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O papel da teoria na estética Morris Weitz A teoria tem tido um papel central na estética e ainda é a preocupação da filosofia da arte. A sua maior preocupação continua a ser, assumidamente, a determinação da natureza da arte, que possa ser formulada por meio de uma definição. Ela concebe a definição como a afirmação das propriedades necessárias e suficientes daquilo que está a ser definido, e esta afirmação diz algo de verdadeiro ou falso acerca da essência da arte, acerca daquilo que a caracteriza e a distingue de tudo o resto. Cada uma das grandes teorias da arte -- formalismo, voluntarismo, emocionalismo, intelectualismo, intuicionismo, organicismo -- converge na tentativa de enunciar as propriedades definidoras da arte. Cada uma delas reclama ser a verdadeira teoria por ter formulado correctamente a verdadeira definição da natureza da arte; e reivindica que as restantes teorias são falsas por terem deixado de fora alguma propriedade necessária ou suficiente. Muitos especialistas mantêm que o seu empreendimento não é um mero exercício intelectual, mas antes uma necessidade absoluta para qualquer compreensão da arte e da nossa correcta avaliação artística. Eles afirmam que, a não ser que saibamos o que é a arte, quais as suas propriedades necessárias e suficientes, não podemos reagir adequadamente à arte nem dizer por que razão uma obra é boa ou melhor do que outra. Assim, a teoria estética não só é importante em si mesma, mas também em relação aos fundamentos quer da apreciação quer da crítica de arte. Os filósofos, os críticos e mesmo os artistas que escreveram sobre arte, concordam que o que é primário em estética é a teoria acerca da sua natureza. Será a teoria estética possível, no sentido de uma definição verdadeira ou de um conjunto de propriedades necessárias e suficientes da arte? Mais que não seja, a própria história da estética obriga-nos a fazer uma pausa. Além da existência de várias teorias, parece não estarmos hoje mais perto do nosso objectivo do que estávamos no tempo de Platão. Cada época, cada movimento artístico, cada filosofia da arte, tentou vezes sem conta estabelecer o seu ideal para depois ser sucedida por uma teoria nova ou revista, a qual se baseou, pelo menos em parte, na rejeição das teorias precedentes. Mesmo hoje, quase todos aqueles que se interessam por questões estéticas continuam profundamente ligados à esperança de que aparecerá uma teoria correcta da arte. Basta inspeccionar os numerosos livros novos sobre arte nos quais novas definições são apresentadas, ou, especialmente no nosso país, os manuais e antologias básicas para reconhecermos quão forte é a prioridade dada a uma teoria da arte. Neste ensaio, pretendo advogar a rejeição deste problema. Pretendo mostrar que a teoria -- no sentido clássico requerido -- nunca surgirá na estética, e que faríamos muito melhor enquanto filósofos em substituir a questão «Qual é a natureza da arte?» por outras questões, a resposta às quais nos fornecerá todo o entendimento possível acerca das artes. Pretendo mostrar que a insuficiência das teorias não é primariamente ocasionada por nenhuma dificuldade legítima originada, por exemplo, pela vasta complexidade das artes, a qual poderia ser corrigida por uma exploração e investigação complementares. As suas insuficiências básicas residem antes numa má compreensão fundamental da arte. A teoria estética -- toda ela -- está errada em princípio ao pensar que uma teoria correcta é possível uma vez que adultera radicalmente a lógica do conceito de arte. É falsa a sua principal contenda de que a "arte" é susceptível de uma definição real ou de outro tipo de definição verdadeira. A sua tentativa de descobrir as propriedades necessárias e suficientes da arte é logicamente ilegítima pela simples razão de que nunca aparecerá um tal conjunto de propriedades nem, consequentemente, a sua fórmula. A arte, tal como a lógica do conceito mostra, não tem nenhum conjunto de propriedades necessárias e suficientes; logo, uma teoria acerca dela é logicamente impossível e não apenas factualmente impossível. A teoria estética tenta definir o que não pode ser definido no sentido requerido. Mas apesar de recomendar a rejeição da teoria estética, não irei defender, como muitos outros fizeram, que as suas confusões lógicas lhe tiraram o sentido ou o valor. Pelo contrário, desejo

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  • O papel da teoria na esttica Morris Weitz

    A teoria tem tido um papel central na esttica e ainda a preocupao da filosofia da arte. A sua maior preocupao continua a ser, assumidamente, a determinao da natureza da arte, que possa ser formulada por meio de uma definio. Ela concebe a definio como a afirmao das propriedades necessrias e suficientes daquilo que est a ser definido, e esta afirmao diz algo de verdadeiro ou falso acerca da essncia da arte, acerca daquilo que a caracteriza e a distingue de tudo o resto. Cada uma das grandes teorias da arte -- formalismo, voluntarismo, emocionalismo, intelectualismo, intuicionismo, organicismo -- converge na tentativa de enunciar as propriedades definidoras da arte. Cada uma delas reclama ser a verdadeira teoria por ter formulado correctamente a verdadeira definio da natureza da arte; e reivindica que as restantes teorias so falsas por terem deixado de fora alguma propriedade necessria ou suficiente. Muitos especialistas mantm que o seu empreendimento no um mero exerccio intelectual, mas antes uma necessidade absoluta para qualquer compreenso da arte e da nossa correcta avaliao artstica. Eles afirmam que, a no ser que saibamos o que a arte, quais as suas propriedades necessrias e suficientes, no podemos reagir adequadamente arte nem dizer por que razo uma obra boa ou melhor do que outra. Assim, a teoria esttica no s importante em si mesma, mas tambm em relao aos fundamentos quer da apreciao quer da crtica de arte. Os filsofos, os crticos e mesmo os artistas que escreveram sobre arte, concordam que o que primrio em esttica a teoria acerca da sua natureza.

    Ser a teoria esttica possvel, no sentido de uma definio verdadeira ou de um conjunto de propriedades necessrias e suficientes da arte? Mais que no seja, a prpria histria da esttica obriga-nos a fazer uma pausa. Alm da existncia de vrias teorias, parece no estarmos hoje mais perto do nosso objectivo do que estvamos no tempo de Plato. Cada poca, cada movimento artstico, cada filosofia da arte, tentou vezes sem conta estabelecer o seu ideal para depois ser sucedida por uma teoria nova ou revista, a qual se baseou, pelo menos em parte, na rejeio das teorias precedentes. Mesmo hoje, quase todos aqueles que se interessam por questes estticas continuam profundamente ligados esperana de que aparecer uma teoria correcta da arte. Basta inspeccionar os numerosos livros novos sobre arte nos quais novas definies so apresentadas, ou, especialmente no nosso pas, os manuais e antologias bsicas para reconhecermos quo forte a prioridade dada a uma teoria da arte.

    Neste ensaio, pretendo advogar a rejeio deste problema. Pretendo mostrar que a teoria -- no sentido clssico requerido -- nunca surgir na esttica, e que faramos muito melhor enquanto filsofos em substituir a questo Qual a natureza da arte? por outras questes, a resposta s quais nos fornecer todo o entendimento possvel acerca das artes. Pretendo mostrar que a insuficincia das teorias no primariamente ocasionada por nenhuma dificuldade legtima originada, por exemplo, pela vasta complexidade das artes, a qual poderia ser corrigida por uma explorao e investigao complementares. As suas insuficincias bsicas residem antes numa m compreenso fundamental da arte. A teoria esttica -- toda ela -- est errada em princpio ao pensar que uma teoria correcta possvel uma vez que adultera radicalmente a lgica do conceito de arte. falsa a sua principal contenda de que a "arte" susceptvel de uma definio real ou de outro tipo de definio verdadeira. A sua tentativa de descobrir as propriedades necessrias e suficientes da arte logicamente ilegtima pela simples razo de que nunca aparecer um tal conjunto de propriedades nem, consequentemente, a sua frmula. A arte, tal como a lgica do conceito mostra, no tem nenhum conjunto de propriedades necessrias e suficientes; logo, uma teoria acerca dela logicamente impossvel e no apenas factualmente impossvel. A teoria esttica tenta definir o que no pode ser definido no sentido requerido. Mas apesar de recomendar a rejeio da teoria esttica, no irei defender, como muitos outros fizeram, que as suas confuses lgicas lhe tiraram o sentido ou o valor. Pelo contrrio, desejo

  • fazer uma nova avaliao do seu papel e das suas contribuies para mostrar, sobretudo, que da maior importncia para a nossa compreenso das artes.

    Examinemos agora brevemente algumas das mais famosas teorias estticas existentes, de modo a ver se elas de facto incorporam afirmaes correctas e adequadas acerca da natureza da arte. Em cada uma destas teorias presume-se que ela fornece a verdadeira enumerao das propriedades definidoras da arte, ficando implcito que as teorias antecedentes forneceram ms definies. Para comear, considere uma verso famosa da teoria formalista, a qual foi proposta por Bell e Fry. verdade que eles falam sobretudo da pintura nos seus escritos, mas ambos afirmam que aquilo que eles encontram nessa forma de arte pode ser generalizado para aquilo que "arte" nas outras formas de arte. A essncia da pintura, defendem eles, a relao entre os elementos plsticos. A sua propriedade definidora a forma significante, isto , certas combinaes entre as linhas, as cores, as formas e os volumes -- tudo aquilo que se encontra na tela excepto os elementos representacionais -- que evocam uma reaco peculiar a tais combinaes. A pintura definvel como organizao plstica. A natureza da arte, aquilo que ela realmente , afirma esta teoria, uma combinao nica de certos elementos (os elementos plsticos especificados) e das suas relaes. Tudo aquilo que arte uma instncia de forma significante; e tudo aquilo que no arte no possui tal forma.

    A isto responde o emocionalista dizendo que a verdadeira propriedade essencial da arte foi deixada de lado. Tolstoy, Ducasse, ou qualquer outro dos defensores desta teoria, acham que a propriedade definidora requerida no a forma significante, mas antes a expresso das emoes num qualquer meio pblico sensual. Sem a projeco das emoes num qualquer pedao de pedra ou num qualquer pedao de madeira ou em certos sons, etc., no pode haver arte. A arte de facto tal personificao. isto que caracteriza a arte de forma nica, e qualquer definio verdadeira, contida numa qualquer teoria adequada da arte, deve por isso referi-la.

    Os intuicionistas rejeitam as emoes e a forma como propriedades definidoras. Por exemplo, na verso de Croce, a arte no identificada com um objecto fsico pblico mas com uma arte criativa especfica, cognitiva e espiritual. A arte um primeiro estdio de conhecimento em relao qual certos seres humanos (os artistas) encaminham as suas imagens e as suas emoes para uma clarificao ou expresso lrica. Como tal, a arte uma tomada de conscincia, de carcter no conceptual, da individualidade nica das coisas; e uma vez que se situa abaixo do nvel de conceptualizao, ou de aco, no possui contedo cientfico ou moral. Croce escolheu como essncia definidora da arte este primeiro estgio de vida espiritual e avana esta identificao com a arte como traduzindo uma teoria filosfica verdadeira ou uma definio.

    O organicista diz a tudo isto que a arte , na verdade, uma classe de todos orgnicos, consistindo em elementos discriminveis, embora inseparveis, que mantm relaes causalmente eficazes e que esto presentes num certo meio sensvel. Em A. C. Bradley, em certos fragmentos de verses de crtica literria, ou na minha prpria adaptao generalizada disto em Philosophy of the Arts, o que se afirma que tudo aquilo que uma obra de arte na sua natureza um complexo nico de partes interrelacionadas -- na pintura, por exemplo, as linhas, as cores, os volumes, os temas, etc., interagem entre si numa superfcie de pintura. Sem dvida que, pelo menos numa certa altura, pensei que a teoria orgnica constitusse a verdadeira e real definio de arte.

    O meu ltimo exemplo o mais interessante de todos, logicamente falando. Este a teoria voluntarista de Parker. Nos seus escritos sobre arte, Parker coloca constantemente em causa as definies simplrias tradicionais de esttica. A suposio subjacente de toda a teoria da arte a existncia de uma natureza comum presente em todos as artes.(1) Todas as to populares e breves definies de arte -- "forma significante", "expresso", "intuio", "prazer objectivado" -- so falaciosas, ou porque se verificam no caso da arte, mas tambm em muitas outras coisas que no so arte, e assim falham em diferenciar a arte das outras coisas; ou ento porque negligenciam algum aspecto essencial da arte.(2) Mas em vez de invectivar contra a prpria

  • tentativa de definir arte, Parker insiste que aquilo que necessrio uma definio complexa em vez de uma simples. A definio de arte deve assim ser formulada em termos de um complexo de caractersticas. A incapacidade de reconhecer isto tem sido a falha de todas as bem conhecidas definies.(3) A sua prpria verso do voluntarismo resulta na teoria de que a arte essencialmente trs coisas: a personificao de desejos imaginativamente satisfeitos, a linguagem, a qual caracteriza o meio pblico da arte, e a harmonia, a qual unifica a linguagem com as camadas das projeces imaginativas. Assim, para Parker, uma definio verdadeira de arte dizer que ela [...] fornece satisfao atravs da imaginao, da significao social e da harmonia. Estou a afirmar que nada mais excepo das obras de arte possuem todas estas trs marcas.(4)

    Todas as teorias apresentadas so inadequadas em diferentes aspectos. Todas elas pretendem fornecer uma descrio completa das caractersticas definidoras das obras de arte e contudo cada uma delas deixa de lado algo que as outras tomavam como central. Algumas dessas teorias so circulares -- por exemplo, a teoria da arte de Bell-Fry como forma significante, que em parte define essa caracterstica em termos da nossa reaco forma significante. Algumas, na sua procura das propriedades necessrias e suficientes, realam pouqussimas caractersticas, como o caso (mais uma vez) da definio de arte de Bell-Fry, que deixa de lado a representao de temas na pintura; ou a teoria de Croce, que omite a incluso da importantssima caracterstica do meio pblico, do carcter fsico, por exemplo, da arquitectura. Outras teorias so demasiado gerais e incluem objectos que no so arte a par com as obras de arte. O organicismo certamente um exemplo disso, uma vez que pode ser aplicada a qualquer unidade causal do mundo natural, assim como arte.(5) Outras ainda, baseiam-se em princpios dbios, por exemplo, a afirmao de Parker de que a arte personifica satisfaes imaginativas, em vez de satisfaes reais; ou a afirmao de Croce de que existe conhecimento no conceptual. Consequentemente, mesmo que a arte tenha um conjunto de propriedades necessrias e suficientes, nenhuma das teorias que referimos, nem nenhuma das teorias propostas at data, enumerou esse conjunto de propriedades de modo satisfatrio para todos.

    Existe alm disso um tipo diferente de dificuldade. Como definies reais este tipo de teorias deviam fornecer informaes factuais sobre a arte. E se isto for verdade, podemos perguntar se sero elas teorias empricas e abertas verificao ou falsificao. Por exemplo, o que que confirmaria ou infirmaria a teoria de que a arte forma significante ou a personificao das emoes ou a sntese criativa de imagens? Parece nem sequer haver a mais pequena sugesto sobre que tipo de dados poderia testar estas teorias; e de facto, perguntamo-nos se elas no sero talvez definies honorficas de "arte", isto , propostas de redefinio do conceito de arte de modo a aplic-lo em funo de certas condies escolhidas , e no informaes verdadeiras ou falsas acerca das propriedades essenciais da arte.

    Mas todas estas crticas s teorias estticas tradicionais -- a crtica de que so circulares, ou incompletas, ou no testveis, ou pseudo-factuais, ou meras propostas para mudar o significado dos conceitos -- j tinham sido feitas. A minha inteno ir alm dessas crticas de modo a fazer uma crtica bem mais fundamental, nomeadamente, a de que a teoria esttica uma tentativa logicamente v para definir aquilo que no pode ser definido, de determinao das propriedades necessrias e suficientes daquilo que no tem propriedades necessrias nem suficientes, de conceber o conceito de arte como fechado quando o seu prprio uso exige a sua abertura.

    *

    O problema com o qual temos de comear no O que arte?, mas Que tipo de conceito "arte"?. De facto, o problema central da prpria filosofia consiste em explicar a relao entre o uso de certos tipos de conceitos e as condies sob as eles podem ser correctamente aplicados. Se me permitido parafrasear Wittgenstein, no devemos perguntar qual a natureza de um certo x filosfico, ou ainda, de acordo com os semanticistas, qual o significado de "x", algo que leva

  • interpretao desastrosa de "arte" como um nome para um conjunto especfico de objectos; devemos antes perguntar Qual o uso ou funo de x?, Qual a funo que "x" desempenha na linguagem?. Penso ser esta a questo inicial, o incio, seno o fim, de todos os problemas e solues filosficos. Deste modo, o nosso primeiro problema na esttica o de elucidao do emprego efectivo do conceito de arte, de modo a fornecer uma descrio lgica da funo actual do conceito, incluindo uma descrio das condies debaixo das quais o usamos correctamente ou aos seu conceitos correlatos.

    O meu modelo, neste tipo de descrio lgica ou filosfica, deriva de Wittgenstein, e foi tambm ele que, na sua refutao da teorizao filosfica no sentido de construo de definies de entidades filosficas, equipou a esttica contempornea com um ponto de partida para qualquer progresso futuro. Na sua nova obra, Investigaes Filosficas(6), Wittgenstein coloca como questo ilustrativa, a questo de saber o que um jogo. A resposta filosfica terica tradicional seria dada em termos de um conjunto exaustivo de propriedades comuns a todos os jogos. A isto responde Wittgenstein que devemos considerar aquilo a que chamamos "jogos": Quero com isto dizer os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, os jogos de bola, os jogos de combate, etc. O que comum a todos eles? No respondas: "Tem de haver qualquer coisa em comum, seno no se chamariam jogos" -- mas olha, para ver se tm alguma coisa em comum -- porque quando olhares para eles no vers de facto o que todos tm em comum, mas vers parecenas, parentescos, e em grande quantidade.

    Os jogos de cartas so como os jogos de tabuleiro em alguns aspectos mas no noutros. Nem todos os jogos so divertidos, e nem sempre h ganhar e perder, ou competio entre os jogadores. Alguns jogos assemelham-se a outros em alguns aspectos -- isto tudo. O que encontramos, no so propriedades necessrias e suficientes, mas apenas uma rede complicada de parecenas que se cruzam e sobrepem umas s outras de tal modo que podemos dizer que os jogos formam uma famlia com parecenas de famlia e sem nenhum trao comum. Se perguntarmos o que um jogo, para responder vamos buscar exemplos de jogos, descrevemo-los, e acrescentamos o seguinte, a isto e a coisas parecidas chama-se um jogo. Isto tudo o que precisamos de dizer e de facto tudo o que sabemos acerca de jogos. Saber o que um jogo no saber uma definio real ou uma teoria, mas ser capaz de reconhecer e explicar os jogos e ser capaz de decidir de entre exemplos novos e imaginrios a quais lhes chamaramos "jogos".

    O problema da natureza da arte como o da natureza dos jogos, pelo menos neste aspecto: se olharmos e vermos a que que chamamos "arte", tambm no iremos encontrar nenhuma propriedade comum -- apenas cadeias de similaridades. Saber o que arte no apreender uma essncia manifesta ou latente mas ser capaz de reconhecer, descrever e explicar aquelas coisas a que chamamos "arte" em virtude de certas similaridades.

    A semelhana bsica entre estes conceitos a sua estrutura aberta. Ao elucid-los, alguns casos (paradigmticos) podem ser dados, acerca dos quais no pode existir a mnima dvida ao serem descritos como "arte" ou "jogo", mas no possvel fornecer um conjunto exaustivo de exemplos. Posso fazer uma lista de alguns casos e algumas condies sob as quais aplico correctamente o conceito de arte, mas no posso fazer uma lista de todos esses casos e condies pela simples razo que esto sempre a surgir ou a antever-se condies novas ou imprevisveis.

    Um conceito aberto se as suas condies de aplicao so reajustveis e corrigveis; isto , se uma situao ou um caso pode ser imaginado ou obtido, o qual requeresse algum tipo de deciso da nossa parte de modo ou a alargar o uso do conceito para abranger o novo caso ou a fechar o conceito inventando um novo para abranger o novo caso e a sua nova propriedade. Se podemos estabelecer condies necessrias e suficientes para a aplicao de um conceito, o conceito fechado. Mas isto algo que apenas pode acontecer na lgica e na matemtica onde os conceitos so construdos e completamente definidos. Isto no pode acontecer com conceitos

  • empiricamente descritivos e normativos, a no ser que os fechemos arbitrariamente estipulando o alcance dos seus usos.

    Posso ilustrar melhor este carcter aberto da "arte" com exemplos retirados dos seus sub-conceitos. Considere questes como as seguintes: U.S.A. de Dos Passos um romance?; Rumo ao Farol de V. Woolf um romance?; Finnegans Wake de Joyce um romance? Do ponto de vista tradicional, estes so problemas factuais que devemos responder com um sim ou no de acordo com a presena ou a ausncia de propriedades definidoras. Mas certamente que esta no a forma como respondemos a estas questes. Assim que tal questo se coloca, como aconteceu tantas vezes no desenvolvimento de romances desde Richardson a Joyce (por exemplo, The Scholl for Wives de Gide um romance ou um dirio?), o que est em causa, no um exame factual acerca de propriedades necessrias e suficientes mas uma deciso sobre se a obra examinada ou no similar a outras obras, em certos aspectos, a que j chamvamos "romances", e se, consequentemente, se justifica ou no o alargamento do conceito de modo a abranger este caso novo. A nova obra uma narrativa, uma obra ficcional, contm um esboo de personagens e dilogos, mas, por exemplo, o enredo no tem uma sequncia temporal regular ou interpolada por relatos verdicos de jornais. Esta nova obra em alguns aspectos similar aos reconhecidos romances A, B, C, ..., mas diferente noutros aspectos. Mas tambm nem a obra B nem a C era similar A em todos os aspectos quando se decidiu alargar o conceito que se aplicava a A a B e a C. Uma vez que a obra N+1 (a nova obra) como a obra A, B, C, ... e N em certos aspectos -- tem certos traos similares -- o conceito alargado e uma nova fase do romance criada. Assim, a questo, N+1 um romance? no uma questo factual, mas antes um problema de deciso, cujo o veredicto consiste em saber se devemos ou no alargar o nosso conjunto de condies de aplicao do conceito.

    O que se verifica no caso do romance verifica-se tambm, penso eu, em todos o sub-conceitos de arte: "tragdia", "comdia", "pintura", "pera", etc., e verifica-se no caso do prprio conceito de "arte". Nenhuma questo do tipo X um romance, uma pintura, uma pera, uma obra de arte, etc.? permite uma resposta definitiva no sentido de um sim ou um no baseado em factos. A resposta questo esta colagem uma pintura ou no? no assenta num conjunto de propriedades necessrias e suficientes da pintura, mas em saber se decidimos ou no -- como de facto o fizemos -- alargar o termo "pintura" para abranger este caso.