WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    1/172

    Universidade Estadual de Campinas

    Instituto de Artes

    Waldemar HenriqueFolclore,Texto e Msica num nico

    projeto a Cano

    Maria de Ftima Estelita Barros

    Campinas 2005

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    2/172

    Universidade Estadual de Campinas

    Instituto de ArtesMestrado em Msica

    Waldemar HenriqueFolclore,Texto e Msica num nicoprojeto a Cano

    Maria de Ftima Estelita Barros

    Dissertao apresentada ao curso deMestrado em Msica do Instituto deArtes da UNICAMP como requisitoparcial para a obteno do grau deMestre em Msica sob a orientao daProfa. Dra. Adriana Giarola Kayama.

    Campinas 2005

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    3/172

    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELABIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

    Barros, Maria de Ftima Estelita.B278w Waldemar Henrique : folclore, texto e msica num nico

    Projeto a cano / Maria de Ftima Estelita Barros. --Campinas, SP : [s.n.], 2005.

    Orientador: Adriana Giarola Kayama.Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de

    Campinas, Instituto de Artes.

    1. Pereira, Waldemar Henrique da Costa, 1905- 19952.Canes e msica. 3. Folclore Amazonas. 4. Msica -Anlise, apreciao. I. Kayama, Adriana Giarola.II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes.III. Ttulo.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    4/172

    A o A l e x a n d r e

    amor de uma vida compartilhada,

    A o s m e u s p a i s E d s o n e G l r i a

    amor de doao incondicional,

    d e d i c o e s t e t r a b a l h o .

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    5/172

    AgradeoA o A l e x a n d r e :

    Pelo amor e poesia. Por me ensinar tanto simplesmente sendo quem .

    A o s m e u s p a i s E d s o n e G l r i a :

    Que, distantes o suficiente para me permitir crer que ando sozinha, sempre queprecisei e olhei para o lado eles estavam ao alcance de minhas mos.

    A o s m e u s i r m o s J n i o r , S r g i o e M a r i n g e l a :

    Pela segurana de sempre poder contar com o apoio e pelas doces lembranas.

    A o s m e u s s o b r i n h o s P e d r o , C a i o , I v a n e M a r l i a :

    Por no me deixarem esquecer como que se brinca.A o s a m i g o s d e s e m p r e :

    Veruska e Renato por crescermos juntos.

    C y n t h i a :

    Por me apresentar a mim mesma.

    A o M a u r c i o :

    Por me apresentar a minha voz. Pelas aulas de canto e de vida.

    A o s m e u s a l u n o s :

    Por me ensinarem tanto.

    I l a r a , P e d r o , E d s o n e L i d i a n e :

    Que me ajudaram a dizer o que eu queria no meu recital de mestrado.

    A o p o v o b r a s i l e i r o :

    Pela possibilidade de tantos anos de estudo numa Universidade Pblica.

    C a p e s :

    Pela bolsa concedida nos 7 ltimos meses de trabalho.

    A o s p r o f e s s o r e s d a M s i c a e d a s C n i c a s :

    Por me ajudarem a achar meu caminho como artista.

    B a n c a d o E x a m e d e Q u a l i f i c a o :

    Prof. Dr. Silvio Baroni e Profa. Dra. Sara Pereira Lopes pelas observaes preciosasque mudaram o rumo do trabalho.

    m i n h a o r i e n t a d o r a P r o f a . D r a . A d r i a n a G i a r o l a K a y a m a :

    Pela confiana me aceitando como sua orientanda e por ter me ensinado tanto demsica ao longo de tantos anos.

    M e u a g r a d e c i m e n t o e s p e c i a l P r o f a . D r a . S a r a P e r e i r a L o p e s :

    Pela ateno, carinho e pacincia. Pelos novos olhos, ouvidos.... Pelo caminho quepossibilitou que eu no fosse a mesma no comeo e no fim do meu mestrado.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    6/172

    ________________________

    i

    Resumo

    Boa parte da obra de Waldemar Henrique construda sobre temas folclricos e isso se

    deve tanto sua origem quanto influncia do pensamento da poca, atravs de Mrio de

    Andrade e suas idias sobre a cano erudita nacional.

    A caracterstica folclrica da obra de Waldemar Henrique nos levou a escolher para uma

    aproximao de sua obra, atravs do processo de anlise, um conjunto de sete canes,

    todas elas compostas tendo como tema lendas amaznicas.

    O compositor, atravs de depoimentos e de sua obra, transparece uma grande

    preocupao com a relao do texto com a msica, na utilizao dessa linguagem que se

    constri na juno de um componente lingstico e outro musical, que a cano.

    Pela forte interao entre estes dois componentes em suas canes, o foco do nosso

    olhar nas anlises apresentadas est direcionado, prioritariamente, para esta relao.

    As anlises tm sua base terica no modelo desenvolvido por Luiz Tatit para a anlise da

    cano popular.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    7/172

    ________________________

    i i i

    Abstract

    A large amount of Waldemar Henriques compositional works are based upon

    folklore themes, and this is due to the fact not only of his origin but also to the influence

    of intellectuals of his time, through Mrio de Andrade and his ideas about national art

    song. The folkloric characteristics of Waldemar Henriques works lead us to approach

    his compositions through the process of analyzing a group of seven songs, all based upon

    Amazon legends.

    The composer, through his statements and compositions, demonstrates great

    concern with the relationship of text and music, in the use of the language of the art song,

    which is constructed through the union of a linguistic component and another musical.

    Due to the strong interaction between these two components in his songs, our

    analysis of these seven songs is focused, mainly, on the relationship of these two

    components. Our analysis is theoretically based on the model developed by Luiz Tatit,used to analyze popular music.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    8/172

    ________________________

    v

    ndiceI n t r o d u o __________________________________________ 1

    1 W a l d e m a r H e n r i q u e _________________________________ 5

    1 . 1 . B r e v e B i o g r a f i a _________________________________________ 5

    1 . 2 .

    A p r e s e n a d o f o l c l o r e

    _____________________________________ 81 . 2 . 1 . W a l d e m a r H e n r i q u e , u m a m a z o n i d a 81 . 2 . 2 . A i n f l u n c i a d o p e n s a m e n t o d e M r i o d e A n d r a d e 91 . 2 . 3 . F o n t e d e I n s p i r a o 14

    1 . 3 . A r e l a o t e x t o - m s i c a ___________________________________ 16

    1 . 4 .

    P o p u l a r o u e r u d i t o ?

    _____________________________________ 18

    2 A s b a s e s d a A n l i s e ________________________________ 23

    2 . 1 . O o b j e t o d e a n l i s e _______________________________________ 232 . 1 . 1 . A c a n o - o b r a 232 . 1 . 2 . A s L e n d a s A m a z n i c a s 25

    2 . 2 . D e f i n i n d o o o l h a r _______________________________________ 282 . 2 . 1 . O F o c o 282 . 2 . 2 . A i n d i s s o c i a b i l i d a d e e n t r e t e x t o e m e l o d i a 29

    2 . 3 . A s b a s e s t e r i c a s ________________________________________ 322 . 3 . 1 . O m o d e l o d e L u i z T a t i t 322 . 3 . 2 . P r o j e t o G e r a l 42

    2 . 4 .

    A a p r e s e n t a o d a s a n l i s e s

    ________________________________ 45

    3 A s a n l i s e s _______________________________________ 49

    3 . 1 .

    F o i B o t o , S i n h !

    _______________________________________ 493 . 1 . 1 . A l e n d a 493 . 1 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 523 . 1 . 3 . P r o j e t o G e r a l 56

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    9/172

    ________________________

    v i

    3 . 2 .

    C o b r a G r a n d e

    __________________________________________ 663 . 2 . 1 . A L e n d a 66

    3 . 2 . 2 .

    P r o j e t o N a r r a t i v o

    673 . 2 . 3 . P r o j e t o g e r a l 72

    3 . 3 .

    T a m b a - t a j

    ___________________________________________ 813 . 3 . 1 . A l e n d a 813 . 3 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 853 . 3 . 3 . P r o j e t o G e r a l 88

    3 . 4 . M a t i n t a p e r r a __________________________________________ 963 . 4 . 1 . A l e n d a 963 . 4 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 983 . 4 . 3 .

    P r o j e t o G e r a l

    1033 . 5 . U i r a p u r u _____________________________________________ 115

    3 . 5 . 1 . A L e n d a 1153 . 5 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 1163 . 5 . 3 . P r o j e t o G e r a l 120

    3 . 6 . C u r u p i r a _____________________________________________ 1323 . 6 . 1 . A L e n d a 1323 . 6 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 1343 . 6 . 3 . P r o j e t o G e r a l 137

    3 . 7 . M a n h a - N u n g r a ______________________________________ 1463 . 7 . 1 . A L e n d a 1463 . 7 . 2 . P r o j e t o N a r r a t i v o 1473 . 7 . 3 . P r o j e t o G e r a l 150

    C o n c l u s o __________________________________________ 161

    B i b l i o g r a f i a ________________________________________ 165

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    10/172

    ______________________________________________________________ I n t r o d u o

    ________________________

    1

    IntroduoO interesse pela obra de Waldemar Henrique veio por dois caminhos: a temtica

    grande parte de sua obra sobre o folclore amaznico e a adequao vocal o

    compositor muito cuidadoso com a sua escrita, o que resulta num conforto vocal para a

    execuo de suas canes.

    Decidimos nos aproximar da obra deste compositor pela anlise de um conjunto de sete

    de suas canes que so as que foram escritas tendo como tema lendas amaznicas

    com a inteno de entender como o compositor compatibiliza texto e msica em suascomposies, resultando em canes to convincentes musicalmente e confortveis

    vocalmente.

    A grande quantidade de canes que Waldemar Henrique comps usando como tema o

    folclore incluindo as que escolhemos para analisar nos levou a pesquisar as possveis

    origens desse fato, o que fizemos atravs de depoimentos do prprio compositor e

    analisando as possveis influncias de pensamento de sua poca e mais especificamente

    da poca em que foram compostas as canes analisadas.Da mesma forma que o folclore, buscamos investigar as possveis origens da preocupao

    com a compatibilizao do texto com a msica, que o compositor deixa transparecer em

    suas canes. As nossas fontes foram, tambm para este aspecto, as possveis influncias

    do pensamento de sua poca e depoimentos do compositor.

    Em relao ao pensamento da poca, estamos considerando para investigao, mais

    especificamente, o pensamento de Mrio de Andrade em relao composio da cano

    erudita brasileira. Seu pensamento influenciou toda uma gerao de compositores, agerao de Waldemar Henrique, que entrou em contato com Mrio de Andrade e as idias

    nacionalistas em 1935.

    No percurso da comunicao de uma cano, entre o compositor e o ouvinte ela por

    duas vezes materializada, nos processos chamados de composio e de execuo, sendo

    o que lhe permite ser comunicada. A materializao pelo processo de composio gera o

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    11/172

    ______________________________________________________________ I n t r o d u o

    ________________________

    2

    que chamamos de cano-obra, e nesta materializao da cano que concentramos

    nosso olhar e realizamos as anlises.

    Entendemos que o texto e a melodia associada diretamente a ele na cano so elementos

    indissociveis. A cano construda sobre uma linguagem formada por dois sistemas de

    significao, um lingstico e um musical que, juntos, formam um terceiro, que no

    nem um nem outro; transcende a soma dos dois. atravs desta linguagem que o

    compositor fala. Dessa indissociabilidade resulta a importncia da compatibilizao

    dos dois componentes da cano, o lingstico e o musical, pelo gesto do compositor.

    Como base terica para investigar, atravs do processo de anlise, como o compositor

    compatibiliza o texto e a melodia em suas canes, utilizamos o mtodo que Luiz Tatit

    props para a anlise da cano popular. Como as canes de Waldemar Henrique

    possuem acompanhamento escrito, para piano, surgiu a necessidade de buscar uma base

    terica para a anlise da compatibilizao deste acompanhamento com o texto e a

    melodia. Encontramos esta base na semitica, mais especificamente no conceito de

    Percurso Gerativo de Sentido.

    O objetivo do Captulo 1 dar subsdios para as anlises, na medida em que nos permite,

    atravs dos aspectos investigados, alcanar um maior entendimento do gesto

    composicional de Waldemar Henrique. Nele, procuraremos identificar como o momento

    histrico e sua histria pessoal atuaram como definidores do seu estilo de composio.

    Alm de apresentar uma breve biografia, com o objetivo de situar a composio de cada

    cano analisada na histria do compositor, investigamos os seguintes aspectos: a) a

    presena do folclore na obra de Waldemar Henrique na qual buscamos identificar as

    possveis origens desta presena; b) a relao letra e msica na sua composio neste

    item so apresentados depoimentos do compositor ressaltando a importncia que credita

    ao texto no processo de composio, e como o pensamento da poca pode ter

    influenciado o modo como ele estabeleceu, em suas composies, esta relao; c)

    Comps msica erudita ou popular? Esta uma discusso que gira em torno da sua

    msica de Waldemar Henrique. Sem o objetivo de classific-lo, mas com o de melhor

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    12/172

    ______________________________________________________________ I n t r o d u o

    ________________________

    3

    entender sua obra, apresentamos neste item algumas opinies sobre o assunto, inclusive

    do prprio compositor.

    No Captulo 2descrevemos as bases tericas que sustentam as anlises, com uma breve

    descrio do modelo de Luiz Tatit e a extenso que propomos para incluir a anlise da

    participao do acompanhamento, juntamente com o texto e a melodia, na criao do

    sentido da cano. No Captulo 3 apresentamos as anlises de sete das treze Lendas

    Amaznicas1 de Waldemar Henrique: Foi boto Sinh!, Cobra Grande, Tamba-taj,

    Matintaperra, Uirapuru, Curupira,Manha-Nungra.

    Finalmente, conclumos o trabalho apresentado aspectos que se mostraram recorrentes no

    gesto composicional de Waldemar Henrique, e discutindo como a extenso que

    propusemos atuou na anlise da compatibilidade do acompanhamento com os demais

    elementos da cano.

    1Apenas sete destas canes foram editadas, e as outras no foram encontradas at o momento.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    13/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    5

    1 Waldemar Henrique1 . 1 .

    B r e v e B i o g r a f i a

    Em 1977 a Funarte2 lanou um concurso nacional de monografias sobre Waldemar

    Henrique. O vencedor foi Claver Filho, com a monografia que originou o Livro

    WALDEMAR HENRIQUE, O canto da Amaznia.3 um trabalho que traz uma detalhada

    biografia do compositor e dados de sua produo musical. Diante da existncia destetrabalho, nos limitaremos a registrar aqui somente os dados que nos parecem relevantes

    para relacionar as caractersticas das canes que sero analisadas com a vida do

    compositor e o momento histrico em que foram produzidas.

    Waldemar Henrique nasceu em Belm em 1905. O pai de origem portuguesa e a me de

    origem indgena. Nasceu num perodo de transio para a msica e a economia paraense,

    em pleno declnio do ciclo da borracha. No auge da economia (1874) foi construdo o

    Teatro da Paz4, e deu-se incio a um perodo de efervescncia artstica com a vinda de

    grandes companhias lricas europias contratadas para temporadas na cidade. Alguns

    msicos estrangeiros acabaram se instalando em Belm e, juntamente com msicos e

    compositores paraenses, fundaram um conservatrio de msica, o Instituto Carlos

    Gomes(1894).

    Com o declnio da economia baseada no extrativismo da borracha, tornou-se impossvel

    manter as carssimas temporadas lricas e muitos msicos voltaram para a Europa. Um

    dos msicos estrangeiros que permaneceu em Belm, apesar do fim das temporadas, foi o

    italiano Ettore Bosio, que se tornou, mais tarde, um dos importantes professores na

    formao de Waldemar Henrique, incentivando-o e instigando-o a continuar seus estudos

    2Fundao Nacional de Arte3FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.4O Teatro da Paz foi uma grande paixo do compositor, que assumiu a sua direo em 1966, e por 12 anoslutou pela sua reforma e reabertura, que aconteceu em 1978, ano do centenrio do teatro.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    14/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    6

    musicais, sempre tolhidos pelo pai que dizia: Piano no para homem, para moa.

    Vamos trabalhar.5Nunca se afastou totalmente da msica mas, sendo obrigado pelo pai

    a trabalhos em bancos e no comrcio, houve poca em que lhe faltava tempo para

    dedicar-se sua grande paixo.

    Em 1929 o antigo Instituto Carlos Gomes foi reativado, passando-se a chamar

    Conservatrio Carlos Gomes, sob a direo de Ettore Bosio. Obtendo apoio deste maestro

    e professor, Waldemar Henrique volta a estudar no conservatrio, e da em diante a

    msica passa a ser definitivamente o centro de sua vida.

    Em 1933, j com seus estudos em msica bastante consolidados, e com uma coleo devrias composies, realiza a primeira apresentao s com peas de sua autoria, com

    vrios cantores, acompanhados ao piano pelo prprio compositor. Recebeu da imprensa

    crticas muito positivas. Um dos comentrios sobre o espetculo feito pelo crtico de

    msica da Folha do Nortefoi: Waldemar venceu em toda linha. Se em vez de musicar

    aqui, desse expanso a seu gnio criador nas plagas sulistas, j estaria gravando o nome

    em letra de forma por toda parte.6

    Foi o que o compositor fez em 1933, mudando-se para o Rio de Janeiro, como disse ele

    prprio com um vago propsito de ser pianista e compositor como Hekel Tavares,

    Joubert de Carvalho, Radams Gnattali e Ary Barroso, os bambas da poca....7

    O caminho para o sul era uma possibilidade de mostrar o trabalho e conseguir projeo

    e reconhecimento nacionais. Sobre os msicos paraenses da gerao de Waldemar

    Henrique, Vicente Salles comenta: Essa gerao8no pde se comprimir na Amaznia;

    dela saiu, suficientemente preparada para tornar-se altssimo ponto de referncia em sua

    poca e fazer-se presente na cultura nacional.9

    5FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 226FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 257FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.278Alm de Waldemar Henrique cita: Gentil Puget, Jayme Ovalle, Iber de Lemos, Mrio Neves, Satiro deMelo.9em FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.21

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    15/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    7

    Chegando ao Rio, acreditando ser segundo disse o prprio Waldemar o mensageiro

    da Amaznia, escreveu toda uma srie de lendas, danas, acalantos, lundus, chulas, cocos,

    carimbs, batuques...10. J levava na mala duas das Lendas Amaznicas: Foi Boto,

    Sinh! e Matintaperra. Estas duas lendas compostas no Par tm texto de Antnio

    Tavernard11, poeta e grande amigo do compositor. Sobre o encontro dos dois artistas

    comenta Vicente Salles:

    Waldemar Henrique, quando ainda em Belm, trabalhando emprogramas musicais para a Rdio Clube, teve a fortuna dedescobrir na obra de um jovem e desditoso poeta umsentimento que se fundia e se integrava indelevelmente sua

    msica. A obra desse poeta adolescente tinha ritmo,originalidade e rano de sua terra [...] A imagem telrica dapoesia de Antonio Tavernard foi assim naturalmente absorvidapela msica de Waldemar Henrique12.

    Esta identificao e ressonncia entre a obra dos dois artistas ser confirmada adiante nas

    anlises das canes que possuem texto deste poeta.13

    Em 1934 assinou contrato exclusivo com a Rdio Philips, e na voz de Gasto Formentti

    pela primeira vez se fez ouvir em uma rdio carioca. Ainda neste ano firmou contrato

    com Irmos Vitale e Vicente Mangione para editar suas composies. Sua irm Mara

    passou a se apresentar em recitais, acompanhada pelo compositor, e veio a se tornar a

    maior intrprete de suas canes trazendo, segundo Vicente Salles, um novo estilo para a

    interpretao da cano: Mara criou um novo estilo de interpretao da cano

    brasileira: acabou com as mos na cintura e o arfar dos agudos, imprimindo aos textos um

    valor definitivo.14As canes Cobra-Grande, Uirapuru e Tamba-tajso deste ano de

    1934.

    10FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.2711Em parceria com este escritor, Waldemar Henrique musicou tambm o texto da revista Na casa da vivaCosta.12FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.8813As outras lendas, compostas j no Rio de Janeiro possuem texto do prprio Waldemar Henrique.14em FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 57

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    16/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    8

    1935 foi o ano de seu encontro com Mrio de Andrade que, como a toda uma gerao de

    compositores, influenciou Waldemar Henrique com suas idias sobre a cano

    nacional. Esta influncia ser discutida no prximo item deste captulo. Neste ano

    comps mais uma cano da srie das Lendas Amaznicas:Manha-Nungra.

    Beneficiado pela exigncia de Getlio Vargas de que nos cassinos fossem apresentadas

    msica brasileira, em 1936 Waldemar apresenta suas canes no cassino do Copacabana

    Palace, tendo Mara como cantora, obtendo grande sucesso de pblico e crtica. O

    sucesso de Mara e do compositor Waldemar Henrique tem sido muito significativo. No

    acredito que se encontrem facilmente nmeros assim todos os dias...15 . Curupira das

    Lendas Amaznicas deste ano.

    1 . 2 . A p r e s e n a d o f o l c l o r e

    Boa parte da msica de Waldemar Henrique construda sobre temas (literrios e/ou

    musicais) folclricos. Por este motivo, e porque as canes analisadas neste trabalho tm

    como tema lendas amaznicas, analisaremos mais detidamente a sua relao com o

    folclore, e de que maneira ele incorporado em suas canes. Acreditamos que esta

    relao se deu por duas vertentes: uma o seu envolvimento com as idias de Mrio de

    Andrade sobre a composio da cano erudita brasileira; outra a sua prpria origem

    que, crescendo em territrio amaznico, teve, desde criana, sua mente povoada pelos

    encantados dos rios e das florestas.

    1 . 2 . 1 .

    W a l d e m a r H e n r i q u e , u m a m a z o n i d a

    A relao de Waldemar Henrique com as lendas (e o folclore amaznico) de quem as

    ouviu no meio mesmo onde elas operam; algo que faz parte de seu imaginrio, como

    atestam suas prprias palavras:

    15Reportagem do jornal O Globo apud FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 29

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    17/172

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    18/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 0

    Nesta poca fervilhavam as idias nacionalistas. Dentre elas as de Mrio de Andrade, de

    busca da identidade musical nacional que, segundo ele, seria construda pela busca de

    elementos musicais na msica popular. O critrio histrico atual [1928] da msica

    brasileira o da manifestao musical que sendo feita por brasileiro ou indivduo

    nacionalisado, reflete as caractersticas musicais da raa. Onde que estas esto? Na

    msica popular20. O projeto da cano nacionalista consistia na estilizao das fontes

    da cultura popular rural, idealizada como a detentora da fisionomia oculta da nao.21

    Waldemar Henrique entrou em contato com Mrio de Andrade e as idias nacionalistas

    em 1935, quando, pela primeira vez, apresentou-se em So Paulo. A partir de ento,

    Mrio tornou-se seu orientador nacionalista nos problemas de harmonizao dos temas

    folclricos...22 . O prprio compositor declara sua adeso ao movimento: Liguei-me a

    uma corrente nacionalista de pesquisa de expresso do que seria nosso, ao folclore, ao

    popular com suas caractersticas formais e rtmicas, harmonizando temas do povo.23

    Para tentarmos identificar o quanto a presena do folclore na obra de Waldemar Henrique

    influncia do pensamento de Mrio de Andrade, recorremos ao catlogo de suas obras 24

    e realizamos alguns levantamentos estatsticos. Este catlogo abrange sua composio at

    1978. Destas obras, consideramos apenas as canes, e destas, exclumos aquelas

    escritas para o cinema e o teatro. A verificao de que uma cano foi composta sobre

    tema folclrico ou no foi baseada no ttulo da pea e na coluna observaesconstante do

    catlogo, na qual aparecem informaes sobre as canes, inclusive se so harmonizaes

    de temas folclricos ou no.

    A tabela e o grfico abaixo mostram, do total das canes dentro do recorte feito (130

    canes), quantas utilizam temas folclricos e quantas no utilizam.

    20ANDRADE, Mrio de. Ensaio Sobre a Msica Brasileira. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1962. p.2021SQUEFF, Enio e WISNIK Jos Miguel.Msica o Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. 2 ed.So Paulo: Brasiliense, 1982.. p. 13322FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 2823FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 90.24 O catlogo de obras em FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniaabrange suacomposio at 1978

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    19/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 1

    Total das Canes (130)

    Temas Folclricos 69

    Temas No Folclricos 61

    O que podemos visualizar que aproximadamente metade das canes utilizam temasfolclricos.

    Na busca da identificao da influncia de Mrio de Andrade, estabelecemos a relaoentre o nmero de canes que utilizam temas folclricos, e as que no utilizam,

    considerando os perodos antes e depois de 1935 (encontro com Mrio e Andrade).

    Antes de 1935 (33% das canes consideradas)tema folclrico/regional tema NO folclrico/regional

    34% 66%Depois de 1935

    tema folclrico/regional tema NO folclrico/regional61% 39%

    Total das Can es

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    20/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 2

    Como se nota, h um aumento considervel da porcentagem de canes com temas

    folclricos aps 1935, passando de 31% (antes de 1935) para 61%. Precisamos, no

    entanto, levar outros fatores em considerao antes de atribuir este fato exclusivamente

    influncia do pensamento de Mrio de Andrade.

    O encontro com Mrio aconteceu pouco tempo depois da ida de Waldemar Henrique para

    o Rio de Janeiro e, como j mencionamos (pela prpria fala do compositor) ele seconsiderava o mensageiro da Amaznia25. Nada mais natural para o mensageiro da

    Amaznia do que cantar a sua terra natal necessidade bem menos premente quando

    nunca se saiu dela.

    Um outro fator a ser considerado nos foi apontado, tambm, por uma outra declarao de

    Waldemar Henrique, quando fala da sua relao com outros compositores de sua poca

    (em como cada um achava espao para a sua msica), deixa transparecer que a utilizao

    de temas amaznicos em suas canes tem, tambm, uma funo de conquistar seuprprio espao:

    Todos ns comeamos a aparecer juntos, tnhamos a mesmaluta. Isso nos irmanava. No havia a rivalidade de hoje,especialmente da minha parte, porque o que eu fazia quase

    25FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 27

    An tes de 1935 Depois de 1935

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    21/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 3

    nada dizia respeito a eles: eu trabalhava com o folcloreamaznico, de preferncia, e isso era uma coisa um pouco leigapara eles.26

    Alm destes fatores existia tambm, na poca, uma poltica nacionalista, ditada por

    Getlio Vargas, que buscava promover a msica tipicamente nacional27, o que abria

    possibilidades para a sua msica de carter folclrico.

    Buscando dados que pudessem nos apontar mais especificamente a influncia de Mrio

    de Andrade no que diz respeito presena do folclore na sua msica, realizamos uma

    outra comparao: dentre as canes com temas folclricos, quais utilizam temas

    relacionados Amaznia e quais utilizam temas relacionados a outras regies do pas;considerando, novamente, os perodos de antes e depois de 1935. Estes dados esto no

    quadro e grficos abaixo.

    Antes de 1935temas amaznicos temas NO amaznicos

    75% 25%Depois de 1935

    temas amaznicos temas NO amaznicos42% 58%

    26FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniapp. 32-3327desde que veio a ordem oficial, de Getlio Vargas, obrigando os cassinos do Rio a terem msicosbrasileiros, os primeiros a serem contratados foram Mara, eu e Carmem Miranda. em 1936. FILHO,Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 29

    Depois de 1935An tes de 1935

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    22/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 4

    Esta nova comparao pode nos sugerir, uma influncia mais direta do pensamento deMrio de Andrade sobre o compositor, uma vez que foi atravs do contato com ele que

    Waldemar Henrique comeou a recolher e harmonizar temas folclricos de outras

    regies. O compositor fala sobre este trabalho: Comecei esta luta a partir de Villa e de

    Mrio de Andrade, que queriam ua msica brasileira, com ingredientes nossos,

    devidamente trabalhados, criar o esprito das regies...28

    Outro dado interessante que refora a possvel influncia do pensamento de Mrio que,

    27% das canes de Waldemar Henrique (constantes do catlogo) que realizamharmonizao de temas folclricos so do ano de 1935, do ano de seu encontro com

    Mrio de Andrade.

    1 . 2 . 3 . F o n t e d e I n s p i r a o

    Diferentes consideraes devem ser feitas sobre a presena do folclore geral29, e do

    folclore amaznico na obra de Waldemar Henrique. O primeiro decorrente de

    pesquisas e coleta de material, o segundo est impregnado em seu imaginrio e lhe ,

    naturalmente, uma grande fonte de inspirao.

    Em relao ao folclore amaznico, no podemos, simplesmente, entender a presena

    dele na obra de Waldemar Henrique, mas consider-lo como fonte de inspirao, algo

    que movia seu esprito criador. O prprio compositor pode nos ajudar a entender o papel

    deste folclore no seu gesto composicional:

    ...mesmo sem pesquisar folclore amaznico, estaramoscapacitados para compor musica folclrica o tal folcloreimaginrio, que parece que mas no , com todos osingredientes meldicos, modais, rtmicos, inflexionais e tonaisda criao espontnea e simples do caboclo daquelas bandas.

    28FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 35-3629Estamos usando este termo para designar o folclore de outras regies brasileiras que no a amaznica.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    23/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 5

    Pois foi o que eu fiz intuitivamente, alis, j com apreocupao de compor brasileiramente, nacionalmente, comopregava Mrio de Andrade, [...] chamando os compositores criao de uma escola nacional depurada das influnciainternacionais, da polifonia, do classicismo, do romantismo, doatonalismo e outras.30

    O que conclumos que Mrio de Andrade teve, sim, uma grande influncia na obra do

    compositor no que diz respeito utilizao de temas folclricos para harmonizao, mas

    isto, principalmente, no que diz respeito a temas provenientes de outras regies que no a

    amaznica. Compor utilizando o folclore amaznico, nos parece, era intuitivo e

    decorrente da origem de Waldemar Henrique, anterior ao seu encontro com Mario. O

    folclore amaznico para Waldemar Henrique, antes de ser um ideal nacionalista, era uma

    grande fonte de inspirao.

    Em 1968, j numa fase madura, e depuradas as influncias que assimilou ao longo de sua

    vida, Waldemar, em entrevista ao jornal A provncia doPara, fala da sua experincia de

    composio, e de sua relao com a pesquisa de material folclrico, fazendo uma reflexo

    sobre o que representou em seu percurso como compositor esse tipo de pesquisa,

    incentivado por Mrio de Andrade. Este depoimento aumenta a nossa convico de que,

    antes de qualquer pesquisa, a fora de sua relao com o folclore da Amaznia era

    decorrente de sua origem e sua vivncia neste meio.

    Por experincia prpria posso aconselhar a nossoscompositores que h uma coisa melhor que pesquisar motivosfolclricos, catalogar versos, melodias, ritmos de carimb,batidas de babau, passos de marabaixo. A lio de amarnossa terra e senti-la profundamente nos seus rostos,problemas, paisagens, caractersticas [...] Ns temos uma

    atmosfera, um ambiente, um sentir prprios. Os compositoresdeveriam pensar nisto e captar este impondervel que estdentro de cada um.31

    Ainda em 1968 diz: na fase em que me encontro, vencidas as influncias, despojado de

    planos ambiciosos, aguardo hoje ou amanh para continuar a execuo de um velho

    30GODINHO, Sebastio (org.). Waldemar Henrique S Deus Sabe Porque. p. 60 (grifo nosso)31FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 78-79

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    24/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 6

    desejo: retratar a Amaznia32. E foi isto o que mais fez em sua obra, retratou

    sonicamente a regio amaznica em seus mnimos detalhes, at nos meandros de seu

    mistrio.33Ou como disse Paes Loureiro (para Waldemar Henrique):

    deste alma musical e corpo de cano nossa teogonia,conferiste existncia terrena aos encantados, na medida em quemais os encantastes nas encantarias da Msica. Tua arteconfere uma segunda realidade de iluso iluso de realidadeque constitui os mitos.34

    1 . 3 . A r e l a o t e x t o - m s i c a

    A maneira como um compositor compatibiliza o texto e a msica em suas composies

    absolutamente particular, e um aspecto que ser amplamente investigado nas anlises,

    no captulo 2. A importncia dada investigao desta relao dentro das composies

    decorrncia da importncia dada para o tema, tanto pelo compositor quanto pelo

    pensamento da poca sobre a composio da cano erudita nacional, principalmente

    atravs do pensamento de Mrio de Andrade. Assim, do mesmo modo que fizemos com a

    questo da presena do folclore na obra de Waldemar Henrique, faremos consideraes

    sobre este outro aspecto de sua composio a partir de depoimentos do compositor e

    buscando identificar a influncia do pensamento de sua poca, atravs do pensamento de

    Mrio de Andrade.

    Mrio de Andrade falava muito da sua preocupao com a relao texto-melodia35,

    dizendo que os compositores no tomavam o devido cuidado com a fontica e muitas

    vezes faziam com que suas canes fossem executadas de maneira deficiente, no por

    problemas tcnicos dos cantores, mas por problemas de adequao fontica do texto na

    melodia, ou seja, por problemas composicionais.

    32FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 4933FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amazniap. 4934 Maneira de um prefcio em GODINHO, Sebastio (org.). Waldemar Henrique S Deus SabePorque. p. 1535usaremos o termo melodia quando nos referirmos apenas linha meldica do canto.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    25/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 7

    Ele defende a idia de que muitos dos problemas que apareciam na relao do texto com

    a melodia poderiam ser evitados se o compositor utilizasse a prpria fala como

    referncia, e prope um processo para a composio de canes, defendendo

    a necessidade de decorar os textos e diz-los muitas vezesantes de principiar a compor. Essa apropriao absolutamententima das contingncias fonticas dum texto, fatalmenteevitaria as contradies exageradas de intervalos meldicosprovocados pelo som, e intervalos orais provocados pela alturadas vogais36.

    Acreditamos, e procuraremos mostrar nas anlises, que Waldemar Henrique procurou

    preservar, em suas canes, uma adequao entre a fala e o canto, e que isto se deve aoseu prprio mtodo de composio, que muito se aproxima da recomendao de Mrio de

    Andrade. o prprio compositor que nos fala de como compunha:

    Componho preferencialmente canes, gnero universal,genuno, que se nutre em versos, poemas e quadras, capazes derevelar msica e ritmo que j trazem em si. Meu trabalhocomea pela escolha da tonalidade adequada, passando pelaambientao meldica, ritmicamente subordinada sexpresses do verso, o qual me indica as modulaesnecessrias, intervalos e acordes. Comentrios e detalhes deharmonizao depois complementam a misso do compositor.No meu caso, sou mais preocupado com o texto em funo docantor. Enfim, desejo escrever canes para serem cantadas,no arquivadas.37

    A importncia que Waldemar Henrique d ao texto pode ser observada, tambm, quando

    expressa sua preocupao com a interpretao de suas msicas, definindo o que considera

    ser a intrprete ideal para suas canes:

    A intrprete que eu considero ideal para as minhas msicas a intrprete que pe seu primeiro cuidado na interpretao dotexto; seria uma declamadora que cantasse, porque a cantoralrica habituada a cantar textos para os quais ela d poucaimportncia... ela se preocupa com a emisso vocalprivilegiada, de respirao, de afinao; h mesmo cantoras

    36ANDRADE, Mrio de.Aspectos da Msica Brasileira. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1965. p. 5837MIRANDA, Ronaldo. Waldemar Henrique Compositor Brasileiro. p. 14

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    26/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 8

    que desenham toda a melodia belissimamente, mas no sepercebe o texto que ela cantou... Todas as minhas canesmereceram um respeito ao texto; esse texto, para mim, quetem valor... [34]

    Importante ressaltar que a possibilidade da intrprete atuar como uma declamadora que

    cantasse, est intimamente relacionada com a forma de compor. Waldemar Henrique

    possibilita este tipo de atuao, dentre outros aspectos, pela utilizao de uma tessitura

    limitada, que propicia o canto declamado.

    Portanto, assim como a presena do folclore, a preocupao da compatibilidade texto-

    melodia nas composies de Waldemar Henrique parece ter origens diversas:

    a) A influncia do pensamento de Mrio de Andrade, que o prprio compositor declarou

    ter sido seu grande mestre.

    b) O processo prprio de composio que confere grande importncia ao texto.38

    c) A adequao texto-melodia que visava, tambm, a aceitao de suas msicas pelos

    cantores.39

    1 . 4 . P o p u l a r o u e r u d i t o ?

    Para finalizar este captulo trataremos de uma outra questo relativa composio de

    Waldemar Henrique. Afinal de contas, ele era um compositor erudito ou popular?

    Waldemar Henrique um daqueles compositores que se situam na fronteira entre o

    erudito e o popular. No nosso objetivo classific-lo, mas sim entender sua forma de

    38No podemos pensar que esta preocupao surgiu apenas da influncia de Mrio de Andrade, j que acompatibilidade texto-melodia pode ser observada em suas composies anteriores ao seu encontro comMrio. Como na questo do folclore em sua msica, a preocupao com a relao texto-melodia j faziaparte da prtica do compositor.39Assim como na questo do folclore, a preocupao com a relao texto-melodia , tambm, funo dapreocupao com a aceitao de sua msica, e com a conquista de um espao no cenrio musical, e entre oscantores. Waldemar queria que sua msica fosse cantada, e compunha, tambm, em funo disto.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    27/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    1 9

    compor, para melhor conduzir as anlises. Para isto, citaremos a opinio de alguns

    autores, e do prprio compositor sobre este aspecto de sua obra.

    No Livro A Cano Brasileira, Vasco Mariz40 cita Waldemar Henrique entre os

    compositores eruditos da Terceira Gerao Nacionalista, juntamente com Oswaldo de

    Souza, Radams Gnattali, Camargo Guarnieri, Joo de Souza Lima, Jos Vieira Brando,

    entre outros. O pargrafo abaixo, retirado desta publicao, parece justificar a incluso do

    compositor junto aos compositores da cano dita erudita.

    O msico paraense, que tanto renome vem granjeando e tomerecidamente, continua a ser etiquetado de modo defeituoso.Na realidade, nunca foi um harmonizador de temas populares:suas canes, suas lendas amaznicas tm sido escritas maneira do populrio daquela regio com temas prprios. Eumesmo j ca no erro de atribuir origem folclrica a diversasobras suas e aqui me penitencio.41

    Luiz Tatit classifica Waldemar Henrique como semi-erudito, juntamente com Chiquinha

    Gonzaga, Eduardo Souto, Catulo da Paixo Cearense, Heckel Tavares e Joubert de

    Carvalho que aproveitam sua

    formao culta como recurso para se dedicarem, quase queexclusivamente cano popular. Ao invs de utilizarem temasfolclricos em peas eruditas, refazem o folclore criandocanes que nos causam a sensao de que sempreexistiram.42

    E dentre estas canes, cita Foi Boto, Sinh!.

    Sobre a utilizao de temas folclricos pelos compositores eruditos, Luiz Tatit tem a

    seguinte opinio:

    A utilizao de motivos sertanejos folclricos pelos eruditostem um sentido de ancoragem histrica, para que sua produono se distancie muito das razes populares e tenha chance deser reconhecida e apreciada pela coletividade. Tem tambm o

    40MARIZ, Vasco.A cano Brasileira Erudita, folclrica, popular. 3 ed. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1977.41MARIZ, Vasco.A cano Brasileira Erudita, folclrica, popular. p. 8042TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. So Paulo:Edusp, 1996. p. 31

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    28/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    2 0

    sentido de se aproximar do povo, no pelo que este tem deefmero e circunstancial, mas por suas manifestaes perenesj fixadas na cultura. Afinal, a vasta tradio histrica damsica e da literatura eruditas favorece o culto do valorperenidade no que tange s obras dos artistas. Isto tudo nalinha de que a verdadeira arte resiste ao tempo e atravessa asgeraes mantendo-se com permanente vitalidade.43

    A utilizao dos temas folclricos, resultando em canes to prximas do universo

    popular, no caso de Waldemar Henrique, foi possvel porque este folclore estava

    difundido em seu imaginrio.

    Alguns depoimentos do compositor revelam seu pensamento sobre a questo de sua

    composio ser erudita ou no, como por exemplo no trecho da entrevista a Joo Carlos

    Pereira, que apresentamos a seguir, onde responde questo: Escreveu msica erudita?

    No... respeitando o tipo de trabalho que ns tnhamos, queera de estar mais em contato com o povo, eu sempre achei queo povo era muito importante, eu achava que fazer canestipicamente eruditas, eu no lograva o interesse popular. Eupodia no fazer a msica de sabor bem folclrico, bem popular,ficasse no meio termo.... 44

    Esse meio termovai de encontro ao adjetivo de semi-erudito atribudo por Luiz Tatit.

    Queremos salientar tambm, desta fala, a preocupao do compositor com a aceitao de

    suas canes, com o fato delas serem cantadas e apreciadas, enfim, de atingir sucesso

    com elas. Esta preocupao direcionou seu processo composicional. Neste trecho, por

    exemplo, fica claro que isto determinou um carter para suas canes, e como j

    mencionamos anteriormente, foi um dos fatores que determinou a utilizao to

    recorrente do folclore como tema, e a sua preocupao com a compatibilidade texto-

    melodia, auxiliando os cantores a conseguirem xito em suas interpretaes.

    Num outro ponto da mesma entrevista, respondendo pergunta: A conformao de suas

    composies erudita?acrescenta:

    43TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 3144PEREIRA, Joo Carlos. Encontro com Waldemar Henrique. Belm: Falangola, 1984.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    29/172

    ________________________________________________________ W a l d e m a r H e n r i q u e

    ________________________

    2 1

    As minhas composies no tinham a preocupao de seremeruditas, portanto elas se destinavam a serem cantadas deacordo com aquele conselho que me deu Mrio de Andrade,que a cano para ser cantada e no trabalhadapianisticamente no acompanhamento; ou por outra, que aexpresso do piano dominasse a cano. Porm tem outra lio.Villa-Lobos dizia: A gente no deve harmonizar um temafolclrico; a gente deve ambient-lo harmonicamente.Portanto, no era s harmonizar, era ambientar. 45

    Esta ltima fala do compositor extremamente significativa. Ficar explcito nas anlises

    que existe, sim, uma preocupao em ambientar a cano atravs do acompanhamento. E,

    muitas vezes, s entendendo esta caracterstica de suas composies que entendemos o

    sentido que o acompanhamento imprime a cada cano, no apenas harmonizando, mas

    participando efetivamente na construo deste sentido.

    45PEREIRA, Joo Carlos. Encontro com Waldemar Henrique.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    30/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    2 3

    2 As bases da Anlise2 . 1 . O o b j e t o d e a n l i s e

    2 . 1 . 1 . A c a n o - o b r a

    Desde que o homem foi reconhecido por outro como

    um ser sensvel, pensante e semelhante a ele prprio,

    o desejo ou a necessidade de comunicar-lhe seus

    sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios

    para isso. 46

    Jean-Jacque Rousseau

    A comunicao da cano se faz, em primeira instncia, entre o compositor e o ouvinte,

    existindo entre eles, neste processo de comunicao, a figura do intrprete (que podecoincidir , ou no, com a do compositor). Os agentes na comunicao de uma cano so

    ento:

    O objeto desta comunicao a cano transformado durante este percurso, quecompreende, em geral, duas fases enunciativas, logicamente determinadas e encadeadas

    nos processos conhecidos como composioe execuo.47Estas duas fases enunciativas

    so os dois momentos em que a cano materializada, permitindo-lhe ser comunicada e,

    46ROUSSEAU, Jean-Jaques.Rousseau. 4 ed. So Paulo: Nova Cultural, 1987. Coleo Os Pensadores. p.15947TATIT, Luiz.Musicando a Semitica. So Paulo: Annablume, 1997. p. 151

    C o m p o s i t o r I n t r p r e t e O u v i n t e

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    31/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    2 4

    os agentes da materializao so o compositor e o intrprete. Numa primeira abordagem,

    preciso fazer referncia ao compositor. ele quem d forma idia musical, e escolhe

    o material sonoro da obra que chegar s mos do intrprete. Mas este ltimo

    [intrprete] que a far existir. Cada um ser, assim, portador de um gesto.48

    A primeira materializao possibilita a comunicao entre compositor e intrprete,

    atravs do processo de composiomencionado por Luiz Tatit no trecho acima, e resulta

    no que estamos chamando de cano-obra (fig2.1).

    O intrprete atua sobre a cano-obra materializando-a sonoramente, transformando-a na

    cano-som, atravs de sua execuo, que a outra fase enunciativa mencionada por Luiz

    Tatit (fig2.2).

    48ZAGONEL, Bernadete. O Que Gesto Musical. So Paulo: Brasiliense (Col. Primeiros Passos), 1992. p.8.

    C o m p o s i t o r

    C a n o o b r acomposio

    I n t r p r e t e

    C a n o

    s o m

    execuo

    C o m p o s i t o r

    C a n o o b r a

    composio

    fig2.1

    fig2.2

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    32/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    2 5

    Finalmente, o ouvinte, por sua vez, atua sobre a cano-som, interpretando-a, atribuindo-

    lhe um sentido(fig2.3).

    Temos, ento, um objeto (cano), que comunicado por um sujeito-emissor

    (compositor) a um sujeito-receptor (ouvinte), passando pelo intrprete. O ouvinte

    interpreta a mensagem atribuindo-lhe um sentido. A presena desses elementos (sujeito-

    emissor, sujeito-receptor, objeto (mensagem), interpretao, sentido) neste processo nos

    sugere pens-lo como um ato de comunicao e, dentro do percurso (fig2.3) que a

    cano descreve neste ato do compositor ao ouvinte concentraremos nossa ateno na

    cano-obra, na materializao do gesto do compositor. O compositor manipula gestos,

    que so na realidade movimentos sonoros presentes anteriormente em seu pensamento,

    e os concretiza em forma de partitura.49

    2 . 1 . 2 . A s L e n d a s A m a z n i c a s

    Iremos nos aproximar mais da obra de Waldemar Henrique atravs da anlise de sete de

    suas canes, todas elas compostas utilizando como tema lendas amaznicas. Como

    definido no item anterior, utilizaremos para as anlises o registro destas canes em

    partituras, a cano-obra de cada uma delas.

    49ZAGONEL, Bernadete. O Que Gesto Musical. p. 36.

    C o m p o s i t o r

    composioC a n o

    o b r a

    I n t r p r e t e

    execuo

    C a n o s o m

    O u v i n t e

    interpretao

    fig2.3

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    33/172

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    34/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    2 7

    foram encontrados seus manuscritos. Nosso trabalho abranger a anlise das sete Lendas

    Amaznicas editadas. Destas, somente duas possuem texto que no so do prprio

    compositor (Foi Boto, Sinh!, Matintaperra), sendo que o poema de ambas de um

    escritor paraense chamado Antnio Tavernard.

    Das 193 obras que constam em seu Catlogo de Obras, apenas 41 (29% do total) foram

    editas. Sobre este assunto, e manifestando o porque da no edio, nos fala o prprio

    compositor:

    Irmos Vitale e Vicente Mangione, e mais tarde RicordAmericana e Fermata foram meus editores. A partir de 1940,verificando certas negligncias, abusadas normas, espertezas,rompi com Vitale, perdendo para ele meu maior repertrio decanes gravadas. Os Irmos Mangione separaram-se edistriburam entre si as peas que lhes entreguei sob absurdoscontratos. Ricord usava idnticos processos sonegadores.Desanimei de todos e nunca mais permiti que meu repertriofosse editado. Os 3 pontos rituais pela Ricord e oAbaluaieHei de seguir teus passosforam editados, respectivamente pelaRicordi e Mangione porque eu precisava lev-las para a Europaeditadas. Deu tudo na mesma. No se vende, no se acha, nose reedita, no se paga nada ao autor. At hoje no quis sereditado, ou melhor dizendo, espoliado.54

    Sobre o prejuzo da no edio da obra de Waldemar Henrique nos fala Claver Filho:

    Somente sete Lendas foram editadas, , enquanto as quatroltimas conservam-se em manuscrito e quase ningum asconhece [...] Esse ineditismo da maior parte da obra deWaldemar Henrique prejudica at os estudiosos, uma vez quenunca possvel fazer uma anlise detalhada de seu estilo,enquanto a problemtica relacionada com as editoras no

    chegar a um fim aceitvel.

    55

    54FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p.99.55FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 85-86

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    35/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    2 8

    2 . 2 . D e f i n i n d o o o l h a r

    2 . 2 . 1 . O F o c o

    Uma anlise sempre um determinado olhar para o objeto analisado. Sobre uma obra de

    arte podem ser lanados infinitos olhares, dada a sua inesgotabilidade, cada olhar

    realar diferentes aspectos. O nosso olhar estar, prioritariamente, direcionado para a

    relao texto-msica, no sentido de investigar como o compositor construiu uma

    compatibilidade entre estes dois componentes, to diferentes, que se unem para formar a

    cano.

    Sobre a diversidade destes dois sistemas de significao nos fala Mrio de Andrade:

    Sob o ponto de vista psicolgico pode-se dizer, embora umpouco primariamente, que se a msica tem sua base exclusivade desenvolvimento na associao de imagens, a poesia tem asua na associao de idias. Ora estes so dois processos decriao psquica profundamente diversos um do outro: aassociao de imagens exclusivamente subconsciente, e a

    associao de idias essencialmente consciente.56

    Compor uma cano um grande malabarismo57que o compositor realiza, tendo numa

    das mos o componente lingstico e na outra o meldico. um processo de

    compatibilizao que, em primeira instncia, realizado atravs do gesto do compositor.

    O componente meldico no pode se desenvolver por critrios puramente musicais, ele

    liga-se indissociavelmente ao texto.

    Ora, se na composio puramente instrumental o compositor

    est livre e pode por isso dar largas s exigncias puramentertmico-meldico-harmnicas da melodia, na cano ele estpreso ao texto e tem de acomodar as exigncias da composioa um texto dado.58

    56ANDRADE, Mrio de.Aspectos da Msica Brasileira. p. 4757Termo definido (neste contexto) e amplamente utilizado por TATIT, Luiz. O cancionista Composiode Canes no Brasil. p. 958ANDRADE, Mrio de.Aspectos da Msica Brasileira. p. 48

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    36/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    2 9

    Na seo 2.1.1, falamos do percurso da cano entre o compositor e o ouvinte como um

    ato de comunicao, no qual o objeto comunicado a cano. A concentrao de nossas

    anlises, primordialmente, na compatibilidade criada pelo compositor entre os

    componentes lingstico e meldico de cada cano, levando-se em conta o ato de

    comunicao, apia-se nas seguintes falas de Luiz Tatit: A eficcia da cano popular

    depende fundamentalmente da adequao e da compatibilidade entre seu componente

    meldico e seu componente lingstico 59, sendo que: eficcia, traduz um xito de

    comunicao entre destinador e destinatrio cujo objeto comunicado a prpria

    cano60.

    2 . 2 . 2 . A i n d i s s o c i a b i l i d a d e e n t r e t e x t o e m e l o d i a

    A grande importncia da compatibilizao dos componentes lingstico e meldico, no

    gesto composicional, vem do fato de que, na cano, texto e melodia so indissociveis.

    Os dois componentes atuam em conjunto na gerao de sentido, so simultneos e

    separveis apenas por artifcios tericos que possibilitam a anlise da cano. Na

    execuo da cano, os mesmos elementos sonoros que constroem a melodia, constroem

    tambm o texto, e deixam transparecer uma fala.

    Uma vez que os componentes so indissociveis (como detalharemos nas sees

    seguintes), quer queira, quer no, atuaro em conjunto para a construo do sentido da

    cano e a preocupao do compositor com a compatibilizao destes componentes

    primordial.

    2 . 2 . 2 . 1 .

    A g n e s e s o n o r a d o t e x t o e d a m e l o d i a .

    A linguagem sobre a qual a cano construda formada por um texto sustentado por

    uma melodia61. Numa execuo, letra e melodia se materializam ao mesmo tempo e

    atravs do mesmo material sonoro. A sustentao sonora das vogais possibilita a

    59TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. So Paulo: Atual, 1987. p. 360TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 361Ao utilizarmos o termo melodia em contraponto a texto, estaremos nos referindo melodia da linha docanto.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    37/172

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    38/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    3 1

    2 . 2 . 2 . 2 .

    A f a l a d o c o m p o s i t o r

    Eu fui um tipo muito tmido (mope) calado. Amsica era a minha fala.

    Waldemar Henrique

    A cano-obra (fig2.1), a materializao de uma fala do compositor, no sentido de

    que: A fala um ato individual de utilizao da lngua, um modo de combinar os

    elementos da lngua no ato de comunicao. 67 A lngua, no caso da cano, uma

    combinao de dois sistemas de significao, um lingstico e um musical. O sentido da

    cano construdo sobre a unio destes dois sistemas que formam um terceiro, que no

    nem um nem outro; transcende a soma dos dois. a linguagem da cano na sua

    indissociabilidade entre letra e melodia, entre seu componente lingstico e seu

    componente meldico.

    A fala do compositor expressa atravs desta linguagem da cano. Um texto

    sustentado por uma musicalidade carregado de sentido, um sentido que no vem s das

    palavras, mas de como elas foram ditas. No ato da composio, o compositor fala o

    texto de uma determinada maneira, atravs da melodia que agrega para sustent-lo.Assim, um texto associado a uma musicalidade um gesto vocal, bem mais que s

    palavras. No mundo do cancionista no importa tanto o que dito mas a maneira de

    dizer, e a maneira essencialmente meldica.68

    O compositor fala pela compatibilizao da letra com a melodia. A cano-obra um

    discurso que, alm de trazer o registro dos fonemas, agrega a estes sons outros atributos

    como: variao de altura, de intensidade e de durao. Estes atributos sonoros j nos

    permitem vislumbrar uma maneira de dizer. um registro de como, em um determinadomomento, o compositor falou aquele texto, com o componente musical revelando as

    modalidades do componente lingstico. Existe um sentido impresso que vai alm da

    significao das palavras.

    67NETTO, J. T. Coelho. Semitica, Informao e Comunicao. 6 ed. So Paulo: Perspectiva,2003. p. 1868TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 9

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    39/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    3 2

    A anlise de uma cano , assim, uma interpretao da fala do compositor, que na sua

    comunicao, adquire diferentes sentidos na recepo de cada ouvinte. A anlise de cada

    cano de Waldemar Henrique que apresentaremos no captulo 3 , neste sentido, o que

    ouvimos daquilo que ele falou em cada uma delas.

    Waldemar Henrique falou atravs de suas canes e falou como um paraense que era:

    Pode-se ser alegre ou triste mas o falar paraense se identifica pela doura. Fixemos esta

    doura69

    2 . 3 . A s b a s e s t e r i c a s

    2 . 3 . 1 .

    O m o d e l o d e L u i z T a t i t

    Luiz Tatit nos apresenta em vrios de seus livros70 uma fundamentao terica para a

    anlise de canes na qual

    vem propondo uma anlise da cano que identifica a estreitaligao entrefala e cano, evidenciando os diversos nveis derelaes existentes entre letra e melodia. Dessa maneira possvel perceber como se d a construo do sentido numaobra que usa dois sistemas de significao distintos: um textolingstico sustentado por um texto meldico. 71

    Seu trabalho tem como base a semitica e, atravs do desenvolvimento de suas pesquisas,

    a semitica possui hoje ferramentas suficientes para, utilizando os mesmos princpios

    tericos, analisar eficientemente letra e melodia, e a interao entre as duas. 72Assim, a

    proposta de Luiz Tatit vem ao encontro da nossa inteno de investigar a relao texto-

    msica nas canes de Waldemar Henrique, uma vez que este o foco que ele prope.

    69FILHO, Claver. Waldemar Henrique O Canto da Amaznia. p. 7970TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. So Paulo:Edusp, 1996; A Cano,Eficcia e Encanto. So Paulo: Atual, 1987; Semitica da Cano Melodia e Letra. 2 ed. SoPaulo:Editora Escuta, 1999 e TATIT, Luiz.Musicando a Semitica. So Paulo: Annablume, 1997.71DIETRICH, Peter.Ara Azul: Uma Anlise Semitica. p. 20.72DIETRICH, Peter.Ara Azul: Uma Anlise Semitica. p. 20.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    40/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    3 3

    Seu trabalho direcionado para a cano popular mas, pelo carter da msica de

    Waldemar Henrique (como discutido na seo 1.4), suas idias so muito apropriadas

    para a anlise deste repertrio.

    Neste trabalho no realizamos uma anlise semitica das canes, pois isto foge

    abrangncia do nosso estudo. O modelo de Tatit est presente na medida em que funciona

    como uma espcie de guia para a reflexo, nos ajudando a identificar os mecanismos

    utilizados pelo compositor para compatibilizar os componentes lingstico e meldico.

    Descreveremos a seguir, vrios aspectos do modelo que proporcionaram uma ampliao

    da nossa viso e entendimento da cano, e direcionaram o nosso pensamento nasanlises, sem a pretenso de esgotar uma descrio desse modelo.

    Na seo 2.2.2.2 descrevemos o que chamamos de fala do compositor, como sendo a

    forma como ele associou um texto a uma melodia para expressar uma idia. Encontramos

    no modelo do Tatit, uma definio semelhante, para a qual utiliza o termo projeto

    enunciativo, que adotaremos.

    Oprojeto enunciativodesdobra-se emprojeto narrativo eprojeto entoativo73

    . A maioriadas canes so narrativas. Existe, pois, na letra, um projeto narrativo que vai desde a

    definio dos actantes (personagens da narrao) e lugares, at os recursos de construo

    do texto com suas variaes de discurso. O projeto narrativo , ento, o componente

    lingstico da cano, seu texto, compreendendo forma e contedo.

    O projeto entoativo a melodia da linha do canto, a musicalidade que se associa

    diretamente ao texto. Os projetos entoativo e narrativo esto intimamente relacionados. A

    voz que canta, no momento mesmo em que delineia a linha meldica conta uma histria,fala o texto.

    A compatibilidade entre o texto e a melodia normalmente criada sob o domnio de um

    destes dois elementos. Ora a melodia regida pelo texto, aproximando-se das entoaes

    73TATIT, Luiz.Musicando a Semitica.. p. 122.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    41/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    3 4

    da fala, ora o texto que se adequa s clulas rtmico-meldicas que se sucedem na

    construo da coeso musical. Neste sentido, numa primeira instncia, existem dois

    direcionamentos na composio de uma cano, e cada um deles atua em diferentes

    nveis e por diferentes estmulos na comunicao com o ouvinte. O primeiro investe na

    comunicao atravs do componente lingstico e o segundo, atravs do musical. Quando

    o investimento no componente lingstico, a melodia caminha em direo fala, o

    contorno meldico faz referncia entoao da fala. Quando o investimento no

    componente musical, o texto se adapta aos padres rtmico-meldicos e temas musicais

    construdos, e que vo sendo reiterados na cano.

    Embora normalmente exista um direcionamento para um dos componentes (lingstico ou

    musical), os dois esto sempre presentes na j comentada indissociabilidade texto-

    melodia (seo 2.2.2). Construir a compatibilidade entre os dois componentes consiste

    em, mesmo investindo em um deles, nunca perder o outro de vista.

    Se o investimento no componente lingstico, a conduo meldica no pode ser

    negligenciada, sob pena de se perder a coeso musical. Por outro lado, um investimento

    no componente musical no pode se distanciar totalmente das referncias da fala.

    Qualquer que seja o projeto de cano escolhido, e por mais que a melodia tenha

    adquirido estabilidade e autonomia neste projeto, o lastro entoativo no pode desaparecer,

    sob pena de comprometer inteiramente o efeito enunciativo que toda cano alimenta. 74

    Existe uma relao muito estreita entre o projeto entoativo e o projeto narrativo:

    O texto vem dos estados da vida: estado de enunciao falasimplesmente; estado de paixo fala de si; estado de

    decantao fala de algum ou de algo. Cada estado retratadono texto tem implicaes meldicas, tem uma compatibilidadeem nvel de modalizao. 75

    O sentido da cano construdo na simultaneidade dos dois projetos.

    74TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 13.75TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 17.

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    42/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    3 5

    Nas nossas anlises das canes procuraremos identificar o quanto o compositor

    direcionou seu gesto para cada um dos componentes, ou seja, como o compositor,

    investindo em um deles, no perdeu a coeso do outro; como este investimento varia

    dentro de uma mesma cano e como isto influencia em seu movimento; como, juntos, os

    dois componentes imprimem um sentido cano. Verificaremos, tambm, se existe uma

    predileo do compositor pelo investimento em um dos componentes, buscando

    identificar a sua fala.

    2 . 3 . 1 . 1 .

    I n v e s t i n d o n o c o m p o n e n t e l i n g s t i c o

    Luiz Tatit adota o termofigurativizaopara o investimento no componente lingstico,para a aproximao da melodia fala. Claro que toda cano, sendo construda com os

    mesmos elementos da fala, no deixa de referenci-la, o que varia o grau de

    investimento neste componente. Seria impossvel eliminarmos, no ato de composio,

    de interpretao ou de audio de algo que possui texto e melodia, nossa vasta

    experincia, acumulada durante todos os dias da nossa vida, com uma linguagem que

    tambm possui texto e melodia76

    No processo de comunicao da cano, como em todo processo de comunicao, a

    finalidade ltima no informar, mas persuadir o outro a aceitar o que est sendo

    comunicado. Por isto, o ato de comunicao um complexo jogo de manipulao com

    vistas a fazer o destinatrio77 crer naquilo que se transmite. 78Uma melodia que no

    perde a sua relao com a entoao, exerce sua persuaso pelapresentificao algum

    falando aqui e agora. Remete o ouvinte fala cotidiana e estabelece uma relao de

    cumplicidade pelo contar uma experincia. O compositor e o intrprete (que so quem

    materializa a cano) so, neste sentido, narradores, contadores de histria, e esse umgrande poder de persuaso da cano. A impresso de que a linha meldica poderia ser

    76TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 877O destinatrio o sujeito a quem a mensagem dirigida, no caso, o ouvinte.78FIORIN, Jos Luiz. Elementos de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2004. p. 52

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    43/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    3 6

    uma inflexo entoativa da linguagem verbal cria um sentido de verdade enunciativa,

    facilmente revertido em aumento de confiana do ouvinte no cancionista.79

    Esse poder de persuaso est diretamente relacionado ao fato que j salientamos (seo

    2.2.2.1) de que fala e canto so construdos, na cano, simultaneamente e com o mesmo

    material sonoro. No momento em que a voz comea a flexionar o texto com uma

    determinada melodia, j nos preparamos para reconhecer, por hbito de linguagem

    coloquial, os traos da entoao. 80

    Cada compositor, em cada cano, insere elementos que favorecem a figurativizao. A

    forma como isto aparece em cada cano tem relao com a fala do compositor, ouseja, como ele, de maneira geral, busca em sua composio um investimento no

    componente lingstico, e como, em cada cano, cria solues para a compatibilizao

    deste investimento com o componente musical, mantendo sua coeso.

    Alguns destes elementos de figurativizao, que esto normalmente presente nas canes

    so: o simulacro de locuo, os diticos , os tonemas e as frases musicais que

    descrevem o contorno de uma enunciao padro.

    a )

    O s i m u l a c r o d e l o c u o

    A comunicao do objeto cano sempre entre o destinador (compositor ou

    intrprete) e o destinatrio (ouvinte). No entanto esta comunicao pode ser estabelecida

    atravs de uma outra, construda em forma de simulacro. Isto acontece, por exemplo, na

    cano Cobra Grande na fala Cunhat te esconde l vem a Cobra Grande... Faz

    depressa uma orao pra ela no te levar. A cunhat no necessariamente o

    destinatrio, assim como o eu que fala no necessariamente o destinador. Existe umacomunicao entre o eu da narrativa e a cunhat, e uma mensagem transmitida neste

    plano de comunicao. Mas este um plano secundrio, pois a comunicao principal

    entre o destinador (compositor ou intrprete) e o destinatrio (ouvinte), atravs da

    transmisso de uma outra mensagem. Para o emissor e o receptor no plano do simulacro

    79TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 2080TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 7

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    44/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    3 7

    Locuo Principal

    Simulacro de Locuo

    utilizaremos os termos adotados por Luiz Tatit: interlocutor e interlocutrio.

    Esquematicamente temos81:

    destinador destinatrio

    compositor/intrprete ouvinte

    interlocutor interlocutrio

    actante da narrativa actante da narrativa

    O simulacro de locuo um recurso de figurativizao que pertence eminentemente ao

    componente lingstico da cano, no entanto, ele normalmente acompanhado por uma

    figurativizao no componente meldico, com criao de um suporte sonoro prximo

    entoao da fala para a parte do texto que configura o simulacro.

    A persuaso do simulacroprovm do fato de, na execuo da cano, o cantor sintetizar

    os papis de destinador/interlocutor, fazendo com que o ouvinte no separe com nitidez a

    locuo principal do simulacro, assim, este ltimo serve para presentificar a situao delocuo. Durante o mesmo tempo que o interlocutor fala com o interlocutrio, o

    destinador canta para o destinatrio [...] Esta identificao entre as duas instncias

    assegura um sentido de verdade ou de realidade que est na base da persuaso

    figurativa.82

    O simulacropode estar presente durante toda uma cano, ou aparecer em alguns trechos

    ocasionando um desvio do discurso, normalmente acompanhado de uma mudana

    tambm no discurso musical. Estas variaes de discurso so geradoras de movimentopara a cano.

    81No esquema apresentado por Luiz Tatit realizamos algumas simplificaes de nomenclatura. TATIT,Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 10.82TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 10

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    45/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    3 8

    b )

    O s D i t i c o s

    Os diticos so elementos presentes no componente lingstico da cano que explicitama situao de locuo. So imperativos, vocativos, demonstrativos, advrbios, etc.83que

    ao serem utilizados entram em fase com a raiz entoativa da melodia, presentificando o

    tempo e o espao da voz que canta. O papel dos diticos lembrar, constantemente, que

    por trs da voz que canta h uma voz que fala 84 Quando Tatti fala que os diticos

    entram em fase com a raiz entoativa da melodia, importante ressaltar que isto

    normalmente acontece, mas sempre funo do gesto do compositor, de seu esforo

    em compatibilizar o texto e a melodia.

    A grande fora persuasiva dos diticos, no sentido de fisgar o ouvinte para a locuo,

    vem do estabelecimento de uma estreita relao entre o componente lingstico e o

    meldico. A utilizao do ditico no texto, acompanhada de um contorno meldico que

    faz referncia sua utilizao na linguagem coloquial, o que garante o seu poder de

    persuaso. Os diticos funcionam como etiquetas discursivas que colam o texto na

    melodia, evidenciando seus traos entoativos. Isto porque, assim como a entoao, os

    diticos visam presentificar a cena discursiva, chamando a ateno para o momento e o

    ambiente em que ocorre a locuo.85

    c ) O s T o n e m a s

    Os tonemas so as terminaes das frases. Eles se configuram atravs da melodia,

    podendo ser descendentes, quando o esforo de emisso distendido e a voz caminha

    para um repouso diretamente associado terminao asseverativa do contedo86;

    ascendentes ou suspensivos, quando sugerem continuidade do discurso.

    83Como exemplo, assinalamos diticos no seguinte trecho de Curupira: S escutopela frente,pelo ladoocurupira me chamar.84TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 2185TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 2186TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 21

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    46/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    3 9

    d )

    A e n u n c i a o p a d r o

    A enunciao-padro da linguagem oral obedece a pelo menos trsfases entoativas: uma fase inicial de ascendncia, associada, emgeral, introduo da temtica (condio de comunicao); uma fasede declnio asseverativo, na qual, em geral, se alojam os contedosopinativos ou mesmo o objeto central da comunicao; e, por fim, afase mais significativa, que corresponde ao tonema. Este podeconfirmar ou comprometer todo o significado construdoanteriormente.A primeira fase de um percurso entoativo, assim como os processos

    passionais, reveste-se de tenso, embora no se refira

    necessariamente a uma questo emotiva. Sua tenso , antes,indicativa de continuidade, servindo entre outras coisas, para manteracessa a ateno do ouvinte. Do mesmo modo, em contrapartida, adescendncia entoativa anuncia proximidade de finalizao aindaque esta possa ser adiada indefinidamente por novas ascendncias. Otonema defini de vez o jogo entoativo fisgando, diretamente na fonteenunciativa, a modalidade que norteia a relao entre o sujeito e seudiscurso. Pelos tonemas, reconhecemos no s as afirmaes, asinterrogaes, as suspenses mas tambm as hesitaes, asinsinuaes, os apelos e outras sutilezas da linguagem oral.87

    O contorno meldico da enunciao padro muitas vezes aparece associado a uma frase

    do texto. s vezes os movimentos de ascendncia e descendncia so realizados por

    escalas diatnicas, s vezes numa repetio de padres rtmico-meldicos, buscando uma

    coeso com o desenvolvimento do componente musical, mas sempre propiciam uma

    tenso crescente pela ascendncia, associada ao discurso do componente lingstico, e um

    relaxamento na descendncia, que corrobora com a concluso da idia da frase do texto.

    2 . 3 . 1 . 2 .

    I n v e s t i n d o n o c o m p o n e n t e m u s i c a l

    O investimento no componente musical pode se dar em duas direes. Na primeira, a

    durao das vogais ampliada, h uma valorizao do contorno meldico com uma

    ampliao da tessitura e dos saltos intervalares. quando o cancionista no quer a ao

    mas a paixo. Quer trazer o ouvinte para o estado em que se encontra. Nesse sentido,

    87TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 258

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    47/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    4 0

    ampliar a durao e a freqncia significa imprimir na progresso meldica a modalidade

    do /ser/88

    Na outra direo, ao contrrio, h uma diminuio da durao das vogais, fazendo com

    que a melodia se torne mais segmentada pelo ataque das consoantes. Os contornos

    meldicos transformam-se em motivos que so reiterados na cano. A acelerao dessa

    descontinuidade meldica, cristalizada em temas reiterativos, privilegia o ritmo e sua

    sintonia natural com o corpo [...] a vigncia da ao. a reduo da durao e da

    freqncia. a msica modalizada pelo /fazer/.89

    Existe uma relao estreita entre o tipo de modalizao utilizada e o contedo docomponente lingstico, sendo que uma variao neste ltimo, no decorrer da cano,

    normalmente implica numa variao de modalizao. Assim, o componente musical e o

    lingstico atuam em conjunto para imprimir o sentido da cano. Sobre esta relao das

    vogais e as consoantes e a modalizao pelo /ser/ e pelo /fazer/ citamos Kristin Linklater

    numa fala bastante esclarecedora:

    De certa maneira, as vogais podem ser vistas como um componente

    emocional da construo das palavras. As consoantes, seucomponente intelectual. As vogais pedem um canal aberto para arespirao, atravs da boca. As consoantes so formadas pelaoposio de alguma parte da boca passagem do ar, criando sonsexplosivos, reverberantes, zunidores ou lquidos atravs darespirao e/ou vibrao. Por sua conexo direta e ininterrupta com arespirao, as vogais podem se ligar diretamente emoo, desdeque o impulso da respirao seja to profundo quanto o diafragma. Oplexo solar primeiro centro nervoso receptor e transmissoremocional entrelaa-se s fibras do diafragma. A emoo, o desejo,o impulso criativo esto intrinsecamente ligados ao sistema nervoso

    central. As consoantes fornecem uma experincia sensorial traduzidaem estados de esprito, modulando e canalizando as vogais empercursos que fazem, das emoes, sentido. O som das consoantescomunica-se mais externamente, atravs do corpo, originandoestados de esprito e efeitos, mais que emoes. As vibraes dasconsoantes trabalham atravs dos ossos, dos msculos, da pele para

    88TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 1089TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 10-11

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    48/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    4 1

    sua percepo. As vogais tm acesso direto ao plexo solar, sendomais imediatamente emocionais.90

    Ainda sobre a diferena da atuao modal das vogais e das consoantes nos fala

    Rousseau: A clera arranca gritos ameaadores, que a lngua e o palato articulam, porm

    a voz da ternura, mais doce, a glote que modifica, tornando-a um som.91 O som

    produzido na glote so os das vogais, as consoantes, em sua grande maioria, so

    produzidos pelos articuladores.

    O investimento na direo de prolongar a sonoridade das vogais, da modalizao pelo

    /ser/ Luiz Tatit chama de passionalizao92. Na direo de criar uma modalizao pelo

    /fazer/ chama de tematizao93. O objetivo da persuaso pela passionalizao

    estabelecer uma cumplicidade emocional entre o destinador e o destinatrio. Pelo texto

    (o destinador)transmite sua posio no quadro narrativo e, pela melodia, sua emoo por

    ocupar esta determinada posio 94. A sonoridade produzida pela sustentao das vogais

    conduz a uma inao, a um estado de introspeco propcio aos relatos passionais. J a

    tematizao caracterizada pela reiterao de temas rtmico-meldicos e conduzem, pela

    pulsao, ao. Muitas vezes estes temas esto relacionados com temas lingsticos,

    neste caso, reiterao meldica, se desenvolve, paralelamente, uma reiterao nodiscurso e assim se garante a compatibilidade entre letra e melodia. No investimento na

    tematizao quando a melodia mais se afasta da fala, o texto que se adapta s clulas

    rtmico-meldicas do componente musical.

    A persuaso pela tematizao se d pelo estmulo somtico da pulsao, e pela

    compatibilidade da reiterao entre texto e melodia.

    90LINKLATER, Kristin. Freeing the Natural Voice. apud LOPES, Sara Pereira.Diz Isso Cantando! AVocalidade Potica e o Modelo Brasileiro. Tese de Doutorado. So Paulo: ECA-USP, 1997. p. 65.91ROUSSEAU, Jean-Jaques.Rousseau. p. 18692Ao investir na continuidade meldica, no prolongamento das vogais, o autor est modalizando todo opercurso da cano com o /ser/ e com os estados passivos da paixo. Suas tenses internas so transferidaspara a emisso das freqncias e, por vezes, para a ampla ampliao da tessitura. Chamo a esse processopassionalizao. TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 2293Ao investir na segmentao, nos ataques consonantais, o autor age sob a influncia do /fazer/,convertendo suas tenses internas em impulsos somticos fundados na diviso dos valores rtmicos, namarcao dos acentos e na recorrncia. Trata-se, aqui, da tematizao. TATIT, Luiz. O cancionista Composio de Canes no Brasil. p. 2294TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 26

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    49/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    4 2

    Este trao comum, a periodicidade, funciona como umdispositivo de compatibilidade entre o texto e a melodia,articulado pelo destinador, com o intuito de envolver odestinatrio num universo de discurso coerente do ponto devista lgico (a periodicidade em si) e do ponto de vistasensitivo (as vibraes).95

    O investimento em uma direo (figurativizao, tematizao ou passionalizao) no

    implica na inexistncia das demais, ao contrrio, normalmente existe uma simultaneidade

    das trs. O que ocorre a dominncia de um deles, sendo que esta dominncia pode ser

    alterada no decorrer da cano, e normalmente esta alterao tem uma relao com o

    contedo do discurso lingstico.

    2 . 3 . 2 . P r o j e t o G e r a l

    O trabalho de Luiz Tatit concentra-se na relao texto-melodia mas, nas nossas anlises,

    observaremos tambm o papel do acompanhamento na construo do sentido das

    canes. Na cano erudita, ao contrrio do que geralmente acontece na popular, o

    acompanhamento faz parte do projeto do compositor.

    Sendo assim, nas nossas anlises alm do projeto entoativo, o componente musical

    engloba tambm o acompanhamento do piano. Chamaremos de projeto geral um

    projeto que engloba o projeto enunciativo (narrativo + entoativo) e o projeto do

    acompanhamento . As anlises estaro direcionadas para a apreenso da construo da

    compatibilidade entre estes diversos projetos, separados para fins de anlise, mas

    entendendo que na indissociabilidade deles que construdo o sentido da cano.

    O modelo de Tatit nos fornece uma base bastante consistente para a anlise dacompatibilidade entre texto e melodia, apoiando-se na semitica, e foi nesta rea de

    conhecimento que fomos tambm nos apoiar para conseguir estender esta base para a

    anlise da compatibilidade do texto com todos os elementos musicais. O conceito da

    semitica que nos serviu de base foi o depercurso gerativo de sentido.

    95TATIT, Luiz.A Cano, Eficcia e Encanto. p. 53

  • 8/10/2019 WALDEMAR HENRIQUE BarrosMariadeFatimaEstelita

    50/172

    ________________________________________________________ A s b a s e s d a A n l i s e

    ________________________

    4 3

    O percurso gerativo de sentido uma sucesso de patamares, cada um dos quais

    suscetvel de receber uma descrio adequada, que mostra como se produz e interpreta o

    sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo.96 Esses patamares

    so: o nvel fundamental, o nvel narrativo, e o nvel discursivo.

    No nvel fundamentalsurge a significao atravs de uma oposio semntica. No nvel

    narrativoso descritos os estados e as transformaes.

    O nvel narrativo ocupa-se dos valores inscritos nos objetos.Numa narrativa, aparecem dois tipos de objetos: objetosmodais e objetos de valor. Os primeiros so o /querer/, o

    /dever/, o /saber/ e o /poder fazer/ [...] Os segundos so osobjetos com que se entra em conjuno ou disjuno.97

    A obteno dos objetos modais necessria para que o sujeito realize as transformaes

    da narrativa, e entre em conjuno ou disjuno com os objetos de valor. No nvel

    discursivo , as formas abstratas do nvel narrativo so concretizadas. Recorremos a um

    exemplo para melhor esclarecer os conceitos. No nvel fundamental podemos ter a

    oposio /pobreza/ X /riqueza/. No narrativo, um percurso que descreve a conjuno de

    um sujeito com a riqueza. No discursivo esta conjuno pode ser concretizada por:

    assaltar um banco, receber uma herana, etc. So diferentes concretizaes do objeto

    valor /riqueza/.98

    A gerao de um texto (no s um texto lingstico), parte do nvel fundamental, at

    atingir o discursivo, no qual as idias so materializadas e podem ser transmitidas, o

    texto tal qual se apresenta ao leitor. No nosso trabalho, esse texto a cano-obra. No

    processo de anlise, percorre-se o percurso gerativo de sentido na direo inversa: a

    partir do texto, do nvel discursivo, chega-se ao nvel fundamental, que chamaremos dencleo gerador.

    96FIORIN, Jos Luiz. Elementos de Anlise do Discurso.p.17.