhe corresponda e que a edifique e a
sustente como realidade no domínio do que é real (“para a execução das idéias são
necessários homens que ponham em ação uma força prática”, afirmam Marx & Engels126),
quanto prática humana nenhuma subsiste à revelia dos significados colados a ela pela
envolvente atmosfera da cultura, significados esses elaborados não importa se pela
consciência (ou senso) comum ou se pela consciência filosófica ou teoricamente
fundamentada. Mais ainda, teorias e práticas estão igualmente presentes numa dimensão
acadêmica do processo formativo, desde que a formação não se restrinja a uma atividade de
mera reprodução e transferência de saberes externamente produzidos e acumulados em
diferentes comunidades acadêmicas – legitimadas na área específica, no campo pedagógico e
em múltiplas interfaces com outras áreas de conhecimento –, envolvendo também os
contextos e os modos pelos quais esses saberes foram e são produzidos.
Estão também necessariamente presentes – teorias e práticas – numa dimensão escolar do
processo e do percurso formativo, considerando (a partir de toda uma tendência recente de
elaboração teórica e de pesquisa) que a escola não é apenas o lugar de aplicação de saberes
produzidos externamente, nem tampouco simples objeto de reflexão e de conhecimento
acadêmico-científico, mas espaço social de produção de saberes (dentre os quais assume
importância capital a própria disciplina escolar) que formam gerações discentes, mas em que
também se formam profissionais docentes. Teorias e práticas estão, enfim, presentes nos
processos de aquisição, mas, sobretudo, de produção dos saberes docentes, sobretudo aqueles
construídos no percurso da experiência profissional – chamados, por isso mesmo, de saberes
práticos ou experienciais – quer sejam considerados na ação (aquela “cultura docente em
ação”, de que fala Tardif, 2002: 49), quer sejam objetivados e dispostos em condições tais
que permitam perguntar, uma vez mais, de acordo com Tardif (2002: 54),
126 Citado por Ribeiro (2001: 35). Ver também p. 182 desta tese.
204
“se o corpo docente não lucraria em liberar os seus saberes da prática cotidiana e da experiência vivida, de modo a levá-los a serem reconhecidos por outros grupos produtores de saberes e impor-se, desse modo, enquanto grupo produtor de um saber oriundo de sua prática e sobre o qual poderia reivindicar um controle socialmente legítimo”.
Mas isso ainda não é tudo. Falar, como se fez acima, em estágio articulado à prática
significaria dizer que o estágio é, então, prática, ou que é atividade teórica, em afirmações
aparentemente dúbias e contraditórias, como faz, por exemplo, Pimenta (2002)127? Resta
esclarecer o pensamento da autora, no entanto, como penhor à coerência e à honestidade
intelectual, tendo em vista o esforço teórico e político empreendido para caracterizar a
docência como práxis e a formação como preparação teórica para a docência. Afinal, para isso
converge a exposição histórico-legal da primeira parte de sua pesquisa, como também a
exposição histórico-teórica da segunda parte. Ambos os percursos apontam para a
identificação de três distintos significados histórico-sociais concretos de prática – ampliando
ainda mais a polissemia do termo – cujos marcos são: i) a Lei Orgânica do Ensino Normal,
instituída pelo decreto-lei nº 9530, de 2 de janeiro de 1946, regendo o período compreendido
pelos anos da década de 1940 e subseqüentes; ii) a lei nº 5692, de 11 de agosto de 1971,128 e,
ainda durante a sua vigência; iii) o ambiente plural da crítica empreendida pelo movimento
dos educadores, a partir da década de 1980.
O primeiro significado analisado pela autora129, emergente com a Lei Orgânica do Ensino
Normal e por isso mesmo referente, sobretudo, à formação de professores primários, trata de
conceber a prática como aquisição de experiência. Considerando a escola como instituição
ideal e imutável em virtude da razoável identidade social entre professores e alunos, a prática
consistia basicamente na imitação de modelos teóricos existentes e/ou na observação e
reprodução de bons modelos admitidos como eficazes no ensino. Assim, segundo Pimenta
(2002: 26),
127 De fato, o problema em Pimenta (2002) é que o estágio só não é práxis, sendo, no entanto, simultaneamente, teoria e prática. Assim, afirma a autora (2002: 15), “o estágio não é práxis. É atividade teórica preparadora de uma práxis”. Mas, “a atividade docente é práxis” (2002: 83). Por outro lado, o trabalho que ela realiza consiste “em uma tentativa de compreendermos o estágio como prática nos cursos de formação de professores...” (2002: 77). Como prática, mas prática curricular, está certo; e como teoria que se exprime (como não ver uma certa ambigüidade) em atividade teórica. Aqui como lá, os deslizamentos conceituais referidos anteriormente. 128 Ver também Romanelli (1997: 163 e 233, respectivamente) 129 Mais adiante cuidaremos de ressalvar a relativa dessemelhança entre o objeto construído por Pimenta (2002) – a formação de professores em nível médio e a consolidação universitária da Pedagogia como Ciência da Educação –, e aquele que se procura construir nestas páginas – a licenciatura em História numa instituição não-universitária de ensino superior. Em ambos, em comum, a formação de professores.
205
“as escolas primárias que eram tomadas como referência eram tão-somente aquelas que reproduziam a realidade da classe social dominante. A prática, portanto, consistia em reproduzir os modelos de ensino considerados eficazes para ensinar aquelas crianças que possuíam os requisitos considerados adequados para aprender”.
A percepção espontânea e quase natural de prática como experiência adquirida por
observação e imitação tornava-a, talvez, basicamente dispensável no ensino superior, nas
licenciaturas ainda em fase de implantação no Brasil, ou pelo menos previsível e passível de
antecipação teórica e recomendação técnica no âmbito da Didática. O fato é que, no curso de
História da FAFIC, referências ao estágio ou à prática de ensino simplesmente estiveram
ausentes nas duas primeiras matrizes curriculares – a de 1965 e a de 1972, construída ao longo
do ano de 1971, portanto fora da vigência da lei que constitui o segundo marco mencionado
anteriormente. Entretanto, a expansão e a consolidação do processo de escolarização no
Brasil, a conseqüente formação de uma escola de massas e a progressiva proletarização do
professor, sobretudo a partir da década de 1960, põe em crise não só o sentido de
especificidade do ensino normal (segundo Pimenta, 2002, diluído numa habilitação, entre
outras, em nível de 2º grau) como também a concepção de prática que lhe era peculiar,
engendrando, ao mesmo tempo, as condições para a emergência de novos modelos e
concepções.
O diagnóstico e as soluções apontadas pela crítica dos educadores, ao longo dos anos 60,
segundo Pimenta (2002: 44-45), foram abortadas com a promulgação da lei nº 5692/71, em
meio ao recrudescimento do regime militar, no Brasil. Com ela emergia uma segunda
concepção de prática, entendida como instrumentalização e desenvolvimento de habilidades,
cujos desdobramentos levam à extrema sofisticação da técnica, ao progressivo distanciamento
da realidade e à conseqüente dissociação entre o curso de formação e a escola. Percebido
como experimentação controlada mediante a organização de situações de ensino para o estudo
científico da atividade docente (onde pontificavam as micro-classes e experiências afins), o
estágio propunha-se desenvolver habilidades técnico-instrumentais (espontaneidade,
eficiência, estímulo, interrogatório, reforço), embora com caráter restritivo, na medida em que
considerava o desempenho do professor independentemente da resposta do aluno.
No Curso de História da FAFIC, explicitam-se pela primeira vez, na matriz curricular de
1976, a prática e o estágio, embora sem definição de carga horária e do modo ou momento de
206
seu aparecimento no processo de formação, mas consagrando, desde então, a expressão (que
traduz, na verdade, uma concepção) Prática de Ensino / Estágio Supervisionado: a Prática de
Ensino passa a estar presente, pois, sob a forma de Estágio Supervisionado. Tal concepção
decorre, sobretudo, da interpretação da Lei 5692/71, como assinala Pimenta (2002: 47), a
respeito da Habilitação Magistério em nível de 2º grau, afirmando que
“aquela antiga imprecisão entre Didática, Metodologia Geral e Especial e Prática de Ensino, presente nas legislações anteriores, aqui é resolvida por fusão entre todas – o que induziu à permanência de ambigüidade na prática dessas disciplinas. (...) Diz o Parecer 349/72: ‘A Prática de Ensino deverá ser realizada nas próprias escolas da comunidade, sob a forma de estágio supervisionado’”.
A redemocratização política, intensificada a partir do início da década de 1980, amplifica e
faz repercutir a crítica do movimento dos educadores às condições sociais e educacionais
criadas na esteira da lei nº 5692/71. Explicita-se, segundo Pimenta (2002: 58), uma nova
concepção de escola:
“a escola é uma instituição social cuja função específica é a produção e difusão do saber historicamente acumulado, como instrumentalização dos alunos para participarem das lutas sociais mais amplas, objetivando a necessária transformação da sociedade, em uma sociedade justa”;
e também de professor, cuja formação consiste em fazer adquirir
“aguda consciência da realidade e sólida fundamentação teórica que lhe permita interpretar e direcionar essa realidade, além de suficiente instrumentalização técnica para nela intervir”.
É conhecida a fórmula de Saviani (apud Libâneo, 2001: 20) segundo a qual os professores
têm na cabeça os referenciais da escola nova, a realidade em que atuam é tradicional, mas a
pressão oficial por racionalidade e produtividade é tecnicista. Na evidenciação teórica e
política de que o modelo de formação de professores e de estágio decorrentes do contexto
inaugurado pela lei nº 5692/71 entravam em crise, como também na crítica a uma concepção
ingênua que, deixando de perceber a hipertrofia de uma razão técnica e o distanciamento que
se aprofundava entre a formação e a realidade, traduzindo, enfim, o desgaste e a deterioração
da formação e do estágio na denúncia de que ambos padeciam de muita teoria e de pouca
207
prática, esboçava-se, pois, uma nova concepção de prática. Tal concepção, segundo Pimenta
(2002: 52), apóia-se na idéia de que
“o curso nem fundamenta teoricamente a atuação da futura professora, nem toma a prática como referência para a fundamentação teórica. Ou seja, carece de teoria e de prática”.
Ou seja, a crítica mais consistente que embasa essa terceira noção de prática, apontada por
Pimenta (2002), rejeita igualmente, de um lado, o tecnicismo e a dissociação entre formação e
escola e, de outro lado, a perspectiva que apenas inverte o quadro, concebendo a prática como
o lado concreto, devendo a formação responsabilizar-se por estratégias que levem a um
envolvimento maior dos formandos com os problemas do dia-a-dia da profissão. O ponto de
vista dessa teoria crítica concebe, na docência, a prática como prática social, isto é, como
práxis, exigindo do profissional uma sólida formação teórica capaz de fazê-lo conectar os
problemas da profissão aos contextos sociais mais amplos, conferindo a eles uma dimensão e
uma direção moral; concebe, também, na formação, a prática como prática curricular, isto é,
como o início daquela formação teórica indispensável à prática social, mas, além disso, como
focalização teórica das demandas da escola-campo e da profissão docente (Pimenta, 2002:
65). Enfim, nessa perspectiva, o currículo é sempre teórico, a prática (curricular) é uma
focalização teórica da escola e da docência e a prática ou “a atividade docente é práxis”
(Pimenta, 2002: 83).
As análises empreendidas até aqui têm procurado estabelecer uma correspondência entre essas
abordagens histórico-legal e histórico-teórica da formação docente e o percurso concreto do
estágio nos projetos específicos do Curso de História da FAFIC, não obstante a
particularidade do objeto em torno do qual se constitui a argumentação de Pimenta (2002):
trata-se da formação do professor para as séries iniciais do Ensino Fundamental, em nível
médio, isto é, no âmbito do Curso Normal, mas também no bojo dos debates e discussões
acerca do processo de formação e consolidação, em nível universitário, da Pedagogia como
ciência da educação130, portanto encarregada de pensar esta condição (profissional) e esta
formação. O inventário e a partilha das concepções pedagógicas circulantes no Curso de
Pedagogia da FAFIC, no entanto, bem como o modo pelo qual se dá sua inserção no debate
educacional mais amplo, ainda está por se fazer. Mas mesmo em face dessa ausência e da
130 “A ciência que estuda a educação é a Pedagogia” (Pimenta, 2002: 86).
208
inexistência de um perfil profissional mais preciso dos sujeitos locais, as relações que
envolvem a Pedagogia e as demais licenciaturas, particularmente a de História, não podem ser
negligenciadas na organização institucional do estágio131.
Aliás, o Curso de Pedagogia não deteve ou exerceu uma hegemonia nas discussões
pedagógicas envolvendo o estágio na FAFIC, pelo menos em relação ao Curso de História,
senão na última parte daquele tempo de calmaria, marcado pela estabilidade da matriz
curricular de 1987, e mesmo assim uma hegemonia não mais do que relativa. De fato, as duas
primeiras concepções de prática trabalhadas por Pimenta (2002), qual seja, a de prática como
aquisição de experiência e a de prática como instrumentalização e desenvolvimento de
habilidades, cujos marcos são, como se viu, respectivamente, a Lei Orgânica do Ensino
Normal, de 1946, e a Lei nº 5692/71, não chegaram a engendrar estratégias especiais na
FAFIC. Tanto a matriz curricular de 1965 quanto a de 1972 passam, ambas, ao largo das
preocupações com a prática e com o estágio: não há nelas qualquer referência explícita, ainda
que, segundo depoimento da Profª Neila Ferraz, aluna da primeira turma (1965-1968), os
licenciandos fossem encaminhados às escolas para dar aulas práticas, no último ano, sendo
avaliados por elas. Tais elementos aparecem explicitados pela primeira vez na matriz de 1976,
consagrando a fórmula Prática de Ensino / Estágio Supervisionado, embora sem fixar sua
duração nem se referir ao modo de sua inserção no Curso.
Somente com a matriz de 1987, longa e integralmente vigente até 1997, quando então começa
a ser substituída ano a ano pela matriz de 1998, até extinguir-se completamente em 2000132,
define-se explicitamente a duração e o modo de inserção no Curso daquele componente:
exigia-se o cumprimento da carga horária de 100 horas de prática de ensino realizada sob a
forma de estágio supervisionado, como então se dizia e segundo estabelecia o Parecer
nº349/72, e, ainda mais, essa carga horária deveria ser integralmente cumprida na 4ª série, 131 Formando pedagogos, stricto sensu, e licenciando professores para as disciplinas pedagógicas do Curso Normal em nível médio e para as séries iniciais do Ensino Fundamental, o Curso de Pedagogia, pelo menos na FAFIC, não desenvolveu qualquer reflexão mais consistente acerca da especificidade da formação de professores para as disciplinas do currículo da Educação Básica, em nível superior, nos cursos de licenciatura. E, ao não fazê-lo – inclusive ao rejeitar a dimensão disciplinar dessa formação em nome de vagas referências ao que todos os professores deveriam ter em comum –, pode ter renunciado à liderança de todo o processo de reflexão pedagógica no interior de uma instituição cuja vocação predominante sempre foi, precisamente, a formação de professores. 132 A rigor, o fato de que a nova LDBEN (Lei nº 9394/96), aprovada em fins de 1996, estabelecesse, em seu artigo 65, que “a formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas” (Niskier, 1997: 50), constitui uma das razões mais fortes, ao lado da demanda por uma atualização propriamente historiográfica, para o debate, ao longo do ano de 1997, em torno da necessidade de uma nova matriz curricular, de fato implementada gradativamente, série a série, a partir de 1998.
209
correspondente ao último ano do curso. Esta é, aliás, uma característica importante daquele
projeto e daquela concepção de Prática de Ensino / Estágio Supervisionado: trata-se de um
componente curricular a ser cumprido integralmente na última série do curso, isto é, no
momento em que o passageiro da licenciatura começa a preparar o seu desembarque, para
utilizar os termos iniciais deste capítulo. Mesmo que se possa considerar a existência de
conexões possíveis ou imagináveis entre a PE/ES e as disciplinas pedagógicas do currículo,
seu caráter complementar e seu significado prático de instrumento destinado à aplicação de
conhecimentos é, de fato, indisfarçável.
Tal concepção e tal projeto (ver Fontes: ES.FAFIC 1999 e ES.FAFIC 1999b), em sua
organização e dinâmica interna, distinguia duas dimensões a serem consideradas para fins de
registro e de avaliação: a duração e o desempenho. A duração mínima de 100 horas era
cumprida até com alguma folga, dividida em aulas de Prática de Ensino, por um lado, na
instituição formadora com 2 h/a semanais (60 h/a no total, em um ano de 30 semanas letivas),
professor regente, programa a ser cumprido, registro formal de notas etc; e atividades de
Estágio Supervisionado, por outro lado, envolvendo observação institucional da escola-
campo do estágio (10 h), observação de aulas de História e de Geografia133 (12 h/a), co-
participação (2 h/a), docência supervisionada (6 h) e redação de um projeto final, contendo
comentários e recomendações para o ensino da História e da Geografia naquela escola (20 h),
somando ao todo 50 h134. Somados os tempos de aulas de Prática de Ensino e de atividades de
Estágio Supervisionado, totalizavam 110 horas, dez acima, portanto, das 100 horas previstas
na matriz. No que se refere ao desempenho, as atividades de PE e de ES totalizavam 200
pontos cada, 400 no total, equivalentes, portanto, a uma média de 100 pontos bimestrais.
As aulas de PE, a rigor, duravam apenas o primeiro semestre do ano letivo, mas eram
mantidas no horário para que o professor permanecesse com um tempo fixo de referência para
encontros de discussão sobre as situações encontradas pelos estagiários na escola-campo. Já
as atividades de ES pressupunham que os estagiários haveriam de documentar a observação
de 4/a de História e 4 h/a de Geografia no Ensino Fundamental, além de 4 h/a de História no
Ensino Médio, mais a co-participação de 2 h/a em qualquer uma dessas alternativas, 133 No Capítulo 5, segundo desta Parte II, comentou-se o fato de que, a importância atribuída à Geografia como componente, na matriz, e agora na Prática de Ensino / Estágio Supervisionado justificava-se pela demanda por professores desta disciplina nas escolas da Educação Básica, atendida por egressos do Curso de História da FAFIC. 134 O estágio explicita, talvez como em nenhum outro lugar do currículo, a confusão nunca definitivamente resolvida entre h/a (horas-aula) e h (horas-relógio).
210
finalizando com a distribuição na mesma proporção (entre os níveis e as disciplinas) das 6 h/a
de docência supervisionada. Quanto ao projeto final, deveria conter não somente o registro
das impressões dos alunos sobre o tempo e o espaço do estágio, como também uma proposta
(daí a denominação de projeto) de intervenção que, em tese pudesse contribuir para
aperfeiçoar o ensino da disciplina naquela escola. Note-se que o estagiário deveria
diagnosticar problemas e apontar soluções, numa perspectiva de mão única em que,
nitidamente, a instituição formadora representa o pólo reflexivo ou teórico e a escola o pólo
prático, objeto de intervenções corretivas especializadas135.
Particularmente significativa parece ter sido a atuação teórico-prática da Profª Marlúcia
Cereja de Alencar, de certo modo paradigmática na elaboração dos projetos de estágio e dos
programas de Prática de Ensino em fins da década de 80 e durante praticamente todos os anos
90, como o foram Conceição Sardinha e Neila Ferraz, respectivamente, para os tempos de
calmaria e de turbulência enfrentados pelo Curso de História, em seu conjunto. Professora de
Didática em Pedagogia e em História, Alencar representava a articulação possível entre a
instituição e as reflexões produzidas no movimento dos educadores, incorporadas, sobretudo,
no contexto de realização de seu curso de mestrado, na PUC-RJ. Sua dissertação, ainda
inédita, intitulada “O curso de formação de professores: um estudo sobre a interação entre o
ensino de Didática e o Estágio Supervisionado”, foi defendida em 1987136. O programa de
Prática de Ensino (reproduzido no Anexo IX), tratada como disciplina inclusa no projeto de
Prática de Ensino / Estágio Supervisionado do Curso de História, reflete a influência de suas
idéias, embora também a heterogeneidade de concepções pedagógicas, a despeito de que o
professor responsável por ela fosse de História, e não de Pedagogia137.
De fato, pensado para durar um semestre, com dois tempos semanais de aula, o programa
começa com um tributo aos campos da Pedagogia e da História: a primeira unidade, intitulada
“As linhas pedagógicas e as linhas teóricas da História”, pressupunha que a prática
pedagógica, isto é, que a práxis, fosse mediada por elas. Da Pedagogia passa-se à Didática,
135 Em consonância com o programa de Prática de Ensino, reproduzido no Anexo IX e analisado anteriormente, particularmente com relação à sua primeira unidade, os estagiários costumavam receber recomendações expressas para que procurassem identificar em quais tendências pedagógicas e concepções historiográficas os professores observados se enquadravam. As referências teóricas utilizadas nessa identificação eram constituídas, naturalmente, por Libâneo (2001), mas também por Basso (2000). 136 Cf. Pimenta (2002: 191) e Géglio (1997: 98). 137 Este Programa, datado do ano de 1997, pertence ainda ao contexto da matriz curricular implementada a partir de 1987, no Curso de História. De fato, a matriz seguinte, em vigor a partir de 1998, substitui, ano a ano, aquela anterior entre 1998 (1ª série) e 2000 (último ano da matriz de 1987, apenas na 4ª série do Curso).
211
concebida ora como “Metodologia” (esse é o título da segunda unidade), ora como “análise
crítica” (expressão que dá início aos dois primeiros capítulos dessa unidade), concluindo com
discussões, quiçá recomendações sobre “O fazer em sala de aula” (terceiro capítulo da
mesma unidade). Da Didática avança-se em direção à disciplina escolar, embora
restritivamente tratada como “Recursos” (título da Unidade III): o livro didático e o para-
didático, a mídia na sala de aula e as informações não-verbais. Finalmente, conclui-se o
programa com uma unidade sobre “Avaliação”. A bibliografia, constituída por apenas seis
títulos, contempla discussões pedagógicas lato sensu (Fazenda, Libâneo e Menezes), a
docência (Cunha) e a avaliação (Gama e Luckési).
Uma concepção teórica de fundo faz supor que as teorias constituem, na verdade, uma
compreensão macro de todo o processo educacional articulado ao projeto de transformação
social, de onde decorre a importância da identificação tanto das linhas pedagógicas quanto
historiográficas. A prática pedagógica deve ser analisada na perspectiva de uma metodologia
da ação docente (cf. Anexo IX, Ementa), ou seja, na identificação dos meios através dos quais
a ação docente concreta se coaduna com o projeto a serviço do qual ela se constitui. Dentre
esses meios, merece destaque especial um determinado conjunto de recursos cuja
materialidade representaria, além de eixo de transmissão das concepções críticas globais em
direção ao dia-a-dia do trabalho educacional concreto, onde interagem os sujeitos do ensino
(os professores) e da aprendizagem (os alunos), veículos de expressão das informações e dos
conteúdos da disciplina específica: o livro didático e para-didático, a mídia e as diferentes
linguagens da comunicação social, a produção de materiais didático-pedagógicos etc. Na
hierarquia estratégica que envolve os saberes, a espiral descendente que parte das teorias
pedagógicas e historiográficas, passando pela mediação tecno-metodológica da Didática até
chegar aos domínios da ação mediada ou da prática.
Vê-se, portanto – em parte pela correlação de forças entre as diversas concepções pedagógicas
presentes nos cursos de Pedagogia e de História, em parte pelo silêncio e pela timidez que não
explicitava ou não problematizava a identidade do próprio Curso de História como curso de
formação de professores, em parte também por aquela espécie de pacto federativo que
respeitava a autonomia dos departamentos numa convivência esvaziada de contradições e de
contrastes (tornando pouco precisos os limites entre a ética e a crítica) –, que parece difícil
estabelecer cum grano salis o quanto há de tradicionalismo ou de tecnicismo ou, ainda, de
escolanovismo, mas também de progressismo (para falar completamente nos termos de
212
Libâneo, em um texto muito lido pelos sujeitos formadores, naqueles tempos138), no
amálgama de concepções pedagógicas que constituía o ambiente das licenciaturas da FAFIC.
E como essa dificuldade se espelhava naquele programa de Prática de Ensino / Estágio
Supervisionado, nas suas conexões com a reflexão pedagógica e com a escola, mas também
nos seus limites, sobretudo na manutenção de uma perspectiva instrumentalizadora que
preparava o estagiário para analisar e para intervir na escola, nunca para aprender com ela.
Parece evidente, contudo, pelo menos na explicitação geral do programa de Prática de Ensino
e na organização das atividades do Estágio Supervisionado, uma certa supremacia daquela
terceira concepção de prática tratada por Pimenta (2002), segundo a qual, na formação,
prática é sempre prática curricular, isto é, aquisição de uma sólida formação teórica e, na
docência, prática é sempre prática social ou práxis. Em todo caso, a aprendizagem
profissional na formação consiste numa aprendizagem, por assim dizer, acadêmica e mesmo
quando dirige o foco para a escola e para a docência, é o foco pedagógico-acadêmico
constituindo seu objeto de conhecimento. O advento de um tempo de turbulência, na FAFIC e
no Curso de História, a reorganização institucional que extingue a estrutura de Departamentos
e inaugura as Coordenações de Curso e a progressiva autonomização da reflexão didático-
pedagógica do Curso de História em relação ao de Pedagogia abre caminho, enfim, para a
lenta emersão de uma nova concepção de prática. Articulando saberes escolares e docentes à
formação, tal concepção deverá constituir o universo das práticas, no qual incluem-se o
estágio e a pesquisa, como um território de fronteira.
A sanção da Lei nº 9394, em dezembro de 1996, e a publicação dos atos normativos do
Conselho Nacional de Educação, especialmente a Resolução nº 2/97 (de 26/06/1997) e o
Parecer nº 744/97 (de 03/12/1997), bem como as próprias demandas internas por atualização
historiográfica e curricular do Curso de História da FAFIC, desencadearam uma série de
discussões, ao longo do ano de 1997, culminando na adoção da matriz de 1998. O que mudou,
basicamente, em relação ao projeto de Prática de Ensino / Estágio Supervisionado? A
mudança mais significativa, sem dúvida, foi a passagem de 100 (ou 110) horas para 300 horas
de prática de ensino, parcialmente diluídas em mais tempo para a observação institucional e
para o projeto final. Parte substancial desse tempo extra, no entanto, foi utilizada para a
criação das chamadas Atividades Teórico-Práticas de Formação Geral: destinadas à
138 O texto “Tendências pedagógicas na prática escolar” está publicado em Libâneo (2001: 19-44).
213
participação em eventos externos relacionados à Educação ou à História (comprovados
mediante apresentação de certificados) ou à experiência docente, as ATPFGs consumiriam
160 horas do projeto de PE/ES.
A carga-horária e a avaliação dessas atividades foram objeto de um minucioso projeto do
então Departamento de História, estabelecendo conceito, plano de trabalho, critérios e
calendário de avaliação. Pela primeira vez um documento produzido pela administração do
Curso fazia o anúncio da pesquisa como possibilidade de atuação no estágio, mesmo que
apenas citando vagamente; além disso, também pela primeira vez uma parte do estágio iria
além da 4ª série, já que elas deveriam ser acumuladas ao longo de todo o percurso formativo.
Nele ficava consignado que as ATPFGs
“serão cumpridas ao longo dos quatro anos da graduação do curso de História, através de atividades teórico-pedagógicas realizadas pelos alunos. São consideradas Atividades Teórico-Pedagógicas (sic!) a participação do aluno em cursos de extensão, freqüência a encontros, seminários e congressos, atividade docente, pesquisa, trabalho com documentação, apresentação de trabalhos e cursos, estágios e excursões educativas ou qualquer atividade acadêmica afim com o curso de história” (ES.FAFIC 1998: 1)
Simples cumprimento burocrático de carga horária para atender ao disposto na legislação ou
reconhecimento efetivo da importância do envolvimento das comunidades externas na
formação dos professores de História e destes nas diversas instâncias de discussão e de
produção extra-curso de conhecimento? De fato, bastava apresentar o certificado que a
exigência considerava-se cumprida, além do que permanecia inalterado, sem qualquer
problematização adicional, aquele percurso de mão única entre um pólo teórico e outro pólo
prático da formação. O Projeto Pedagógico de PE/ES para o ano de 1999 reconhecia e
explicitava, em parte, essa questão:
“Qual o problema detectado na mudança anterior? Resposta: o excesso de carga horária preenchida pelas ATPs. Desse modo, estimulou-se: i) a proliferação de palestras e cursos relâmpagos (de que não se tinha mais controle sobre a qualidade); ii) a indústria de certificados (...), e; iii) a saída do aluno da sala de aula (o extremo oposto do ‘aulismo’, que não oferece ao aluno nada além da aula)” (ES.FAFIC 1999: 2)
De qualquer maneira, ainda que timidamente, a turbulência que se insinuava no Curso de
História avançava, também, no estágio. Mas avançava no sentido de um lento emergir, senão
214
de um explicitar de concepções novas e contraditórias acerca do próprio estágio e da prática
que, no fundo, refletiam concepções igualmente novas e contraditórias subjacentes sobre a
formação e a docência. Consolidava-se, por um lado, a convicção de que a Prática de Ensino
constituía uma disciplina indispensável ao currículo da formação, cujo objetivo, segundo a
tentativa de aperfeiçoamento do projeto de PE/ES para o ano de 1999, consistia em
“dotar o aluno do necessário suporte teórico, metodológico e didático para o exercício do Estágio Supervisionado e num segundo momento para sua atuação profissional no magistério” (ES.FAFIC 1999: 4).
Tal suporte deveria ressurgir depois, na condição de referencial teórico e de referencial
didático-pedagógico, no Projeto Final de ES139, elaborado pelo aluno, instaurando uma
distinção no mínimo curiosa, senão restauradora de uma concepção de formação cujo ponto
de partida eram as teorias da História (os conceitos básicos e as linhas historiográficas), na
qual a dimensão didático-pedagógica deveria definir a linha de ação docente (positivista,
escolanovista, tecnicista, libertadora, crítico-social etc) e os procedimentos e recursos
(biblioteca, textos, jornais, audio-visuais, atividades extra-classe etc), rumo a um ponto de
chegada ou, propriamente, à ação supervisionada ou, enfim, ao território da prática. Portanto,
entre o início na recuperação das teorias da História, na Prática de Ensino, e a conclusão de
um Projeto Final perfeitamente adequado à escola, no Estágio Supervisionado, cumpre-se o
percurso guiado por uma racionalidade técnica segundo a qual a História provê a teoria, a
Didática constitui a mediação técnica tendo em vista a ação prática docente.
Por outro lado, na esteira da dissolução de um projeto que confinava o componente PE/ES ao
último ano do Curso, constituía-se a concepção do estágio como uma construção permanente,
atravessando todo o percurso da formação, numa antecipação daquilo que Marlúcia Cereja
explicitaria, na Introdução ao projeto de diretrizes gerais elaborado por ela como contribuição
e proposta para integrar todas as atividades de PE/ES da FAFIC, segundo o qual a PE/ES
“constitui o núcleo articulador das atividades pedagógicas desta proposta onde a prática
educativa deve constituir no ponto de partida e de chegada de toda trajetória” (ES.FAFIC
2001). Mas qual estágio, na compreensão dos sujeitos do Departamento de História? Um
estágio que, além das aulas de PE (60 h/a) e das atividades de ES (60 h), incluía, num
primeiro momento, 160 h de ATPFGs, como se viu acima, ampliadas e desmembradas, a
139 Cf. Roteiro para o projeto final (ES.FAFIC 1999e), em anexo ao Projeto pedagógico para o Estágio Supervisionado (ES.FAFIC 1999: 13).
215
partir de 1999, em 80 horas de Atividades Teórico-Práticas (ATPs), com o mesmo significado
das antigas ATPFGs, e em 100 horas de Atividades de Preparação Docente e Iniciação à
Pesquisa (APDIPs). Tais APDIPs, segundo o projeto de 1999,
“São atividades nas quais o aluno estará cumprindo horário em: * instituições de ensino, onde entrará em contato com a escola, com ações de planejamento, com o processo ensino-aprendizagem, tomando contato direto com a prática do magistério; * instituições de pesquisa ou arquivos, onde o aluno terá participação nas atividades programadas de pesquisa e manuseio de documentos; * são também consideradas APDIPs o exercício de monitoria, participação em reuniões pedagógicas e de Departamento” (ES.FAFIC 1999: 6)
Duas importantes novidades nesta concepção: primeiro, que a pesquisa ou a iniciação à
pesquisa deveria integrar a formação docente; segundo, que seria importante para o
licenciando habitar a escola, mergulhando nela e convivendo com seus sujeitos. Mas nem a
FAFIC, em geral, nem seu Curso de História, em particular, conheciam a pesquisa; nem
outras instituições locais ou regionais, que pudessem estabelecer convênios ou parcerias,
atuavam propriamente no incentivo à pesquisa, particularmente nos campos historiográfico e
educacional; nem se constituíam laços formais efetivos entre a instituição formadora e a rede
escolar. Restavam, pois, talvez três informalidades: a atividade individual de alguns
professores em processo de qualificação na pós-graduação stricto sensu, em expansão naquele
momento, o início de uma preocupação, por parte de algumas instituições locais, com a
organização de seus acervos documentais e o antigo molde de inserção de alunos para
realização de estágio nas escolas locais. Além disso, tanto as ATPs quanto as APDIPs, talvez
o que houvesse de mais novo na concepção dos sujeitos, sujeitavam-se a uma
“Observação importante: a experiência docente, quando devidamente comprovada, poderá substituir em até 100 % a carga horária de ATPs e APDIPs, mediante a apresentação de um relatório crítico e auto-crítico” (ES.FAFIC 1999: 4).
Ora, isso significa que, no fundo, talvez elas fossem mesmo, mais do que substituíveis,
dispensáveis. Isto porque, na condição de curso noturno de formação de professores, a
maioria dos alunos era constituída de trabalhadores e, dessa maioria, uma parcela expressiva
atuava como professores das séries iniciais da Educação Básica, o que significa dizer que eles
estavam dispensados de mais da metade da carga-horária do estágio. Mesmo que se atribua
importância à experiência docente, em geral, na formação de professores, e mesmo que se
216
admita a unidade da condição profissional constituída no espaço de atuação escolar, há que se
considerar, primeiro, que existem particularidades e diferenças importantes entre a docência
nas séries iniciais e nas disciplinas do segundo segmento do Ensino Fundamental e no Ensino
Médio, e que, segundo, o aprendizado por imersão, se acrescenta algo, pode também
contribuir no sentido daquele “empirismo voluntarista” e “obscurantismo teórico” de que
fala Monteiro140. Sem mencionar, por fim, o fato de que a formação, isto é, a ação formal de
preparar sujeitos para a profissão docente, não deveria conviver com informalidades.
Em resumo, o projeto de Prática de Ensino / Estágio Supervisionado elaborado em 1998/1999
(ES.FAFIC 1999) aponta no sentido de quatro conquistas importantes: primeiro, exigindo
uma articulação mais profunda com a escola, pela reflexão e pela imersão, seja no próprio
estágio ou nas APDIPs; segundo, enraizando mais amplamente as atividades de PE/ES no
percurso integral da formação, para além da 4ª série do Curso (viabilizado, inclusive, pela
expansão da carga horária); terceiro, estabelecendo referências mais concretas para a
pesquisa, tanto a nível interno, propondo a organização de laboratórios ou núcleos, quanto
externo, envolvendo os alunos em atividades de pesquisadores ou na organização de acervos e
arquivos; quarto, no detalhamento e na sistematização mais precisa do Projeto Final (embora
ainda não identificado com o Trabalho de Conclusão de Curso), mediante a elaboração de um
Roteiro de Observação Institucional e de um roteiro para o Projeto Final, sugerindo que ele
considerasse não apenas o aspecto acadêmico formal, mas também a explicitação de
referenciais teórico-metodológicos, aproximando-se de uma atividade de pesquisa na escola.
Entretanto, como se disse, a emergência e explicitação de concepções novas e contraditórias
nos primeiros tempos das turbulências na FAFIC, no Curso de História, na Prática de Ensino
e no Estágio Supervisionado, aprofunda-se na mesma proporção em que os sujeitos que as
constituem, também constituídos por elas, vão emergindo e explicitando a si próprios como
sujeitos novos e contraditórios em sua própria constituição. É, portanto, na dimensão
institucional, mas também na esfera curricular, como reflexo, mas também refletindo nas
concepções dos sujeitos que articulam instituição e currículo, que serão implementadas
mudanças importantes, a partir do ano 2000, mudanças essas que se expressam e se
materializam na elaboração do Projeto Acadêmico-Pedagógico do Curso de História (Versão 140 Segundo o qual “a formação de professores é entendida, fundamentalmente como um processo de socialização e indução profissional na prática cotidiana da escola, não se recorrendo ao apoio conceitual e teórico da investigação científica, o que conduz facilmente à reprodução de vícios, preconceitos, mitos e obstáculos epistemológicos acumulados na prática empírica” (Gómez apud Monteiro, 2000:133)
217
preliminar – 2000). Escrito sob a responsabilidade da Coordenação (que então substituía o
Departamento) de História, esse Projeto Pedagógico 2000 (CH.FAFIC 2000) é um projeto
polêmico e até certo ponto irreverente ao explicitar posições acerca da identidade do Curso,
das relações entre ensino e pesquisa e entre licenciatura e bacharelado.
Tal caráter polêmico e irreverente se expressa logo de início, nas citações utilizadas como
epígrafe do documento, apresentando lado a lado, como que a sublinhar um paradoxo, por um
lado o depoimento do professor e historiador Eduardo D’Oliveira França (extraído da tese de
doutoramento de Selva Guimarães Fonseca), nos termos seguintes:
“Depois que se estabeleceu que o importante é a pesquisa e que o ensino é um apêndice, o que está acontecendo é que os professores são menos professores e mais pesquisadores. (...) Quando se pensa em julgar a obra de um professor, pergunta-se: o que ele publicou? Não se pergunta: quem ele formou?” (FONSECA, 1997: 205, cit. em CH.FAFIC 2000);
por outro lado, traduzindo e ilustrando uma posição diametralmente oposta a esta, a fala dos
historiadores integrantes da Comissão de Especialistas em História, constituída pelo MEC no
bojo do processo de discussão e elaboração das diretrizes curriculares nacionais para os cursos
de História, segundo a qual
“o graduado deverá estar capacitado ao exercício do trabalho de historiador (...). Nesse sentido, não se deve pensar em curso que forme apenas professores, uma vez que a formação do profissional de História se fundamenta no exercício da pesquisa” (BRASIL, 1998: 1, cit. em CH.FAFIC 2000).
Prosseguindo, na definição dos objetivos do curso e do perfil do egresso, o Projeto
Pedagógico 2000 explicita, com todas as letras (embora isso talvez não expressasse um
consenso na Coordenação de História, naquele momento), uma identidade: a de uma
licenciatura formando, sobretudo, professores para a Educação Básica. Como se segue (cf.
CH.FAFIC 2000: 2-3):
01.1. Objetivos do Curso a) Formar docentes para a Educação Básica. b) Proporcionar uma etapa inicial de formação profissional de qualidade que
ofereça ao estudante: i) uma sólida formação tanto na esfera dos conhecimentos básicos ou
gerais, quanto nos conhecimentos específicos e nos saberes profissionais;
218
ii) os meios para encontrar respostas aos desafios impostos pelas rápidas transformações sociais, pela dinâmica do mercado de trabalho e pelas variadas condições de exercício profissional.
c) Contribuir, tanto no âmbito das consciências individuais quanto nas relações sociais, para:
ii) o desenvolvimento de dimensões éticas, estéticas e humanistas indispensáveis à complexidade das vivências sócio-profissionais.
d) Promover as necessárias articulações entre teoria / prática e entre ensino / pesquisa / extensão, no contexto das atividades iniciais de formação.
i) o desenvolvimento de atitudes e valores voltados para o exercício consciente e crítico da cidadania;
01.2. Perfil do egresso
a) Que o profissional licenciado em História pela FFC, mediante a apropriação e o domínio de conhecimentos básicos e específicos e de saberes profissionais, seja capaz de: i) exercer a profissão docente, além de outras ocupações que atendam
a demandas sociais (assessoria, organização, planejamento), com base em conhecimentos, habilidades e competências solidamente construídas a partir de sua formação inicial;
ii) produzir e avaliar: * conhecimentos específicos no campo da História; * materiais didático-pedagógicos no âmbito de sua atividade docente; e, * linguagens e textos analíticos e propositivos relacionados à sua esfera de atuação;
iii) demonstrar autonomia intelectual, capacidade analítica, espírito crítico e criatividade em face dos desafios colocados pela sociedade, pelo mercado de trabalho e pela prática profissional.
No bojo do processo de explicitação de uma identidade para o Curso de História da FAFIC,
destinado-o à formação para a profissão docente, o Projeto Pedagógico 2000 sugere, mesmo
que sem utilizar ainda esta expressão, a organização de um núcleo profissional, envolvendo
“conteúdos, competências, habilidades e atitudes voltadas para o exercício profissional no
âmbito da docência” (CH.FAFIC 2000: 3), constituído por disciplinas pedagógicas, Prática
de Ensino / Estágio Supervisionado e Núcleo de Pesquisa em Ensino de História141. Nesse
sentido, o documento enfatiza ainda mais a necessidade de que o componente PE/ES “se
desloque em direção ao centro de todo o processo de formação, promovendo efetivamente a
articulação entre teoria e prática” (CH.FAFIC 2000: 4). Para isso, a adoção de um novo
regime de trabalho para o corpo docente apoiado em jornadas e superando o “horismo”,
141 Refletindo, em parte, a conjuntura de crise econômico-financeira da FAFIC, impondo um envolvimento maior com o poder público, especialmente a nível municipal, mas também, em parte, determinadas concepções pedagógicas circulantes, sobretudo, no Curso de Pedagogia, institui-se em 2000, nas dependências ociosas da FAFIC em períodos diurnos, o Colégio de Aplicação Professor Jerônymo Ribeiro. Misto de escola pública municipal de funcionamento regular e de escola de aplicação, em tese, os licenciandos deveriam cumprir suas atividades de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado preferencialmente naquele colégio. A rigor, isso não chegou a acontecer plenamente: a parceria FAFIC / Prefeitura se desfez em poucos anos...
219
certamente irá contribuir decisivamente, permitindo que os professores disponibilizem tempos
remunerados para atendimento aos alunos.
Entretanto, o documento não logrou extrair conseqüências mais profundas do paradoxo que
procurou apontar nas duas epígrafes, recomendando que o projeto de PE/ES incorporasse o
disposto no “modelo de enquadramento das propostas de diretrizes curriculares”, da
Comissão de Especialistas em História, da SESu / MEC. De acordo com aquele documento,
há três níveis de estágio: primeiro, como “instrumento de integração e conhecimento do
aluno com a realidade social, econômica e do trabalho de sua área / curso”, devendo iniciar-
se no primeiro ano do curso, acompanhado pela coordenação; segundo, como “instrumento de
iniciação à pesquisa e ao ensino”, a partir do segundo ano, “notadamente integrado às bolsas
de iniciação científica”; terceiro, como “instrumento de iniciação profissional”,
rigorosamente controladas pelos colegiados ou coordenações de curso. Chega a ser curioso,
aliás, essa espécie de seguro anti-educação por meio do qual a Comissão exige sempre o
controle, coordenação e supervisão do estágio, recomendando expressamente que “todas as
atividades de cunho didático-pedagógico deverão ser desenvolvidas no interior dos
programas de História e sob sua responsabilidade, tendo em vista a necessidade de associar
desempenho e conteúdo de forma sistemática e permanente”).
Por outro lado, as atividades de pesquisa são finalmente iniciadas no Curso, favorecidas
também pelo novo plano de carreira que institui as jornadas de trabalho e incentivadas a partir
da referência insistente a elas nos debates e nos documentos que tratam de credenciamento,
autorização, reconhecimento e avaliação de cursos e normatização das diretrizes curriculares
para os cursos de graduação. Sem uma sólida tradição de pesquisa implantada e ao mesmo
tempo com quase 40 anos de experiência em ensino, a FAFIC, de uma maneira geral, e seu
Curso de História, em particular, apóiam-se no que dispõe o Parecer CES/CNE nº 1070, de 23
de novembro de 1999, tratando da autorização e reconhecimento de cursos em instituições de
ensino superior. Segundo o Parecer, é preciso distinguir as exigências dirigidas às instituições
e aos cursos, particularmente no que se refere a pesquisa e iniciação científica. A exigência de
pesquisa e produção científica, de acordo ainda com o Parecer, restringe-se às universidades,
deve se feita em relação à instituição e não a cada curso, não pode ser utilizada como pré-
condição para autorização de cursos novos, quando muito no momento de reconhecimento
desses cursos.
220
“O que se pode e se deve colocar como condição para reconhecimento do curso – prossegue o documento – é o desenvolvimento de práticas investigativas, associadas ou não à extensão universitária, que façam parte integrante da formação dos alunos de graduação. Práticas investigativas como pesquisa bibliográfica, estudos de caso, pequenos trabalhos de campo sob a orientação dos docentes, o trabalho em escritórios de advocacia associados aos cursos de Direito, trabalhos individuais ou coletivos de experiência nos laboratórios constituem procedimentos pedagógicos essenciais para ensino de qualidade e para a formação adequada de futuros profissionais e devem ser estimulados, tanto nas universidades quanto em outras instituições de ensino” (BRASIL, 2000: 33)
É nessa perspectiva, portanto, da constituição de práticas investigativas, que a Coordenação
do Curso de História elabora um projeto de organização de Núcleos de Pesquisa (PQ.FAFIC
2000), implantando, num primeiro momento, dois deles em quatro projetos distintos: Projeto
1: “A utilização de materiais didáticos e para-didáticos de História nas escolas de Campos”
(8 alunos); Projeto 2: “Mídia, recursos visuais e filmes comerciais no ensino de História” (12
alunos); Projeto 3: “Perfis profissionais dos professores de História em Campos dos
Goytacazes” (15 alunos); Projeto 4: “Surgimento da arte moderna no século XIX”. Os três
primeiros projetos pertencem ao Núcleo de Ensino de História e o último ao Núcleo de
História da Cultura e da Arte. Os primeiros resultados de investigação foram apresentados em
outubro no I Encontro Norte-Fluminense de Ensino de História, promovido pela Coordenação
de História e associado ao III Fórum de Qualificação Profissional da FAFIC, no SESC
Mineiro de Grussaí – RJ, e reapresentados depois em dois eventos internos do Curso, em
outubro e novembro de 2000.
Também o Trabalho de Conclusão de Curso aparece formalmente citado no Projeto
Pedagógico 2000, embora apenas anunciado de forma geral na definição da estrutura
curricular do Curso. Segundo o documento,
“a grade inaugurada em 2000 (...) contempla alguns aspectos essenciais ao desenho do profissional que se deseja formar, tais como: (...) iv) trabalho monográfico de final de curso (TCC) com indicações presentes em várias disciplinas, orientações sistemáticas em Introdução aos Estudos Históricos e realização em História Regional, na 4ª série” (CH.FAFIC 2000: 3).
Note-se que o trabalho monográfico de conclusão de curso, referido acima, ainda não aparece
completamente associado ao projeto de Prática de Ensino / Estágio Supervisionado. De fato, à
exceção do Projeto Final de PE/ES, os formandos não estão ainda obrigados à apresentação de
221
qualquer trabalho final. Tal obrigação deverá constar, finalmente, da matriz inaugurada em
2001, ao lado das Práticas Investigativas e dos Estudos Independentes, configurando o que se
denomina de Atividades Complementares, com carga horária total de 360 horas. Do mesmo
modo, os projetos de pesquisa são parcialmente reformulados, extinguindo-se o de mídia e
recursos, mantendo-se o de materiais didáticos e para-didáticos, reformulando-se os de arte e
cultura (agora denominado “(Re)Descobrindo a modernidade”) e o de perfis profissionais de
professores (voltado agora mais para a problematização do que para o registro de dados
acerca da ação docente) e instituindo-se um novo projeto a propósito dos 40 anos da FAFIC,
intitulado “Uma história da Faculdade de Filosofia de Campos: 40 anos de filosofias (1961-
2001”.
Elaborado pela Direção de Graduação da FAFIC e incluindo dados fornecidos pela
Coordenação de História, o Projeto Pedagógico de 2001 (CH.FAFIC 2001) é um texto
generalizante e formal, focado na instituição e pouco acrescentando sobre a dinâmica
particular do Curso. Nele registra-se a adoção do regime de semestralidade pala FAFIC, a
permanência das Atividades Complementares (envolvendo Práticas Investigativas, TCC e
Estudos Independentes) e a introdução da disciplina de Ensino de História na matriz
curricular, com carga horária de 80 horas distribuídas entre o 3º e 4º períodos. Quanto ao
projeto de Prática de Ensino / Estágio Supervisionado, ele é basicamente o mesmo dos anos
anteriores, apenas desmembrando as Atividades de Preparação Docente e Iniciação à Pesquisa
(APDIPs) em Iniciação à Docência (ID) e Iniciação à Pesquisa (IP), com 50 horas cada. A
novidade fica por conta da tentativa de articulação de uma diretriz institucional para a Prática
de Ensino / Estágio Supervisionado de toda a FAFIC.
De fato, elaborado pela Profª Marlúcia Cereja de Alencar, o documento intitulado “Prática de
Ensino / Estágio Supervisionado: diretrizes gerais (versão preliminar)”, retoma em seu
referencial teórico e em seus objetivos a concepção de PE/ES como núcleo articulador das
atividades pedagógicas, já anunciadas anteriormente, e como componente encarregado de
“pensar e repensar a ação educativa” (Alencar, 2001: 4). Sem conseguir se articular com o
conjunto das Coordenações de Curso da FAFIC (e talvez mesmo sem maior respaldo
institucional), o projeto não repercutiu na vida acadêmica e, quando colocado então em
perspectiva mais ampla, considerando-se as experiências construídas pela PE/ES no cotidiano
dos cursos, como também a emergência de novas concepções a partir da normatização das
licenciaturas pelo CNE (Parecer nº 9, de 8/5/2001 e Parecer nº 27, de 2/10/2001), talvez se
222
possa dizer que ele representa o canto do cisne de uma concepção de estágio como atividade
teórica, na linha de Pimenta (2002), pelo menos no contexto dessas análises.
O ano de 2002, para o conjunto da FAFIC como instituição de ensino superior em que
predominam os cursos de licenciatura, mas, em especial, para seu Curso de História,
espelhando de modo muito particular um tempo de turbulências, parece, de fato, um ano de
expectativas e de suspense. A transformação dos Pareceres nº 9 e nº 28, de 2001, do Conselho
Nacional de Educação, nas Resoluções nº 1 e nº 2, em fevereiro de 2002, será lentamente
digerida nos debates internos, amalgamando-se às demandas e concepções em gestação e
desenvolvimento no próprio Curso, mas o Projeto Pedagógico 2002 só fica pronto já no final
do ano, em novembro. O projeto de Prática de Ensino / Estágio Supervisionado não altera
substancialmente a dinâmica anterior, mantendo a distribuição de carga horária entre as
diversas ações como se segue: Atividades Teórico – Práticas (ATPs) = 40 h; Iniciação à
Docência (ID) = 80 h; Iniciação à Pesquisa (IP) = 100 h; Prática de Ensino (PE) = 40 h e,
finalmente, Estágio Supervisionado (ES) = 40 h. Mas o ano de 2003 começava a ser pensado
em função do novo enquadramento legal.
As Práticas Investigativas estão agora organizadas em torno de três eixos ou grupos
principais: Ensino de História, Cultura e Arte e História Regional. A instituição celebra uma
parceria com a Fundação Estadual Norte Fluminense – FENORTE, contemplando todos os
cursos com bolsas de monitoria e de iniciação científica. O Curso de História passa a contar,
então, com vinte alunos-bolsistas distribuídos entre monitorias de algumas disciplinas e
atuação nos grupos de pesquisa. O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) passa a ser
formalmente exigido, embora ainda sem uma diretriz segura e clara que evidencie sua
estrutura e seu papel na formação do professor de História. Segundo o Projeto Pedagógico
2002 (CH.FAFIC 2002: 89),
“a exigência expressa de elaboração de um trabalho de conclusão de curso é nova na FAFIC, tendo surgido apenas nesse ano de 2002. Desse modo, é provisória a forma pela qual os alunos a cumprem e os professores a orientam. A rigor, o que ocorre é que alguns alunos escolhem seus temas com absoluta e irrestrita independência, outros aproveitam leituras e discussões que já vinham realizando nos núcleos de pesquisa e outros ainda aproveitam a oportunidade do projeto final de estágio, desdobrando dele o TCC”.
223
Embora faltasse uma diretriz para o TCC, uma tendência já se insinuava com nitidez, em parte
por opção teoricamente sustentada, mas em parte também por força das circunstâncias,
sobretudo em função da dimensão do projeto de PE / ES no currículo do Curso. Uma vez
mais, segundo o Projeto Pedagógico 2002 (CH.FAFIC 2002: 89),
“ a entrada em vigor da nova matriz curricular e das novas diretrizes para o curso deverão afetar também o TCC, repensando seu lugar e seu papel, principalmente no sentido de aproximá-lo de uma pesquisa em ensino de História, articulada às práticas e ao estágio supervisionado. Embora não se deva impor um trabalho necessariamente com este perfil, a economia de esforços, a exigência de qualidade e de profundidade na reflexão e as próprias características da licenciatura deverão exercer uma forte influência nesse sentido”.
De fato, se inicialmente a intenção não era impor uma exclusiva focalização do TCC na
prática e no estágio, a necessidade de superar a pulverização dos interesses dos alunos, os
limites quantitativos do corpo docente e suas demandas teóricas, tendo em vista a orientação
dos trabalhos, as concepções dominantes acerca da construção curricular de uma licenciatura
em História, na Coordenação do Curso, mas também os limites das condições de exigência e
da capacidade de trabalho dos alunos, já sobrecarregados nos dois últimos períodos do curso
com as atividades do estágio, além das disciplinas propriamente acadêmicas, tudo isso junto
impôs uma solução de compromisso: o TCC desdobra-se das atividades do estágio, incorpora-
lhe a observação institucional e os elementos outrora constantes do projeto final, agrega as
leituras da Prática de Ensino, além de outras realizadas durante o Curso, transformando-se
num Relatório Final de Estágio. Como que referendando essa solução, o INEP, que sucedeu a
SESu no encargo de coordenar o processo oficial de avaliação de cursos, através de sua
Diretoria de Estatísticas e Avaliação da Educação Superior (DAES), divulga, em março de
2002, o “Manual de Avaliação do Curso de História”.
Estruturado em dimensões de avaliação e em categorias de análise, o Manual estabelecia,
para a “Dimensão 1 – Organização Didático-Pedagógica”, três categorias, sendo a terceira
delas caracterizada como “Atividades Acadêmicas Articuladas ao Ensino de Graduação”.
Essa categoria, por sua vez, constituía-se através de três indicadores, a saber: 1 Participação
dos discentes nas atividades acadêmicas; 2 Estágio supervisionado (Licenciatura) e 3
Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado). Justamente no momento em que o TCC passa
a ser formalmente exigido no projeto do Curso de História da FAFIC, sem dúvida, uma leitura
224
possível daquele documento considerava que ele corresponderia, na verdade, a uma exigência
restrita aos cursos de Bacharelado. As licenciaturas seriam oficialmente avaliadas142 apenas
em função do indicador Estágio supervisionado, sendo a comissão avaliadora do INEP
orientada no sentido de executar as seguintes ações (BRASIL, 2002: 33):
• conversar com alunos sobre o estágio supervisionado; • examinar alguns relatórios de alunos sobre atividades reais de História; • entrevistar o professor-orientador de estágio supervisionado; • examinar o cadastro de empresas / entidades conveniadas com a IES para a
realização do estágio supervisionado do curso; • examinar o regulamento sobre estágio supervisionado, verificando se está de
acordo com a legislação específica sobre o assunto; e • verificar se o estágio supervisionado é conduzido de acordo como foi
concebido no projeto do curso.
A grande virada, no entanto, tanto conceitual quanto nos procedimentos que organizam e que
imprimem uma dinâmica nova ao funcionamento das práticas, isto é, da Prática de Ensino, do
Estágio Supervisionado, das atividades de pesquisa e do processo de elaboração do Trabalho
de Conclusão de Curso, parece mesmo ter se consolidado a partir do Projeto Pedagógico
2003. Nele reitera-se, antes de qualquer coisa, como que na intenção de “fixar um novo senso
comum”, a identidade longamente urdida na turbulência (CH.FAFIC 2003: 6):
“A rigor, desde o ano 2000 que o Curso de História da FAFIC vem esboçando seus planos anuais, num esforço de aprendizagem institucional e de reflexão sobre si mesmo, sobre o que ele é e em que poderia ou desejaria transformar-se. Para além de traumas e complexos, uma questão parece ter ficado clara para professores e alunos: trata-se de um curso de licenciatura em História”.
Para entender melhor essa virada epistemológica – se é que se pode chamá-la assim – e
prosseguir na tentativa de apreensão daquilo que o Curso de História da FAFIC fez de si
mesmo, segundo as concepções que constituiu e as práticas que organizou, talvez valha a pena
recolocar brevemente as questões principais desenvolvidas neste capítulo, até aqui. Partiu-se
da pergunta inicial sobre qual a verdadeira face, ou melhor, a face em construção do Curso de
História, sobretudo durante aqueles tempos de turbulência: intenção acadêmica ou vocação
profissional? A resposta que se ensaiou, por hipótese, é de que o Curso tem avançado na
constituição de uma Oficina de Formação Docente em (ou para o) Ensino de História, cujo
142 Quanto aos formandos do Curso de História, avaliados pela primeira vez em 2002 (não obstante a polêmica suscitada em torno do Provão), lograram obter conceito A.
225
espaço articula três eixos principais de formação: os sujeitos, os saberes e as práticas. No
propósito de compreender a constituição dessa Oficina, o presente capítulo vem procurando
investigar os significados de estágio, de pesquisa e de TCC, como práticas, circulantes no
ambiente de formação, na FAFIC.
Colocando esses significados de prática e de estágio, sobretudo, em perspectiva histórica, é
possível distinguir três etapas sucessivas no desenvolvimento do Curso. A primeira delas,
entre 1965 e 1987 (concomitante às duas primeiras concepções de prática estabelecidas por
Pimenta, 2002: 28 e 45, respectivamente), praticamente não tem expressão acadêmica,
consistindo o estágio em simples encaminhamento dos formandos às escolas para “dar aulas
práticas”. A segunda, entre 1987 e 1998 (correspondente à terceira concepção de Pimenta,
2002: 56), compreende o que foi apresentado anteriormente como o paradigma posto em
funcionamento a partir da atuação da Profª Marlúcia Cereja de Alencar. Finalmente, a terceira
etapa envolve a progressiva autonomização de uma reflexão pedagógica no Curso de História
e a lenta construção de concepções e de qualidades novas sobre a prática e o estágio.
Inaugurada com a matriz curricular de 1998, estendendo o estágio de 100 para 300 horas e
instituindo as Atividades Teórico-Práticas de Formação Geral (ATPFGs), desdobra-se no
Projeto Pedagógico 2000 (CH.FAFIC 2000), no qual se explicita uma certa percepção do
paradoxo entre ensino e pesquisa na formação profissional, para afinal consolidar-se a partir
do Projeto Pedagógico 2003 (CH.FAFIC 2003).
De fato, o Projeto Pedagógico 2003 – desdobrando-se nos projetos dos anos seguintes – é
aquele em que o Curso de História completa sua opção profissional, assumindo de forma
mais complexa uma identidade de licenciatura, e explicitando concepções e práticas na
direção do estabelecimento de um novo senso comum. E, ao fazê-lo, consolida uma
experiência instituinte na formação de professores que, se não é modelo de referência,
oferece, contudo, uma contribuição importante ao debate contemporâneo acerca das
licenciaturas, em geral, e da prática de ensino (ou das práticas), em particular. Nesse sentido,
analisando 35 trabalhos envolvendo a prática de ensino143 em Ciências Biológicas, ajustando
o foco da análise para suas formas de organização, suas finalidades e, sobretudo, as relações
que estabelecem com o contexto escolar (e também com os saberes experienciais docentes),
Ferreira, Vilela e Selles (2003: 32) levantam a hipótese de que, embora se afastando dos
143 Ver nota 1.
226
modelos que insistem na mera transmissão de conteúdos científicos e buscando alternativas à
racionalidade técnica, apesar dos avanços,
“o componente curricular em questão tem se distanciado da escola como lugar privilegiado na formação docente. Com base nessa evidência, argumentamos que a prática de ensino permanece mantendo determinados vínculos com a referida racionalidade, na medida em que pouco dialoga com os saberes experienciais na formação inicial, fato que contribui para a construção de um modelo idealizado de escola como espaço de atuação profissional”.
Da argumentação desses autores, apoiada numa vasta literatura crítica que inclui M. Tardif, C.
Gauthier, L. Shulman e B. M. Barth, entre outros, depreende-se todo o esforço em curso no
sentido de uma reconfiguração paradigmática da formação inicial docente, envolvendo,
sobretudo, a ressignificação da prática de ensino (uma vez mais, as práticas) e do estágio. A
partir de Gauthier, sustentam que os saberes produzidos na prática “são traços distintivos da
atividade pedagógica em relação às outras ocupações” (Gauthier et al. Apud Ferreira Vilela
e Selles, 2003: 36). Ainda que a formação inicial não seja exatamente a preocupação principal
de muitos desses autores, é bem verdade que a compreensão desses saberes deverá servir não
somente para subsidiar o desenvolvimento profissional, “como também oferece elementos
para interpretar os processos de formação inicial dos professores” (idem, ibidem). E um dos
espaços primeiros e mais centrais por onde eles investem no currículo da formação parece ser,
precisamente, a prática de ensino ou, dizendo de modo inverso, a “prática de ensino imprime
importantes marcas na construção de uma identidade docente” (idem: 37).
Apoiando-se também em Shulman, esses autores argumentam que a base do conhecimento
docente, desenvolvida na formação inicial, articula intensa e profundamente os domínios do
saber-ensinar e do saber-a-ensinar, num sentido muito próximo àquele atribuído às práticas
pedagógicas ou práticas curriculares, mencionados no Capítulo 5 e conforme ainda se verá,
um pouco mais adiante. “Dessa forma” – prossegue Ferreira, Vilela e Selles (2003: 37) – a
base do conhecimento docente
“associa o saber-a-ensinar ao saber-ensinar, vinculando-os não estritamente ao domínio dos conteúdos científicos, mas sim a conteúdos já selecionados e/ou adequados às finalidades educativas”.
227
Na análise que fazem sobre o material empírico apresentado em eventos acadêmico-
científicos144, os autores identificam duas posições básicas. Na primeira, os trabalhos parecem
superar a simples transmissão de conteúdos científicos, mas permanecem isolados do contexto
da ação docente, ensejando a constituição de uma visão idealizada da escola e do professor.
Os trabalhos apresentados na segunda posição assumem uma postura investigativa sobre a
escola e sobre o professor, no intuito de conhecer a realidade e solucionar problemas; no
entanto, tais problemas são, na verdade, atribuídos à escola na perspectiva da pesquisa
universitária, constituindo, por isso mesmo, formas igualmente idealizadas e distantes que
configuram uma escola por redução e um professor por falta. O trabalho de Ferreira, Vilela e
Selles (2003), de fato, sugere, a título de conclusão, três importantes questões para
interlocução, tendo em vista as análises empreendidas, nesta seção, envolvendo o Curso de
História da FAFIC.
Uma delas consiste em saber se seria possível buscar uma outra articulação entre universidade
e escola, de modo que a valorização dos saberes acadêmicos não impliquem necessariamente
numa perspectiva normativa, comprometida com as demandas da pesquisa acadêmica, que
desvalorizem, na mesma intensidade, os saberes escolares e experienciais docentes. Outra
interroga se a longa permanência do modelo da racionalidade técnica na formação de
professores, resistindo mesmo em face de novas experiências e propostas formativas,
multiplicando visões idealizadas da escola e do trabalho docente (como, por exemplo, na
defesa daquela espécie de “seguro anti-educação”, que recomenda o controle estrito das
“atividades de cunho didático-pedagógico” pelos programas de História, a fim de garantir a
associação entre “desempenho e conteúdo”, identificando, ao que parece, o desempenho a um
fator educacional e o conteúdo a uma substância historiográfica145), não estaria contribuindo
para a perpetuação do que as pesquisas vêm denominando de “choque com a realidade”, nos
primeiros tempos da vida profissional.
Finalmente, resta considerar se o currículo da formação inicial docente – nele incluído as
práticas e o estágio, obviamente – concebido como artefato teórico, e não como práxis, como
faz Pimenta (2002), configura uma perspectiva formativa que também prioriza os saberes
acadêmicos. De fato, a argumentação de Pimenta (2002) avança no sentido de conceber a
144 III, IV e V Escolas de Verão para Professores de Prática de Ensino de Biologia, Física, Química e Áreas Afins, cf. Ferreira, Vilela e Selles (2003: 31). 145 Cf p. 231-231, neste capítulo.
228
prática pedagógica (profissional) como prática social, isto é, como práxis, unidade
indissolúvel entre teoria e prática. No entanto, segundo a autora, o currículo – qualquer
currículo, como atividade que “prepara para o exercício de uma profissão” (p. 183) – é
sempre atividade teórica. Do mesmo modo, o estágio, como componente curricular, é
concebido “não como práxis, mas como atividade teórica”, isto é,
“atividade teórica de conhecimento da práxis dos professores que já estão atuando como profissionais nas escolas, assim como decorre e é determinado pela práxis dos professores do curso de formação e pela práxis dos alunos enquanto alunos, que se preparam para exercer a sua práxis enquanto professores” (p. 183),
sendo, portanto, uma espécie de focalização teórica das demandas da escola-campo e da
profissão docente. Enfim, teoria e prática, na formação, só são indissociáveis quando existe,
de fato, uma sólida formação teórica que permita enquadrar conceitualmente a realidade,
formando futuros profissionais para a prática social, ou melhor, para a práxis.
Observe-se, assim, que se o currículo é sempre teórico, apenas a atividade teórica forma. A
prática (curricular) e o estágio (curricular) representam focalizações teóricas da escola-campo
e da atividade docente. Visita-se, pois, a escola e a profissão, para pesquisar e conhecer e
adquirir “sólida formação teórica”, mas não exatamente par aprender com elas; seus saberes
(escolares, experienciais docentes) são objetos de conhecimento, não produtos imediatos da
ação dos sujeitos que, afinal, os constituem e são por eles constituídos na particularidade e na
universalidade de sujeitos da prática docente, devendo ser assumidos como eixos essenciais
da formação de novos sujeitos profissionais. Desse modo, toda a formação de professores
assume o caráter de um vasto empreendimento teórico, presidido pela instituição formadora
universitária. Disso decorre a exigência de sólida formação teórica, concretizada na medida
em que a ação prática concreta é apropriada pela dimensão teórica, materializando-se em
prática curricular, preparatória para a prática social. Nesse sentido é que se fala, efetivamente,
em indissociabilidade entre teoria e prática na formação: na perspectiva de uma produção e de
uma aquisição de conhecimentos.
É precisamente na contramão dessas concepções que adquire sentido a experiência
institucional e curricular vivida pelo Curso de História da FAFIC, nesses tempos de
turbulência (especialmente a partir da matriz de 2003 e ainda em curso no presente), como
229
uma experiência instituinte no campo da formação de professores, e é no mesmo sentido que
caminha a autonomização de sua reflexão pedagógica, base da opção profissional, da
identidade de licenciatura e do novo senso comum que busca objetivar. Tal objetivação
aponta, de fato, conforme se disse, para a perspectiva da constituição de uma Oficina de
Formação de Professores para o Ensino de História (cf. figura), definida em torno de três
dimensões axiais (sujeitos, saberes e práticas), como também para a concepção e
implementação do currículo dessa formação como uma construção estruturada
triangularmente, cujos vértices são ocupados pelos conhecimentos acadêmico-científico-
culturais, pela cultura escolar e pelos saberes experienciais docentes.
Essas novas concepções (ou esse novo senso comum) expressam-se de forma evidente na
apresentação dos Objetivos do Curso, bem como na definição do Perfil do Egresso e do
Ingressante, já no Projeto Pedagógico 2003. As citações, embora um pouco longas, são
importantes para permitir a apropriação dos sentidos subjacentes, a serviço do qual se
organiza todo o empreendimento técnico-operacional (CH.FAFIC2003: 8). Por um lado,
quanto aos objetivos expressos, o Projeto distingue, primeiro, um objetivo geral: “Formar
professores de História para a Educação Básica”. No Projeto Pedagógico 2005 (CH.FAFIC
2005: 20), este objetivo geral aparece acompanhado da consideração de que o Curso de
História
“tem avançado na construção e fixação de concepções mais permanentes acerca de sua natureza e de seus compromissos e objetivos. A consciência de que se forma professores de História vai-se consolidando entre professores e alunos, refletindo-se progressivamente na elaboração dos planos docentes das diferentes disciplinas”.
Os objetivos específicos desdobram-se, ao mesmo tempo em que detalham aquele objetivo
geral, no sentido de articular o tempo da formação com as condições futuras de exercício
profissional da docência (cf. CH.FAFIC 2003:8):
“1) Conceber a formação a partir dos seguintes eixos fundamentais: i) a pesquisa (na área e em ensino) como princípio formador; ii) a escola como instituição produtora de saberes (e não somente
como espaço de aplicação de conhecimentos externos). 2) Proporcionar oportunidades de desenvolvimento de saberes, conhecimentos,
competências e habilidades que preparem o licenciando para o exercício da docência.
230
3) Desenvolver uma cultura que favoreça o uso de novas tecnologias no exercício do ensino de História.
4) Formar professores que, além de críticos e criativos, estejam comprometidos com o destino da sociedade de que fazem parte.
5) Estimular o desenvolvimento de uma reflexão acerca da natureza e do significado da profissão docente, na perspectiva da construção do conceito de formação profissional permanente”.
Por outro lado, o Projeto Pedagógico 2003 (CH.FAFIC 2003: 8-9) posiciona-se sobre os
perfis tanto do egresso quanto do ingressante, numa leitura que procura articular tanto a
competência técnica quanto o comprometimento político:
“Senão o professor que já se espera encontrar, ao menos aquele que se espera formar deve ter um perfil que inclua os seguintes elementos: i) comprometimento com a educação pública e com os alunos provenientes
das classes desfavorecidas da sociedade; ii) que, no entanto, esteja apto a enfrentar o desafio da diversidade de
instituições escolares e suas respectivas clientelas; iii) que tenha uma sólida formação teórica e metodológica, que o habilite a
enfrentar desafios tais como: a) acompanhar e contribuir para a ampliação e o aprofundamento do
conhecimento na área de História; b) acompanhar e contribuir para a ampliação e o aprofundamento do
conhecimento na área de ensino, em particular, e da educação, em geral;
c) conceber a prática docente e a instituição escolar como esferas de produção de sabres fundamentais para o exercício da profissão;
d) construir o conceito de formação permanente, comprometendo-se com o processo contínuo de auto-aprimoramento cultural e intelectual;
iv) comprometimento com a construção da democracia e com uma prática social pautada em princípios éticos, voltados para o exercício da cidadania;
v) capacidade de realizar uma análise crítica de meios, materiais e recursos didático-pedagógicos, produzindo alternativas complementares e/ou substitutivas”.
Paralelamente a isso, a FAFIC passa por um contexto de importantes (embora nem sempre
produtivas) mudanças institucionais, a começar pela criação do UNIFLU – Centro
Universitário Fluminense, reunindo as três unidades operacionais mantidas pela Fundação
Cultural de Campos146. O regime de jornada de trabalho para o corpo docente reflui a olhos
146 Aprovado pelo CNE em 2004 e homologado pelo MEC em 2005, a FAFIC – Faculdade de Filosofia de Campos –, a FDC – Faculdade de Direito de Campos – e a FOC – Faculdade de Odontologia de Campos –
231
vistos, particularmente no Curso de História: de 12 professores atuando no Curso, no primeiro
semestre de 2004, apenas 5 não são horistas, a rigor nenhum deles dedicando-se
exclusivamente às tarefas docentes147. A média de titulação dos docentes permanece pouco
alterada, na medida em que os investimentos institucionais na qualificação nem sempre
garantem a permanência dos profissionais qualificados (pelo contrário, após a qualificação, as
perspectivas de mercado são sensivelmente ampliadas) e a reposição, pelo antigo mecanismo
da endogenia, incorpora ao Curso formadores ainda em início de carreira: dos 17 professores
atuando em 2005, 9 são especialistas ou mestrandos e 8 são mestres ou doutorandos.
A organização curricular do Curso de História não logrou ainda superar a turbulência que já
se estende por mais de meia década: a matriz de 2001 dura apenas dois anos (até 2005), a de
2003 também dois anos (prosseguindo até 2007) e a de 2005 apenas um ano, posto que em
2006 entrou em vigor uma novíssima matriz curricular. Entretanto, a análise das matrizes
vigentes a partir de 2003 revela a permanência de alguns elementos importantes, constitutivos
daquele novo senso comum, mesmo porque a reflexão pedagógica desenvolvida no Curso de
História parece fertilizar o debate envolvendo todas as demais licenciaturas da FAFIC. De
fato, em 2004, a Direção de Graduação convoca uma Comissão de Licenciaturas, reunindo
representantes dos diferentes cursos. O objetivo era compartilhar e consolidar avanços e
concepções novas, estabelecendo uma estrutura curricular unificada para todos eles, partindo
das experiências dos cursos, mas também do que dispunha a legislação, em termos de
conceitos e duração, tendo em vista a definição de conhecimentos e de atividades julgadas
necessárias à formação do professor.
O Quadro I, a seguir, revela a maneira pela qual o Curso de História procedera à leitura dos
documentos legais, traduzindo-a ao contexto de suas experiências acadêmicas e às suas
expectativas futuras, identificando um conjunto de quatro componentes curriculares coletivos,
cujas formas pedagógicas distinguem-se em conteúdos, prática, estágio e atividades (cf.
CH.FAFIC 2004: 13, reproduzido em Nunes & Andrade, 2005:86).
Quadro I – Componentes Curriculares da Licenciatura Nº COMPONENTES CURRICULARES C. H. DISTRIBUIÇÃO iniciam o complicado processo de integração de concepções, experiências e tradições distintas no interior de uma única instituição universitária – o UNIFLU – cujos resultados, embora promissores, são ainda imprevisíveis. 147 Dois estão na administração da instituição (o Diretor de Graduação e o Coordenador de Avaliação), dois estão na gestão do Curso (o Coordenador e o Sub-Coordenador) e um está parcialmente afastado para conclusão de doutoramento.
232
1 - Conteúdos de Natureza Científico–Cultural – CNCC
1800 h. Ao longo de todo o curso
2 - Prática Como Componente Curricular – PCCC
400 h. Ao longo de todo o curso
3 - Estágio Curricular Supervisionado de Ensino – ECSE
400 h. A partir da segunda metade do curso
4 - Atividades Acadêmico–Científico–Culturais - AACC
200 h. Ao longo de todo o curso
Por outro lado, a matriz de 2005 explicita a presença (pressentida, mas ainda invisível) de
diferentes tempos e espaços articulados no processo de formação, inaugurando na FAFIC a
compreensão de que, se a formação profissional impõe a organização de dispositivos que se
traduzem em momentos de saber e em momentos de fazer – que não corresponde a uma
simples relação dual, mesmo que complementar, entre teoria e prática, posto que, por analogia
com o que afirma Tardif (2000: 121) a respeito da relação entre pesquisa universitária e ofício
de professor, “ambas são portadoras e produtoras de práticas e de saberes, de teorias e de
ações” –, também é preciso considerar que esses dispositivos acontecem, por assim dizer,
tanto em espaços internos quanto externos à sala de aula e à própria instituição formadora,
compartilhando o lócus de formação em dois campos: intramuros e extra-muros. Assim, os
componentes curriculares identificados no quadro acima podem ser arranjados conforme o
Quadro II, seguinte (CH.FAFIC 2005: 7, reproduzido em Nunes & Andrade, 2005: 87):
Quadro II – Tempos e Espaços no Currículo da Licenciatura
MOMENTOS
DO SABER
(NÚCLEO ACADÊMICO)
DO FAZER
(NÚCLEO PROFISSIONAL)
1 – Disciplinas de Conteúdos de Natureza Científico-Culturais - CNCC (1800 horas)
INTRAMUROS
2 – Prática Como Componente Curricular - PCCC (400 horas)
3 – Estágio Curricular
Supervisionado de Ensino - ECSE (400 horas)
233
CAMPOS EXTRA-MUROS
4 – Atividades Acadêmico-Científico-Culturais - AACC (200 horas)
Em resumo, a organização curricular do Curso de História assume explicitamente, sobretudo
na matriz de 2005 (CH.FAFIC 2005: 36, cf. tb. Anexo IV), o entrelaçamento ou a
interpenetração de dois conjuntos fundamentais de dispositivos de formação: por um lado, o
Núcleo Acadêmico-Disciplinar, com 2162 horas de duração, e, por outro lado, o Núcleo
Profissional ou Núcleo das Práticas, com 814 horas de duração. Distinguem-se no primeiro
Núcleo três diferentes componentes e/ou dispositivos de formação: o Ciclo Básico, formado,
por variados Conteúdos de Natureza Científico-Cultural (CNCC), totalizando 378 horas; a
Formação Específica, integrada por CNCCs da área de História, em 1584 horas e 200 horas de
formação complementar, nas Atividades Acadêmico-Científico-Culturais (AACC),
correspondentes às antigas ATPs. O Núcleo Profissional ou Núcleo das Práticas, por sua vez,
reúne 414 horas de Práticas Pedagógicas, também chamadas de Prática como Componente
Curricular (PCCC), analisadas no Capítulo 1 e cujas ementas constam do Anexo V daquele
Capítulo, mais 400 horas de Estágio Curricular Supervisionado de Ensino (ECSE), sobre os
quais é preciso dizer algo, para retomar o fio condutor das análises desta seção.
O estágio genérico, sem forma definida no Curso de História até a matriz de 1987, assumiu,
desde então, a fórmula híbrida de Prática de Ensino / Estágio Supervisionado, ocupando 100
horas no currículo da formação. A proposta e a promessa de que ele se transformasse no eixo
articulador de todo o percurso formativo nunca foi, de fato, assumida e, portanto, nunca se
cumpriu. A Lei 9394/96 (LDBEN) amplia sua duração para 300 horas, mas sua referência é
apenas quantitativa (cf. nota 13). A normatização emanada do Conselho Nacional de
Educação a partir de 2001, sobretudo os Pareceres nº 9 e 28 de 2001 e as Resoluções nº 1 e 2
de 2002, sugere a particularização: por um lado, a Prática como Componente Curricular e, por
outro, o Estágio Curricular Supervisionado de Ensino, ambos com um mínimo de 400 horas
de atividades. O Curso de História da FAFIC resistiu, a princípio, a uma leitura linear que
impunha a continuidade entre o que era 100, depois virou 300, transformando-se agora em
800 horas, num currículo cuja duração total praticamente não fora alterada.
Por isso mesmo, o raciocínio inicial parece ter sido puramente quantitativo: para 100 virar 300
horas, aumenta-se a quantidade de tempo atribuída às mesmas atividades, criando-se apenas
234
algumas horas extras para atividades externas. Entretanto, o que fazer quando 300 viram 800
e as horas externas, da maneira como foram contadas até então, simplesmente ficavam de fora
da conta, denominadas agora de Atividades Acadêmico-Científico-Culturais (AACC) e a elas
reservadas 200 horas do currículo de formação? Era o problema conforme se apresentava aos
sujeitos formadores do Curso de História: quem vai perder e quanto se vai perder nesse
aumento exponencial da Prática de Ensino / Estágio Supervisionado? A discussão,
profundamente marcada pelas quantidades, atirando o problema para as disciplinas
pedagógicas do currículo, transformadas imediatamente em práticas, virou um artigo,
apresentado em 2004 ao GT de Formação de Professores no V Encontro Nacional
Perspectivas do Ensino de História148. Entretanto, como já se disse algumas vezes neste
trabalho, se os sujeitos produzem as concepções, estas, por sua vez, também constituem os
sujeitos – ou os reconstitui, na verdade.
E se, em vez de quantitativa, a questão pudesse ser reformulada em termos qualitativos? A
reflexão e o debate interno concordou, em primeiro lugar, em recontextualizar o antigo
componente Prática de Ensino / Estágio Supervisionado, desmembrando-o em Prática como
Componente Curricular (PCCC) e Estágio Curricular Supervisionado de Ensino (ECSE),
pensando os dois novos componentes separadamente, embora de forma articulada. O
componente PCCC foi então separado das disciplinas pedagógicas (preservadas no Núcleo
Acadêmico-Disciplinar do currículo), passando a assumir o comprometimento com uma
discussão que rondava, já há algum tempo, a formação, na FAFIC, embora não conseguisse
aprofundar raízes na tradição do Curso: o campo do Ensino de História. Sobre ele, Nunes &
Andrade (2005: 88) afirmam que:
“as Práticas como componentes curriculares constituem um saber que pressupõe a apreciação de determinados conteúdos, seguida de uma reflexão sobre a sua constituição no percurso da ação, tendo em vista o exercício da profissão a que se destina. No nosso caso específico, tratando-se de uma licenciatura que prepara a docência em História, essas práticas devem produzir uma reflexão e um saber voltados para a prática do magistério”.
Com a implantação da matriz curricular de 2005 (ver Anexo IV), ambos os componentes – a
PCCC e o ECSE – foram alocados no interior do Núcleo Profissional ou Núcleo das Práticas,
remetendo-se a eles tanto o trabalho desenvolvido no interior de determinadas disciplinas do
148 Cf. Nunes & Andrade, 2004.
235
Núcleo Acadêmico (sobretudo as três últimas práticas pedagógicas, conforme se depreende
de suas ementas, no Anexo V) quanto as atividades de pesquisa ou de práticas investigativas
e a produção do Trabalho de Conclusão de Curso, sob a forma de uma monografia. Uma
elaboração mais recente (ainda inédita, atualizando as discussões mais recentes no Curso) do
artigo de Nunes & Andrade (2005) apresenta para o ECSE a organização interna exibida no
Quadro III, abaixo:
Quadro III – Estágio Curricular Supervisionado de Ensino
Componentes Conteúdos Duração Desempenho I – Prática de Ensino a) Aulas regulares * 40 horas * 10 pontos II – Estágio Escolar
a) Observação de aula (24 h) b) Co-participação (4 h) c) Docência supervisionada (12 h)d) Pasta de estágio (40 h)
* 80 horas
* 10 pontos
III – TCC a) Monografia * 80 horas * 10 pontos IV – Iniciação à Docência
a) Imersão na escola ou docência comprovada b) Relatório
* 200 horas
* 10 pontos
TOTAIS
* 400 horas * Média 10 (40 : 4 = 10)
Chamados a explicar, para além da recontextualização dessas práticas nas dimensões
institucional e curricular da formação, também sua ressignificação, isto é, os novos sentidos e
as novas concepções que lhes correspondem, os documentos da Coordenação do Curso de
História remetem, por diversas vezes, a uma frase adaptada da obra da escritora e ensaísta
carioca Rosiska Darcy de Oliveira, segundo a qual o estágio profissional deve “construir
pontes entre o mundo da formação e o mundo do trabalho, estimulando um constante ir e vir
entre ambos” (ES.FAFIC 2003: 1-2, reproduzido em Nunes & Andrade, 2005: 85-86). Mas, o
que isto significa? A adaptação acima pode ser encontrada no capítulo em que Oliveira (2003)
discute os Tempos Modernos, o súbito desmoronamento dos pilares de um mundo (a família,
o emprego) e as poucas pistas disponíveis para se pensar na edificação de um novo, marcado
por um contexto em que o tempo se acelera, as distâncias se encurtam e a aprendizagem se
torna uma necessidade permanente. A argumentação da autora desenvolve-se, sobretudo, na
perspectiva estratégica de uma “reengenharia do tempo”: um tempo se vai, é preciso
apreender a lógica que organiza um outro tempo.
Segundo Oliveira (2003), o desafio da educação nesse novo tempo consiste não apenas em
fazer adquirir informações e conhecimentos, mas em quatro aprendizagens fundamentais:
aprender a pertencer (a um grupo, uma comunidade e uma equipe de trabalho), aprender a
236
aprender (em face da disponibilidade ilimitada de informações e da rápida obsolescência dos
conhecimentos), aprender a fazer (enfrentando reciclagens e permanentes requalificações
profissionais) e aprender a ser (abrindo-se a novas experiências e a novos relacionamentos).
Mais do que instituições educativas, a autora envereda pelo conceito de Jacques Delors sobre
a emergência de uma sociedade educativa, “fundada na aquisição, atualização e utilização
de conhecimentos e competências, na qual a vida pessoal e social de cada um ofereça,
constantemente, oportunidades de aprendizado e ação” (Oliveira, 2003: 97). Neste novo
tempo característico de uma sociedade educativa, é preciso buscar novas articulações ou
pontes entre a formação, o trabalho e a vida familiar e privada. Este é o contexto
argumentativo em que aquela referência ao estágio adquire seu sentido.
“Esse conceito inovador de um processo educativo que se estende ao longo da vida inteira pressupõe a multiplicação de estágios formativos de curta duração, oportunidades variadas de reciclagens e requalificação profissional, idas e vindas, entradas e saídas no mundo da educação e no mundo do trabalho. A implantação dessas pontes é imperativa para fornecer uma segunda oportunidade aos que, por alguma razão, fracassaram na escola ou, melhor dizendo, em relação aos quais a escola fracassou” (Oliveira, 2003: 99).
A ressignificação do estágio, portanto, que se parece procurar constituir na reflexão e na
gestão concreta do currículo de formação, no Curso de História, parece relacionar-se, por um
lado, à crítica a um estágio pontual, concentrado basicamente no final do Curso, quando os
licenciandos, passageiros do trem pras estrelas, estão, já, preparando o desembarque: o
Estágio Curricular Supervisionado de Ensino, enquanto tal, desdobra-se por toda a segunda
metade do Curso, tanto em atividades efetivamente planejadas e supervisionadas quanto em
imersão no mundo do trabalho, nesse caso, então, no mundo da escola. Mas, ainda mais,
quando pensado de forma articulada com a Prática como Componente Curricular, componente
iniciado desde o 1º Período do Curso, então, de fato, o estágio atravessa todo o percurso da
formação inicial. Por outro lado, a ressignificação do estágio também se articula ao
diagnóstico que se faz da população estudantil, sua origem e sua inserção social, suas
referências culturais e as expectativas que parece depositar no Curso.
Certamente, os formadores têm ciência de que a condição de alunos-trabalhadores coloca aos
licenciandos alguns desafios concretos no que se refere às decisões envolvendo tempo de
trabalho, tempo de formação e tempo de vida privada. O Projeto Pedagógico 2003
(CH.FAFIC 2003: 9) revela a ciência desse fato, afirmando que
237
“o aluno que ingressa no Curso de História da FAFIC tem deixado evidente sua origem popular. Egresso, em sua grande maioria, da escola pública, muitos chegam à Faculdade depois de inseridos no mercado de trabalho, com idade média acima daquela que se espera de um aluno que cursou a Educação Básica regularmente. Muitos, ainda, já estão no magistério da rede pública e privada, com formação em Curso Normal Médio. Nesse sentido, em nenhuma hipótese se poderia ignorar que o Curso de História da FAFIC corresponde a um curso profissional noturno que atende ao aluno trabalhador”.
Finalmente, a ressignificação do estágio parece se dar em uma dimensão epistemológica, por
assim dizer, na medida em que se opõe a uma formação concebida como implementação de
um currículo admitido como de natureza eminentemente teórica; em que mesmo o estágio faz
parte do empreendimento cujo objetivo é permitir a aquisição de uma sólida base teórica, no
sentido em que se refere Pimenta (2002). De fato, a concepção do estágio como conjunto de
atividades que implicam na construção de pontes, permitindo idas e vindas entre o mundo da
formação e o mundo do trabalho (especialmente do trabalho escolar), contempla não apenas
reflexões de natureza teórica e produção de conhecimento pelo exercício da pesquisa, como
admite também a necessidade incontornável de que o estagiário esteja em contato, ao longo de
todo o percurso de formação, com a realidade concreta do ambiente escolar e do trabalho
docente, na medida em que os saberes e as práticas ali produzidos sejam considerados em
uma dimensão formativa. De acordo com Nunes & Andrade (2005: 89),
“o estágio constitui um importante momento da licenciatura, pois possibilita ao mesmo tempo: i) a realização do momento do fazer, por excelência; e ii) a produção de um amplo e rico material empírico que servirá de base à confecção do TCC”.
Para atender a tais exigências, a organização operacional do estágio, conforme concebida e
praticada no Curso de História da FAFIC, incorpora antigas soluções, cujas contribuições
evidenciam seu caráter estratégico, numa perspectiva nitidamente proto-profissional, como
um rito de passagem, segundo afirma Monteiro (2000: 141) – incluindo observação de aula,
co-participação e docência supervisionada –, além de leituras e discussões travadas,
sobretudo, no espaço acadêmico, acrescentando-lhes, no entanto, também outros dispositivos
e outras experiências que envolvem imersão escolar, prática de registro e documentação,
atividade de planejamento, atitude de pesquisa sobre a própria prática e produção de relatórios
analíticos e críticos. Previsto para desenvolver-se em 400 horas do currículo sob supervisão
de formadores do próprio Curso, embora externamente à instituição formadora, em unidades
de ensino da Educação Básica (preferencialmente conveniadas com a FAFIC), a legislação
238
faculta ao licenciando, com experiência comprovada no magistério, reduzir até 200 horas
desse total. O Quadro III, apresentado acima, permite visualizar mais nitidamente sua
operacionalização no Curso.
Por outro lado, as práticas investigativas ou de pesquisa, organizadas em núcleos ou projetos
temáticos, vêm apresentando um grave refluxo nos últimos anos, na proporção inversa em que
se expande a pesquisa articulada às práticas de ensino, em geral, e ao estágio, em particular149.
Os quatro projetos temáticos, envolvendo aproximadamente 60 alunos e 13 bolsas de
iniciação científica, outorgadas pela FENORTE, em 2003, tornaram-se apenas 2, com 5
bolsistas, em 2004, desaparecendo totalmente em 2005. Inversamente, o antigo Projeto Final
de PE/ES transforma-se em Relatório Final de Estágio, com formato acadêmico-científico, a
partir de 2003, identificado como a monografia exigida da Licenciatura, ampliando, desse
modo, sua importância como Trabalho de Conclusão de Curso. Não se trata, obviamente, de
estimular uma perspectiva de confronto entre essas duas concepções ou estratégias de
pesquisa, atribuindo importância a uma e não a outra, no currículo da formação de
professores, mesmo porque, pode ser que a pesquisa que realmente interesse à Licenciatura
seja tal que não substitua, simplesmente, a escola e a docência por problemas atribuídos a
elas, de forma idealizada e distante, pelas demandas típicas da pesquisa universitária.
Nesse sentido, têm razão Ferreira, Vilela & Selles (2003: 39) ao refletirem sobre a pesquisa
como experiência formativa, na perspectiva da construção de saberes pedagógicos (diga-se de
passagem, não exatamente de saberes da Pedagogia, como ciência da educação, em geral,
mais uma vez no sentido de Pimenta, 2002, mas como saberes profissionais que de modo
algum devem excluir, por exemplo, os conteúdos do ensino ou, como diria Shulman, os
saberes pedagogizados, ou, ainda, como em Chervel, a disciplina escolar, híbrido de
conhecimento e pedagogia) necessários à prática docente, quando afirmam:
“Cabe questionar, no entanto, em que medida os trabalhos analisados (discutindo experiências da prática de ensino em Ciências Biológicas) e que elegem a pesquisa como uma das principais estratégias formativas, levam em
149 Embora não se deva atribuir apenas a este fator a decadência, no Curso, dessas práticas. Também a inversão da política de remuneração docente, retrocedendo basicamente ao horismo, e o escasso envolvimento do próprio corpo docente em iniciativas pessoais ou institucionais, internas ou externas, de pesquisa, articulando-se com as diferentes comunidades científicas, parecem explicar esse declínio. Nesse sentido, então, a pesquisa em ensino e a pesquisa envolvendo a prática docente, realizada no Núcleo Profissional do Curso de História, constitui-se, neste momento, como uma espécie de foco de resistência contra o prejuízo para a formação inicial docente representado pela sua completa extinção.
239
consideração as dimensões específicas do contexto escolar, particularmente as que envolvem os saberes experienciais ou práticos”.
Paralelamente, o desdobramento das preocupações com a pesquisa no Curso de História, a
despeito do definhamento dos projetos temáticos (que, ao que parece, não traduz uma
renúncia definitiva ao reconhecimento de seu lugar estratégico na formação), vem resultando
em ações e iniciativas importantes, tais como: i) a inserção de trabalhos dos formadores em
eventos nacionais150; ii) a edição, pela Coordenação do Curso, dos dois primeiros números da
revista semestral História e Ensino, em 2005 e; iii) início dos entendimentos mantidos com o
programa de História da UFF no sentido do estabelecimento de uma parceria para a
implantação da pós-graduação stricto sensu na FAFIC, com abertura de vagas para candidatos
ao mestrado e doutorado, cujo projeto, elaborado em 2004 e aprovado na CAPES em 2005,
aguarda viabilização financeira para sua efetiva implementação.
Finalmente, resta uma última palavra a respeito do Trabalho de Conclusão de Curso, tal como
se encontra previsto e praticado no Curso de História da FAFIC. Já se falou da compreensão
oficial segundo a qual o TCC é exigência apenas para o Bacharelado, tornando-se, portanto,
dispensável na Licenciatura (BRASIL, 2002: 33). Não obstante, sua presença encontra-se
garantida no currículo de forma articulada à pesquisa desenvolvida no estágio, identificando-
se ao Relatório Final de Estágio, em 2003, ou simplesmente como a monografia que os
formandos devem elaborar por ocasião da conclusão do Curso. Os alunos recebem orientações
por escrito, incorporadas às orientações gerais relativas ao estágio, através do que, no dia-a-
dia, denomina-se Kit Pedagógico (ES.FAFIC2003b; a cada semestre o Kit Pedagógico é
atualizado e entregue aos estagiários no final do penúltimo período do Curso). O Projeto
Pedagógico 2004 (CH.FAFIC 2004: 12) assim se posiciona a respeito:
“No caso específico de um Curso de Licenciatura em História, não existe a obrigatoriedade de uma monografia stricto sensu. O trabalho monográfico, voltado para a produção do saber no campo da História, é exigência estrita para o bacharelado. Entretanto, esta conclusão não proíbe a realização do TCC nas licenciaturas, mas sugere que tenha um perfil em ensino e seja focado na docência. Com este entendimento, o Curso de História resolveu inserir o TCC no interior do estágio supervisionado, produzido a partir da experiência vivenciada durante o curso e tendo por base as discussões teóricas realizadas e os dados empíricos coletados durante o estágio. Consistirá numa culminância de todo o trabalho realizado durante o curso”.
150 Dentre os quais pode-se mencionar Andrade, Ayres & Selles (2004a), Andrade Ayres & Selles (2004) e Nunes & Andrade (2004)
240
Para, enfim, concluir este capítulo – já tão maior do que se pretendeu escrevê-lo – talvez
valesse a pena uma última reflexão, considerando que não se trata de apreender as coisas, tal
como elas se passam no Curso de História da FAFIC, ou de apenas percebê-las desde o ponto
de vista da formação profissional, no interior daquilo que os próprios sujeitos formadores
identificam e objetivam como sendo seu Núcleo Profissional; tampouco se trata de descrever
mais uma técnica, expondo no detalhe a estrutura organizacional da prática de ensino ou do
estágio supervisionado, da pesquisa ou do trabalho de conclusão de curso para simplesmente
dizer o que é. O esforço principal deste capítulo consistiu basicamente na tentativa de
desentranhar concepções subjacentes e significados ocultos, os quais constituem o esboço de
uma reflexão pedagógica constituída fora do Curso de Pedagogia, embora num ambiente de
formação inicial docente, que preside e organiza todo o empreendimento técnico-operacional,
articulando-os a uma certa interpretação dos textos legais.
Nesse sentido, parece haver algo mais a ser feito além da simples constatação de um percurso
evolutivo no tempo ou do acompanhamento de um processo que edifica aleatoriamente
estruturas alternativas, para apreender o sentido de uma virada epistemológica presente na
perspectiva que deixa de pretender apenas realizar a análise (embora crítica) da escola e da
docência, para assumir a condição de que é preciso aprender criticamente com elas. Tal
condição significa não apenas recolher a colheita fértil de virtudes e progressos inerentes a
uma aprendizagem profissional com a prática, com a profissão e com a instituição escolar,
mas também reconhecer seus limites e trabalhar sobre eles e vice-versa. Assim, o que por um
lado representa a fraqueza e talvez um dos pontos mais vulneráveis da experiência concreta
que se examina – um corpo docente endogenamente constituído, composto, sobretudo, por
formadores egressos da escola e não por pesquisadores acadêmicos –, por outro lado resulta
num corpo de formadores com forte inserção na escola, favorecendo a articulação entre
conhecimentos acadêmicos, cultura escolar e saberes experienciais docentes.
E os formandos, porém? Como respondem ao que se concebe para eles, mas sem eles,
entretanto? Este capítulo se encerra, pois, com o sabor na língua de uma promessa irrealizada,
posto que, passageiros de um trem pras estrelas, dizia-se no início que seriam parte do nexo
principal da abordagem. Passageiros já preparando o desembarque, antevendo outras cidades
invisíveis na profissão, imaginando a docência: é preciso buscar um novo começo para ainda
encontrá-los, condição imperecível para que esta viagem possa ter, afinal, um final feliz.
241
“Mas nem a alma de um homem é tão estreita que não caibam nela coisas contrárias, nem eu era tão historiador quanto presumira. Não escrevi a história que esperava; a que de lá trouxe é esta.” (Machado de Assis)
De fato, o desabafo do personagem e narrador da bela história de Machado de Assis151
comporta uma tentativa de explicação, mas, sobretudo, o esboço de uma justificativa que bem
poderia orientar o balanço dessas considerações finais: o homem terá superado o escrevedor
da tese, afinal, ou já não se pode confiar no método com a mesma inabalável convicção de
sempre? O objeto, em processo de constituição metodológica, terá manifestado de alguma
forma uma espécie de moto próprio para sutilmente enredar e (re)constituir o sujeito,
apoderando-se de sua sorte e destino e alterando o anúncio inaugural que se fez ainda por
ocasião do projeto (o que exige posmodernamente supor que talvez a relação entre sujeito e
objeto não seja uma via de mão única, conducente a realidades mútua e radicalmente
excludentes)? Ou toda tese será, no princípio e no fim, essa luta entre o insondável que teima
em lhe alterar percursos e emaranhar certezas, multiplicando fins, por um lado, e, por outro, a
gaiola conceitual do método que “encontra as coisas que já sabia: aquelas que desde sempre
se colocam no seu horizonte epistêmico”152?
Difícil dizer, sobretudo quando se considera, ao final de um longo percurso de estudos e
pesquisas, que o resultado obtido não se parece de todo com o ponto de chegada que a
imaginação projetou no princípio, ainda que guarde com ele alguma relação de vizinhança. O
ponto chave para se compreender a distância entre o projeto e estas considerações finais
reside, talvez, na idéia original de reorquestração: de uma reorquestração de saberes entre a
formação inicial e a competência profissional (a exigir que as pesquisas, de alguma forma,
transpusessem a formação inicial e enveredassem pelos primeiros tempos da docência) a uma
reorquestração de saberes e práticas que ocorre no próprio tempo da formação inicial
(mediante a triangulação de fontes que impõe ressignificar dispositivos e tornar o currículo
mais do que uma construção apenas teórica). Tudo isso reflete nem tanto o naufrágio e a
flutuação desgovernada dos escombros de um projeto abandonado, mas a mudança
metodicamente justificada de um trajeto que jamais se perdeu inteiramente.
151 Machado de Assis (2006: 26-27). 152 Canevacci (2000: 117).
243
No fundo, desde sempre esteve presente na construção deste texto, de forma mais ou menos
explícita, uma espécie de contestação ao que denominamos de teoria do professor
encarregado e do modelo de formação que lhe corresponde. Tal modelo, cujo foco é o
professor em geral, deriva de uma concepção do professor como educador e do ensino como
encargo em meio a possibilidades variadas no âmbito do empreendimento complexo de
educar. O ensino, apenas – e esse apenas traz em si o sentido de uma redução e a atribuição
de uma incompletude crônica e original –, não dignifica nem é mister suficiente para
constituir identidade alguma, nem social, nem profissional. A outra face dessa teoria do
professor encarregado consiste na perspectiva que procura subordiná-lo à formação do
pesquisador, sobretudo naqueles campos científicos que possuem tradução no currículo da
escola básica. No caso que aqui se observa, então, o professor é sempre um especialista - um
professor de História – e o ensino constitui uma atividade de alto risco para esse historiador
na sala de aula na medida em que, envolvendo objetiva e subjetivamente o sujeito na rotina da
escola e da profissão, ameaça desconectá-lo do ambiente da pesquisa básica, exigindo
constantes esforços de atualização de abordagens e de conteúdos.
Essas divergências se devem, por um lado, a diferentes procedimentos teóricos e
metodológicos de investigação e de interpretação, na medida em que, deduzindo-se o
professor encarregado de outras configurações sócio-profissionais mais abrangentes,
derivadas, por sua vez, de concepções filosóficas e políticas totalizantes, já se sabe
antecipadamente o que o professor é, sabe e faz ou o que deveria ser, saber e fazer, de acordo
com uma perspectiva em que o conhecimento é objetivamente construído, além de normativo
em relação à realidade a partir da qual ele próprio se constitui. O caminho percorrido nesta
tese é bem outro. Procurando focalizar a dança, mas também os dançarinos; os agilulfos, mas
também os gurdulus; a ação, enfim, mas também seus atores – para utilizar os termos em que
o problema aparece formulado na Introdução –, optou-se por uma concepção fenomenológica
de pesquisa segundo a qual o conhecimento é sempre indissociado da experiência de vida do
sujeito – experiência subjetiva e interacionista, portanto –, sendo, por isso mesmo, sempre um
conhecimento contextualizado. Tais escolhas implicam numa perspectiva situada,
investigativa e não-normativa de pesquisa, sobretudo desautorizando deduções e
desqualificações que constituem um professor por falta153.
153 Andrade, 2002: 67.
244
Nesse sentido, concretamente, o que se procurou fazer ao longo deste texto foi, por um lado,
discutir alguns significados presentes na discussão sobre formar e, por outro lado, tentar ler
uma experiência empírica conduzida por sujeitos formadores reais, situada no espaço e no
tempo, e dela extrair elementos que pudessem contribuir para ampliar a teorização sobre a
formação de professores. O esboço dessa leitura poderia ser, enfim, resumido em sete passos
capitais.
01. O ano da graça de mil novecentos e noventa e oito parece constituir-se num marco
tanto para a FAFIC, em geral, quanto – e especialmente – para seu Curso de História:
desde então, ingressaram ambos numa fase de intenso desconforto para os consensos
vigentes, trazendo instabilidade aos significados e às práticas de formar. Tais
circunstâncias foram internamente percebidas por alguns sujeitos como características
de um tempo de turbulência (1998-2006), abalando em profundidade suas estruturas
institucionais e curriculares.
02. Um importante resultado que emerge dessa conjuntura – visível, sobretudo, a partir de
2003 – é a progressiva autonomização de uma reflexão pedagógica no Curso de
História, cada vez mais independente das idéias circulantes no ambiente do Curso de
Pedagogia, principalmente no que se refere às concepções relacionadas à formação de
professores para as disciplinas da Educação Básica em nível superior, nos cursos de
licenciatura. De fato, se por um lado a maior parte dos cursos da FAFIC sempre foi de
licenciatura, por outro lado o interesse da Pedagogia esteve sempre mais voltado para
a formação de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental, além, é claro, da
formação do bacharel pedagogo.
03. As demandas internas dos próprios formadores pelo aprimoramento teórico-prático da
formação inicial docente em História, mas também as novas diretrizes oficiais da
política nacional para a formação de professores, em confronto com o debate
acadêmico e a emergência de novos referenciais teórico-metodológicos, explicitando
posições políticas e, sobretudo, potencializando resultados de pesquisas, além de um
contexto sócio-histórico mais amplo, determinando o perfil de inserção da sociedade
brasileira em contextos internacionais globais, tudo isso junto, enfim, certamente
contribuiu para a superação daquele longo tempo de calmaria (1965-1998),
característico do curso e da instituição nas décadas passadas.
245
04. Essas novas condições e o contexto mutante que lhe resulta, portanto, parecem ter sido
capazes de engendrar concepções também novas que, por sua vez, organizam,
explicitam e objetivam progressivamente (em práticas partilhadas, em planos e
estratégias, em experiências alternativas concretas de formar) um novo senso comum
no ambiente da formação de professores, no Curso de História e na FAFIC, de modo
que se possa, talvez, perceber o adensamento de uma experiência formativa instituinte.
As concepções institucionais e curriculares fundadoras dessa experiência instituinte e
desse novo senso comum apresentam algumas qualidades essenciais que devem ser
destacadas.
05. A primeira delas consiste em reafirmar a importância dos conhecimentos acadêmico-
científico-culturais como um dos vértices fundamentais em relação aos quais se
estrutura o currículo da formação. Vértice crítico, responsável direto pela sólida base
teórica indispensável à profissão docente, ele não se extingue, no entanto, na
dimensão apenas teórica do percurso formativo, antes expressando a necessária
articulação entre saberes e práticas na produção do conhecimento. Inclui
conhecimentos pedagógicos e disciplinares específicos, além de outros situados na
interface com diversos campos de conhecimento. Não obstante a reafirmação de sua
importância, segue ganhando corpo no ambiente formativo do Curso de História a
convicção de que tais conhecimentos, embora necessários, não são de todo suficientes,
devendo ser cuidadosamente considerado o tratamento privilegiado que tem merecido
em relação a todos os demais saberes envolvidos no processo da formação docente.
06. A segunda qualidade essencial que emerge dessas concepções trata de reconhecer,
também, a importância de um outro vértice que confere centralidade à dimensão
escolar ou, como sugere a literatura, aos saberes ou à cultura escolar, na estruturação
do currículo da formação. Note-se, no entanto, que é preciso reconhecer a
especificidade (que se traduz em demandas próprias, em temporalidades auto-
referenciadas, em critérios específicos de seleção e de transformação de
conhecimentos para forjar o currículo escolar e as disciplinas que integram esse
currículo) dessa cultura, considerando com extremo cuidado os procedimentos
metodológicos mediante os quais, na relação historicamente fundada entre
universidade e escola, aquela se faz impor sobre esta, tomando-a sempre como objeto
246
de conhecimento (como construção metodológica, portanto), e não como alteridade
cuja cultura também forma. Nesse sentido, a ida do licenciando até a escola e a sua
permanência lá, pelo tempo que durar, não deve se resumir a uma atitude de
pesquisador em trabalho de campo, consistindo, antes, num percurso e numa estratégia
de aprendizagem com a escola. Do mesmo modo que é preciso interrogar-se a respeito
da possibilidade de sistematização e de objetivação desses saberes de modo a tomá-
los, efetivamente, por saberes formativos.
07. A terceira qualidade essencial cuida de admitir, finalmente, também como vértice
estruturador do currículo da formação inicial, os saberes docentes ou, mais
particularmente, os saberes experienciais docentes, saberes originários da prática
profissional e dela inseparáveis (constituindo, por isso mesmo, “a cultura docente em
ação” e verdadeiro “núcleo vital do saber docente”154), formado por todos os demais
saberes incorporados ao trabalho docente, embora ressignificados e submetidos às
certezas da experiência. Não obstante, esses saberes experienciais devem ser
sistematizados e objetivados, “a fim de se transformarem num discurso da experiência
capaz de informar ou de formar outros docentes e de fornecer uma resposta a seus
problemas”155. Nem aqui, porém, os saberes experienciais (cuja objetivação e
reconhecimento por outros grupos produtores de saberes é “condição de um novo
profissionalismo”156) devem se deixar confundir com aqueles conhecimentos
universitários: de fato, sua objetivação é sempre e necessariamente parcial. Por isso
mesmo, considerá-los na formação supõe uma aprendizagem que exige o
envolvimento do formando, uma vez mais, não com a pesquisa que vê a docência
como objeto seu, mas com a ação concreta do formador em seu lugar próprio de
trabalho.
É, mais que possível, bastante provável que essa experiência instituinte ou que esse novo
senso comum ou, ainda, que esses artigos de fé, de que falava Nietzsche, logo adiante se
transformem em velhas bananeiras cujos cachos algum fruticultor recolheu, passou adiante e
repousam hoje, como bolsas moles sobre o balcão de alguma quitanda, enquanto gira o
154 Cf. Tardif (2002: 49 e 54, respectivamente). 155 Idem, ibidem: 52. 156 Idem, ibidem: 54.
247
ponteiro no universo dourado157. Afinal, a arte de cultivar bananas, o silencioso
envelhecimento em água e açúcares das bananas que apodrecem, mas também o ensino e a
formação de professores, são todos históricos. O instituinte em sua novidade presente vale não
tanto pelo que é quanto pelo que promete e inspira e abala uniformidades e consensos. No alto
de suas criações incertas, fincam-se os mirantes do poeta
donde se vê o mar nosso horizonte
157 Gullar, 1980:21.
248
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CT.FAFIC 2004. Comissão de Legislação e Normas. Aos senhores conselheiros. 1 p. [Referência: Impresso] CT.FAFIC 2004a. Comissão de Legislação e Normas. Questão nº 1: Normas para definir a lotação do professor na FAFIC. 2 P. [Referência: Impresso] CT.FAFIC 2004b. Comissão de Legislação e Normas. Questão nº 2: Normas para regulamentar carga-horária dos professores da FAFIC. 2 p. [Referência: Impresso] CT.FAFIC 2004c. Comissão de Legislação e Normas. Questão nº 3: Sugestão de normas para distribuição de disciplinas nas coordenações dos cursos. 3 p. [Referência: Impresso] CT.FAFIC 2004d. Comissão de Legislação e Normas. Questão nº 4: Normas para regulamentação das licenças na FAFIC. 6 p. [Referência: Impresso] CT.FAFIC 2004e. Comissão de Legislação e Normas. Questão nº 5: Normas para regular as eleições de coordenações da FAFIC. 3 p. [Referência: Impresso] CT.FAFIC 2004f. Neila Ferraz Moreira Nunes. Estudo sobre a jornada de trabalho para os docentes da FAFIC. 6 p. [Referência: Impresso] CT.FAFIC 2004g. Coordenação de História. Questionamentos a respeito das definições acadêmico-administrativas para 2004. 4 p. [Referência: Impresso] III – ESTÁGIO SUPERVISIONADO ES.FAFIC 1998. Departamento de História. Projeto para avaliação da carga horária de PE/ES 1998. 2 p. [Referência: Anexo a ES.FAFIC 1999] ES.FAFIC 1999. Departamento de História. Projeto pedagógico para o Estágio Supervisionado no Departamento de História da Faculdade de Filosofia de Campos para o ano letivo de 1999 (com anexos). 21 p. [Referência: Arquivo computador, impresso] ES.FAFIC 1999a. Departamento de História. Projeto pedagógico para o Estágio Supervisionado no Departamento de História da Faculdade de Filosofia de Campos para o ano letivo de 1999 (versão resumida). 9 p. [Referência: Arquivo computador] ES.FAFIC 1999b. Departamento de História. Projeto pedagógico para 1999 (com descrição de situações anteriores). 7 p. [Referência: impresso] ES.FAFIC 1999c. Departamento de História. Projeto de Prática de Ensino / Estágio Supervisionado. 8 p. [Referência: Anexo 02 a CH.FAFIC 2000] ES.FAFIC 1999d. Departamento de História. Roteiro de observação institucional. 1 p. [Referência: Anexo a ES.FAFIC 1999] ES.FAFIC 1999e. Departamento de História. Roteiro para o projeto final. 1 p. [Referência: Anexo a ES.FAFIC 1999]
262
ES.FAFIC 2001. Marlúcia Cereja de Alencar. Prática de Ensino / Estágio Supervisionado: diretrizes gerais (versão preliminar). 20 p. [Referência: Impresso] ES.FAFIC 2003. Coordenação de História. Projeto de práticas, estágio e atividades curriculares (com anexos). 9 p. [Referência: impresso] ES.FAFIC 2003a. Coordenação de História. Informações gerais sobre o projeto de estágio. 1 p. [Referência: Arquivo computador] ES.FAFIC 2003b. Coordenação de História. Kit pedagógico 2003. 14 p. [Referência: impresso] ES.FAFIC 2004. Coordenação de História. O estágio curricular: realidade e perspectivas. 2 p. [Referência: Arquivo computador, impresso] ES.FAFIC 2004a. Direção de Graduação. Estágio curricular obrigatório. 4 p. [Referência: impresso] ES.FAFIC 2004b. Direção de Graduação. Carga horária e formas de operacionalização do estágio curricular obrigatório. 3 p. [Referência: impresso] ES.FAFIC 2004c. Coordenação de História. Estágio Supervisionado. 2 p. [Referência: impresso] ES.FAFIC 2004d. Coordenação de História. Kit pedagógico 2004. 15 p. [Referência: impresso] ES.FAFIC 2004e. Coordenação de Pedagogia. Estágio Supervisionado de Administração Escolar. 5 p. [Referência: Impresso] ES.FAFIC 2004f. Coordenação de Matemática. Prática de Ensino e Estágio Supervisionado. 6 p. [Referência: Impresso] ES.FAFIC 2004g. Coordenação de Letras. Adequação da matriz curricular de 2001 às exigências das resoluções 01 e 02 de 2002 quanto ao cumprimento de mil horas relativas a estágio, prática curricular e atividades culturais diversas. 2 p. [Referência: Impresso] ES.FAFIC 2005. Coordenação de História. Kit pedagógico 2005. 14 p. [Referência: Arquivo computador, impresso] IV – FORMATAÇÃO DE MATRIZES (FM) FM.FAFIC 2004. Coordenação de História. Que licenciatura queremos na FAFIC? (com anexos). 6 p. [Referência: Impresso] FM.FAFIC 2004a. Coordenação de História. Perguntas que não querem calar: como ficam as licenciaturas na FAFIC? 1 p. [Referência: Impresso]
263
FM.FAFIC 2004b. Coordenação de História. Currículo, práticas e matriz curricular. 2 p. [Referência: Manuscrito] FM.FAFIC 2004c. Coordenação de História. Discutir a proposta de matriz curricular para o Curso de História. 1 p. [Referência: Impresso] FM.FAFIC 2004d. Coordenação de História. Planejamento curricular 2004/2. 3 p. [Referência: Impresso] FM.FAFIC 2004e. Coordenação de História. Reunião Comissão Licenciaturas. 1 p. [Referência: Manuscrito] FM.FAFIC 2004f. Coordenação de Letras. Proposta de matriz curricular. 2 p. [Referência: Impresso] FM.FAFIC 2004g. Coordenação de História. Dimensão da matriz x dimensão do ano letivo. 2 p. [Referência: Impresso] FM.FAFIC 2005. Coordenação de História. Redução do tempo de duração das licenciaturas: considerações. 4 p. [Referência: Impresso] V – HISTÓRIA DAS MATRIZES (HM) HM.FAFIC 2004. Coordenação de História. Anotações sobre a história das matrizes curriculares do Curso de História (com anexos). 24 p. [Referência: Impresso] VI – TCC / MONOGRAFIA MN.FAFIC 2004. Coordenação de História. Estudos sobre TCC ou monografia (com anexo). 6 p. [Referência: impresso] MN.FAFIC 2004a. Coordenação de História. Estudo sobre TCC ou monografia. 2 p. [Referência: impresso] MN.FAFIC 2004b. Coordenação de História. Licenciatura em História: o relatório final como monografia. 4 p. [Referência: impresso] VII – PRÁTICAS CURRICULARES PC.FAFIC 2004. Coordenação de História. Práticas como componente curricular. 3 p. [Referência: impresso] PC.FAFIC 2004a. Coordenação de História. Práticas como componente curricular: formatação e desenvolvimento. 2 p. [Referência: impresso] PC.FAFIC 2004b. Coordenação de Matemática. Sugestões para a prática pedagógica como componente curricular. 1 p. [Referência: impresso]
264
PC.FAFIC 2005. Coordenação de História. Planejamento de práticas curriculares e disciplinas pedagógicas. 1 p. [Referência: Arquivo computador, impresso] PC.FAFIC 2005a. Coordenação de História. Disciplinas e práticas pedagógicas – conteúdos (Reflexões para a reunião). 4 p. [Referência: impresso] VIII – PRÁTICA DE ENSINO PE.FAFIC 1997. Departamento de História. Programa de Prática de Ensino – 1997. 2 p. [Referência: Anexo III] PE.FAFIC 1999. Departamento de História. Programa de Prática de Ensino – 1999. 1 p. [Referência: Arquivo computador] PE.FAFIC 2001. Coordenação de História. Plano docente 2001. 2 p. [Referência: Arquivo computador, impresso] PE.FAFIC 2003. Coordenação de História. Plano docente 2003. 1 p. [Referência: Arquivo computador] PE.FAFIC 2005. Coordenação de História. Plano docente 2005. 2 p. [Referência: Arquivo computador, impresso] IX – PESQUISA PQ.FAFIC 2000. Coordenação de História. Proposta de organização dos núcleos de pesquisa (vários documentos). 11 p. [Referência: Arquivo computador, impresso] PQ.FAFIC 2000a. Coordenação de História. Proposta de organização dos núcleos de pesquisa. 4 p. [Referência: Anexo 03 a CH.FAFIC 2000] PQ.FAFIC 2000b. Coordenação de História. Relatório das práticas investigativas. 1 p. [Referência: Documento 04 em PQ.FAFIC 2000] PQ.FAFIC 2001. Coordenação de História. O professor e o ensino de História em Campos dos Goytacazes (Questionário para avaliação institucional). 2 p. [Referência: documento 06 em PQ.FAFIC 2000] PQ.FAFIC 2001a. Coordenação de História. O professor e o ensino de História em Campos dos Goytacazes (Roteiro para reunião de 27/06/2001). 1 p. [Referência: Documento 07 em PQ.FAFIC 2000] PQ.FAFIC 2001b. Coordenação de História. Ofício à Profª Vera Passos (Assunto: Projeto de pesquisa do Curso de História). 1 p. [Referência: Documento 08 em PQ.FAFIC 2000] PQ.FAFIC 2004. Coordenação de História. Algumas idéias para pensar um projeto de pesquisa para o Curso de História. 2 p. [Referência: impresso]
265
PQ.FAFIC 2004a. Coordenação de História. Pensando o projeto de pesquisa. 7 p. [Referência: impresso] PQ.FAFIC 2005. Coordenação de História. Balanço geral das pesquisas implementadas no Curso de História da FAFIC (2000-2004). 1 p. [Referência: Caderno f. 5] LEGENDA
1) Título da fonte, com 2 letras (numerado em algarismos romanos) • Ex: ES, PE, PC, PQ, MN, CH...
2) Origem e ano • Ex: FAFIC 2000, FAFIC 2001, FAFIC 2002 etc...
3) Setor • Ex: Coordenação de História, Direção de Graduação etc...
4) Título (em negrito) • Ex: Projeto pedagógico 2005, Estudos sobre monografia ou TCC etc...
5) Nº de páginas
6) Referência ou local onde se encontra o documento • Ex: Arquivo computador, 18/02/99, Caderno, Pasta amarela Coordenação etc...
266
ANEXO I FAFIC – Curso de História
Inscrições no Vestibular (1965 / 2005) e Formandos (1968 / 2005)
Ano Inscritos Formandos Ano Inscritos Formandos 1965 24 - 1990 33 27 1966 9 - 1991 61 25 1967 19 - 1992 48 17 1968 22 6 1993 64 17 1969 20 4 1994 46 25 1970 15 7 1995 98 19 1971 74 (1) 12 1996 77 23 1972 221 (1) 5 1997 30 (2) 20 1973 62 13 1998 80 24 1974 50 14 1999 100 20 1975 67 15 2000 81 15 1976 57 29 2001-1 (3) 171 1977 37 31 2001-2 20 24 1978 31 27 2002-1 53 1979 38 25 2002-2 23 40 1980 40 14 2003-1 61 1981 69 22 2003-2 92 49 1982 81 20 2004-1 80 1983 109 (2) 26 2004-2 98 (2) 35 1984 75 20 2005-1 48 14 (5) 1985 61 24 2005-2 30 (4) 1986 62 17 1987 107 24 Total 2908 764 1988 83 7 1989 81 (2) 8
Fonte: Secretaria da FAFIC. Notas: (1) Inscrições no Ciclo Básico, em História e Pedagogia. (2) Inscrições em dois vestibulares. (3) Início do ingresso em regime semestral. (4) Inscrições em cinco vestibulares. (5) Primeira turma de formandos em regime semestral.
268
ANEXO II PRIMEIRA TURMA DO CURSO DE HISTÓRIA DA FAFIC
Matriz curricular e corpo docente (1965/1968)
SÉRIES / ANOS 1ª 2ª 3ª 4ª
Nº
COMPOSIÇÃO
DISCIPLINAS
1965 1966 1967 1968
TOTAL
PROFESSOR RESPONSÁVEL
01 Específica Introdução aos Estudos Históricos 60 60 Conceição de Maria Sardinha Azevedo 02 Específica História Antiga 120 120 Conceição de Maria Sardinha Azevedo 03 Específica História Medieval 60 60 Nelly Maria Zanny Shimmelfeng 04 Específica História Moderna 90 90 Olga Aziz Cretton 05 Específica História Contemporânea 120 120 Elmar Rodrigues Martins 06 Específica História da América 90 90 Irene Acquaviva de Carvalho 07 Específica História do Brasil I / II 90 90 180 Diva dos Santos Abreu 08 Específica História das Idéias Políticas e Sociais 60 60 Antônio de Castro Mayer09 Optativa História da Arte 60 60 Renato Marion Martins de Aquino 10 Optativa História da Arte no Brasil 60 60 Renato Marion Martins de Aquino 11 Fronteira Geografia 60 60 Fernando de Andrade 12 Fronteira Sociologia 60 60 Fernando de Andrade13 Optativa Língua Portuguesa 90 90 Ana Lúcia Henriques14 Optativa Literatura Brasileira 90 90 Eliane Macabu 15 Pedagógica Administração Escolar 30 30 Celita Tavares Pessanha 16 Pedagógica Psicologia Educacional 60 60 Maria Clara Chagas Martins 17 Pedagógica Didática Geral 60 60 Ebenézer Soares Ferreira
TOTAL 390 240 360 360 1350 Prática Prática de Ensino 100 Conceição de Maria Sardinha Azevedo
FONTE: FAFIC. Setor de Pessoal. Relação nominal e ficha individual dos professores da FAFIC (1971). NUNES, N.F.M. Anotações sobre a história das matrizes curriculares do Curso de História (01/07/04)158. VENANCIO, M.T.S. Quase lembranças: um depoimento sobre o Curso de História (2005).
158 A Profª Neila Ferraz aceitou gentilmente conferir, de memória, as informações contidas nesta primeira matriz, na qual ela própria se graduou, na FAFIC.
269
ANEXO III FAFIC - Curso de História
Tempos e espaços na organização curricular para a formação docente TEMPOS
(I) MOMENTO DO SABER: Núcleo Acadêmico (II) MOMENTO DO FAZER: Núcleo Profissional
(A)
CAMPO INTRA-MUROS
1) DISCIPLINAS de Conteúdo Acadêmico-Científico-Cultural a) Tempo:
• Físico: i) total = 1800 horas; ii) núcleos: básico (1ª ½ do Curso) e específico (ao longo de todo o Curso);
• Pedagógico: i) a programação das disciplinas do currículo.
b) Espaço: • Físico: i) a instituição formadora e a sala de
aula; • Pedagógico: i) formato disciplinar
tradicional, com professores e quadro de horários; ii) conhecimentos produzidos e pesquisa na área específica e no campo educacional.
2) PRÁTICA como Componente Curricular a) Tempo;
• Físico: i) total = 400 horas; ii) ao longo de todo o Curso; • Pedagógico: i) programação das práticas curriculares; ii)
mobilização de conteúdos em ensino. b) Espaço:
• Físico: i) a instituição formadora, o laboratório e a sala de aula;
• Pedagógico: i) com professores e quadro de horários, mas dinâmica diferente da aula tradicional; ii) conhecimento produzido e pesquisa em ensino e sobre a prática.
E
SPA
ÇO
S
(B) CAMPO EXTRA- MUROS
4) ATIVIDADES Acadêmico-Científico-Culturais a) Tempo:
• Físico: i) total = 200 horas; ii) ao longo de todo o Curso;
• Pedagógico: i) oportunidades de participação / inserção em atividades, independente do tempo acadêmico;
b) Espaço: • Físico: i) a sociedade, associações, pesquisas
etc; • Pedagógico: i) congressos, seminários,
exposições, visitas, eventos, pesquisas em andamento...
3) ESTÁGIO Curricular Supervisionado de Ensino a) Tempo:
• Físico: i) total = 400 horas (batimento de até 200 horas por docência); ii) 2ª ½ do Curso;
• Pedagógico: i) rito de passagem; ii) antecipação controlada e supervisionada do trabalho profissional.
b) Espaço: • Físico: i) pontes entre o mundo da formação (a
instituição formadora) e o mundo do trabalho (a escola); ii) TCC na instituição formadora, com foco na escola;
• Pedagógico: i) estrutura mais livre: projeto e coordenação próprios; ii) observação, co-participação e docência supervisionada; iii) TCC como síntese final da formação.
FONTE: FAFIC – Coordenação de História. Matriz curricular 2005.
270
ANEXO IV
FAFIC – Coordenação de História – Matriz curricular 2005
(18 semanas / 8 períodos / 2976 horas)
Componentes // Períodos 1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º Total
1. NÚCLEO ACADÊMICO (1962 horas) 1.1. CICLO BÁSICO DE FORMAÇÃO
1 Antropologia Cultural 54 542 Didática 54 543 Estrutura e Funcionamento da Educação Básica 54 544 Filosofia 54 545 Língua Portuguesa 54 546 Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento 54 547 Sociologia 54 54
Total de aulas do Ciclo Básico 108 108 108 54 378 Total de aulas semanais 6 6 6 3 21 1.2. FORMAÇÃO ESPECÍFICA
1 Introdução aos Estudos Históricos 72 722 História Antiga I/II 72 72 1443 História Medieval I/II 72 72 1444 História Moderna I/II 72 72 1445 História Contemporânea I/II 72 72 1446 História do Brasil I/II/III/IV 72 72 72 72 2887 História da América I/II 72 72 1448 História da África 72 729 História do Pensamento Econômico 72 72
10 História do Pensamento Político 72 7211 Geografia 72 7212 Historiografia e Pensamento Social Brasileiro 72 7213 Teorias Sociais Contemporâneas e História 72 7214 História da Arte 72 72 Total de aulas de Formação Específica 144 144 144 216 288 216 216 216 1584 Total de aulas semanais 8 8 8 12 16 12 12 12 88 Total geral do Núcleo Acadêmico 252 252 252 270 288 216 216 216 1962 Total de aulas semanais do Núcleo Acadêmico 14 14 14 15 16 12 12 12 109 2. NÚCLEO PROFISSIONAL (1014 horas) 2.1. PRÁTICA CURRICULAR
1 Seminário Temático I: Oficina de Ensino 54 542 Seminário Temático II: Oficina de Ensino de História 54 543 Seminário Temático III: Metodologia e Produção de Saberes 54 544 Seminário Temático IV: Materiais Didáticos 54 545 Seminário Temático V: História Local e Ensino 36 366 Seminário Temático VI: Laboratório de Ensino de História I 54 547 Seminário Temático VII: Laboratório de Ensino de História II 54 548 Seminário Temático VIII: Laboratório de Ensino de História III 54 54
Total de aulas de Prática Curricular 54 54 54 54 36 54 54 54 414 Total de aulas semanais 3 3 3 3 2 3 3 3 23 2.2. ESTÁGIO CURRICULAR SUPERVISIONADO DE ENSINO
1 Atuação em instituições de ensino básico 100 100 100 100 100 Carga horária geral de Estágio 400 2.3. ATIVIDADES ACADÊMICO-CIENTÍFICO-CULTURAIS 1 Cursos, Congressos, Eventos , Pesquisas, etc. 200 200
Carga Horária geral de atividades 200 Total Geral do Núcleo Profissional 54 54 54 54 136 154 154 354 1.014 Total de aulas semanais 3 3 3 3 2 3 3 3 23TOTAL GERAL DA MATRIZ CURRICULAR 306 306 306 324 424 370 370 570 2976TOTAL DE AULAS SEMANAIS 17 17 17 18 18 15 15 15 132Obs: 1) O Laboratório de Ensino de História I contemplará os conteúdos de História Antiga e Medieval; 2) O Laboratório de Ensino II os conteúdos de História Moderna e Contemporânea; 3) Laboratório de ensino III desenvolverá conteúdos de História do Brasil, América e África; 4) O TCC tem perfil pedagógico e será produzido a partir do estágio.
271
ANEXO V
FAFIC – Coordenação de História
Matriz 2005 – Ementas das Práticas Curriculares
PRÁTICAS 1 Prática Pedagógica I (1º Período): Oficina de Ensino
A disciplina foi concebida a partir da necessidade da criação de um espaço para reflexão sobre sujeitos, saberes e práticas no ensino. Tem como foco a formação de professores, a prática pedagógica e o trabalho docente. Interessa-se também pelas discussões do campo do currículo, buscando explicitar articulações entre conhecimento científico e cotidiano na produção da cultura escolar.
2 Prática Pedagógica II (2º Período): Oficina de Ensino de História Focaliza as discussões no campo do currículo de História. Avalia propostas alternativas tais como a História espacial-cronológica, a História integrada e a História temática. Examina particularmente os PCN de História para Ensino Fundamental e Médio. Interessa-se também pelo livro didático de História, além de outros meios e processos de transposição didática na área.
3 Prática Pedagógica (3º Período): Metodologia e Produção de saberes A vida de estudos no ensino superior: a aula e os trabalhos domiciliares. Orientações para a realização de seminários e trabalhos acadêmicos individuais ou em grupos. Orientações para a produção de trabalhos acadêmicos: monografias, artigos, resenhas, papers, fichamentos, resumos etc. Orientações, enfim, para a elaboração de projetos: científicos, pedagógicos, de ensino etc.
4 Prática Pedagógica IV (4º Período): Materiais Didáticos Análise crítica e produção de diferentes materiais didáticos. A organização da sala de aula de História. Diferentes linguagens no ensino da História: o filme, a mídia, a imagem etc. O uso do documento no ensino de História. O livro didático e paradidático de História. Elaboração de atividades, de projeto e de avaliação em História.
5 Prática Pedagógica V (5º Período): História Local e Ensino A História pelos arredores da escola. A História local e a História regional no ensino da História. Montagem de projetos (pedagógicos e/ou de iniciação científica) em História regional e História local.
6 Prática Pedagógica VI (6º Período): Laboratório de Ensino de História I Discussão historiográfica e, sobretudo, escolar ou didática, de temas específicos de História Antiga e História Medieval. Produção de materiais didáticos de História Antiga e Medieval..
7 Prática Pedagógica VII (7º Período): Laboratório de Ensino de História II Discussão historiográfica e, sobretudo, escolar ou didática, de temas específicos de História Moderna e de História Contemporânea. Produção de materiais didáticos de História Moderna e Contemporânea.
8 Prática Pedagógica VIII (8º Período): Laboratório de Ensino de História III Discussão historiográfica e, sobretudo, escolar ou didática, de temas específicos de História do Brasil, da América e da África. Produção de materiais didáticos de História do Brasil, da América e da África.
272
ANEXO VI
Relatórios Finais de Estágio – Turma 2003
Nº Nome Título Pp01 Alcemir Terra Teorias e práticas utilizadas pelo professor
no exercício de sua profissão 23
02 Aline da Silva Ferreira Chagas Relatório final de prática de ensino / estágio supervisionado
25
03 Ana Cristina Thomaz Cabral A prática docente no CE Matias Neto 29 04 Ana Leiva Freitas Gusmão Ensino de História: um desafio à práxis
docente 38
05 Ângela Maria de Souza Vieira A democracia, prática constante 31 06 Aurineri Rodrigues de Souza Leite Olhares e reflexões: desafios docentes 22 07 Bernadete Paes Pessanha Almeida Relatório final de estágio 14 08 Carina da Silva Flavio Novas descobertas e novas experiências 20 09 Carla Aparecida de Souza Sanches Reflexos de uma escola: relatório de
estágio supervisionado 23
10 Carla Viviane Almeida Azevedo Gebara
Relatório final de prática de ensino / estágio supervisionado
19
11 Celimar Pereira Paes O ensinar e o aprender História no CIEP 42 12 Deybe Poliana Ribeiro de Oliveira O processo de mudança pedagógica na
escola do nosso tempo 18
13 Dilcéa de Araújo Vieira Smiderle Experiência no CE José do Patrocínio e no Centro Educacional Palavra de Vida
34
14 Elizabete Gonçalves Nogueira Sarlos
Estágio supervisionado 27
15 Emanuela Tavares Braga Trindade A prática de ensino de História 43 16 Éster Miranda das Chagas de Souza Estágio Supervisionado 29 17 Flávia Barreira Costa Relatório final de estágio 45 18 Gisele Gomes Alves Relatório final de prática de ensino /
estágio supervisionado 29
19 Gordiano Henrique da Penha O colégio municipal Eloy Ornelas e a outra face das escolas municipais de Campos dos Goytacazes
47
20 Humberto Alves Tougeiro Praticando o ensinar: uma reflexão sobre a teoria a partir da prática
27
21 Jailse Vasconcelos Prática de ensino: uma experiência no CE José Francisco de Sales
72
22 Josimaria Ribeiro da Silva Produção de saberes na prática escolar 13 23 Keli Martins Caldas Pensar o magistério e a sua prática nas
instituições de meu estágio 39
24 Kissila Calil Ramos Relatório de conclusão do estágio supervisionado
44
25 Kíssila Pereira Costa História e educação 25 26 Lívia da Silva Nunes Barbosa Uma reflexão sobre a prática de ensino de
História no Ce Dr. Thiers Cardoso 20
27 Lúcia Helena Paula Construir docência, viver experiência 21 28 Luciana Silva Brandão Praticando os conhecimentos aprendidos 24
273
no espaço acadêmico 29 Magali Ferreira de Oliveira Paes Educação, verdadeira herança 22 30 Marcele Xavier Torres O ensino de História na escola pública:
entre a teoria transformadora e a prática tradicional
27
31 Maria José Frazão Manhães Prática docente: saberes em História no CE Dr. Thiers Cardoso
23
32 Mariana Machado Tavares O ato de construir e construir-se no fazer da História
23
33 Marta da Silva Gomes Relatório científico 44 34 Marta Regina Lourenço Monteiro Relatório de prática de ensino 44 35 Michele Marques Monteiro A prática do ensino de História 59 36 Nilza Paes de Menezes O ensino de História 38 37 Nize Pereira Santos Pedra Ensino de História numa perspectiva
dialética: o lugar da docência e o papel do ensino / aprendizagem
25
38 Norma Elizabeth Modesto A prática de ensino e a História 34 39 Patrícia Freires Alvarenga A difícil arte de lecionar 40 40 Paulo Roberto Alves Não podemos mudar os ventos, mas
podemos orientar as velas 37
41 Paulo Siqueira Guedes Relatório final de estágio 39 42 Roberta Ferreira Tavares Relatório final de prática de ensino 52 43 Rodrigo Caldas Relatório final estágio 2003 24 44 Rosimary da Silva Corrêa Pereira Avaliando o momento da produção de
saberes 75
45 Salvadora Ribeiro Sardinha Projeto pedagógico “Leitura na escola” 13 46 Sandra de Souza Azevedo Relatório final de prática de ensino 27 47 Sandro Dimas Silva Costa Relatório final de estágio 8 48 Vanessa P. Pessanha Costa Relatório final de estágio 8 49 Walkíria Barcelos Maciel Relatório final de estágio 2003 13
274
ANEXO VII
Relatórios Finais de Estágio – Turma 2004
Nº Nome Título Pp01 Adilma Gomes Vicente A formação do professor e sua prática de
ensino 34
02 Ana Cláudia Samuel Machado Ensinar e aprender História, um exercício de cidadania
34
03 André Luis da Costa de Oliveira Escola, dominação e docência: elementos constitutivos de uma prática reflexiva sobre o processo educativo
52
04 Andréa Siqueira da Silva Uma aprendizagem contínua 19 05 Beatriz Elena Lopes da Silva O ensinar e o aprender como primazia na
história do CEAT 58
06 Carlos Bruno Pinto Faria Relatório final de estágio 23 07 Cintia de Oliveira Poubel A construção do Ensino de História no
Brasil 35
08 Daniela Pessanha da Silva A árdua arte de lecionar História 32 09 Elbia Ribeiro Lemos Gomes Os recursos metodológicos na prática
escolar 38
10 Eleonora Bravo Gonçalves A Prática de Ensino e as influências do entorno
61
11 Elisabeth dos Santos Silva Monteiro
Uma viagem ao passado através da História
31
12 Gabriela de Oliveira Gonçalves Prática de Ensino: um trabalho no CEFA 29 13 Iliara Sampaio Santos Ribeiro Um olhar sobre a escola 36 14 Jaqueline Santos Carvalho Relatório de Estágio Supervisionado 27 15 Jerusa de Carvalho Ribeiro Oliveira Relatório final de Prática de Ensino 44 16 Kátia Aparecida Rangel Pinto Os limites da educação 24 17 Lucia Helena Monteiro de Andrade
Silva O ensino-aprendizagem na difícil tarefa de ser professor
71
18 Luciana Pereira Pessanha Silva Vivenciando os saberes em História e a prática em sala de aula no CIEP 463 “João Borges Barreto”
16
19 Luis Eduardo de Oliveira Cardoso Uma nova escola para uma nova realidade 32 20 Marcela Nogueira Toledo Por uma educação contextualizada 24 21 Maria José dos Santos de Oliveira Trabalhos desenvolvidos em Prática de
Ensino e Estágio Supervisionado 27
22 Matheus Vidal Cunha A educação associada à tecnologia, informação e comunicação
48
23 Milene da Silva Rodrigues O aprender e o ensinar História no Colégio Estadual Ana Nunes Viana
57
24 Mônica Valéria do Couto Pessanha História: educando para desenvolver e conscientizar
42
25 Norma Beatriz das Neves Gomes Experiências e reflexões no ensinar e no aprender História em escolas públicas
31
26 Rachel Muniz Tancredi Avaliação: processo construtivo do ensino aprendizagem
67
275
27 Raquel Fernandez Tavares O Ensino de História, a Prática de Ensino e o Estágio Supervisionado: desigualdade social, mecanismo de exclusão e alienação
17
28 Silvia Ferreira da Silva A difícil arte de lecionar 21 29 Silvia Maria Dias Pinto da Penha Aprender e ensinar e ensinar e aprender 64 30 Sofia Pereira Palmeira Docência: um verdadeiro quebra-cabeça
(A dificuldade de atuar na 5ª série do fundamental)
42
31 Tânia Nogueira de Aquino Santos Inovar para bem praticar 23 32 Tatiane Carvalho Peçanha
Guimarães Os caminhos da História no processo ensino-aprendizagem
24
33 Thalita Dias de Souza Minha realidade como professora 21 34 Verônica Maria Ramos Ribeiro A responsabilidade de ser professor de
História 19
276
ANEXO VIII
Entrevista com os Formadores de Professores
I – Identificação:
01. Nome
02. Formação
a) época
b) local
03. Experiência
a) na formação
b) na educação básica
c) outras
II – Percepções:
01. Como é trabalhar na FAFIC, em geral, e na Coordenação de História, em particular?
02. Como sente a relação com os colegas?
03. Como sente ou estabelece a relação com os alunos?
04. Como se situa na matriz curricular do curso de História?
05. Como vê o trabalho com o ensino da História lá fora, na Educação Básica?
06. Como resolve, em suas aulas, a questão da relação entre a exposição e o uso de textos
e recursos?
III – Concepções:
01. No seu modo de ver, o que é que o curso de História da FAFIC está formando?
02. O que significa formar e como deve ser a formação ideal?
03. Que conhecimentos são necessários aos formandos e aos formados?
04. E os formadores? Que conhecimentos devem dominar?
05. Na sua concepção, qual é a relação entre os conhecimentos que circulam na formação
e os que circulam no ensino escolar?
06. Para você, qual é a importância, na formação:
a) da aula
b) da prática e do estágio
c) da pesquisa (qual pesquisa?)
d) dos conhecimentos pedagógicos
e) dos conhecimentos específicos
Campos dos Goytacazes, janeiro de 2005.
277
ANEXO IX
Programa de Prática de Ensino – 1997
Fundação Cultural de Campos FACULDADE DE FILOSOFIA DE CAMPOS PROGRAMA DE PRÁTICA DE ENSINO CURSO DE HISTÓRIA SÉRIE: 4ª ANO LETIVO: 1997
I – PROGRAMA
Unidade I – As linhas pedagógicas e as linhas teóricas da História
1 – As diversas linhas pedagógicas
2 – As linhas teóricas como mediadoras de uma prática pedagógica progressista
Unidade II – Metodologia
1 – Análise crítica da memória educativa
2 – Análise crítica da prática educativa
3 – O fazer em sala de aula
Unidade III – Recursos
1 – O livro didático de História e Geografia
2 – O livro para-didático de História e Geografia
3 – O uso do vídeo / jornal / revistas / propagandas – a mídia e a sala de aula
4 – Informações não verbais do texto
Unidade IV – Avaliação
1 – Como torná-la diagnóstica?
2 – Avaliação e o sistema escolar
3 – A auto-avaliação
II – EMENTA
Refletir a prática pedagógica a partir de alguns pressupostos básicos como: metodologia de
ação docente, recursos e avaliação.
278
III – OBJETIVOS
1 – Construir uma prática pedagógica nova, comprometida com a transformação social.
2 – Conhecer as linhas pedagógicas que norteiam a ação docente.
3 – Resgatar a memória educativa e a partir dela fazer uma análise crítica da prática docente.
4 – Perceber e fazer da aprendizagem um processo criativo, dinâmico e plural; daí a validade
dos recursos.
5 – Superar a visão tradicional sobre avaliação; torna-la gradual e diagnóstica.
IV – RECURSOS / AVALIAÇÃO
A dinâmica do programa será construída de tal forma que a avaliação ocorrerá sem a prova
escrita. Os recursos serão instrumentos de avaliação. O estágio é onde se pretende chegar.
Para contribuir para isto, pode-se utilizar de: confecção de livros para-didáticos, charges,
desenhos, painéis, colagens, história em quadrinhos, seminários, roteirização de filmes,
dramatização, jogos em sala de aula.
V – BIBLIOGRAFIA
CUNHA, Maria Isabel. O bom professor e sua prática. 3ª ed., São Paulo, Papirus. 1994. FAZENDA, Ivani e outros. Um desafio para a didática. São Paulo, Loyola, 1988. 74 p. GAMA, Zacarias. Avaliação na escola de 2º grau. São Paulo, Papirus, 1993. LIBÂNEO, J. C. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social do conteúdo. São Paulo, Loyola, 1985. LUCKÉSI, Cipriano. Avaliação educacional escolar: para além do autoritarismo. In: Revista ANDE, 1986. p. 47-51. MENEZES, Luise. Formar professores: tarefa da universidade. São Paulo, Brasiliense, 1987.
279
APÊNDICE I
Cronologia da Criação do
Ensino Superior e Outros Equipamentos Culturais no Brasil
(O contexto que antecede a criação das universidades)
I – DURANTE A PRESENÇA DA CORTE PORTUGUESA NO RIO DE JANEIRO
1808 • Cátedras de Anatomia e de Cirurgia, no Rio de Janeiro e na Bahia: i) reunidas em 1813 para criar Academias de Medicina.
• Criação da Imprensa Régia (13/05).
1810 • Academias: i) Real de Marinha; ii) Real Militar (instalada no Rio de Janeiro, em 1811), com opções para formar em Engenharia “civil” ou seguir a carreira das armas: a) Curso de Engenharia transformado em Escola Central (1845), depois em Escola Politécnica (1874), atual Escola de Engenharia da UFRJ; b) Escola Militar de Aplicação. • Curso de Economia Política:
i) Cátedra a cargo de José da Silva Lisboa.
1812 • Gabinete de Química, no Rio de Janeiro. • Gabinete de Agricultura, na Bahia.
1813 • Academia de Medicina, reunindo as cátedras de 1808.
1814 • Abertura ao público da Biblioteca Real.
1815 • Elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves (16/12).
1816 • Chegada da missão artística francesa ao Rio de Janeiro. • Fundação da Academia de Belas Artes.
1817 • Chegada ao Brasil da expedição científica de Spix e Martius.
1818 • Coroação do Príncipe Regente com o título de D. João VI.
1820 • Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil: i) desdobramento da Missão Cultural Francesa, mais tarde transformada em Escola Nacional de Belas Artes.
1821 • Retorno de D. João VI a Portugal, deixando D. Pedro como regente do trono.
1822 • Declaração de Independência (07/09).
281
282
• Outros equipamentos culturais: i) Museu Real; ii) Jardim Botânico; iii) Biblioteca Nacional;
II – APÓS A INDEPENDÊNCIA 1824 • Outorgada a Constituição Política do Império do Brasil (25/03).
1827 • Faculdades de Direito em São Paulo e no Recife:
i) currículo universalista, humanístico e retórico; ii) pessoal qualificado para preencher o quadro geral da
administração e da política; iii) supremacia em relação aos outros cursos (1864: 826 matrículas,
contra 294 em Medicina, 154 em Engenharia e 109 na Escola Militar e de Aplicação.
1831 • Abdicação de D. Pedro I (07/04).
1845 • Transformação da antiga Academia Real Militar em Escola Central.
1874 • Transformação da antiga Escola Central em Escola Politécnica (futura
Escola de Engenharia da Universidade do Brasil, depois UFRJ).
1875 • Escola de Minas de Ouro Preto
Fontes: ROMANELLI (1997), CUNHA (2003) & MENDES JR. et al (1977).