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VOZES DA TERRA ALBERTO SALGADO HARRES Projeto de Graduação apresentado ao Curso de Artes Visuais Escultura pela Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Floriano Romano Rio de Janeiro / RJ Dezembro de 2018

VOZES DA TERRA

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VOZES DA TERRA

ALBERTO SALGADO HARRES

Projeto de Graduaccedilatildeo apresentado ao Curso de Artes Visuais Escultura pela Escola de

Belas Artes Universidade Federal do Rio de Janeiro

Orientador Floriano Romano

Rio de Janeiro RJ

Dezembro de 2018

Sumaacuterio 1 Resumo

2 Primeiro experimento

3 AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

4 O povo Pankararu

5 A Residecircncia

6 Exposiccedilatildeo

7 Miolo de Pote

8 Conclusatildeo

9 Agradecimentos

10 Bibliografia

Resumo

Vozes da Terra eacute um experimecircnto artiacutestico em curso que busca conectar a tecnologia

ancestral da ceracircmica indiacutegena com dispositivos sonoro-poeacuteticos Iniciado no atelier de

ceracircmica da UFRJ desdobrou-se para uma residecircncia artiacutestica numa aldeia indiacutegena

da etnia Pankararu atraveacutes do projeto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo e teve como resultado

final uma exposiccedilatildeo no MAM de SalvadorBA Esse texto busca descrever o processo

artiacutestico envolvendo todas as etapas de criaccedilatildeo e contextualizar o artefato poeacutetico

destacando seu aspecto poliacutetico-social para a memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

Primeiro experimento

Os primeiros esboccedilos e ideias para o que viria a ser o projeto Vozes da Terra surgem

no final de 2017 quando realizava uma pesquisa em dispositivos poeacutetico-sonoros

Nesse periacuteodo rondava na minha cabeccedila uma ideia de uma maacutequina esquizofrecircnica

que escutasse o entorno e o repetisse sem parar somando vozes ateacute o barulho

completo

A ideia dessa maacutequina foi caminhando para se tornar realidade No decorrer da

disciplina de ceracircmica da professora Kaacutetia Gorini na UFRJ-EBA com a intenccedilatildeo de

fazer um pote de ceracircmica veio-me em mente um dispositivo eletrocircnico sonoro

integrado ao pote talvez ele pudesse ser essa lsquocacircmara de ecorsquo que havia antes

vislumbrado Durante a modelagem do barro a Prof Kaacutetia Gorini mostrou-me um viacutedeo

que acompanhava uma indiacutegena na produccedilatildeo do artesanato de ceracircmica desde a

retirada do barro a sua preparaccedilatildeo modelagem secagem ateacute a queima A partir

dessa referecircncia tive o insight de conectar a tradiccedilatildeo da oralidade (caracteriacutestica dos

indiacutegenas brasileiros) com a proacutepria ceracircmica indiacutegena num dispositivo sonoro de

ecos Ao refletir acerca da fusatildeo entre esses fatores comecei a abordar as seguintes

questotildees como poderia um dispositivo eletrocircnico incorporar a dinacircmica da oralidade

subjetiva no seu proacuteprio procedimento De que forma eacute possiacutevel integrar a tecnologia

ancestral da ceracircmica com maacutequinas binaacuterias maacutequinas de som

Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que

tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar

como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de

escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem

novamente reproduzidas

O Protoacutetipo

Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as

necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e

reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador

um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora

dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro

pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave

programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e

alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote

Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades

encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina

um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma

entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de

threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio

tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se

apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias

para esse dispositivo

A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado

abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV

O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado

no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um

alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote

Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o

uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para

projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi

acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do

dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado

fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone

Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se

obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a

voz projetada dentro dele

Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor

AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma

chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do

Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha

como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas

A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no

coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas

uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como

LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios

convidados [ref]

Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no

ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a

tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais

milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica

ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto

perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de

ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no

projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva

Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o

desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento

social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no

projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde

2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1

1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica

natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o

eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua

experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num

documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo

iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse

experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam

tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de

maneira potente

Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua

produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia

Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as

especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos

seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees

Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca

Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto

com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de

referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia

Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas

de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas

Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da

cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da

ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos

eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas

A proposta enviada foi entatildeo a seguinte

A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que

possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este

httpssimbinoisetumblrcom

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 2: VOZES DA TERRA

Sumaacuterio 1 Resumo

2 Primeiro experimento

3 AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

4 O povo Pankararu

5 A Residecircncia

6 Exposiccedilatildeo

7 Miolo de Pote

8 Conclusatildeo

9 Agradecimentos

10 Bibliografia

Resumo

Vozes da Terra eacute um experimecircnto artiacutestico em curso que busca conectar a tecnologia

ancestral da ceracircmica indiacutegena com dispositivos sonoro-poeacuteticos Iniciado no atelier de

ceracircmica da UFRJ desdobrou-se para uma residecircncia artiacutestica numa aldeia indiacutegena

da etnia Pankararu atraveacutes do projeto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo e teve como resultado

final uma exposiccedilatildeo no MAM de SalvadorBA Esse texto busca descrever o processo

artiacutestico envolvendo todas as etapas de criaccedilatildeo e contextualizar o artefato poeacutetico

destacando seu aspecto poliacutetico-social para a memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

Primeiro experimento

Os primeiros esboccedilos e ideias para o que viria a ser o projeto Vozes da Terra surgem

no final de 2017 quando realizava uma pesquisa em dispositivos poeacutetico-sonoros

Nesse periacuteodo rondava na minha cabeccedila uma ideia de uma maacutequina esquizofrecircnica

que escutasse o entorno e o repetisse sem parar somando vozes ateacute o barulho

completo

A ideia dessa maacutequina foi caminhando para se tornar realidade No decorrer da

disciplina de ceracircmica da professora Kaacutetia Gorini na UFRJ-EBA com a intenccedilatildeo de

fazer um pote de ceracircmica veio-me em mente um dispositivo eletrocircnico sonoro

integrado ao pote talvez ele pudesse ser essa lsquocacircmara de ecorsquo que havia antes

vislumbrado Durante a modelagem do barro a Prof Kaacutetia Gorini mostrou-me um viacutedeo

que acompanhava uma indiacutegena na produccedilatildeo do artesanato de ceracircmica desde a

retirada do barro a sua preparaccedilatildeo modelagem secagem ateacute a queima A partir

dessa referecircncia tive o insight de conectar a tradiccedilatildeo da oralidade (caracteriacutestica dos

indiacutegenas brasileiros) com a proacutepria ceracircmica indiacutegena num dispositivo sonoro de

ecos Ao refletir acerca da fusatildeo entre esses fatores comecei a abordar as seguintes

questotildees como poderia um dispositivo eletrocircnico incorporar a dinacircmica da oralidade

subjetiva no seu proacuteprio procedimento De que forma eacute possiacutevel integrar a tecnologia

ancestral da ceracircmica com maacutequinas binaacuterias maacutequinas de som

Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que

tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar

como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de

escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem

novamente reproduzidas

O Protoacutetipo

Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as

necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e

reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador

um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora

dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro

pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave

programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e

alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote

Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades

encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina

um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma

entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de

threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio

tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se

apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias

para esse dispositivo

A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado

abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV

O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado

no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um

alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote

Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o

uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para

projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi

acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do

dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado

fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone

Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se

obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a

voz projetada dentro dele

Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor

AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma

chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do

Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha

como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas

A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no

coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas

uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como

LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios

convidados [ref]

Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no

ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a

tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais

milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica

ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto

perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de

ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no

projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva

Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o

desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento

social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no

projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde

2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1

1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica

natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o

eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua

experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num

documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo

iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse

experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam

tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de

maneira potente

Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua

produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia

Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as

especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos

seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees

Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca

Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto

com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de

referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia

Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas

de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas

Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da

cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da

ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos

eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas

A proposta enviada foi entatildeo a seguinte

A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que

possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este

httpssimbinoisetumblrcom

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

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+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 3: VOZES DA TERRA

Resumo

Vozes da Terra eacute um experimecircnto artiacutestico em curso que busca conectar a tecnologia

ancestral da ceracircmica indiacutegena com dispositivos sonoro-poeacuteticos Iniciado no atelier de

ceracircmica da UFRJ desdobrou-se para uma residecircncia artiacutestica numa aldeia indiacutegena

da etnia Pankararu atraveacutes do projeto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo e teve como resultado

final uma exposiccedilatildeo no MAM de SalvadorBA Esse texto busca descrever o processo

artiacutestico envolvendo todas as etapas de criaccedilatildeo e contextualizar o artefato poeacutetico

destacando seu aspecto poliacutetico-social para a memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

Primeiro experimento

Os primeiros esboccedilos e ideias para o que viria a ser o projeto Vozes da Terra surgem

no final de 2017 quando realizava uma pesquisa em dispositivos poeacutetico-sonoros

Nesse periacuteodo rondava na minha cabeccedila uma ideia de uma maacutequina esquizofrecircnica

que escutasse o entorno e o repetisse sem parar somando vozes ateacute o barulho

completo

A ideia dessa maacutequina foi caminhando para se tornar realidade No decorrer da

disciplina de ceracircmica da professora Kaacutetia Gorini na UFRJ-EBA com a intenccedilatildeo de

fazer um pote de ceracircmica veio-me em mente um dispositivo eletrocircnico sonoro

integrado ao pote talvez ele pudesse ser essa lsquocacircmara de ecorsquo que havia antes

vislumbrado Durante a modelagem do barro a Prof Kaacutetia Gorini mostrou-me um viacutedeo

que acompanhava uma indiacutegena na produccedilatildeo do artesanato de ceracircmica desde a

retirada do barro a sua preparaccedilatildeo modelagem secagem ateacute a queima A partir

dessa referecircncia tive o insight de conectar a tradiccedilatildeo da oralidade (caracteriacutestica dos

indiacutegenas brasileiros) com a proacutepria ceracircmica indiacutegena num dispositivo sonoro de

ecos Ao refletir acerca da fusatildeo entre esses fatores comecei a abordar as seguintes

questotildees como poderia um dispositivo eletrocircnico incorporar a dinacircmica da oralidade

subjetiva no seu proacuteprio procedimento De que forma eacute possiacutevel integrar a tecnologia

ancestral da ceracircmica com maacutequinas binaacuterias maacutequinas de som

Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que

tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar

como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de

escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem

novamente reproduzidas

O Protoacutetipo

Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as

necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e

reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador

um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora

dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro

pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave

programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e

alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote

Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades

encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina

um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma

entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de

threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio

tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se

apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias

para esse dispositivo

A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado

abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV

O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado

no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um

alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote

Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o

uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para

projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi

acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do

dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado

fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone

Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se

obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a

voz projetada dentro dele

Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor

AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma

chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do

Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha

como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas

A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no

coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas

uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como

LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios

convidados [ref]

Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no

ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a

tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais

milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica

ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto

perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de

ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no

projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva

Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o

desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento

social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no

projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde

2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1

1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica

natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o

eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua

experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num

documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo

iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse

experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam

tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de

maneira potente

Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua

produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia

Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as

especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos

seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees

Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca

Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto

com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de

referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia

Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas

de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas

Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da

cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da

ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos

eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas

A proposta enviada foi entatildeo a seguinte

A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que

possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este

httpssimbinoisetumblrcom

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

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ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 4: VOZES DA TERRA

Primeiro experimento

Os primeiros esboccedilos e ideias para o que viria a ser o projeto Vozes da Terra surgem

no final de 2017 quando realizava uma pesquisa em dispositivos poeacutetico-sonoros

Nesse periacuteodo rondava na minha cabeccedila uma ideia de uma maacutequina esquizofrecircnica

que escutasse o entorno e o repetisse sem parar somando vozes ateacute o barulho

completo

A ideia dessa maacutequina foi caminhando para se tornar realidade No decorrer da

disciplina de ceracircmica da professora Kaacutetia Gorini na UFRJ-EBA com a intenccedilatildeo de

fazer um pote de ceracircmica veio-me em mente um dispositivo eletrocircnico sonoro

integrado ao pote talvez ele pudesse ser essa lsquocacircmara de ecorsquo que havia antes

vislumbrado Durante a modelagem do barro a Prof Kaacutetia Gorini mostrou-me um viacutedeo

que acompanhava uma indiacutegena na produccedilatildeo do artesanato de ceracircmica desde a

retirada do barro a sua preparaccedilatildeo modelagem secagem ateacute a queima A partir

dessa referecircncia tive o insight de conectar a tradiccedilatildeo da oralidade (caracteriacutestica dos

indiacutegenas brasileiros) com a proacutepria ceracircmica indiacutegena num dispositivo sonoro de

ecos Ao refletir acerca da fusatildeo entre esses fatores comecei a abordar as seguintes

questotildees como poderia um dispositivo eletrocircnico incorporar a dinacircmica da oralidade

subjetiva no seu proacuteprio procedimento De que forma eacute possiacutevel integrar a tecnologia

ancestral da ceracircmica com maacutequinas binaacuterias maacutequinas de som

Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que

tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar

como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de

escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem

novamente reproduzidas

O Protoacutetipo

Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as

necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e

reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador

um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora

dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro

pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave

programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e

alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote

Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades

encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina

um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma

entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de

threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio

tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se

apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias

para esse dispositivo

A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado

abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV

O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado

no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um

alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote

Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o

uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para

projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi

acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do

dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado

fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone

Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se

obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a

voz projetada dentro dele

Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor

AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma

chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do

Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha

como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas

A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no

coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas

uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como

LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios

convidados [ref]

Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no

ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a

tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais

milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica

ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto

perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de

ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no

projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva

Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o

desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento

social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no

projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde

2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1

1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica

natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o

eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua

experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num

documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo

iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse

experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam

tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de

maneira potente

Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua

produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia

Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as

especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos

seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees

Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca

Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto

com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de

referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia

Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas

de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas

Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da

cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da

ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos

eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas

A proposta enviada foi entatildeo a seguinte

A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que

possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este

httpssimbinoisetumblrcom

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

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adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

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as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

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pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 5: VOZES DA TERRA

Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que

tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar

como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de

escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem

novamente reproduzidas

O Protoacutetipo

Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as

necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e

reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador

um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora

dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro

pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave

programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e

alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote

Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades

encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina

um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma

entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de

threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio

tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se

apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias

para esse dispositivo

A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado

abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV

O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado

no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um

alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote

Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o

uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para

projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi

acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do

dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado

fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone

Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se

obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a

voz projetada dentro dele

Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor

AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma

chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do

Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha

como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas

A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no

coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas

uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como

LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios

convidados [ref]

Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no

ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a

tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais

milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica

ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto

perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de

ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no

projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva

Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o

desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento

social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no

projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde

2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1

1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica

natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o

eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua

experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num

documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo

iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse

experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam

tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de

maneira potente

Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua

produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia

Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as

especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos

seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees

Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca

Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto

com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de

referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia

Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas

de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas

Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da

cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da

ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos

eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas

A proposta enviada foi entatildeo a seguinte

A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que

possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este

httpssimbinoisetumblrcom

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 6: VOZES DA TERRA

threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio

tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se

apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias

para esse dispositivo

A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado

abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV

O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado

no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um

alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote

Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o

uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para

projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi

acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do

dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado

fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone

Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se

obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a

voz projetada dentro dele

Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor

AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma

chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do

Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha

como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas

A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no

coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas

uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como

LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios

convidados [ref]

Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no

ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a

tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais

milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica

ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto

perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de

ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no

projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva

Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o

desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento

social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no

projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde

2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1

1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica

natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o

eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua

experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num

documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo

iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse

experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam

tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de

maneira potente

Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua

produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia

Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as

especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos

seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees

Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca

Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto

com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de

referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia

Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas

de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas

Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da

cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da

ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos

eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas

A proposta enviada foi entatildeo a seguinte

A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que

possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este

httpssimbinoisetumblrcom

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

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ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 7: VOZES DA TERRA

dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado

fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone

Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se

obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a

voz projetada dentro dele

Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor

AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma

chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do

Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha

como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas

A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no

coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas

uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como

LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios

convidados [ref]

Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no

ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a

tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais

milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica

ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto

perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de

ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no

projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva

Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o

desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento

social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no

projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde

2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1

1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica

natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o

eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua

experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num

documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo

iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse

experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam

tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de

maneira potente

Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua

produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia

Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as

especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos

seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees

Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca

Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto

com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de

referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia

Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas

de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas

Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da

cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da

ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos

eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas

A proposta enviada foi entatildeo a seguinte

A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que

possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este

httpssimbinoisetumblrcom

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 8: VOZES DA TERRA

AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena

Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma

chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do

Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha

como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas

A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no

coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas

uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como

LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios

convidados [ref]

Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no

ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a

tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais

milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica

ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto

perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de

ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no

projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva

Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o

desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento

social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no

projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde

2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1

1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica

natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o

eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua

experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num

documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo

iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse

experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam

tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de

maneira potente

Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua

produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia

Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as

especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos

seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees

Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca

Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto

com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de

referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia

Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas

de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas

Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da

cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da

ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos

eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas

A proposta enviada foi entatildeo a seguinte

A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que

possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este

httpssimbinoisetumblrcom

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

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httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

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8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 9: VOZES DA TERRA

natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o

eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua

experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num

documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo

iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse

experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam

tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de

maneira potente

Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua

produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia

Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as

especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos

seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees

Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca

Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto

com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de

referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia

Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas

de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas

Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da

cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da

ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos

eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas

A proposta enviada foi entatildeo a seguinte

A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que

possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este

httpssimbinoisetumblrcom

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

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ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 10: VOZES DA TERRA

artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a

tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento

de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry

pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o

conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute

acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas

Pankararu

Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia

poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias

por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem

fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um

banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo

e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas

tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e

tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena

Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de

ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em

performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e

espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus

preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual

de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente

replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para

realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde

Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte

Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente

Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia

pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia

Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em

Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a

associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e

mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

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ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 11: VOZES DA TERRA

O Povo Pankararu

Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado

mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais

sobre o povo Pankararu

A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no

sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste

com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin

Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e

intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo

Francisco em Pernambuco [1]

Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se

deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos

portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees

dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da

regiatildeo para o catolicismo

Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em

direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos

Padresrdquo

Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu

acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada

pelo entatildeo Imperador Pedro II

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 12: VOZES DA TERRA

Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste

com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os

primeiros contatos ateacute agora

Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo

como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita

uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees

dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo

dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das

famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar

Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor

A Ceracircmica Pankararu

A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como

elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a

comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de

ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual

Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 13: VOZES DA TERRA

vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas

vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica

dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da

populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da

produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a

tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para

que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna

relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a

manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do

artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva

[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

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+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 14: VOZES DA TERRA

A Residecircncia

A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos

Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na

casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei

na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas

duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo

indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual

Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees

da cultura pankararu

Dia 1

Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me

levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos

pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os

conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a

problemaacutetica decorrente disso

Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua

famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras

figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando

Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia

Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena

aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas

Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto

irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que

pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem

locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 15: VOZES DA TERRA

Dia 2

Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a

ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote

especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista

com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia

aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas

palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica

vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a

forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender

o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu

Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito

para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o

Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco

na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o

Raspberry

Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto

dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e

depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito

Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute

sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda

alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para

seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

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as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

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ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 16: VOZES DA TERRA

Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento

Fotografia de Ilana Majerowicz

Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute

Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos

documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua

luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia

ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote

natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa

naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote

pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo

indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no

Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns

testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara

qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira

criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

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2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

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ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

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dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 17: VOZES DA TERRA

Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor

Dia 3

No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac

produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles

haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia

Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas

viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas

Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde

ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas

tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro

lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa

tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e

ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos

noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 18: VOZES DA TERRA

mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia

mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu

As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo

liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu

toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem

vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio

tupinambaacutersquo esse simrdquo

A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio

das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso

das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A

cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e

antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria

expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir

da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo

iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e

a ldquoinduacutestria culturalrdquo

Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de

transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de

Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30

recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu

Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos

importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas

pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos

iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute

Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo

de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas

por essas flautas [3]

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

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7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

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9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

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ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 19: VOZES DA TERRA

Dia 4

A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a

perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre

a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos

Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente

pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante

Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos

encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada

devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e

esposas no dia anterior da retirada

Fernando sobre os toantes

ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados

noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados

que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem

diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais

velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu

dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada

toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um

pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o

praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam

lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa

memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele

vem ensinarrdquo

A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do

sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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6 A study on Aristoxenus acoustic urns

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7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

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8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

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ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 20: VOZES DA TERRA

como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os

encantados

Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras

Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando

era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos

Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz

Dia 5

Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo

nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

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ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 21: VOZES DA TERRA

Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo

Fotografia do autor

Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que

atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e

revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus

poemas para o dispositivo

A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os

pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se

repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que

segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura

destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em

detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu

somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos

mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse

ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos

debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e

sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

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nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

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ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 22: VOZES DA TERRA

vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que

manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade

desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura

Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas

externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em

seu entorno

Dia 6

No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso

projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana

antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois

queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do

dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a

uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico

Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa

de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na

casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma

entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a

tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo

que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se

do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia

de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de

Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo

consideradas as melhores regiatildeo

Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone

e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma

mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

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ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 23: VOZES DA TERRA

com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes

espalhados em difentes lugares longe de Pankararu

Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana

Majerowicz

Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia

que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz

de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos

imemoriais

Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita

Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 24: VOZES DA TERRA

Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos

uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente

presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da

cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem

diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma

mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees

metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro

que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem

era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de

ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto

haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc

Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da

sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos

Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou

claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o

dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos

esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos

um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de

que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela

aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus

remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu

somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo

como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo

da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita

da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela

cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta

Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

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ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 25: VOZES DA TERRA

assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira

Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles

pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa

mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram

esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que

haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria

a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as

vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos

imemoriais

Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca

havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira

vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute

justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para

cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do

canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os

pankararus

Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura

pankararu

ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a

nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender

que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no

sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente

possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem

neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses

cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a

memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes

aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 26: VOZES DA TERRA

Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da

direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz

Dia 7

No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o

experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a

predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato

com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote

mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia

de falar com pote

Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 27: VOZES DA TERRA

Dia 8

A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num

acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e

indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e

outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio

certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares

para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo

muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica

Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees

estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele

mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por

completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos

presentes nesse experimento

Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz

Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de

aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir

de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra

pankararu

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 28: VOZES DA TERRA

A Exposiccedilatildeo

Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as

residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador

(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as

obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das

diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee

Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu

Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes

cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do

puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento

possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo

de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios

registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a

residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em

Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro

do pote

Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias

para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no

espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados

num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias

indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias

artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus

vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo

Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

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2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 29: VOZES DA TERRA

que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou

intacto em Salvador para ser exposto

Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que

aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar

colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com

aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros

indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo

toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora

um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as

diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes

em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e

terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas

indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o

dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e

atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu

Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a

experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a

cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que

interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta

daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes

camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do

museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os

natildeo-indiacutegenas

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

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pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 30: VOZES DA TERRA

Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor

Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo

reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo

em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees

teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do

sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 31: VOZES DA TERRA

Miolo de Pote

Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas

sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de

civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua

potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute

a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas

de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas

O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000

AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como

indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria

do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer

entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na

histoacuteria humana [15]

O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam

desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de

potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora

das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais

europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora

especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]

O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de

Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes

Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma

maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 32: VOZES DA TERRA

ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato

escultoacuterico

Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir

da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no

proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se

completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas

sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os

espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa

obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja

alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das

relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa

obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e

diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do

artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo

que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais

Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como

gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica

de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O

antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP

[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades

indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca

ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito

Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do

aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um

constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si

pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o

incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 33: VOZES DA TERRA

No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse

dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e

metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena

Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo

que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos

sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando

linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee

de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria

da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e

respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se

busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que

tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da

significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais

densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente

ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador

A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite

informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de

informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir

essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o

coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do

ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual

ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das

sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)

A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das

informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos

antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy

8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

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adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 34: VOZES DA TERRA

Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada

Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a

experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva

transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no

ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o

que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde

peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas

e sonhadas daquele corpo presente

Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees

experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e

ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo

dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito

duradoura as informaccedilotildees ali contidas

No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da

perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes

ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas

palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais

descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo

cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da

tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados

os visitam e ensinam

A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo

central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da

exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus

corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV

WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB

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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R

5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici

adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc

e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X

ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one

pageampqampf=false

11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 35: VOZES DA TERRA

terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos

para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje

Conclusatildeo

A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no

mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros

podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da

vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se

encontraraacute

Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior

daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo

tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita

que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O

dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade

ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias

vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras

da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no

dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees

atraveacutes das tecnologias digitais

A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como

instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de

estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento

ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena

No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e

urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo

declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

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2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

occ81grafopdf

6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

acoustic20urnspdf

7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

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+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris

+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

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+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+

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12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

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declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma

responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente

contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos

povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno

de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede

foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda

a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas

O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no

futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa

primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de

tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura

indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas

tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre

maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural

dos povos ancestrais

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

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mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

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6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

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7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

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ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna

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12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 37: VOZES DA TERRA

Agradecimentos

Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua

terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto

com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio

Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura

indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que

aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias

matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua

casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da

conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza

A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do

projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo

A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do

projeto e abriu muitas portas em Pankararu

Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic

Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio

que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um

papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia

Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-

obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

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2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

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7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

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+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

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adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9

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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu

12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

16httpwww3ufpebrcarlosestevao

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Links

Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra

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obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais

Viacutedeos oficiais da Thydewaacute

httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY

httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc

Bibliografia

1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime

nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c

aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX

mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4

2 PANKARARU David J Phillips

httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml

3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato

Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute

httpwwwetnolinguisticaorgdoc2

4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito

httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6

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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn

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6 A study on Aristoxenus acoustic urns

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7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299

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+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+

dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M

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12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore

13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml

14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf

15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm

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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall

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6 A study on Aristoxenus acoustic urns

httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20

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7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept

For Today

httpwwwphilophonycompagescr1470spdf

8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and

Cambridge University Press 2002

httpwwwvitruviusbeboek5h5htm

9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe

la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442

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16httpwww3ufpebrcarlosestevao

Page 40: VOZES DA TERRA

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