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10 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA RAFAEL SERRA DE RESENDE “ATENAS BRASILEIRA”: REPRESENTAÇÕES SOBRE O MITO (1840- 1880). Orientador: Fábio Henrique Monteiro Silva. SÃO LUÍS-MA 2007

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE … · 10 universidade estadual do maranhÃo centro de ciÊncias exatas e naturais departamento de histÓria e geografia curso de histÓria

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA

RAFAEL SERRA DE RESENDE

“ATENAS BRASILEIRA”: REPRESENTAÇÕES SOBRE O MITO (1840-1880).

Orientador: Fábio Henrique Monteiro Silva.

SÃO LUÍS-MA 2007

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RAFAEL SERRA DE RESENDE

“ATENAS BRASILEIRA”: REPRESENTAÇÕES SOBRE O MITO (1840-1880).

Monografia apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de graduação no curso de História Licenciatura Plena da Universidade Estadual do Maranhão. Orientador: Fábio Henrique Monteiro Silva.

SÃO LUÍS-MA 2007

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RESENDE, Rafael Serra de. “Atenas Brasileira”: representações sobre o mito (1840-1880)/Rafael Serra de Resende – São Luís, 2007. 85 f.

Monografia (graduação em História) – Universidade Estadual do Maranhão, 2007.

1. Atenas Brasileira 2. Literatura Romântica 3. Singularidade 4. Historiografia I. Título.

CDU: 94(81) “1840/1880”

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RAFAEL SERRA DE RESENDE

Monografia apresentada para obtenção do título de graduação no curso de História Licenciatura Plena da Universidade Estadual do Maranhão.

Área de concentração: História Licenciatura Plena

Aprovada em: ___/___/___

BANCA EXAMINADORA:

___________________________________

Fábio Henrique Monteiro Silva orientador

___________________________________ Msc. José Henrique de Paula Borralho ____________________________________

Msc. Carlos Alberto Ximendes

“ATENAS BRASILEIRA”: REPRESENTAÇÕES SOBRE O MITO (1840-1880).

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AGRADECIMENTOS

Ao supremo criador de todas as coisas. Por entender que tudo foi feito por Ele,

Nele e para Ele. Ao Senhor a minha eterna gratidão.

Aos meus pais, pela educação, pelo amor, pela dedicação, pelo apoio

incondicional quando “decidi” fazer história, pelas noites de sono perdidas no trabalho que foi

responsável por me manter durante os anos da graduação, pelo esforço em me fazer um

homem com valores.

Ao meu amigo Nelson Alexandre Por ter me Convencido a fazer o curso de

História na Universidade Estadual do Maranhão.

Aos meus orientadores: Marcelo Cheche, que durante tanto tempo me auxiliou na

pesquisa de iniciação científica; Henrique Borralho e Fábio Monteiro, que em diferentes

momentos desta pesquisa me ofereceram o suporte necessário ao entendimento de meu objeto

de estudo.

Aos professores do curso, que durante quatro anos maravilhosos não se furtaram

em oferecer uma ampla formação aos alunos, construindo um referencial teórico de

excelência, foram eles os responsáveis pelo amadurecimento e término deste trabalho.

Aos funcionários do curso de história: Edílson, Márcio e Roberta. Responsáveis

pela organização da nossa burocrática vida acadêmica.

Aos meus amigos de turma: Tatiane, Marco Aurélio, Lellia, Alana, Silvia,

Cleonice, André, “Netinho”, pela amizade oferecida ao longo desses anos, pela compreensão,

em especial de Pollyanna Lima por me fazer entender o valor existente em um amigo.

À Claudia Fernandes, pela amizade, força, apoio, sinceridade, lealdade, de alguém

que mostrou ser mais do que uma amiga, tornou-se uma companheira. Buscar adjetivos para

definir seu papel neste trabalho ou para descrever o quanto lhe sou grato, seria uma injustiça

frente toda dedicação e afeto que ela tem me oferecido.

À Claudia Neves, Alda Garros, Jerry Araújo, Hayla Devane, e Rômulo Corrêa, por

terem sido meu sustentáculo na resolução do maior problema que tive durante a elaboração

deste trabalho: a ausência de um computador. Os meus sinceros agradecimentos a estes que

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abriram as portas de suas residências por me oferecer todo o suporte necessário para a

finalização desta monografia.

À Edyene Moraes, amiga fiel,dedicada, sincera; Eloy Abreu e Gabriela Melo, pelo

apoio, pela amizade sincera em um dos momentos mais difíceis da graduação.

À Eduardo Gomes, pelo auxilio teórico e bibliográfico oferecido durante todo o

período da pesquisa.

À Roberta Lobão, pelo longo tempo oferecido e disponibilizado a me ouvir, me

apoiar, me criticar, e me oferecer os mais verdadeiros sentimentos de amizade.

À Arlindyane Santos, com quem debati durante tão prolongado tempo sobre este

assunto, oferecendo-me valiosas críticas sobre a maneira como deveria tratar os elementos

teóricos do meu texto.

À todos os amigos que conquistei durante a graduação. Em especial aos

companheiros fiéis que compuseram o quadro de monitores dos eventos organizados pelo

curso de história. Obrigado por me mostrarem as diversas faces de uma amizade.

Àqueles que de alguma maneira contribuíram para a realização deste trabalho, o

meu muito obrigado.

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RESUMO.

Este trabalho é uma abordagem sobre o mito da “Atenas brasileira”. Com um caráter de

destaque literário, esta construção simbólica colocou-se como ícone da identidade dos

maranhenses, como sinônimo de superioridade cultural, como uma distinção no campo das

letras. A elaboração deste símbolo cultural, entendido como tradição inventada, foi fruto de

uma série de representações construídas no século XIX a respeito da excelência da terra e da

gente do Maranhão. A existência de alguns literatos que atuavam no cenário da literatura

nacional foi fundamental para o fortalecimento desta categoria conceitual chamada “Atenas

brasileira”. A literatura romântica do grupo maranhense foi o mecanismo legitimador das

criações poéticas sobre a grandeza do Maranhão, tendo destaque as personalidades de

Gonçalves Dias, Odorico Mendes, João Lisboa e Sotero dos Reis. A historiografia do

maranhão colocou a obra Pantheon Maranhense como o símbolo maior desta distinção de

identidades. Os postulados da critica literária e da sociologia conduziram ao entendimento de

que a “Atenas brasileira” era um conceito específico ao modo de percepção dos letrados, isto

é, só fazia sentido para os indivíduos que detinham os mecanismos necessários para

decodificar este conceito enquanto um bem cultural de natureza simbólica. O conjunto da

população maranhense não estava inserido nesta forma de pensar sobre a Província do

Maranhão.

Palavras-chaves: Atenas brasileira; Literatura romântica; Singularidade; Historiografia.

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ABSTRACT

This works is a boarding about the myth of the “Brazilian Athens”. With a character of literary

detach, this symbolic construction was placed as icon of the maranhense’s identity, as

synonymous of cultural superiority, as a distinction in the letters area. The elaboration of this

cultural symbol, understood like invented tradition, was consequence of a series of

representations constructed in nineteenth century regarding the excellency of the earth and the

Maranhão people. The existence of some literates who actuated in the national literature scene

was fundamental to strengthening of this conceptual category called “Brazilian Athens”. The

romantic literature of the maranhense group was way legitimator of the poetical creations

about Maranhão greathness, detaching the personalities as Gonçalves Dias, Odorico Mendes,

João Lisboa e Sotero dos Reis. The Maranhão historiography placed the literary work

Pantheon Maranhense as biggest symbol of this distinction of identities. The of criticize

literary and of sociology postulates had lead to understanding that the “Brazilian Athens” was

a specific concept to the man of letter’s perception way, in other words, made sense only for

the individuals that detained the forms necessaries to decode this concept while a cultural

element of symbolic nature. The set of the maranhense population was not inserted in this

thinking away about the Maranhão Province.

KEYWORDS: Brazilian Athens; Romantic literature, Singularity, historiography.

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SUMÁRIO

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS.....................................................................................09 2. DOS CRONISTAS À DECADÊNCIA: UM OLHAR HISTORIOGRÁFICO.........15 3. CANTOS ROMÂNTICOS DO GRUPO DE “ATENAS”..........................................36 4. HISTÓRIA E LITERATUA NO PANTHEON DA ATENAS BRASILEIRA.........58 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................75 REFERÊNCIAS.................................................................................................................80

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS. O século XIX foi o período em que as características identitárias do Maranhão na

contemporaneidade foram definidas. Tanto que as referências ao período em questão tratam

esta época como idade de ouro. As mais variadas simbologias foram elaboradas no sentido de

proporcionar ao Maranhão uma imagem que distinguisse esta província das demais do

Império. Assim, não raramente, tipologias de opulência e grandeza foram postuladas como

sinônimo da identidade maranhense.

O que se configurou como a identidade do Maranhão teve suas características

básicas direcionadas e utilizadas para os mais diversos propósitos dentro da organização social

da província. Nesta perspectiva, uma representação em específico sobressaiu no processo de

determinação das bases da identidade maranhense. Esta representação chamou-se “Atenas

Brasileira”. Para a historiografia maranhense este processo foi resultado da combinação de

progresso econômico e desenvolvimento cultural, ou seja, era oriundo dos lucros obtidos com

a grande lavoura de agro-exportação, que proporcionou aos filhos da elite estudar em grandes

centros de conhecimento na Europa, fomentando, quando do seu retorno, um ambiente de

efervescência cultural na capital da província do Maranhão.

Neste trabalho o enfoque direcionou-se a perceber os diferentes “lugares” que na

historiografia clássica do Maranhão, fomentaram este ideal de “Atenas Brasileira”, além é

claro das representações de singularidade inerentes a este processo. O entendimento aqui

colocado foi de que tal arquétipo identitário era um elemento restrito à elite do Maranhão no

século XIX, não sendo estendido às demais camadas da população devido às profundas

contradições sociais da cidade de São Luís no período assinalado. Ao contrário de pretender

elaborar uma dicotomia maniqueísta pró, ou contra, a existência de uma “Atenas Brasileira”

na capital maranhense, esta narrativa pretendeu analisar os mecanismos que lhe conferiam

legitimidade e as idéias que proporcionaram propagação a este tipo de categoria.

Indiscutivelmente, nos últimos dez anos vislumbrou-se na capital maranhense um

processo sólido de renovação historiográfica. As bases que sustentavam nossa compreensão

sobre o que era a história do Maranhão foram rediscutidas, repensadas, resignificadas, afinal,

ela estava sendo escrita novamente. Semelhantemente a este processo de novos olhares sobre a

História maranhense, o presente enredo tratou de oferecer uma outra visão sobre um fenômeno

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histórico que parecia estar hermeticamente consolidado, inquestionável, distante e não

suscetível a problematizações.

A compreensão que diferenciou esta análise foi exatamente o entendimento de que

a consolidação da “Atenas Brasileira” foi um processo essencialmente historiográfico, produto

da escrita dos sujeitos históricos do século XIX e de sua forma de pensamento. Neste sentido,

esta narrativa se configurou como uma concisa análise historiográfica, no sentido de que se

entendeu a historiografia, isto é, a produção de obras históricas, como igualmente postuladoras

de identidades e práticas sociais1.

Muito embora a noção de identidade cultural estivesse em grande medida

localizada nas páginas deste texto, a idéia de “Atenas Brasileira” não foi tratada como

elemento de segundo plano para as problematizações identitárias no Maranhão. Antes, fora

tratada em sua especificidade, como fenômeno particularizado, igualmente permeado por uma

visão de mundo que também foi a responsável por estruturar a identidade maranhense.

Assim, a organização dos capítulos do presente trabalho deu-se de maneira a

contemplar da forma menos lacunar possível os desmembramentos, também conceituais, das

elaborações culturais no Maranhão.

O primeiro capítulo dessa narrativa representou um inventário da historiografia

sobre o tema, isto é, uma proposta de mapeamento das idéias produzidas pelos autores

clássicos do Maranhão no tratamento da questão de “Atenas Brasileira”. Desta maneira não foi

forçoso afirmar a existência de certa convergência conceitual e epistemológica por parte dos

indivíduos que discutiram o tema; entre eles: Mário M. Meireles em Panorama da Literatura

Maranhense (1955); Jomar Moraes nos Apontamentos de Literatura (1976); e Rossini Correa

na sua Formação Social do Maranhão: o presente de uma arqueologia (1993), estando em

comum acordo nas afirmativas acerca da prodigalidade intelectual da província em se tratando

da erudição e refinamento, e também sobre sua concepção da efervescência na produção

literária local.

1 Por historiografia, entendemos não somente a coletânea, reunião de obras históricas que se remetem a um período ou temática, mas, sobretudo uma marca, uma forma, uma característica de pensamento, de escola, de tradição, de objetivos, etc. de como encarar, analisar os períodos históricos, os fatos históricos, dando-lhes um sentido de como devem ser pensados.

21

Nestas páginas os autores citados foram confrontados entre si no objetivo de

identificar quais elementos teóricos e conceituais eram comuns aos seus enredos e destacar

que caracteres lhes eram peculiares, a fim de explicitar tanto a relação entre a produção

historiográfica e seu meio, quanto as bases fomentadoras destes discursos de singularidade na

produção histórica sobre o Maranhão.

Por toda a narrativa os conceitos de “lugar social”, ou lugar de fala, ou ainda lugar

de produção, foram colocados no sentido de caracterizar o elemento legitimador do sujeito

agente da narrativa, assim, especificou-se ser a narrativa, o texto, isto é, o enredo, quer de

livros ou jornais, o lugar próprio destas construções.

Como base comum aos relatos produzidos nas obras citadas, encontrou-se entre

outras coisas, uma mesma compreensão acerca do desenvolvimento literário da província e do

papel desta literatura produzida na construção deste ambiente de efervescência cultural. No

enredo, as representações sobre a grandeza da terra do Maranhão e da sua gente foram

identificadas desde os cronistas viajantes do início do século XIX, perpassando pelos relatos

nos jornais de época e sendo modernamente reproduzidos pelos autores anteriormente citados.

Além disso, colocou-se a relação existente entre as obras históricas e literárias na

elaboração de práticas sociais. Para tanto, conceitos como imaginário social e representação

foram utilizados no intuito de identificar os mecanismos através dos quais os textos, isto é, as

narrativas engendraram atitudes socialmente determinadas.

Assim, a trajetória construída no primeiro capítulo deste trabalho, partiu das

representações elaboradas pelos cronistas do início do século XIX, passando à importância da

consolidação literária da província com o Grupo Maranhense, e posteriormente o

desenvolvimento, ou fragmentação desta grandeza no campo das letras, deixando claro o tom

historiográfico da abordagem.

O segundo capítulo do trabalho foi onde se concentrou a discussão prioritária na

narrativa. Ao contrário do primeiro capítulo, onde a pretensão era fazer um panorama do

caminho trilhado pela idéia de “Atenas Brasileira”, nesta parte do trabalho as noções

conceituais que direcionaram o trabalho foram melhor desenvolvidas. Entre outras coisas, o

entendimento de que a “Atenas Brasileira” fora uma criação literária produto do pensamento

romântico no contato com os elementos arcadistas ainda presentes nos enredos históricos e

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poéticos. A perspectiva da criação literária como o elemento que conferiu dinamicidade à

tipologia ateniense da capital da província do Maranhão.

Neste sentido, mostramos que a elaboração de um símbolo de tal proporção fazia

parte de um processo um pouco mais amplo de definição dos elementos nacionais e da

identidade da nação. Neste caso, o mecanismo através da qual esta nova base foi estabelecida

e consolidada foi a literatura romântica. Dito isto, afirmou-se a “Atenas Brasileira” como

sendo o equivalente espiritual da liberdade lograda com a independência e com a nova

configuração do elemento nacional. Fora responsabilidade do “Grupo Maranhense” a

responsabilidade de elaborar os vínculos necessários a esta pretendida unidade identitária. Tal

tarefa não lhes foi legada de forma deliberada, mas fora resultado do valor criado em torno de

suas obras e de sua ação intelectual enquanto literatos e ativos na vida política do império.

Detivemos-nos nas representações gestadas ao redor do “Grupo Maranhense”2 na

condição de supostos idealizadores desta idéia de “Atenas Brasileira”. A referida tipologia foi

abordada como uma elaboração que visava legitimar a produção literária local no cenário das

letras nacionais. Neste sentido, foram as perspectivas criadas pela literatura romântica que

legitimaram o ponto de vista presente nesta narrativa, entre elas, a idéia de fundação, o

conceito de criação poética, imaginação literária, entre outras.

Fatos importantes como a criação de sociedades e grupos literários por todo o

Brasil, ou a publicação de obras importantes para a literatura pátria, não foram

desconsideradas na abordagem. Sua importância estava relacionada à caracterização deste

ambiente de erudição das letras vivenciado pelos letrados do Maranhão no século XIX. Em

contraponto a estas imagens de grandeza, buscou-se nos relatos satíricos de João Francisco

Lisboa, o olhar crítico de um indivíduo que entendia o seu tempo. Em meio aos relatos sobre a

festa de “Nossa Senhora dos Remédios”, Lisboa ofereceu importantes elementos para a

compreensão das profundas disparidades sociais existentes nesta província que se pretendia

ilustrada.

No terceiro capítulo a proposta foi contrapor dois ícones literários profundamente

representativos para a compreensão do modo como a “Atenas Brasileira” foi elaborada. Foram

2 Foram eles a 1ª geração de grandes intelectuais e literatos assinalado pela historiografia literária: Odorico Mendes, Sotero dos Reis, João Lisboa e Gonçalves Dias, respectivamente; o tradutor de “Ilíada e Odisséia” para o Português, escritor do Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira, fundador do também mensário “Tímon Maranhense” e, poeta que escreveu “Os timbiras”.

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eles: a obra Pantheon Maranhense, escrita por Antonio Henriques Leal em 1873, e a obra

chamada Um Livro de Crítica redigida por Frederico José Correa em 1878. A primeira se

propunha a realizar ensaios biográficos sobre os maranhenses ilustres já falecidos. A segunda

pretendia fazer uma crítica tanto ao Pantheon Maranhense e seu autor, quanto à maneira como

a produção de obras literárias se dera nesta província, colocando em questão a singularidade

produzida sobre a idéia de “Atenas Brasileira”.

Para tal empreendimento foi necessária a utilização de um denso aparato

conceitual proveniente da sociologia de Pierre Bourdieu, da crítica literária de Hayden White,

das análises sobre história da literatura de Antonio Candido e Alfredo Bosi, além é claro, das

profundas abordagens sobre a relação entre história e literatura feitas por Antoine Compagnon.

Este amálgama de conceitos se fez útil na medida em que mostrou o papel desempenhado

pelas narrativas históricas e literárias no processo de criação de distinções e singularidades.

Dos autores da história da literatura foram extraídas as noções de desenvolvimento

da literatura nacional e a importância do “Grupo Maranhense” nesse contexto. Em Hayden

White buscou-se o conceito de história que direcionou e guiou todo este trabalho. As noções

de campo de produção, bens simbólicos e habitus, encontrados na sociologia de Bourdieu,

proporcionaram por meio das obras por eles produzidas, o entendimento de que havia certa

autonomia dos literatos em relação à sociedade, proporcionando desta forma, a compreensão

do aspecto restrito e arbitrário da idéia de “Atenas Brasileira”.

De maneira específica, procuramos mostrar as representações criadas ao redor da

morte dos letrados do chamado “Grupo Maranhense” e a sua importância para a cristalização

de conceitos como “idade de ouro” e o ideal de que São Luís era uma cidade excelente,

conhecida por ser um celeiro de grandes poetas. Apontou-se a morte dos literatos como o

elemento responsável por tê-los colocado na esfera do transcendente, direcionando-os à

glorificação.

Para estes fins, utilizou-se um conjunto bastante diverso de fontes históricas. Na

maioria dos casos as fontes utilizadas foram jornais e obras de época. Destacaram-se as folhas

políticas e literárias: o Jornal de Instrução e Recreio (1845), o Jornal da Sociedade

Filomática Maranhense (1846), a folha literária O Arquivo (1846), O Publicador Maranhense

(1850-1860), O Progresso (1847-1860), O País (1870), entre outros periódicos levantados que

possibilitaram uma compreensão clara sobre o ambiente “cultural” da cidade de São Luís.

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Entre os livros raros usados nesta pesquisa, destacam-se: Compêndio Histórico-

Político dos Princípios da Lavoura no Maranhão (1818) de Raimundo José de Sousa Gaioso;

Viagem pelo Brasil: 1817- 1820 (1823) de Johann Baptist Von Spix; Curso de Literatura

Portuguesa e Brasileira (1866-1868) de Francisco Sotero dos Reis, Mosaico: poesias

traduzidas (1868) de Joaquim Serra, Obras Póstumas de Gonçalves Dias (1868), Obras

Completas de João Lisboa (1991), Pantheon Maranhense (1873-1875) de Antonio Henriques

Leal e Um Livro de Crítica (1878) de Frederico José Correa.

De maneira geral, a documentação levantada possibilitou abranger um período

considerável de tempo e de acontecimentos na província do Maranhão. As fontes se

concentraram nas décadas de 1840 até 1880, possibilitando um mapeamento da trajetória

trilhada por esta idéia de “Atenas Brasileira”.

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2. Dos Cronistas à Decadência: um olhar historiográfico.

Maranhão. Visto ou lido em sua história, carrega consigo certas lembranças de

grandeza. Região opulenta das ricas terras da América, cujo ímpeto e fulgor não se viram

igual. Muitos dizem haver um clima doce e suave, que favoreceu a formação de uma notável

cidade. Lugar de grandes idéias, com inteligências livres de serem corrompidas, grandiosa por

sua cultura, acolhedora cidade de poucas gentes, fez-se notada por inúmeros feitos de sua

intelectualidade. O Maranhão foi terra de invocações e tradições, pensada a partir de seu

esplendor (MEIRELES, 1955, pp. 179-181).

A construção de um tipo de análise sobre o Maranhão responde a certas

responsabilidades de auto-afirmação, ou seja, de identidade, que pretende ter múltiplas

utilidades, desde servir como marco de um tipo de cosmovisão sobre si mesma, até como

elemento legitimador e diferenciador do espaço de reprodução social. Em tudo, a narrativa

dos sujeitos históricos sobre o Maranhão parece harmônica, entretanto algumas indagações são

necessárias. Qual a legitimidade de pensar culturalmente esse espaço de produção social3

sacralizado como singular nos idos do século XIX? Por qual via refletir sobre as atitudes dos

maranhenses perante a construção de uma nova realidade? O que significaram seus

comportamentos? O que mostra seu sistema explicativo? Qual a lógica existente em duas

formas de sociabilidade? Que modelo de mundo foi esse que consagrou sua terra e sua gente

como superiores? Quais as aplicabilidades dessas categorias? Estas indagações nos permitem

compreender como em diferentes momentos a realidade do Maranhão foi construída,

elaborada e simbolizada.

Entre outras coisas, as classificações, divisões e delimitações que organizam a

apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do

real (CHARTIER, 1990, p. 17) não devem ser analisadas como elementos distanciados da

própria realidade social, como se fossem externas a elas ou simples produto de inferências a

posteriori de si próprias, pois antes de tudo foram variáveis referentes a uma complexa

dinâmica social representada e simbolizada de diversas maneiras. De alguma perspectiva,

foram esses os elementos que construíram as imagens ou signos pelas quais determinados

3 Para Bourdieu o espaço social se configura como um território multidimensional de posições no quais os agentes sociais distribuem o peso relativo de seu capital cultural e simbólico.

26

momentos ou eventos históricos adquiriram sentido. Se tomarmos a história como um enigma,

constatamos que são estas categorias as vias ou meios por onde a História maranhense pôde

ser decifrada.

No Maranhão, estas representações foram produzidas com maior incidência pelos

cronistas viajantes que aportaram pelas terras do norte do Brasil nos primeiros anos do século

XIX. Desde 1811 até 1865, naturalistas desenvolveram trabalhos de mapeamento das terras e

gentes do Brasil, elaborando uma maneira muito particular de representar uma outra realidade

e de consolidar uma estrutura descritiva própria do contato do europeu com seus ideais de

civilização e do habitante do novo mundo.

Entre estes viajantes destacam-se nomes como Henry Koster, Spix, Martius,

Daniel Kinder, Augusto Biard e Louis Agassiz, entre outros. Neste sentido, é de grande

importância procurar apreender o modo como os viajantes que passaram pelo Maranhão em

vários momentos do século XIX descreveram aspectos dessa região, uma vez que esses relatos

foram construções representativas acerca da realidade social do Maranhão. A busca por

compreendê-los é uma parte significativa sobre a elaboração imagética do que se pensou sobre

esta província e sua gente, enquanto opulenta e excepcional, respectivamente; é a partir das

representações forjadas pelos viajantes oitocentistas que se fortalece um tipo de visão de

grandeza sobre o Maranhão e seu povo (CALDEIRA, 1991, p. 10).

Neste trabalho o destaque foi dado aos relatos de Johann Baptist Von Spix e Carl

Friedrich Philipp Von Martius, que estiveram em terras brasileiras do período de 1811 a 1820

e no Maranhão em 1819, realizando a coleta de dados específicos sobre o meio social e a

economia, esta última em menor escala, das relações políticas e da própria escravidão. José de

Ribamar C. Caldeira, em O Maranhão na Literatura dos Viajantes do Século XIX, elabora

algumas considerações acerca destes relatos e assegura que por se apresentarem

fragmentados, suas descrições não podem ser utilizadas na reconstrução da sociedade

maranhense, nem para a compreensão (...) histórica desta no decorrer do século XIX

(CALDEIRA, 1991, p. 11). Tal afirmativa desconsidera os aspectos representativos da

narrativa destes viajantes, resguarda a problemática do conceito de reconstrução e anula a

validade de relatos que se consolidaram como propagadores da riqueza, da opulência e da

grandiosidade da província do Maranhão.

27

Spix e Martius foram dois dos sacralizadores de uma imagem de singularidade e

diferenciação sobre esta província, em suas palavras, São Luís do Maranhão merece à vista de

sua população e riqueza, o quarto lugar entre as cidades brasileiras (SPIX e MARTIUS,

1981, p. 274). Estiveram figurando na narrativa desses alemães, descrições sobre o núcleo

citadino, a disposição das freguesias e a precariedade das guarnições da área urbana, até então

pouco organizada e estruturada.

Entre outras coisas é costume no Maranhão mandar estudar em Portugal as jovens

de famílias abastadas; os rapazes não raro vão formar-se na Inglaterra e em França (SPIX e

MARTIUS, 1981, p. 271) fomentando, segundo eles, um ambiente de polidez e de esforço dos

maranhenses em copiar os hábitos europeus, tanto no vestuário quanto nas outras instâncias da

sociabilidade. Os relatos destes sujeitos cristalizaram uma tendência em enfatizar no

Maranhão um apego às tarefas que requeriam capacitação intelectual e estavam destinadas a

suprir determinadas carências das classes abastadas e ricas da cidade de São Luís

(CALDEIRA, 1991, p. 14).

Apesar de pouco organizada do ponto de vista urbanístico, a disposição dos

segmentos sociais na sociedade ludovicense apresentava-se nitidamente elaborada e com seus

agentes e suas funções bem definidas, tendo destacado o elemento étnico para definir a divisão

dos grupos de indivíduos na cidade. Mesmo com discordâncias entre os autores e as

disparidades dos dados, é possível traçar um panorama da complexa rede de classes sociais na

capital da província do Maranhão.

De autores como Spix e Martius, Daniel Kinder, Augusto Biard, Louis Agassiz e

Henry Koster, colhe-se dados de que o contingente populacional variou de 20 mil a 33 mil

habitantes na capital, entre 1810 a 1841; mesmo que não estivesse tão clara a forma como este

conjunto de indivíduos estava disposto, é notório o consenso de que na província do

Maranhão, e não só em São Luís, o número de escravos era de aproximadamente 80 mil

indivíduos; sendo flagrantes as inúmeras contradições deste contexto social (SPIX e

MARTIUS, 1981, p. 274).

A obra do fazendeiro Raimundo José de Sousa Gaioso, Compendio Histórico dos

Princípios da Lavoura no Maranhão, é um dos mais importantes trabalhos realizados no

século XIX, precisamente no ano 1813, que trata entre outras coisas da organização da

sociedade ludovicense. Os grupos eram dispostos de duas maneiras, a maioria dos grupos

28

sendo de ordem elitista e aristocrática e os demais compostos de despossuídos. Reinois,

nacionais, portugueses, mulatos e escravos foram os grupos assim definidos por Gaioso, sendo

portugueses natos que ocupavam importantes cargos na burocracia administrativa da

província, senhores de grandes lavouras, donas de casas comerciais, filhos de europeus e

negros e elementos do trabalho nas fazendas, respectivamente; além é claro dos indígenas,

sempre excluídos da contabilização do numero geral de habitantes (GAIOSO, 1970, pp.115-

121).

Segundo Henry Koster, as principais riquezas da região estão nas mãos de poucos

homens, possuidores de propriedades próprias, com extensão notáveis grupo de escravos e

ainda são comerciantes (KOSTER apud CALDEIRA, 1991, p. 23). Característica de uma

organização social densamente aristocratizada, a exploração de atividades nos grandes

latifúndios de algodão conferia aos senhores de terra grandes prestígios entre os seus pares no

começo do século XIX, entre outras coisas, pela enorme quantidade de escravos que era

necessário para execução das atividades agrícolas, que além de lucrativas eram sinônimo de

refinamento e luxo por parte de quem dela usufruía. Destaca-se ainda, que mesmo envoltos

por um ambiente sobremaneira europeizado de características marcadamente elitistas, Koster

ressalta o raro gosto dos altos segmentos da sociedade ludovicense pela leitura (KOSTER

apud CALDEIRA, 1991).

São os relatos dos cronistas viajantes que nos possibilitaram apreender em que

proporção determinadas representações sobre a capital da província ascenderam ao estatuto de

realidade; também foram eles que nos permitiram saber quando as representações tomaram o

lugar das coisas representadas e como o relato substituiu a história. Foram os cronistas os

responsáveis por consolidar emblemas como o de que a população de brancos do Maranhão

foi conhecida e valorizada por sua elegância e educação diferenciada, aplicados no ímpeto de

em tudo imitar os hábitos europeus, que entre outras coisas, fez de São Luís um dos lugares

onde é mais agradável a permanência (A. D’ORBIGNY, apud CALDEIRA, 1991, p. 27).

Se por um lado, os relatos de quão agradáveis eram as condições da estada na

capital da província, por outro lado, também são notórias nesse tipo de narrativa, as

referências sobre o grau de desenvolvimento intelectual e moral por parte dos provincianos,

estando estes comparáveis aos europeus do império (CALDEIRA, 1991, p. 28). Estes e outros

29

elementos corroboraram a idéia de que estava em formação um espaço diferenciado de todos

os outros do Brasil.

As representações elaboradas em torno da sociedade ludovicense, mesmo

pretendendo o resgate de um conjunto de elementos que se pretendem reais, são sempre

determinadas pelos interesses do grupo que as forjam (CHARTIER, 1990, p. 17). De maneira

alguma, tais discursos ou relatos elaborados pelos cronistas viajantes do século XIX se

configuram enquanto proposições neutras ou imparciais, isto é, desprovidas de uma

intencionalidade. Segundo Roger Chartier, estes elementos discursivos são produtores de

estratégias e práticas sociais que estão no limiar de uma profunda e tênue relação de poderes e

se comportam como produtores ou legitimadores de um tipo de autoridade de um grupo que se

pretende hegemônico sobre os demais. Para usar um termo de Chartier, foram as lutas de

representações4 que possibilitam compreender as maneiras pelas quais um determinado

segmento social objetiva impor uma visão de mundo específica, que ao mesmo tempo é o

reflexo de seus valores e sinônimo de seu domínio (CHARTIER, 1990, p. 17)

O que torna frutífera a problematização sobre tais representações as quais se

comportaram como sustentáculo de um discurso sobre a realidade do Maranhão, é a

objetividade de construir, elaborar, de forjar um determinado arquétipo que está no limiar da

consolidação e dos desmembramentos de um complexo de identidades que se pretende

hegemônica e comum a todos. O elemento diferencial apresentado pela História Cultural para

refletir sobre os símbolos consolidados representivamente no Maranhão, é que o conceito de

representação torna possível a compreensão das formas e dos motivos (...) que, a revelia dos

atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que (...)

descreve a sociedade tal como pensa que ela é ou como gostaria que fosse (CHARTIER,

1990, p. 19).

Esta análise sobre a importância das representações na construção de um passado

de glórias sobre o Maranhão, nos remete a uma prática ligada à atividade de conhecer, isto é,

quando o objeto ausente (neste caso, o passado glorioso) é reapresentado ao estado de

consciência por intermédio de uma imagem que se pretende símbolo, que se pretende modelo,

4 É preciso considerar que as formas produzem sentido, e que um texto investe-se de uma significação e de um estatuto diferenciados quando mudam os dispositivos que o propõem à leitura.

30

um arquétipo. O que está aqui postulado, é que os viajantes do século XIX tiveram uma

profunda participação nesse processo inventivo. Em outras palavras, o Maranhão não era

aquilo que Spix e Martius verificaram e relataram, mas as imagens perpetuadas por seus

escritos, imagens legitimadas simbolicamente e metamorfoseadas pelo sujeito no ato da

resignificação do passado. Desta forma a representação é instrumento (...) que faz ver um

objeto ausente através de sua substituição por uma imagem capaz de o reconstruir e de o

figurar tal como ele é (CHARTIER, 1990, p. 20) ou como pensassem que ele fosse.

Estas elaborações representativas não compõem em si mesmas um conjunto auto-

explicativo e auto-definível no que se refere ao contínuo histórico sobre o Maranhão. Os

autores da historiografia clássica que se debruçaram no estudo desta província a fim de

compreendê-la em sua historicidade, são unânimes, salvaguardando os elementos de sua

escrita marcadamente ideológica, em afirmar que este ambiente diferenciado de relações

sociais e mentais tão longamente narrado pelos viajantes do início do século XIX, só teria sido

possível de ser construído graças à implantação da Companhia Geral de Comércio do Grão-

Pará e Maranhão no início da segunda metade do século XVIII, que inserira o Maranhão no

cenário do progresso e do desenvolvimento. Não nos cabe aqui mensurar em que proporção tal

evento histórico influencia no curso dos acontecimentos durante o século XIX, mas perceber

minimamente que a criação de tal companhia foi erigida como um marco na história de glórias

a ser trilhada pela província do Maranhão e por seus filhos (MEIRELES, 1960, pp. 174-186).

Criada com o objetivo de (...) animar-lhes o comércio, fomentando a agricultura

(MEIRELES, 1960, p. 184), foi concedida a tal companhia a responsabilidade de dinamizar e

modernizar a economia do Maranhão, que até então se encontrava em um estágio prematuro.

Mário Martins Meireles assegura que o após a consolidação deste empreendimento, o

Maranhão saíra de um estágio de apatia para colocar-se em um nível de opulentas negociações

com os grandes centros comerciais da Europa. Estas afirmativas postulam ainda que fora a

partir das políticas do Marquês de Pombal, através de sua ação na Cia. de Comércio, que se

deu a consolidação de um Maranhão moderno, e entre outras coisas, possibilitaram à elite

mecanismos de uma maior acumulação de riquezas, derivadas da agro-exportação, gerando,

em última instância, o hábito de mandar estudar na Europa os filhos e filhas da nobreza.

31

A este processo inventivo, Alfredo Wagner B. de Almeida (1983) confere a

nomenclatura de Periodização Ortodoxa, e retoma os clássicos como Raimundo José de Sousa

Gaioso (1818), Garcia de Abranches (1822) e Francisco de N. S. dos Prazeres (1820) para

balizar a análise. Teria sido com base na colocação da economia maranhense no contexto

mercantil da produção algodoeira, aproximadamente por volta do ano de 1760, que os ideais

foram elaborados, sendo caracterizados como um marco de opulência, nas palavras de

Abranches, a aurora da prodigiosa opulência e engrandecimento desta província

(ABRANCHES, apud ALMEIDA, 1983, p. 49). Não debalde, esta narrativa foi elaborada

como explicação da dinâmica econômica da região, fazendo oposição a um período de

relações instáveis e um outro denominado de prosperidade. Estava em questão práticas e

valores marcadamente políticos.

O que estava em curso era a legitimidade da ordem política e econômica

estabelecida e também sua manutenção pelo campo de poder através da subordinação dos

intérpretes a esta esfera elitista da organização social. Neste sentido, destacamos a

cristalização da data de 1756, referente à implantação das políticas pombalinas, como a

inquestionável ação de elementos e interesses de cunho marcadamente políticos na narrativa

elaborada pelos sujeitos sociais em questão.

Em outras palavras, atrelar as imagens de prosperidade e opulência à esfera do

poder político é uma prática que justifica o status quo dos lavradores enquanto grupamento

social legítimo para agir na referida esfera da economia local. A posteriori destes

acontecimentos, o sucesso individual obtido pelos lavradores foi interpretado como esplendor

econômico de toda a região, em decorrência da grande fortuna e riqueza dos bens produzidos a

esta época (ALMEIDA, 1983, pp. 52-53). Novamente a memória dos fatos sobre a trajetória

da província do Maranhão se confundiu com a ação de um grupo específico, neste caso os

lavradores, que institucionalizou o destacado período como sendo um fausto econômico

marcado pela opulência, riqueza e prosperidade (GAIOSO, 1970).

O fato é que o binômio prosperidade/decadência se consolidou como uma

ferramenta legítima de explicação da dinâmica social, tanto por parte dos letrados a discorrer

sobre o Maranhão ou dos políticos a concretizar em suas respectivas gestões este tal parâmetro

32

explicativo. A questão se dá na proporção em que a idéia sobre a decadência da província era

vista como um elemento inquestionável, independentemente do período ou localidade em

questão.

A relação existente entre estas duas categorias é íntima e direta, haja vista que uma

depende da outra para existir. A decadência seria originária e contraposta à prosperidade, isto

é, de 1755 até os anos iniciais do século XIX, tido como o período mais prodigioso da

economia local, ambas se consolidam através da negação da outra, gerando em contra partida

um outro mito: a idade de ouro da província do Maranhão. Não problematizamos o fato de

que a categoria decadência foi sempre utilizada no tempo presente de quem escrevia. Contudo,

ainda assim vale destacar que a idade de ouro (...) desta província data do estabelecimento da

Companhia de Comércio [sendo que] até esta época a produção da capitania de São Luís

eram insignificantes e nenhum o seu comércio (CRUZ MACHADO apud ALMEIDA, 1983,

p. 82), consolidando o ideário de que o período vivido teria sido superior ao antecedente.

Se por um lado, a idade de ouro esteve cronologicamente coincidente com o

período de maiores exportações e de maior arrecadação por parte dos lavradores, por outro,

carrega consigo sua contradição, isto é, o período de prosperidade teria sido firmado sobre

bases pouco sólidas e que não seriam de longa duração. Em comum a este antagonismo, a

efemeridade da opulência da lavoura e certo continuísmo da decadência enquanto elemento

explicativo da realidade social.

Ainda nesta relação de eventos que confluem para resultados comuns, coube-nos o

destaque de que no referente às relações entre os vários segmentos sociais, a propagação dos

ideais de uma terra excelente e de uma gente excepcional do ponto de vista de sua

intelectualidade, se comportou, como resultado direto dos relatos dos cronistas viajantes do

início do século XIX, em uma prática de imposição, quase incontestável, de que os habitantes

de tal província integravam um diferenciado e nobre espaço de harmonia social, resultando

evidentemente, que tais prerrogativas estavam mais relacionadas a uma vivência e

pensamentos referentes à hegemonia do europeu do que propriamente a uma consciência da

singularidade desse povo (CORREA, 1993, p. 48).

33

Para os mais nostálgicos e saudosistas, o império foi a idade de ouro do Maranhão

(MEIRELES, 1960, p. 280). Afinal, em conseqüência desta suposta modernização trazida

pelas ações pombalinas, teria sido possível a abertura da lavoura e do comércio para um

período de progresso e enriquecimento material atrelado ao aprimoramento intelectual da

sociedade ludovicense, que teria culminado no aparecimento de uma elite de latifundiários,

uma vez que durante o período assinalado, a província maranhense foi marcadamente

escravocrata e agrária, com destaque para o cultivo do algodão e do arroz. O mito da idade de

ouro foi resgatado no período do império e difundido como sinônimo de prosperidade e

opulência para a província (MEIRELES, 1960, pp. 283-289).

Rossini Correa foi enfático ao afirmar que a conseqüência espiritual do

algodoeiro e da rizicultura denominou-se Atenas brasileira. Desde os idos do século XIX foi

consensual a relação entre progresso econômico e fulgor cultural para explicar a trajetória de

glória que conduziu o Maranhão até a consagração como Atenas do Brasil (CORREA, 1993,

p. 83).

O que cabe destacar é que uma relação simplista entre progresso econômico e um

suposto desenvolvimento cultural não é suficientemente completa para abarcar uma rede de

significação tão complexa quanto os presentes nos símbolos culturais. Indiscutivelmente é o

imaginário coletivo que fundamenta a explicação sobre o processo de transição de elementos

culturais de um patamar representativo para o nível imaginário ou simbólico, pois na segunda

metade do século XIX fortalece-se uma concepção de que o real está para além de

representações, mitos e crenças, estando inserido em instâncias imaginárias (BACZKO, 1985).

Não teria sido as imagens sobre a grandeza do Maranhão, o elemento condicional

de existência simbólica deste aspecto de diferenciação? Estas representações não guiam

práticas? Não são elas modeladoras de comportamentos? As respostas a estas questões

comportam-se como elementos esclarecedores da mitologia ateniense do Maranhão. De

maneira específica, compete-nos perceber a ocorrência de um verdadeiro mapa social para

representações que trouxeram os elementos simbólicos para a realidade e os legitimaram

enquanto existentes de forma autônoma. Em outras palavras, um sistema de representações

traduz e legitima a ordem estabelecida da mesma maneira que levanta sujeitos responsáveis

34

pelo manejo das representações e símbolos em questão, ou seja, é prerrogativa do imaginário

social a consolidação de mitologias como elementos de um tipo específico de identidade, uma

vez que o mito (...) assegura a coesão social ao legitimar as hierarquias sociais

rigorosamente definidas (BACZKO, 1985, p. 300).

O imaginário é um olhar sobre si mesmo no mundo5. Neste amálgama de

representações (ora a opulência, ora a grandeza das gentes, ora o fulgor cultural e também os

costumes europeus) produzidos no século XIX, e nos quais os discursos sobre o Maranhão

adquirem unidade, o que se chama de verdadeiro (ou real) e o ilusório (também chamado de

imaginário), não estão separados ou dissociados, pois é através das ilusões que uma época

alimenta a respeito de si própria, que ela (...) esconde sua verdade (BACZKO, 1985, p. 303).

Entre outras coisas, está menos confuso o fato de que cada grupo social elabora

imagens que exaltam seu papel histórico e sua posição na sociedade e servem como

parâmetros reflexivos sobre si mesmo através destas representações. São as imagens que a

sociedade elabora sobre si mesmas que oferecem as respostas de seus conflitos mais latentes.

A elaboração de simbologias (como a Atenas Brasileira) está ancorada em necessidades de

afirmação e terminam por comportar-se como a razão de ser e agir do grupamento social

envolvido em tal processo criativo, afinal, cabe às tais funções introduzir valores, modelar os

comportamentos6 e construir a existência própria da experiência criativa dos sujeitos sociais

(BACZKO, 1985).

É interessante destacar que a explicação que confere legitimidade à construção

simbólica da qual estamos falando, está pautada na relação entre história e literatura, mas não

só pela profícua contribuição que a crítica literária e a própria teoria da literatura trazem para

esta reflexão, mas pelo fato de que os ciclos literários maranhenses se confundem com a

própria gênese da odisséia ateniense dos letrados do Maranhão, alem é claro, do momento

primeiro da formação das terras desta província, que foi também representado pela literatura.

5 É a imaginação que torna o homem um sujeito exteriorizado de si próprio, na medida em que determina a própria existência a partir de imagens que representam uma reflexão mais sobre si que sobre o outro, no nosso caso, criando uma esfera de excepcionalidade e prodígios intelectuais. 6 Mesmo as representações coletivas mais sólidas só têm existência, isto é, só são verdadeiramente tais, na medida em que comandam atitudes sociais.

35

Se por um lado, um tipo de análise que prioriza a correlação entre os ciclos

econômicos e as produções literárias se consolida como elemento de respaldo da trajetória de

grandeza das terras do Maranhão, ou seja, de certo fulgor e brilho intelectual na província, por

outro, o elemento criativo próprio da narrativa literária nos oferece possibilidades de sinalizar

que representações igualmente emblemáticas, foram criadas e apropriadas da literatura, para

consolidar um desenvolvimento vultoso desde o fausto econômico de meados do século XVIII

até o decadentismo dos anos finais do século XIX, no que se refere à produção literária

maranhense (MEIRELES, 1955).

Este postulado é tão significativo para a história da literatura do Maranhão, que os

marcos fundamentais que demarcam o início e término de determinado ciclo literário, estão

ornados de adereços narrativos que nos remetem sempre a uma representação imagética de

grandeza e prosperidade. Em outras palavras, em fins do século XVIII, o Maranhão

encontrava-se distanciado por completo do fortalecimento da estética e dos ideais arcadistas

que sedavam no sul da colônia, para só despertar de tão letárgico sono, em princípios do

século XIX com o Romantismo7 e uma literatura mais autônoma (MORAES, 1976, pp. 37-

51).

Da combinação imaginária entre opulência econômica e ilustração intelectual fruto

da excelência da terra maranhense, teria surgido com ímpeto vanguardista, o Grupo

Maranhense, tido como a maior representatividade da literatura do Maranhão no cenário das

letras nacionais. Neste sentido, se outrora destacou-se o caráter criativo dos viajantes a

elaborar relatos sobre o que seria a cidade de São Luís e a rotina de seus habitantes, na mesma

medida, foi em torno do Grupo Maranhense que se consolidaram imagens acerca de uma

efervescente produção literária nesta província. Genericamente imputa-se a Odorico Mendes,

João Francisco Lisboa, Gonçalves Dias, Sotero dos Reis, Gomes de Sousa, entre outros, a

responsabilidade de inserir o Maranhão definitivamente no roteiro da produção poético-

romântica, então em evidência.

7 Com o advento do Romantismo, grupos de jovens poetas organizaram-se no sentido de promover a formação de uma literatura “nacional”. Nas províncias mais expressivas do império surgiram grupos que tomaram a frente de tal processo de produção literária. No Maranhão, esta concepção sobre um Grupo Maranhense na literatura romântica foi utilizada como justificativa para uma outra construção literária, a idéia de Atenas brasileira, que foi erigida pela produção local como símbolo da singularidade e prodigalidade da província no campo das letras.

36

Tanto Mário Martins Meireles em Panorama da literatura maranhense, quanto

Jomar Moraes em Apontamentos de literatura, são convergentes em afirmar a inauguração de

um período literário diferenciado dos demais pelo romantismo do Grupo Maranhense. Em

outras palavras, mostram que no Maranhão teria havido uma convergência do advento do

Romantismo com o período de inserção do Maranhão no cenário das letras nacionais de tal

forma, que chamando a atenção de todo o pais (...) para este recanto do Brasil onde se

manifestaram (...) tantos engenhos, que se lhes comparou com (...) à capital da velha Grécia,

chamando-a de Atenas Brasileira (MEIRELES, 1955, p. 64). Neste aspecto, o surgimento

desses letrados no início do século XIX se confunde com a própria gênese desta noção de

singularidade cultural, porque nas palavras de Jomar Moraes,

No Maranhão, os contemporâneos de Gonçalves Dias, conhecido na história da literatura brasileira pela antonomásia de Grupo Maranhense, dariam ao Brasil, como expressão de vida literária tão eloqüente testemunho de cultura e talento, que justificariam, (...) o cognome de Atenas Brasileira (MORAES, 1976, p. 49).

A aparição do Grupo Maranhense neste cenário das letras é sobremaneira

significativa, a ponto de ser postulado a inexistência de uma literatura do Maranhão antes

deste advento. Segundo Mário Meireles, só no começo do século XIX, nas vésperas do

surgimento espetacular do ‘Grupo Maranhense’, aquela plêiade gloriosa e imortal que

conquistou e nos legou o título invejável de Atenas Brasileira, é que volta a se manifestar de

maneira sensível, ligeiramente sensível à nossa própria literatura (MEIRELES, 1955, pp. 38-

39); tanto que em torno deste grupamento de letrados elaboraram-se as significações mais

diversas para legitimar um arquétipo de grandeza para o Maranhão, de tal forma que teria sido

supostamente com o Grupo Maranhense que a sociedade ludovicense chegara a um nível

consideravelmente diferenciado de desenvolvimento intelectual e refinamento educacional,

graças à ação primorosa de Odorico Mendes, Sotero dos Reis, entre outros.

Se por um lado, a ação engajada e politizada do Grupo Maranhense poderia ser

considerada motivo suficiente para justificar aos seus contemporâneos o brilhantismo superior

que a posteridade afirmou que eles possuíam, e da mesma forma, através do volátil imaginário

social maranhense, se consagraram como herdeiros do ideal clássico da Atenas grega, por

37

outro, é igualmente verdadeiro o florescimento acelerado de inúmeros periódicos e jornais,

que em tese, ilustram o esplendor literário vivido ‘por todos’ nesta parte das terras do Brasil.

O marco inicial para esta explosão de publicações é, indiscutivelmente, a

instalação da Tipografia Imperial Nacional, nas primeiras décadas do século XIX, em terras do

Maranhão. Legou-se como responsabilidade de tal tipografia, um verdadeiro nervosismo

editorial e intelectual que seria palco, motivo e cenário dos mais diversos embates entre a elite

pensante de São Luís.

Assim, enumero abaixo em ordem cronológica, os mais importantes trabalhos

tipográficos dos primeiros anos do século XIX em São Luís, com destaque para jornais,

periódicos e revistas: Argos da Lei (1825) de Manoel Odorico Mendes; O Censor (1825) de

Garcia d’Abranches; O Farol Maranhense (1827) de Candido Moraes; O Despertador

Constitucional, de Odorico Mendes; O Brasileiro (1832), Eco do Norte (1834), de João

Francisco Lisboa; O Investigador Maranhense (1838) de Sotero dos Reis; Chronica

Maranhense (1838) de João Lisboa; A Revista (1839) de Sotero dos Reis; Jornal Maranhense

(1841); Publicador Maranhense (1842); Jornal de Instrucção e Recreio (1845); O Arquivo

(1846); A Imprensa (1847) de Antonio Rego; O Progresso (1847); O Observador (1847) de

Candido de Mendes; Nova Época (1856) de Luís Antonio Vieira da Silva; A Conciliação

(1856) de Antonio Henriques Leal; entre outros periódicos e folhas literárias publicados a

partir do ano de 1821 na província do Maranhão (JORNAIS MARANHENSES, 1821-1873).

Neste ambiente de considerável atividade editorial, destacaram-se, ao que tudo

indica, as ações daqueles que compunham o Grupo Maranhense: João Lisboa, atuando como

crítico da sociedade maranhense; Gonçalves Dias, decantado como ilustre do Romantismo

brasileiro, gênio; Odorico Mendes, por seus escritos clássicos, consagrado como exímio

tradutor; Sotero dos Reis, gramático da língua portuguesa; entre tantos, que por suas

atividades individuais ou em grupos literários, realizaram importantes trabalhos para a história

da literatura do Maranhão.

Os poetas deste grupo foram estudados, analisados e consagrados como deuses,

gênios ilustres, ‘vates’ supremos da nossa literatura, dotados de um talento que estaria acima

38

do bem e do mau, ou nas palavras de Mário Meireles: estes homens que fizeram do Maranhão

a Atenas Brasileira! A eles a nossa eterna veneração (MEIRELES, 1955, p. 69). Enfim,

estava consumada a tarefa, quase que messiânica, de salvação do Maranhão das ignorâncias

dos incultos através da letra e da pena redentora dos ilustres e supremos membros do Grupo

Maranhense, ou seja, os caprichos intelectuais destes sujeitos transformaram-se em mito de

existência e bem viver no Maranhão.

Até aqui mostramos minimamente o modo como a historiografia clássica do

Maranhão narrou e consolidou a trajetória do Grupo Maranhense rumo à um suposto destino

de grandeza e glória, assim como também a maneira pela qual a representação elaborada em

torno deste grupo se estabeleceu no imaginário ludovicense como um elemento de

diferenciação existencial. Os intelectuais anteriormente citados, tiveram também sua trajetória

marcada por uma ação política atuante de profundas críticas à organização social do

Maranhão, à semelhança de João Francisco Lisboa.

Neste ponto sinalizamos o que os teóricos da história literária do Maranhão

chamaram de segundo ciclo da literatura maranhense, demarcando seu fim junto ao término da

circulação do periódico o Semanário Maranhense, erigido como símbolo da produção poética

destes letrados até os princípios da segunda metade do século XIX (MORAES, 1976, p. 117).

Da década de 1860 a 1890, inaugurou-se o terceiro momento da produção literária

maranhense, ou no dizer dos mais nostálgicos, a segunda geração de intelectuais e poetas do

Maranhão, muito embora considere este momento como parte integrante de um mesmo

fenômeno histórico iniciado, construído e expandido nos anos iniciais do século XIX. Afinal,

no que se configurou como a segunda geração de letrados, ainda figuravam personalidades

como Frederico José Correa, Sousândrade, Candido Mendes, Antonio Henriques Leal, César

Marques, Temístocles Aranha, entre outros, cuja estética e narrativa ainda apresentavam

aspectos marcadamente românticos, apesar de posteriormente vivenciarem a transição de

movimentos como o realismo, passando pelo naturalismo, até chegar ao parnasianismo.

Neste sentido, há a presença de elementos que diferenciaram este novo período do

anterior, de que os homens de letras no Maranhão não mais ficaram na terra natal e nem dela

39

saíram depois de firmado o nome intelectual, mas procuraram muito cedo migrar para as

metrópoles maiores do sul, mesmo que mal ensaiassem os primeiros versos, crônicas ou

comédias, indo confirmar lá fora a fama de Atenas Brasileira (MEIRELES, 1955, p. 120). Dito

de outro modo, foi o período em que os intelectuais do Maranhão se consagraram como

literatos nacionais, de um lado levando teoricamente a imagem da terra natal aos cenários

nacionais da produção poética, e de outro promovendo certa estagnação ou marasmo na

atividade literária local.

Por outro lado, os poetas migrantes continuavam a ser tratados pela história

literária local como precursores de um grande empreendimento artístico, pois como

continuadores da odisséia trágica da Atenas do Brasil (devido à morte da maioria dos poetas

do chamado Grupo Maranhense), se constituíram como herdeiros de um passado glorioso e

sublime que legitimava sua produção poética presente, enfim, uma idealização digna do

romantismo. Este grupamento de indivíduos consolidou com suas ações uma trajetória de

intervenções sociais através, tanto da publicação de suas obras, quanto de sua prática política

para perpetuar um modelo que os legitimava do ponto de vista da produção literária e que os

singularizava da perspectiva do seu status quo, a Atenas Brasileira.

Não seria por falta de celebridades que o Maranhão seria extirpado do cenário das

letras, pois ainda contava-se com a presença de grandes personalidades, como: Raimundo

Correa, que juntamente com Olavo Bilac fortaleceram o parnasianismo brasileiro, sendo ele

poeta em toda a sua extensão (MEIRELES, 1955, p. 122); Teixeira Mendes, um forte

expoente do positivismo no Brasil; Celso Magalhães, exímio prosador e folclorista; Aluízio

Azevedo, ícone nacional do realismo; Coelho Neto, conhecido como o príncipe dos prosadores

brasileiros pela opulência de seus escritos; Graça Aranha, pré-modernista sensível ao embate

político e Artur Azevedo, teatrólogo e dramaturgo. Talvez à exceção de Aluízio Azevedo,

todos os demais literatos tiveram suas obras marcadas com poesias, crônicas ou dramas acerca

do Brasil, provavelmente prendendo-se ao Maranhão pelos laços de nascimento, e

desenraizados por algum tipo de regionalismo literário, pelo menos a posteriori (MORAES,

1976).

40

O ponto a ser aqui destacado é a inexistência de vínculos dos letrados com a sua

terra natal, uma vez que a maioria destes abandonou-na. Para o Rio de Janeiro partiram

Teófilo Dias aos 20 anos, Artur Azevedo aos 18 e seguindo-o alguns anos mais tarde, seu

irmão Aluízio. Raimundo Correa é o caso mais emblemático, já que deixou as terras timbiras8

aos três anos de idade e não mais regressou. Graça Aranha parte aos 21 anos e apenas Celso

Magalhães, por ter morrido muito jovem, não migrou (MORAES, 1976, pp. 123-124).

Mesmo com esses exemplos notórios de desvínculo dos letrados com a decantada

terra e até mesmo, da inexistência de um ambiente intelectualizado na província do Maranhão,

foram criadas representações em torno deste amálgama de letrados que simbolizaria a

‘essência’ maior da identidade maranhense, o que é na verdade, uma elaboração fruto de uma

relação de forças que tende a comportar-se como reguladora da vivência dos maranhenses,

definindo para a elite lugares diferenciados, pretendendo criar em contra partida, lugares de

conflito que legitimariam o próprio lócus ocupado pela elite.

Novamente a literatura nos oferece o suporte para compreender a existência de

alguns elementos nesse período de transição na literatura nacional. Se por um lado, os

românticos elaboraram um sentido de ligação com a terra-mãe e até um excesso de patriotismo

atrelado a uma constante modificação dos objetos que os rodeia, por outro, a crítica literária

realista coloca em questão esse complexo mítico-literário dos românticos em função da

impessoalidade dos objetos e de uma nova tendência interpretativa desta realidade socialmente

construída, dando ênfase ao cotidiano do homem bem sucedido das cidades através de uma

narrativa obscura como os elementos comportamentais desta burguesia citadina, cinzenta

como a própria existência nas cidades imersas na poesia fatalista de Aluízio Azevedo, Raul

Pompéia e Raimundo Correa (BOSI, 2004, p. 168).

O que estava em curso na década de 1870 era uma clara reação anti-romântica, que

na ficção foi denominada de Realismo, depois de Naturalismo, na poesia chamou-se

Parnasianismo e Materialismo e Positivismo na filosofia. Esse novo olhar dos literatos sobre a

sociedade promoveu uma verdadeira cruzada contra os elementos míticos do Romantismo, e

8 Terras Timbiras é uma referência ao poema Os Timbiras de Gonçalves Dias, publicado em Primeiros Cantos no ano de 1846.

41

iniciou uma reflexão sobre o período conhecido como o fundador da Atenas Brasileira, e com

esta reflexão, uma leitura mais acurada sobre as recentes obras do Romantismo e sua crítica

quase que automática.

Estes elementos nos levam à compreensão de que não foi o mero acaso o

responsável pelo grande fluxo de intelectuais maranhenses à cidade do Rio de Janeiro. Durante

os últimos anos do século XIX, especificamente em 1870, quando da ênfase das campanhas

pró-abolição, grande parte da produção literária nacional se dava na cidade do Rio, por esta

concentrar parte sensível do mercado de trabalho para os homens de letras, em função,

também, da Academia Brasileira de Letras. Desde a segunda metade do século XIX que a

literatura não se comportava mais como a arte pela arte dos realistas, estando envolvidos com

os elementos de um intenso fluxo cultural, os intelectuais integraram um inovador processo de

grandes transformações (SEVCENKO, 2003).

Não é de surpreender que os poetas e cronistas do Maranhão tenham se tornado

literatos de cunho nacional e muito menos que tenham se radicado no Rio de Janeiro, uma vez

que nessa cidade existiam todas as condições para um satisfatório desenvolvimento intelectual,

condições estas que não existiam em São Luís. Entre outras atividades, o grupo de letrados

emigrados do Maranhão compôs juntamente com outros, o grupo de fundadores da Academia

Brasileira de Letras.

Da ação desses letrados em pleno fulgor da poesia ficcional realista, abstrai-se

uma literatura que se comporta como fator de mudança social, buscando um campo autônomo

de ascensão na expectativa de consolidar a pena e a prática da escrita como um outro poder

igualmente legítimo na condução da sociedade, apesar de os elevados índices de analfabetismo

se colocarem como dificuldade nesse processo de manipulação. Estes letrados refletem sobre o

país e sua província de origem como se sua vontade fosse o centro próprio de onde emanava o

poder de decidir os rumos do estado não então em desenvolvimento (SEVCENKO, 2003).

Este outro grupamento de poetas e literatos, cuja formação intelectual se deu quase

que majoritariamente na Faculdade de Direito do Recife, teve sua participação na vida

maranhense caracterizada pela difusão de ideais abolicionistas e de implantação da república,

42

além de cristalizar sua trajetória pessoal como naturalmente tendendo às atividades do espírito,

consolidando uma espécie de culto ao chamado Grupo Maranhense. Possivelmente, o

elemento mais representativo desta veneração do grupo institucionalizador da ‘Atenas

Brasileira’ seja a obra Terras e Homens (1948) de Raul Azevedo, quer por sua escrita

saudosista ou pelo conteúdo nostálgico de suas idéias. Em Terras e Homens encontramos a

seguinte idéia:

Chamam-te, meu Maranhão, de Atenas Brasileira! Em todo este vasto país, (...) eras e és conhecido pela alta intelectualidade, a Atenas nacional. (...) foste o berço da civilização patrícia. És também, minha terra, uma das sentinelas e do falar a amada língua portugueso-brasileira! Todos respeitam o teu apuramento no dizer, a dicção correta e formosa, a linguagem escorreita e pura, a riqueza suntuosa e invulgar dos vocábulos, a elegante sinfonia da frase, (...) alinhando idéia perfeita! (AZEVEDO apud MEIRELES, 1955, pp. 180-181).

Ao que tudo indica, parece que estava muito claro na compreensão dos herdeiros

da ‘Atenas Brasileira’, que eles compunham um espaço intelectualizado sobremaneira e

privilegiado socialmente.

Em o Semanário Maranhense (1867-1868), agonizaram os últimos esforços em

conservar certo ritmo de produção e até mesmo de vivência intelectual por parte dos

remanescentes ainda na ilha do Maranhão. Segundo Antonio Lobo, foi o canto de cisne da

brilhante geração literária, que em meados do século findo, no Maranhão viveu e trabalhou,

explorando com maestria e fulgor, quase todos os variadíssimos departamentos da produção

mental (LOBO, 1909, p.13), não só por parte dos primeiros literatos que hora passavam pelo

tempo e pelas gerações como mestres, mas também por outros indivíduos que ascendiam em

meio ao grupo de poetas.

Se por um lado, O Semanário Maranhense desaparece, e com ele todo aquele

conjunto de poetas que em maioria tiveram outras localidades como destino, por outro, a

própria ação do tempo, isto é, a morte, pôs fim a nomes como Odorico Mendes (Inglaterra,

1864), Joaquim Franco de Sá (Rio de Janeiro, 1861), João Francisco Lisboa (Portugal, 1863),

Gomes de Sousa (Inglaterra, 1863) e Gonçalves Dias (Maranhão, 1864), o que do ponto de

vista prático, significou a fragmentação do referencial simbólico dos poetas que ainda estavam

produzindo. Antonio Lobo mostra que tal período da história literária do Maranhão

43

comparava-se a uma triste e calamitosa noite nas quais as letras locais foram imersas, tendo

como conseqüência imediata a obliteração das glórias do passado (LOBO, 1909, p. 14).

O princípio do século XX foi o último período desta epopéia que tem sua gênese

no Grupo Maranhense. Estes anos iniciais teriam sido marcados pelo ímpeto de restabelecer na

capital o mesmo ambiente intelectual dos anos da primeira metade do século XIX. Apesar de

muito assombrados pelo fantasma do esplendor que passou, e talvez perdidos junto à morte

dos românticos do Maranhão, estavam cientes de que a capital do estado não se configurava

mais como o centro de excelência do conhecimento que outrora fora, e que seus literatos

pertenciam agora à nação. Tentaram de todas as formas conservar, consagrar, cristalizar a

fama da ‘Atenas Brasileira’ para si e para seus escritos, afinal, ser bom poeta era ser herdeiro

da tradição de ‘Athenas’ (MEIRELES, 1955, p. 163).

Por entre folhetins, jornais, associações e grêmios literários, os novos poetas

fizeram tudo o que era possível para manter a poesia que os fazia diferentes. Esforçaram-se em

vão, a Atenas estava perdida e em seu lugar restara apenas a lembrança, ou talvez a saudade,

mas certamente estavam cheios de uma autopiedade decadentista que ocupou o palco da

grande epopéia dos letrados do Maranhão. Se antes havia esplendor, glória, opulência, brilho,

embalados pelos ventos fortes da literatura romântica, em seu presente, porém, restara a

decadência, o ofuscar, o fracasso, as letras opacas de uma ‘poesia sem vida’ e por fim, as

lágrimas que representavam a nostalgia de um tempo que não voltaria (LOBO, 1909).

Longe de vislumbrar-me pelo fenômeno histórico que pretendi analisar, as linhas

acima simbolizaram um mapeamento da maneira como esta concepção de singularidade e

diferenciação, se consolidou enquanto um viés unilateral de explicação e análise do ser

maranhense, e por outro lado, comporta-se como tarefa duplamente árdua, do ponto de vista

do método, por se tratar de representar elementos já representados, quer na literatura ou na

própria história, sendo de imprescindível cautela, o olhar lançado sobre as narrativas referentes

à ‘Atenas Brasileira’.

Sendo o ofício do historiador uma tarefa essencialmente narrativa, e a reflexão

sobre o fenômeno histórico uma atividade interpretativa, o historiador que trabalha com a

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elaboração de símbolos culturais está no limiar da representação, por entre textos, objetos,

práticas e bens simbólicos dela decorrentes. Desta forma, a análise sobre a construção do ideal

de Atenas do Brasil poderia ser feita com base no estudo de um segmento particular de objetos

impressos, como: os relatos dos cronistas viajantes do século XIX; os folhetins de jornais

sobre a atividade intelectual dos poetas na capital da província e pela Europa ou ainda, com

fundamentação na prática de leitura e de reescrita deste material impresso, na tentativa de

mensurar as possibilidades de produção de significados do texto enquanto categoria

dependente dos elementos e do meio a ele receptivo ou como produto de um processo

historicamente determinado pela própria prática social (CHARTIER, 1991, p. 178).

Roger Chartier afirma claramente que a leitura é sempre uma prática encarnada

em gestos, espaços e hábitos, e que é por meio desta prática que o texto adquire sentido. Esta

ênfase dada ao exercício da leitura enquanto atividade interpretativa produtora de significação,

é de fundamental importância para compreender o modo como os textos produzidos pelos

clássicos do século XIX foram erigidos enquanto ícones de um espaço diferenciado

intelectualmente e como marcos legitimadores da ateniensidade do Maranhão, destacando que

new readers make new texts, and their meanings are a function of their new form9

(CHARTIER, 1991, p. 178).

O que está proposto é uma tentativa de compreender como as fontes históricas, e

neste caso, prioritariamente textos, foram diversamente apreendidos, entendidos e

manipulados, convergindo para os interesses do grupo social que se pretende hegemônico pela

produção e manuseio de um discurso de grandeza, afinal, a leitura é também uma relação com

o outro (CHARTIER, 1991, p. 181). O elemento a nos intrigar, é que sendo o texto um

discurso produzido historicamente e permeado de uma intencionalidade, produto dos objetivos

do autor a qual o elaborou, provavelmente os textos produzidos no século XIX, sejam eles

folhetins, poesias, cartas, memórias, tiveram um uso não pretendido pelos seus respectivos

autores, e é esta perspectiva a condutora das nossas interpretações sobre a idéia de São Luís ter

sido representada como Atenas Brasileira.

9 Novas Leituras fazem novos textos, e seus significados são uma função de sua nova forma.

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Dessa maneira, estamos diante de uma elaboração identitária que se comportou

como produto do conflito entre representações impostas pela elite intelectual, que produzia as

mais variadas classificações, e as construções que a sociedade elabora sobre si mesma. E com

base na trajetória trilhada através dos textos desde os cronistas até os poetas decadentistas do

fim do século XIX, é que está menos confusa a compreensão de que sentir-se singular, de

pensar-se enquanto ateniense, é mais fruto da relação de representações das narrativas com o

imaginário social do que uma vontade deliberada de seus supostos agentes históricos.

46

3. Cantos Românticos do Grupo de “Atenas”.

A História é uma vitrine e nela estão expostas identidades sociais; sempre voláteis,

múltiplas, dinâmicas, mas nunca dadas, em hipótese alguma, acabadas, terminadas,

concluídas; elas estão sempre em formação. Identidade social é diferenciação quer de um

outro período localizado no tempo, ou distinto de outras sociedades, mas não desligamento,

pois é o lugar da ambigüidade entre o evento (chamado de real) e o relato (chamado de

discurso), que reside legitimidade do trabalho histórico. Por um lado, a história comporta-se

como o olhar lançado de uma época sobre suas origens, afirmando em relação aos seus

precedentes eu não sou isso, e acima de tudo, postulando a multiplicidade própria de

elementos identitários, no sentido de que uma geração pensa a si mesma como algo superior

ao que pretende ser, sendo determinada pelos elementos que nega e não legitima (DE

CERTEAU, 2006, p. 56).

Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, resistência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente. Ela reitera (...) os mitos que (...) fazem da linguagem o vestígio sempre remanescente de um começo tão impossível de reencontrar quanto de esquecer. O discurso histórico não é senão uma cédula de uma moeda que se desvaloriza. Afinal de contas não é mais de que papel. (...) o texto da história sempre o retoma, (...) articulado com aquilo que não é (CERTEAU, 2006, pp. 57-58).

Colocou-se o que Michel de Certeau chamou de o lugar do morto, no sentido de

ser a história responsável por evidenciar uma população de mortos – personagens,

mentalidades, práticas, memórias... A escrita, segundo Certeau, representaria um tipo de rito

de sepultamento, em outras palavras, de abstração de temporalidades em favor da colocação

dos fenômenos sociais na esfera do discurso, adquirindo, portanto, um aspecto simbolizador

dos eventos trasladados do real para o simbólico através da narrativa. Neste sentido, a relação

existente entre a emergência de grupos literários e a elaboração de um certo tipo de identidade

cultural no Maranhão do século XIX, foram analisados nos parâmetros da dinâmica da escrita

como elemento criador de sentidos históricos.

Nesta parte do trabalho demos destaque à emergência do Grupo Maranhense

enquanto padrão necessário para compreender a representatividade que houve na formação da

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“Atenas Brasileira” como um sinônimo de grandeza dos literatos maranhenses. Esta parte da

narrativa foi centralizada em temas como a historiografia em torno da literatura produzida pelo

chamado Grupo Maranhense do Romantismo brasileiro.

O contraponto imediato ao Romantismo, foi sem dúvida, o fim do Arcadismo.

Sem pretender uma justaposição maniqueísta dos dois modelos, cabe mostrar que se por um

lado, os arcadistas buscavam explicações universalistas para o fluxo de processos sociais, por

outro, o Romantismo surgiu como uma nova proposta de entendimento do mundo, mais

direcionada a particularismos ou especificidades, que em última instância comportaram-se

como delineadores de identidades.

Neste sentido, por considerar a distinção entre manifestação literária e produção

literária propriamente dita, foi possível identificar com o advento da literatura romântica o

aparecimento de produtores literários mais conscientes de seu papel, e que compreenderam a

literatura por meio de mecanismos simbólicos sistêmicos, pelas quais as veleidades intrínsecas

aos indivíduos transformaram-se em pontos de contato entre os vários sujeitos sociais (cientes

ou não de sua ação) produtores de múltiplas apreensões da realidade (CANDIDO, 1975, vol.

1, pp. 23-24).

Ainda neste aspecto, afirmamos que foi a partir dos árcades, profundos em sua

ilustração, que surgiram letrados convergentes na elaboração de grupos intelectuais

comprometidos e engajados no interesse de elaborar uma literatura brasileira. Antonio

Candido mostrou que o início da nossa verdadeira literatura foi localizada na fase arcádica,

pois foram estes que vislumbraram a produção literária brasileira como um elemento de

expressão da realidade local e caractere indispensável na construção da nacionalidade. Mais

do que isso, o que estava em pauta era a elaboração de uma literatura própria e não um simples

caminho rumo à autonomia da produção, mas uma definição ontológica de que os brasileiros

possuíam a mesma competência que os europeus julgavam ser possuidores para produzir uma

literatura que fosse uma mostra de sua identidade (CANDIDO, 1975, vol. 1, p. 26).

No Maranhão, apenas em 1823 foi declarada a independência. O que se chamou de

adesão à independência do Brasil comportou-se como uma ação forçada, conflitante e

exógena à realidade social e política da província. Possivelmente a relação direta da província

com a coroa portuguesa tenha conduzido a esta diferenciação do ideal político de então, no

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que se referia à independência. Antonio Henriques Leal, ao escrever a biografia de Antônio

Gonçalves Dias sem suas Obras Póstumas mostrou que

Se (...) de todas as províncias do império brasileiro não fosse a do Maranhão a que oferecesse mais tenaz resistência ou em que se ferissem os mais sangüíneos combates pela causa da independência, ainda assim não foi sem luta prolongada e porfiosa, às vezes encarniçada e com efusão de muito sangue (...) que os lidadores da pátria conseguiram varrer de nossos solos o domínio, e plantar nele a viridante árvore da liberdade (DIAS, 1868, p. 21).

Após a independência, a vertente da autonomia literária se aprofundou, levando a

atividade criadora da literatura a ser vista como parte integrante do empreendimento de

construção de um país livre, em consonâncias a um tipo de programação estabelecida pelos

letrados visando a diferenciação e particularização dos temas desta nova literatura chamada de

romântica e das maneiras diferentes de exprimi-la. Nesta perspectiva, destacamos o

aparecimento de uma espécie de racionalismo artístico produto das condições históricas muito

específicas do século XIX, e balizadas na autonomia e na pretensa unidade de um nascente

estado-nação. Foram estas características que marcaram os primeiros anos da vida literária no

Maranhão, salientando o esforço de glorificação dos valores locais, revitalizando as formas de

expressão e oferecendo significação a formas de comportamento.

A independência foi de fundamental importância para a compreensão dos

desmembramentos da idéia romântica, deslocando a expressão de uma nova ordem de

sentimentos por parte do indivíduo em relação ao seu papel na sociedade (a uma espécie de

harmonia consigo mesmo) e com relação à pátria; a criação de uma literatura também

independente, diversa e múltipla que buscasse novos modelos explicativos relacionados com a

liberdade; e a noção de que a atividade intelectual era sinônimo do exercício de elaboração de

um espaço diferenciado, de um ambiente nacional (CANDIDO, 1975, vol. 2, p. 11). Em outras

palavras, ambicionava-se que a literatura romântica fosse para o Brasil a mesma coisa que a

independência representou no âmbito da política.

Apesar de tratarmos do mesmo fenômeno histórico-literário, o Romantismo

comportou-se de maneira diversa tanto na Europa quanto no Brasil. René Wellek mostra que

Se examinarmos as características da literatura que se chamou a si mesma de romântica em todo o continente, encontraremos pela Europa as mesmas concepções

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de poesia e dos produtos e natureza de imaginação poética, a mesma concepção de natureza e sua relação como homem, e basicamente o mesmo estilo poético, com emprego de imagens, símbolos e mitos claramente distintos do emprego do neoclassicismo do século XVIII (WELLEK, 1963, p. 145).

Por outro lado, para evitar olhar o romantismo de maneira acrítica, convém

realizar algumas sinalizações referentes aos desmembramentos do Romantismo no Brasil, pois

em meio à uniformidade do amor à pátria, diferentemente da Europa, a expressão romântica

brasileira foi localizada e mostrou-se de maneira múltipla por diversos grupos.

Entre estes, cabe oferecer destaque ao ‘Grupo fluminense’(também conhecido

como grupo de Niterói) composto por Gonçalves de Magalhães, Porto Alegre, Francisco

Adolfo de Varnhagen, destacando poesia, teatro e historiografia em sua produção; o ‘Grupo

paulista’ composto basicamente por estudantes de Direito que foram influenciados pelas

idéias de Fernand Denis e Almeida Garret; o ‘Grupo Maranhense’, com características ainda

clássicas de linguagem e liberais na política, composto por nomes como Francisco Sotero dos

Reis, João Francisco Lisboa, Antônio Gonçalves Dias e Manoel Odorico Mendes e por fim o

‘Grupo de Pernambuco’ entre os quais figuravam outras personalidades da faculdade de

Direito de Olinda (BOSI, 2004, pp. 154-155).

Mesmo com uma ação localizada por partes dos grupos específicos de literatos em

relação à produção romântica, a ligação destes letrados com a Europa, especificamente

Portugal, era um mecanismo de legitimidade de seus escritos. Era a Universidade de Coimbra,

o centro para onde convergiam os maranhenses que ambicionavam aprofundar os estudos, e

foi ao que se atribui o gosto dos mesmos pela leitura dos clássicos como o exemplo de Manoel

Odorico Mendes - intérprete de Homero e Voltaire - e João Francisco Lisboa e Sotero dos

Reis, ambos exímios tradutores.

Se com o Romantismo afloraram as novas temáticas de poesia e uma outra

compreensão de realidade social e do papel do artista na sociedade, no Maranhão, o

aparecimento do Grupo Maranhense teria sido responsável por consolidar a produção literária

local no cenário das letras nacionais.

Os autores que atingiram a maturidade durante os primeiros anos da regência,

compõem um conjunto de grande importância para a história da literatura brasileira. A

tautologia, própria das narrativas históricas, instiga em todos, uma evocação coletiva do grupo

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Niterói, formado pelos maiores expoentes do movimento romântico, esquecendo-se, porém, de

que entre estes incluem-se não só Gonçalves Dias, mas o Grupo do Maranhão, que valeu o

cognome famoso à capital da província, do qual se destacam Francisco Sotero dos Reis e

João Francisco Lisboa (CANDIDO, 1975, vol. 2, p. 47).

Entre os integrantes do referido grupo, uns se destacaram mais que outros. Entre

eles, figuraram personalidades como Odorico Mendes, jornalista e político liberal, que se

destacou nacionalmente por sua mente ilustrada e ainda clássica, humanista conhecido pela

tradução de grandes epopéias clássicas como Eneida e Ilíada que alguns afirmaram ser um

tanto indigestas e às vezes incompatíveis pelas disposições de suas formas liberais, destacando

ainda sua ação ativa na reflexão dos elementos nacionais então em evidência através do olhar

crítico das páginas do Argos da lei (1825).

João Francisco Lisboa, jornalista liberal e historiador, figurou como um dos

maiores prosadores, além de ser ele o elaborador de uma das matrizes historiográficas

brasileiras, representou uma verdadeira ruptura das fronteiras da então literatura nacional. Por

entre as páginas de seu Jornal de Tímon (publicado entre os anos de 1852 e 1854) ou suas

Obras Completas (1864 e 1865), encontramos um vívido crítico dos costumes da sociedade

maranhense, desde sua organização política até sua sociabilidade festiva. Lisboa foi posto

como um dos maiores maranhenses.

Sotero dos Reis, figura, sem dúvida, emblemática para a formação intelectual da

nação. Filósofo e gramático foi o primeiro a sistematizar a organização gramatical e lexical da

língua e da literatura portuguesa e brasileira. De inclinação conservadora, Sotero foi mestre de

toda uma geração de letrados, o que não impediu a rivalidade deste com João Lisboa tanto na

política quanto em outras instâncias da sociabilidade, estando, portanto, quebrada a idéia de

que teria existido um Grupo Maranhense; o que houve foi a ação localizada de cada literato na

esfera de produção maranhense.

Gonçalves Dias compõem o quarto baluarte da formação do chamado Grupo

Maranhense. Colocado como uma personalidade inconfundível no cenário das letras nacionais

foi visto como o verdadeiro consolidador do movimento romântico no Brasil. Entre o grupo

também figuraram Frederico José Correia, Gentil Braga, Trajano Galvão, Joaquim Serra,

Gomes de Sousa, Candido Mendes, entre outros.

51

Foi em torno do romantismo das quatro principais personalidades acima citadas,

que se gestou o ideal de diferenciação dos maranhenses através da literatura e posteriormente

do mito da Atenas Brasileira. Na narrativa elaborada pelo grupo, coloca-se como característica

em suas poesias a explicitação de uma determinada visão de mundo, comum a toda obra

literária, fruto da transição do Arcadismo para o Romantismo atuando como parâmetro

estético e pelo qual seria possível entender as funções próprias da obra literária produzida,

afinal, foram estes os elementos que determinaram análise da criação literária romântica como

um produto de elaboração do grupamento social que se pretendia culturalmente hegemônico,

segundo um viés explicativo que lhe fora particular.

Não nos cabe aqui uma análise maniqueísta a respeito das elaborações que

fomentaram e legitimaram a criação da Atenas do Brasil - muito menos tornar-me uma espécie

de juiz dos infernos, encarregado de distribuir o elogio ou o vitupério aos heróis mortos

(BLOCH, 2001, p. 125). Não era lícito verbalizar o veredicto do clamor às glórias da terra do

Maranhão, ou do enobrecimento de suas raízes atenienses, e muito menos promover a

elaboração de uma narrativa pseudamente desconstrucionista, que desconsiderasse elementos

históricos importantes neste processo de invenção de identidades. Em vez de criar marcos

fundantes, ou mesmo origens para este fenômeno literário, parece ser mais coerente mostrar a

importância desta construção simbólica para a trajetória identitária no Maranhão, na busca de

desmembrar o status representativo que legitimou a produção da literatura local.

A elaboração da Atenas Brasileira se configurou como o resultado do processo de

integração do Maranhão ao cenário de unidade nacional que então se gestava. Ser ateniense

era ser integrante de um espaço de reprodução social dominante que discriminava a essência

do ‘ser maranhense’. Se as afirmações em torno do caráter identitário da Atenas do Brasil

geram controvérsias, parece muito claro que esta idéia de Atenas Brasileira se comportou

como um elemento de integração social dos letrados ainda no século XIX e posteriormente de

uma parcela considerável da população maranhense no século XX. Neste sentido, mais do que

promover a unidade, a integração, ou mesmo representar um elemento de identidade, a

elaboração desta distinção cultural foi uma tentativa da elite local de fortalecer seus domínios

e posses e consolidar-se a posteridade como filhos ilustres de uma terra próspera, afinal, não

sem razão a formação dos jovens poetas da província era majoritariamente jurídica, pois os

jovens bacharéis eram o vínculo entre a aristocracia e as esferas de poder local.

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A princípio, foi a concepção de criar vínculos entre as separadas esferas de poder,

tanto o político quanto o intelectual, que impulsionou a juventude, ou melhor, os pais destes

jovens a ingressar na carreira jurídica. Após a formação, estes personagens, os filhos da

aristocracia, formaram um conjunto de sujeitos específicos, tratados como criadores,

portadores de idéias superiores e que com o passar do tempo fomentaram um suposto

ambiente de intelectualidade na província do Maranhão.

Não houve como negar que de algum modo, os letrados da província na primeira

metade do século XIX no Maranhão, a exemplo de Gonçalves Dias, João Lisboa, Odorico

Mendes, e Sotero dos Reis, não tenham cumprido o seu papel de elite intelectual, ou seja,

como indivíduos a quem foram atribuídos a tarefa de elaborar uma determinada visão de

mundo, de transmitir um ideário de conhecimentos que acabaram por se consolidar como um

sistema explicativo de determinada época. Em outras palavras, foi a ação específica dos de

personalidades como as do chamado Grupo Maranhense, que possibilitou a elaboração a

posteriori da simbologia da “Atenas Brasileira”.

Esta elaboração simbólica, entre outras coisas, mostrou que as várias atitudes dos

letrados maranhenses em relação à vida provincial correspondiam às diversas maneiras pelas

quais ao longo dos primeiros anos do século XIX, segmentos da elite elaboraram

representações que modelassem a realidade da província segundo os seus próprios interesses,

ou seja, a criação da singularidade da província através da “Atenas Brasileira” representou

uma estratégia de mascarar as contradições do Maranhão oitocentista.

Tal processo de elaboração de respostas aos anseios pessoais, ou de pretender

construir uma outra realidade que fosse simbolicamente representada, foi desempenhado pelo

próprio ato de criação dos letrados através de sua obra, afinal, por intermédio de suas obras os

intelectuais também exercem um poder, ainda que mediante a persuasão e não a coação, nas

formas extremas de manipulação dos fatos por meio de uma verdadeira psicologia (BOBBIO,

1997, p.112). Em outras palavras, a ação organizacional dos letrados se deu em suas atividades

políticas na capital da província e fora dela, e acima de tudo, na relação direta com as esferas

de poder. Esta relação foi perceptível quando João Francisco Lisboa e Odorico Mendes

ocuparam importantes cargos na estrutura burocrática do estado ou quando Francisco Sotero

dos Reis rivalizou com Lisboa na elaboração de uma outra concepção de política, debate este

53

que se travou entre a Chronica Maranhense e a Revista, de propriedade de Lisboa e Sotero,

respectivamente.

O que estava em questão não era o status de ocupar uma função política, mas o

controle de poder em sua esfera simbolizada. Dito de outro modo, não colocamos em questão

qual a função de cada letrado na estrutura de poder, mas a compreensão de que o letrado tinha

de inferir na realidade social e reconstruí-la através de sua ação tanto política quanto poética, e

desta maneira mostrar as formas pelas quais as suas idéias influenciaram um certo conjunto de

ações sociais, ou de maneira inversa, pensar as razões da ausência de uma relação direta entre

a ação do letrado enquanto sujeito esclarecido de sua função social, e a reação do conjunto da

sociedade.

Neste sentido, foram alguns destes elementos e os caracteres contidos nesta

análise, que nos sinalizaram o fato de que possivelmente a noção de Atenas Brasileira só faria

sentido dentro da lógica específica de compreensão dos próprios letrados, ou seja, havia uma

clara diferenciação entre o tipo de sociedade pensada pelos letrados, com características de

erudição, intelectualidade, instrução e hábitos refinados; e aquela vivenciada pelo restante da

população, formada por pessoas desprovidas de instrução formal, ou no máximo tendo as

chamadas primeiras letras, sem considerar, é claro, a enorme quantidade de escravos que

habitavam a província.

A literatura maranhense adquiriu consciência de sua realidade de autonomia após a

independência, afinal, mesmo tendo destacado os cronistas e até jornalistas, pouco havia então

nas letras provinciais que possibilitasse falar em autonomia literária, seja pelo reduzido

número de obras editadas, pela ausência da circulação desta produção literária ou

principalmente pela inexistência de um público leitor. Não havia uma densidade espiritual na

decantada São Luís dos poetas. Neste sentido, a elaboração de tal singularidade no campo das

letras foi fruto do anseio em criar um equivalente espiritual à liberdade política obtida com a

independência, uma vez rompidos os laços com Portugal.

A grande tese do trabalho dos românticos do Grupo Maranhense foi mostrar que se

a natureza e a população do Brasil (tão bem decantados por Gonçalves Dias) eram distintas da

portuguesa, a literatura brasileira fora analogamente diferenciada da portuguesa, pois pretendia

expressar-se sobre temas e objetos que se julgavam nacionais, ou mesmo específicos a uma

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determinada realidade, tal qual a Canção do Exílio de Gonçalves Dias10, que falava não de sua

nação, mas de sua cidade natal Caxias, no interior da província do Maranhão (SOTERO DOS

REIS, 1873).

Ser ateniense era ser produtor de uma boa literatura. Boa literatura, nos idos de

1830 a 1840, era uma narrativa que postulava claras rupturas com as convenções portuguesas

clássicas. Como bons românticos, era urgente ao Grupo Maranhense descobrir, ou melhor,

forjar, uma tradição, uma carga complexa de heroísmo, em outras palavras, era necessária a

criação de um mito nacional, pois aos românticos maranhenses era cara a existência de uma

literatura com traços passados bem definidos, as quais eles pudessem se filiar como herdeiros

de uma respeitável tradição que legitimasse o seu lugar próprio de produção (CANDIDO,

1976).

O que estava posto era o embate entre o empreendimento de uma nova literatura,

independente e autônoma, e a criação de um passado glorioso, do qual os poetas se pretendiam

herdeiros. Tal qual a história do novo império do Brasil, nascido em 1822, que se apresentava

ausente, a literatura do início do século XIX ainda não era tão hermética quanto pretendia. No

Maranhão, a elaboração da Atenas Brasileira preencheu essa lacuna. Dito de outro modo, a

elaboração da ateniensidade da capital representava a transição de uma consciência do legado

da tradição para a sua utilização em forma de temas identitários pela elite local.

A contemplação grandiosa e cheia de esplendor da natureza da província

comportou-se como cenário digno de grandes atos e enobrecedor desta epopéia dos costumes

literários no Maranhão. Foram às palavras de Ferreira Valle, no jornal O Progresso, de 16 de

abril de 1850, que nos deixaram convencidos disso:

São Luís! E esse o nome da minha terra natal: no mundo não tem igual. Minha cidade gentil, das agoas nasce risonha, sempre alegre e vecejante, a quem saúda o navegante do seio do mar de anil. (...) A aurora quando disponta, vem cercada de primores, e harmônicos cantores, festejam seu despontar: tudo goza alma alegria, nessa terra abençoada quando amanhã desejada no mundo se vem nos mostrar. (...)

10 O poema Canção do Exílio de Gonçalves Dias é paradigmático de uma estética romântica, atrelada a uma visão nacionalista que passa a instrumentalizar a cultura brasileira, principalmente após a independência política do Brasil. Essa perspectiva nacionalista de criar uma identidade local, através da produção literária, não é exclusiva do universo brasileiro, mas se apresenta em boa parte do século XIX, nas literaturas de países europeus.

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Os lírios cheios de orvalho exalam doces perfumes, cantão sentidos queixumes, as tristes aves nos moinhos saúda o nascer do dia. No seu galho o sabia canções elevão a Jehovat, nos ramos os passarinhos. (...) Nas nossas terras do norte maior brilho tem o sol: tem da manhã o arrebol Mas cortejo de cantores – A nossa lua he mais bella que a dos mares do sul, tem o mais brilhante azul como seu manto de mil cores. (...) he uma terra bendicta a terra de São Luís. Não há no mundo paiz que abunde em mais primores. Quem me dera verte já o minha pátria querida, quero em ti perder a vida o terra de meus amores.

Enfim, a literatura comportou-se como uma outra organização do mundo nos

parâmetros da arte; a tarefa do literato se desmembrou na construção de um sistema

explicativo que girava em torno também de objetos imaginários, costumes, atos, sentimentos

que expressam em última instância a maneira como as camadas sociais, suas organizações e

seus emblemas estavam dispostos numa determinada relação espaço/tempo (CANDIDO,

1976, p. 179).

Se por um lado, a ação conjunta do Grupo Maranhense foi interpretada como

fundamento da elaboração de um certo modelo de identidade baseado na instrução e na cultura

clássicas da Europa, por outro, foi na figura específica de Francisco Sotero dos Reis, que as

transformações literárias do período adquirem sentido e maior consistência. No livro Curso de

Litteratura Portuguesa e Brazileira, publicado no ano de 1868, Sotero clarificou, com olhar de

profundo crítico literário e tradutor, as modificações que ocorriam então na produção literária

brasileira.

Sotero dos Reis evidenciava que o momento a ele presente, era a qual o Brasil, que

iniciara anteriormente sua emancipação política, sendo então elevada à categoria de nação

independente, livre e culta, tivera sua literatura separada da portuguesa a qual antes daquela

época estava unida, para começar a partir daquele período uma trajetória própria, autônoma,

independente da produção portuguesa.

Sotero estabeleceu a este passo uma importante comparação entre a literatura

portuguesa e brasileira, e a européia, de maneira geral, e afirmava:

Formada no seio de um povo culto, e com uma língua aperfeiçoada, a litteratura brazileira, não apresenta os antecedentes de uma época de rudeza, e outra de polimento, como os povos europeus que se emancipárao ainda mui atrazados em civilização; e posto que nascida ontem, pois não tem meio século de existência sequer, já conta com escriptores mui distinctos por seu talento, instrucção, critério e bom gosto, ou pode figurar no meio das litteraturas dos povos cultos do universo,

56

porque pertence a um povo que se emancipou civilizado. (SOTERO DOS REIS, 1868, vol. 4, pp. 289-290).

A fala de Sotero dos Reis mostrou, conforme expusemos antes, a compreensão de

que com o romantismo inaugurou-se uma era de literatura autônoma, pela qual os ideais de

singularidade, ou melhor, de civilização, seriam afirmados e transmitidos pela poesia como

elemento formador de um tipo de identidade. Nesta perspectiva, foi enfático ao afirmar que o

Maranhão não cedia seu lugar a outras províncias do império, no que se referia à busca pelo

progresso intelectual, e que mesmo sendo, segundo Sotero, uma província de segunda ordem e

inferior as demais em muitos aspectos, não seria possível imitar-lhe o interesse pelas boas

letras, ou seja, pela língua e organização gramatical do idioma português, não o mesmo de

Portugal, mas um que a nós era peculiar (SOTERO DOS REIS, 1868, vol. 1, XXI).

Foram referências como estas de Sotero dos Reis, que continham forte alusão à

ilustração, polimento, autonomia literária, escritores de variados talentos e critérios, bom gosto

pela obra escrita, que possibilitou à posteridade, elaborar em torno dos poetas maranhenses

uma distinção identitária chamada de Atenas Brasileira, que a princípio estava relacionada

com uma esfera restrita de produção cultural e posteriormente foi estendida ao conjunto da

sociedade maranhense. Esta concepção foi cristalizada nas palavras de Rossini Correa,

maranhenses nascidos na Atenas Brasileira. Atenas Brasileira nascida dos maranhenses

(1993, p. 104).

A elaboração da Atenas Brasileira deveria comportar-se, segundo Rossini Correa,

como uma discriminação da “essência dos maranhenses”, como o símbolo maior de sua

identidade, como o elemento que definisse a superioridade da província em relação ao restante

do império, caracterizando-se como elemento de coesão social. Desta maneira, afirmamos que,

de um lado, a Atenas Brasileira não funcionou como o elemento de coesão identitária

pretendido, e muito menos como marca do ‘ser maranhense’, mas por outro lado, fazia total

sentido na mente dos que dela se apropriaram como símbolo da produção literária. O caráter

ideológico que fomentou os discursos de singularidade na historiografia maranhense não era

comum à população, mesmo aos que possuíam certa instrução, mas mantinha-se restrita ao

ciclo dos letrados (CORREA, 1993, p. 112).

57

Façamos uma distinção neste ponto da narrativa. A historiografia clássica11 do

Maranhão postulou que foi de responsabilidade do Grupo Maranhense a elaboração das

condições básicas à criação da Atenas Brasileira e igualmente responsáveis pela organização

da estrutura social maranhense por meio das idéias progressistas de fortalecimento do estado-

nação. Contudo, o que propoe-se se pauta em uma pequena diferença, a Atenas Brasileira não

foi elaborada pelos letrados do Grupo Maranhense, mas consolidada em torno, ao redor, da

ação individual de cada literato na efervescência de sólidos princípios românticos.

Se por um lado, nos propusemos resignificar a idéia de que a Atenas Brasileira

destacava o orgulho de ser maranhense, como símbolo de uma sociedade aristocratizada que

desfrutava os primeiros resultados dos bons lucros conseguidos com a agro-exportação,

combinando crescimento econômico e esplendor cultural originário da suposta unidade

brasileira e da auto-glorificação proveniente da denominação de atenienses, por outro lado, foi

igualmente verdadeiro que os desmembramentos obtidos da relação entre produção cultural e

elaboração de identidades, estavam diretamente ligadas à ação do Grupo Maranhense, de

acordo com os parâmetros acima destacados (CORREA, 1993, pp. 115-122).

Foi exatamente em torno desta ação que o ideal identitário da Atenas Brasileira

sacralizou-se, num momento em que a ação individual de cada letrado era interpretada como

uma contribuição consciente na elaboração de uma diferenciação e auto-afirmação do ponto de

vista da cultura e da instrução.

Neste sentido, várias controvérsias foram geradas pela historiografia local até

chegar ao consenso de que teria sido o Grupo Maranhense, o responsável pela criação

deliberada de um particularismo aristocrático que singularizasse a província do Maranhão,

chamando-a de Atenas Brasileira, pois o celeiro de grandes poetas, ou o berço do bem falar a

língua portuguesa teria se transformado na acrópole de maior erudição.

Neste sentido, destacamos a Formação social do Maranhão: o presente de uma

arqueologia, de Rossini Correa, que por muito tempo se configurou como a mais importante

releitura sobre as elaborações identitárias referentes ao passado do Maranhão e principalmente

no que dizia respeito à Atenas do Brasil.

11 Por historiografia Clássica compreendemos as produções históricas e literárias do século XIX e início do século XX, no Maranhão, que trazem consigo uma base neoclássica no estilo narrativo e ideias da grandeza de um passado imemorial raferente a Província do Maranhão.

58

Rossini Correa partia do referencial de que o objetivo da análise sociológica era a

explicação dos fenômenos sociais, e a mostra de que os intelectuais maranhenses estavam

ligados à singularidade provincial por laços aristocráticos, afinal, a província do Maranhão

seria a portadora dos elementos de diferenciação em meio à unidade nacional que então se

gestava. O ponto a ser discutido estava em torno de uma afirmativa de Correa:

Confesso desinteresse pela indicação infantil dos responsáveis pela mitologia da Atenas Brasileira. (...) Prefiro esclarecer que a mitologia greco-timbirense foi um produto histórico, resultante das atividades dos intelectuais, elaborando uma consciência oficial da sociedade brasileira, (...) onde o Maranhão pretendia colocar-se como depositário prodigioso de uma superioridade da terra e do homem (CORREA, 1993, p.123).

Mesmo tendo alegado não objetivar incorrer no erro de realizar escolhas arbitrárias

ao ter procedido de tal maneira, Correa não se furta em oferecer uma explicação um tanto

genérica aos desmembramentos estruturais da ação dos letrados. Desta forma, o autor

pretendia abordar um evento como a Atenas Brasileira historicizando-o, trabalhando seus

aspectos conjunturais, ainda quando estes se encontravam em sua narrativa dissociados da

ação específica dos seus supostos sujeitos históricos.

Ambicionava mostrar o desenvolvimento da ideologia timbirense considerando-a

um produto histórico. Contudo, desconsiderou que a história era um produto de ações

humanas e a atitude de mostrar os responsáveis pela organização da odisséia ateniense, longe

de representar uma indicação infantil, significa uma atitude consciente e responsável do

pesquisador em relação a fenômenos decisivos na transformação da estrutura social

(CORREA, 1993, pp.123-124).

Da mesma maneira como os que o precederam, tal qual Jomar Moraes em

Apontamentos de Literatura (1976) e Mário Meireles em Panorama da Literatura

Maranhense (1955), Rossini Correa outorgou ao Grupo Maranhense os méritos por

protagonizar a criação de um símbolo de identidade que supostamente seria fundamental na

elaboração do ser maranhense. O que estava posto, e Correa não propôs nada diferente, era a

sacralização de uma classificação um tanto vaga, repetitiva, por vezes imprecisa, e na maioria

dos casos, pouco esclarecedora no que se referia às especificidades da trajetória literária

maranhense.

59

Não objetivamos retirar os méritos legítimos do chamado Grupo Maranhense na

sua profícua contribuição para o desenvolvimento literário na província, mas compreender o

local de produção de uma tipologia de tal importância, sendo que toda pesquisa histórica está

submetida a determinadas imposições e enraizada em função de um lugar em que se

estabelecem os métodos e por meio dos quais os documentos se organizam e adquirem

sentido(CERTEAU, 2006, pp. 66-67).

A Atenas Brasileira foi uma construção discursiva que objetivava consolidar e

legitimar os literatos e seu campo de produção cultural enquanto elementos hegemônicos e

indispensáveis à reflexão do ambiente de reprodução social dos maranhenses, pois os

escritores constituíram desde a época do romantismo um setor que criava profundas relações

de força com as demais camadas da elite dominante, direcionando a criação de uma auto-

imagem erudita e intelectualizada em função da legitimidade do status social de um

determinado grupo que se pretendia dominante (BOBBIO, 1997, p. 102).

Foi a crítica literária de Antonio Candido que nos ofereceu elementos muito

relevantes para analisar esse descompasso existente entre as diversas explicações sobre a

gênese da Atenas Brasileira. De maneira clara, a delimitação dos campos foi útil para a

compreensão de que neste caso, especificamente a sociologia, não se comportava senão como

disciplina auxiliar, pois não pretendia analisar o evento literário de modo mais amplo, mas

apenas alguns de seus elementos, uma vez que esta apenas desorientaria a interpretação do

fenômeno literário (CANDIDO, 1976, p. 18).

Não foi sem razão, que tratamos do romantismo por contido tempo nesta narrativa,

afinal, a característica que singularizava a Atenas Brasileira foi resultado, do advento do

Romantismo. Foi a idéia de fundação dos pensadores românticos que impôs uma vinculação

interna pela qual foi conservada a mitologia ateniense na condição de elemento

permanentemente presente, a maneira do mito psicológico que repetiria elementos

imaginários. Dessa forma, não era desconexa a afirmação de que a Atenas Brasileira

comportou-se como busca constante de encontrar novas possibilidades de exprimir-se, quer

com novas linguagens formuladas pelos literatos em seus jornais e obras poéticas ou com

novos valores sociais fortalecidos pela ação dos intelectuais (CANDIDO, 1975).

A elaboração da Atenas Brasileira pretendeu situar-se além da temporalidade,

colocando-se fora da história, numa noção de ‘presente contínuo’. A tipologia foi originária da

60

sociedade maranhense e posteriormente engendrou-se nela própria, uma vez que ofereceu uma

gama de representações da realidade que aludiam à superioridade da gente e da terra da

província, e que eram reorganizadas em função da ampliação de seu sentido. Foi essa

reorganização e essa ampliação de sentidos que possibilitou a mitologia ateniense repetir-se

indefinidamente ao longo dos séculos.

Recorremos à obra de Marilena Chauí para buscar uma tipologia que melhor

explicasse a dinâmica de produção literária dos letrados do romantismo maranhense. Trata-se

do conceito de Semióforo. Segundo Chauí, o semióforo é uma palavra grega composta de duas

outras o Semeion – que é um sinal ou um signo – e o Phoros – que significa ‘trazer para

frente’, expor. O Semeiophoros é um símbolo responsável pela diferenciação, pela distinção

de uma coisa da outra, por afirmar que no conjunto da formação nacional brasileira, o

Maranhão se diferenciava por sua cultura erudita e intelectualizada. A idéia de fundação dos

românticos trouxe comunicação do real com o invisível através da narrativa poética e mostrou

o aparecimento de um signo cujo valor era medido não pela sua materialidade, mas por sua

força simbólica que produzia novos e contínuos desmembramentos (CHAUÍ, 2002, pp.11-12).

As referências literárias acerca da opulência literária da província do Maranhão

levam a crer que estava em curso, na época, uma verdadeira revolução no campo das letras.

Certamente o período vivido foi de importantes acontecimentos, não só para a província do

Maranhão ou para seus filhos ilustres, mas no que se referia a própria literatura romântica

nacional que tinha se consolidado à compreensão de encontrar-se em um momento bastante

distinto, voltado para o desenvolvimento das letras no Maranhão.

De alguma maneira, a década de 1840 foi fundamental para o desenvolvimento das

letras no Maranhão. Nos jornais do período destacava-se a forma sólida como a literatura

estava se desenvolvendo por todo o império a exemplo do Rio de Janeiro, conhecido pelo

excelente ambiente para a produção cultural. Destacava-se que além da tiragem de jornais, não

havia nenhuma outra produção periódica em andamento mesmo nas províncias mais

adiantadas do império. Até então era apenas a províncias do Rio de Janeiro que possuía

produção de gênero literário.

Nestas circunstâncias, procurou-se salientar de todo, as maneiras que as primeiras

tentativas de oferecer uma nova alternativa de leitura se deram no Maranhão, no sentido de

que ambicionavam promover a instrução e o divertimento das pessoas dadas à leitura. Por

61

volta de 1845, iniciaram as primeiras publicações da Associação Literária Maranhense, que

apesar de incipientes a princípio, tomaram consistência no propósito de estimular o desejo pela

boa literatura de tal maneira, que em 25 de julho de 1845 publicaram o primeiro volume do

Jornal de Instrução e Recreio, a qual passado o período de um ano, sofreu consideráveis

melhoramentos e tomou o novo rótulo de O Arquivo (COLIN, 1846, p. 177).

O clima de renovação no cenário das letras foi intensificado pela criação da

Sociedade Filomática Maranhense, pela qual puderam ser oferecidos diversos cursos à

sociedade ludovicense, entre física, aritmética, química e outros. O problema consistiu no fato

de que como o passar do tempo a freqüência dos alunos a tais cursos foi diminuindo

progressivamente até serem fechados por falta de quem pudesse prestigiar as ministrações.

Clara evidência das profundas contradições da cidade onde se opunham poetas e letrados e

uma população sem qualquer instrução formal na maioria dos casos (COLIN, 1846, p. 177).

Para clarificar a idéia de que o clima de efervescência estava disseminado por todo

o Brasil, relatou-se a criação do Instituto Histórico da Bahia, que em 2 de agosto, publicou o

primeiro número do seu periódico, em que priorizava artigos em prosa e em verso. Em

Pernambuco seguiu-se a criação da Sociedade Filomática Olindense, composta em maioria por

estudantes de Direito. O ponto alto do artigo encontrado no jornal O Arquivo versava sobre os

responsáveis por despertar o desejo dos literatos em promover o sucesso das letras em outras

partes do país. Apesar de isoladas, as falas nos jornais e folhas literárias, continham certa

firmeza em afirmar que em desenvolvimento moral, o Maranhão era uma das primeiras

províncias do império, superior a tantas outras e rival à altura de províncias como Rio de

Janeiro, Pernambuco e Bahia (COLIN, 1846, pp. 178-179).

Percebemos nas linhas acima as representações elaboradas sobre a efervescência

literária na Capital do Maranhão, no destaque de muitas Associações Literárias e Sociedades

Filomáticas também por todo o Brasil. Neste novo fôlego para criar glórias à cidade de São

Luís a tradição literária ganhou novo ímpeto com um importante anúncio publicado no jornal

O Progresso, em 1º de Fevereiro de 1847, que trazia a notícia de que nos últimos meses do

ano anterior, havia sido publicado na capital do Rio de Janeiro, os Primeiros Cantos do Dr.

Antônio Gonçalves Dias, que a fim de ampliar sua base intelectual e à procura do

reconhecimento que ainda não obtivera na terra natal, encontrava-se de partida, em 1845, da

capital ludovicense com destino à capital do império. Apesar de, como tantos outros,

62

consolidar sua escrita literária fora do Maranhão, a obra de Gonçalves Dias foi responsável

por cristalizar a província como uma terra de poetas por excelência (O PROGRESSO,

fevereiro de 1847, S/N, p. 4).

Outro ano sintomático para a produção literária local foi 1852, quando João

Francisco Lisboa inicia a circulação de seu Jornal de Tímon. Nesta província a sátira aos

costumes políticos, com fortes características de erudição, tinha espaço pela pena de Lisboa,

que conservou elementos de uma combativa crítica às contradições sociais ludovicenses e à

luta anti-colonial. Foi João Francisco Lisboa, o mais incisivo erudito a sinalizar as fragilidades

da cidade que se mostrava na época pouco produtiva no que se referia à relação literato e

público leitor.

Em 1859 emana desta cidade, que se pretendia ilustrada, mais um fluxo de intensa

produção literária local. Dava-se o início da circulação das Obras Completas de Virgílio, cuja

tradução fora feita pelo ilustre humanista Manoel Odorico Mendes. Características

importantes formam erigidas em torno destas publicações e do seu significado para a produção

literária local. Não colocamos em questão a importância desta obras para a circulação literária

nacional, mas mostramos o quanto tais iniciativas se comportaram de maneira isolada, também

porque distantes uma da outra, não sendo suficientes para ter fomentado na capital do

Maranhão um ambiente de intensa produção de obras literárias, ou por colocar seus 'filhos' no

patamar de heróis, isto é, de salvadores da república das letras.

As discrepâncias entre um certo nível de produção poética por parte dos literatos

maranhenses e uma incorrespondência pelo público leitor, não eram desconhecidas, tão pouco,

ignoradas pela crítica mais atenta. Foi João Francisco Lisboa quem consagrou à posteridade

uma importante crítica dos hábitos e costumes dos ludovicenses, desde o seu Jornal de Tímon

até um número extenso de publicações em variados jornais desta província. O cenário da

descrição não poderia ter sido melhor do que a festa onde fosse realizada contendo o encontro

dos mais variados segmentos sociais e onde fosse possível observar com calma o

comportamento dos citadinos uns com os outros em local público. Tratava-se da Festa de

Nossa Senhora dos Remédios.

Não se tratava de uma narrativa sem propósito aquela feita por Tímon, como

Lisboa preferia chamar-se, mas de uma profunda análise do que se chamaria ser maranhense.

Tratava-se de uma iniciativa ousada de proporcionar distração aos leitores, por um lado, e por

63

outro, de fixar um ideal que para Lisboa estava muito claro, a saber, tornar conhecidas as

cenas e hábitos dos provincianos,

para a satisfação deste pobre e respeitável publico, que vegeta em tamanha e tão rigorosa dieta de tudo quanto pode alimentar e deleitar o espírito, os ouvidos, os olhos, e todas as mais faculdades e sentidos da alma e do corpo (PUBLICADOR MARANHENSE, n.º 1173 de 15 de outubro de 1851, p. 01).

Duas coisas estavam suficientemente evidentes para Lisboa nestas circunstâncias:

a primeira era a flagrante disparidade entre os diversos segmentos sociais da província e a

segunda a sua função de libertá-los da apatia em que jaziam.

Lisboa sinalizou com propriedade de prosador as ambivalências do momento.

Mostrou a maneira como a rotina da cidade era alterada poucos meses antes da esperada festa,

destacando a perda de sono por parte das belas e elegantes senhoras a imaginar a maneira de

melhor vestir-se, ou a angústia vivida pelos ricos comerciantes da capital em virtude da

demora na entrega dos carregamentos de chapéus, luvas, vestidos e das famosas capas de seda,

então chamadas de quinzenas; plumas, rendas, fitas e outros artigos que enchiam as lojas do

centro da cidade e enlouqueciam as senhorinhas acostumadas a trajar-se à moda européia

(LISBOA, 1991, p. 307).

Por entre a ornamentação, a disposição das barracas por entre o largo da igreja, a

música em latim durante a celebração da missa, enfim, os mínimos detalhes não passaram

despercebidos ao olhar crítico de João Francisco Lisboa. Até o poeta romântico Gonçalves

Dias, durante as comemorações da festa da santa protetora do comércio e da navegação, ao

lado de belas senhoras, encontrava-se alegre e satisfeito, não deixando em nada lembrar a

melancolia e o desespero que vendia em seus formosos versos (LISBOA, 1991, p. 319).

Lisboa nos oferece bem a noção de como estava simbolizada a hierarquia social

ludovicense durante a festa, destacando a atitude peculiar a todos:

o largo em perfeita barrafunda e arruido. Nunca é certo nas cenas anteriores houve precedências de lugares; mas os grupos ao menos se formavam distintos. Agora não, a confusão é completa e tudo redemoinha, subindo, descendo, encontrando, abalroando, pretos, brancos, homens, mulheres, grandes e pequenos, ruindo, falando, assobiando (...) exprimindo e denunciando por todos os gestos o prazer e a satisfação. (...) o prazer só era desbotado pela muita poeira (LISBOA, 1991, p. 324, grifo nosso).

64

A sociedade ludovicense era um amálgama formado por sujeitos de diferentes

grupamentos sociais, empenhados em diferenciar-se uns dos outros de todas as maneiras

possíveis. O cenário da análise estava pronto. De um lado, o efervescente desenvolvimento das

letras locais, e de outro, a falta de instrução e os hábitos rudes de um povo que a todo custo

tentava imitar a sociabilidade européia, quer no vestir, quer no comer, ou em suas aspirações

de futuro próximo. Não bastava possuir grandes literatos, Lisboa ou Odorico; não bastava o

conhecimento das letras, latim ou francês; faltava algo. Foi a Atenas Brasileira que preencheu

a lacuna restante nos hábitos desta erudita e refinada província.

O que vimos acima foi uma prática de negação, negação de hábitos europeus.

Negação trazida literariamente pelo movimento romântico, que tinha Gonçalves Dias como

importante personagem. Foi o elemento romântico que possibilitou resignificar, não apenas o

papel da poesia que era escrita, mas fundamentalmente repensar qual o lugar ocupado pelo

homem na organização do mundo. Daí as rigorosas críticas de João Francisco Lisboa, que se

portou como um dos pioneiros no processo de reflexão da sociedade ludovicense e suas bases

(CANDIDO, 1975, p. 23).

Se em momentos anteriores, fora destacada a importância da natureza maranhense

em meio às palmeiras onde cantava o sabiá de Gonçalves Dias, como característica

simbolizadora da província, como uma espécie de cosmos autônomo, singular, superior, rico,

supremo, emaranhada junto à narratividade individualizante do Romantismo; seguidamente a

isto, não convinha deixar de mencionar um outro elemento fundamental presente na

elaboração do mito ateniense do Maranhão e que também foi explicado pelo romantismo: o

culto a “missão do vate”.

Foi sem dúvida pela idealização sobre o poeta, que se tornou possível entender o

conceito da missão do escritor no Romantismo. Mesmo em diferentes épocas e com diferentes

intensidades, os literatos do referido período sentiam-se portadores de sentimentos, ou

verdades, de que a maioria eram superiores e a outros tantos, ocultas, dada sua magnitude.

Este ideal retomou entre outras coisas, a tendência a explicações transcendentes, rumo à

compreensão de que sua escrita comportava-se como um destino à beleza, ou seus versos

direcionados ao divino. Quer fosse uma missão espiritual para uns ou social para outros, o

certo era que as representações de um destino superior, a exemplo da vocação do Maranhão

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para o refinamento nas letras, clarificavam o dever poético dos literatos em relação aos demais

(CANDIDO, 1975, p. 27).

Os Suspiros Poéticos e Saudade de Gonçalves de Magalhães representaram com

primor o que falamos aqui:

Vate, o que és tu? És tu mortal ou nume? Por onde cantas ó vate? Por onde cantas? Qual é a tua missão? O que é tu mesmo?(...) tudo te escuta; e para responder-te, do passado o cadáver se remove, o presente te atende; e no futuro eternos vão soar os teus acentos. (MAGALHÃES apud CANDIDO, 1975, p. 28).

Tais palavras não seriam mais familiares se soubéssemos que falavam do sublime

Gonçalves Dias? Não seriam elas mais próximas se versassem sobre a erudição de Odorico

Mendes ou João Francisco Lisboa? Certamente. A noção de grandiosidade foi característica

marcante a todos os poetas da literatura maranhenses que figuraram nesta odisséia de Atenas,

que tantos românticos carregou consigo.

Estes literatos realizaram uma considerável revisão dos valores da estética literária

até o século XIX. Uma vez vislumbrando o mundo de maneira mais dinâmica, ambicionavam

imprimir nesse mundo uma marca que lhes fosse peculiar, que os definisse, pois sendo a

literatura fruto das particularidades de quem a escreveu, tornou-se menos obscura a idéia de

que eram os literatos que singularizavam a produção poética e não o lugar onde os textos eram

escritos. Por isso o Maranhão consagrou-se como Atenas Brasileira mesmo quando seus filhos

ilustres em muito estavam distantes da terra natal (CANDIDO, 1975, p. 28).

Pela trajetória intensa, apesar de breve, Gonçalves Dias consolidou-se como

personalidade por excelência de certos valores românticos voltados para a valorização do eu

em detrimento do mundo. O ano de 1846 representou a consolidação definitiva de uma escrita

em muito diferenciada dos antigos árcades, pois se dava então a publicação dos seus Primeiros

Cantos na cidade do Rio de Janeiro. Diferentemente de seus predecessores, tal qual Gonçalves

de Magalhães ou Francisco Adolfo de Varnhagen, Gonçalves Dias propôs em sua escrita, uma

seqüência poética mais ritmada e mais dinâmica, sendo também responsável por uma certa

agitação na imprensa literária tanto nacional quanto portuguesa (BOSI, 2004)

66

Apesar de a notícia acerca da publicação da obra de Gonçalves Dias ter chegado

ao Maranhão apenas em fevereiro de 1847, esta não se deu menos carregada de elogios ou

lucubrações referentes à sua escrita. Em Antônio Gonçalves Dias cristalizaram-se as idéias de

que com a independência política, a situação literária também se modificara, uma vez que teria

a nação brasileira se inserido através da literatura no conjunto das grandes nações. Era patente

e clara a compreensão de que outros fatores contribuiriam para tal estado das coisas, neste

sentido, as representações elaboradas em torno dos Primeiros Cantos foram significativas, já

que puseram em definitivo, o Maranhão no contexto das letras nacionais, não pelo valor

individual da obra, mas pelo conjunto de toda a produção romântica de Gonçalves Dias (O

PROGRESSO, 1847, n.º124, p. 4).

O romântico maranhense passou a representar a figura do gênio brasileiro.

Inspiração, sentimento e cor, eram características sempre marcantes em seus versos, que em

rima fácil e melancolia ao gosto do leitor, colocavam-se como essência própria do eu

individualizado como um cosmo independente do universo. Tornou-ele vate, gênio, poeta em

que se abrigaram os sentimentos mais nobres do coração humano. A crítica literária afirmou

ser o poeta romântico um autor modesto que não amalgamou padrinhos que lhe oferecessem

mérito (O PROGRESSO, 1847, n.º127, p. 3).

Nestas circunstâncias, um elemento já estava introjetado na mente de quem refletia

sobre a literatura nacional: os suspiros poéticos de Gonçalves de Magalhães haviam

naturalizado em nossa escrita o gosto pela lira romântica, pois haviam entendido o que os

alemães chamaram de “romantismo em poesia”. Contudo foi na poesia do romântico

maranhense, Gonçalves Dias, que se notou o cantar sereno e bucólico, ora duvidoso, ora

pensativo, em uma mistura de ciência e crença semelhante ao romantismo que Lamartine

consagrara em seus versos (O PROGRESSO, 1847, º102, p. 3). A sensibilidade dos versos de

Gonçalves Dias foi de fundamental importância para a Atenas Brasileira existir enquanto

sinônimo de excelência na escrita e na fala.

Em outras palavras, a elaboração de tal categoria explicativa sobre o

desenvolvimento da literatura maranhense foi mais resultado das representações construídas a

posteriori sobre o trabalho individual de cada letrado, do que propriamente fruto de uma ação

deliberada dos poetas em construir uma diferenciação identitária para si próprios ou para a

província, estando ela balizada na escrita poética. Foram as influências românticas que

67

afetaram diretamente a geração posterior a Gonçalves Dias e aos outros letrados (mortos) do

Grupo Maranhense, os “responsáveis” por um certo tipo de singularidade literária.

Não foi sem propósito que enfatizamos a proeminência da ação de Gonçalves Dias

como reflexo da criação poética. A elaboração de Atenas Brasileira estava diretamente

relacionada ao papel desempenhado pelos gênios criadores da prosa e da poesia. Não foram as

características exóticas das terras maranhenses as responsáveis por fomentar um ambiente

diferenciado na província do Maranhão, mas a atitude dos letrados que despontaram na criação

literária, e colocaram, ainda que indiretamente, a sua terra natal no cenário das letras

nacionais.

Afinal, não era infundada a compreensão de que nesta província havia certos

homens a quem a natureza privilegiara com a realeza da inteligência, ou seja, com faculdades

intelectuais que lhes eram concedidas e superiores aos demais homens. Era a comparação

entre o homem comum e o gênio, esta espécie de engenho singular, da excelência do talento e

da criação, em que as categorias conceituais nunca eram suficientemente claras para designá-

los (SOTERO DOS REIS, 1868, p. 309). Não foi de surpreender que a partir de noções

semelhantes a estas, mesmo que funcionando na qualidade de exceção, os letrados tivessem

criado para si a excepcionalidade da Atenas Brasileira, o resultado da ação criadora dos gênios

da poesia.

Durante esta parte da narrativa, a idéia que direcionou a escrita foi a noção de que

a Atenas Brasileira, para além de sua complexa gênese, fora mais fruto da mentalidade

romântica dos maranhenses, ainda muito influenciados pelo mito da idade de ouro dos

arcadistas, do que propriamente da intenção de um grupo em construir para si uma

excepcionalidade intelectual, pautada na idealização da Atenas clássica, então sinônimo de

sabedoria, e que os distinguisse dos demais poetas da nação. Entre os bons românticos

brasileiros, os maranhenses foram chamados de atenienses pelas gerações que os sucederam

(CANDIDO, 1975, pp. 81-96).

68

4. História e Literatura no Pantheon da Atenas Brasileira.

O que pretendeu o historiador aventurando-se pelas complexas tramas da

literatura? Que validade houve em fazer história literária? O que representou a literatura para o

ofício do historiador? Se as respostas a estas perguntas estimulam a princípio, a relação tensa

existente entre história e a literatura, por outro lado, a compreensão promovida pelos

princípios geradores de tais indagações estava no limite próprio ao papel desempenhado pelos

“fazedores da história” e sua manipulação, ou melhor, sua apropriação e resignificação do

texto literário como fonte de pesquisa.

O entendimento destas e de outras questões constitui-se em um mecanismo

fundamental para a apreensão dos significados produzidos ao redor da noção de Atenas

Brasileira. A constatação de a História do Maranhão ter sido fruto do amálgama entre

literatura e história nos possibilitou entender o local ocupado pelas elaborações literária no

processo de construção de identidades12 durante o século XIX no Maranhão, e de maneira

mais específica, promoveu a problematização do modo como a idéia de singularidade da

cidade de São Luís colocou-se no bojo das produções históricas do Maranhão, também durante

grande parte do século XX nestas terras.

As possibilidades elucidativas são muitas quando se trata de história da literatura.

Contudo, para além das teorizações acerca dos conceitos, é coerente o entendimento de que o

historiador buscou na literatura uma liberdade de criação que não possuía, afinal, teria sido

responsabilidade do texto literário, proporcionar à história uma maior flexibilidade

interpretativa e representativa. Coube a literatura legar a história à compreensão do discurso e

do texto enquanto ferramenta e resultado da ação do historiador (WHITE, 1994).

As potencialidades da literatura, no que se refere à elaboração de representações

sobre o real, ou melhor, do verossímil, só foram possíveis através das lacunas abertas pelas

palavras: o discurso13. A palavra metamorfoseada em forma de narrativa trouxe consigo os

12 A ficção não seria o avesso do real, mas uma outra forma de captá-lo, onde os limites da criação e fantasia são mais amplos do que aqueles permitidos ao historiador. Para o historiador a literatura continua a ser um documento ou fonte, mas o que há para ler nela é a representação que ela comporta o que nela se resgata é a re-apresentação do mundo que comporta a forma narrativa (PESAVENTO, 1995). 13 O discurso não é somente um conjunto de signos, elementos significantes amalgamados em uma narrativa que remetem a conteúdos e representações acerca de objetos. Discursos são também práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam (BOURDIEU, 2004a).

69

significados das hierarquias e das noções de valor dos ambientes sociais das quais elas foram

fruto. Assim, mais do que fascínio, oriundo da relação entre as palavras e o real, foram as

proporcionalidades entre a idéia de enredo e o papel do “ser” no mundo, que estreitaram os

métodos e as possibilidades significativas entre história e literatura (SEVCENKO, 2003, p.28).

A análise da produção literária através de um olhar historiográfico, trouxe

profundas contribuições, ou melhor, significados muito peculiares para a pesquisa histórica. Se

no século XIX a literatura esteve na fronteira entre o discurso e o testemunho, ela ofertou à

história um olhar mais candente sobre as tensões sociais. A literatura modificou os

mecanismos de permanência da história factual em anseios por transformações, por fim, de um

passado obscuro através do despontar de um outro momento consolidado na ilustração, no

intelecto, na erudição. O compromisso da literatura estava mais ligado à fantasia, ao

imagético, do que propriamente com o real. Da verossimilhança literária, a história extraiu a

leveza e o tom suave peculiar aos enredos poéticos, e as possibilidades interpretativas do que

poderiam ser a ordem das coisas, na relativização do próprio real (SEVCENKO, 2003, p.29).

A literatura, portanto, fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre

as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram (SEVCENKO,

2003, p.30). Foram essas possibilidades que proporcionaram uma outra leitura sobre a criação

literária chamada “Atenas Brasileira”, afinal, os escritores, isto é, os letrados maranhenses,

relacionam-se com suas obras por laços absolutamente históricos e a compreensão sobre as

narrativas produzidas estava interligada ao contexto que as tornou possíveis.

A Atenas Brasileira foi fruto destas disparidades significativas, onde as obras

produzidas, primeiro pelos românticos e posteriormente pelos realistas, deixaram seu status de

representação enquanto documento, trasladando-se à esfera do monumento, do ícone

responsável pela sacralização, pela fixação e conversão da história em memória14, da

transformação de escritores em gênios. Neste sentido, entendemos que os discursos

produzidos sobre as obras literárias, que no Maranhão se consolidaram como símbolo de uma

identidade ateniense, foram a via que tornou possível a apreciação, ou melhor, um outro

momento de produção da obra literária e de seu valor; por isso a produção literária se

14 Segundo Jacques Le Goff: a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas.

70

transformou em efervescência cultural e o conjunto das obras dos autores em sinônimo de

singularidade (COMPAGNON, 2006, p.221).

Que tarefa foi essa desempenhada pelos historiadores na releitura do passado, que

pretendia ser diferente da literatura, se afinal, tudo são textos, narrativas e enredos? O

entendimento do que seja a história ou a literatura ou ainda sua íntima relação, foi o que

definiu com maior ou menor entendimento os significados e as representações elaborados em

torno da idéia de “Atenas Brasileira”. Neste sentido, a história é uma construção, um relato, e

como tal, põe em cena tanto o presente quanto o passado; seu texto faz parte da literatura. A

objetividade ou a transcendência da história são uma miragem, pois o historiador está

engajado nos discursos através dos quais ele constrói o objeto histórico. A resposta à pergunta

formulada nos foi oferecida por Hayden White, em Meta-História: a imaginação histórica no

século XIX. White ofertou à história e aos historiadores o entendimento de sua própria prática,

através da qual a “Atenas Brasileira” é entendida. No intuito de diminuir as distâncias entre o

ofício do historiador e do literato, White afirmou que:

Considerarei o labor histórico como o que ele manifestadamente é, a saber: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa que pretende ser um modelo, ou ícone, de estrutura se processos passados no interesse de explicar o que eram representando-os (WHITE, 1995, p.18).

Algumas noções foram ainda essenciais para a análise da odisséia ateniense dos

letrados no Maranhão. A pretensão de entender o fortalecimento e estruturação desse mito

identitário tão singular para uma parcela dos maranhenses, pode ser um tanto dificultosa se ao

historiador que se aventura neste emaranhado, faltar a compreensão de que sua tarefa e sua

análise são acima de tudo, historiográficas. Em outras palavras, a “Atenas Brasileira” e as

problemáticas conceituais que dela foram oriundas conduziram ao entendimento de que a

História Literária do Maranhão na maior parte do século XIX foi fruto de uma justaposição,

uma colagem, de discursos fragmentários e textos ligados entre si por cronologias diferenciais

(COMPAGNON, 2006, pp.222-223).

No capítulo anterior mostramos a maneira como a literatura romântica contribuiu

para a consolidação e cristalização do Maranhão no cenário das letras nacionais em função de

personalidades como Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Francisco Sotero dos Reis e

71

Odorico Mendes. Relatamos ainda a importância da idéia de singularidade no momento em

que a intelectualidade pensava, ou melhor, construía uma identidade para a nação. Por um

lado, a ação dos letrados que foram chamados de “Grupo Maranhense” se constituiu como

elemento enaltecedor da grandeza da terra do Maranhão; por outro lado foi sua inexistência,

sua morte, que cristalizou no imaginário social a “Atenas Brasileira” como sinônimo de

identidade. Contudo, esta questão será desenvolvida mais à frente.

Nas décadas anteriores a 1860, os jornais da capital maranhense (já mencionados

no capítulo anterior) nos mostraram a formação de um ambiente de suposta intelectualidade e

de ebulição de um sólido mercado de obras literárias, afinal, publicavam os Primeiros Cantos

de Gonçalves Dias, o Jornal de Tímon de João Lisboa, as traduções feitas por Odorico

Mendes, enfim, obras centrais para a organização das letras nacionais.

Retornamos ao periódico O Semanário Maranhense, de 1867, onde encontramos

algumas reflexões importantes para a configuração da idéia de “Atenas Brasileira”. Já

destacamos que a historiografia colocou este periódico literário como ponto alto da ação dos

letrados no Maranhão. Dessa forma, explicitamos que no período assinalado, ideais de

grandeza e diferenciação, ou melhor, distinção, ainda estavam muito presentes nas narrativas

poéticas durante meados do século XIX. Para eles estava clara a idéia de que a província do

Maranhão era rica em talentos e vocações. Entre todas as províncias do Império seria a capital

maranhense aquela que se dedicara mais seriamente aos estudos literários. Afinal, era São

Luís, e não qualquer outra, aquela que se apresentava orgulhosa por possuir vultos como

Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Francisco Sotero dos Reis, Odorico Mendes e outros

tantos da república das letras (SEMANÁRIO MARANHENSE, setembro de 1867, n.º01,

p.01).

Estava em curso, a formação de uma identidade intelectual que foi a base

legitimadora tanto da produção poética e prosaica, quanto da conduta dos letrados na província

do Maranhão. A “Atenas Brasileira” foi o resultado das lutas de grupamentos sociais distintos

na elaboração das próprias identidades. O que estava em questão era a possibilidade de impor

uma visão sobre a realidade social pautada na idéia de fragmentação dos grupamentos, quando

se impunha ao conjunto do grupo dominado uma noção de unidade, fruto da releitura do

ambiente vívido e definida, ou imposta, aos grupos como sendo a sua nova identidade. Em

outras palavras, colocou-se em destaque a necessidade de distinguir a província das demais, e

72

propuseram isso por meio dos conceitos de superioridade cultural, erudição e intelectualidade

que foram impostos ao restante do conjunto social maranhense, definindo a todos como

atenienses (BOURDIEU, 2004a, p.113).

Ratifica-se a compreensão de que esta identidade chamada ateniense só fez sentido

na esfera restrita de atuação dos poetas maranhenses. O que se colocou em prática foi a

monumentalização15 de sua própria identidade, pois se os letrados se sentiam intelectualmente

superiores, tentaram outorgar existência a esse tipo de identidade trazendo-a a criação através

da palavra, que trazia consigo a possibilidade de impor ao outro uma visão particularizada do

todo social no Maranhão escravocrata e agro-exportador, portanto, seus habitantes seriam

“cultos e ilustres”, seriam atenienses (BOURDIEU, 2004a, pp.116-117).

Não bastava sentir-se “diferente”. O mundo social da erudição e do refinamento

dos ludovicenses era também representação, fruto da vontade idealizadora do Eu, portanto,

existir socialmente era também ser percebido como distinto. Afinal, a força representativa de

enunciados semelhantes aos encontrados em O Semanário Maranhense (1867) ou em O

Arquivo (1846), estava no fato de a narrativa pretender criar aquilo que anunciava. Criou-se

então o mito da grandeza do Maranhão.

As pessoas foram reduzidas socialmente às suas identidades. No Maranhão, a

identidade social foi pensada e imposta por uma elite intelectual. Neste conflito entre forças

simbólicas antagônicas, os dominados, isto é, os não letrados, os incultos, escravos e outros

grupamentos, não tiveram “outra escolha” a não ser a aceitação da classificação construída

pelos letrados do que seria sua própria identidade, e ainda determinar o desmembramento

compreensivo por parte do sujeito pensante em relação à disparidade existente entre a idéia

que este faz de si e a idéia imposta do que ele deveria pensa de si (BOURDIEU, 2004a,

p.124).

O que estava sendo problematizado não era a simples relação entre grupos

antagônicos na ordem social, mas o poder de se apropriar da prerrogativa de forjar uma

identidade que descrevesse a “essência do ser maranhense”, não uma releitura do que seria o 15 O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder. Só análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo ‘cientificamente’, isto é, com pleno conhecimento de causa. (LE GOFF,1985).

73

maranhense ou sua terra, mas a imposição tendente à apropriação coletiva deste poder

exercido sobre os princípios de construção e valoração da própria identidade, onde o

dominante culturalmente impelia o outro, isto é, o seu diferente identitário, a negar-se para ser

aceito, para se fazer reconhecido.

A elaboração da simbologia chamada “Atenas Brasileira” foi o reflexo desta

tentativa de homogeneização do todo social em torno de símbolos e signos que definissem o

que era o maranhense. Tendo o controle simbólico como prerrogativa de ação, produziu-se

uma imagem de distinção, uma representação dos intelectuais sobre si mesmos, um arquétipo

identitário, a “Atenas Brasileira”. Concomitante com a imagem produzida, fabricaram um

discurso que os legitimava: (...) já houve quem a chamasse de athenas brazileira, e o nome

conferido em tão solene baptismo não foi nunca contestada nem posto em dúvida pelos que

conhecem a abençoada terra (SEMANÁRIO MARANHENSE, setembro de 1867, n.º 01,

p.01).

Esta narrativa nos possibilitou afirmar que dentro da lógica simbólica das

construções de identidades, existir socialmente não era apenas pretender-se diferente, mas ser

legitimamente reconhecido, isto é, legitimado como diferente, uma vez que a real existência da

identidade trazia consigo a possibilidade de afirmar oficialmente a distinção (BOURDIEU,

2004a, p.129).

A narrativa de tons clássicos dos eruditos já mencionados, com prerrogativas de

cadências rítmicas de agradável compreensão, poderia impulsionar o historiador a uma

reprodução automática das excelências da terra e da gente do Maranhão. Contudo, nestes

enredos de características hermeticamente bem definidas, a saber, de serem construtoras de

imagens de grandeza sobre o Maranhão, foi útil explicitar a relação de poderes que a

legitimava. Poder este simbolicamente determinado e que deveria ser descoberto onde se

pretende menos perceptível, onde seria em grande medida ignorado, afinal, poder simbólico16

é, com efeito, esse poder invisível o qual só poder ser exercido com a cumplicidade daqueles

que não querem saber que lhes estão sujeitos (BOURDIEU, 2004a, p.89).

Colocamos novamente a questão do simbolismo criado em torno da década de

1860. Esclarecemos no capítulo anterior a trajetória do Grupo Maranhense na construção de

16 O pode simbólico é um mecanismo de criação do real, o meio pelo qual se estabelece uma ordem de significação, ou seja, de produção de um sentido imediato para a realidade.

74

uma imagem de glória para a capital do Maranhão. De maneira geral, o caminho trilhado por

cada literato foi um tanto semelhante, englobando uma ativa ação na imprensa local e

nacional, produção de importantes obras para as letras pátrias e uma considerável atividade

literária em outros países, excetuando-se a este respeito, a pessoa de Sotero dos Reis que

trilhou sua vida intelectual na cidade de São Luís.

Não por qualquer outra razão, os anos da década de 1860 foram tão significativos

para a história da literatura maranhense senão pelo fato de neste período terem falecido as

mais importantes personalidades da produção literária maranhense e nacional: João Francisco

Lisboa, que faleceu na cidade de Lisboa ao ano de 1863; Odorico Mendes, morto em 1864 na

capital da Inglaterra e Gonçalves Dias, morto ao mesmo ano em um acidente de navio no

litoral maranhense. A esta “regra” excetuou-se tão somente a figura de Francisco Sotero dos

Reis, que falecera em 1870, também na capital maranhense (BOSI, 2004).

Muito mais a morte prematura, do que propriamente a produção literária, fora

responsável pela sacralização definitiva dos poetas e prosadores maranhenses no pantheon das

celebridades na acrópole do conhecimento chamada “Atenas Brasileira”. Classicamente

postulou-se a publicação do Pantheon Maranhense, por Antonio Henriques Leal, como a

consolidação definitiva das glórias dos maranhenses ilustres, a esta época já falecidos para o

reconhecimento da posteridade. Fora prerrogativa da morte, trasladar os letrados do real ao

imagético, trazê-los dos fatos à narrativa, transportá-los ao enredo, torná-los suscetíveis às

inferências do historiador. Foi a morte que transformou os poetas do Maranhão em

personagens da odisséia da “Atenas Brasileira” rumo à glorificação.

Uma pesquisa mais detida em relação à vida, ou melhor, à morte dos literatos,

mostrou que esta espécie de “adoração aos mortos” se deu bem mais cedo do que postulou a

historiografia clássica do Maranhão em “Pantheon maranhense”. Mesmo levando em

consideração a ausência de certas referências em relação aos sujeitos históricos em questão, o

ano de 1865 foi o marco do “culto aos mortos” na poesia maranhense. Esta fora a data de

publicação do livro chamado Mosaico: poesias traduzidas, por Joaquim Serra. Nesta obra,

continha um anexo em forma de poesia, onde o autor se propunha destacar a ausência dos

homens ilustres do Maranhão, objetivando mensurar o valor da perda, o não ser, o lugar vazio,

outrora preenchido pelos vates da poesia e da prosa maranhense.

75

A narrativa era um monólogo do escritor direcionado à cidade de São Luís,

consolando-a pela perda de seus filhos ilustres. Perante tão grande pesar e martírio pela morte,

como enxugariam as lágrimas da jovem Atenas Brasileira? Indagava o autor. Afinal, diante de

dor tão vívida que ora a atribulava, qualquer consolo seria passageiro e as palavras seriam

nulas. Murchara-se a terra esplêndida, que outrora tantas glórias possuía, por hora, estaria em

meio a muitos pavores, na clausura e na melancolia dos próprios gemidos, não mais altiva,

mas mesquinha!

O berço feracíssimo/ De tantos gênios, rico/ De João Lisboa intrépido/ De Sousa, de Odorico/ Do erante mathematico/ Do Homero português/ Do prosador tão másculo/ Irmãos na fama eles três... (...) Da morte o braço equalido/ Levara os três sem do/ Restava o primogênito meu Deus restava só. (SERRA, 1865, 65-66).

O Poeta prosseguiu seu lamento indagando que fatal condenação seria aquela que

os perseguia, os ofuscava, lançava-os na escuridão e os vencia? Por que feriam tão

profundamente a terra maranhense? Com uma fúria incomum, falava o poeta, o anjo do

extermínio conduzia ao sacrifício os filhos ilustres um a um. Eram negras, obscuras e funestas

as agonias da Atenas Brasileira, afinal, para quê buscar consolo ou alento, porque ansiar pelo

alívio? Morrera também Gonçalves Dias, miseráveis que se tornaram os maranhenses,

deixados na orfandade, abandonados à própria sorte, sem possuir lembrança alguma “senão

prantos e ais”, dizia o autor. O que restara a estes senão a saudade? Perguntava o poeta.

Responde o céo: ficaram vos cantos imortaes (SERRA, 1865, pp. 67-68).

A construção de esplendor e glórias elaborada em torno das figuras poéticas do

Maranhão desfez-se pouco a pouco, e já não existia mais. Com os cantos de Gonçalves Dias,

elevaram-se os espíritos da nação; com o Jornal de Tímon, de Lisboa, conheceram melhor a

própria história e com as traduções gregas de Odorico conheceram um nível mais elevado de

literatura. Os poetas não existiam mais e com eles, se foram as suas glórias. O que restaria,

portanto, que continuasse a distinguir a terra maranhense? Se a grande plêiade de talentos do

Maranhão, a vanguarda da poesia, jazia quase completamente aniquilada pelo braço da morte,

muita inteligência, igualmente primorosa e opulenta, também se levantava na província para

76

reatar os fios das suas tradições (SEMANÁRIO MARANHENSE setembro de 1867, nº. 01, p.

01).

Outras representações igualmente reveladoras foram elaboradas sobre a ilha de

São Luís e sobre a ação de seus filhos. Chamada de ilha de amores, linda flor, paraíso

terrestre, indagava a quem a cidade se mostrava tão formosa. Foi da pena de Celso Magalhães

que se extraiu uma bela narrativa sobre a continuada grandeza da terra maranhense. O texto

muito sugestivamente chamava-se “Glórias” e fora publicado aos 19 dias do mês de maio no

ano de 1870 no jornal O Pais.

Contemplada pelo divino, pela transcendência dos céus, vislumbravam a

magnitude da abençoada terra, coroada com brilhantes estrelas, onde cada uma era a

representação de um ilustre poeta maranhense. Destacamos a maneira como as temáticas das

narrativas mudaram seu enfoque. Anteriores ao ano de 1860, a influência de temáticas

românticas impelia os escritores a falar da opulência da sua terra, após esta data, na iminência

da morte das principais personalidades poéticas, os enredos foram tomados pela glorificação

das “inteligências supremas dos homens de letras maranhenses”.

Celso Magalhães comparou os personagens destas poesias com estrelas de

primeira grandeza.

A primeira, que se ostentava brilhante, encarnava o vulto másculo e gigante da lira

de um harmonioso cantor. Se o próprio Homero escutasse os seus harpejos, afirmou

Magalhães, certamente aos pés cairia despedaçado. Ela, a estrela, já descansava e tinha o

oceano como seu leito mortuário. O seu nome não haveria quem desconhecesse ou não

recordasse por um minuto que fosse o que chamou de ‘rei das harmonias’, daquele que

cantava as florestas, os mares, as cascatas, os índios e as matas. Era ele Gonçalves Dias (O

PAIS, 1870, nº. 62, p. 01).

A outra estrela seria a representação de João Lisboa. Seu nome encerra em si um

cetro e uma coroa, não como de um rei, mas de poeta e prosador. Sua face seria augusta, isto é,

grandiosa, pensativa, regida pela luz da inteligência, seria ele o gênio, o dono de grande

talento. Destacou o tom liberal de suas firmes palavras, quer nos jornais ou nas tribunas. Não

poderíamos deixar de falar sobre do Jornal de Tímon, cuja precisão escrita com que descrevia

as chagas da nação, eram a principal característica de sua crítica social. “Levado” à Europa, os

gênios lhe acenavam e ausente de sua pátria, em outras terras faleceu.

77

Um ponto interessante na narrativa de Celso Magalhães foi o seu relato sobre

Odorico Mendes. De todos os poetas maranhenses o mais clássico em sua forma de escrita

O nome que soletrasse na estrela formosíssima/ E que se cintila em volto em mágico fulgor/ È – Odorico Mendes – de Homero e de Virgilio/ O intérprete fiel, exímio tradutor.

Em meio ao constante signo da morte, Odorico fora ceifado do seio de sua pátria,

repousou em terras inglesas, a então responsável por lapidar a linguagem e o gosto pela

literatura clássica. Enfim, tons de exaltação, glórias e excelências, caracteres sempre presentes

nas representações sobre as pessoas ilustres do Maranhão, marcadamente na prosa e na poesia.

Não tardaria em ofuscar o último vivente do Grupo Maranhense em perder a vida

para adentrar no pantheon das celebridades literárias. Tratava-se de Sotero dos Reis. No dia 16

de janeiro de 1871, os habitantes da capital maranhense receberam a notícia, durante a

madrugada, de haver falecido o literato Francisco Sotero dos Reis. Desta forma, perderia a

literatura maranhense sua quarta personalidade de maior representação, procurando o seu lugar

na história, começara para Sotero a posteridade, fruto de suas glórias literárias. A ciência, a

literatura nacional, a imprensa, ou o magistério, a pátria, ilustrados todos pelos seus

serviços, e pranteando todos a sua morte, cobrem-se de pesado luto (PUBLICADOR

MARANHENSE, janeiro de 1871, nº. 12, p. 02)

Nas linhas acima, o tom de melancolia e perda pela ausência dos poetas do

Maranhão foi com o a maioria dos relatos. Contudo, acima da glorificação, há o valor de cada

literato, cabia a análise do meio em que os produtores destes discursos estavam inseridos e os

mecanismos elaborados para a justificativa desta narrativa de glórias.

Pierre Bourdieu chamou este ambiente de produção de Campo Literário. O campo

aqui referido designou, no caso do Maranhão, este ambiente social e intelectual comum na

maioria dos casos aos literatos maranhenses, onde a predominância de um pensamento de

singularidade era regra.

O conceito de campo literário possibilitou o desvencilhamento com as superficiais

alusões ao mundo social do século XIX no Maranhão, onde a grandeza e a opulência seriam

supostamente predominantes. Neste sentido, o campo de produção foi este ambiente

intelectual de característica profundamente particular sempre evocado pela velha república das

78

letras. Destacando que cada produção literária, se comportava de uma maneira distinta no

interior do campo de produção cultural, desde a publicação de uma antologia de contos à

elaboração maior da idéia de “Atenas Brasileira”, com a noção de campo adquiria-se a

possibilidade de identificar a relação entre generalidade e particularidades e as diferentes

formas pelas quais elas se distinguem, uma vez que

O campo literário é simultaneamente um campo de forças e um campo de lutas que visa transformar ou conservar a relação de forças estabelecida. (...) Desde a metade do século XIX, a poesia é o lugar de uma permanente revolução (BOURDIEU, 2004c, p. 172).

Percebemos que certas categorias explicativas, como “Atenas Brasileira”, que a

historiografia local se esforçou por explicar e legitimar racionalmente, só adquiriram

inteligibilidade e sentido quando recolocadas dentro da lógica interna do campo que as

produziu e onde esta funcionava, tanto como uma estratégia simbólica de dominação, quando

os provincianos maranhenses afirmavam-se superiores aos demais do império, quanto sobre o

uso particularista desta categoria singular de signos e visão do mundo específicas.

Colocamos anteriormente, que a literatura romântica condicionou a produção

poética direcionada à autonomia. Nesta parte da narrativa analisamos de maneira mais detida

este desmembramento fundamental na consolidação de idéias como a “Atenas do Brasil”. A

autonomia deste campo de produção, localizado nas terras do norte do império do Brasil, se

deu de maneira um tanto contínua por toda a segunda metade do século XIX, tanto pelo fato

de os letrados produzirem categorias simbólicas destinadas à dominação cultural, quanto por

estarem igualmente sujeitos aos mecanismos simbólicos por eles produzidos (BOURDIEU,

2004c, p. 175).

Qual a necessidade de analisar tão detidamente o campo de produção literária e a

ação dos letrados dentro deste campo? Ora, seria um tanto desconexo haver afirmativas neste

enredo mostrando que o entendimento sobre o que seria Atenas Brasileira só fazia sentido

dentro da ótica de percepção particular aos letrados, se por outro lado inexistisse uma

compreensão mais esclarecedora sobre o ambiente que legitimava tanto a produção dos

letrados, quanto seus discursos sobre si mesmos. Por esta razão, coube legitimamente uma

abordagem sobre o campo de produção literária no Maranhão em meados do Século XIX.

79

O poder dos literatos é o poder de fazer com que se veja ou se acredite em

elementos existentes tão somente da perspectiva da produção poética, de fazê-las existir no

real enquanto caractere simbólico, de trasladar a singularidade ateniense das páginas de seus

escritos ao imaginário dos maranhenses, os cultos e letrados evidentemente. Em suma, a

natureza essencialmente diagnóstica da produção cultural, possibilita encontrar características

comuns às obras e aos discursos produzidos sobre tais condições similares ou comuns de

produção, ou seja, perceber na obra de cada romântico maranhense o intuito de produzir uma

imagem de grandeza para a província em um primeiro momento, e posteriormente aos letrados

já falecidos, uma imagem de igual excelência (BOURDIEU, 2004c, p. 178).

O literato é um criador. É quem introduz no mundo uma maneira deste pensar a si

mesmo. É quem nomeia o inexistente, que simboliza o objeto ausente tornando-o existente.

Foi o literato que representou o real, trouxe a luz uma singularidade acima de tudo imaginária,

produziu uma realidade social distinta. Portanto, muito justo falar em criação (ou seria melhor

invenção?) da “Atenas Brasileira”.

Como falar em criação, representação, singularidade discursiva, realidade

simbolizadora, percepção imaginária do mundo, ausência de objetos nunca existentes e

distinções identitárias sem que nos venha à memória as laudatórias páginas de Pantheon

Maranhense, produzidos por Antonio H. Leal? De fato, seria um tanto improvável assim

proceder, dado o caráter imagético construído em torno desta obra que tornou-se a imagem

maior da excelência intelectual na província do Maranhão.

O Pantheon Maranhense foi uma obra produzida em quatro tomos, editada na

cidade de Lisboa, nos anos de 1873 a 1875, propondo-se à publicação de ensaios biográficos

sobre os “ilustres maranhenses” falecidos e destacando volumes especiais tanto para

Gonçalves Dias, quanto para João Lisboa, respectivamente os tomos III e IV. Nos dois tomos

iniciais, figuraram personalidades como Manoel Odorico Mendes, Visconde de Alcântara,

Francisco Sotero dos Reis, José Candido de Moraes e Silva, o Barão de Pindaré, Brigadeiro

Feliciano, Antonio Falcão, Senador Joaquim Franco Sá, Senador Joaquim Vieira da Silva e

Sousa, João Padre Dias Vieira, Joaquim Gomes de Sousa, Antonio Joaquim Franco de Sá,

João Duarte Lisboa Serra, Trajano Galvão de Carvalho, Belarmino de Matos e Francisco José

Furtado. A preocupação em destacar nominalmente cada um, deve-se ao fato de que deve estar

clara a natureza dos “ilustres” que figuraram no pantheon da “Atenas Brasileira”.

80

Foi de Antonio Henriques Leal a afirmativa de que era sem contestação alguma

que ao benéfico e vigoroso impulso oferecido às letras nacionais, deveria o Maranhão merecer

de alguns escritores o epíteto de “athenas brazileira” (LEAL, 1873, p. 05). Afinal, fruto

intelectual da cidade de Coimbra, os maranhenses que para ali convergiram teriam regressado

para fomentar na cidade um efervescente meio de produção cultural, conforme mostramos no

primeiro capítulo.

Exatamente no Pantheon maranhense, se cristalizaram as representações sobre os

poetas maranhenses das quais falamos anteriormente. As imagens de grandeza e opulência

cultural, relatados desde os cronistas viajantes até os românticos, tomaram impulso e vigor nas

numerosas páginas da obra de Antonio H. Leal, onde todos os seus personagens seriam gênios

por excelência da república das letras, muito embora das inúmeras personalidades levantadas

na obra, apenas quatro indivíduos possuíam realmente uma trajetória relevante de contribuição

para as letras nacionais: Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Francisco Sotero dos Reis e

Odorico Mendes (LEAL, 1873).

Uma característica importante foi que, tal qual toda obra literária, a narrativa

produzida por Leal, transcendeu a intenção primeira por ele pretendida, e a cada nova época

possuía algo novo a dizer. Os significados gerados em torno da obra não poderiam ser

determinados nem controlados pelo autor, muito menos pelo contexto que legitimava sua

elaboração, afinal, mesmo perpassando o tempo, a obra literária possuía a cada época um

significado distinto, não estava assim, condicionada às pretensões de quem a escreveu. Era o

sentido da obra que discriminava os elementos que permaneciam estáveis em sua percepção,

diferindo, portanto, da significação que mostrava quais elementos foram metamorfoseados no

processo de reapropriação literária da obra produzida desde a sua publicação em 1873 até sua

transformação em ícone de um tipo de identidade intelectual (COMPAGNON, 2006, pp. 86-

87).

Era preciso conhecer as maneiras pelas quais estas estruturas de sentido e

significação se reproduziam, para poder entender em última instância, a conservação de

características históricas herdadas do passado, ou seja, a reprodução entre as gerações de

informações que permitiam a dissociação do que permanecia e do que se modificava

simbolicamente. Esta percepção da criação literária enquanto bem simbólico, ofereceu bem o

entendimento do que seria o aspecto restrito e distinto da “Atenas Brasileira”, no sentido de

81

que o bem cultural produzido simbolicamente, diferenciava ou pertencia aos que possuíam os

meios para deles se apropriarem.

(...) os bens culturais enquanto bens simbólicos, só podem ser apreendidos e possuídos como tais (...) por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los. Em outros termos, a apropriação destes bens supõe a posse prévia dos instrumentos de apropriação (...). O domínio do código não poderia ser completamente adquirido pela aprendizagem corriqueira e difusa na existência cotidiana, sendo, portanto, necessário um ensino (...) organizado (...) com esse objetivo (BOURDIEU, 2004b, p. 304).

Esta maneira de compreender mostra-se a mais esclarecedora acerca das

disparidades que permeavam os significados da obra literária e de seu sentido, pois a

introdução, nesta narrativa, da principal crítica à singularidade ateniense da capital da

província do Maranhão, não poderia ser feita sem o suporte teórico devido.

O Pantheon Maranhense exerceu certa hegemonia literária durante alguns anos,

sendo a principal referência para a reflexão sobre as personalidades e o meio literário

ludovicense como igualmente postulador de uma maneira específica de escrever sobre o

Maranhão. Não tardou muito até a crítica à referida obra, surgir no cenário literário da

produção maranhense. Tratava-se de Um livro de Crítica, escrito por Frederico José Correia, e

editado nesta capital ao ano de 1878.

O conteúdo do livro era primeiro uma crítica contundente e direta ao autor de o

Pantheon Maranhense, e posteriormente à maneira como as informações dos biografados

foram dispostas no corpo do texto. Usa-se o termo crítica contundente no sentido de que, se

por um lado, até os nos 1860 eram incontestáveis as referências sobre a excelência da

produção poética em São Luís, por outro, a existência de um relato que colocava tanto em

dúvida quanto desconstruía esta excepcionalidade, sendo esta crítica feita por um

contemporâneo igualmente ilustrado, não deveria ser descartada, na medida em que se

constituía em relevante parâmetro para a compreensão das disputas internas ao campo de

produção literária.

Frederico Correa mostrava qual era sua função ao escrever sobre as maneiras de

produzir literatura em São Luís do Maranhão. Colocando-se sobreposto a certas

considerações, tentava olhar somente o mérito “real”, proclamava os talentos e mediocridades

que a tantos haviam escapado para calar a opinião daqueles que teriam se comportado como

82

juizes, isto é, dos que ofertavam glórias e cantos aos que delas não seriam merecedores, tendo-

as tão somente por integrarem grupos privilegiados econômica e institucionalmente. O ponto

diferencial pretendido pelo autor de Um Livro de Crítica, era que uma autocrítica destas

proporções ainda não havia no meio da produção dos literatos, e teria sido esta ausência em

perceber as próprias práticas que teriam conduzido a província ao que Correa chamou de

atrazo litterario (CORREA, 1878, pp. 03-04).

Correa mostrou que a publicação de livros de novos escritores deveria estar sobre

a proteção de literatos de grande ordem, do contrário, eram silenciados, quer antes da sua

publicação, ou após isto, durante o (não) contato de sua obra com o público. Estas práticas

estavam, segundo o autor, ofuscando as letras nacionais e elevava quaisquer pessoas à

categoria de homens de talento. O objetivo do autor com a publicação de tal livro era

promover uma releitura a respeito dos elementos subjetivos inerentes às criações e produções

poéticas ludovicenses, permeada por relações de força, de cunho particularista por parte dos

detentores do poder e do controle dos meios de produção culturais (CORREA, 1878, p. 05).

O ataque a Antonio H. Leal não foi desprovido de cautela ou erudição. Para o

entendimento de Frederico José Correa, Antonio H. Leal transformara-se em uma espécie de

árbitro tanto dos talentos quanto das virtudes dos poetas, exaltando uns e depreciando outros,

formulando o parâmetro para o sucesso ou exclusão no campo das letras.

Ao que é que deram este nome famoso, a província ou a sua capital? Questionava

o autor de Um Livro de Crítica. Afinal, não foi em São Luís que nasceram as principais

personalidades das letras locais. O tom satírico de Correa ofertou uma resposta espinhosa de

ter nascido nesta província o Plutarco de todas as celebridades poéticas, Antonio Henriques

Leal, e que por isso, deveria ser a cidade chamada de “Atenas Brasileira”, devido ao tom

fortemente personalista da narrativa do autor do Pantheon Maranhense, em outras palavras, a

elaboração desta distinção identitária estava relacionada à ação localizada de um grupo

especifico de letrados sob a orientação de Antonio H. Leal. Era o Pantheon Maranhense o

mecanismo útil de percepção e análise das práticas intelectuais e literárias no Maranhão

(CORREA, 1878, pp. 28-31).

Correa entendia o aspecto ficcional desta criação literária. Percebia a profundidade

de sua configuração discursiva. Comparou a “Atenas Brasileira” a uma novela, identificando

também o seu autor, Antonio H. Leal. Ao aspecto arbitrário dos elementos contidos em o

83

Pantheon Maranhense, Correa mostrou com igual sensibilidade, as contradições de haver nas

biografias dos ilustres tantas referências a títulos honoríficos e nomenclaturas de

“excelentíssimos” sobre os biografados (CORREA, 1878, pp.40-46).

Não colocamos em questão as particularidades narrativas presentes nestes

discursos produzidos pelas obras aqui em conflito. Optou-se por mostrar que a idéia de

singularidade e ilustração da “Atenas Brasileira” não era consensual, isto é, não havia o

mesmo entendimento por parte de todos a respeito do que representaria ou legitimaria a

criação poética chamada “Atenas Brasileira”. O que se pretendia não era, de maneira alguma,

polarizar as obras literárias em um combate simbólico que legitimasse um discurso de

completa insipiência literária, mas ao contrário, explicitar o caráter restrito desta elaboração

literária que foi estendida ao conjunto dos maranhenses como sendo um dos símbolos de suas

identidades.

Não se tratava de estabelecer culpa a poetas e prosadores para entender a gênese

deste conceito de “Atenas do Brasil”. Retorna-se ao romantismo para sinalizar algumas

reflexões acerca do lugar ocupado pelo escritor do Pantheon Maranhense. Para tanto, fazemos

uso da idéia do poeta enquanto ser criador, enquanto construtor da realidade, simbolizador das

ausências, verbalizador de não ditos, inventor de novas linguagens. Linguagens se

transformam em narrativas que conferem divindade e louvor aos sujeitos históricos. A

imaginação, o sonho, o inconsciente, o irreal, foram características de criação e legitimidade

da estrutura poética romântica que também se fez presente nos textos dos literatos

maranhenses. (BACZKO, 1985, p. 305).

Foi prerrogativa da imaginação, isto é, da autêntica potencialidade criadora, a

dissociação da experiência sensível dos sujeitos históricos e a agregação de valor às novas

partes do novo objeto construído pela poesia e que a posteridade chamou de Atenas Brasileira.

A emancipação da memória das grandezas se deu pela circulação de imagens a este mesmo

respeito, pela formulação de arquétipos, pela liberdade conferida à imaginação que se tornara

criadora, capaz de transpor o homem dos limites do mundo sensível e trasladá-lo ao

transcendente. Esta foi a atitude de Antonio H. Leal. Comportou-se como criador de uma outra

realidade, sensível somente a perspectiva poética (BACZKO,1985, p. 307).

A história, enquanto meio de reflexão, foi criação do sujeito que a escreveu.

Narrativa prosaica permeada por imagens que se pretendem simbolizadoras das experiências

84

narradas, vividas e imaginadas. Da capacidade criadora do poeta e do historiador,

constituíram-se os elementos fomentadores de identidades, inventores de tradições. Eric

Hobsbawm elaborou a tipologia conceitual que melhor caracteriza as morfoses criadoras da

idéia de Atenas Brasileira: Tradições inventadas.

Afinal, o conjunto de práticas reguladas tacitamente pelos criadores das narrativas

poéticas maranhenses, possuía por um lado, uma natureza ritual, isto é, mitificadora de

práticas sociais e sacralizadora das condutas e por outro, possuiu um aspecto simbólico

representativo dos discursos de grandeza transmitidos através da repetição, de uma

continuidade em relação ao passado. A invariabilidade era o objeto maior destas

representações forjadas sobre o passado do Maranhão, no sentido de que o tempo não seria

responsável pela alteração da imagem sobre sua identidade, permanecendo invariável. A

invenção de tradições, tal qual a Atenas Brasileira, era fundamentalmente um processo de

ritualização e formalização de condutas e procedimentos, de maneiras de perceber o mundo,

referindo-se a lembrança de glória pela repetição (HOBSBAWM, 2002, pp. 11-12).

Tradições como a Atenas Brasileira foram inventadas, construídas, elaboradas,

forjadas quando aconteceram transformações suficientemente rápidas a ponto de não serem

acompanhadas pelos agentes históricos. Em outras palavras, a perda das quatro maiores

personalidades literárias do Maranhão, sobre os quais foram elaboradas as representações de

singularidade, justificou às gerações posteriores a criação de uma categoria explicativa que

ocupasse o lugar dos poetas, que explicasse o mundo literário a partir de sua perda, de sua

ausência. Não havia mais personalidades ilustres e a posteridade outorgou-lhes o epíteto de

atenienses.

85

5. Considerações Finais. Discursos sobre esta idéia de “Atenas Brasileira” foram produzidos com os mais

diferentes propósitos nas diferentes fases da trajetória literária do Maranhão no século XIX.

Estas elaborações foram convergentes em afirmar e legitimar representações que conferissem

grandeza e opulência à cidade de São Luís. Foi a literatura o meio pelo qual tais idéias de

diferenciação foram reproduzidas e fixadas no imaginário social.

Essas representações foram gestadas durante todo o século XIX. O que estava

patente era a ação dos cronistas ao narrar um arquétipo de excelência e magnitude sobre a

cidade de São Luís. Neste sentido o que se viu foi a reprodução de elementos ideológicos

referentes à excepcionalidade da terra e da excelência da gente no sentido de propagar

imagens relacionadas à existência de um espaço diferenciado do ponto de vista da cultura.

O intrigante foi a maneira como tais idéias de distinção identitárias foram

propagadas na literatura. Como já foi evidenciado, coube à elaboração literária, a produção de

uma visão de mundo que conferisse sentido e ligação entre essas representações. Os jornais do

período ofereceram a dimensão do que estava acontecendo, afinal, as problemáticas mais

importantes sobre a vivência da cidade eram tratadas nas páginas dos jornais, e nelas

encontravam-se as referências, ainda que dispersas, sobre este ideal de singularidade e

diferenciação cultural que foram propagados pela historiografia.

As relações estreitas da literatura local com a produção européia foram de grande

importância para a percepção do papel desempenhado pelo “Grupo Maranhense” e pela

literatura romântica na produção desta imagem de distinção. A literatura romântica foi a forma

pela qual as representações sobre o Maranhão e seus literatos ganharam expressividade

nacional e se consolidaram como um tipo específico de discurso sobre os elementos

identitários nacionais.

O foco principal do olhar romântico era o sujeito, o agente das narrativas

produzidas sobre as identidades, sujeito este dado à evasão, ao subjetivismo, às características

intrínsecas presentes nos enredos poéticos. Mesmo destacando que o interesse pela pessoa do

narrador adquiriu significado apenas na época romântica e que esta ação pessoal e localizada

foi de suma importância para o processo de autonomia da literatura local, o trato com esse tipo

de abordagem se mostrou muito dificultoso quando foi relacionada às fontes.

86

O princípio que postulou hegemonia ao Grupo Maranhense como responsável por

promover um ambiente de fulgor cultural e por elaborar a “Atenas Brasileira”, foi o mesmo

que impeliu Antonio H. Leal a escrever o Pantheon Maranhense partindo da suposição que na

província do Maranhão todos eram celebridades e talentos superiores. Este princípio era uma

auto-imagem pautada na grandeza e na opulência, propagada na província desde os cronistas

viajantes do século XIX.

A maneira como as narrativas foram elaboradas e a forma como elas foram

entendidas e significadas, leva-nos ao entendimento de que a criação de uma distinção

identitária dos literatos dizia respeito a um segmento restrito da sociedade, exatamente os que

detinham os meios para entender a própria prática social como singular, e não estava de

maneira alguma relacionada ao todo social.

Estas compreensões aqui explicitadas foram resultado de um longo trabalho de

pesquisa, coleta, catalogação e análise de fontes históricas referentes à ação destes letrados e

sobre o próprio desenvolvimento das letras locais em direção a autonomia. Foi o levantamento

deste material que compreende livros de época e na maioria dos casos jornais, que possibilitou

a delimitação do recorte cronológico de 1840 até 1880. Para chegar a este período um extenso

inventário de jornais de 1821 a 1880 precisou ser feito, a fim de que fosse possível perceber os

momentos de recorrência das fontes relacionadas à temática discutida, e feita a escolha de

quais fontes deveria constar na confecção da narrativa.

Neste sentido, destacamos a idéia de que produzir conhecimento estava

diretamente ligada a própria prática do historiador no contato com suas fontes. Quando

levamos em consideração a natureza essencialmente subjetiva do objeto histórico aqui em

questão, a “Atenas Brasileira”, algumas questões de ordem mais prática foram feitas no

sentido de perceber qual a fundamentação que proporcionou meio de afirmar o que foi

postulado nessa narrativa.

De acordo com o exposto, mostramos a importância dos jornais de época para a

formação das idéias aqui colocadas. Tanto, que se por um lado, as obras literárias produzidas

pelos contemporâneos mostraram-se um tanto lacunares em sua relação com o meio que as

produziu, por outro, foram os jornais que ofereceram os elementos responsáveis por relacionar

as obras produzidas aos acontecimentos da esfera intelectual na capital da província do

Maranhão.

87

Jornais de aspecto absolutamente literários, como o Jornal de Instrução e Recreio

(1845), foram de extrema importância para que fosse perceptível a modificação na estética do

texto literário então em voga, da mesma maneira como notar as novas temáticas abordadas

pelos escritores e perceber as maneiras como as representações sobre a produção poética

maranhense eram abordadas. Por outro lado, se o periódico em questão fosse O Arquivo

(1846), as questões nele encontradas seriam referentes ao intenso movimento de criação de

sociedades literárias e filomáticas por todo o território provincial, oferecendo a dimensão das

transformações trazidas pela estética romântica no que se referia a própria produção literária

que foi caracterizada como efervescente.

O jornal Publicador Maranhense de João Francisco Lisboa, da década de 1850,

nos deu elementos para entender a fragmentação social da cidade de São Luís e para mostrar

as profundas desigualdades que distinguiam os diversos segmentos sociais. Neste jornal,

Lisboa publicou importantes folhetins referentes aos hábitos e costumes dos moradores da

cidade, mostrava neles, de maneira satírica, o abismo existente entre a elite e os despossuídos

socialmente, afinal, neste jornal estavam entre outros os escritos sobre a “Festa de Nossa

Senhora dos Remédios”, importante relato sobre a sociabilidade ludovicense.

Tanto o jornal O Progresso (1847-1860) quanto o Jornal da Sociedade Filomática

Maranhense (1846), mostraram as principais mudanças no cenário literário maranhense. As

publicações de Gonçalves Dias, como os Primeiros Cantos (1846), e a repercussão da escrita

do poeta maranhense, tiveram espaço em O Progresso para a propagação de que precisavam.

A ação dos letrados do chamado Grupo Maranhense também foi notícia neste periódico. Nas

páginas de O País (1870) foram veiculadas representações que colocavam os letrados do

Maranhão ao nível de estrelas celestes.

Estas leituras se complementaram com as produções dos próprios letrados da

chamada “Atenas Brasileira”. Entre elas o Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira (1866-

1868), e as Obras Póstumas de Gonçalves Dias (1868), de onde foram retirados elementos que

fundamentaram tanto as análises sobre a literatura romântica, quanto a tendência da literatura

local de direcionar-se à autonomia. Foi na obra de Sotero dos Reis que repousou uma das mais

importantes falas sobre o papel da obra poética de Gonçalves Dias e as transformações por ele

produzidas na literatura nacional.

88

Do confronto entre as obras Pantheon Maranhense (1873-1875) de Antonio

Henriques Leal e Um Livro de Crítica (1878) de Frederico José Correa, foram expostos

elementos significativos para a análise da produção local e dos mecanismos internos aquele

campo de produção, dos meios de produção de imagens sobre o talento e a erudição dos

homens de letras do Maranhão. No caso do Pantheon Maranhense extraíram-se as

representações referentes à genialidade e à superioridade intelectual dos poetas e dos

prosadores maranhenses. Por outro lado, o livro Um Livro de Crítica representou a quebra na

hegemonia de uma determinada maneira de falar sobre o Maranhão, além de ser uma crítica

aos contemporâneos e à singularidade da Atenas Brasileira.

Estas análises conduzem ao entendimento de que conhecimento histórico é aquele

produzido a partir do documento. Neste sentido, algumas dificuldades metodológicas se

fizeram presentes na elaboração desta narrativa. Afinal, além de qualquer coisa, a existência

de uma base documental constituiu o elemento primordial para a confecção de qualquer texto

de história. Neste caso, o contrário a estas afirmativas também foi importante.

Em outras palavras, a dificuldade com as fontes estava presente em dois sentidos:

o início em que eles se “mostraram” ao historiador e o movimento de seu “desaparecimento”.

Dito de outro modo, o recorte cronológico de 1840-1880 não estava todo ele abarcado por

referências ao tempo em questão, isto é, as referências, às temáticas aqui discutidas se

mostraram um tanto distanciadas umas das outras. O que a princípio seria a razão pra a

impossibilidade de desenvolvimento do tema, tornou-se a sua principal característica, o

argumento central da proposta aqui levantada. A “ausência” de referências sobre a

efervescência cultural ou Atenas Brasileira, foi o elemento que justificou a compreensão de

que se tratava de uma elaboração identitária feita pela posteridade.

Este entendimento foi possível tanto pela existência localizada de referências em

momentos específicos, conforme mostraram os jornais, como pelo completo silêncio das

fontes históricas em questão, seja pela falta de relatos dos sujeitos históricos ou pela

inexistência material da fonte histórica que não resistiu a ação do tempo.

A abordagem do aspecto marcadamente historiográfico contadas nestas páginas,

foi decorrente deste entendimento gerado pelas fontes históricas e pelas suas ausências. Foi

exatamente a inexistência de certos relatos e a concentração de outros enredos, que conduziu a

abordagem sobre a Atenas Brasileira como um desmembramento essencialmente

89

historiográfico, ou mais que isso, uma criação literária. Por isso a predominância de

abordagens que destacaram as funções literárias tanto dos relatos históricos quanto das

criações fruto dos enredos dos próprios poetas.

Por um lado, objetivou-se entender as bases criadoras e legitimadoras da Atenas

Brasileira através dos discursos literários e dessas referências contidas nos jornais do período.

Por outro lado, uma série de outros aspectos igualmente importantes referentes a este assunto

não foram contemplados nesta narrativa. Entre estas noções estavam a atividade intelectual e

política dos letrados na capital do império, o Rio de Janeiro, após a sua migração da cidade

natal; a função cultural do teatro nas relações sociais intra-elitistas; a quantidade de obras

produzidas pelos literatos fora da cidade de São Luís; a disparidade existente entre um certo

fluxo de obras vindas da Europa e a inexistência de um sólido público leitor na capital da

província do Maranhão, enfim, inúmeras possibilidades de reflexão que mostraram meios de

dar seqüência a esta temática tão vasta e que ainda poderiam ser discutidas, pensadas e

problematizadas.

Por certo, essas análises justificaram a afirmativa que as identidades culturais

estavam balizadas sobre os elementos que a posteridade a princípio ‘negou’ e logo após

reafirmou a fim de priorizar e conferir ênfase à elementos históricos passados tidos como

tradicionais e cristalizados no imaginário social através da repetição feita pelas narrativas

históricas e literárias.

90

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