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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FRED IZUMI UTSUNOMIYA ANÁLISE DE DISCURSOS DE SITES DE KENJINKAI DO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL TIPICAMENTE NACIONAL São Paulo 2014

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FRED IZUMI …tede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2351/1/Fred Izumi Utsunomiy… · “Bazar Beneficente” – parte inicial ..... 219 . Figura

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  • UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    FRED IZUMI UTSUNOMIYA

    ANÁLISE DE DISCURSOS DE SITES DE KENJINKAI DO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL TIPICAMENTE NACIONAL

    São Paulo

    2014

  • FRED IZUMI UTSUNOMIYA

    ANÁLISE DE DISCURSOS DE SITES DE KENJINKAI DO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL TIPICAMENTE NACIONAL

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras.

    Profa. Orientadora: Dra. Diana Luz Pessoa de Barros

    São Paulo

    2014

  • U92a Utsunomiya, Fred Izumi. Análise de discursos de sites de Kenjinkai do Brasil : a cons-

    trução de uma identidade cultural tipicamente nacional / Fred Izumi Utsunomiya. – 2014.

    276 f. : il. ; 30 cm.

    Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.

    Referências bibliográficas: f. 253-264.

    1. Kenjinkai. 2. Imigração japonesa. 3. Brasil. 4. Comunida-de Nikkei. 5. Análise de discurso. 6. Identidade cultural. 7. Site institucional. I. Título.

    CDD 401.41

  • FRED IZUMI UTSUNOMIYA

    ANÁLISE DE DISCURSOS DE SITES DE KENJINKAI DO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL TIPICAMENTE NACIONAL

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras.

    Aprovada em

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________________________________

    Profa. Dra. Diana Luz Pessoa de Barros - Orientadora Universidade Presbiteriana Mackenzie

    ___________________________________________________________________

    Prof. Dr. José Gaston Hilgert Universidade Presbiteriana Mackenzie

    ___________________________________________________________________

    Prof. Dr. Adolpho Carlos Françoso Queiroz Universidade Presbiteriana Mackenzie

    ___________________________________________________________________

    Prof. Dr. Roberval Teixeira e Silva - Co-orientador Universidade de Macau

    ___________________________________________________________________

    Prof. Dr. Nilton Hernandes

  • Dedico esta tese

    À minha esposa, Mirian,

    pelo incondicional apoio

    nesta jornada.

    Aos meus filhos

    Michelle, Gabriel e Leonardo,

    pela paciência com a qual

    aguardaram a elaboração

    deste projeto.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, por sua graça, direção e provisão constantes.

    A meus pais, Hissao e Kiyoko Utsunomiya, sem os quais não teria chegado até aqui.

    À professora Dra. Diana Luz Pessoa de Barros, mestre ímpar, orientadora exemplar

    e segura. Obrigado pela paciência e pelo apoio e incentivo dados e também pela

    insistência para fazer o doutorado sanduíche. Esta foi uma experiência sem igual!

    Ao Prof. Dr. Roberval Teixeira e Silva, co-orientador e amigo, pelo cuidado e atenção

    a mim dispensados quando estive em Macau.

    A todos os professores do Programa de Pós-graduação em Letras da UPM pelas

    aulas e experiências transmitidas que tornaram o curso extremamente proveitoso.

    Ao prof. Marcos Nepomuceno, amigo que me mostrou o “caminho das Letras”.

    Ao prof. Dr. Alexandre Huady, diretor do Centro de Comunicação e Letras por todo o

    apoio e companheirismo que recebi como professor doutorando do CCL.

    À Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela bolsa de doutorado e pelo apoio e

    suporte que recebi quando estive realizando pesquisas na Ásia.

    À Universidade de Macau por me receber tão bem no período que estive na China.

    Ao International Research Center for Japanese Studies, em Kyoto, na pessoa do

    prof. Shuhei Hosokawa pelas portas abertas para minha pesquisa.

    Ao governo de Yamagata, que através do sr. Takehiro Igarashi, do Yamagata Prefecture

    Government International Affairs Office, forneceu importantes informações.

    Ao Fundo Mackenzie de Pesquisa por financiar boa parte desta tese através dos

    recursos de Subvenção para Reserva Técnica para Programas de Pós-Graduação.

    À CAPES que, através da concessão de bolsa do Programa de Doutorado

    Sanduíche no Exterior, possibilitou a realização da pesquisa em Macau e no Japão.

  • E, daí a pouco, aproximando-se os que

    ali estavam, disseram a Pedro:

    Verdadeiramente também tu és deles,

    pois a tua fala te denuncia.

    Mateus 26:73

  • RESUMO

    O kenjinkai é uma associação estabelecida no Brasil que reúne imigrantes de uma

    determinada província japonesa e seus descendentes, com o objetivo de servir como

    elo de ligação entre os associados e a província de origem. O Japão possui 47

    províncias e no Brasil existem 47 kenjinkai, que são formados predominantemente

    por um público nikkei de nacionalidade brasileira. Essas organizações de origem

    japonesa estão profundamente ligadas às províncias de seus fundadores, mas

    passados quase cinquenta anos após o encerramento do ciclo de imigração, quando

    desenvolveu-se o processo de adaptação e absorção desses imigrantes na

    sociedade brasileira, o que elas professam ser? Entidades japonesas ou brasileiras?

    Esta tese investiga qual é a identidade cultural construída pelos kenjinkai no Brasil

    através dos discursos dos sites dessas instituições. Três sites foram selecionados

    para análise segundo metodologia proposta pela semiótica narrativa e discursiva e,

    a partir da perspectiva proposta pelos Estudos Culturais de construção de identidade

    cultural a partir do discurso, levantou-se que o ator da enunciação dos kenjinkai no

    Brasil é um ator brasileiro e que possui uma identidade cultural brasileira.

    Palavras-chave: Kenjinkai, imigração japonesa no Brasil, comunidade nikkei, análise

    de discurso, identidade cultural, site institucional.

  • ABSTRACT

    Kenjinkai is an association established in Brazil which gathers immigrants from an

    specific Japanese prefecture (province) and its descendents. Its objective is to work

    as a liaison between its members and their original province. Japan has 47 provinces

    and there are 47 associations of this kind in Brazil, which are formed by a Nikkei

    Brazilian citizen public. Those Japanese rooted associations are strongly connected

    to the provinces of their founders. Considering that its been fifty years since the

    closing of the Japanese immigration period in Brazil happened, period when it was

    developed a process of adaptation and inclusion of these immigrants in the Brazilian

    society, how do they present themselves? As Brazilian entities or Japanese ones?

    This thesis investigates the cultural identity which is built by these Kenjinkai in Brazil

    through the discourses of their institutional websites. The theory and methodology of

    narrative and discoursive semiotics were chosen to analyze three kenjinkai's

    websites. From the perspective proposed by the Cultural Studies about the

    construction of cultural identity trough the discourse, we concluded that the actor of

    enunciation of Kenjinkai in Brazil is a Brazilian actor and has a cultural Brazilian

    identity.

    Key-words: Kenjinkai, Japanese immigration in Brazil, Nikkei community, discourse

    analyze, cultural identity, institutional website.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 – Mapa com as nove regiões e 47 províncias do Japão ........................... 18

    Figura 2.1 – Níveis do sistema enunciativo ............................................................. 78

    Figura 2.2 – O quadrado semiótico e suas relações ............................................... 88

    Figura 2.3 – Operações de negação e asserção no quadrado semiótico ............... 89

    Figura 2.4 – Mapa com as províncias de Hokkaido, Yamagata e Shimane ............ 99

    Figura 2.5 – Sites de kenjinkai selecionados: Hokkaido, Yamagata e Shimane ... 100

    Figura 3.1 – Cabeçalho da home page da Associação Hokkaido ......................... 104

    Figura 3.2 – Visual parcial da home page do site da Associação Hokkaido ......... 105

    Figura 3.3 – Links do menu inferior ao pé da home page ..................................... 106

    Figura 3.4 – Frame XVI Hokkaido Matsuri ............................................................ 107

    Figura 3.5 – Frame com três temas ....................................................................... 108

    Figura 3.6 – Imagem do cabeçalho da home page da Associação Hokkaido ....... 123

    Figura 3.7 – Imagens do link “Ishin Yosakoi Soran” .............................................. 130

    Figura 3.8 – Foto do grupo Ishin Yosakoi Soran ................................................... 136

    Figura 3.9 – Foto do grupo Ishin Yosakoi Soran: 10 anos em 2013 ...................... 138

    Figura 3.10 – Imagem da página do link “Higuma” ................................................ 140

    Figura 3.11 – Home page do site do Yamagata Kenjinkai do Brasil ...................... 151

    Figura 3.12 – Home page do site do Shimane Kenjinkai ....................................... 190

    Figura 3.13 – Menu expansível do site do Shimane Kenjinkai .............................. 191

    Figura 3.14 – Boletim trimestral Dan Dan, nº 136, de jun/2010, página 1 ............. 203

    Figura 3.15 – Boletim trimestral Dan Dan, nº 136, de jun/2010, página 2 ............. 204

    Figura 3.16 – Página do link “Bazar Beneficente” – parte inicial ........................... 219

    Figura 3.17 – Página do link “Bazar Beneficente” – parte final .............................. 220

    Figura 3.18 – Aspecto de exibição de imagem do aplicativo Picasa ..................... 223

    Figura 3.19 – Exibição de legenda no aplicativo Picasa ....................................... 224

    Figura 3.20 – Início de exibição no aplicativo YouTube ........................................ 224

    Figura 3.21 – Exibição de textos sobre imagem no aplicativo YouTube ............... 225

    Figura 3.22 – Exemplo de transição de imagens no aplicativo YouTube .............. 225

  • LISTA DE DIAGRAMAS

    Diagrama 3.1 – Quadrado semiótico com as relações “Tradição x Novidade” ........... 128

    Diagrama 3.2 – Quadrado semiótico com as relações “Tradicional x Moderno” ........ 139

    Diagrama 3.3 – Quadrado semiótico com as relações “Participação x Alienação”...... 144

    Diagrama 3.4 – Quadrado semiótico com as relações “Japão x Brasil” ...................... 160

    Diagrama 3.5 – Quadrado semiótico com as relações “Crise” x “Superação” ............ 172

    Diagrama 3.6 – Quadrado semiótico com as relações “Vínculo” x “Separação” ........ 183

    Diagrama 3.7 – Quadrado semiótico com as relações “Isolamento” x “Interação” ..... 201

    Diagrama 3.8 – Quadrado semiótico com as relações “Passividade” x “Atividade” .... 218

    Diagrama 3.9 – Quadrado semiótico com as relações

    “Monoculturalidade” x “Biculturalidade” ............................................... 232

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1.1 – Principais movimentos migratórios japoneses para o exterior ......... 39

    Quadro 2.1 – Quadro indicativo de associações de províncias que possuem

    site na Internet em dez/2013 ............................................................ 98

    Quadro 2.2 – Endereços de sites de kenjinkai ...................................................... 98

    Quadro 3.1 – Resumo esquemático do texto “Motivos da imigração japonesa

    no Brasil .......................................................................................... 114

    Quadro 3.2 – Resumo esquemático do texto “A História da Imigração

    Japonesa no Brasil” ....................................................................... 164

    Quadro 3.3 – Resumo esquemático do texto “A Caminhada do Yamagata

    Kenjinkai no Brasil” ........................................................................ 176

    Quadro 3.4 – Resumo esquemático dos álbuns de imagens do link “Bazar

    Beneficente” .................................................................................... 221

  • SUMÁRIO

    PRÓLOGO .............................................................................................................. 15

    INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 17

    CAPÍTULO I KENJINKAI E IDENTIDADE CULTURAL ............................................................... 29

    1.1. O ESPÍRITO ASSOCIATIVO DOS JAPONESES .............................................. 30

    1.2. ANTECEDENTES DA IMIGRAÇÃO JAPONESA ............................................ 33 1.2.1. A IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL .................................................. 41

    1.2.2. ADAPTAÇÃO DOS IMIGRANTES JAPONESES AO BRASIL .................. 45

    1.2.3. NIHONJIN, JAPONÊS, NIKKEI E NIPO-BRASILEIRO ............................ 51

    1.3. A ORGANIZAÇÃO DE UM KENJINKAI ............................................................ 58 1.3.1. OBJETIVOS DO KENJINKAI .................................................................... 62

    1.3.2. IDENTIDADE CULTURAL DO KENJINKAI .............................................. 64

    1.3.3. O KENJINKAI E A COMUNICAÇÃO INSTITUCIONAL ............................. 68

    CAPÍTULO II

    FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS PARA A ANÁLISE DO DISCURSO DO KENJINKAI .................................................................................... 71

    2.1. A PERSPECTIVA DA TEORIA SEMIÓTICA ..................................................... 72

    2.2. DEFININDO ENUNCIAÇÃO, ENUNCIADO, DISCURSO E TEXTO .................. 75 2.2.1. O ATOR DA ENUNCIAÇÃO .................................................................... 79

    2.2.2. O DISCURSO E O TEXTO ....................................................................... 80

    2.3. A SEMIÓTICA NARRATIVA E DISCURSIVA .................................................. 82 2.3.1. PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO .................................................. 87

    2.4. METODOLOGIA DA SELEÇÃO DO CORPUS ................................................ 97

  • CAPÍTULO III

    ANÁLISE DOS DISCURSOS DOS SITES .............................................................102

    3.1. ANÁLISE DO SITE DA ASSOCIAÇÃO HOKKAIDO.......................................104

    3.1.1. TEXTO “MOTIVOS DA IMIGRAÇÃO JAPONESA...” .............................110

    Em busca do novo espaço para o japonês .......................................116 Hokkaido e o Japão ancestral ............................................................120 Tradição e novidade vivenciados num novo espaço ........................126

    3.1.2. TEXTO “O QUE É YOSAKOI SORAN” ...................................................129

    Yosakoi Soran, a dança dos jovens de Hokkaido .............................130 De Hokkaido para o Japão inteiro e o mundo ....................................132 Tradicional x moderno? Não, é o Tradicional-moderno! .................139

    3.1.3. TEXTO “HIGUMA-KAI” ...........................................................................140

    Os jovens e suas atividades sociais ..................................................141 Os jovens ursos da província do norte .............................................142 Não deixe de participar! ......................................................................144

    3.1.4. O ATOR DA ENUNCIAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO HOKKAIDO ................145

    3.2. ANÁLISE DO SITE DO YAMAGATA KENJINKAI DO BRASIL ................... 150

    3.2.1 TEXTOS DO FRAME PRINCIPAL DA HOME PAGE ............................ 154

    A tradição japonesa e a cultura do Brasil ........................................ 155 Brasil e Japão em equilíbrio a partir da província-mãe .................. 157 Japão e Brasil: a nipo-brasilidade ..................................................... 160

    3.2.2 TEXTO “HISTÓRICO DA IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL” ......... 161

    Enfrentando e vencendo crises com união e trabalho .................... 165 Trabalhando em equipe, rumo à vitória! .......................................... 167 Crise, união, trabalho e superação .................................................... 171

    3.2.3. TEXTO “A CAMINHADA DO YAMAGATA KENJINKAI DO BRASIL” ... 174

    Os provincianos de Yamagata, o YKB e a província-mãe .............. 177 Provincianos de Yamagata legitimando a comunidade nikkei ........ 179 Japonesidade e brasilidade vinculadas à província de Yamagata .... 183

    3.2.4. O ATOR DA ENUNCIAÇÃO DO YAMAGATA KENJINKAI ................... 186

  • 3.3. ANÁLISE DO SITE DO SHIMANE KENJINKAI ........................................... 190

    3.3.1. TEXTOS DO FRAME PRINCIPAL DA HOME PAGE ........................ 194

    Shimane Kenjin: intercâmbio, integração e auxílio ...................... 195 Ponto de encontro de japonesidade e de brasilidade .................. 197 Movimentos de dentro para fora e de fora para dentro ............... 200

    3.3.2. TEXTO DO BOLETIM DAN DAN NEWS NÚMERO 136 ................... 202

    Trabalhando duro para atingir os objetivos do kenjinkai ............. 208 O trabalho em equipe construindo a identidade cultural ............ 210 Shimane Kenjin: atividades e institucionalização ........................ 217

    3.3.3. TEXTO DO LINK “BAZAR BENEFICENTE” ...................................... 219

    Todos trabalhando juntos para fazer o bem ................................. 226 Beneficência expressando japonesidade e brasilidade .............. 228 Uma cultura ou duas culturas ........................................................ 232

    3.3.4. O ATOR DA ENUNCIAÇÃO DO SHIMANE KENJIN ......................... 234

    3.4. O ATOR DA ENUNCIAÇÃO DOS SITES DOS KENJINKAI ........................ 238

    CONCLUSÃO ........................................................................................................ 246

    EPÍLOGO .............................................................................................................. 252

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 253

    ANEXOS ............................................................................................................... 265

    LISTA DOS KENJINKAI DO BRASIL ......................................................... 266 LISTA DE ASSOCIAÇÕES NIPO-BRASILEIRAS ...................................... 269

  • PRÓLOGO

    BRASILEIRO, JAPA, NIKKEI OU NIPO-BRASILEIRO?

    Antes de dar voz ao enunciador “pesquisador Fred Utsunomiya”, estabelecendo o

    discurso da tese que o leitor poderá ler a seguir, gostaria de fazer uma breve

    interferência e me colocar como pessoa de carne, osso e alma, com RG e CPF, ao

    fazer um compartilhamento pessoal antes que se adiante na leitura desta obra.

    Graduei-me em Publicidade e Propaganda. Fiz pós-graduação lato sensu em Gestão

    de Processos Comunicacionais e, para concluí-la, desenvolvi a monografia “A

    Gestão da Comunicação de Projetos Sociais”, por causa do interesse que sempre

    nutri por instituições assistenciais e pelas organizações sem fins lucrativos. Sempre

    tive interesse por movimentos sociais, organizações orientadas por valores, ONGs e

    pelo Terceiro Setor. Dessa forma, no mestrado, minha dissertação também abordou

    essa temática, com o título “O Desafio da Gestão da Comunicação Institucional de

    Organizações do Terceiro Setor Brasileiro”. E agora, no doutorado, defendo uma

    tese que trata do discurso identitário de associações de províncias do Japão

    estabelecidas no Brasil. Novamente, o foco é uma organização social, comunitária,

    sem fins lucrativos. De fato eu me interesso por pessoas, por comunidades e pelo

    modo como elas se organizam e atuam na sociedade. As pessoas e suas criações

    são um objeto de estudo fantástico.

    Tomei conhecimento, nos últimos anos, da existência de 47 associações de

    província japonesas no Brasil que representam o mesmo número de províncias

  • existentes no Japão e fiquei boquiaberto: Perguntei-me: “Todas essas associações

    de províncias japonesas no Brasil ainda existem, mesmo após tanto tempo de

    encerramento do processo imigratório no país”? Fiquei curioso em saber o que elas

    fazem hoje, quem são as pessoas que as compõem e o que elas dizem sobre si

    mesmas. Então, resolvi desenvolver esta tese.

    Na busca por essas respostas, realizei muitas leituras, entrevistei pessoas,

    desenvolvi pesquisas e relembrei diversos fatos e experiências que vivi como nipo-

    brasileiro. Apesar de ser sansei – nikkei de terceira geração – e de ser chamado de

    “japonês” muitas vezes, nunca me assumi como “japonês”. Embora eu tenha

    convivido com muitas pessoas da “colônia japonesa“, tenha lutado judô e karatê,

    goste de mangás e de comida japonesa, tenha visitado o Japão várias vezes, tenha

    estudado a língua japonesa, conhecendo até alguns rudimentos do idioma, ainda

    assim, nunca tive dúvidas quanto à minha identidade cultural: sempre me considerei

    e me senti brasileiro. Apesar de ter tantas ligações com o Japão, imaginava que

    minha identidade cultural fosse somente brasileira, e não “hifenizada” – “nipo-

    brasileira”. Nessa trajetória de pesquisa científica, foi impossível não me envolver

    pessoalmente. A “objetividade científica” e o “distanciamento do objeto” por parte do

    pesquisador estão presentes no discurso que virá a seguir: enunciado pelo ator da

    enunciação “pesquisador Fred Utsunomiya”. No entanto, o desenvolvimento desta

    tese foi como a realização de uma grande viagem no passado e dentro de mim

    mesmo, que me fez ver que a vida não é produto apenas de escolhas e decisões

    pessoais. Aquilo que somos também é fruto da trajetória e da escolha de tantas

    outras pessoas que nos antecederam. Podemos fazer escolhas, mas muitas delas

    estão limitadas a um leque de possibilidades que “herdamos” de nossos

    antecessores. No meu caso, de meus ancestrais que vieram do Japão.

  • 17

    INTRODUÇÃO

    ANÁLISE DE DISCURSO DE SITES DE KENJINKAI NO BRASIL

    Kenjinkai1 é uma entidade formada por imigrantes japoneses e seus descendentes

    originários de uma determinada província no Japão, estabelecida quando eles vivem

    em outras regiões do país ou em outras partes do mundo. No Brasil, ela é

    organizada em forma de associação civil, sendo composta por imigrantes japoneses

    e seus descendentes que se fixaram no país ao longo de todo o processo imigratório

    desenvolvido no país a partir de 1908 até os anos 1970. Os kenjinkai2 têm dois

    objetivos: servir de contato entre os conterrâneos imigrantes e ser o elo de

    comunicação entre os imigrantes e sua província natal. Atualmente, o Japão é dividido

    administrativamente em 47 províncias, denominadas genericamente de ken (em

    inglês, prefecture), que correspondem mais ou menos aos estados brasileiros. Cada

    província (prefecture ou ken) tem um governador e é constituída por várias cidades e

    distritos, que por sua vez, podem, ainda, ser subdivididos em subdistritos e vilas3. As

    províncias geograficamente próximas formam nove regiões (tal como as regiões

    formadas por estados no Brasil): Hokkaido, Tohoku, Chubu, Kanto, Kansai, Chugoku,

    Shikoku, Kyushu e Okinawa (figura 1). No Brasil existem exatamente uma associação

    de província para cada uma das províncias japonesas. Os kenjinkai são fruto do

    desenvolvimento da presença japonesa no país, comunidade já assimilada e

    1 O termo kenjinkai (県人会) significa literalmente: “associação de provincianos” 2 Nesta tese utilizam-se os termos em japonês sem a flexão de número, tal como na língua japonesa (por ex.: os kenjinkai e os nikkei). Quando o termo já estiver incorporado ao vocabulário do português brasileiro, seguiremos as regras gramaticais deste (por ex.: os decasséguis). A romanização dos vocábulos japoneses utilizados nesta tese segue o sistema Hepburn, padrão adotado pelo Japão. É utilizada a forma abrasileirada do termo se este já constar em algum dicionário de língua portuguesa.3 Província: ken (県), cidade: shi (市), distritos: to (郡), subdistritos: chō ou machi (町) e vilas: mura (村).

  • 18

    incorporada à sociedade brasileira e que desenvolvem eventos sociais que fazem

    parte do calendário oficial de eventos comemorativos locais, como o “Festival do

    Japão” que reúne milhares de pessoas no mês de julho na cidade de São Paulo.

    Figura 1 – Mapa com as 9 regiões e 47 províncias do Japão

  • 19

    A imigração japonesa no Brasil deu-se ao longo de um período que durou cerca de

    seis décadas e se desenvolveu em duas etapas distintas (antes e depois da

    Segunda Guerra Mundial). Tal processo, coordenado pelos países envolvidos –

    Brasil e Japão – começou oficialmente em 1908, quando o primeiro navio

    proveniente do Japão, o Kasato Maru, atracou no porto de Santos trazendo 781

    japoneses para trabalhar nas fazendas cafeeiras do interior de São Paulo. De 1908 a

    1973 – ano que marca o fim da imigração japonesa negociada entre os dois países –,

    cerca de 230 mil imigrantes japoneses fixaram-se no país, sobretudo nos estados de

    São Paulo e do Paraná, mas também se dirigiram e se estabeleceram em algumas

    regiões do Pará, Amazonas, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul. Após esse

    período, ainda houve imigrantes japoneses que vieram ao Brasil, mas numa escala

    bem menor, e sem a intermediação dos governos. Hoje, um século depois de

    iniciado o processo de imigração e cerca de 40 anos após sua finalização, os

    imigrantes japoneses e seus descendentes – a grande maioria já com a

    nacionalidade brasileira – formam uma comunidade bastante visível e plenamente

    identificável (pelos traços físicos e pelo sobrenome) de aproximadamente um milhão

    e quinhentas mil pessoas. Essa população é conhecida como comunidade nikkei4,

    está espalhada por diversas partes do país e é o maior contingente de descendentes

    de japoneses fora do Japão do mundo.

    Desses nikkei brasileiros, cerca de duzentos a trezentos mil moram e trabalham hoje

    no Japão – número superior ao de japoneses que vieram ao Brasil no período

    imigratório –, desenvolvendo o mesmo percurso, em sentido inverso, de seus

    antecessores, que atravessaram os mares no século passado em busca de novas

    4 Nikkei (日系) é um termo em japonês que se refere aos descendentes dos japoneses que nasceram fora do Japão, bem como ao imigrante que vive regularmente em outro país, geralmente no continente americano.

  • 20

    perspectivas de vida. Esse movimento de migração para o Japão começou nos anos

    de 1980, durante a estagnação econômica do Brasil, quando a inflação anual

    chegou a de 1000%. Diante da falta de perspectivas profissionais e econômicas,

    muitos brasileiros, dentre os quais os nikkei aqui já estabelecidos deixaram o Brasil

    (KAWAMURA, 2003 e SASAKI, 2009) em direção à Terra do Sol Nascente, que se

    apresentava naqueles anos como uma grande oportunidade para acúmulo de capital

    em curto espaço tempo. O Japão passava por um período de grande

    desenvolvimento econômico, já havia se consolidado como a 2ª maior economia do

    mundo, e necessitava de mão de obra para serviços braçais que estavam sendo

    rejeitados pelos próprios japoneses. Para ocupar esses postos de trabalho pesado,

    muitos descendentes de japoneses partiram para a terra de seus ancestrais, com o

    objetivo de juntar recursos financeiros e, assim, melhorar de vida. Tal como seus

    pais e avós, a intenção era trabalhar muito, acumular capital rapidamente e retornar

    ao Brasil. Eles ficaram conhecidos pelo nome pejorativo de decasséguis5.

    No entanto, por diversos motivos, muitos deles estão se estabelecendo no Japão.

    Apesar de ser nipo-descendente, a maioria não possui cidadania japonesa e muitos

    vivem precariamente inseridos na sociedade de lá – não obstante a ascendência, o

    sobrenome e a fisionomia nipônicos. Boa parte deles se identifica mais com a cultura

    brasileira do que com a japonesa, e apesar de carregarem a herança cultural dos

    antepassados, eles absorveram muito mais a cultura do país onde nasceram – o

    Brasil – do que a de seus pais e avós. Por outro lado, seus filhos que nasceram no

    Japão têm a cidadania brasileira, mas estudaram e estudam no sistema educacional

    5 Forma abrasileirada de dekasegi (出稼ぎ), que significa literalmente: “sair” e “ganhar dinheiro”. Refere-se à pessoa que sai de sua terra para trabalhar. O termo era usado para denominar os trabalhadores temporários japoneses, sobretudo das regiões mais frias, que deixavam suas terras no período de inverno, quando não se podia exercer atividades agrícolas, para obter sustento. Modernamente tem um sentido pejorativo, pois faz referência justamente ao trabalhador estrangeiro temporário que executa tarefas que o cidadão japonês comum se recusa a realizar, sintetizado nos 3K: kitanai, kiken e kitsui (sujo, perigoso e pesado).

  • 21

    japonês e se sentem mais japoneses que brasileiros. Por esses motivos, as famílias

    de decasséguis encontram dificuldades de adaptação à sociedade japonesa,

    principalmente devido às barreiras impostas pela língua – a qual a primeira geração

    de brasileiros não domina – e às características culturais e sociais sobre as quais o

    Japão moderno está construído. Isso faz com que diversas reordenações e

    rearranjos nas relações familiares e o estabelecimento de novos projetos e modos

    de vida sejam realizados por essas famílias brasileiras (SILVA, 2012 e SASAKI,

    2009).

    A Federação das Associações de Províncias do Japão no Brasil (Kenren)6

    (http://www.kenren.org.br) é uma organização que reúne e representa essas

    associações de províncias ativas no país. É uma das mais importantes e

    representativas instituições nipo-brasileiras e sua existência atesta a influência que a

    questão da representatividade das províncias japonesas exerce inclusive nos

    descendentes dos imigrantes. A maioria das sedes das associações de província se

    localiza na cidade de São Paulo, onde vive a maior comunidade nikkei do Brasil (e

    do mundo). Alguns kenjinkai possuem filiais em outras regiões do país, cidades que

    foram foco de imigração japonesa e ainda concentram grande número de

    descendentes, como Londrina, Campo Grande e Belém.

    Portanto, mesmo que há mais de quarenta anos o movimento imigratório conduzido

    entre os governos do Brasil e do Japão tenha terminado e a população da primeira

    geração de imigrantes japoneses tenha diminuído consideravelmente, seus filhos,

    netos e bisnetos – brasileiros – mantêm essas organizações em atividade. Algumas

    6 Kenren (県連) - Forma abreviada da denominação em japonês da Federação das Associações de Províncias do Japão no Brasil (Burajiru Nihon Todōfuken Hito-kai Rengō-kai).

    http://www.kenren.org.br/

  • 22

    delas possuem sites na Internet, embora seu conteúdo nem sempre esteja

    atualizado. A questão que se levanta aqui emerge desse panorama e pode ser

    traduzida pela seguinte indagação: “Quem os membros dos kenjinkai declaram

    ser?”. Esses descendentes de japoneses – brasileiros, em sua maioria – reúnem-se

    em torno de uma associação de província, estabelecida para servir como elo de

    contato entre os imigrantes e sua terra de origem, que permanece ativa,

    desenvolvendo uma série de atividades. Isso acontece após quase cinquenta anos

    do término do processo imigratório japonês para o Brasil. Que identidade esses

    kenjinkai incorporam em seu discurso no site? Essa questão envolve um aspecto

    extremamente relevante: que identidade cultural e social é reivindicada por um

    kenjinkai estabelecido no Brasil por imigrantes, em que a maior parte dos membros

    são, sim, descendentes de japoneses, porém também são brasileiros? Há inúmeras

    outras associações culturais japonesas (veja-se, na seção “Anexos”, uma listagem

    contendo mais de 300 dessas instituições) que possuem propósitos e modo de

    trabalho semelhantes, mas a existência de uma comunidade que se diferencia e se

    estabelece ainda hoje, por estar relacionada a uma província do Japão, décadas

    após o término da grande fase de imigração conduzida pelos governos dos dois

    países, parece ser um caso digno de atenção.

    Apesar de uma associação ser uma entidade coletiva formada por diversos

    indivíduos distintos, cada qual com variadas visões de mundo e objetivos pessoais,

    há alguma homogeneidade cultural, histórica e mesmo de objetivos compartilhada

    pelos membros de organizações dessa natureza. Acrescente-se o fato de que a

    maior parte dos integrantes dessas associações, apesar da origem japonesa, são

    cidadãos brasileiros, plenamente integrados à sociedade, muitas vezes com pais e

    avós já nascidos no Brasil. Findo o processo migratório do Japão para o Brasil,

  • 23

    haveria algum anacronismo identitário identificável no discurso dessas associações

    presente nas páginas de Internet de seus respectivos sites? Uma “brasilidade” ou

    uma “japonesidade”7 podem ser detectadas nesse discurso? Eis aqui, portanto, uma

    questão relevante: o lugar dessas associações na construção identitária do povo

    nipo-brasileiro. Se, por um lado, a construção da identidade se faz por meio do

    resgate do passado, da história, sendo necessário compreender as trajetórias

    históricas e as relações entre os dois países, por outro, a identidade se elabora

    também com a organização das relações efetuadas com os elementos do presente.

    O Brasil e o Japão desenvolveram percursos históricos distintos, que os conduziram

    a modelos de desenvolvimento econômico e posicionamento geopolítico diferentes –

    às vezes, opostos –, levando a cada nação a ocupar uma posição peculiar como

    ator social no panorama global. Nesse período de um século desde o início do

    processo migratório para o Brasil, houve duas guerras mundiais, e o Japão elevou-

    se da condição de potencial, mas inexpressivo, ator econômico do sul da Ásia, no

    final do século XIX (um período de grandes contrastes e conflitos sociais), para a

    posição de segunda potência econômica do planeta, já no final do século XX8, com

    uma população considerada bastante homogênea social e culturalmente. As crises

    econômica e social motivaram os grandes fluxos migratórios de japoneses para o

    Peru, Estados Unidos e Brasil, momento de encontro decisivo entre dois países tão

    diferentes. O Japão vivia um momento de governo de inspiração nacionalista e

    militarista, que mais tarde cederia a ímpetos imperialistas e entraria na Segunda

    Guerra Mundial, compondo com a Alemanha e a Itália a chamada Aliança do Eixo –

    portanto, combateu as forças Aliadas, às quais o Brasil mais tarde se aliaria. No final

    7 “Japonesidade”: termo usado por pesquisadores das áreas de Ciências Sociais e Antropologia para expressar características culturais nipônicas nos nikkei do Brasil (MACHADO, 2011) 8 O Japão perdeu a posição de 2ª maior economia do mundo para a China, em 2010.

  • 24

    da guerra, o Japão sofreu sua primeira grande derrota militar na história, mas se

    recuperou e hoje possui um alto índice de desenvolvimento social e um sistema

    político bastante democrático. Concomitantemente, o Brasil no mesmo período,

    passou de um país com uma economia essencialmente agrária, recém-saído de um

    regime monárquico e de uma economia baseada na mão de obra escrava, para uma

    sociedade moderna, que teve necessidade de importar a mão de obra japonesa para

    suas lavouras no início do século passado. Ao longo de sua trajetória econômica, o

    país passou por uma crescente industrialização e urbanização, para ocupar, no

    começo do século XXI, a uma posição junto às nações de economia emergente, com

    grandes perspectivas de desenvolvimento econômico – o chamado BRICS (Brasil,

    Rússia, Índia, China e África do Sul). O Brasil tem procurado sair da influência

    hegemônica econômica e política dos Estados Unidos e da Europa, visando a

    ocupar um espaço maior no cenário geopolítico que vem se configurando nas

    primeiras décadas deste século. No contexto atual há, também, o surgimento da

    figura do nikkei brasileiro que vive no Japão – inicialmente, como decasségui, mas

    agora representado por seus descendentes –, abrindo novas possibilidades de

    construção identitária.

    Essas trajetórias diversas – do Japão e do Brasil – encontram pontos de contato em

    algumas instâncias. As associações de províncias – os kenjinkai – são um deles. Por

    meio dos kenjinkai, essas realidades socio-históricas se entrecruzam e se

    relacionam. Estabelecidos em sua maioria durante o período migratório do pós-

    guerra, com a finalidade de manter contato com a província-mãe e funcionar como

    ponto de referência para os imigrantes, eles subsistem num contexto em que as

    relações transnacionais entre Brasil e Japão agora se dão numa esfera tecnológica,

    cultural e geopolítica, e não apenas no campo econômico. Há novas relações, novos

  • 25

    papéis e novas demandas para ambos os países no atual panorama histórico

    mundial. E para o povo nikkei do Brasil – brasileiros de origem japonesa –, há

    elementos identitários, sociais e culturais intrinsecamente relacionados, que

    emergem desse cenário tecnológico, cultural e político, cujas mediações são

    realizadas por indivíduos, comunidades e instituições, sendo o kenjinkai uma delas.

    Há um trânsito maior de pessoas entre os países, hoje com perspectivas

    econômicas muito diferentes: se no passado havia apenas o interesse brasileiro pela

    mão de obra japonesa para a lavoura cafeeira, hoje a troca de produtos e

    tecnologias envolve carne bovina, soja, minério de ferro, automóveis, videogames e

    computadores. Se no passado as trocas culturais restringiam-se aos usos e

    costumes exóticos dos primeiros imigrantes, hoje existe um fluxo de informação e

    cultural intenso, com mangás, animês, games, sushis, jiu-jitsu e judô, de um lado, e

    samba, bossa-nova, feijoada, caipirinha e capoeira de outro. Os kenjinkai estão

    inseridos nesse processo de interação e de trocas culturais, o que deve refletir-se na

    construção identitária do kenjinkai hoje.

    A relevância de se estudar a dimensão dessas questões é manifesta na busca pela

    compreensão da dinâmica da formação da identidade cultural brasileira

    contemporânea, que não comporta mais a antiga e tradicional formulação escolar

    sobre a formação do povo brasileiro: de que ela é baseada apenas na figura do

    negro trazido como escravo para o Brasil, do índio, que aqui já se encontrava e do

    branco – o colonizador português. A identidade do povo brasileiro encontra fortes

    raízes também na interação e absorção de elementos culturais dos imigrantes de

    várias nações que aqui se estabeleceram, amalgamando-se culturalmente,

    constituindo-se em elementos integrantes na formação cultural e identitária,

    sobretudo, das populações urbanas do país. Dessa forma, as comunidades de

  • 26

    imigrantes alemã, italiana, espanhola, libanesa e japonesa – e, mais recentemente,

    a coreana e a chinesa – deixam suas marcas na formação da identidade cultural

    brasileira. As múltiplas formas de ser, de pensar e de fazer dos cidadãos do Brasil

    são construídas sobre diversas culturas de etnias que interagem. Um texto publicado

    pelo autor exemplifica bem essa afirmação, a partir da perspectiva da influência

    cultural japonesa no Brasil:

    O intercâmbio cultural entre a “colônia” de japoneses (esse termo ainda é utilizado para definir o grupo de japoneses e seus descendentes no Brasil) e os brasileiros foi intensificado. Hoje, há cerca de um milhão e trezentos mil brasileiros descendentes de japoneses, dos quais perto de trezentos mil vivem no Japão. Essa é a maior comunidade nikkei fora do Japão. Cerca de 80% dessa população vive no Estado de São Paulo, a maior parte na região metropolitana da capital paulista. Nessa região, algumas palavras japonesas foram incorporadas no vocabulário popular do paulistano através desse contato, principalmente as do campo da culinária (sushi, sashimi, moyashi), dos esportes (judô, karatê, sumô, aikidô, jiu-ji-tsu, tatami) e das artes (origami, ikebana, haikai), pois tornaram-se elementos do cotidiano vivenciados pela própria comunidade paulistana, tornando-se parte da cultura local. Por exemplo, tornou-se comum nas famílias de classe média de São Paulo “as meninas fazerem balé e os meninos lutarem judô”; ir comer yakissoba no “restaurante do japonês” à tarde; fazer origami (dobradura de papel) na escola e ir ao karaokê à noite com os amigos comer um sushi e beber saquê. Essa realidade vivida pelos não-japoneses deveu-se ao contato que essas pessoas tiveram com os descendentes de japoneses, o que promoveu um intercâmbio cultural, com a absorção desses elementos culturais nipônicos por parte da população local, mesmo as que não tiveram um contato pessoal direto com essa população nikkei. (UTSUNOMIYA, 2011)

    O objetivo desta tese é levantar, por meio da análise do discurso dos sites de

    kenjinkai, a identidade cultural dessas associações de província. A identidade de

    uma comunidade é construída através do discurso e procedeu-se à análise de textos

    dos sites selecionados para a composição do “ator da enunciação” kenjinkai do

    Brasil, uma figura construída a partir dos discursos dos sites dessas organizações.

    Para o desenvolvimento desse tema, adotou-se a perspectiva teórica da semiótica

    narrativa e discursiva e optou-se pela conceituação de identidade cultural a partir da

    teoria dos Estudos Culturais. Pesquisas realizadas no Brasil, em Macau, na China, e

    no Japão dão suporte a esta tese, que está dividida em quatro capítulos:

  • 27

    O capítulo I, denominado “Kenjinkai e identidade cultural”, traz algumas informações

    sobre a trajetória histórica dos imigrantes japoneses no Brasil e o panorama atual no

    qual o kenjinkai está inserido. A associação de província é apresentada quanto à

    sua formação, estrutura e tradições culturais, a fim de situar o discurso dos sites dos

    kenjikai. Nessa parte, é abordada a história da imigração japonesa no Brasil e o

    entendimento da construção da identidade cultural do nikkei brasileiro. Entender o

    processo de imigração e a fixação dos descendentes de seus filhos e netos no Brasil

    fornece elementos que subsidiam a construção do ambiente no qual se

    desenvolvem os discursos dos sites e o entendimento da identidade do enunciador.

    Nesse mesmo capítulo, serão analisados os termos “nikkei”, “nipo-brasileiro”, e

    “japonês”, assim como o conceito de “japonesidade” e de “identidade cultural”. Uma

    vez que o site de um kenjinkai é um instrumento de comunicação concebido com

    objetivos institucionais, a compreensão destes como ferramenta e estratégia de

    comunicação a partir da visão do campo da Comunicação Institucional estimulará

    um diálogo entre essa área e a semiótica narrativa e discursiva para o estudo da

    construção identitária de uma associação. Esse processo se dá através do discurso

    num processo denominado “institucionalização”.

    O capítulo II, “Fundamentos teóricos para a análise do discurso do kenjinkai”,

    apresenta a perspectiva teórica sobre a qual estão baseados o desenvolvimento da

    análise do discurso dos sites selecionados. Essa parte define o conceito de discurso,

    de enunciado e de texto utilizados na tese. A perspectiva teórica da metodologia

    empregada para a análise dos textos é o da teoria semiótica narrativa e discursiva,

    desenvolvida por Algirdas Julien Greimas. O conceito de “ator da enunciação”, a

    figura construída a partir dos discursos dos textos dos sites dos kenjinkai é

    apresentado nessa parte da tese.

  • 28

    O capítulo III, “Análise de discurso dos sites” desenvolve as análises dos sites. Das

    47 associações de província ativas no Brasil hoje, 15 possuem sites, dos quais 3

    foram selecionados para serem analisados nesta tese: o da Associação Hokkaido de

    Cultura e Assistência, o do Yamagata Kenjinkai do Brasil, e o da Associação

    Shimane Kenjin do Brasil. Cada site teve três partes extraídas do texto total que

    foram analisadas nos níveis narrativo, discursivo e fundamental. Cada parte fornece

    pistas para a elaboração de um “ator da enunciação” de um kenjinkai específico. A

    análise conjunta das características observadas dos “atores da enunciação” de cada

    kenjinkai permite a formulação final do “ator da enunciação” dos kenjinkai do Brasil,

    a construção identitária elaborada a partir da análise da somatória dos discursos

    presentes nos sites, que fornece pistas para a compreensão da identidade cultural

    dessas associações nipo-brasileiras. Ao término desse percurso serão apresentadas

    as considerações finais desta tese.

  • 29

    CAPÍTULO I

    KENJINKAI E IDENTIDADE CULTURAL

    Conforme foi apontado na introdução, o objeto de estudo desta tese é o discurso de

    sites de associações de províncias do Japão no Brasil e o objetivo final que norteia

    toda esta pesquisa é a identificação, por meio da análise do discurso, da identidade

    cultural de quem “fala” através do site. E “quem” fala, o faz a partir de um site que

    está no Brasil, escrito em português, voltado para alguns públicos específicos, que

    possui, no entanto, o potencial para atingir uma audiência quase universal, visto o

    alcance que a Internet atinge hoje. O kenjinkai é uma associação que tem como um

    dos principais objetivos manter contato com a província de origem de seus

    associados, cuja maioria – nesta segunda década do século XXI – tem a

    nacionalidade brasileira. Trabalhamos com a hipótese de que o discurso do site

    revela a identidade cultural do kenjinkai. Queremos saber se essas associações se

    consideram “japonesas”, “brasileiras” ou algo intermediário. O questionamento,

    portanto, reside na pergunta: “Essa identidade está expressa no discurso do site?”

    Se estiver, de que maneira ela é construída? Cada site de associação de província

    japonesa no Brasil pressupõe um enunciador distinto, mas é possível pensar numa

    categoria generalizada e idealizada de kenjinkai – no singular –, que expresse uma

    identidade homogênea, apesar das particularidades de cada associação. Este

    capítulo apresenta o que são os kenjinkai, seu contexto de formação, seus

    propósitos e sua forma de organização. Para se obter subsídios para compreensão

    da identidade cultural das associações de província será apresentado sucintamente

    o percurso histórico do imigrante japonês no Brasil e de seus descendentes. Essa

    apresentação do grupo nikkei trará uma maior clareza para a contextualização do

    discurso dos sites, fornecendo subsídios para a sua análise.

  • 30

    1.1. O ESPÍRITO ASSOCIATIVO DOS JAPONESES

    O kenjinkai é o nome genérico de uma associação de uma província do Japão que

    reproduz um típico modelo associativo comunitário japonês, com características

    antropológicas e culturais bastante peculiares. O termo poderia ser traduzido para o

    português como “associação de provincianos”. O imigrante japonês e seus

    descendentes possuem, em geral, um forte senso de pertencimento a uma

    comunidade, destacando-se dentre outras comunidades asiáticas de imigrantes, fato

    evidenciado pela existência de diversas modalidades de associações de origem

    japonesa no país1. O kenjinkai é um tipo de associação que liga o imigrante e seus

    descendentes à sua província de origem no Japão. Entretanto, há outras

    associações nipônicas, conhecidas como nihonjinkai2 – associação de japoneses, ou

    simplesmente, kaikan (literalmente, “salão de reunião”3) –, cuja afiliação não é

    restrita à província de origem dos antepassados, nem mesmo à etnia, pois hoje, para

    se associar a um kaikan não é preciso, necessariamente, ser descendente de

    japoneses, sendo suficiente, na maioria dos casos, identificar-se com a cultura

    japonesa e querer participar e contribuir com seus esforços para a agremiação

    realizar suas atividades. Essas associações nipônicas geralmente são registradas no

    Brasil com nomes de “associação nipo-brasileira”, “associação beneficente” ou,

    ainda, “associação cultural e esportiva” com objetivos de divulgar e preservar

    aspectos da cultura japonesa no Brasil, evidenciando o caráter comunitário e as

    finalidades não-econômicas dessas organizações.

    1 No Apêndice há uma lista, incompleta, de 380 associações nipo-brasileiras. 2 Nihonjinkai (日本人会) significa literalmente “associação ou reunião de japoneses”. 3 Kaikan (会館) é um “salão de reunião”, um edifício, mas acabou assumindo, ao menos no Brasil, o sentido de “associação”, de reunião de pessoas. Quando se diz “fui à atividade do kaikan”, há o sentido primordial de se referir à associação e não ao salão. É o caminho inverso que o vocábulo “igreja” acabou assumindo no Brasil. O termo que significa “assembleia, reunião de pessoas” mas é entendido primeiramente como “templo”, “edifício”.

  • 31

    Além dessas modalidades associativas, existem agremiações esportivas e culturais

    representadas por entidades esportivas de judô, caratê, jiu-jitsu, aikidô, tênis de

    mesa, beisebol, softball4, gateball5, kendô, sumô etc., bem como associações

    culturais para o desenvolvimento de atividades como bonsai6, ikebana7, origâmi8,

    mangá, escotismo etc. As organizações religiosas – orientais e cristãs – também

    podem ser encontradas nas formas de organizações, como diversas comunidades

    budistas, xintoístas e até protestantes, fundadas por japoneses. O modelo

    administrativo das instituições cristãs – apesar de seguir os moldes de suas

    congêneres religiosas ocidentais – reproduz vários aspectos do sistema de governo

    das organizações japonesas. Características do modelo associativo japonês nessas

    associações esportivas, culturais ou religiosas são identificáveis em muitas

    instâncias: na linha de comando extremamente hierárquica, mas com muitas

    decisões tomadas em conjunto; nas divisões da comunidade por grupos segundo

    sexo e faixa etária (sociedade de jovens, de senhoras, de senhores, de seniores); na

    dicotomia do relacionamento paternal e de submissão (os líderes sentem grande

    responsabilidade pelos liderados, ao ponto de se dedicarem exaustivamente à

    liderança, enquanto os liderados, submetem-se aos líderes com de maneira plena,

    confiando inteiramente neles). Nota-se, também, a cumplicidade e o grande grau de

    lealdade da liderança para com o público interno e o alto nível de cooperação e

    compromisso para com o grupo, entre outras características. Há associações de

    4 Softball (ソフトボール - Sofutobōru) é um esporte derivado do beisebol, mas com campo e bola com dimensões menores, praticado principalmente por mulheres. Apesar do nome em inglês, o esporte foi introduzido no Brasil pela colônia japonesa e é muito praticado pelos descendentes de japoneses. 5 Gateball (ゲートボール - Gētobōru) é um esporte coletivo jogado com tacos e bolas, semelhante ao críquete que, apesar do nome em inglês, foi criado no Japão em 1947, e é indicado especialmente para pessoas da terceira idade. 6 Bonsai (盆栽), literalmente “árvore em bandeja”. É uma arte de cultivo de árvores em miniatura. 7 Ikebana (生け花): “vivificação floral". A arte japonesa de montar arranjos florais. 8 Origami (折り紙): “dobrar papel”. Técnica tradicional japonesa de se dobrar o papel criando representações do mundo concreto, como animais, flores, utensílios e formas geométricas.

  • 32

    origem nikkei sem fins lucrativos, mas a serviço de interesses comerciais, como a

    Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Japão e a Câmara Júnior Brasil-Japão (JCI).

    Também existem instituições representativas da comunidade nikkei, como a

    Federação das Associações de Províncias do Japão no Brasil (Kenren), a Sociedade

    Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo), a Federação

    Evangélica Nikkey9 do Brasil e diversas sociedades beneficentes, como a Aliança

    Beneficente Universitária de São Paulo (ABEUNI); a Sociedade Beneficente Casa

    da Esperança (Kibo no Ie); a Associação Pró-Excepcionais Kodomo no Sono; a

    Beneficência Nipo-Brasileira de São Paulo (Enkyo), entre outras. Essas

    associações geralmente estão sediadas na cidade de São Paulo, região que

    concentra grande número de nipodescendentes. Essas formas associativas são

    comuns em várias organizações da comunidade nikkei e são encontradas em

    outros países que receberam imigrantes japoneses, como o Peru e os Estados

    Unidos da América.

    Um relatório de 1943 sobre grupos japoneses e associações nos EUA, obtido nos

    arquivos de um campo de realocação de imigrantes japoneses10 localizado no

    Colorado – o “Granada Relocation Center” –, mais conhecido como “Amache” e

    escrito em plena Segunda Guerra Mundial apresenta informações sobre esses

    diversos tipos de associações de japoneses, com funcionamento e organização

    análogos ao que se observou no Brasil. Esse documento, localizado nos arquivos da

    9 “Nikkey” é uma variação da forma romanizada no padrão Hepburn Revisto (“nikkei”), que é o mais utilizado no mundo, mas há outros padrões de romanização, como o Kunrei-shiki e Nihon-shiki. 10 Em 1942, após o ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor, no Havaí, fator decisivo para a entrada daquele país na Segunda Guerra Mundial, o governo estadunidense determinou o “internamento” de cerca de 110 mil nikkei norte-americanos em diversos “War Relocation Camps” espalhados pelo país. Muitos desses nikkei eram cidadãos americanos, não constituíam perigo à nação, mas foram confinados nesses campos. Muitos anos mais tarde o presidente Ronald Reagan (1981-1989) reconheceu o erro do governo à época, pedindo perdão e pagando pesadas indenizações.

  • 33

    biblioteca Auraria11, nos Estados Unidos e o texto de André Hayashi (HAYASHI,

    p.357-358) disponibilizou informações que, somadas aos dados de pesquisa de

    campo obtidos no Japão e à experiência pessoal do autor com a comunidade nikkei,

    forneceram subsídios para a descrição das características do kenjinkai no Brasil,

    apresentadas mais à frente. As associações de província são organizações

    comunitárias que manifestam o modo de ser dos imigrantes japoneses e seus

    descendentes. A maior parte dos membros dos kenjinkai vive há muito tempo no

    Brasil ou nasceu no país. Esse típico nikkei brasileiro – tanto o imigrante japonês

    quanto seus filhos, netos e bisnetos – possui algumas características próximas às

    dos japoneses, apresenta outras similares às de nikkei de outros países e, por fim,

    tem traços culturais e identitários exclusivos daqui, adquiridos na interação com as

    culturas e contextos histórico-sociais vividos neste país. Esses traços identitários

    referem-se tanto à “brasilidade” quanto à “nipo-brasilidade”. Para entender a

    condição desse nikkei membro do kenjinkai é importante conhecer a trajetória do

    imigrante japonês no Brasil, cujas informações foram baseadas principalmente nas

    obras de Handa (1987), Oshima (1992), Cardoso (1995), Saito (1980), Moraes

    (2004) e nas teses de Célia Sakurai (2000), Nucci (2000) e Elisa Sasaki (2009).

    1.2. ANTECEDENTES DA IMIGRAÇÃO JAPONESA

    O Japão, conhecido como a “Terra do Sol Nascente”12, é composto por um

    arquipélago formado por mais de seis mil ilhas e se localiza no extremo da Ásia

    11 Biblioteca localizada em Denver, Colorado, nos EUA, compartilhada pelas universidades locais. Documento disponível em http://archives.auraria.edu/sites/default/files/AmacheReports/rpt10.pdf acessado em 08/03/2013. 12 Em japonês, o país se chama Nihon (日本) e significa “Origem do Sol”. Os japoneses chamam a si mesmos de nihonjin (日本人) e sua língua de nihongo (日本語). O nome oficial do Japão é Nihon Koku (日本国).

  • 34

    oriental, no Oceano Pacífico. Sua área territorial soma cerca de 370 mil km2, área

    correspondente ao Estado brasileiro de Mato Grosso do Sul, mas cerca de 70% de

    seu território é constituído por montanhas inabitáveis, fazendo com que a sua

    densidade demográfica média seja de 328 habitantes por km2, em contraste com os

    22 hab/km2 do Brasil. As quatro maiores ilhas do arquipélago japonês são Honshu,

    Hokkaido, Kyushu e Shikoku, as quais, juntas, representam mais de 95% da área

    terrestre nacional. A maior parte do relevo das ilhas é montanhosa e há a presença

    de vulcões adormecidos, como o ponto culminante do Japão, o Monte Fuji.

    A formação insular do Japão concorreu para isolar geograficamente o país e foi um

    fator determinante para a limitação das interações culturais entre os japoneses e

    outros povos, influenciando no processo de formação do povo japonês (OLIVEIRA E

    COSTA, 1995 p. 24). Além do isolamento natural imposto pelas águas do Mar do

    Japão, o país fechou-se política e culturalmente para o mundo por um longo período

    na Idade Moderna, de 1639 a 1854. Apesar de possuir uma tradição de comércio

    milenar com a China e outros países da região, o Japão só começou a desenvolver

    relações comerciais com o mundo ocidental por meio de Portugal, atividade que

    ficou conhecida como comércio Namban13. Os mercadores portugueses começaram

    a negociar com os japoneses e, a partir de 1550, esse comércio passou a ser

    monopólio da coroa portuguesa. O estabelecimento dos portugueses, em 1557 em

    Macau, na China (após a conquista de Goa, na Índia, em 1510 e de Malaca, na

    Malásia, em 1512), ajudou no comércio de prata com o Japão. Os missionários

    cristãos europeus também seguiram essa rota e começaram a entrar em terras

    nipônicas, obtendo significativo sucesso na conversão de japoneses à fé católica.

    13 Nanban bōeki (南蛮貿易) - Na história do Japão, compreende o período que vai da chegada dos primeiros portugueses, em 1543, até sua saída total do arquipélago entre 1637 e 1641.

  • 35

    Esse período em que Portugal manteve relações comerciais e culturais com o Japão

    proporcionou intensas trocas culturais para ambos os países, tais como influências

    na culinária local, a troca de tecnologias de produção de manufaturas e produção

    agrícola e a incorporação de palavras de origem japonesa ao vocabulário português

    e vice-versa. Entretanto, por diversas razões, algumas delas relacionadas à

    presença portuguesa no Japão, as quais não serão enumeradas aqui, em 1639

    ocorreu o fim das relações comerciais e sociais entre o Japão e os países do

    ocidente, por meio da promulgação do Édito de Exclusão – Sakoku14. A partir

    daquele ano, não foi permitido a nenhuma pessoa entrar ou sair do Japão – a

    desobediência era punida com a morte. Os únicos contatos com estrangeiros

    permitidos eram por meio de relações comerciais com a China e da concessão de

    um pequeno posto de comércio em Dejima, uma ilha artificial, em Nagasaki, aos

    holandeses. No entanto, mesmo esse comércio com a Holanda era bastante restrito,

    e por mais de dois séculos essa foi a única porta legal aberta para contato do Japão

    com o mundo ocidental. Tal política foi ocasionada por diversos fatores, dentre os

    quais a preocupação com a crescente influência estrangeira no país nos campos

    econômico, político e religioso (esse último decorrente da expansão do cristianismo,

    que foi associada a movimentos sociais políticos de contestação e revolta), que

    ameaçava a ordem política e social estabelecida pelos daimiôs (senhores feudais) e

    a autonomia do país diante do expansionismo imperialista das potências europeias.

    Esse período em que o Japão esteve fechado às influências ocidentais consolidou a

    unificação do país sob o comando do xogunato15 e promoveu um desenvolvimento

    14 Sakoku (鎖国), significa, literalmente, “país acorrentado” e refere-se à reclusão política e econômica voluntária que perdurou de 1639 a 1854, na era Edo (período Tokugawa). 15 Xogunato: forma aportuguesada para denominar o regime político “de fato” baseado na figura do shogun (将軍), abreviação de Seii Taishōgun (征夷大将軍), que significa “Grande General Apaziguador dos Bárbaros”. Em japonês, esse regime é chamado de bakufu (幕府), “governo a partir da tenda”, local onde ficava o xogum nos períodos de guerra e às vezes é traduzido como “generalíssimo”. Do século XII a 1868, o xogum era quem exercia o poder supremo no Japão, tendo o imperador apenas função simbólica.

  • 36

    cultural mais homogêneo. As unidades administrativas regionais do Japão –

    antecessores das atuais províncias japonesas – eram chamadas de kuni (国), ou

    seja, “países” ou “reinos”, até por volta do final do século XIV. Posteriormente,

    passaram a se chamar han (藩), “feudos” até a restauração Meiji, quando passaram

    a ser denominadas ken (県).

    Essa política de isolamento do Japão teve fim com a intervenção de uma esquadra

    de navios americana, comandada pelo Comodoro Matthew Perry que, em junho de

    1853, forçou as negociações para a abertura dos portos japoneses aos Estados

    Unidos da América, por meio da demonstração, com tiros de canhão, da supremacia

    dos armamentos ocidentais sobre os arcaicos armamentos japoneses. Após quase

    um ano de negociações, o xogunato – enfraquecido internamente por fatores sociais

    e políticos, como a decadência do modelo feudal japonês e o descontentamento da

    população e de outros senhores feudais – pressionado pelos países estrangeiros,

    cedeu às exigências dessas nações e firmou um acordo de abertura do comércio,

    encerrando finalmente, em 1854, a bicentenária política Sakoku de isolamento

    político e econômico. O interesse das nações imperialistas em romper esse bloqueio

    japonês autoimposto era poder atuar livremente num mercado inexplorado de cerca

    de 50 milhões de potenciais consumidores de produtos manufaturados ocidentais. A

    sociedade japonesa feudal e sua estagnada economia baseada num sistema agrário

    e dependente da cultura do arroz estavam à mercê da história global, em que as

    potências ocidentais, industrializadas e tecnologicamente mais avançadas,

    conquistavam colônias na África e na Ásia. Com a abertura econômica, o xogunato

    teve que enfrentar uma crise interna sem precedentes. Diversos levantes locais

    levaram o país a uma guerra civil, que culminou em 1868 com a vitória dos setores

    que defendiam a restauração do poder “de fato” ao imperador e pregavam a

  • 37

    modernização rápida do Japão em moldes ocidentais. A renúncia do xogum ao

    poder fez com que o poder político efetivo do Japão voltasse para a casa imperial, a

    qual tivera apenas papel simbólico no panorama político japonês nos séculos

    antecedentes, encerrando o período do xogunato e iniciando a era da Restauração

    Meiji16 (1868-1912). Mas apesar da destituição de poder do xogunato, da abolição

    do sistema feudal e da formação de um parlamento, essa transferência de poder

    para o imperador continuava a ser apenas simbólica, pois o poder político passara

    das mãos do clã Tokugawa – último xogum – para o parlamento, controlado pelos

    senhores feudais e samurais que haviam liderado o movimento de restauração.

    Para compensar esse período de isolamento, que produzira atraso tecnológico do

    país com relação ao resto do mundo, houve um intenso movimento de modernização

    patrocinado pelo governo, que buscava estabelecer intercâmbios com países mais

    desenvolvidos para aquisição de novos conhecimentos e de tecnologia. Reformas

    estruturais profundas foram feitas na sociedade com o intuito de desenvolver a

    indústria e a economia do país num período de tempo muito curto. O desmonte da

    estrutura feudal agrária, no entanto, provocou um grande êxodo rural, aumentando

    excessivamente a população das metrópoles, acarretando grandes custos sociais

    decorrentes desses deslocamentos de pessoas e famílias em busca de ocupação e

    sustento. O Japão começou um grande movimento de modernização,

    industrialização e militarização – baseado nos modelos ocidentais –, a fim de

    aumentar sua influência política e econômica na Ásia, fundamentada em interesses

    expansionistas, orquestrados pelo governo sob o lema: “Enriquecer o país, fortalecer

    o exército”, política conhecida como Fukoku kyohei. Essa política visava também a

    16 O imperador Mutsuhito, posteriormente conhecido como Meiji (明治), “Iluminado”, foi o 122º imperador do Japão, chegou ao trono com 14 anos e inaugurou a era Meiji, que marcou o início do Japão moderno.

  • 38

    ocupar um espaço no conturbado cenário geopolítico e econômico mundial, que era

    dominado pelos países europeus. Em cerca de meio século após a abertura, o

    Japão passou da posição de país inexpressivo no panorama mundial para a de

    potência econômica e militar regional, tendo obtido vitória nas duas guerras de que

    participara: a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895) e a Guerra Russo-Japonesa

    (1904-1905). Essas incursões militares revelaram o caráter expansionista e

    colonialista do novo governo japonês, controlado por militares, que chegou a

    subjugar política e economicamente a Coréia, Taiwan e parte da Manchúria obtendo,

    também, vantagens econômicas com a vitória sobre a Rússia.

    No entanto, esse rápido desenvolvimento econômico e social do Japão causou,

    entre outras consequências, grandes concentrações populacionais urbanas que não

    eram plenamente absorvidas na nova sociedade que ora se delineava. Apesar de o

    Japão já ter convivido com problemas de superpopulação em centros urbanos nos

    séculos anteriores (Tóquio já tinha uma população de quase 900 mil pessoas no ano

    de 1695, muito superior à das grandes capitais europeias no mesmo período), as

    demandas de um acréscimo populacional sem ocupação definida em meados do

    século XIX, num sistema social e econômico em transformação, era um grande

    desafio ao país. Em duas décadas, a política de modernização iniciada no início da

    era Meiji transformou o país, dando a alguns antigos senhores feudais

    oportunidades para ocupar cargos estratégicos na nascente moderna estrutura

    político-governamental. Paralelamente, desenvolveu-se uma emergente burguesia

    que se enriqueceu com a exploração dos empreendimentos industriais e financeiros

    recém-importados do mundo ocidental. A falta de trabalho nas áreas rurais criou um

    movimento de migração para as cidades de pessoas em busca de empregos e

    melhores condições de vida, atingindo, inclusive, o extremo norte do Japão, na ilha

  • 39

    de Hokkaido, onde ainda havia regiões a ser desbravadas. As opções de migração,

    contudo, logo escassearam, e o governo japonês passou a promover a emigração

    do excedente populacional como alternativa de equilíbrio social no país. A primeira

    emigração oficial de japoneses ocorreu em 1883, quando um grupo se dirigiu para a

    Austrália a fim de trabalhar na extração de pérolas. A partir de 1885, emigrantes do

    Japão passaram a ir para o então reino independente do Havaí. Nos anos seguintes,

    Canadá, Estados Unidos e Peru também foram o destino de milhares de famílias e

    trabalhadores nipônicos. A emigração era uma alternativa para fugir de uma vida de

    penúria, embora, mesmo sendo patrocinada pelo governo, apresentasse riscos de

    insucesso. Esse movimento migratório teve como destino alguns países específicos,

    os quais concentraram praticamente todo o contingente de emigrantes voluntários

    (veja-se o quadro 1.1). Por volta de 1900 o Japão já possuía uma população de

    cerca de 50 milhões de pessoas, enquanto o Brasil tinha menos de 18 milhões de

    habitantes.

    País Início Objetivo População hoje % Havaí e EUA 1858 Trabalhar na Agricultura 1 milhão e 300 mil 37,0 Reino Unido 1863 Estudar 51 mil 1,5 Canadá 1877 Fugir da crise econômica 85 mil 2,6 China 1894 Trabalhar na agricultura 11mil 3,5 Peru 1899 Trabalhar na agricultura 81 mil 2,5 Brasil 1908 Trabalhar na agricultura 1 milhão e 500 mil 46,0

    Quadro 1.1 – Principais movimentos migratórios japoneses para o exterior Fonte: Relatório do Ministério de Relações Exteriores do Japão (2010)

    O período de aproximadamente 80 anos de emigração japonesa (de 1858 a 1938),

    que vai da era da Restauração Meiji até o início da Segunda Grande Guerra Mundial,

    também foi uma época de grandes transformações sociais e econômicas globais. A

    turbulenta e tardia entrada do Japão no cenário geopolítico internacional é realizada

  • 40

    numa fase igualmente concorrida para o resto do mundo: trata-se do século de

    consolidação das recém-formadas nações da América, das condições políticas e

    econômicas que configurariam a atual Europa e lançariam as bases para os conflitos

    das duas grandes guerras mundiais e para o advento do socialismo. É o período do

    declínio e da abolição da escravatura e da consolidação das ciências humanas e

    naturais numa velocidade e extensão impressionantes. O Império britânico atinge o

    seu auge, mas também é o início da ascensão do poderio e da influência norte-

    americana sobre o mundo. É o período em que aconteceram as grandes

    transformações sociais oriundas da Segunda Revolução Industrial – baseada na

    indústria siderúrgica, no uso da energia elétrica e na utilização em escala industrial de

    produtos químicos, que intensifica o já crescente processo de industrialização e

    urbanização da Europa. A atividade de manufatura e os trabalhos artesanais são

    substituídos por máquinas, pelos operários braçais e pela lógica da produção em

    massa. O mercado de trabalho europeu também não absorve toda a mão de obra que

    surge da expansão demográfica e do êxodo rural. As pessoas começam a buscar

    oportunidades de trabalho em outros países, dando origem aos grandes fluxos

    migratórios modernos, sobretudo em direção às Américas. Nesse período, que vai do

    final do século do XIX ao início do século XX, cerca de 50 milhões de europeus

    deixaram o Velho Mundo em direção às Américas e à Oceania. A modernização do

    meio de transporte transoceânico e a consolidação das rotas comerciais

    ultramarinas contribuem para que esses fluxos acontecessem numa proporção sem

    precedentes na história humana. Imigrantes britânicos, italianos, alemães,

    espanhóis, russos e portugueses constituíam cerca de 80% do total de imigrantes

    europeus. Os EUA receberam nesse período cerca de 33 milhões de imigrantes; a

    Argentina, mais de seis milhões; o Canadá, mais de cinco milhões; o Brasil, mais de

    quatro milhões e a Austrália, mais de três milhões. Além dos imigrantes desses

  • 41

    países, vários outros europeus emigraram para as colônias de seus respectivos

    países. Os chineses e os japoneses também começaram a emigrar para as terras do

    Novo Mundo. Por volta de 1880, somente a América do Norte recebeu cerca de meio

    milhão de asiáticos, sobretudo chineses e japoneses (OLIC, 2002). Esse é o

    contexto no qual começou o período de imigração japonesa no Brasil.

    1.2.1. A IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL

    A chegada do navio Kasato Maru ao porto de Santos, em 18 de junho de 1908,

    trazendo 781 pessoas (165 famílias) para trabalhar nos cafezais do oeste paulista

    marcou oficialmente a chegada de imigrantes japoneses ao Brasil, coroando todo um

    período de negociações que havia começado em 1895, com a celebração do

    Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Brasil e o Japão firmado em 5

    de novembro, na França. A viagem durou 52 dias, com partida do porto da cidade de

    Kobe, no Japão, e estabeleceu o início de um processo que a especialista em

    história da imigração japonesa no Brasil Célia Sakurai denomina de “imigração

    tutelada” pelo estado japonês, ou seja, o processo imigratório japonês foi organizado

    pelo governo imperial do Japão, com arranjos e acordos firmados entre os governos

    dos dois países envolvidos (SAKURAI, 2000). Por esse motivo, todo esse processo

    de imigração está amplamente documentado.

    O Brasil que recebia os primeiros imigrantes japoneses, particularmente a então

    província de São Paulo, já tinha larga experiência em receber levas de mão de obra

    estrangeira. No período de 1827 (quando se começou a registrar oficialmente a

    entrada de estrangeiros em São Paulo) a 1874, São Paulo recebeu pouco mais de

    onze mil estrangeiros. Entre 1875 e 1886, com a proibição do comércio de escravos,

    entraram no Brasil mais de quarenta mil imigrantes, cerca de quatro vezes mais

  • 42

    estrangeiros que nos cinquenta anos do período anterior. Esse boom imigratório

    tinha como objetivo principal encaminhar trabalhadores para as lavouras de café

    paulistas, que se encontravam em franca expansão (CARDOSO, 1995, p.29). A

    imigração de estrangeiros para o interior paulista, concebida como importação de

    força de trabalho assalariada era diferente da promovida na região sul do país, cujo

    modelo objetivava a ocupação e era baseada no conceito do agricultor proprietário.

    Nesse modelo, alemães e italianos povoaram grande parte da região sul do Brasil.

    Devido à expansão de sua cultura cafeeira em decorrência da grande demanda

    internacional pelo produto, o Estado de São Paulo recebeu o maior número de

    imigrantes desde o final do século XIX até meados do século XX. Os dados sobre os

    movimentos migratórios na região estão muito bem documentados devido a esses

    interesses do governo estadual em promover a imigração para suprir a demanda de

    mão de obra para os cafezais paulistas. Dessa forma, o Brasil necessitava de braços

    para sua lavoura cafeeira em virtude do crescimento da demanda pelo produto nos

    mercados internacionais. O Japão, por sua vez, como foi mencionado, vivia uma

    crise social e populacional havia algumas décadas, que culminou, entre outras

    medidas, numa política governamental de incentivo à emigração, como solução

    imediata para aliviar o problema de superpopulação dos centros urbanos, provocada

    pela saída dos camponeses do interior rumo aos grandes centros, em busca de

    trabalho. Essas duas condições explicam as bases do início do processo de

    imigração japonesa no Brasil, o qual durou quase sete décadas e pode ser dividido

    em dois grandes períodos: o período anterior à Segunda Guerra Mundial e o período

    pós-guerra. De acordo com dados obtidos com o Departamento de Imigração e

    Colonização da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, no período que

    vai de 1870 a 1952, 2.593.652 imigrantes entraram no país pelo Estado de São

    Paulo, dos quais 190.063 eram japoneses. A comunidade japonesa constituiu-se

  • 43

    durante esse período na quarta maior comunidade de imigrantes em São Paulo, com

    7,9% do total, precedida pelas comunidades italiana com 34,5% (894.037

    imigrantes), portuguesa com 18,6% (481.572) e espanhola com 15,7% (406.448). No

    entanto, no período que vai de 1930 a 1939 – um período de baixa emigratória para

    o Brasil –, 51% de todos os imigrantes que entraram no Brasil são provenientes do

    Japão (CARDOSO, 1995, p.30).

    No final do século XIX, o Japão era considerado um país exótico e desconhecido

    pelo Brasil. A China era mais conhecida, pois alguns imigrantes chineses já vinham

    se estabelecendo no país desde 1812, vindos sobretudo, da província de Cantão,

    que fica ao sul daquela nação. A política de imigração brasileira era orientada por

    uma elite governante branca que naquela época tinha objetivos não apenas

    econômicos e estratégicos, mas ideológicos: havia necessidade, sim, de

    providenciar mão de obra que faltava aos produtores rurais e de colonizar áreas

    desabitadas do país. Mas o intuito era “branquear” a população brasileira, pois havia

    o pensamento de que a população negra, trazida como mão de obra escrava para o

    país representaria um atraso social, cultural e econômico, devido à “inferioridade”

    étnica dos negros. Assim, dava-se preferência aos de imigrantes europeus, já que

    negros estrangeiros e asiáticos amarelos não eram considerados apropriados para a

    execução dessa política (SASAKI, 2009, p.44-45). Em 1890, o decreto nº 528,

    assinado pelo presidente Deodoro da Fonseca tornava a imigração de negros e

    asiáticos praticamente impossível, condicionando a entrada de imigrantes da África e

    da Ásia à prévia autorização do Congresso Nacional. Esse mesmo decreto não

    restringia, antes, incentivava a entrada de imigrantes europeus. Mas em 1892 foi

    aprovada a lei nº 97 que permitia a entrada de imigrantes chineses e japoneses no

    Brasil tornando nulo o decreto nº 528 de 1890. Na época, o preconceito contra o

  • 44

    recebimento de imigrantes asiáticos era muito forte: os asiáticos eram considerados

    raça inferior, que prejudicariam o desejado "embranquecimento" que ocorria no

    Brasil com o recebimento de imigrantes europeus (política que visava a combater a

    supremacia de habitantes afrodescendentes no país). Há registros de discussões no

    Congresso e em editoriais de jornal defendendo esses pontos de vista

    preconceituosos. Paralelamente, havia também o medo do "perigo amarelo", isto é,

    o temor de que as grandes populações orientais se espalhassem étnica e

    culturalmente pelas Américas (fenômeno que estava ocorrendo no mundo desde

    meados do século XIX). Esse temor foi exacerbado pelo expansionismo militarista do

    império nipônico, que derrotou a China, em 1895 e a Rússia, em 1905,

    estabelecendo a nação como potência econômica e militar na Ásia (NUCCI, 2000,

    p.39-45). No entanto, por volta de 1900, a lavoura cafeeira encontrava-se em

    expansão, e o governo do Brasil começou a estudar o recebimento de imigrantes

    japoneses. Manuel de Oliveira Lima, encarregado de negócios da primeira missão

    diplomática brasileira no Japão, em consulta feita pelo governo, deu parecer

    contrário ao projeto de recebimento de imigrantes japoneses, mencionando o perigo

    de o brasileiro se misturar com "raças inferiores” (SUZUKI Jr., 2008). Em 1902, o

    governo da Itália proibiu a emigração subsidiada de italianos para o Brasil, ao

    constatar as condições degradantes a que seus cidadãos eram submetidos nos

    contratos de trabalho assalariado. Os italianos que quisessem vir ao Brasil

    precisariam custear as próprias despesas. Com a diminuição de oferta de mão de

    obra italiana, o governo brasileiro aceitou o recebimento de imigrantes japoneses.

    Em 1907, a Lei de Imigração e Colonização regularizou a entrada de todos os

    imigrantes, acabando definitivamente com as restrições impostas pelo decreto nº

    528, de 1890. Sasaki resume bem essa decisão aparentemente paradoxal:

  • 45

    Os “amarelos”, isto é, os asiáticos, não condiziam com os ideais da construção da identidade nacional brasileira, que era baseada na política de embranquecimento, embora eles tenham sido vistos como uma alternativa para compor a mão-de-obra e atender à demanda na lavoura cafeeira. Além disso, havia uma preocupação em relação à sua adaptação nas terras brasileiras. A questão da assimilação esperada pelos nacionais se contrapunha à racionalidade econômica e produtiva. Isso configurava uma das contradições da política imigratória brasileira, pois, ao receber os imigrantes, por um lado, desqualificava o nacional como trabalhador (uma vez que o trabalhador brasileiro era tido como indisciplinado e indolente), para justificar a imigração estrangeira, e, por outro, desqualificava o imigrante como estrangeiro para justificar medidas discriminatórias. (SASAKI, 2006, p.100)

    Isso permitiu que, em novembro de 1907, fosse firmado um acordo entre o Japão e o

    Estado de São Paulo para trazer três mil imigrantes japoneses para trabalhar como

    agricultores e o navio Kasato Maru representava a primeira fase desse projeto. O

    Japão queria aliviar sua pressão social e populacional num momento em que os

    tradicionais destinos migratórios cerravam suas portas – os Estados Unidos, Austrália

    e Canadá restringiam o acesso a imigrantes japoneses – e o Brasil precisava de

    trabalhadores para a crescente produção agrícola de café e via-se privado de uma

    costumeira fonte de mão de obra, a de imigrantes italianos. Estabeleciam-se, assim,

    as condições ideais para o início da imigração japonesa no Brasil.

    1.2.2. ADAPTAÇÃO DOS IMIGRANTES JAPONESES AO BRASIL

    Os primeiros imigrantes chegados em 1908 foram recebidos com um misto de frieza

    e curiosidade pelo povo paulista. Havia muita expectativa sobre a aparência e o

    modo de ser desse povo que aportava em terras brasileiras pela primeira vez. O

    registro de um jornal da época, o Correio Paulistano17, que acompanhou os

    primeiros imigrantes à Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo18 –, descrito pelo

    17 Órgão do Partido Republicano de São Paulo. Artigo de J. Amândio Sobral publicado na primeira página da edição de 25 de junho de 1908. 18 As hospedarias de imigrantes eram estruturas criadas pelo governo a partir da segunda metade do século XIX para receber imigrantes recém-chegados ao Brasil, que seriam enviados a colônias e fazendas no interior ou mesmo para viverem e trabalharem na capital. Muitos deles chegavam enfermos e precisavam ficar em quarentena nessas hospedarias, antes de seguir viagem.

  • 46

    historiador Tomoo Handa (1987, p. 4-12), revela alguns sentimentos desse momento

    de encontro entre duas civilizações por parte do povo brasileiro: a percepção de que

    o povo era relativamente mais baixo e franzino que os imigrantes aos quais os

    paulistas estavam costumados a encontrar (italianos, espanhóis e alemães); a

    notória limpeza, disciplina e silêncio dos japoneses; o modo de vestir ocidental

    elegante dos homens e mulheres e suas bagagens arrumadas e limpas, que

    contrastavam com as vestes simples, às vezes pobres e sujas, dos imigrantes

    europeus. Alguns desses comentários são reproduzidos a seguir. Sobre a percepção

    em relação à aparência e constituição física dos imigrantes nipônicos:

    Todos os japonezes vindos são geralmente baixos: cabeça grande, troncos grandes e reforçados, mas pernas curtas. Um japonez de 14 annos não é mais alto que uma criança das nossas de 8 annos de edade. A estatura médi