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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
UMA NOVA AUTORIA FEMININA CHAMADA ADÍLIA LOPES: (RE)VELANDO OS ANIMAIS
EM OBRA
Karina Uehara (Graduanda – UNESP/Assis – FAPESP)
RESUMO: Em 1985, surge na literatura contemporânea portuguesa a poetisa Adília Lopes. O ficcional desta nova poesia já é marcada pela sua Autoria, já que seu nome “real” é Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Segundo diz em entrevistas, Adília Lopes teria surgido por um concurso literário que exigia um pseudônimo e fora criado por um amigo (cujo nome não menciona). Por um lado, sua poética rompe com a tradição lírica portuguesa, sobretudo quando a Autora opta por construí-la com certos “ares narrativos”. Por outro, ela retoma essa mesma tradição, mas de forma irônica. A partir da leitura de Obra que reúne sua poesia de 1985 a 2000, percebe-se que há uma constância no uso de animais dentro de sua poética. Assim, este estudo pretende analisar o bestiário de Adília. Para isso, foram selecionados os poemas nos quais estavam presentes figuras animais, a fim de elaborar uma Antologia Comentada. Durante o andamento do projeto, percebe-se que a poetisa usa estes animais de forma consciente. Em muitos poemas eles até parecem ter um papel chave, em que o sentido do texto poético ora é melhor apreendido diante da simbologia animalesca presente, ora está por detrás destes animais. Acredito que estes animais também possam complementar o jogo de velar e revelar do fazer poético de uma Autora que também é (re)velada nas personas Adília e Maria José. PALAVRAS-CHAVE: Adília Lopes; bestiário; poesia portuguesa. Introdução
Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira nasceu em Lisboa no dia 20 de abril de
1960. Adília Lopes é o seu pseudônimo literário criado, em 1983, por sugestão de um amigo
(cujo nome não revela) para um concurso de textos literários (Prêmio de Prosa da Associação
Portuguesa de Escritores).
Adília tornou-se uma importante escritora portuguesa, escreveu crônicas, trabalhou
como tradutora, mas foi pela poesia que encontrou significativo reconhecimento.
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Publica seu primeiro livro em edição de autor – Um jogo bastante perigoso -, em 1985.
E em 2000, pela primeira vez, tem sua poesia reunida (de 1985 a 2000) num livro intitulado Obra
que é alvo de estudo deste trabalho.
No final do ano passado (2009), lançou-se sua mais nova poesia completa: Dobra.
Nessa reunião há seis novos títulos, mas que não serão estudados neste momento, por causa
do tempo escasso.
A poesia adiliana apresenta marcas dificilmente encontradas no cânone da literatura,
mas ainda assim não deixa de revisitá-lo mesmo que de modo irônico, o que nos faz questionar
sobre esse novo fazer literário do contemporâneo.
Dotada de um estilo singular, como “o uso intensivo de elementos narrativos nos
poemas” [OLIVEIRA, 2007] e pelo “tom às vezes infantilizado, pelo uso de repetições, pelo
predomínio das orações coordenadas, pela leviandade com que se narram acontecimentos
muitas vezes graves” [OLIVEIRA, 2007], a obra literária de Adília Lopes merece um lugar de
destaque no cenário das letras portuguesas nesta transição de séculos.
Os animais que ressignificam a Poética Adiliana
Entre os recursos recorrentes presentes em Obra, destacam-se as figuras animais na
poética de Adília, que correspondem a aproximadamente 27% das publicações da Autora de
1985 a 2000. Assim, este estudo consiste na elaboração de uma Antologia Comentada do
bestiário em Obra, sendo esta composta por 149 poemas.
A fim de exemplificar a forma como estes animais aparecem e suas infinitas
possibilidades de significação, discorrerei sobre os seguintes poemas:
OS CÃES A menina parecia-me com a vestal de uma estela funerária que há nessa cidade e que tem roupas, embora de pedra, finíssimas. Passava, pela mão da mãe, pela orla do terreiro, no ar denso de trovoada. Esse terreiro onde se armavam as barracas da feira, agora deserto, varrido com ferocidade pelo vento, na hora nefasta do meio-dia, hora em que é perigoso passar debaixo de certas árvores ou contemplar as fontes, tem apenas alguns troncos como ossos de que brotam cotos carecas. Dos arredores vinha um cheiro acre a queimadas que invadia as casas de mistura com as películas de cinza como se um grande fogo (daqueles que abatem uma a uma as árvores) rondasse a povoação.
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Na areia eriçada e vermelha como pêlo, que as rajadas levantavam e atiravam para longe aos punhados, dois cães rodopiavam voltejando e espojando-se, colados um ao outro, pardos e rafeiros. Os ganidos de um dos cães feriam o ar cinzento e abstruso como se lhe estivessem a fazer mal. A menina, aflita, gritou à mãe: - O outro vai matá-lo! Mas a mãe, embaraçada, calou-a: - Não. É um cão e uma cadela. Não olhes para lá. Então a menina tapou os ouvidos. [LOPES, 2000, p. 120]
Logo no início do texto, a menina é comparada “a vestal de uma estela funerária” que,
embora virgem, a pedra é destinada a ter uma inscrição. Com isso, a futura perda da virgindade/
inocência da garota também fica implícita.
Antes de chegar aos cães, o ambiente descrito com as trovoadas, o “cheiro acre a
queimadas”, a turbulência pressuposta na “povoação”, sustentam as características do ato
sexual dos cães. Além disso, este animal simbologicamente tem uma significação sexual e
libidinosa.
Diversas culturas acreditam que o cão teria trazido o fogo para a humanidade e que
ele nos ensina o que desconhecemos e, assim, parece ocorrer no texto literário. Os cães
apresentam à menina algo novo. Sua inocência é marcada quando ela acha que os cães estão
brigando por estarem “voltejando e espojando-se, colados um ao outro, pardos e rafeiros”. Sua
mãe, sem saber como lidar com o fato, reduz sua explicação dizendo que “aquilo” é “um cão e
uma cadela” e pede para a filha não olhar mais para lá. A possível consequência deste não
esclarecimento é o medo, que a menina sente diante daquilo que vê, pressuposto no tapar dos
ouvidos.
Em seguida, percebe-se no poema sem título a retomada da tradição literária
portuguesa com o nome da poetisa Fiama Hasse Pais Brandão juntamente com uma figura
animal:
para a Fiama, que não gosta de cisnes e que escreveu “Cisne”
(O cisne persegue a Fiama no quintal a Fiama persegue o cisne no poema sarada a mão direita da poetisa a poetisa pode escrever sobre o cisne (de ódio de cisne e de ócio de Fiama se faz a literatura portuguesa minha contemporânea) depois a Fiama persegue o cisne no quintal durante um quarto de hora
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e o cisne persegue a Fiama no poema pela vida fora) [LOPES, 2000, p.308]
Todo artista precisa de manifestações de luz, a liberação do imaginário posta no
nascimento duma obra de arte. Depois de construído e trabalhado, dá-se a luz ao cisne, como
força poética.
Neste poema, primeiramente temos o cisne perseguindo Fiama “no quintal” e Fiama
perseguindo-o “no poema”. Segundo Chevalier e Gheerbrant, Victor Magnien diz em uma de
suas obras “que o cisne simboliza a força do poeta e da poesia” [CHEVALIER, 2009, p.258].
Portanto, é como se, num primeiro momento,“força poética” simbolizada pelo cisne estivesse a
procura da poetisa (Fiama), enquanto que a artista a procurasse na própria poesia.
Depois de “sarada” sua “mão direita”, Fiama mergulha no universo poético e vêm à
tona luz e palavra, unidos na figura do cisne, por isso “a poetisa pode escrever sobre o cisne”, é
como se tivéssemos o encontro entre poetisa e poesia, entre artista e a própria Arte e desta
“fusão” teríamos a Literatura em si. Nesta “intersecção”, há ainda a manifestação do eu poético
posta nos seguintes versos: “(de ódio de cisne e de ócio de Fiama/ se faz a literatura portuguesa/
minha contemporânea)”. A partir daí, as coisas se invertem. Fiama que “persegue o cisne no
quintal” e não mais “no poema” e, o animal por sua vez, agora já no “papel”, persegue-a “...no
poema/ pela vida fora)” e não mais “no quintal”.
Este jogo entre externo e interno, “no quintal” e “no poema” é mais um
desmembramento do significado do cisne. Ele em si possui as duas polaridades do mundo, eleva
as coisas terrestres às celestes e sublimes. Assim, a importância de sua presença no poema,
talvez esteja no “mero” fato de ser a inspiração que auxiliará na saída da luz do artista.
No próximo poema, também há referências a uma escritora já consagrada pelo
cânone literário. E ao lado da tão renomada escritora brasileira, Clarice Lispector, surge a figura
do peixe que é um dos animais que aparece com mais frequência na poesia de Adília:
Clarice Lispector, a senhora não devia ter-se esquecido de dar de comer aos peixes andar entretida a escrever um texto não é desculpa entre um peixe vivo e um texto
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escolhe-se sempre o peixe vão-se os textos fiquem os peixes como disse Santo António aos textos [LOPES, 2000, p.308]
Este poema parece ser uma resposta à Clarice Lispector sobre o seu livro intitulado A
mulher que matou os peixes. Ao final do livro infantil a personagem, também Clarice, coloca a
seguinte questão: “Eu peço muito que vocês me desculpem. Dagora em diante nunca mais
ficarei distraída. Vocês me perdoam?” [LISPECTOR, p.17]
A personagem Clarice, assim como a interlocutora do eu poético com nome
homônimo, esqueceu-se de dar comida aos peixes. Ela pede perdão, mas o eu parece não
perdoá-la, pois além de dizer que “andar entretida/ a escrever um texto/ não é desculpa”, afirma
que “entre um peixe vivo/ e um texto/ escolhe-se sempre o peixe”.
O peixe é tão valorizado pelo eu lírico, sobretudo pelo fato de ele ser um ser vivo.
Além disso, simbologicamente ele é a própria vida. Pressupõe-se que se Clarice tivesse cuidado
melhor dos peixes ou, ao menos, tivesse alimentado-os, os textos que ela teria que produzir
“sairiam” de uma forma ou outra, já que o peixe simboliza também a fecundidade. E, talvez, seja
por isso que o eu lírico acha o ato de Clarice imperdoável.
O fato de Clarice ter que escrever textos não implica em ela não cuidar dos peixes. A
voz lírica instiga à reflexão do tratamento dos animais quando diz ironicamente: “vão-se os
textos/ fiquem os peixes”.
Além da simbologia por detrás do animal que complementa o sentido do poema, a
crítica em relação a atos que contrariam os direitos animais, também está presente na poética de
Adília. Como se pode observar no seguinte poema:
No colégio das freiras vejo aos 6 anos os esquimós espicaçarem as focas o gelo cheio de sangue as focas a estrebuchar o império dos sentidos ofendidos Santa Brigitte Bardot nos valha [LOPES, 2000, p.341]
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Por um lado, observa-se, neste poema, um ato cruel dos esquimós ao espicaçarem as
focas. O lado desumano desta ação talvez esteja, sobretudo, no sofrimento e no “estrebuchar”
das focas. Daí citar Brigitte Bardot e homenageá-la com o título de “Santa” por ela ter sido,
também, uma ativista dos direitos animais.
Por outro lado, a foca simboliza a virgindade. Esta “não seria devida a uma força
superior, mas procederia do medo de se dar, da falta de amor” [CHEVALIER, 2009, p.440]. Para
reforçar esta ideia “virginal” há, ainda, a figura das freiras. As focas também podem representar o
inconsciente deste eu provindo de certas repressões, afinal, não à toa ele está “No colégio das
freiras”. Nesse sentido, o espicaçar das focas simbolizaria a própria desfloração.
Esta nuance sexual por detrás do poema pode ser complementada pelo verso: “o
império dos sentidos”, caso ele seja uma referência ao filme erótico de nome homônimo, e pela
figura de Brigitte Bardot que foi considerada um dos maiores símbolos sexuais dos anos 60 e 70.
O poema a seguir, assim como o anterior, trata de questões em defesa dos animais:
Esta gata faz-me lembrar tanto a Maria Santos não sei porquê chamávamos-lhe o Nariz Preto dizia a minha avó Zé a respeito da Faruk
* Na estufa a planta carnívora abocanha as chaves da minha mãe uma barreira de água impede as formigas de entrar
* O grilo come a gaiola de plástico e volta para o campo onde está o pirilampo [LOPES, 2000, p.345]
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O poema divide-se em três partes, em todas aparecem figuras animalescas e sua
estrutura lembra os moldes aristotélicos (do começo, meio e fim). Inicialmente, temos a presença
do gato. Além de fazer lembrar “a Maria Santos” para o eu lírico, ao que parece a gata também
faz lembrar Faruk, já que é assim referida pela avó do eu. Para complementar esta ideia de
autoridade por detrás da figura do rei egípcio, a gata também é chamada de “Nariz Preto” que
diante do contexto pode metaforizar o nosso conhecido “nariz empinado”. Esta postura
aparentemente arrogante é uma característica normalmente atribuída aos felinos (diferentemente
dos cães, por exemplo, que de modo geral tem uma postura mais humilde).
Na segunda parte, surge a formiga que neste caso pode estar ligada a ideia de
alimento. Isto porque a ausência das formigas, impedidas de entrar na estufa pela barreira de
água, implica no fato de as plantas carnívoras terem que se alimentar de objetos, “...as chaves/
da minha mãe”.
E na última parte, aparece o grilo e o pirilampo (no Brasil, mais conhecido por
vagalume). O símbolo da vida depositado no grilo só se concretizaria com a sua libertação. O
inseto que estava preso numa gaiola de plástico consegue comê-la e, com isso, adquire
novamente sua liberdade na Natureza. O pirilampo, por sua vez, pode ser a própria referência
que o grilo procurava (o campo), assim, ele seria a luz, a “Salvação”, a libertação depois de um
longo período obscuro pelo encarceramento.
Desta maneira, é como se a primeira parte do poema representasse a própria prisão,
já que há uma figura “autoritária” mascarada na gata Faruk, assim, a segunda parte mostraria a
vontade de libertação, as plantas carnívoras tentando abrir com as chaves as barreiras impostas
e, por último, a terceira parte seria a libertação em si. O poema parece denunciar o ato de
prender animais, pois assim como nós eles merecem ser livres.
Alguns poemas parecem compor a própria essência do animal que nele aparece,
como se pode ver nos versos a seguir:
Uma mosca é a ascese sete não é legião [LOPES, 2000, p.352]
A mosca, como já diziam algumas tradições africanas, ganha força unida a outras,
pois sozinha é praticamente vencida. E, de fato, “Uma mosca/ é a ascese”, ou seja, ela, alheia
de tudo e de todos, é apenas “meditação”, o que faz lembrar a tão conhecida frase de
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Aristóteles: “uma andorinha só não faz primavera” (ou verão). Assim, o poema parece enfatizar a
característica de solidariedade por detrás da simbologia da mosca, afinal, “sete não” (é ascese)
“é legião”.
O número sete, de modo geral, é cabalístico. Ele “corresponde aos sete dias da
semana, aos sete planetas, aos sete graus da perfeição” [CHEVALIER, 2009, p.826] e assim por
diante. Portanto, o sete está ligado à totalidade de algo e, desta forma, ele representaria o fim de
um ciclo e ao mesmo tempo começo de outro, ou seja, o sete simbolizaria a própria renovação.
Talvez, seja por isso que há a indicação do número sete no poema e não de outro qualquer. É
como se o sete estivesse se opondo ao uno, total versus unitário, “legião” versus “ascese”. Mais
uma vez, ao invés de criar um abismo ainda maior entre os opostos, Adília tenta uní-los, já que
somente juntos eles podem compor o todo que é a própria contradição mundana.
Na poesia de Adília também é comum o gosto pelos jogos de linguagem, no entanto,
eles parecem ir além do que uma simples brincadeira. Eles são mais uma artimanha desta nova
poética contemporânea:
Lesma é o meu lema E basta [LOPES, 2000, p.363]
“Lesma” e “lema” parecem constituir um jogo de palavras e isto parece que basta para
definir a escrita de Adília. Em seu “lema” mais uma vez aparece uma figura animal e a ironia
também não deixa de estar presente com um “s” entre o “lema”.
As marcas deixadas pelo rastejar do molusco podem simbolizar as palavras deixadas
por uma nova persona. As viscosidades agora no papel e não mais no chão mostram a caligrafia
de uma Autora que aonde quer que passe deixará vestígios de uma Literatura singular.
A peculiaridade da escrita de Adília também está relacionada com a forma como ela
insere a interdisciplinaridade em seus poemas. Neles é constante o diálogo com a Física e com
a Psicologia, como se pode ver no poema que se segue:
Não sou menos que Einstein nem que Claudia Schiffer
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não sou mais que uma osga ou que uma barata não sou mais inteligente que um mongolóide tenho um Q. I. no limite superior da média todos diferentes todos iguais incluo também os animais o que nos separa dos animais é o pecado original não é o reconhecimento no espelho nem o complexo de Édipo [LOPES, 2000, p.402]
O eu lírico deste poema enumera alguns exemplos dos quais ele não é “mais” nem
“menos”, ou seja, ele tenta de certa maneira “des-hierarquizar” qualquer tipo de relação humana
e até mesmo as relações entre os seres humanos e os animais. Por mais ilustres que sejam
Einstein e Cláudia Schiffer, ele que se sobressaiu no intelecto tendo conquistado até um Prêmio
Nobel de Física e ela como renomada modelo alemã destacando-se pela beleza, não estão
acima desta voz lírica. E ainda que “osgas” e “baratas” sejam aparentemente ínfimas para
muitos, esses animais não estão abaixo deste mesmo eu.
É reconhecendo a diferença do outro que este eu diminui o abismo entre os opostos e
daí poder afirmar que somos ao mesmo tempo diferentes e iguais. Assim, o diferente que é
comumente excluído passa a ser visto como inerente ao convívio mundano e, com isso, evita-se
certos preconceitos e discriminações. Para enfatizar esse aspecto “humano” do eu lírico, entre
os “todos diferentes” e “todos iguais” ele inclui os animais e afirma que “o que nos separa/ dos
animais/ é o pecado original/ não é o reconhecimento/ no espelho/ nem o complexo/ de Édipo”.
Se pensarmos na cadeia alimentar do reino animal, os animais que aparecem neste
poema tem uma relação “hierárquica”. Osga e barata possuem a função, respectivamente, de
predador e presa. No entanto, eles são colocados no poema lado a lado, pois são diferentes e
iguais. Ainda que na Natureza “vença o mais forte”, segundo o ditado popular, esta relação entre
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“fracos” e “fortes” no mundo animal não é consciente. Eles não tem o nosso “pecado original” e,
novamente, como diz a voz poética é isso que nos separa deles.
Para ressaltar a relação de poder que há entre os homens, o eu ainda menciona no
poema a questão de reconhecer-se no espelho, o que pode remeter ao Narcisismo. Para o
narcisista o “Ser Supremo” é ele próprio, portanto, provavelmente, ele almejará se sobressair aos
outros. E esse querer estar “acima” ou “à frente de” é consciente. Então, acredito que quando
este eu poético realça a questão da igualdade reconhecendo o convívio com as diferenças e a
exemplifica com animais, há uma tentativa de “humanização” do próprio ser humano que está se
perdendo nestes tempos contemporâneos onde parece haver, cada vez mais, desigualdades em
vários aspectos. O animal que é o nosso mais primário ancestral nos ajuda através deste texto
literário a refletir mais sobre como agimos com outros seres vivos e o que eles são e significam
para nós.
E, por fim, além do próximo poema conter a figura do pássaro, ele pode exemplificar
uma das principais características dessa nova autoria feminina que é a desconstrução de
diversos elementos poéticos para a possível reconstrução de uma poética que une tradição com
inovação:
Os pássaros voam porque têm asas os pássaros têm asas para voar Mas não se deve perguntar porquê? nem para quê? mas para quem? Darwin Lamarck Afonso Lopes Vieira Cuvier passarinhos nos ninhos feitos com mil cuidados ninhos caídos das árvores nos caminhos passarinhos sozinhos desdentados [LOPES, 2000, p.403]
O pássaro, ave dotada de intuição e pureza, é muitas vezes relacionado à própria
alma. Como escreve o poeta Saint-John Perse: “Os pássaros guardam entre nós alguma
coisa do canto da criação” [CHEVALIER, 2009, p.687]. E talvez para complementar os
“resquícios” que o animal possui de nossa criação o eu lírico “canta” um verso dedicado a alguns
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nomes ligados a teorias que tentam explicar as nossas origens: “Darwin Lamarck Afonso Lopes
Vieira Cuvier”.
De um lado, Darwin e Lamarck dedicaram-se a Teorias Evolucionistas, pautando-se,
sobretudo, na ciência. De outro lado, o francês Cuvier ainda que tenha formulado algumas leis
da Anatomia Comparada, não acreditava na Teoria da Evolução Orgânica, ele era adepto do
Catastrofismo. Nesse sentido, Cuvier aproximava-se mais de ideias Criacionistas do que
científicas. Afonso Lopes Vieira é o único que foge um pouco deste debate sobre a origem das
espécies no âmbito científico. Vieira foi um poeta português e, este poema parece ter tido
influências desse autor. Na última estrofe notam-se intertextos principalmente com o poema “Os
ninhos”, o verso “com mil cuidados”, por exemplo, está presente neste poema e no de Vieira.
Ainda que esse poeta não tenha elaborado teorias científicas a despeito da evolução mundana,
a “criação” aparece de modo indireto em “Os ninhos” na figura do pai e da mãe, como se pode
observar em sua última estrofe: “Que nos lembremos/ Sempre também/ Do pai que temos/ Da
nossa mãe!”.
Hoje se sabe que a Teoria da Origem das Evoluções das Espécies de Darwin é a que
prevalece. Para isso, ele teve que desconstruir teorias anteriores para (re)construir aquela na
qual acreditava. Esse mecanismo de desconstrução também parece ocorrer no poema. Primeiro,
o eu lírico afirma que “Os pássaros voam/ porque têm asas”. Logo, na segunda estrofe há uma
série de questionamentos sobre o que se deve ou não perguntar e para quem. E, por fim, na
última estrofe responde-se para quem perguntar, a “Darwin Lamarck Afonso Lopes Vieira
Cuvier”, e há uma descrição sobre o cair de ninhos e passarinhos.
O modo como os versos do poema estão dispostos mostra uma gradação decrescente
(quanto à altura) o que enfatiza a impressão do cair destes pássaros. O primeiro verso menciona
o “voar”, enquanto que os últimos descrevem características, “...sozinhos/ desdentados”, de
pássaros já caídos no chão. Se “Os pássaros voam/ porque tem asas” e eles “...tem asas/ para
voar”, por que não voaram ao perceber que o ninho estava caindo? Com isso, percebe-se a
necessidade de (re)formular aquela afirmação inicial, pois ela mostrou-se inválida
empiricamente. Assim, o poema parece conter a essência de qualquer pesquisa científica e da
própria poética adiliana: desconstruir para reconstruir.
De modo geral, os animais presentes nos poemas de Adília parecem conter
informações imprescindíveis para melhor interpretá-los. Além disso, ajudam a desvendar um
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pouco mais sobre a própria Autora, que brinca tanto com o criar e com a autoria de seus textos
nas personas Adília e Maria José.
Referências bibliográficas CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
LISPECTOR, Clarice. E-book. A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Rocco. (digitalizado por MORAIS, Emilly).
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OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de. A Bela Acordada (ou da Narratividade na poesia de Adília Lopes). In: CAIRO, Luiz Roberto Velloso ET alii (Org.). Nas malhas da narratividade. Assis: Assis – Unesp Publicações, 2007, p. 45-53.