VANZOLINI - A Contribuição Zoólogica Dos Primeiros Naturalistas Viajantes No Brasil

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    P. E. V A N Z O L I N I

    A CONTRIBUIOZOOLGICADOS PRIMEIROSNATURALISTASVIAJANTES

    NO BRASIL

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    um ponto de vista mais profissional.Comeo analisando brevemente o estado

    da Zoologia como cincia no nosso perodo.

    Por acordo unnime de seus praticantes, con-sidera-se que a Zoologia Sistemtica comodisciplina comeou com a publicao dos tra-balhos de Lineu no sculo XVIII, resumidose cristalizados na dcima edio do SystemaNaturae, de 1758, e estendidos dcima se-gunda, a ltima publicada em vida de Lineu.

    O Systema, compendiando, de maneiraefetiva e original, toda a Histria Natural dotempo, e implantando o sistema extremamen-te prtico da nomenclatura binominal, deter-minou uma como que homogeneizao do co-nhecimento zoolgico europeu e, assim, umpatamar para o progresso da cincia: bem de-limitadas as fronteiras do conhecido, tornava-se fcil cruz-las pela simples explorao geo-grfica de um mundo em boa parte por desco-brir. Assim oSystema Naturae, como toda obraseminal, criou as condies para sua prpriaultrapassagem, e isso especialmente por inten-sa atividade faunstica, conjugada com a ace-lerada explorao geogrfica, envolvendomuitas viagens de circunavegao no fim do

    sculo XVIII e comeo do XIX.O primeiro quartel do sculo XIX viu o

    incio da explorao cientfica intensiva,profissionalizada, do Novo Mundo (Papavero,1971-73). No caso do Brasil, a entrada depesquisadores foi retardada pela polticaexclusivista de Portugal (Vanzolini, 1981).A fuga, porm, da famlia real portuguesa,acossada pelos exrcitos napolenicos, parao Brasil em 1810, tendo, como conseqn-cias imediatas, a abertura dos portos e a vinda

    de pondervel corpo diplomtico, abriu o ter-ritrio a pesquisadores europeus.Em 1817 o prncipe herdeiro Dom Pedro

    (mais tarde Primeiro) casou-se, por procu-rao, com a arquiduquesa imperial da us-tria, D. Leopoldina. Esta veio para o Brasilem fins do mesmo ano, trazendo em seusquito uma boa comisso cientfica, sele-cionada por E. Schreiber, diretor do Museude Viena (Ramirez, 1968). Esse eventomarca, tanto oficialmente quanto na reali-dade, o incio da atividade profissional

    zoolgica no Brasil. Antes de entrar, po-rm, na histria, h dois precursores a con-

    1. INTRODUO

    Meu tema a contribuio subs

    tantiva dos primeiros viajantes cientficos no Brasil para oprogresso da Zoologia, tanto

    sob o aspecto faunstico quanto no campo dasistemtica acima do nvel de espcie.

    Considero substantivas as contribuiesintencionais e ponderveis. No incluo osinmeros naturalistas que fizeram coletasincidentais, cujo navio escalou por alguns diasna Bahia, no Rio de Janeiro ou em Floria-npolis embora Darwin ele mesmo tenhacoletado uma espcie nova de lagarto no Rio.Levo apenas em conta expedies projetadase realizadas com o fim precpuo de explorara fauna brasileira. Incluo apenas um natura-lista residente, Marcgrave, por ser o primei-ro, e o nico pr-lineano. Deixo de incluiroutro residente, Lund, porque o tipo de infor-mao que obteve sui generis, muito dife-rente (e nisso vejo, alis, muita grandeza) doque resultava das expedies convencionais.Lund, com Warming, Reinhardt e Winge, um fenmeno nico, idiossincrtico, que at

    hoje no foi devidamente compreendido. Nocabe em uma anlise comparativa de sedi-mentao de conhecimento.

    Cinjo-me zoologia de vertebrados. esteo campo que se desenvolvia rapidamente aotempo dos viajantes cuja contribuio foisignificante. Assim, omito Wallace e Bates,com suas esplndidas colees de insetos ecom suas idias tericas revolucionrias queno tm a ver com Zoologia propriamentedita. Omito Auguste de Saint-Hilaire por ser

    botnico; embora tenha tido grande visoecolgica, e coletado um pouco, suas cole-es no tiveram personalidade suficientepara causar impacto na profisso. OmitodOrbigny. Trabalhou prximo ao Brasil, masem outro contexto faunstico; um autorandino-patagnico, extratropical.

    Por razes de certa forma anlogas sque causaram estas omisses, incluo duasexpedies de importncia zoolgica mui-to pequena, a de Langsdorff e a de Agassiz.Essas expedies adquiriram no meio leigo

    importncia to desproporcional sua con-tribuio real que til examin-las sob

    M

    P. E. VANZOLINI

    pesquisador e ex-diretor do Museu deZoologia da USP.

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    siderar: Georg Marcgrave no sculo XVII eAlexandre Rodrigues Ferreira no XVIII.

    2. OS PRECURSORES

    2.1. Georg Marcgrave

    Marcgrave, ou Marcgraf, nascido naSaxnia em 1610, veio para o Brasil em 1638,participando do plano de governo de Maur-cio de Nassau para o Brasil holands. Veiocomo astrnomo: para ele fez Maurcio cons-truir o primeiro observatrio do Novo Mun-do. Sua obra astronmica, dita considervel,parece ter-se perdido na quase totalidade(Taunay, 1942) Marcgrave passou poste-ridade por seu trabalho, para ele mesmo apa-rentemente secundrio, de naturalista. Escre-veu um dos volumes de umaHistria Naturaldo Brasil; o volume companheiro foi escritopor Willem Pies (Piso). Marcgrave noviveu para ver sua obra publicada; viajandopara a frica a servio, morreu em Angolaem 1644. O livro foi publicado por seu ami-go, o belga Johannes de Laet, sob o ttuloHistoria Naturalis Brasiliae, em Leiden e

    Amsterd, em 1648. uma lista de animais (245 espcies de

    vertebrados), contendo o nome vulgar em tupiou portugus, ou ambos, uma descrio aogosto da poca e numerosas ilustraes.

    At o comeo do sculo XIX os mtodosde preparao e armazenagem de exemplareszoolgicos estavam na infncia, e as cole-es zoolgicas constituam-se em grandeparte de pinturas executadas, quando poss-vel, de modelos vivos. A publicao dessasilustraes era difcil e cara, e por isso nasobras da poca elas eram substitudas porxilogravuras. No caso de Marcgrave, as ilus-traes constam de xilografias abertas naHolanda, copiando originais a aquarela ouleo feitos no Brasil. Os originais so magn-ficos; h debate sobre sua autoria (Taunay,1942; Albertin, 1985). As xilografias, ao con-trrio, so cruas. de fato chocante oconstraste entre a gravura em talha doce,opulenta e barroca, da pgina de rosto daHistria Natural, e as xilografias, duras,

    reminiscentes das ilustraes do sculo XV(Febvre e Martin, 1992). Muitas delas, po-

    rm, permitem identificao inequvoca, es-pecialmente nos casos em que os contornosdo corpo so caractersticos (por exemplo,

    peixes Gnther, 1880).Marcgrave era, como dito, astrnomo.Embora tivesse estudado Histria Natural emRostock (Taunay, 1942) e fosse observadorminucioso, moderado e honesto, falta, comobvio para a poca, carter profissional aoseu trabalho. Mesmo assim, este bem supe-rior aos dos contemporneos frei Christvode Lisboa (livro composto de 1624 a 1627,publicado em 1967), sobre fauna do Maranhoe, especialmente, Zacharias Wagener (com-posto de 1634 a 1641, publicado em 1964).Este tambm foi funcionrio de Maurcio deNassau, era saxo como Marcgrave e escre-veu sobre a mesma fauna. Marcgrave, dizStresemann (1951, p. 36; 1975, p. 34), havia,como viajante cientfico, adquiridoimorredoura fama. Sua sobrevivncia, con-tudo, deve-se unicamente a Lineu. Na dci-ma edio do Systema Naturae este incluiu1.370 espcies de vertebrados: Marcgrave citado a respeito de 39 destas, 14 mamferos,15 aves, 2 rpteis e 8 peixes. Em todos os

    casos, menos dois, Marcgrave citado entreoutros autores, inclusive o prprio Lineu, em

    Jaburu,xil ogravur a que

    il ustr a a Historia

    naturalis Brasiliae de

    Pi so e M arcgrave

    (Amsterdam/Leiden,

    1648)

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    2.2. Alexandre Rodrigues Ferreira

    O segundo precursor, nascido em Salva-

    dor, em 27 de abril de 1756, tomou ordensmenores na muito baixa idade (Tavares daSilva, 1947) de 12 anos, mas imediatamenteabandonou a carreira eclesistica, abraandoas cincias naturais e doutorando-se, comdistino, em Coimbra, sob a direo deDomenico Vandelli.

    H indcios de que D. Maria I, rainha dePortugal, ou algum forte em seu governoiluminista, gostava de Histria Natural e ti-nha interesse na flora e fauna das colnias(Pinto, 1979, p. 46). Provavelmente por umencontro dessa inclinao com interessesadministrativos e diplomticos (Moreira Neto,1983), decidiu a corte portuguesa empreen-der uma expedio ao Brasil. Alexandre foiindicado pela universidade para chefi-la.Veio para o pas no segundo semestre de 1783,radicando-se em Belm do Par.

    H diversas biografias de Alexandre (lis-ta em Goeldi, 1982). Apenas uma delas, po-rm (Corra Filho, 1939), obra enfadonha porentusiasta e sacarina, d indicaes claras,

    confirmadas peloRoteirode Alexandre (1933q.v.i.), sobre as funes desempenhadas pelonaturalista no Par, de outubro de 1783 a se-tembro de 1784, quando partiu para o rioNegro: teriam sido de tcnico agrcola, comoque um extensionista de hoje, e de inspetorgeral do servio pblico (vogal nas Juntasde Fazenda e de Justia, Pontes, 1858), sobas ordens do governador Joo Pereira Caldas.Nessas funes visitou a costa de Maraj fron-teira a Belm, a baa de Maraj e o baixoTocantins. Depois seguiu para o Amazonas eMato Grosso.

    No que segue utilizo, resumidamente, umestudo paralelo a este que fiz, especificamen-te, do itinerrio de Alexandre (Vanzolini, empreparo). De acordo com seuRoteiropartiuele em 19 de setembro de 1784 para o rioNegro. Fez uma viagem relativamente rpidade Belm a Manaus (147 dias), com algumaspoucas digresses, na baa de Portel, no Xingu,no Paru e no Tapajs.

    No Amazonas fez base em Barcelos, capital

    da capitania. Em uma primeira viagem subiu oNegro at a pedra extrema de Cucu, entrando,

    trabalhos anteriores. Nos dois casos restantes,porm, ele a nica autoridade citada, deven-do assim ser considerado responsvel pelo

    conceito lineano da espcie. So elas, o mam-feroLepus brasiliensis(atualmenteSylvilagus,famlia Leporidae), a lebre ou tapiti, e o peixePleuronectes papillosus (agora Syacium), umlinguadinho da famlia Bothidae.

    Depois disso Marcgrave caiu no olvido,at que Lichtenstein (1818-26, 1961), desco-brindo os originais das ilustraes na Biblio-teca de Berlim, atualizou em um longo artigoa identificao das espcies. Levando-se emconta que as formas descritas por Marcgraveso todas comuns, com nomes vulgares fir-mes, e que as descries so complementadaspor gravuras, compreende-se que nunca te-nha havido qualquer dvida sobre a identida-de das espcies marcgravianas, especialmen-te aquelas referidas por Lineu as nicas deimportncia prtica. Assim, o trabalho deLichtenstein vale apenas por levantar do ol-vido um acervo artisticamente notvel. De-pois de Lichtenstein, Schneider (1938) apre-sentou uma excelente nota crtica sobre asestampas e identificou as aves.

    Os originais das figuras daHistria Natu-ralforam vendidos (Rodolfo Garcia, 1922, p.865) por Maurcio de Nassau a seu parenteFriedrich Wilhelm, Grande Eleitor deBrandemburgo, na biblioteca de quem foramorganizados pelo mdico Christian Mentzelem quatro volumes,Icones Aquatilium, IconesVolatilium, Icones Animalium e IconesVegetabilium. Eventualmente foram pararentre os Libri Picturati da Biblioteca deBerlim, de onde foram apressadamente eva-cuados durante a Segunda Guerra Mundial,ficando desaparecidos por muitos anos, atque em 1977 o ictilogo Peter Whiteheaddescobriu a coleo na UniversidadeJagelonsquiana, em Cracvia. Uma editorabrasileira, Index, publicou em 1993 esseTheatrum Rerum Naturalium Brasiliae, semcomentrios cientficos mas com uma hist-ria da recuperao da obra. As figuras somuito bem reproduzidas e tm grande valorartstico. Zoologicamente, porm, como dito,quase nada acrescentam, e praticamente no

    esto comentadas. Uma discusso tcnica dosoriginais apresentada por Albertin (1985).

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    na ida, nos rios Uaups, Iana e Xi e, na volta,no Cauaburis, no Padauiri e no Arac.

    Entre parnteses, sempre me pareceu, a

    julgar pelos itinerrios e pelo andamento dasviagens, que Alexandre tinha, remando parasi, a fina flor da indiada. No entanto, CorraFilho (1939) conta que por diversas vezes,eespecialmente no Madeira, Alexandre teveque enfrentar duros problemas (comuns nasviagens longas) de motins e de deseromacia de remadores e mesmo de soldados.

    A viagem seguinte foi ao vale do rio Bran-co, subindo o Uraricoera (um dos formado-res) at um pouco alm da Ilha de Marac.Subiu tambm o Ma, rio da fronteiraguianense, e fez uma viagem a p pelo lavra-do de Roraima, a vasta extenso dos chama-dos campos do Rio Branco, semelhantes acerrados (Vanzolini e Carvalho, 1991). Le-vou na explorao do Branco 88 dias, voltan-do a Barcelos em 3 de agosto de 1787.

    Em agosto de 1787 mudou o teatro de suasoperaes, de Barcelos para Vila Bela daSantssima Trindade, do Negro para o altoGuapor. Levou 378 dias de percurso, tendoentrado por distncias vrias nos rios

    Aripuan, Araras (Arau) e Manicor.De Vila Bela viajou por terra s lavras de

    ouro da Serra de So Vicente e de Pocon e Chapada dos Guimares. Essa empresa toda deMato Grosso tomou dois anos e cinco meses.

    A viagem final de Alexandre foi de Cuiab,rio abaixo, at o Forte de Coimbra, com visita Caverna do Inferno, e regresso a Vila Belasubindo o Jauru e levando ao todo 102 dias.

    Verifica-se assim que fantstica experin-cia de campo adquiriu Alexandre, homemminucioso e perspicaz, ao longo de seis anos e

    meio de viagem, dos quais pelo menos quatroe meio passados efetivamente no campo, ex-plorando majoritariamente mata amaznica,mas tambm uma certa medida de cerrado. Ascolees feitas, porm, no foram grandes.

    Devemos aqui considerar o problema damisso de Alexandre, que trato em mais deta-lhe em outro artigo (Vanzolini, em preparo). Oatraente ttulo viagem filosfica desde sem-pre cativou as imaginaes, e Alexandre geralmente considerado um pesquisador purodesempenhando uma tarefa cientfica. Pensodiferente. No tenho dvida de que os objeti-vos das viagens ao Negro e a Mato Grossoeram antes administrativos e estratgicos, li-gados a questes de fronteiras e de produode ouro. O ttulo de philosophica pode tersido em parte um disfarce, em parte compla-cncia com as inclinaes de naturalista deAlexandre, e provavelmente correspondia aosintuitos iniciais da coroa portuguesa. Que te-nha havido interveno de burocratas envolvi-dos na administrao direta do projeto (leia-se

    Joo Pereira Caldas) mais que provvel. Dequalquer maneira, fato que, durante as via-gens, Alexandre coletava e mandava desenharanimais, por seus dois riscadores, Jos Joa-quim Freire e Joaquim Jos Codina, ambosrazoavelmente competentes.

    bvio que Alexandre tinha recebidoinstrues de duas ordens, poltica e tcnica.Sobre a primeira j comentei que fica para

    Joaquim Freir e

    ou JosCodi na,

    Crocodilu,

    desenho aquarelado

    sobre papel,

    Fundao B i bl i oteca

    Nacional,

    Rio de Janei r o

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    outro artigo (Vanzolini, em preparo). Sobre aparte tcnica h uma interessantssima nota(Mendes, 1946).

    As instrues iniciam-se com o que fazerdurante a viagem martima. Os oito primei-ros dias (a viagem durava dois meses) seriamde feriado, para acomodao geral, inclusivecom o enjo. Depois disso deveriam os expe-dicionrios dedicar-se coleta de peixesmarinhos, identificando-os (reduzindo) edesenhando-os. Tambm, considerando-se oalto investimento da coroa em artes de pesca(linhas, anzis, etc.), os peixes no poderiamser desperdiados, mas sim preparados e con-servados para o Real Gabinete.

    No caso das viagens por terra (aps umms e meio, incio de frias parareacomodao) tudo era estritamente previs-to e prescrito: a ordem de marcha (os pretose ndios na frente, para absorverem ataquesinesperados), o horrio e a qualidade das re-feies, o tipo de camas e colches, etc.

    Corra Filho (1939) diz que essas instru-es, de que viu um manuscrito no assinado,so de autoria do prprio Alexandre. Eu du-vido de que um brasileiro nato, homem de

    bom senso comprovado, prescrevesse paraseu prprio uso, em to impiedoso detalhe, avida quotidiana de uma expedio de muitasdezenas de ndios e vaqueanos no meio denenhures. Prefiro crer na velha e honrada tra-dio luso-brasileira de burrice burocrtica,interferindo pela primeira vez, mas certamenteno pela ltima, na profisso cientfica.

    As prescries sobre a feitura e manuten-o de dirios de campo so tambm detalha-das e, no geral, sensatas, se bem que ocasio-

    nalmente difceis de entender: denotar humaCarta Geographica do Paz em que venhomarcados com sinais chimicos os diferentesminerais e fosseis [...] os habitantes, seuscostumes e sua Religio [...] no omitir lugarnenhum beira mar [...] (Mendes, 1946).

    Os materiais coletados eram, na medidadas possibilidades, despachados para Lisboa,para o Museu da Ajuda.

    Nesse mesmo museu passou Alexandre,de volta a Portugal em 1793, a trabalhar comopesquisador, depois de breve perodo como

    oficial administrativo. Sua coleo brasileira,apesar dos anos passados no campo, no era

    grande. Isso se explica no s por causa dasoutras funes desempenhadas por ele, mastambm pelas prprias limitaes da zoologia

    da poca. A nfase tinha obrigatoriamente queser posta em peles de mamferos de tamanhomdio, cascos de tartarugas e peas que tais,exigindo pouca delicadeza no preparo e per-mitindo conservao por via seca.

    Relatam os bigrafos que, em Lisboa, Ale-xandre entrou em progressiva depresso (fa-tal melancolia, Pontes, 1858) e que dela fale-ceu em 1815. O nico bigrafo que tentouexplicar essa enfermidade foi Corra Filho(1939), e no concordo inteiramente com ele.

    Alexandre, mostram seus manuscritosremanescentes, planejava publicar sobre to-das as suas colees e apontamentos de cam-po, zoolgicos e etnogrficos. O ambientecientfico em Portugal era, na poca, muitoruim. Com exceo do grande e completo (emuito posterior) Jos Vicente Barboza duBocage (1857-1901), nenhum zologo por-tugus de relevo jamais se ocupou da faunadas colnias. O prprio museu era deficientequanto a colees e biblioteca. Corra Filho(1939, p. 154) d para as colees 96 mam-

    feros, 1.250 aves (96 do Brasil) e 1.230 pei-xes. A biblioteca contava com 307 volumes,boa parte dos quais (loc. cit.) de histria eliteratura. Alexandre lutava para empreenderseus estudos, que andavam devagar. Encon-tram-se na literatura tambm vrias insinua-es de que Alexandre teria vida difcil nomuseu, sofrendo inclusive sabotagem de seusmateriais, por inimizade de um colega. Estepoderia ter sido o prprio Vandelli (Pires deLima, 1953, p. 29).

    No ano de 1808, os exrcitos napole-nicos, comandados por Junot, invadiram Por-tugal. Como de costume, acompanhavam oexrcito alguns savants franceses, encarre-gados da rapina cultural do pas derrotado.Etienne Geoffroy Saint-Hilaire foi o zologoque saqueou a Ajuda. (A GrandeEncyclopdie Larousse diz que em 1808Etienne foi encarregado de uma missionscientifique en Espagne et en Portugal.)

    Os franceses ao tempo tentavam cobrircom um vu difano de legalidade a nudez

    crua da expropriao: era celebrado um tra-tado, trocadas cartas de inteno, dadas ex-

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    plicaes, passados recibos e mesmofornecidas duplicatas do Museu de Paris emtroca de doaes voluntrias, merecendo

    assim a admirao dos prprios saqueados(Appel, 1987, p. 92; brbara coragem ou san-ta ingenuidade?). De fato, s vezes, a mano-bra aparentemente funcionava, e os rapinantesacabavam mesmo elogiados por sua modera-o e civilidade (Silva Carvalho, 1930, p. 903).Neiva (1929, p. 16) transcreve a ordem deservio do duque de Abrantes, comandantedo exrcito portugus, autorizando o museu aretirar das colees e encaixotar para trans-porte Frana 65 espcies (384 exemplares)de mamferos, 238 (384) de aves, 25 (32) derpteis e 89 (100) de peixes . Existe um casoidntico, bem documentado, na literatura: osaque legalizado das colees do StadholterGuilherme V da Holanda em 1795(Boeseman, 1930; Pieters, 1980). Para nofalar no fantstico saque das antigidades ehistria natural do Egito, pelo mesmoNapoleo Bonaparte e seus savants. Mas aera um pas de pretos.

    No fim, o material terminava em Paris,bem estudado mas conservado em um museu

    no muito melhor que a Ajuda, em termos decuradoria.

    At o fim da vida, Etienne Geoffroy Saint-Hilaire referia-se, com evidentes orgulho esatisfao, a mon voyage de 1808 au Portu-gal, do mesmo jeito por que um zologobrasileiro poderia referir-se a minha viagema Maraj em 1958 uma maravilhosa opor-tunidade de coleta. O mesmo orgulho e satis-fao revelava o filho e sucessor, IsidoreGeoffroy. Foi de fato uma bela excurso,

    barata e proveitosa.No h propsito, a esta altura, em esmiuarmais este mesquinho episdio, mas deve-se notarque h outros exemplos. Schweigger (1812, p.302), descrevendo a nova espcie Emysgeoffroana(hojePhrynops) diz: Vidi specimenin museo Parisiensi, quod ill. Geoffroy Lisbonaein museo regio collegerat. Gervais (1855b, p.90) menciona o exemplar trazido de Lisboa queservia de tipo paraInia geoffrensis, o boto bran-co ou malhado da Amaznia, originalmentecoletado por Alexandre.

    Assim, em vez de Alexandre publicar oresultado de suas pesquisas (isto , maneira

    da poca, as espcies novas), as novidadesforam descritas pelos dois Saint-Hilaire e porAnselme Gaetan Desmarest. Diz E. Geoffroy

    Saint-Hilaire (1809a) terem sido levados daAjuda 66 mamferos e 275 aves; a discrepn-cia entre esta lista e a de Neiva (1929) pe-quena, explicvel pelas circunstncias e pelacompetncia das duas instituies envolvi-das. Nem tudo, porm, era do Brasil: haviaoutras colnias no meio. No CatalogueMthodiqueda coleo de mamferos de Pa-ris (I. Geoffroy Saint-Hilaire, 1851) encon-tramos 18 espcies de macacos como origi-nrias da famosa viagem de 1808. As seguin-tes so baseadas em exemplares provavelmen-te coletados por Alexandre (sinonmia deacordo com Groves, 1993): 1) Saimiri ustusI. Geoffroy, 1843; 2) Cebus cirrifer E.Geoffroy, 1812 = C. apella (L., 1758); 3)Cebus flavusE. Geoffroy, 1812 = C. albifrons(Humboldt, 1812); 4)Ateles marginatus E.Geoffroy, 1812; 5) Lagothrix canus E.Geoffroy, 1812 =L. lagothricha (Humboldt,1812); 6) Pithecia monachus E. Geoffroy,1812; 7) Jacchus humeralifer E. Geoffroy,1812 = Callithrix humeralifer; 8) Jacchus

    melanurus E. Geoffroy, 1812 = Callithrixargentata (L., 1771); 9) Midas labiatus E.Geoffroy, 1812 = Saguinus labiatus.

    Assim, a influncia do primeiro natura-lista profissional brasileiro no progresso dazoologia ptria foi defletida, passou a indire-ta, limitada a um nico grupo (Primates) etrazendo em si uma histria das mais repug-nantes. O verdadeiro zologo no tem a pai-xo aguda da novidade. Seu servio consistena construo de sistemas simples e lgicos,

    em que as espcies se insiram com naturali-dade e se expliquem mutuamente, dentro deum contexto ecolgico e geogrfico. Ver esseprojeto frustrado, vista da concluso, (pen-sando como zologo) causa suficiente paramelancolia fatal, declnio, misantropia emorte prematura. Essa a opinio de CorraFilho (1939) e tambm foi a minha, at que olivro de Pires de Lima (1953) atraiu minhaateno para algumas pistas contidas na lite-ratura, sobre problemas mdicos anterioresde Alexandre, indicando que a questo no

    era to simples.Em uma carta de 30 de junho de 1784,

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    escrita em Belm, a Martinho de Souza eAlbuquerque (Pires de Lima, 1953, pp. 129-32), conta Alexandre seus sintomas (novela

    que diverte a quem ouve porm aflige a quemfigura nella).

    No parecer do Mdico do hospital eu notinha outra coisa mais que melancholia:pelo vto do Commissario delegado doProto-Medicto eu padesso humacardialgia histerica. [...] No entanto emtoda a cidade, pela qual se espalhou queeu no tinha mais que melancholia humme h tido por scismtico, outro pormelancholico, e alguns por pateta [...].

    Durante as viagens queixa-se Alexandrecontinuamente da sade. A visita serra dosCristais, no Rio Branco, havia sido penosa (Pi-res de Lima, 1953, p. 60). A subida do Madeirae do Guapor, que durara 13 meses e 18 dias,havia sido muito mais dura ainda; um dos ex-pedicionrios morrera ao chegar a Vila Bela(Pires de Lima, 1953, pp. 77-8). A visita Grutadas Onas, em Mato Grosso, resultara em umlongo perodo de enfermidade para Alexandre

    (Pires de Lima, 1953, p. 85).Parece provvel, que, ao longo da vida,

    tenha sofrido Alexandre de uma sndrome dedepresso, talvez de pnico. O peso do trau-ma de 1808 sobre um organismo com tal pas-sado psiquitrico e tanto depauperamentoorgnico deve ter sido com certeza suficientepara desorganizar a sua psique e lev-lo aoalcoolismo e entrevecimento (Pires de Lima,1953, pp. 22 e 32). O detalhe do alcoolismoreala a relevncia da sndrome suspeitada

    (Lotufo-Neto e Gentil, 1994).Essa passagem, relatada concisa e digna-mente por Pires de Lima (1953), vem sendocuidadosamente omitida, obviamente pordelicadeza, por todos que escrevem sobreAlexandre. Acho um erro. A condio huma-na no vergonha; a verdade que no reveladesonestidade no enfeia.

    2.2.1. Alexandre RodriguesFerreira como zologo

    A auto-imagem de Alexandre era a dequalquer sistemata em qualquer tempo: essa

    leve tintura que tenho de alguns EstudosNaturaes (Pires de Lima, 1953, p. 220), ouseja, ele sabe que no sabe nada e que os

    colegas sabem menos.Alexandre obviamente no tinha inclina-o para a Ecologia. Passando pelos lugarespor onde passou, vendo as paisagens que viu,no tomou uma nota ecolgica sequer. Deveser antes julgado como sistemata, profissoem que no havia sido treinado (Vandelli eramuito medocre), mas para a qual o inclinavaseu esprito meticuloso de alistador emrito(inclusive de alfaias de igreja).

    Muito da mitologia que cerca Alexandre,obviamente encorajada pelas peculiaridadestnicas e pelos infortnios da carreira,concerne seu valor como cientista. elecomumente considerado um gnio frustrado;no conheo, porm, uma avaliao fria desua qualidade profissional. As pistas que te-mos para faz-lo so quatro artigos publica-dos postumamente e, menos diretamente, acoleo de estampas publicada pelo Conse-lho Federal de Cultura em 1971 sob o ttuloViagem Filosfica.

    Trs artigos, publicados em 1903 nos

    Archivos do Museu Nacional do Rio de Ja-neiro (Rodrigues Ferreira, 1903 a-c), comnotas de rodap de Alipio de Miranda Ribei-ro, so de pouca importncia.

    Sobre o Peixe Pir-urucu: curiosamente,uma descrio formal em latim, modelo lineano,enxuta, razovel, sem proposta de nome.

    Sobre o Peixe Boy: tem muito poucocontedo zoolgico, mas mostra um aspectointeressante: ao lado dos usuais comentrios,feitos por todos os viajantes, sobre tamanho,amamentao e distribuio geogrfica, re-vela uma preocupao objetiva (caractersti-ca de Alexandre) com a conservao da esp-cie, em si e como recurso natural desfrutvel.

    Sobre a Yurara-ret: esta Podocnemisexpansa, a tartaruga por excelncia da Ama-znia, e Alexandre fez com ela o que nenhumviajante jamais deixou de fazer: descreveu adesova, a pesca e o aproveitamento dos ovos.Mas, alm disso, tambm caracteristicamen-te, deu os primeiros dados estatsticos que setm da espcie.

    As Pranchas de Animais: o ConselhoFederal de Cultura publicou excelentes re-

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    algumas notrias: a ema (Rhea americana,Rheidae), o nhambu-chint (Crypturellustataupa, Tinamidae), a perdiz (Rhynchotusrufescens, Tinamidae), a tach (Chaunatorquata, Anhimidae) e a seriema (Cariamacristata, Cariamidae). Entre os mamferos, osagi Callithrix penicillata (Callithrichidae)e o lobo guar (Chrysocyon brachyurus,Canidae). Nove espcies em 115: Alexandreandou por Mato Grosso, mas no coletoumuito. Outras coisas ter feito.

    Quanto execuo, as estampas so no geralde valor mediano. H algumas muito boas (es-pecialmente peixes), outras muito ruins: a dolobo guar, justamente uma das espcies rouba-das de Alexandre, simplesmente horrvel. Otatu-peba est mal desenhado e mal identifica-do (tanto nas estampas quanto na Explicao do

    Conselho Federal de Cultura): no um peba, um galinha Dasypus e no Euphractus.

    produes de 147 pranchas da coleo deAlexandre (Rodrigues Ferreira, 1971). Mui-tas tm duas figuras, macho e fmea da esp-

    cie ou espcies diferentes. Acompanham umprefcio e uma introduo, ambos um tantoanmicos, e uma Explicao das Estampas,que consta apenas de uma lista, no comenta-da, de identificaes e distribuies geogr-ficas generalizadas.

    Como projeto de ilustrao faunstica aescolha das espcies , no geral, muito razo-vel: Alexandre, afinal, era um zologo. Demamferos so representadas 50 espcies: 1marsupial, 16 macacos, 5 xenartros, 12 carn-voros, o peixe-boi, 3 ungulados, 10 roedorese 2 cetceos (os botos de gua doce). Sente-se falta apenas de morcegos. Nas aves (50espcies), 29 famlias esto representadas, das73 possveis; a distribuio muito boa. Arepresentao dos rpteis muito fraca: soanimais que na maioria se conservam por viamida. So citados 3 lagartos, 1 anfisbnio, 1jacar e 5 quelnios, incluindo um exemplarbicfalo de tracaj (Podocnemis unifilis,Pelomedusidae). No h nenhum anfbio (denovo o problema da conservao em lcool).

    H 58 espcies de peixes fluviais e 7 de pei-xes marinhos. Os invertebrados, na maneirada poca, so representados por 4 insetos (in-cluindo larvas e um ninho de vespas), umquilpodo e um molusco (o turu, Teredinidae).

    Cabe aqui uma indagao sobre a proce-dncia geogrfica dos exemplares, noexplicitada nas figuras e no registrada noMuseu da Ajuda. Em um trabalho paralelo aeste, sobre as viagens de Alexandre(Vanzolini, em preparo), eu me perguntavasobre a verdadeira misso do naturalista: eraa inteno filosfica real e primacial, ou,pelo menos em parte, pretexto e disfarce paraoutras atividades, administrativas e diplom-ticas. A lista de animais permite uma verifi-cao indireta. Alexandre demorou 29 mesesem Mato Grosso: o que e quanto teria coleta-do a? H na lista de animais 9 espcies queso decididamente extra-amaznicas, restri-tas a formaes abertas no caso, o cerrado.Entre os rpteis, o lagarto Hoplocercusspinosus (Hoplocercidae), o conhecido

    cuviara, e a sucuri da bacia do Paraguai,Eunectes notaeus (Boidae). Entre as aves h

    Prinz Maximi l ian

    zu W ied-Neuwi ed,

    Capi to Bento

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    Abreu Li ma,

    aquar ela sobre

    papel (18 16),

    Brasi li en Bi bli othek

    der Robert Bosch

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    Muitos dos desenhos de aves so de exem-plares obviamente taxidermizados, dobrados ecomprimidos. No fazem boa ilustrao. Final-

    mente, alguns exemplares de aves e mamferosso representados recm-atirados, o que indi-cado por delicados sangramentos, que, na rea-lidade, do um certo encanto perverso.

    Todas as pranchas, porm, permitem apronta identificao das espcies; nesse cam-po nada ficam a dever s similares europiasda poca, e confirmam o statusnormalmenteprofissional de Alexandre Rodrigues Ferreira.

    Os mammaes: a grande monografia deAlexandre, sobre os mamferos dos trs rios,Amazonas, Negro e Madeira, foi publicada em1934 pelo Instituto Geogrfico e Histrico daBahia, de forma pura e seca, como se fosseobra contempornea, sem um comentrio se-quer de natureza tcnica. Carvalho (1965)publicou um comentrio, no s sobre estamonografia, mas sobre toda a informaomastozoolgica de Alexandre, inclusive ma-nuscritos e estampas ento inditos da Biblio-teca Nacional. Esses comentrios cingem-seunicamente s identificaes, que aparecemuniformemente boas. , porm, possvel ir um

    pouco mais a fundo. Da leitura da monografiaentende-se bem que Alexandre tinha bom do-mnio da literatura contempornea e que enca-rava os problemas de identificao e de descri-o com adequado esprito crtico. Suas descri-es so profissionais, dentro do padro comumda poca, concentrando-se em feiesmorfolgicas salientes (nmero de dgitos, pre-sena ou ausncia de barba) e no colorido. Sodescries comparveis s de Etienne Geoffroy,o grande beneficirio das coletas de Alexandre.

    Goeldi (1895, 1982), que no gostava debrasileiros, disse que a produo cientfica deAlexandre de pequeno calado cientfico.Como discutido acima, no concordo comessa avaliao: antes a aplicaria produodo prprio Goeldi, operoso mas irremedia-velmente medocre.

    No tm tampouco valor nenhum paramim afirmaes do tipo de que os bichos deAlexandre acabaram por ter ficado melhorem Paris do que em Lisboa, por terem cadoassim nas mos de cientistas mais preparados

    e melhor equipados (Pinto, 1979, p. 57). Notenho dvida, repito, de que Alexandre teria

    feito um trabalho pelo menos to bom quantoo de Saint-Hilaire, levando ainda sobre este avantagem de ser um homem de bem.

    Uma considerao final sobre Alexandrecomo zologo diz respeito etiquetagem dosexemplares e catalogao na Ajuda. A pri-meira metade do sculo XIX foi o tempo doincio do alerta quanto aos registros de proce-dncia dos exemplares de museu. Foram exa-tamente os grandes zologos de campo, Wied,Spix, Natterer, Castelnau, que primeiro com-preenderam a natureza e a problemtica dadistribuio geogrfica dos animais, e queprimeiro se ocuparam em documentar a pro-cedncia dos bichos coletados, etiquetando-os individualmente. Essa preocupao demo-rou ainda um pouco para atingir os gabinetesdos museus, e catlogos de coleo em or-dem s aparecem uma gerao mais tarde.

    H, porm, evidncia publicada de queAlexandre de alguma maneira etiquetava seumaterial. Na relao (Pires de Lima, 1953) daoitava e ltima remessa do Negro, expedidada foz do Madeira em 11 de setembro de 1788,l-se, a respeito do material enviado em fras-cos: Numero das contas que levo os

    Productos, pelas quaes, se sabero os nomes,que lhes correspondem. Cada frasco tem suaseqncia prpria; fica claro que Alexandreno mantinha um catlogo geral, mas se ocu-pava de cada unidade de remessa (caixo,frasco, etc.) individualmente.

    Essa etiquetagem perdeu-se. H comen-trios (Pires de Lima, 1953, p. 33; Tavares daSilva, 1947, p. 165) sobre sabotagem na Aju-da, havendo suspeitas, mas no revelaes,sobre os eventuais criminosos. Contudo,

    mesmo que essa informao tivesse sobrevi-vido, seria de pouca utilidade, pois referia-seapenas ao nome vulgar do bicho e estaode embarque (Barcellos, Rio Negro, etc.).

    Essa prpria informao, no caso da Aju-da, nem sempre firme. H, por exemplo, nacoleo atribuda a Alexandre (J. BethencourtFerreira, 1923) um exemplar de Caimanlatirostris, identificado por Bocage e, portan-to, provavelmente certo, que no ocorre emnenhuma regio onde Alexandre tenha estado.

    Quer-me parecer que, com a descrio dos

    macacos e com a publicao dos Mammaese das pranchas, encerrou-se um ciclo de apro-

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    veitamento dos trabalhos de AlexandreRodrigues Ferreira. Os exemplares e estam-pas esto esgotados, e resta apenas a exegese

    dos textos, at hoje muito mal aproveitados.

    2.2.1.1. As remessasde Alexandre

    Pires de Lima (1953) publicou diversaslistas de remessa de animais enviados porAlexandre a Lisboa. Contm elas algumasespcies que, a julgar pelos nomes vulgares,no foram includas na Viagem Filosfica de1971. Essas listas ampliam, portanto, a di-menso das colees de Alexandre. Um ni-co caveat que os nomes vulgares devem serinterpretados. Isto , contudo, bem menosdifcil do que parece: os nomes de espciescomuns so firmes e tm vida longa, especi-almente na Amaznia. No caso de Alexandre possvel ainda verificar sua aplicabilidadena comparao com as figuras da Viagem,facilmente identificveis. No que segue apre-sento uma lista das formas (productos) alis-tados nas remessas, com a minha interpreta-o. Esta se baseia primeiramente em experi-

    ncia pessoal de cerca de cinqenta anos decoleta na Amaznia; em alguns casos, devi-damente anotados, recorri literatura, sejaaos catlogos sistemticos (Pinto, 1938, 1944;Vieira, 1955), seja a obras lingsticas(Martius; 1867; Tastevin, 1923a-c).

    No usei os nomes vulgares constantes dalista final da Viagem Filosfica(RodriguesFerreira, 1971) porque certamente so devi-dos a quem identificou as estampas, no aAlexandre; ele dificilmente usaria o nomevulgar mabuia (p. l60). Tambm contm essalista erros que Alexandre no cometeria: porexemplo, chamar de curimbat uma espciedeCurimatus, qual se aplica no Brasil inteiroo nome saguiru, sendo curimbat universalpara o gnero Prochilodus.

    PeixesAcar: os peixes pequenos da famlia

    Cichlidae; em geral com um qualificativo (porexemplo, acar-doido).

    Acari: os cascudos da famlia Loricariidae.

    Anuj: os bagres da famliaTrachycoristidae.

    Arauan: Osteoglossum bicirrhosum, fa-mlia Osteoglossidae; tambm aruan.

    Curumar:Lepidosiren paradoxa, fam-

    lia Lepidosirenidae (Martius, 1867, p. 447)Jeraqui: Prochilodus brama, famliaProchilodontidae; hoje jaraqui.

    Jundih: bagres pequenos e mdios dafamlia Pimelodidae, especialmente do gne-roRhamdia; tambm jandi.

    Mandu: bagres da famlia Ageneiosidae;mais freqentemente mandub.

    Mussi (= Mussum): Synbranchusmarmoratus, famlia Synbranchidae.

    Pir-catimbau: Tastevin (1923c, p. 726)em sua clssica monografia sobre o tupi daAmaznia, incluindo nomes de bichos e plan-tas, oferece a variante pir-caximbu; os dici-onrios modernos de fato do que caximbu um cachimbo usado no catimb. Pensa-se,portanto, em acari-cachimbo, nome aplicadoa diversas espcies de cascudos (Loricariidae)de cabea comprida e afilada; entre as pran-chas daViagem h a figura de uma Farlowella,um dos acaris-cachimbo.

    Pir-manha: Manha (me) o protetorsobrenatural de cada animal (Tastevin,

    1923b, p. 628). Pir peixe. Mais no pudeaveriguar.

    Puraqu: Electrophorus electricus, peixeeltrico, famlia Electrophoridae.

    Surubim: os bagres grandes da famliaPimelodidae, subfamlia Sorubiminae.

    Tarayraboya (erroneamente alistada comoserpente): Lepidosiren paradoxa , famliaLepidosirenidae; dita tambm trairambia,mais conhecida hoje como pirambia.

    Tareyra: peixes do gneroHoplias, fam-lia Erythrinidae (trara).

    Tucunar: espcies grandes do gneroCichla, famlia Cichlidae.

    Uacary: o mesmo que acari.Uacary pucu: cascudo no identificado;

    pucu quer dizer comprido (Tastevin, 1923b,p. 655; Martius, 1867, p. 85). Poderia ser umadas espcies grandes de Loricariidae, porexemplo do gnero Pterygoplichthys.

    Yacund piranga: yacund (= jacund)aplica-se s espcies de Crenicichla (famliaCichlidae); piranga quer dizer vermelho

    encarnado (Tastevin, 1923b, p. 653); noidentifiquei a espcie.

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    AnfbiosAru: Pipa pipa, famlia Pipidae.Boya assica (erroneamente alistada como

    serpente) = boiacica, nome dado na Amaz-nia s espcies de gimnofionos, especialmentedo gnero Siphonops.

    Cururu: sapos do gneroBufo, especial-mente na Amaznia Bufo marinus, famliaBufonidae.

    Cutaca: qualquer anuro pequeno; o equi-valente de perereca.

    Rpteis: TestudinesCabeudo: Peltocephalus dumerilianus,

    famlia Pelomedusidae.

    Jabutim: quelnios do gneroGeochelone,famlia Testudinidae; na Amaznia ocorremG. denticulata e G. carbonaria; a pronnciacorrente jaboti.

    Jabutim juruparig: Platemyspl at yc epha la (Mittermeier, Medem &Rhodin, 1980).

    Jabutim muritinga: no identificado.Martius (1867, p. 72) diz que morotinga coisa branca.

    Matamat: Chelus fimbriatus, famlia

    Chelidae.Muntaumat (= matamat, v.s.): Alexan-

    dre d uma boa diagnose em latim.Pitu (= piti), tartaruga-de-cheiro:

    Podocnemis sextubercu-lata, famliaPelomedusidae.

    Tartaruga grande: Podocnemis expansa,famlia Pelomedusidae.

    Uirapequ: Podocnemis erythrocephala,famlia Pelomedusidae; pronncia correnteirapuca.

    Rpteis: CrocodyliaJacaretinga: Caiman crocodilus, famlia

    Alligatoridae.

    Rpteis: SauriaJacuraru: na Amaznia, lagartos do gne-

    ro Tupinambis, famlia Teiidae.

    Rpteis: SerpentesAcutiboya: hoje se aplica a Oxybelis

    aeneus, famlia Colubridae. Martius (1867,

    p. 434), contanto, explica: qui Cutiaeinsidiatur, aquele que embosca a cotia, o

    que no se aplica a Oxybelis, que se alimentade lagartos e de pequenos anfbios.

    Araraboya:Boa canina, famlia Boidae.

    Boya assica: engano; ver Anfbios.Boya membeca: no identificada; boya cobra; membeca quer dizer, ainda hoje,mole; possivelmente um gimnofiono, comoboiacica, ou um peixe-podo.

    Boya pinima: no identificada; pinimaquer dizer pintada; possivelmente uma co-bra-coral (q.v.i.), embora este nome seja ex-plicitamente usado por Alexandre. Martius(1867, p. 440) diz Boi-pinima, Boya pinimai.e.pictus. Elaps.

    Cobra de coral: serpentes das famlias

    Aniliidae, Colubridae e Elapidae com umpadro mimtico de anis pretos, brancos evermelhos; numerosas espcies amaznicas.

    Cujubi boya: no identificada; cujubi uma ave (q.v.).

    Cururu boya: serpente que come sapo-cururu (Martius, 1867, p. 447). No sul doBrasil aplicado s vezes a Waglerophismerremii, famlia Colubridae (mais conheci-da por boipeva). Na Amaznia possivelmen-te se refira a uma espcie deXenodon ou a

    Hydrodynastes gigas, todas da famliaColubridae.

    Giboya:Boa constrictor, famlia Boidae.Jararaca: Bo th ro ps at rox, famlia

    Viperidae.Parau boya:Bothrops bilineatus, fam-

    lia Viperidae; o nome tupi no sobrevive, massobrevive sua traduo cobra-papagaia(Martius, 1867, p. 467, serpens colorevariegatus Psittaci).

    Purunupa-boya: possivelmente a jibia,Boa constrictor, famlia Boidae (Tastevin,1923c, p. 742).

    Sacahyboya: diversas serpentes geis dafamlia Colubridae, que se diz aoitarem aspessoas (surradeiras j em Tastevin, 1923,passim).

    Sucuruju: Eunectes murinus, famliaBoidae.

    Tarayraboya: engano, um peixe, q.v.

    AvesAcurao: aves das famlias Nyctibiidae e

    Caprimulgidae; equivalente a bacurau.Andorinha ou muriny: nome genrico para

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    as aves da famlia Hirundinidae,freqentemente mal aplicado a outras aves devo semelhante.

    Antim-antim ou gaivota: Tastevin (1923c,p. 693) tem tianti, gaivota; Martius (1867,p. 439) tem atyaty , Larus, gaivota dos por-tugueses. Na Amaznia aplica-se aPhaetusasimplex e Sterna superciliaris, famliaLaridae.

    Anum: gnero Crotophaga, famliaCuculidae.

    Araari: tucanos pequenos dos gnerosPteroglossus e Selenidera, famliaRamphastidae.

    Arapau: designao coletiva dos passa-

    rinhos da famlia Dendrocolaptidae.Arara: Psittacdeos grandes dos gneros

    Anodorhynchus eAra.Arara encarnada: Ara macao, famlia

    Psittacidae.Auap assoca: Jacana jacana , famlia

    Jacanidae (Martius, 1867, p. 435,aquapeaoca).

    Caracara: Da pt ri us at er, famliaFalconidae (Pinto, 1938).

    Carar: Anhi ng a an hi ng a, famlia

    Anhingidae.Corica (= curica): papagaios pequenos do

    gneroAmazona, famlia Psittacidae. O nomequer dizer rouco (Martius, 1867, p. 135, ajuru-curica).

    Coroca: Crotophaga major, famliaCuculidae. Tambm anu-coroca.

    Cujubim: Pipile pipile, famlia Cracidae.Galo da serra:Rupicola rupicola, famlia

    Cotingidae.Gara: espcies brancas e cinzentas da

    famlia Ardeidae.Gavio: aves das famlias Accipitridae e

    Falconidae.Ierena ou corta-gua: famlia

    Rynchopidae (Pinto, 1938).Inambu tor: Tinamus major, famlia

    Tinamidae.Ita (= it): alistada como ave; conheo

    apenas como molusco bivalvo fluvial.Jacamim: gnero Psophias , famlia

    Psophiidae; h na Amaznia trs espcies.Japiim: aves do gnero Cacicus, famlia

    Icteridae; h na Amaznia duas espcies.Macucaua: tinamdeos da mata, principal-

    mente do gnero Crypturellus, mas tambmTinamus.

    Maguary:Ardea cocoi, famlia Ardeidae.

    Massarico: designao genrica para afamlia Charadriidae.Murucututu: corujas grandes do gnero

    Pulsatrix, famlia Strigidae.Mutum: gnero Crax, famlia Cracidae;

    trs espcies na Amaznia.Papagaio corica: ver Corica.Parau: papagaios, Psittacidae de tama-

    nho mdio.Parau-hy: Psittacidae do gnero Pionus

    (Pinto, 1938, p. 212, tem a leitura erradaparan-i).

    Pavo: termo aplicado a diversas avesvistosas; geralmente acompanhado de umdeterminativo (por exemplo, pavo-do-par).

    Pequi (= Ipequi):Heliornis fulica, fam-lia Heliornithidae.

    Periquitos: as espcies de Psittacidae depequeno tamanho, especialmente do gneroForpus.

    Picau: pomba grande, geralmenteColumba cayennensis, famlia Columbidae.

    Picapau: designao genrica para as aves

    da famlia Picidae e, na Amaznia, tambmDendrocolaptidae (pinica-pau).

    Piranha-uir: Tyrannus savanna, famliaTyrannidae, tesourinha (traduo literal donome: piranha tesoura, Tastevin, 1923b,p. 653).

    Quiqui: no identificado.Sahi: designao aplicada a espcies de

    pssaros pequenos de cor azul (Tastevin,1923c, p. 730), especialmente sanhaos, fa-mlia Thraupidae (Martius, 1867, p. 473,Thraupis sayaca).

    Saracura: designao geral das avespaludcolas da famlia Rallidae.

    Sigana (= cigana): Opisthocomus hoatzin,famlia Opisthocomidae.

    Suiriri: Tyrannus melancholicus, famliaTyrannidae.

    Surucu: designao coletiva das aves dafamlia Trogonidae.

    Suriti (= juriti): Leptotila verreauxi, fa-mlia Columbidae (na poca era freqente asubstituio de sporjoux: o rio Xeruini j foi

    Serevini).Tamburupar: aves do gnero Monasa,

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    famlia Bucconidae. Outras formas:tangurupar, tango-do-par, todas derivadas(diz Tastevin, 1923c, p. 736) de tunguri-par.

    Tauat: designao de vrios gavies es-curos da famlia Accipitridae.Tayassu-uir: Martius (1867, p. 478) diz

    Tajasu, Tayau-uira (guira) isto , avisDicotylis (Rio Branco) avis Cozzygus:Natterer. Aparentemente seria Coccyzusminor, famlia Cuculidae, que Natterer cole-tou no Par (Pinto, 1938, p. 170). Tastevin(1923c, p. 740) copia Martius, mas ajunta ave-pescadora. Esta espcie habita os manguezaise, como os outros anus, ocasionalmente pesca(Sick, 1984, p. 318). O problema que Ale-

    xandre, nesta fase da sua vida, no andou pertode nenhum manguezal. Possivelmente o nomese aplicasse, no interior, a outros cucos.

    Tucano: espcies grandes da famliaRamphastidae.

    Tuiuiu: Ja bi ru myct er ia , famliaCiconiidae.

    Uanamb (= Anamb): designao apli-cada a diversas formas da famlia Cotingidae,geralmente acompanhada de qualificativo(por exemplo, anamb-roxo).

    Uanambu-assu (= nambu guau):Crypturellus variegatus, famlia Tinamidae.

    Uarirama-assu: Ceryle torquata, famliaAlcedinidae, martim-pescador-grande,ariramba-au.

    Uir membu: Cephalopterus ornatus, fa-mlia Cotingidae (Pinto, 1944, uiramembi).

    Uir pag: Piaya cayana, famliaCuculidae, alma-de-gato (Pinto, 1944).

    Uir tat: passarinhos vistosos do gneroPhoenicircus, famlia Cotingidae (Pinto,1944).

    Uru: aves galiformes do gneroOdontophorus , famlia Phasianidae; duasespcies na Amaznia.

    Urubitinga-y: urubitinga, urubu branco,hoje, na Amaznia a despeito da freqenteatribuio na literatura a gavies grandes, ourubu-rei (Sarcoramphus papa), famliaCatarthidae. No sei a que viria o sufixo y,diminutivo.

    Urubu: as espcies dos gneros Coragypse Catarthes, famlia Catarthidae.

    Yaan (= jaan):Jacana jacana, fam-lia Jacanidae.

    Yereua (= jereba): urubu (q.v.s.).Yria: no identificada.

    MamferosAcutypuru: designao coletiva para osroedores da famlia Sciuridae (esquilos,caxixes, caxinguels, serelepes).

    Acutypuru pardo: diversas espcies deSciurus de pele avermelhada.

    Acutypuru preto: Sciurus do grupoaestuans.

    Acuti-yaua-ret: no identificado.Boto: ocorrem na Amaznia dois cetceos,

    Inia geoffrensis, famlia Platanistidae, boto-branco, boto-vermelho ou boto-malhado, e

    Sotalia fluviatilis, famlia Delphinidae, boto-preto ou tucuxi.

    Cayarara: Cebus albifrons, famliaCebidae.

    Cutynayas: provvel corruptela deacutiwaya, cotia-de-rabo,Myoprocta, fam-lia Dasyproctidae (Tastevin, 1923b, p. 641).

    Irara (macaco): Eira barbara, famliaMustelidae. Obviamente no um macaco,embora at hoje a confuso seja feita.

    Japu (= Uapu): espcies de

    Callicebus, famlia Cebidae; na Amazniaocorrem diversas.

    Jurupixuna: espcies do gnero Saimiri(mico-de-cheiro), famlia Cebidae, vriasespcies na Amaznia.

    Lontra: Lu tra lo ng ic au di s, famliaMustelidae.

    Macaco de boca preta: ver Jurupixuna.Macaco de prego ou itupuh: espcies de

    Cebus (trs na Amaznia), famlia Cebidae.Macaco Uyape: ver Japu.Maracaj: gatos pintados do gnero

    Leopardus, famlia Felidae, desde o pequenoL. tigrinus at a jaguatirica, ou maracaj-au,L. pardalis.

    Mucura: designao coletiva dos marsu-piais da famlia Didelphidae, especialmentedo gnero Didelphis; na Amaznia, D.marsupialis.

    Mucura-xixi: Philander opossum, fam-lia Didelphidae.

    Ona pequena: ou jovem dePanthera oncaou adulto de jaguatirica (Leopardus pardalis).

    Paca:Agouti paca, famlia Agoutidae.Parauacu: macacos do gnero Pithecia,

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    famlia Cebidae.Peixe-boi: Trichechus inunguis, famlia

    Trichechidae.

    Preguia: designao coletiva dosBradypodidae.

    Preguia de lato ou ahy-saui: ahy preguia; saui (sawiya) rato (Tastevin,1923c, pp. 691 e 732). A palavra lato pode-r ser um erro de leitura ou de imprensa porrato. O bicho no exatamenteidentificvel, com certeza, mas sugere-se umrato-de-espinho, roedor arbreo do gneroEchimys, famlia Echimyidae.

    Tamandu: Myrmecophaga tridactyla,famlia Myrmecophagidae.

    Tamanduahy: Cyclopes didactylus, fam-lia Myrmecophagidae.

    Tatu: designao coletiva da famliaDasypodidae (seis espcies na Amaznia).

    Yauara-ca-pera: provavelmente a iraraou papa-mel (Eira barbara, Mustelidae), ouseja, o cachorro (yauara) da caipora (caa-pera) do folclore indgena.

    3. SCULO XIX

    Os dois precursores, Marcgrave e Alexan-dre Rodrigues Ferreira, homens dos sculosXVII e XVIII, tm alto interesse histrico,mas tiveram pouco impacto cientfico. Estes comeou a ser sentido no primeiro quarteldo sculo XIX. A Zoologia fez nessa poca,dentro da nossa ptica, rpidos progressos,pela interao de dois mecanismos: acelera-o no conhecimento de faunas, levando tam-bm a uma conscientizao zoogeogrfica, eaperfeioamento da sistemtica, por meio de

    obras no estilo do Systema Naturae, cobrindode forma diagnstica, seja toda a Zoologia,seja uma classe ou ordem.

    O progresso no conhecimento de faunasobviamente se dava de duas maneiras. Porum lado, o simples acmulo de exemplaresnos grandes museus possibilitava melhoresrevises sistemticas. Por outro lado, a pu-blicao dos resultados de expedies ex-tensas e demoradas no s fornecia ricamatria-prima para revises, como facilita-va a identificao de materiais, melhorando

    o acervo dos museus e ampliando o acesso pesquisa em sistemtica.

    Estudaremos sob este ponto de vista cin-co grandes expedies que se realizaram noBrasil no sculo XIX: Spix e Martius,

    Maximilian zu Wied-Neuwied, JohannesNatterer e a misso austraca, Castelnau eDeville. Mencionaremos ainda duas expedi-es de pouca importncia zoolgica,Langsdorff e Agassiz.

    3.1. Spix e Martius

    A expedio de Spix e Martius (para umestudo um pouco mais detalhado, com itine-rrio, ver Vanzolini, 1981) foi, como dito, emparte uma conseqncia da invaso de Portu-gal pelos exrcitos napolenicos. A mudanada corte portuguesa para o Brasil (trazendojunto um volumoso e ativo corpo diplomti-co) tornou impossvel a poltica de fechamentodo pas aos estudiosos do mundo. Por exem-plo, Langsdorff, cnsul da Rssia, nesse ca-rter realizou sua abortada expedio. O epi-sdio fundamental, porm, foi o casamentodo prncipe D. Pedro com a arquiduquesaLeopoldina da ustria. No s trouxe ela noseu squito uma pondervel fora-tarefa de

    pesquisa biolgica, como tambm vieram, dearrasto, os dois inexcedveis naturalistasbvaros. Spix tinha 36 anos ao comear aviagem em 1817, Martius apenas 23. Viaja-ram ininterruptamente por trinta meses, se-guindo o itinerrio mais inteligente que sepossa imaginar.

    Um aspecto de viagem que no tem mere-cido ateno, e difcil atacar com os recur-sos de biblioteca do Brasil, que a leitura dolivro que relata a viagem (a Reise, Spix eMartius, 1823-36, 1938) indica que Martiushavia feito um eficiente estudo de consider-vel bibliografia, de natureza diversa, que haviana Europa sobre o Brasil.

    necessrio tambm ressaltar, como nocaso de Alexandre Rodrigues Ferreira, aconcomitncia de altos interesses cientficoscom questes mais mundanas, tais comoagropecuria, comrcio e, principalmente,minerao. AReise contm dentro de si umverdadeiro compndio de economia brasilei-ra no incio do sculo XIX.

    Spix e Martius comearam, como todos,pelos arredores do Rio de Janeiro (trecho

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    meira importncia das expedies pioneirasresidia na ampliao do conhecimento dasfaunas. No se estranhe, portanto, a insistn-cia em species novae nos ttulos dos livros de

    Spix: a constatao de uma realidade. Poresse tempo comea a afirmar-se a conscin-cia da inteireza das faunas e de suas relaesecolgicas e geogrficas, mas Spix neste as-pecto ainda pertence pr-Histria: o valorde seu trabalho residia, como ainda reside, naboa descrio e ilustrao das espcies e noregistro das localidades-tipo.

    Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45) Munique foi duramente bombardeada, eas notcias contemporneas (Lorenz Mller,

    in litt.) eram de que as colees estavam em

    grande parte perdidas. Mais tarde verificou-se que a situao era menos grave, e que muitosmateriais haviam sobrevivido, em Munique eem outros museus. Notcias detalhadas sodadas na obra em homenagem a Spix editadapor Fittkau (1983).

    3.1.1.1. Mamferos, Primates

    Os macacos so um dos grupos mais pre-cocemente conhecidos no Brasil: das 62 es-

    pcies reconhecidas hoje (Groves, 1993) 33,ou seja, mais de 50%, j eram conhecidas

    muito rico, alis, da Mata Atlntica), visitan-do especialmente a Fazenda Mandioca, deLangsdorff, na Serra da Estrela. Em seguida

    vieram para a provncia de So Paulo, ondepararam em Ipanema (prximo a Sorocaba),como todos os teutfonos, na fundio de ferrooperada por metalrgicos alemes. Da se-guiram para as minas de ouro e diamantes emMinas Gerais, atravessando a seguir a Bahiae cortando as caatingas para o norte, at Oeiras,ento capital do Piau. Terminaram o trechoem So Lus do Maranho, de onde seguiramembarcados para Belm, para iniciar umaltima fase, de extensa explorao da hilia,subindo o Amazonas at Tabatinga, o Japurat Araracoara, na Colmbia, e o Negro atBarcelos.

    Esse itinerrio deu-lhes a oportunidadede ver quase toda a diversidade ambiental doBrasil: mata atlntica, cerrado, caatinga ehilia. Deixaram de ver os pinheirais e aspradarias mistas do Rio Grande do Sul; tra-tando-se, porm, de faixas extratropicais demenor expresso geogrfica, essa lacuna noprejudicou a extraordinria sistematizaofeita por Martius das paisagens maiores do

    Brasil sistematizao que ainda constitui,na sua inteireza, a base dos conceitos corren-tes de domnios morfoclimticos (AbSber,1977; Seibert, 1983).

    Spix foi o responsvel pelos relatrios zoo-lgicos da viagem. Morreu em 1826, debilitadopelas molstias tropicais contradas na Amaz-nia, sem ver a obra completamente publicada:o fiel Martius encarregar-se-ia disso.

    3.1.1. As obras de Spix

    Spix publicou sobre mamferos: macacose morcegos (1823), sobre aves (1824a), sobreanfbios (1824b, 1840a) e, entre os rpteis,sobre quelnios (1824b, 1840b), crocodilianos(como lagartos) e lagartos (1825). As serpen-tes e anfisbenas foram descritas por JohannWagler (Spix, 1824c) e os peixes por LouisAgassiz (Spix, 1829), com parte das espciesespecificamente atribuda a Spix.

    Convm neste ponto explicitar os crit-rios aqui usados para avaliao da contribui-

    o dos viajantes ao progresso da Zoologiabrasileira. Como ficou dito, e obvio, a pri-

    Litografia

    aquarelada do li vro

    de Johann Bapt i ste

    von Spi x Simiarum

    et Vespertilionum

    Brasiliensium

    species novae...

    (M unique, 1823),

    Biblioteca

    do IEB- USP

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    quando da publicao do livro de Spix. fcilde compreender: so animais diurnos,arborcolas, gregrios, altamente consp-

    cuos. So visualmente orientados, o que tor-na fcil seu reconhecimento pelo homem, tam-bm um primata visualmente orientado. (mais difcil a sistemtica de animais orienta-dos pelo som, como os anuros, ou por senti-dos qumicos, como certos peixes.) O tama-nho dos exemplares e a boa resistncia daspeles dos smios facilitam a preparao, ain-da mais que os nativos de regies florestadascostumam ter prtica de coure-los.

    Cinco autores apenas eram responsveispelas 33 espcies de macacos ento conheci-das: Lineu (1758, 1766) com 10 espcies;Hoffmansegg (1807), com 3; EtienneGeoffroy Saint-Hilaire (1806, 1809a,b, 1812),com 10, Humboldt (1812) com 8; e Kuhl(1820), com 2 espcies.

    De acordo com as Regras Internacionaisde Nomenclatura Zoolgica, deve fazer parteda descrio de qualquer nova espcie a de-signao de um exemplar tipo. O termo infeliz, pois pode levar a crer que se trata deum exemplar que de alguma maneira

    tipifique a espcie. No se trata disso: otipo um exemplar que ancora o nome daespcie. Qualquer dvida a qualquer temposobre a aplicabilidade de um nome deve serresolvida por referncia ao tipo. Nos casosem que, no passado, a designao tenha sidoomitida, h mecanismos para designao su-pletiva. Os tipos so especialmente impor-tantes no caso de espcies antigas, sumriaou insuficientemente descritas, ou sem loca-lidade explcita.

    Kraft (1983) reviu os tipos restantes demacacos de Spix; infelizmente, baseou-sefundamentalmente, para atualizao dataxonomia, na lista de Cabrera (1958), que especialmente insegura no que diz respeito asubespcies de mamferos tropicais, assuntode que Cabrera no tinha experincia pesso-al. Revisando o material luz de literaturarecente (especialmente Groves, 1993), pode-mos dizer que Spix descreveu como novas 28espcies de macacos; citou 7 como de descri-o alheia, mas coletadas e reconhecidas por

    ele. Das 28 espcies descritas como novas, 8so hoje vlidas e 20 consideradas sinni-

    mos. No se pode atribuir esse alto nmero desinnimos a desconhecimento da literatura:as obras relevantes eram de amplo conheci-

    mento geral e os cientistas mantinham boasrelaes pessoais. A elevada sinonmia deveser antes atribuda a dificuldades intrnsecasdos grupos (variao sexual, ontogentica eresidual da colorao da pelagem) e falta deilustraes nas descries originais. Relati-vamente ao problema da variabilidade dasformas, Spix descreveu sob 4 nomes diferen-tes a espcie Cebus apella (L., 1758) e sobdois nomes Cebus albifrons (Humboldt,1812). At hoje, porm, no existe nenhumareviso suficiente de Cebus, gnero sobre oqual no h consenso (Groves, 1993).Adicionalmente, Spix descreveu Lagothrixlagothricha (Humboldt, 1812) como duasespcies novas, bem como Pithecia monachae Callicebus personatus (E. Geoffroy, 1812).Callicebuse Pitheciaso gneros difceis athoje;Lagothrixnem tanto.

    Pode-se resumir a contribuio de Spix primatologia neotropical dizendo-se que ajun-tou 8 espcies s 33 ento conhecidas, o quecontribuiu sensivelmente, pela qualidade de

    suas descries e ilustraes, para a melhoriado nvel da pesquisa.

    3.1.1.2. Mamferos, Chiroptera

    Os morcegos constituam um grupo dif-cil para o zologo do incio do sculo XIX.So animais voadores de vida noturna, dif-ceis de capturar antes do aparecimento dasmist nets: das 15 espcies coletadas por Spix,6 foram obtidas dentro de habitaes huma-nas. A taxidermia deforma bastante partesmoles dos morcegos importantes para a siste-mtica, tais como o focinho e as orelhas. Osexemplares taxidermizados so frgeis e so-frem na coleo (Lawrence e Genett, 1988).Acresce que um dos grupos em que oscaracteres externos e a fisionomia so menosteis identificao, os melhores caracteresresidindo no crnio e, principalmente, nadentio isso apenas comeava a ser perce-bido no tempo de Spix.

    Sob outro ponto de vista, muitas espcies

    de morcegos tm vagilidade extrema, migran-do por longas distncias (Eptesicus) ou ocu-

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    pando territrios muito grandes (Myotis).Estes fatos levam o zologo a erros, decor-rentes de ptica regional: julga serem novas

    espcies j anteriormente descritas de outrasreas, s vezes remotas. Na realidade, a siste-mtica dos morcegos neotropicais ainda estlonge da saturao, ocorrendo a todo instantedescrio de espcies novas e reajustes dasistemtica, tanto no nvel especfico quantono genrico.

    Segundo Koopman (1993), ocorrem noBrasil cerca de 120 espcies de quirpteros:28 j eram conhecidas ao tempo de Spix, quedescreveu como novas 9, das quais subsistem5: Tonatia bidens, Trachops cirrhosus,Diphylla ecaudata, Thyroptera tricolor ePromops nasutus. A reviso dos tipos de Spixpor Kraft (1983) nada ajunta ao dito acima.

    Alm das dificuldades inerentes ao gru-po, deve-se ainda relevar que a literatura so-bre morcegos era muito dispersa: as 28 esp-cies haviam sido descritas em 15 trabalhos,de variada natureza, por 11 autores. O nicoa descrever mais que Spix foi EtienneGeoffroy de Saint-Hilaire, que descreveu 10espcies em 4 trabalhos.

    3.1.1.3. Aves

    A sistemtica tradicional de aves difereda de todos os demais grupos de vertebrados(menos talvez da dos anfbios) pela falta decaracteres objetivos. baseada em peles semossos, e os caracteres importantes no soenumerveis ou (com exceo de algum rarobico ou tarso) mensurveis. Os gneros sodefinidos por consenso na realidade umacuriosidade para os zologos em geral o con-senso que existe na Ornitologia. H poucosestudos da estrutura geogrfica das assimchamadas subespcies reconhecidas: h queaceit-las na base da confiana.

    Estabelecidos estes caveats, podemos di-zer, grosseiramente, que ao tempo de Spix cer-ca de 30% eram conhecidos das aproximada-mente 2.400 formas de aves aceitas hoje para oBrasil. Haviam escrito, antes de Spix, autoresde amplo compasso: alm de Lineu, houveVieillot, Gmelin, Temminck, Boddaert, P. S.

    Mller, Latham e alguns outros de menor volu-me. No que segue baseio-me no artigo de

    Hellmayr (1906) sobre os tipos de Spix, atuali-zado na medida do possvel. A reviso dos tiposspixianos por Reichholf (1983) e a lacnica

    avaliao publicada na mesma obra por Sick(1983) pouco ajuntam histria que se podecolher da literatura geral, comeando com aprimeira reviso (Hellmayr, 1906) dos tipos.

    Spix ilustrou e descreveu 326 espcies deaves, uma das mais ponderveis contribuiesde qualquer tempo. Oitenta e nove formas eramanotadas como no sendo suas; s vezes a atri-buio explcita, s vezes precisamos recor-rer a Hellmayr (1906). Das 237 formas descri-tas como novas, temos informao segura so-bre 220, das quais 67 (30%) so hoje conside-radas vlidas e 153 (70%) caram na sinonmia(Sick, 1983). uma excelente porcentagempara a poca; o valor da contribuio reala-do pela qualidade da ilustrao.

    3.1.1.4. Rpteis e anfbios

    Houve um problema inicial com a cole-o de Spix ao regressar Europa (Vanzolini,1981): insinuaram-se nela trs espcies eu-ropias de serpentes, uma de anfisbendeo e

    uma de tartaruga. Todas foram descritascomo brasileiras e como novas, a tartarugapor Spix, as cobras e o anfisbendeo porWagler (uma delas duas vezes). Das 35 es-pcies de serpentes brasileiras realmentepresentes, cinco eram de outros autores, umacom proposta de nome novo. Das 34 esp-cies descritas por Wagler como novas 16eram vlidas, 4 eram as formas europias jmencionadas, 12 so consideradas sinni-mos e sobre 2 h dvidas. Ainda misturadocom as serpentes havia um gimnofiono, umaespcie de Mikan (q.v.i.), no explicitamen-te citada mas reconhecvel.

    Trinta e oito espcies de lagartos so alis-tadas por Spix, sendo 3 declaradamente deoutros autores. Das 35 que ele se atribui 11so vlidas (2 descritas 2 vezes cada) e asdemais sinnimas. Spix na realidade descre-veu 7 espcies duas vezes consecutivas, 1espcie trs vezes e uma espcie cinco vezes.

    Dos 4 jacars listados apenas um vlido:exatamente o jacar-au,Melanosuchus niger.

    Quanto aos sapos, 53 espcies esto alis-tadas, das quais 20 so realmente novas; as

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    gua doce Marinha

    Vlidas 25 21 46

    Sinnimas 14 15 29

    39 36 75

    ilustraes so de qualidade regular. Aquitambm Spix descreveu algumas formas maisde uma vez como novas: duas vezes (trs

    casos), quatro vezes (dois casos) e cinco ve-zes (um caso).De um modo geral, pode-se dizer que a

    contribuio herpetolgica de Spix eWagler, embora incluindo algumas esp-cies importantes, de qualidade apenas me-diana. Militam muito contra o no teremreconhecido espcies europias comuns eas mltiplas descries sinnimas de for-mas muito caractersticas: Iguana iguanarecebeu cinco nomes, Bufo marinus rece-beu quatro. O que realmente restou do seutrabalho foram as espcies protegidas pelanovidade da fauna.

    Os tipos remanescentes foram estudadospor Hoogmoed e Gruber (1983). Mais umavez lembro que as poucas novidades que re-sultam da reviso dos tipos de Spix testemu-nham a boa qualidade de suas descries; osnecessrios ajustes foram sendo feitos a seutempo, sem necessidade de recurso aos tipos.

    3.1.1.5. Peixes

    Como dito, as espcies novas de peixesso atribudas explicitamente a Agassiz ou aSpix 54 e 21 espcies respectivamente.Agassiz responsvel por 34 das 36 espciesmarinhas a primeira contribuio ao campono Brasil infelizmente sem dados de distri-buio geogrfica. Das espcies de gua doce,Spix descreveu 19 e Agassiz 20. Dez espci-es so de outros autores, mais ou menos cla-ramente citados, e sobre 8 no consegui in-formao suficiente.

    Terofal (1983) d uma lista das espciesdescritas por Spix e Agassiz, com as atribuiescorrentes. uma lista til, mas nada adicionaaos catlogos de Fowler (1941, 1948-54).

    Seria de esperar que o nmero de espciesvlidas fosse relativamente maior para guadoce que para o mar, dadas as possibilidadesde endemismos em bacias diversas. As esp-cies marinhas, ao contrrio, e especialmenteas pelgicas, tm no geral ampla distribuio,com a decorrente maior probabilidade de j

    haverem sido descritas de outras paragens.Isso no entanto no se d:

    O valor de 2 para esta tabela .0758,obviamente no significante: no h associa-o entre o ambiente das espcies e a propor-o de validez.

    A contribuio de Spix e Agassiz ictiologia mundial e brasileira no fcil ao

    leigo de julgar; os especialistas, contudo,consideram-na muito importante.

    3.1.1.6. Invertebrados

    A citada obra editada por Fittkau (1983)contm diversos interessantes captulos so-bre as colees de invertebrados feitas porSpix e Martius. Seu interesse para mim resideprincipalmente no fato de demonstrarem quea simples disponibilidade de materiais no suficiente para o progresso da pesquisa.

    indispensvel um certo grau de maturidade: adespeito das colees reunidas, nada foi feitona poca com respeito aos invertebrados quese compare ao estudo dos vertebrados.

    H uma interessante caracterstica da obrade Spix, que concorre com o dito na introdu-o deste trabalho, ou seja, que nenhum dosviajantes trouxe contribuio conceitual oumetodolgica Zoologia. Spix pertencia(Stresemann, 1951, p. 176; 1975, p. 175) escola idealista germnica da

    Naturphilosophie. Publicou trabalhos dentrodessa orientao, nenhum, porm, relaciona-do com a viagem ao Brasil: o trabalho decampo modera as fantasias do homem inteli-gente.

    3.2. Maximilian,Prncipe de Wied-Neuwied

    Maximilian Alexander Phillip, Prinz zuWied-Neuwied (Prinz Max para os colegaszologos), foi um nobre da Rennia que, aos

    32 anos de idade, terminadas as guerrasnapolenicas, trocou a carreira das armas pela

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    vida cientfica. Influenciado por Humboldt,como tantos outros, decidiu empreender umaexpedio ao Brasil, recm-aberto a pesqui-

    sadores estrangeiros.A expedio durou de 1815 a 1817. Sain-do do Rio de Janeiro, subiu ao longo da costaat Ilhus, onde cortou para o interior, nadireo de Vitria da Conquista, voltando aoRio atravs do estado de Minas Gerais. Entreo Rio de Janeiro e Vitria no Esprito Santocontou com a colaborao de Georg WilhelmFreyreiss e Friedrich Sellow, coletores pro-fissionais a soldo de vrios museus da Euro-pa, principalmente do de Berlim (Papavero,1971, p. 58).

    Wied coletou vertebrados terrestres epublicou sobre eles. Teve a particularidadede publicar muitas espcies novas no livroque escreveu sobre a viagem (Reise, 1820-21). No se trata de descries formais, po-rm de diagnoses curtas (nenhuma espcie,porm, duvidosa), enriquecidas pelo con-texto geogrfico e ecolgico. Entre a publi-cao daReise(1820-21) e os subseqentestrabalhos de Wied decorreram alguns anos,durante os quais outros autores, combinados

    (v.i.) ou no com Wied, publicaram diversasespcies do prncipe como novas. Assim,salvaram-se aquelas descritas na Reise,perderam-se as dasBeitraege (q.v.i.).

    Publicou tambm Wied (por exemplo,1820) alguns artigos nas revistas cientficasdo tempo. A massa estruturada das observa-es, porm, foi publicada de 1825 a 1833 emum livro de quatro volumes, Beitraege zurNaturgeschichte Brasiliens, uma das maisricas e mais agradveis obras zoolgicas ja-mais escritas sobre a Amrica do Sul. O livrofoi publicado parceladamente e acompanha-do por uma srie autnoma de estampas (1822-31), Abbildungen zur NaturgeschichteBrasiliens, algumas das quais contm a des-crio de espcies novas. Essas estampasconstituem um certo problema bibliogrfico:no so numeradas nem datadas. Sua seqn-cia s pode ser restabelecida acompanhandoas notcias e recenses da imprensa cientficacontempornea, especialmente a revistapublicada em Jena por Lorenz Oken, a famo-

    saIsis von Oken. Algumas das pranchas deWied, como dito, so acompanhadas por um

    texto, de desenvolvimento vrio, s vezescontendo informaes relevantes. Como sev, a bibliografia de Wied no simples. O

    presente artigo funda-se nasBeitraege, a obrade sntese.Abramos um parntese para dizer que essa

    viagem ao Brasil, o sonho dourado do Wiedmilitar, matou nele o zologo. Sua convivn-cia com os ndios do Esprito Santo e Bahiaacendeu uma insopitvel paixo antropolgi-ca. Assim que terminou a publicao dos re-sultados brasileiros, embarcou para os Esta-dos Unidos, onde realizou, de 1832 a 1834,uma longa e justamente famosa expedio decunho puramente etnogrfico. No voltou sregies tropicais e no voltou zoologia.

    Wied morreu aos 85 anos, em 1867, apa-rentemente lcido e ao corrente do movimen-to cientfico: pouco antes de morrer, prova-velmente prevendo que os materiais seriamvendidos aps a morte, preparou listas (coma sistemtica atualizada) de suas colees,que mantinha no castelo da famlia. Eu traba-lhei com o catlogo dos rpteis: a letra firmee legvel, e no se encontram erros.

    Quero comear a apreciao da influncia

    do prncipe por um aspecto de ordem geral,usualmente negligenciado. Ele foi um pionei-ro da zoogeografia ecolgica no mbitointracontinental. A Mata Atlntica estende-seda Paraba (cerca de 0730S) ao norte do RioGrande do Sul (cerca de 3030S): aproxima-damente 2.500 quilmetros, 23 graus de latitu-de. bvio que a temperatura deve ser o fatorpredominante na distribuio das espciesanimais, uma vez que a precipitao unifor-memente alta ( o que permite que exista mataatlntica). Nas Beitraege Wied ocupa-sefreqentemente dos limites latitudinais dasespcies. Diz, por exemplo (1825, p. 118) quea iguana no ultrapassa o paralelo de 14S, eque Enyalius catenatus(p. 136), outro lagarto, limitado pelo paralelo de 16S. No querodizer que ele tenha estudado sistematicamenteas distribuies, ou que tenha resolvido algu-ma questo corolgica maior. Apenas quedemonstrou clara conscincia de uma proble-mtica nova para o tempo, cuja apreenso ti-nha que ser muito dificultada pelo seu sistema

    de trabalho, viajando para a frente e pegandopoucos bichos.

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    Antes de analisar numericamente a con-tribuio de Wied faunstica do Brasil, faz-se necessria uma pequena digresso. No

    sei se o fato conhecido fora da esfera profis-sional, mas as todo-poderosas regras denomenclatura zoolgica, publicadas pelaInternational Commission on ZoologicalNomenclature (ltima edio 1985), no tmcontedo intelectual nenhum. Muitas vezes asua aplicao agride o senso esttico e o pr-prio bom senso dos pesquisadores sujeitos aelas. So, porm, indispensveis boa ordemda casa zoolgica. por isso que so univer-salmente adotadas, com resmungos e recla-maes (como estes), mas sem nunca ter ha-vido cisma ou dissidncia. Ao contrrio, nu-merosos zologos escrevem, sobre e em tor-no delas, trabalhos que talvez at julguem serde pesquisa.

    Um dos pilares bsicos das regras oprincpio de prioridade, que diz que, exceptisexcipiendis, o nico nome vlido de toda equalquer forma animal o mais antigo nomelegalmente aceitvel, proposto aps 1ode ja-neiro de 1758, data convencionada de publi-cao do Systema Naturae. Nomes so de fato

    essenciais comunicao; sua estabilidade fundamental, e toda a nfase da nomenclatu-ra (como o nome indica) recai sobre nomes,no sobre conceitos.

    O princpio de prioridade estabeleceu-seem 1842, em um primeiro conjunto de regrasde nomenclatura proposto pelo ornitlogoingls Hugh E. Strickland e adotado inicial-mente na Inglaterra. Foi o germe das presen-tes regras (Stresemann, 1951, p. 266; 1975,p. 263). At essa poca no havia consenso,e cada um agia de acordo com sua prpriacabea.

    A cabea do prncipe era caracteristica-mente liberal e generosa. Comunicava-seabertamente com colegas, trocava informa-es e exemplares e cada um publicava li-vremente. Este ltimo detalhe resultou emalguma confuso. Por exemplo, Wied certavez mandou a seu amigo, o ilustre BlasiusMerrem, de Marburg, que Wied muito res-peitava na sistemtica acima do nvel de es-pcie, um exemplar da cobra-coral venenosa

    da Mata Atlntica, sem dvida chamando suaateno sobre tratar-se de uma espcie nova

    e das mais lindas. Merrem concordou, e am-bos concordaram ainda que, desde que se tra-tava de uma cobra-coral, o nome corallinus

    caberia muito bem. Os dois publicaram: amesma espcie, com o mesmo nome, basea-do no mesmo exemplar, e quase na mesmadata (Roze, 1966). Um sinnimo-homnimo!Os amantes da nomenclatura vibram comesses casos; as pessoas sensatas aplicam comnaturalidade o princpio de prioridade(Merrem publicou um pouco antes e a esp-cie atribuda a ele) e no se impressionamdemais com a autoria nomenclatural. Todosconhecem a histria, todos sabem que o con-ceito original de Wied, que foi ele quemcoletou o tipo e reconheceu, no campo, a novaespcie. Alis, todos os pesquisadores dapoca, despreocupados de formalismoslegalistas, atribuam a espcie a Wied. Narealidade, sobre ela, dadas as particularida-des, no poderia haver dvida alguma a noser quanto prioridade.

    Quando, no comeo deste sculo, desen-cadeou-se na nomenclatura um forte movi-mento legalista em parte por ser realmentenecessrio, em parte pela muleta psicolgica

    que representa para os praticantes todosesses velhos casos foram resolvidos pelaComisso Internacional de NomenclaturaZoolgica, que publicou, com abundncia,suas decises. Os nomes foram atribudosestritamente de acordo com as regras, las-timando-se mas nada se fazendo em casoscomo o da cobra-coral.

    Dessa exata maneira perdeu Wied in-meras espcies novas, que havia comunicadoa amigos que estavam preparando obras de

    carter geral, nas quais ele achava que asnovidades deveriam ser includas. Pelos aca-sos das datas de publicao perdeu ele esp-cies para Merrem, para Schinz e paraTemminck espcies que ele mesmo depoispublicou como novas. No eram novas, em-bora sem dvida fossem dele, uma distinoque, j foi dito, no tempo no existia. Essassinonmias no representam incompetnciade Wied, apenas ngulos especiais de ummomento histrico. Por isso, no que segue,pensando na influncia de Wied, no presta-

    rei ateno autoria formal das espcies, mas,apenas, prioridade na obteno das cole-

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    es e no reconhecimento das formas: parteconceitual de preferncia formal.

    Considero uma vergonha que at hoje no

    se haja feito no Brasil um estudo estruturadoda obra zoolgica de Wied. Biografias nofaltam (Ratzel, 1885 a melhor; Amaral,1931; Baldus, 1941; Karl Viktor Prinz zuWied, 1954; Schaden, 1955; Rocha, 1971;Hartmann, 1975; Cascudo, 1977). Quanto zoologia, porm, h apenas trs trabalhos: asrevises dos tipos de aves, por Allen (1889),dos tipos de mamferos, por Avila-Pires(1965) e dos tipos de rpteis e anfbios, porVanzolini e Myers (em publicao). As esp-cies descritas naReise, especialmente as deaves, foram identificadas e brevemente co-mentadas por Pinto na edio brasileira (1940)da obra. Uma boa anlise dasBeitraege, comsua imensa riqueza, porm, ainda devida.Para este artigo tive que usar ampla e dispersaliteratura e, na realidade, no me satisfiz.

    O itinerrio de Wied foi analisado porBokermann (1957). As lacunas desse traba-lho foram na maior parte supridas porVanzolini (1992).

    Wied passou algum tempo nas caatingas

    da Bahia e nos campos gerais (cerrados) deMinas Gerais, mas a maior parte de sua ativi-dade desenvolveu-se na Mata Atlntica, e estadeve preponderar na avaliao do seu impac-to cientfico.

    3.2.1. Mamferos

    Na rea da Mata Atlntica onde Wied co-letou ocorrem cerca de 110 espcies de mam-feros. A sistemtica de quase todos os grupos firme, restando dvidas (poucas) quanto amorcegos e (muitas) quanto a ratos-do-mato(famlia Muridae, subfamlia Sigmodontinae).Excetuando os ratos (de que Wied descreveuuma espcie importante, Wiedomyspyrrhorhinus) so relevantes cerca de 80 esp-cies, das quais ele descreveu 58, o que mostraa qualidade do seu trabalho faunstico; deve-se lembrar que o nico instrumento de coletaera a espingarda de carregar pela boca. Das 27espcies cujo primeiro conhecimento Wiedatribui a si mesmo, 18 so vlidas: 9 so atri-

    budas formalmente a ele, 6 foram perdidascomo comentado acima, e 3 receberam dele

    nomes pr-ocupados. (Como a correspondn-cia entre nome e espcie, de acordo com asregras, deve ser biunvoca, ou seja, um e um

    s nome para cada espcie, um nome utilizadoinadvertidamente pela segunda vez no mesmognero, dito homnimo, deve ser automati-camente substitudo, a autoria da espcie pas-sando para o autor da substituio: outramaneira de perder uma espcie.)

    Nove formas descritas por Wied comonovas eram sinnimos puros, isto , ele notinha conhecimento de que tivessem sidoanteriormente descritas e nomeadas, ou co-meteu enganos de julgamento sobre o valorde diferenas percebidas. Como de costume,Cebus apella aparece 4 vezes; outras 3 esp-cies aparecem com 2 sinnimos cada; socasos (Callicebus personatus eNasua nasua)que s foram resolvidos recentemente. Restacomo engano puro o caso de 2 nomes paraNoctilio leporinus.

    3.2.2. Aves

    Vimos que Wied foi bom mastozologo;veremos abaixo que se deu bem na

    Herpetologia. Seu melhor campo de trabalhofoi, porm, a Ornitologia.

    Joel Asaph Allen (1889), na sua revisodos tipos de aves de Wied, conservados des-de 1870 no American Museum of NaturalHistory, em Nova York, diz:

    Maximilian, for the time in which he livedand worked, was an excellentornithologist, combining ample fieldexperience with a good technicalknowledge of his subject. He not only tookcareful measurements, and notes of thecolor of the eyes, bill and feet, etc., fromthe freshly-killed bird, but his publisheddescriptions, in respect to minuteness ofdetail and the careful discrimination ofnice points, are not excelled, and rarelyequaled, in our best modern works.

    Os volumes de aves dasBeitraegecons-tituem um dos mais completos e equilibradoslevantamentos faunsticos jamais feitos. O

    nvel tcnico superior; alm dos aspectoscitados por Allen, que so pontos relevantes

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    para a Sistemtica, h uma riqueza de obser-vaes em outros campos. Sobre a biologiadas espcies so citados dados de reprodu-

    o, contedo estomacal, canto (expresso nopentagrama), etc. No se trata de achadosocasionais, mas de uma filosofia de trabalho:por exemplo, Wied s vezes lamenta no terencontrado o ninho de uma determinada es-pcie, apesar de t-lo buscado. A nica coisade carter espordico so notas anatmicas,obviamente eventuais. Analisaremos portan-to tambm a contribuio de Wied preferen-cialmente sob o ponto de vista da faunstica.

    A sistemtica de aves ainda est em evo-luo no mbito de famlia e gnero. Adoteipara este estudo um esquema relativamenteconservador, que me permite usar sem gran-des traumatismos os catlogos de Pinto (1938,1944, 1978) e de Schauensee (1966). Ocupo-me apenas das aves continentais, excluindoas marinhas (sem significado regional), dasquais Wied tratou 14 espcies.

    Dentro desse esquema, ocorrem na regiotrabalhada por ele 65 famlias de aves. Des-sas deixou de coletar representantes de 4:Colymbidae, Oxyruncidae, Cyclarhidae e

    Compsothlypidae.As 61 famlias coletadas por Wied variam

    em nmero de espcies presentes na regio, des-de muitas famlias com apenas uma espcie, atTyrannidae com 59. Fiz uma regresso, tomandocomo varivel independente (x) o nmero deespcies de cada famlia, e como varivel depen-dente (y) o nmero de espcies daquela famliacoletadas por Wied. Se a amostragem fosse per-feita, cadayseria igual ao correspondentex, eteramos uma linha reta passando pela origem(ada equao da reta, y = a + bx, igual a zero),com coeficiente de regresso bigual a 1 e coe-ficiente de determinao, r2, tambm igual a 1.Obtive uma reta, passando pela origem (a =.754 + ou .888), mas com coeficiente de re-gresso (b = .589 + ou .0263) significantementemenor que 1.0. O coeficiente de determinao,r2= .8948, muito bom. Como se v pelo grfi-co, duas famlias de bom porte numrico tive-ram representao completa, Accipitridae (21espcies) e Psittacidae (19 espcies). Uma fa-mlia, Trochilidae, mostrou o maior dficit (12

    sobre 35).Esses dados esto de acordo com as expec-

    tativas. O coeficiente de regresso menor que1 indica que, quanto mais espcies contenha afamlia, menor a probabilidade de ser comple-

    tamente representada, o que intuitivo. Asfamlias de melhor amostragem (Accipitridaee Psittacidae) so representadas por aves cons-pcuas, grandes e bem conhecidas dos caado-res regionais. Os beija-flores so na realidadedifceis de coletar, especialmente com espin-garda de carregar pela boca.

    Passando ao nvel de espcie, Wied des-creveu nasBeitraege 444, das quais 63 (14%)das caatingas e campos da Bahia e de Minas.Incluiu portanto 381 espcies da Mata Atln-tica. O nmero mximo aproximado para area seria de 500: ele obteve mais que 3/4 dafauna regional um resultado excelente.

    Na Reise e nasBeitraege so propostascomo novas 125 espcies, quase um tero dototal estudado. Dessas mantm-se como vli-das 58; 59 so sinnimos claros; 8 no soidentificveis, principalmente por se teremperdido os tipos (Allen, 1889).

    Finalmente, consideremos o aspecto dassinonmias mltiplas, ou seja, o insucesso noreconhecimento de espcies, com a conse-

    qente atribuio de mais de um nome a cadauma. Este um indicador seguro da compe-tncia do zologo, embora a competncia deum mesmo indivduo possa variar de grupopara grupo. J tivemos ocasio de ver, porexemplo, quanto se iludiram os zologos, detodos os tempos, com a variao de pelagemdo macaco-prego, Cebus apella. No caso deWied, pode-se aprofundar um pouco mais aanlise, com base nos dados de Allen (1889)sobre os tipos sobreviventes.

    Sete vezes descreveu Wied a mesma es-pcie de ave sob 2 nomes, nenhuma sob 3 oumais. Em 3 dos 7 casos foi trado por fases deplumagem ou por mudanas ontogenticas;em 1 caso tratava-se de um albino; em 1 casoo problema era de dimorfismo sexual. Enga-no puro e simples ocorreu em 2 casos. Sobre444 espcies, umaperformanceadmirvel: oque se chama um sistemata nato.

    3.2.3. Rpteis

    Ocorrem quatro espcies de tartarugasmarinhas nas costas do Brasil. Wied alista as

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    quatro, mas comete um engano: sua Cheloniamydas Caretta caretta, como se pode ver nadescrio de uma bela gravura naReise(Wied

    de roupa social e cartola, olhando a tartarugadesovar) e pelo fato de que C. mydas nodesova no Brasil. As outras trs espcies es-to corretas.

    Quanto aos cgados (Chelidae) Wied in-clu