A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA DO TEATRO DO OPRIMIDO, DE AUGUSTO BOAL
Francisco Wescley Bruno Sampaio de Araujo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Relações Etnicorraciais.
Orientadora:
Profª. Eneida Leal Cunha, Doutora
Rio de Janeiro
Dezembro - 2014
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A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA DO TEATRO DO OPRIMIDO, DE AUGUSTO BOAL
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Relações Etnicorraciais.
Francisco Wescley Bruno Sampaio de Araujo
Aprovada por:
______________________________________________
Presidente, Profª. Eneida Leal Cunha, Doutora (orientadora)
________________________________________________
Profª. Liv Rebecca Sovik, Doutora
_____________________________________________________
Profª. Dra. Adriana Schneider Alcure, Doutora (UFRJ)
Rio de Janeiro
Dezembro – 2014
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DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho a todos os companheiros de luta, professores e arte educadores
conhecidos e desconhecidos, que empregam suas vidas em ensinar o amor através
das relações etnicorraciais, entre todos os cidadãos.
v
AGRADECIMENTOS
À minha família, Ciné, Zélia, Wéllida, Beatriz e Kayo, por serem minha fonte de inspiração de vida, por serem meu porto seguro, e em especial às minhas tias educadoras, influências direta na minha vida educacional, Tia Fátima Sampaio e Tia Lena Sampaio.
À minha orientadora Profª. Eneida leal Cunha, pelo grande ensinamento
repassado através das disciplinas estudadas com a mesma, e das orientações detalhadamente sinalizadas para esta dissertação.
Ao CEFET, ao Programa de Pós Graduação em Relações Etnicorraciais, em especial aos professores que me acompanham desde a Pós Graduação Lato Sensu em Relações Etnicorraciais, acompanhando de perto as lutas, a resistência e as vitórias do reconhecimento desse curso no meio acadêmico e científico, muito obrigado aos professores que colaboraram com o aprofundamento dessas questões
raciais no meu projeto de pesquisa, em especial à Profª. Nancy Rabelo, Prof. Roberto
Borges, Prof. Sérgio Costa, Profª. Renilda Barreto, Prof. Carlos Henrique Martins,
Profª. Liv Sovik, Profª. Tânia Müller e Profª. Nara Maria Costa de Santana. Aos
amigos, colegas de mestrado e companheiros de luta, Luiza Mandela, Patrícia Rodrigues, Rita Ladeira, Eliane Cruz, Ricardo Riso, Nadson Nei, Maria Cristina, Marcelo Cucco, Sirlene Ribeiro, entre outros, que continuemos seguindo nossos ideais de uma sociedade mais justa.
Ao Instituto Bola Pra Frente e ao Educandário São Pedro de Alcântara por terem me proporcionado essa possibilidade de experimentar em prática, em seus espaços físicos e com seus alunos, a metodologia apresentada e discutida aqui nesta dissertação. Ao professor e amigo Tarciso Manfrenatti por ter me cedido algumas aulas suas de filosofia para ministrar as aulas de teatro de oprimido que gerou essa dissertação.
Ao Centro de Teatro do Oprimido, pelas orientações e experiências compartilhadas, durante curso de formação, palestras e conversas informais, especialmente à Flávio Sanctum que muito contribuiu, indicando-me bibliografias específicas sobre o Teatro do Oprimido.
À Profª. Rozeli Bourguignon, pelos ensinamentos diários adquiridos no Centro Educacional da Tijuca, tornando-se para mim um grande exemplo de educadora.
À minha segunda família, um grupo de amigos que torce junto comigo e que nos momentos mais difíceis eu sei que posso contar com eles. Pessoas que acreditam e sempre acreditaram em mim, muito obrigado pelo carinho, aos meus amigos do grupo Verdades Alternativas: Renata Penajoia, Sylvia Arcuri, Luís Paulo Borges, Wallace Lopes, Érika Pinheiro, Juliano Gonçalves e Mariana Emiliano.
vi
Teatro é conflito, luta, movimento, transformação, e não simples
exibição de estados de alma. É verbo, e não simples adjetivo.
BOAL( 2012)
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RESUMO
A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES ETNICORRACIAIS DENTRO DA METODOLOGIA DO TEATRO DO OPRIMIDO, DE AUGUSTO BOAL
Francisco Wescley Bruno Sampaio de Araujo
Orientadora:
Profª. Eneida Leal Cunha, Doutora
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como requisitos necessários à obtenção do título de mestre em Relações Etnicorraciais.
Na perspectiva da Lei 10.639/03, acreditamos que a arte possa ser um espaço privilegiado de criação e tomada de consciência dos alunos enquanto atores político/social(ais) que são, frente aos constantes conflitos construídos na história social brasileira a partir das relações étnico-raciais, que imerge os sujeitos em uma cultura excludente e estruturada através de preconceitos. A exclusão social determinada pelo racismo, observada a partir da dimensão que o Teatro do Oprimido ao confrontar a relação “oprimido versus opressor”, e as várias outras facetas que escapam desse polo dualista, irão nos revelar os tipos de relacionamentos sociais que constituem uma das mais poderosas e perversas armas de controle e exclusão que a nossa sociedade ainda preserva, por agir na sombra da mitologia da democracia racial. Essa pesquisa propõe uma metodologia de ensino em teatro educação, para as relações etnicorraciais, que atenda a Lei 10.639/03, apresentando uma prática feita com jovens de 11 a 17 anos, parte em uma organização não governamental, e parte em uma escola de ensino formal, ambas na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Dessa prática, foram recolhidos vários depoimentos sobre as experiências dos alunos após a prática do Teatro de Oprimido. Essas experiências foram registradas em “Diários de Bordo”, relatos esses que nos deram uma dimensão bastante objetiva do alcance dessa prática de ensino em suas Relações Etnicorraciais cotidianas.
Palavras-chaves:
Arte-Educação; Relações Etnicorraciais; Teatro do Oprimido.
Rio de Janeiro
Dezembro - 2014
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ABSTRACT
THE IDENTITIES OF ETHNIC-RACIAL CONSTRUCTION IN THE METHODOLOGY OF THE THEATER OF THE OPPRESSED, BY AUGUSTO BOAL
Francisco Wescley Bruno Sampaio de Araujo
Advisor:
Eneida Leal Cunha, D.Sc.
Abstract of dissertation submitted to Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, as partial fulfillment of the requirements for the degree of Master in Relações Etnicorraciais.
From the perspective of Law 10,639 / 03, we believe that art can be a privileged space for creation and awareness of our students, as political /social actors, that are facing the constant conflicts built in Brazilian social history from the ethnic-racial relations, which immerses the subject in an exclusionary and structured cultural prejudices. Social exclusion determined by racism, observed from the dimension that the Theatre of the Oppressed to confront the "oppressed versus the oppressor" relationship, and various other facets that escape this dual pole, will reveal the kinds of social relationships that constitute one of the most powerful and corrupt arms control and exclusion that our society still preserves, for acting in the shadow of the mythology of racial democracy. This research proposes a teaching methodology in theater education for the etnic and racial relations, that meets the Law 10.639/03, with a practice done with young people aged 11 to 17 years old, in part a non-governmental organization, and part in an educational school formal, both on the outskirts of Rio de Janeiro. This practice was collected several testimonies about the experiences of the students after the practice of the Theater of the Oppressed. These experiences were recorded in "Logbooks", these reports have given us a fairly objective dimension, the scope of this teaching practice in their everyday Ethnic and Race Relations.
Keywords::
Art Education; Ethnic-racial Relations; Theater of the Oppressed.
Rio de Janeiro
Dezembro - 2014
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Sumário
Introdução 1
I. As Relações Etnicorraciais no Brasil 5
I.1 A construção da hierarquia racial e do racismo 8
I.2 A contribuição de Gilberto Freyre 11
I.3 A grande contribuição de Florestan Fernandes 14
I.4 Um retrato do racismo à brasileira. 19
II. As Relações Etnicorraciais e a Educação no Brasil 23
II.1 Entendendo o termo “etnicidade” a partir de Lívio Sansone. 28
II.2 Algumas experiências da educação brasileira com as questões
étnicas e raciais. 36
II.3 Em busca de uma Pedagogia Antirracista. 41
III. A metodologia do Teatro do Oprimido de Augusto Boal. 48
III.1 O Teatro do Oprimido 56
III.1.1 Dramaturgia Simultânea e Teatro Fórum 59
III.1.2 Teatro Imagem 60
III.1.3 Teatro Invisível 61
III.1.4 Arco-Íris do Desejo e Psicodrama 62
III.1.5 Fábrica de Teatro Popular 63
III.1.6 Teatro Legislativo 64
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IV. O Teatro do Oprimido e a construção de Identidades
Etnicorraciais: um estudo de caso 72
IV.1 Os Diários de Bordo 81
IV.2 Algumas Palavras dos Diários de Bordo 82
IV.3 Algumas Fotografias das Aulas 86
IV.4 Outros lances são possíveis 96
Conclusão 100
Referências Bibliográficas 103
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Lista de Figuras
FIG. I.1 – Retrato Negro do Brasil.................................................................................20 FIG. I.2 – Retratos das Políticas Sociais na PNAD de 2012.........................................22 FIG. III.1 – Árvore do Teatro do Oprimido.....................................................................57 FIG.IV.1 – Meninas praticando Teatro Imagem............................................................77 FIG.IV.2 – Meninos fazendo alongamento....................................................................78 FIG.IV.3 – Meninas fazendo o jogo do espelho simples...............................................79 FIG.IV.4 – Meninas em cena com o Teatro Imagem.....................................................79 FIG.IV.5 – Alunos em cena com o Teatro Fórum..........................................................80 FIG.IV.6 – Eu com os alunos na Roda de Discussão...................................................80 FIG.IV.7 – Meninas em cena com o Teatro Imagem –Relação de Trabalho Doméstico .....................................................................................................................86 FIG.IV.8 – Meninas em cena com o Teatro Imagem –Relação de Humilhação ou Bullying na escola.....................................................................................................87 FIG.IV.9 – Grupo de Meninas em cena com o Teatro Imagem – Relação de Opressão na escola.......................................................................................................88 FIG.IV.10 – Grupo de Meninas em cena com o Teatro Imagem – Cena de expulsão do lar..............................................................................................................90 FIG.IV.11 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena em uma penitenciária..........................................................................................................91 FIG.IV.12 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de violência e luta...............................................................................................................91 FIG.IV.13 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de opressão no trabalho.....................................................................................................92 FIG.IV.14 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de perseguição...................................................................................................................93 FIG.IV.15 – Grupo de Meninas com o Teatro Imagem – Cena de vários tipos de opressão...................................................................................................................93 FIG.IV.16 – Grupo de Alunos em cena com o Teatro Fórum – Cena de opressão de gênero..................................................................................................... 94 FIG.IV.17 – Alunos no Teatro Fórum – Sessão de abraços..........................................95 FIG.IV.18 – Desenho de um aluno do 5º. ano, representando uma das cenas apresentadas durante o Teatro Imagem sobre Preconceito na Escola........................97 FIG.IV.19 – Meninas em cena de Teatro Imagem sobre Preconceito na Escola.........97 FIG.IV.20 – Meninos em cena de Teatro Imagem sobre Racismo no Futebol.............98
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INTRODUÇÃO
Como chegar em um espaço onde a maioria dos alunos são negros, e você,
um sujeito branco, possa levantar a discussão sobre atos de racismo praticados pelos
mesmos e observados em seu cotidiano escolar, sem que isso cause algum tipo de
constrangimento para ambas as partes e propor alguma atividade educacional que os
leve a refletir sobre as relações sociais marcadamente negativas, em relação à
diferença étnica e racial de seus amigos ou colegas de escola?
Como eu, branco, posso interferir de forma positiva para levantar esta questão
racial, sem que eu seja visto, primeiramente, como o branco detentor do saber
querendo ditar as normas de comportamento dos alunos negros?
Acredito que essas são as primeiras interrogações que um educador deva
fazer, ao tentar planejar alguma aula que tenha como objetivo levantar as discussões
em torno das relações etnicorraciais de seus alunos. Assim aconteceu comigo!
Quando falamos em relações etnicorraciais, estamos nos referindo a todos os
sujeitos sociais, não só aos negros, mas também considerando qual o papel do sujeito
branco nessas discussões. Que postura o branco deve assumir, para deixar bastante
claro seu posicionamento político a favor das causas das lutas negras e mostrar-se
como um branco aliado? É uma relação bastante delicada, mediante os privilégios e o
lugar de poder que nossa sociedade mantém aos indivíduos brancos e o lugar de
exclusão e perseguição ainda destinados aos indivíduos negros. É nosso papel a
desconstrução desses estigmas que marcam nossa sociedade hierarquicamente e
constroem um abismo social, principalmente para os negros e negras que tentam, com
muita luta e resistência, uma participação mais justa e democrática em nossa
sociedade, com seus direitos garantidos.
Reconhecer-se nessas relações como “branco” tornou-se importante para mim,
enquanto pesquisador das relações etnicorraciais, reconhecendo um dos principais
agentes do racismo, que é a cor da pele, o que Kabeguele Munanga chama de
“Geografia do corpo”, na qual por mais título, posição social ou econômica que o
indivíduo venha a ter, a sua pele será sempre uma marca relevante nas relações
cotidianas, que ditará, em determinados lugares, tratamentos diferenciados.
A pesquisa que deu origem a esta dissertação surgiu a partir de uma prática
educacional com o teatro, ministrada com jovens entre 10 a 17 anos, moradores de
bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro, na qual pudemos ver cenas de
opressão vivenciadas ou observadas em seus cotidianos encenados a partir das
técnicas do Teatro do Oprimido, como forma de reflexão e possível mudança de
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postura política destes alunos, mediante o confronto com determinadas atitudes de
preconceitos e exclusão social.
A partir da técnica do Teatro Fórum, um problema é apresentado em cena, e
pede-se que a plateia interfira, ou seja, entre em cena, para apresentar suas
resoluções para o problema. Dessa forma, o praticante de Teatro do Oprimido é
levado a refletir sobre determinados problemas sociais, vivenciando-os, como o
próprio criador do método, Augusto Boal, sempre ressaltou, como um ensaio para uma
possível revolução na vida.
Os especialistas em Teatro do Oprimido, aqueles que organizam os exercícios,
jogos e dirigem as cenas organizadas a partir da utilização de técnicas desenvolvidas
por Augusto Boal e sua equipe, são chamados de Coringas. Eles também são
comparados ao coringa das cartas de baralho, que assume determinados papéis de
acordo com a necessidade do grupo, da encenação, instigando a plateia à
participação, apesar da sua pouca interferência na cena e nas discussões. A postura
de coringa me ajudou bastante a assumir esse papel de condutor das discussões em
sala de aula, sem grandes interferências, onde os alunos por si mesmos levantavam
seus questionamentos em cena, ou nos fóruns, sentindo-se como agentes condutores
daquele debate, ou seja, imprimindo nas cenas e reconhecendo suas próprias
necessidades de discussões raciais, partindo de suas vivências cotidianas.
Em várias cenas desse cotidiano, as questões étnicas e raciais estavam
presentes, seja através dos discursos de exaltação à ideia de democracia racial, ou à
ideologização da branquitude, como fator de ascensão social, ou até mesmo em
denúncias de racismos. Dessa forma, a turma nos trouxe um arsenal de
problematizações etnicorraciais, pronto para ser trabalhado na sala de aula, cabendo
ao professor de teatro a função de orientador dessas discussões em prol de um
espaço educacional mais democrático e justo para todos os alunos.
Observei que essa prática pode tornar-se uma importante experiência na vida
de nossos alunos, então resolvi desenvolver um projeto de pesquisa e apresentar
como proposta de dissertação para o Mestrado em Relações Etnicorraciais, do Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, e apresento aqui o
resultado destes dois anos de pesquisas e discussões.
No primeiro capítulo da dissertação abordarei teoricamente a construção das
relações etnicorraciais no Brasil, a partir de alguns autores que marcaram fortemente
tanto a construção da longa convivência dos brasileiros com a discriminação quanto a
abordagem crítica do racismo e ainda a história de luta e resistência dos povos
negros. Entre esses autores, menciono Silvio Romero, Gilberto Freyre, Florestan
Fernandes, Lília Schwarcz, Carlos Moore e Stuart Hall, para entendermos como a
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construção étnica e racial foi se desenvolvendo, e como ela se encontra representada
em nossa sociedade nos dias atuais, levando-nos a entender as particularidades
nessas relações que faz com que o “racismo” a brasileira, seja algo tão difícil de se
combater, por conta da sua camuflagem nas relações de cordialidade e de falsa
integração na sociedade brasileira. Essa falsa integração, muito bem simbolizada
pelos discursos de exaltação à mestiçagem, na qual todos também somos negros,
porém a cor da pele ainda é uma marca de perseguição e impedimento de livre
trânsito dos negros e até dos negro-mestiços em determinados espaços públicos,
além das desconfianças e perseguições policiais, onde negros e negras são sempre
confundidos como bandidos e arruaceiros. Como desconstruir essa ideologia ainda
presente em nossa sociedade, que a todo instante promove atos de racismo, ao
mesmo tempo em que defende ser uma sociedade não-racista?
Em seguida, desenvolvi um capítulo sobre a inserção das relações
etnicorraciais no campo educacional, desde a luta pelos direitos de negros e negras ao
acesso à educação, até a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e
cultura africana e afro-brasileira nas escolas de ensino básico brasileiras. A partir da
análise das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, procurei
compreender de que forma as aulas com a metodologia do Teatro do Oprimido
poderão atender as reivindicações contidas nesse documento, construído com a
colaboração da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção à Igualdade
Racial), grupos do Movimento Negro, Conselhos no âmbito estadual e municipal de
Educação, além de professores compromissados em trabalhar os assuntos
etnicorraciais em sala de aula. Este documento nos orienta a desenvolver uma
pedagogia antirracista, para desconstruir alguns valores propagados pela sociedade
brasileira. Entre esses valores e equívocos está a preocupação dos professores em
como identificar seus alunos enquanto negros ou pretos sem causar alguma ofensa.
Para superar esse problema, basta que o professor entenda que, no Brasil, é negro
quem assim se autodefine, assumindo uma postura política. Outro equívoco é o de
achar que os negros também são racistas porque também discriminam outros negros,
não podemos esquecer entretanto a construção ideológica do branqueamento, que
defendia que pessoas brancas possuíam inteligência superior. Outro equívoco ainda é
o de que essas discussões seriam de interesse somente ao Movimento Negro e dos
que se interessariam em estudá-los, não à escola. Uma última questão, levantada
pelas Diretrizes, é a falsa ideia de que o racismo, o mito da democracia racial e a
ideologia do branqueamento só atingem os negros. Todos estão envolvidos nesse
processo enquanto indivíduos participantes de uma sociedade, então discutir as
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relações etnicorraciais deve ser obrigação de todos, independente da sua origem
étnica.
No terceiro capítulo apresento o Teatro do Oprimido, fazendo uma relação das
suas técnicas, jogos e exercícios, com uma possível metodologia educacional, para
entendermos como o projeto analisado pode fazer parte do currículo escolar, como
possibilidade pedagógica antirracista nas aulas de teatro, nas escolas de ensino
regular.
Por último, no capítulo IV, veremos uma análise das ações e das observações
feitas a partir de práticas do Teatro do Oprimido, primeiramente feito por jovens de
uma organização não governamental, e depois com crianças do 5º ano do ensino
fundamental I de um escola de ensino regular, todos de bairros periféricos da cidade
do Rio de Janeiro, que apresentam como característica comum serem jovens
pertencentes à famílias com baixa renda e com considerável vulnerabilidade social.
Propor uma metodologia de ensino para as relações etnicorraciais é atender o
que nos orienta a Lei 10.639/03, e com isso contribuir com a sua implantação em um
território cheio de conflitos, como é o escolar. Através da arte, especificamente do
ensino de teatro, com a metodologia do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal,
poderemos ter em sala um território crítico e fecundo para novas conformações
sociais, desconstruindo estereótipos, em prol de relações sociais e raciais menos
opressoras, mais democráticas e justas.
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Capítulo I - As Relações Etnicorraciais no Brasil
Hoje, podemos falar em lutas pelos direitos civis de mulheres, negros, índios,
gays, ou seja, grupos denominados “minorias”, por conta da falta de acesso dos
mesmos a determinados benefícios e serviços sociais, da privação de determinados
direitos, e da falta de “voz ativa” frente à sociedade hegemônica, numa luta constante
pela conquista de algum poder. Porém, para que essas lutas se tornassem legítimas,
muitos entraves se apresentaram, e ainda se apresentam a esses grupos.
Para entendermos o que são essas minorias, recorremos a um conceito
desenvolvido por SODRÉ(2005):
“Minoria não é, portanto, uma fusão gregária mobilizadora, como massa ou a multidão ou ainda um grupo, mas principalmente um dispositivo simbólico com uma intencionalidade ético-política dentro da luta contra-hegemônica” (p.11).
O autor ainda nos traz algumas características fundamentais para entendermos
uma minoria. A primeira delas é a vulnerabilidade jurídico-social, ou seja, o grupo não
é amparado pelas regras de ordenamento jurídico-social vigente, estando sempre em
constante luta para reconhecimento dos seus direitos através das políticas públicas.
Uma outra característica da minoria é a Identidade in status nascendi, pois em relação
a sua identidade social estão em constante recomeço, já que são grupos que estão
sendo redescobertos a partir de outras percepções, saindo muitas vezes das zonas
estereotipas que os relegavam à exclusão, numa eterna luta contra-hegemônica,
tornando-se essa a terceira característica para minorias. De acordo com SODRÉ
(2005), nas sociedades ocidentais tecnodemocráticas a “mídia” é um dos principais
territórios de embate dessas forças, e muitas vezes a própria mídia se utiliza de ações
envolvendo minorias apenas como “repercussão midiática”, o que devemos ter
bastante cuidado, pois constitui-se um risco de esvaziar todos os discursos defendidos
por esses grupos. A construção de estratégias discursivas é a quarta característica
para minorias, é através dessas que são construídos os espaços de embates
atualmente, que são as passeatas, invasões episódicas, gestos simbólicos,
manifestos, revistas, jornais, programas de televisão, campanhas pela internet, entre
outras.
Em relação às questões étnicorraciais,diariamente assistimos episódios de
injúria racial e racismo, veiculados nos meios de comunicação e redes sociais, ainda
embasados na velha crença da “democracia racial”, ou seja, de que somos um país
sem preconceitos por conta da miscigenação na formação do povo brasileiro. A forma
como foi feita a abolição da escravatura, como uma gesto senhorial ou imperial de
doação, arrasta até hoje um certo sentimento de “gratidão” exigido dos grupos
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escravizados e seus descendentes, transformando os personagens brancos
envolvidos nesse fato histórico em heróis e apagando todo e qualquer espaço para
uma possível reclamação de direitos sociais civis igualitários para as pessoas que se
viram livres daquele sistema opressor e violento, mas que não encontram lugar nessa
mesma sociedade que comemora efusivamente o dia 13 de maio e a Lei Áurea.
Muitos são os entraves sociais que continuam perseguindo os negros e negras
em suas atividades cotidianas, publicas e privadas, fruto dos séculos de escravidão.
Muitos comportamentos discriminatórios e posturas de inferiorização dos negros ainda
continuam presentes na sociedade brasileira, apresentando-se em sua grande maioria
de forma velada em discursos e ações que, muitas vezes são mal interpretadas,
dividindo a opinião pública sobre o que seria racismo ou não. Há uma difícil aceitação
por parte de quem pratica o racismo em enxergar essa atitude, levantando sempre os
mesmo discursos de defesa que também se considera negro por ter algum ancestral
negro, ou que não tem preconceito por ter amigos negros ou frequentar algum espaço
com práticas culturais ou religiosas comuns às comunidades negras.
O fato é que, apesar da dificuldade da nossa sociedade em reconhecer o
“racismo”, institucionalizado inclusive em alguns espaços públicos e privados, a
ausência de afrobrasileiros em determinadas posições de prestigio ainda é muito
grande. Apesar de termos algumas políticas públicas já aprovadas para, pelo menos,
tentar mudar esse quadro, até essas iniciativas são alvos de constantes insatisfações
e críticas, como é o caso das ações afirmativas e das cotas raciais, que ao facilitarem
o acesso de jovens negros e negras à universidade causaram um certo incômodo na
comunidade acadêmica, com o discurso de que isso aumentaria mais ainda o
preconceito racial, provocando uma espécie de segregação entre alunos regulares e
alunos cotistas. Os que são contra o sistema de cotas defendem um regime de
“meritocracia”, ou que se houvesse algum programa de democratização do acesso ao
ensino superior, que esse fosse destinado ao estudante de escola pública em geral,
mas não especificamente ao negro.
A Lei Federal nº 12.711/2012, de 29 de agosto de 2012, reserva 50% das
vagas ofertadas nos cursos de graduação para estudantes que cursaram todo o
ensino médio na rede pública e, destas, 50% para alunos cuja renda familiar per
capita seja de até um salário mínimo e meio, é o que está sendo chamado de cota
renda. A Lei de cotas prevê ainda a destinação de um percentual destas vagas de
estudantes de escolas públicas, para alunos autodeclarados pretos, pardos ou
indígenas. Essa porcentagem não é fixa e varia para cada unidade da Federação, de
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acordo com a proporção dessas autodeclarações indicadas no último Censo do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referente ao estado em que está a instituição
de ensino. Esse cálculo é feito levando em consideração apenas as vagas reservadas pela
lei, ou seja, a cota racial está dentro da cota social de 50% das vagas.
Essa determinação deve ser cumprida até 30 de agosto de 2016, mas já em
2013 as instituições tiveram que separar 25% da reserva prevista, ou 12,5% do total
de vagas para esses candidatos. O texto da Lei fala apenas sobre as instituições
federais de ensino superior da rede federal, ou seja, cerca de 59 universidades federais e
40 institutos federais (dois centros de educação tecnológica e o Colégio Pedro II, no Rio de
Janeiro). Essas são as instituições que terão que se adequar à nova lei, quando ela entrar
em vigor.
Outra proposta de Política Pública foi a aprovação da lei 10.639, de 2003, para
a educação, a qual tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana, como forma de reconstrução da imagem do negro e de sua história nos livros
didáticos e nas relações construídas nos espaços educacionais, de forma a tentar
diminuir o grande número de “fracasso escolar” apresentados por alunos e alunas
negras em nosso país. Apesar da Lei estabelecer uma obrigatoriedade, 11 anos após
a sua aprovação muito pouco foi feito para a sua efetivação nos espaços escolares,
onde a mudança encontra vários empecilhos, tanto por conta da ausência de
profissionais capacitados para trabalhar com os conteúdos exigidos pela lei, quanto
pelo descaso que faz com que a concebam como algo de menos importância, seja por
fatores ideológicos, como é o caso da defesa da miscigenação e o argumento da não
existência de racismo, quanto ainda por fatores religiosos, que impedem toda e
qualquer menção às culturas afro-brasileiras e africanas, considerando-as negativas
para os padrões de uma sociedade, que deveria ser laica, mas é fortemente marcada
com valores cristãos.
Observamos que apesar das tentativas para minimizar os resultados da
exclusão racial ainda presente na sociedade brasileira, muitos dos pensamentos que
corroboraram com essa exclusão ainda se encontram impregnados nas relações e
práticas cotidianas do povo brasileiro, que permite a confraternização entre todos
numa roda de samba, ou de capoeira, por exemplo, mas que ao mesmo tempo ainda
dita regras de convivências sociais nas quais impedem negros e negras de acessarem
os elevadores sociais, já que os mesmos dificilmente são reconhecidos em outros
espaços em condições que não sejam de subalternidade.
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No livro Racismo e Sociedade, Moore, o autor, associa a insensibilidade como
produto do racismo, ou seja, que um mesmo indivíduo pode angustiar-se com
qualquer outro tipo de sentimento na sociedade, menos com o terrível quadro da
opressão racial no Brasil, encontrando no mito-ideologia da “democracia racial” uma
formulação bem elaborada para sustentar esse pensamento: “O racista nega esse
quadro e, o que é pior, justifica-o. Ele combate de maneira ferrenha qualquer proposta
tendente a modificar o status quo sociorracial, usando dos mais variados argumentos
universalistas, integracionistas e republicanos”. (MOORE, 2007, p. 23), e ainda
acrescenta que esse “auto-engano” é um dos grandes obstáculos que impedem o
avanço da sociedade brasileira. Entender esses argumentos e analisar como se deram
tanto os debates sobre a formação do povo brasileiro quanto à estruturação das
nossas relações etnicorraciais, durante a história das lutas raciais em nosso país, faz-
se necessário, para entendermos o que ainda se preserva no imaginário do povo
brasileiro em relação às questões etnicorraciais e porque lhes custa tanto abandonar
este ideário.
O apego nacionalista à construção histórica hegemônica e seus heróis, ao
passar por uma releitura na qual a voz que se ouve agora é a do excluído, vem
causando reações adversas em determinados setores da sociedade, porém para
MOORE(2007) relembrar esse processo de construção de uma Nação também faz-se
necessário para a implementação de medidas públicas, e tentar reduzir esses
impactos acumulativos, apesar de contrariar aqueles grupos que sempre se
beneficiaram, de qualquer maneira, desse status quo.
I.1 A construção da hierarquia racial e do racismo
Segundo SCHWARCZ(1998), as teorias raciais chegaram ao Brasil por volta do
século XIX, no momento em que a abolição da escravidão tornava-se irreversível.
Durante a escravidão no Brasil, que durou mais de três séculos, um total de 3,6
milhões de africanos deram entrada nesse novo continente, alterando
consideravelmente sua composição social, tanto em relação as cores quanto aos
costumes dos povos locais e dos agentes coloniais. Cerca de um terço da população
africana que deixou seu país rumo às Américas, veio escravizada para o Brasil, sendo
a escravidão um dos primeiros fatores de legitimação, em nossa sociedade, da
inferioridade dos grupos de negros e negras.Também por conta de sua condição de
escravizados, o trabalho era o destino e a função primordial de cada um deles, além
da violência, já que falamos de posse de um homem por outro.
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A possibilidade do fim da escravidão, e até mesmo da monarquia, trouxeram à
discussão as questões e teorias raciais que estavam em voga na segunda metade do
século XIX, já que até então os escravos por serem propriedade era vistos como “não
cidadãos”. Como esses seriam vistos quando concedida sua liberdade? Procuraram-
se então outras formas de separação e legitimação da inferioridade dos africanos e
seus descendentes, tendo como fundamento a ciência positivista e determinista, para
marcar as desigualdades naquela sociedade que estava em vias de transformação, e
com isso sedimenta-se a ideia de “raça” que temos hoje: “A raça era introduzida,
assim, com base nos dados da biologia da época e privilegiava a definição dos grupos
segundo seu fenótipo, o que eliminava a possibilidade de se pensar no indivíduo e no
próprio exercício de cidadania” (SCHWARCZ, 1998, p.188).
Essas teorias, ao serem introduzidas no Brasil, passaram por uma adaptação
particular, ou seja, além de absorver as ideias relativas à diferença hierarquizada das
raças, rejeitou-se a noção que se propagava em outros países de que a mestiçagem
causava a degeneração da sociedade, apostando numa miscigenação positiva, desde
que ela embranquecesse cada vez mais as futuras gerações. Porém, ainda não se
aceitava o mestiço como um representante positivo da sociedade brasileira. Os
seguidores dessa teoria só acreditavam em uma miscigenação positiva se o resultado
fosse o indivíduo branco.
Encontramos muito dessas teorias nos estudos de Silvio Romero, pesquisador
sergipano formado em Direito e grande colaborador como crítico da Literatura
Brasileira, que também defende o “branqueamento” da população brasileira a partir
dos cruzamentos entre os povos que formaram nossa sociedade com um contingente
cada vez maior de indivíduos brancos, introduzidos no país através das políticas de
estímulo à imigração europeia. Em seu livro História da Literatura Brasileira, datado de
1888, o mesmo nos traz um panorama de como era identificada a nação na época:
“A estatística mostra que o povo brasileiro compõe-se atualmente de brancos arianos, índios tupis-guaranis, negros quase todos do grupo banto e mestiços destas três raças, orçando os últimos certamente por mais de metade da população. O seu número tende a aumentar, ao passo que os índios e negros puros tendem a diminuir. Desaparecerão num futuro talvez não muito remoto, consumidos na luta que lhes movem os outros ou desfigurados pelo cruzamento” (ROMERO, 1888, p.20).
Apesar de relatar que os negros são “mais da metade da população”, acredita
que seu número, assim como do índio, tende a diminuir porque considera que o
branco tem o fator genético mais forte e tende a prevalecer nos cruzamentos de raças,
citando o “mestiço” como “a genuína formação histórica brasileira”, que mais cedo ou
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mais tarde irá se confundir com o branco. Além da mistura, ROMERO(1888) também
ressalta a função que as pestes e as guerras teriam para dizimar grande parte dos
indígenas, assim como os trabalhos forçados e outras mazelas comuns à escravidão
já tinham feito a sua parte também para com os africanos. A conclusão que o
pesquisador chega é que: “Dentro de dois ou três séculos a fusão étnica estará
completa e o brasileiro mestiço bem caracterizado” (p.21). Já que poderiam contar
também com o fim do tráfico dos africanos, ou seja, o país não receberia mais negros,
e o início da imigração europeia, cuja consequência era a grande entrada da raça
considerada positiva para o futuro da nação. A ideia principal era apagar, através da
diluição da mistura embranquecedora, todo e qualquer vestígio das raças
consideradas inferiores, a negra ou a indígena.
Romero também nos descreve o que seria “nacionalidade”, explicitando que o
mesmo é um termo e não um princípio original, ou seja, é algo construído a partir “de
uma quantidade de combinações, fusões, de eliminações e de associações, de toda
espécie”. (p.21) Acreditando sempre que a raça branca iria prevalecer, e os mestiços
aos poucos iriam sumir (ou se confundir com os brancos puros), afastando-se da ideia
de hibridismo, considerado pelo mesmo como “fraqueza e esterilidade radical” após
sucessivas gerações. Deste processo surgiria finalmente a nacionalidade brasileira.
Outra conclusão sobre as questões étnicas, que ROMERO(1888) expõe é o
possível desequilíbrio na comparação, quanto à imigração, entre as regiões Norte e o
Sul do país, que poderia acarretar numa possível luta por independência e
desarticulação dentro do território brasileiro, dado a formação de um grupo mais forte
a partir da miscigenação com os povos europeus. O sul estava recebendo um maior
número de imigrantes brancos, em comparação ao Norte, o que poderia ocasionar:
“um tão grande excedente de população germânica, válida e poderosa, que a sua
independência será inevitável” (p.28). Com essas palavras podemos ter uma
dimensão do poder transformador e saneador, que se enxergava na época, que essa
miscigenação positiva poderia trazer à nação.
O processo de abolição do sistema escravista brasileiro já ocorre então,
carregado por todos esses pensamentos, desde a crença que o futuro seria de uma
nação branca, com uma política agressiva de incentivo à imigração, ao alívio de uma
libertação que não precisou de lutas nem conflitos tão intensos como foram os de
outros países. A ideia da abolição enquanto uma “dádiva”, diferentemente do que se
viu com o apartheid na África do Sul ou a Jim Crowl nos Estados Unidos, compõe uma
imagem que até hoje persiste e que marcou as relações sociais após abolição do
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trabalho escravo no país e que vai culminar no mito da democracia racial. O que
ocasionou em um grande fardo com que negros e negras teriam que conviver, a da
ideia de uma escravidão benigna:
“De toda maneira, ao contrário de outras nações, onde o passado escravocrata sempre lembrou violência e arbítrio, no Brasil a história foi reconstruída de forma positiva, mesmo encontrando pouco respaldo nos
dados e documentos pregressos” (SCHWARCZ, 1998, p.188).
Ruy Barbosa, quando ministro das Finanças no Brasil, em dezembro de 1890,
ordenou que todos os arquivos nacionais existentes sobre a escravidão em nosso país
fossem queimados. Mesmo que não se tenha conseguido destruir toda a
documentação do escravismo, a ideia de apagar o passado e começar uma nova
história ficou bastante clara com essa atitude, e o que assistimos após esse episódio
fatídico foi o desenrolar de histórias românticas entre senhores e escravos, que apesar
de uma relação severa, desenhavam-se com os traços de um forte sentimento
paternalista.
I.2 A contribuição de Gilberto Freyre
Nos anos de 1930 começava a se instaurar no Brasil um movimento de
exaltação do país, que negava o pessimismo racial provocado pelas teorias
darwinistas sociais. A cultura mestiça começava a ser vista como a representação
oficial da nação. Buscava-se uma identidade nacional e a criação de símbolos pátrios.
Concepções como cenas públicas e privadas, povo e passado tornaram-se elementos
essenciais para a construção desta “comunidade imaginada”; ainda segundo
SCHWARCZ (1998),vimos que: “nesse sentido, a narrativa oficial se serve de
elementos disponíveis, como a história, a tradição, rituais formalistas e aparatosos, e
por fim seleciona e idealiza um ‘povo’ que se constitui a partir da supressão das
pluralidades” (p. 193)
A publicação de Casa Grande & Senzala, de 1933, marca esse momento de
busca de ícones de identidades e retoma as experiências de convivência da vida
privada entre as “três raças”, fazendo desta, exemplo de identidade.
Gilberto Freyre nos traz uma descrição tão bem detalhada das relações que se
traçavam na Casa Grande, que nos leva a refletir o quanto dessas relações
influenciaram e ainda continuam vivas no cotidiano brasileiro. Observamos uma
relação de cordialidade ainda repleta de características escravistas profundas. Lutar
contra esses comportamentos é lutar contra um sentimento encharcado de uma
memória afetiva romantizada pelos afetos traçados entre as relações domésticas, que
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de nada serviram para mudar a forma como o negro ou a negra eram ou são vistos
negativamente ou, o contrário, não contribuiu para que fossem respeitados e inseridos
socialmente como cidadãos com seus direitos assegurados.
Freyre ao afirmar que “todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na
alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha
mongólica pelo Brasil – a sombra ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”.
(FREIRE, 2007, p.283), traz um discurso diferente de miscigenação, em relação ao
apresentado anteriormente por Silvio Romero, já que agora há uma positividade na
mestiçagem e uma relação afetiva para com as culturas africanas e indígenas na
formação do povo brasileiro.
FREYRE(2007) também vai contra a ideia de enfraquecimento através da
miscigenação,ressaltando que nem o negro nem o índio deviam ser responsabilizados
por algo que escapava dos seus domínios, que fazia parte de um sistema social e
econômico, onde os mesmos estavam inseridos mas de forma passiva e mecânica, e
que muitas vezes essa miscigenação aconteciam mais pelos caprichos sexuais dos
senhores, que detinha o poder sobre os escravos, do que propriamente da livre
vontade de cada um, “não era o negro, portanto, o libertino: mas o escravo a serviço
do interesse econômico e da ociosidade voluptuosa dos senhores” (p.320), ou seja, a
fonte de corrupção não era da “raça inferior” em si, mas sim no abuso de uma raça por
outra.
A “casa-grande”, segundo Freyre, aos poucos ia construindo uma relação de
intimidade aos moldes do espaço interno e familiar. Foi essa memória afetiva a grande
herança que se propagou em grande parte nas relações raciais brasileiras:
“À casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos – amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas da casa. Espécie de parentes pobres nas famílias europeias. À mesa patriarcal das casas-grandes sentavam-se como se fossem da família numerosos mulatinhos. Crias. Malungos. Muleques de estimação. Alguns saíam de carro com os senhores, acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos” (p.352).
É com esse discurso de valorização da miscigenação, de que todos nós somos
iguais porque somos uma mistura, que as Relações Etnicorraciais no Brasil se
construíram mediante a mitologia de uma Democracia Racial, ou seja, somos o
paraíso racial porque em nossa história não construímos estruturas organizativas e
leis explícitas que sustentassem formalmente o preconceito ou exclusão. O “mestiço”
nessa época torna-se então um símbolo de nacionalidade, porém para que seus
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elementos fossem aceitos e incorporados à cultura brasileira, houve um processo de
desafricanização de alguns elementos culturais, passando por um simbólico
clareamento. SCHWARCZ(1998) cita como exemplo a feijoada, explicada da seguinte
forma para legitimar a relação pacífica entre brancos e negros em nosso país:
“A princípio conhecida como ‘comida de escravos’, a feijoada se converte,
em ‘prato nacional’ carregando consigo a representação simbólica da
mestiçagem. O feijão (preto ou marrom) e o arroz (branco) remetem
metaforicamente aos dois grandes segmentos formadores da população.
A eles se juntam os acompanhamentos – a couve (o verde das nossas
matas), a laranja (a cor de nossas riquezas). Temos aí um exemplo de
como elementos étnicos ou costumes particulares viram matéria de
nacionalidade” (p. 196).
Outro exemplo foi a capoeira, que era reprimida como crime pelo Código Penal
de 1890, passava então, oficialmente, à modalidade esportiva nacional em 1937, e
reconhecida como Patrimônio Imaterial Brasileiro em 26 de novembro de 2014; o
samba, que nos anos 30 passou de repressão à exaltação, e recebendo a partir de
1935 subsídios oficiais para os seus desfiles. Também fizeram parte desse projeto de
exaltação à cultura negro-mestiça como símbolo nacional: a aceitação, em 1923,
abertamente de negros por um clube de futebol, o Vasco da Gama; a liberação dos
atabaques do candomblé sem a perseguição policial a partir de 1938; a inclusão do
Dia da Raça, 30 de maio, no calendário cívico do Estado, no ano de 1939; o momento
também coincide com a escolha de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, como
padroeira do Brasil, em 1930, que SCHWARCZ (1998) compara como uma
Macunaíma às avessas, já que diferente desse a imersão nas águas do rio Paraíba
Sul teriam escurecido a Virgem. Associado a todo esse ambiente e principalmente às
rodas de samba, a imagem do malandro brasileiro, também é reconhecida como
símbolo nacional, e marcará a imagem do negro na sociedade com suas
características:
“Bem-humorado, bom de bola e de samba, o malandro era mestre em um tipo de postura resumida, nos anos 50, na famosa expressão ‘jeitinho brasileiro’: aquele que longe dos expedientes oficiais usava da intimidade para seu sucesso” (SCHWARCZ, 1998, p. 201)
A influência dessa personagem emblemática foi tão grande, que o
Departamento Nacional de Propaganda, o DIP, a partir de 1938, tentou reverter esse
quadro através da divulgação de uma imagem mais relacionada ao trabalho,
aconselhando inclusive os compositores de sambas a fazerem exaltações e apologias
ao trabalho e condenação à boemia. Ou seja, o negro, relacionado ao malandro,
carregava para os anos 30 o estigma da aversão ao trabalho, assim como o
estereótipo da mulata, que seria uma versão feminina do malandro, sempre vista como
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uma mulher festeira, leviana e disponível, mais tarde transformada em produto de
exportação por conta da sua beleza exótica e sensual, que ainda hoje é fetiche dos
estrangeiros, e por vezes alimentam um comércio de exploração sexual.
Segundo SCHWARCZ(1998) O grande problema desse processo de
nacionalização, ao transformar alguns símbolos da cultura negra em produtos da
miscigenação brasileira e modelo de igualdade racial, é que deslocavam ou
escondiam questões que mereceriam grande atenção, como as desigualdades e a
violência cotidiana, como assuntos irrelevantes e menosprezados, já que
aparentemente a sociedade brasileira não comportaria desigualdades e
discriminações raciais, constituindo numa espécie de “paraíso racial”. Esta imagem
racial de democracia, difundida por estratégias políticas e produtos culturais como a
literatura de Jorge Amado, teve grande repercussão internacional à época, a ponto de,
em 1951, no tenso contexto do pós-guerra, ter sido aprovado pela UNESCO o
Programa de Pesquisas sobre Relações Raciais no Brasil, com o intuito de usar o
exemplo brasileiro como inspiração para outros países.
Um grupo de especialistas foi convidado para esse projeto, como Costa Pinto,
Roger Bastide, Oracy Nogueira, Florestan Fernandes, entre outros. Embora o ponto de
partida fosse um elogio à mestiçagem brasileira, considerada então modelar, o que os
mesmos encontraram na sociedade foi um quadro surpreendente de discriminação e
preconceito.
I.3 A grande contribuição de Florestan Fernandes
Nas analises de Florestan Fernandes, observamos que a sua abordagem racial
tem como fundamento o ângulo da desigualdade, questionando não somente a
democracia racial, mas também as suas bases, de como a mesma fora construída, o
que colocou em “xeque” essa ideia de que éramos uma sociedade bem resolvida
racialmente, já que a distribuição social não igualitária entre os grupos raciais se dava
em relação ao preconceito e à discriminação racial exercida principalmente contra os
negros: “As tendências históricas de diferenciação de reintegração da ordem social
não favoreciam, de per si, nenhum agrupamento étnico ou racial determinado. Todavia
isso acabava acontecendo, por vias indiretas" (FERNANDES, 1978, p.247).
Demonstrando a “desvantagem” dificilmente superada por quem um dia foi agente de
trabalho escravo, no caso, os negros.
O autor percebeu em seus estudos a presença de um tipo particular de
racismo, que era “o preconceito em ter preconceito”, pois o brasileiro continuava
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discriminando mesmo que rejeitasse esse tipo de atitude. Fernandes enxergava esse
tipo de atitude como uma consequência de um “etos católico”, embasado na moral
cristã, e de um racismo que aparece em “foro íntimo”, ou seja, apropriado à intimidade
do lar, tornando-se quase um estilo de vida, como menciona SCHWARCZ(1998, p.
204) “É como se os brasileiros repetissem o passado no presente, traduzindo-o na
esfera privada”
Associado à miscigenação como forma de camuflar a presença da
estratificação racial em nossa sociedade, encontramos a idealização do
branqueamento, para a qual quanto mais branco o indivíduo fosse, mais bem acolhido
e próspero seria o mesmo na sociedade. Também encontramos, por volta dos anos de
1970, a figura do negro com alma branca, que representava uma figura leal ao senhor
e a sua família, como também à ordem social vigente, como bem expõe
SCHWARCZ(1998).
Fernandes considera o racismo a brasileira como dissimulado e assistemático,
utilizando pela primeira vez dados estatísticos do censo de 1950, o que era inovador
para a época, para justificar seus argumentos sobre as diferenças regionais e raciais,
e a concentração de privilégios econômicos, sociais e culturais em cada uma delas.
Revelando novas facetas da miscigenação brasileira, principalmente aquela que
mantinha enraizada uma hierarquização social, com prestígios sociais bem definidos
de acordo com classe social, educação formal e origem familiar, levando em conta as
variedades de cores e tons, o que veio a substituir a seleção anteriormente construída
sobre o patamar da ideia de raça. Fernandes chamava essa característica de
“metamorfose do escravo”, um processo de exclusão social tão forte que desenvolveu
os termos preto ou negro.
Fica bastante explícito, a facilidade que uma certa degradação social foi
construída pela escravidão, a partir do que Fernandes chama de “anomia social”, a
“pauperização” e uma “integração deficiente”, fatores que se combinam entre si e
resultam num padrão de isolamento tanto econômico, quanto sociocultural do negro e
do mulato, que “é aberrante em uma sociedade competitiva, aberta e democrática.”
(FERNANDES, 1978, p. 248)
Segundo o próprio autor, temos a sobrevivência de arcaísmo no interior de uma
ordem social moderna. Apesar de termos conquistados o fim da escravidão, o regime
escravista e colonial não desapareceu após a Abolição, como bem observou
Fernandes: “Persistiu na mentalidade, no comportamento e até na organização das
relações sociais dos homens, mesmo daqueles que deveriam estar interessados numa
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subversão total do antigo regime” (Idem, p.248), ou seja, a Abolição os projetou no
seio da plebe, “sem livrá-los dos efeitos diretos ou indiretos dessa classificação”.
(Ibidem)
Fernandes ainda esclarece que, não foi o preconceito de cor ou a
discriminação racial em si que criaram essa realidade de distanciamento social entre
negros e brancos em nossa sociedade, isso ainda é uma herança, reflexo da nossa
dificuldade em superar o fim das relações sociais vigentes no sistema escravocrata e
senhorial. Uma das funções dessa nova sociedade em vias de formação, tentando
ainda se adequar a esses cidadãos recém libertos, foi a de assegurar a continuação
de determinadas barreiras que resguardavam os seus privilégios econômicos, sociais
e políticos, já estabelecidos anteriormente ao advento da Abolição, e isso se deu de
sem qualquer temor por ambas as partes, como bem menciona FERNANDES(1978) .
“Em nenhum ponto ou momento o ‘homem de cor’ chegou a ameaçar seja a posição
do ‘homem branco’ na estrutura de poder da sociedade inclusiva, seja a
respeitabilidade e a exclusividade de seu estilo de vida” (p.250) ou seja, não
observamos nenhum embate entre esses grupos por determinados espaços de poder
nessa sociedade, o que era do branco já estava assegurado, o que acabou por
colaborar com a perpetuação das relações e comportamentos sociais do regime
escravocrata.
“Desse ângulo, as debilidades históricas, que cercaram a formação e o desenvolvimento inicial do regime de classes, contam como muito mais decisivas para a preservação de grande parte da antiga ordem racial, que as predisposições do ‘branco’ de precaver-se do ‘negro’ livre” (Idem, p.250).
Desenvolvendo o que o próprio FERNANDES(1978) chamou de “poder
dinâmico dos fatores de inércia sociocultural” (p.250), no qual o “branco” não tinha o
porquê de travar qualquer tipo de competição ou luta com o “negro”, e esse, por
conseguinte, acabava por aceitar passivamente a continuidade dos antigos padrões
raciais. Apesar do segmento “branco” ainda permanecer como a classe em ascensão,
esses não tinham motivos substanciais de identificação com a antiga elite, mas
preservam as suas “atitudes rígidas, incompreensivas e autoritárias” (p. 251). Em
relação a essa postura, viviam como se ainda estivessem no passado, e era
necessário, já que, apesar de esparsas e desordenadas, haviam algumas agitações
em torno dos problemas sociais dos negros, sempre vistas com maus olhos: “A
desconfiança tolhia, portanto, a modernização de atitudes e de comportamentos em
ambos os estoques raciais, sob a dupla presunção de que agitar certas questões só
serviria para ‘prejudicar o negro’ e ‘quebrar a paz social’” (idem, p. 252) Discurso esse
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ainda facilmente encontrado nas conversas sobre as questões raciais na sociedade
atual, quando é cogitado qualquer projeto de política pública para as comunidades
negras.
Como exigência da “defesa de paz social”, encontramos um ideal de
preparação desse negro e mulato para a condição de homem livre, como uma maneira
segura de tanto proteger o negro quanto assegurar os interesses da sociedade. Aos
poucos, os negros iam sendo gradativamente absorvidos, através de uma espécie de
“peneiramento e assimilação dos que se mostrassem mais identificados com os
círculos dirigentes da ‘raça dominante’ e ostentassem total lealdade a seus interesses
ou valores sociais” (idem, p. 253). Através de uma forma particular de integração do
negro na sociedade, baseada em estratégias para conter uma possível tensão racial,
muitos dos benefícios e garantias sociais comuns ao processo de democratização,
foram negados ao negro. Em nome de uma futura igualdade, o negro ainda continuava
preso, invisivelmente, ao seu passado de servidão.
Foi a partir dessa orientação que FERNANDES(1978) aponta o que ele
chamou de “fruto espúrio”, que era a ideia de que as relações entre brancos e negros
no Brasil eram construídas sobre os fundamentos ético-jurídicos dos regimes
republicanos vigentes, popularizando um dos grandes mitos que marcam as relações
etnicorraciais brasileiras, “o mito da democracia racial”. O autor deixa claro que esse
mito na verdade é fruto de um longo período de germinação, que começou ainda no
período escravocrata, nas avaliações que descreviam os escravos como “contendo
‘muito pouco fel’ e sendo suave, doce e cristãmente humano” (idem, p.254),porém
esse mito não fazia sentido naquela estrutura social senhorial, por conta da própria
ordem racial, mas que encontrou terreno próspero com a Abolição e a implantação da
República, só que, “Infelizmente, como no passado a igualdade perante Deus não
proscrevia a escravidão, no presente a igualdade perante a Lei só iria fortalecer a
hegemonia do ‘homem branco’” (ibidem).
Uma das consequências disso foi a generalização de uma falsa consciência
sobre as relações etnicorraciais no país, construindo algumas convicções
etnocêntricas nocivas às comunidades negras, são elas:
“1º.) a ideia de que o ‘negro não tem problemas no Brasil’; 2º.) a ideia de que, pela própria índole do Povo Brasileiro, ‘não existem distinções raciais entre nós; 3º.) a ideia de que as oportunidades de acumulação de riqueza, de prestígio social e de poder foram indistinta e igualmente acessíveis a todos, durante a expansão urbana e industrial da cidade de São Paulo; 4º.) a ideia de que ‘o preto está satisfeito’ com sua condição social e estilo de vida em São Paulo; 5º.) a ideia de que não existe, nunca existiu, nem
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existirá outro problema de justiça social com referência ao ‘negro’, excetuando-se o que foi resolvido pela revogação do estatuto servil e pela universalização da cidadania” (idem p. 256).
Muitos pensadores procuraram entender o perfil dos indivíduos constituídos
nessa sociedade na qual se exaltava a inexistência de discriminação racial por conta
de um mito, e com isso acalmava os ânimos de uma possível tensão. Um dos perfis
defendidos para esse novo brasileiro era o de “homem cordial”; por meio de uma
expressão de Ribeiro Couto, Sérgio Buarque de Holanda descrevia esse perfil a partir
de traços definidos da cultura brasileira, no qual “cordialidade” não necessariamente
significaria “boas maneiras ou civilidade”. Esse autor pretendia com a expressão
“cordial” levantar uma metafórica discussão entre a intimidade e a afetividade, ede que
forma essas posturas ditas cordiais vinham do “coração” e se expressavam
socialmente sem qualquer conhecimento formal: “Tal qual uma ética de fundo emotivo,
no Brasil imperaria ‘o culto sem obrigação e sem rigor, intimista e familiar’”
(SCHWARCZ, 1998, p.238).
Outra expressão que surgiu por conta dessa persistente estrutura intimista, e
que tentou construir o perfil do brasileiro foi a da “dialética da malandragem”, de
Antonio Candido, através da figura do bufão, ou do malandro, que perpassa entre os
espaços da ordem e da desordem, também passando pelo público e o privado: “a
intimidade seria a moeda principal e o malandro reinaria, senhor dessa estrutura
avessa ao formalismo que leva à ‘vasta acomodação geral que dissolve os extremos,
tira o significado da lei e da ordem” (idem, p. 239).
O mito da democracia racial brasileira, sempre foi utilizado para a manutenção
das estruturas de poder já definidas da nossa sociedade, “nesse sentido, é na história
que encontramos as respostas para a especificidade do racismo brasileiro” (idem, p.
241) Temos que lançar um olhar para trás e buscar entender o que ainda não foi
totalmente resolvido, em nossas estruturas sociais, que ainda arrasta uma certa
manutenção de posturas autoritárias comuns durante o sistema escravista. A autora
ainda acrescenta que “se o mito deixou de ser oficial, está internalizado. Perdeu seu
estatuto científico, porém ganhou o senso comum e o cotidiano (ibidem).
Resumindo, a importância do mito da democracia racial para essas
construções sociais se deu mais a nível das classes dominadoras do que para tornar
mais democráticas as tentativas de inserção dos negros em sociedade. Competiam
também nesse espaço os imigrantes europeus, vindos também para solucionar uma
certa crise provocada pelo final do regime escravistas, como substituição populacional
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para resolução dos problemas econômicos criados a partir do colapso do trabalho
servil:
“O fato importante, do ponto de vista sociológico, diz respeito à preservação dos papéis políticos das velhas elites. Elas orientavam o processo, no conjunto, de modo a resguardar, intocáveis, todas as suas atribuições fundamentais na estrutura de poder da sociedade. O ‘imigrante’ ou o ‘elemento nacional’ adventício aparecem em cena histórica movidos por cordões que elas dirigiam a seu bel-prazer. Não emergiam como ‘iguais’, como alguém que poderia ter vontade própria e uma orientação política autônoma” (FERNANDES, 1978, p. 266)
Enquanto as classes dominantes conservavam seu poder econômico, político e
social, restavam às demais categorias sociais a ideia propagada que cada um deveria
“fazer fortuna”, ou no caso do europeu, “fazer a América”, mas foi preciso quase três
gerações para que fossem vistos como competidores diretos das elite.
FERNANDES(1978) expõe que uma democracia não funciona sem ter um
mínimo de “equilíbrio” e “autonomia” em suas relações sociais: “só a atuação
organizada, ativa e intransigente do negro e do mulato – dadas outras condições
favoráveis – poderia assegurar tal desfecho” (p. 268); outra possibilidade seria a
utilização do mito da “democracia racial” abertamente pelos negros e mulatos, como
regulador de “anseios de classificação e de ascensão sociais, ele será inócuo em
termos da própria democratização da ordem racial imperante” (p. 269). Por enquanto,
entretanto, o que observamos é que o mito tornou-se uma forte e eficaz barreira que
impediu o progresso e o advento do negro após Abolição, e ainda encontramos rastros
desses discursos até os dias atuais.
I.4 Um retrato do racismo à brasileira.
Segundo gráfico “Retrato dos negros no Brasil” feito pela Rede Angola1, mais
da metade da população brasileira se autodeclarou negra, preta ou parda no censo
realizado pelo IBGE em 2010., porém de cada 100 alunos das universidades do país,
somente 26 são negros. Mesmo sendo um número inferior, comparado ao número de
branco, o acesso da população negra ao ensino superior aumentou 232% ao
comparar os anos de 2000 e 2010.
1 Disponível em:
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/38587/numero+de+negros+em+universidades+brasile
iras+cresceu+230+na+ultima+decada+veja+outros+dados.shtml (acesso em 23.nov.2014)
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Figura 1.1 – Retrato Negro do Brasil. FONTE: Censo de 2010, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais,
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa.
SCHWARCZ(1998) expõe que uma das maiores dificuldades em entender o
racismo a brasileira é por conta do seu caráter não oficial, diferentemente de outros
países que assistiram um embate ferrenho nesse campo de tensão racial, já que nos
mesmos estratégias jurídicas foram criadas para assegurar a legitimidade dessa
discriminação, como forma de lei. Porém, como assinala a mesma autora, “silêncio
não é sinônimo de inexistência” (p. 209), e aos poucos o racismo foi ganhando seus
contornos dentro da nossa sociedade; se antes seu embasamento era por conta da
escravidão, o racismo encontrou posteriormente uma base científica, dentro das
teorias biológicas para legitimá-lo, e depois seguiria respaldado pelas relações de
classe e reforçado pela desigualdade econômica.
O campo de embate era bastante acirrado, apesar de um sentimento estável e
apático, quase inerte às mudanças sobre as relações raciais, já que o discurso da
democracia racial prevalecia, então não havia o porquê de se reclamar de algum tipo
de discriminação. O fato é que, ainda na década de 1950 um importante passo foi
dado para tornar essa discriminação visível e passível de punição, com a aprovação
da Lei Afonso Arino, de 1951, mas sua aplicação e as punições de fato não ocorriam,
o que tornou a lei ineficaz para esse combate.
Uma outra tentativa de criminalizar o racismo aconteceu quando a Constituição
de 1988 foi regulamentada através da lei nº7716, de 5 de janeiro de 1989, na qual o
racismo foi estabelecido como um crime inafiançável, porém, só foram consideradas
discriminatórias as atitudes acontecidas em ambientes públicos, alegando-se que os
atos privados de preconceitos e ofensas de caráter pessoal não seriam possíveis de
punição por conta da impossibilidade de se ter uma testemunha para a confirmação.
21
Outro fator que impossibilita a execução da lei é, em relação ao ato de
discriminação, como prender alguém que discrimina afirmando não discriminar? As
várias alegações de defesa põe a acusação sobre suspeita, ou seja, o texto da lei não
dá conta do caráter intimista das formas mais frequentes do racismo no Brasil.
Esses fatos expõem a falta de credibilidade das instâncias oficiais no combate
ao racismo, já que dados recentes nos comprovam, segundo SCHWARCZ (1998) que
não há para a população negra “uma distribuição equitativa e equânime dos direitos”
(p. 213). Podemos ver isso tanto na distribuição geográfica desigual, e a difícil
mobilidade social de determinados grupos que ocupam áreas de alta vulnerabilidade,
como os bairros mais periféricos das cidades. Essa desigualdade também interfere o
mercado de trabalho, onde os grupos de negros e pardos aparecem
desproporcionalmente na distribuição de empregos, o que interfere automaticamente
no perfil e na renda desses grupos, de acordo com o censo demográfico. Usando o
censo de 1960, “Valle e Silva comprovou que a renda média dos brancos era o dobro
do restante da população e que um terço dessa diferença podia ser atribuído à
discriminação no mercado de trabalho” (idem, p. 214).
Outro campo de diferenciação social para com os grupos de negros foi o que
Sérgio Adorno constatou ao investigar o racismo nas práticas penais brasileiras, no
qual o sociólogo pode observar um tratamento desigual de acordo com a “cor” do
indivíduo. O pesquisador mostra como ser negro é mais perigoso do que ser branco
em nosso país, e isso pôde ser observado em práticas simples do cotidiano como
preencher um formulário, por exemplo, havia uma tendência em “embranquecer-se”
quando o indivíduo podia autodefinir sua cor, ou de “enegrecer” indivíduos que faziam
parte de determinados processos penais, conforme seu andamento, podendo até a
tornar-se “pardos”, caso o processo chegasse a conclusão de que o réu não era
culpado pelo que estava sendo julgado. Ou seja, observamos a utilização da cor da
pele como prática justificativa para a condenação ou absolvição de determinados
cidadãos, marcados fortemente pelas questões raciais.
Em relação à educação, principal foco dessa dissertação, os resultados são tão
alarmantes quanto os já mencionados anteriormente. SCHWARCZ(1998) nos traz uma
análise feita pela pesquisadora Fulvia Rosenberg, sobre os dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 1982, especificamente na cidade de
São Paulo, no qual pode ser observado uma grande desigualdade, entre os grupos
etnicorraciais, em relação ao acesso ao ensino básico, e quando há esse acesso é
observado o seguinte quadro: “a maior concentração de negros nas instituições
22
públicas – 97,1% comparados aos 89% brancos – e nos cursos noturnos: 13% negros
e 11% brancos” (p. 216), não deixando dúvidas sobre a discriminação existente nessa
área.
Quanto à alfabetização, as diferenças são mais notáveis ainda, contrapondo-se
entre os 30% de analfabetismo entre os negros e os 29% da população parda, estão
os 12% dos brancos, apresentados por SCHWARCZ(1998), através do Censo de
1982. Dados mais recentes, como os apresentados pelo “Caderno de Monitoramento
do PPA 2012-2015: Retratos das Políticas Sociais na PNAD de 2012”, com dados
comparativos entre os anos de 2004 e 2012, nos mostram uma queda desse
percentual para 11,8% entre os negros e 5,3% entre os brancos, porém a diferença
entre esses dois grupos ainda permanece discrepante.
Figura 1.2 – Retratos das Políticas Sociais na PNAD de 2012. Fonte: PNAD/IBGE. Elaboração SPI/MP. 2
Como forma de tentar minimizar essa realidade, a Lei 10.639, foi aprovada no
ano de 2003, cuja finalidade seria a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana nas escolas brasileiras, construindo espaços de identificação
positiva da imagem do negro na formação das crianças e adolescentes, além da
formulação de uma pedagogia antirracista. O que a presente dissertação propõe é
uma análise de um pratica de ensino na área de Artes, especificamente no ensino de
teatro, através da metodologia do Teatro do Oprimido, na qual contemple as
discussões sobre as Relações Etnicorraciais dentro dos espaços educacionais.
2 Disponível em:
http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/spi/publicacoes/2014/140707_Cad_Monit_PPA-PNAD.pdf
(acesso em 23.nov.2014)
23
Capítulo II - As Relações Etnicorraciais e a Educação no Brasil
O campo educacional assistiu de várias formas, inclusive através de leis que
impediam o acesso de negros e negras nos espaços escolares, atitudes de exclusão
de cunho racista. O nosso campo educacional ainda é fortemente marcado por uma
estrutura que prioriza os valores e conhecimentos eurocêntricos em detrimento de
outras culturas que também fizeram parte da formação do povo brasileiro, mas que
sempre foram consideradas de menor importância pelo poder dirigente, como é o caso
das culturas africanas e afro-brasileiras.
Como possibilidade de introduzir no sistema educacional brasileiro essas
discussões em torno dos problemas gerados a partir das relações entre brancos e
negros, por conta dos anos de escravidão impostos aos mesmos, e a consequente
omissão de toda a sua contribuição na construção cultural do nosso país, é que foi
proposta, como dito anteriormente, uma lei na qual instituía em caráter obrigatório o
ensino de História e Cultura Afro-brasileiras e Africanas nos currículos da Educação
Básica. A Lei 10.639/03 foi aprovada em 09 de janeiro de 2003, a partir de
reivindicações dos vários movimentos organizados em prol das causas que afetam
negativamente negros e negras, originada a partir do Projeto de Lei nº 259,
apresentado em 1999 pela deputada Esther Grossi e pelo deputado Benhur Ferreira.
Essa nova legislação acrescentou dois Artigos a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei 9.394/96), são eles:
“Art.26-A- Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre história e Cultura Afro-Brasileira. Parágrafo Primeiro - O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil. Parágrafo segundo - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar em especial, nas áreas de Educação Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras. Art.79-B – O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
A partir da publicação da Lei 10.639/003, em março de 2003 e, no ano
seguinte, do Parecer 003/004 que regulamenta a implantação da lei, os debates sobre
relações raciais no Brasil tornaram-se mais intensos. Com essa lei instaurou-se, em
todos os campos que discutem o meio escolar, a necessidade de conhecermos como
as Relações Etnicorraciais se construíram e se constroem em nossa sociedade, para
24
entendermos como determinadas posturas de preconceitos ainda são fatores
determinantes para o difícil acesso de negros e negras a determinados setores e
funções na sociedade.
É claro que essas relações não nascem dentro da escola, mas transparecem e
encontram nesse espaço um campo fecundo para propagação de sua legitimidade.
BOURDIEU(2007) considera como “inércia cultural” quando insistimos em considerar o
sistema escolar “como um fator de mobilidade social”, ideia essa destinada a ideologia
da “escola libertadora”, mas o que se observa é exatamente o contrário, o sistema
escolar torna-se “um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a
aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o
dom social tratado como dom natural” (p. 41). O autor ainda ressalta que não adianta
somente enunciar as desigualdades na escola, mas faz-se necessário que os
“mecanismos objetivos” que determinam essa exclusão sejam descritos e analisados,
para compreendermos como a eliminação de determinados grupos ainda se encontra
presente na vida de determinadas crianças, culturalmente desfavorecidas.
Cada aluno chega à escola com uma certa “herança cultural” transmitida tanto
pelos seus familiares quanto pelo seu contexto social, é o que BOURDIEU(2007)
chama de “capital cultural”, transmitido pelas famílias a seus filhos, que irá interferir
diretamente na experiência escolar dos mesmos em seus primeiros estágios
educacionais, e que os marcará diferentemente, de acordo com a herança cultural de
cada um. O autor ainda menciona que a renda familiar até contribui para o
crescimento da parcela de “bons alunos”, porém ao se comparar famílias com
diplomas iguais, a renda não exerce tanta influência assim, mas já o contrário, quando
as famílias possuem mesma renda, haverá mudanças significativas caso os pais
sejam diplomados ou não, o que permite concluir, segundo o próprio autor, que “a
ação do meio familiar sobre o êxito escolar é quase exclusivamente cultural” (p.42).
Mas não devemos nos ater somente a esse pensamento porque, de certa
forma, abstém a escola de sua responsabilidade de perpetuação das desigualdades
sociais. BOURDIEU(2007) expõe que, se há pouca discussão sobre as desigualdades
frente ao sistema escolar, que isso ainda é uma herança da “ideologia jacobina”, a
qual evita levar em conta qualquer visão de preconceito no espaço educacional,
privilegiando sempre o discurso da “equidade”: “A igualdade formal que pauta a prática
pedagógica serve como máscara e justificação para a indiferença no que diz respeito
às desigualdades reais diante do ensino e da cultura transmitida” (p. 53).
25
O autor ainda menciona que devemos nos desprender da ideia de pedagogia
como um “despertar”, citando Weber, a qual visava despertar determinados dons
adormecidos, em indivíduos excepcionais, através de técnicas encantatórias, proeza
essa adquirida por determinados mestres. O que deveríamos procurar estabelecer em
determinadas práticas pedagógicas seria uma pedagogia mais racional e universal,
que pudesse partir do zero e não considerando como dado o que apenas alguns
herdam, porém a tradição pedagógica ainda persiste na ideia de formas
inquestionáveis de igualdade e universalidade, mas que só atendem aos educandos
que detém uma herança cultural, de acordo com as exigências culturais da escola: “É
uma cultura aristocrática e, sobretudo, uma relação aristocrática com essa cultura, que
o sistema de ensino transmite e exige” (idem, p.55).
Outra forma bastante clara de perceber essa relação aristocrática é na relação
que os professores mantém com a “linguagem”, como uma espécie de veículo
consagrado de uma cultura consagrada, fornecendo um sistema de posturas mentais
transferíveis, solidárias com valores que dominam toda a experiência educacional,
ditada por experiências sociais:
“Além de um léxico e de uma sintaxe, cada indivíduo herda, de seu meio, uma certa atitude em relação às palavras e ao seu uso que o prepara mais ou menos para os jogos escolares, que são sempre, em parte (...) jogo de palavras”. (Idem, 56)
O que observamos é que também há um caráter implícito de manutenção,
perpetuação e transmissão de determinados saberes eruditos das classes cultas
nessas relações com a linguagem, na qual as instituições escolares têm função
primordial, corroborando com a conservação de uma hierarquia de valores intelectuais,
que, como menciona o próprio BOURDIEU(2007) “constrói uma lógica própria de um
sistema que tem por função objetiva conservar os valores que fundamentam a ordem
social” (p.56).
Segundo o mesmo autor, o grande problema é que, quando a escola já define
seu recrutamento, ou seja, quando legitima uma cultura em detrimento da outra,
exercendo sua função de conservação social, alimentando uma esperança que a vida
escolar poderia dimensioná-los a uma posição favorável na hierarquia social, mas
operando a partir de uma seleção, que acaba por sancionar e consagrar as
desigualdades reais, ou seja, dessa forma “a escola contribui para perpetuar as
desigualdades, ao mesmo tempo em que as legitima” (p.58).
Entender os traços políticos e culturais que envolvem nossos alunos, nos leva
a refletir sobre que espaço educacional poderá ser construído, para que se possa
26
contemplar a heterogeneidade dos grupos que formam a sociedade brasileira, de
forma mais democrática e igualitária, desprendendo-se dos modelos de escola ainda
presos a uma estrutura de educação eurocêntrica. Como menciona MUNANGA (2005)
em seu texto de apresentação para o livro, “Superando o Racismo na Escola”, quando
ressalta a importância da diversidade entre os grupos humanos como um “fator de
complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral” (p.15), e não como
fator de exclusão ou de diferenciação de classes inferiores e superiores entre esses
grupos, como se vê ainda nas escolas de hoje em dia, o que acaba por contribuir no
fracasso escolar de muitos alunos.
Traçar como as relações etnicorraciais no Brasil se construíram torna-se
matéria principal quando o assunto é discutir as posturas racistas e de intolerância
com a cultura e a história do negro, para observarmos como essas posturas invadem
nossas salas de aula, em seus mais variados aspectos. Basta uma rápida análise para
observarmos que a estrutura do ensino brasileiro, ainda tem uma tendência fortemente
marcada por critérios eurocêntricos, tornando-se em um ensino bastante distante da
realidade da sociedade brasileira.
“Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre alunos de diferentes ascendências étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao do alunado branco”. (MUNANGA, 2005, p. 16)
Dessa forma há um apagamento da memória coletiva, da história, da cultura e
da identidade afrodescendentes no sistema educativo, e uma super valorização de um
modelo baseado no eurocentrismo, o que talvez tenha provocado os altos índices de
repetência e evasão escolar, por não haver, a partir dessa interpretação, uma
identificação dos alunos negros com essa realidade criada nos espaços escolares,.
Quando a história do negro é contada nos livros didáticos, é sempre na perspectiva do
“Outro”, de quem assiste. A voz do discurso nunca é a do próprio negro, pois este se
tornava objeto de análise e nunca o sujeito ou o “olhar” observador, e o que se assiste
a partir de então é uma sucessão de imagens e fatos históricos que põe o negro
sempre em posição inferior, a partir de uma “ótica humilhante e pouco humana” (idem,
p.16). MUNANGA (2005) cita o historiador Joseph Kizerbo, para ressaltar a
importância que a história de cada indivíduo exerce nos mesmos: “um povo sem
história é como um indivíduo sem memória, um eterno errante” (idem) e questiona
como então um negro poderia aprender sobre si mesmo, sentir-se representado e ver-
27
se envolvido nesse sistema educacional que propaga fortemente valores brancos
eurocêntricos? Logo em seguida MUNANGA(2005) expõe as consequências disso na
estrutura psíquica dos indivíduos negros, dialogando com os escritos de Franz Fanon
em Pele Negra, Máscara Branca, e se questiona a partir desses dois mundos
literalmente construídos sobre a ideia do que seriam os sujeitos “branco” e o “negro”.
Analisando ainda o poder da linguagem nessas relações, encontramos em
FANON(2008) uma referência importante ao que ele chamou de “Fenômeno da
Linguagem”. O autor defende que “falar é estar em condições de empregar uma certa
sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma
cultura, suportar o peso de uma civilização” (p. 33), dentro desse paradoxo,
questionamos que cultura influenciaria essa posse da linguagem, e que cultura estaria
excluída? Já que, como menciona o próprio autor, o homem que possuir a linguagem
consequentemente possuirá o mundo que essa linguagem representa. Que mundo
seria esse? O fato é que, a posse da linguagem torna-se então uma extraordinária
potência nas civilizações colonizadas, a qual foi construída sob um forte complexo de
inferioridade, já que grande parte de sua cultura original foi renegada, tendo a cultura
do colonizador como referencial de civilização, progresso e atualidade, incutindo nas
mentes dos povos colonizados que, quanto maior fosse a assimilação dos valores
culturais dos colonizadores, mais o colonizado escaparia da sua selva, ou seja, quanto
mais ele rejeitasse sua negritude, seu mato, mais branco seria.
Como toda representação passa pela linguagem, FANON(2008) ressalta que a
primeira reação dos negros deveria ser dizer “não” àqueles que tentam defini-los, ou
seja, uma tentativa de desalienação da ideia ocidental que se construiu sobre o que
era ser negro. Para isso, toda estratégia de ressaltar a importância da cultura afro-
brasileira e africana na construção do nosso país faz-se necessário para que
possamos questionar as várias outras possibilidades das relações etnicorraciais, de
forma mais democrática, agregando os negros e negras.
Para além da aprovação da lei 10.639/03, este é um momento de muita
discussão em relação às culturas afro-brasileiras e africanas. Stuart Hall, em seu
artigo “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, começa se questionando sobre que tipo
de momento era aquele, para se colocar em discussão as questões da cultura popular
negra; para tanto dialoga com Cornel West, que propõe uma genealogia do que seria
esse momento, levantando três grandes eixos. O primeiro seria o deslocamento que
os modelos europeus sofreram, saindo do foco como sujeitos universais da cultura.
Um segundo eixo surge a partir do momento em que outra cultura assume lugar de
28
destaque no cenário mundial, como é o caso dos EUA surgindo como grande
potência, provocando também grande mudança hegemônica na definição de cultura.
Terceiro e último eixo, seria a “descolonização do Terceiro Mundo”: “Eu entendo a
descolonização do Terceiro Mundo no sentido de Frantz Fanon, incluo aí o impacto
dos direitos civis e as lutas negras pela descolonização das mentes dos povos da
diáspora negra” (HALL, 2009, p.336).
HALL(2009) ressalta também a importância que as “vozes das margens”,
principalmente no Ocidente, têm na transformação da vida cultural dessas sociedades,
tornando-se um espaço de grande produção cultural, muito graças às políticas
culturais das diferenças, conquistadas a partir de lutas em prol da redução dessas
diferenças, da produção de novas identidades, e com isso o aparecimento de novos
sujeitos no cenário político e cultural.
II. 1 Entendendo o termo “etnicidade” a partir de Lívio Sansone.
Entre esses novos sujeitos, os que tinham a sua etnicidade como fator de
diferença e exclusão e consequentemente o crescimento do racismo. Para
entendermos esse termo “etnicidade” recorremos a Lívio Sansone em seu livro
Negritude sem Etnicidade, on o qual introduz uma discussão sobre o termo através
das suas próprias experiências na descoberta do que viria a ser etnicidade.
SANSONE(2004) relata uma experiência nos meados dos anos 90, ao vivo em uma
entrevista na TV Educativa baiana, onde fora solicitado a explicar o que era etnicidade
em trinta segundos, algo impossível mediante a complexidade da construção do
conceito, porém o autor expõe que hoje em dia o termo é mais reconhecido tanto pela
academia quanto fora dela, como em noticiários, na divulgação de produtos de beleza,
e nas culinárias exóticas, relacionando sempre o termo “étnico” com exótico, estranho,
não-branco, ou, como conclui SANSIONE(2004) em linguagem simples, como algo
raro e diferente. O autor propõe que o Brasil deveria ser um país que respeitasse sua
multiculturalidade, e até mesmo sua multietnicidade, apesar da celebração da mistura
racial e étnica presente nos discursos oficiais, e do mito da democracia racial que
ainda dita as relações etnicorraciais em nosso país:
“Nesse contexto etno-racial, o esforço de muitos pesquisadores tem sido o de descobrir ou desvendar não apenas o racismo à moda brasileira, mas também a etnicidade hifenizada no Brasil – a do ‘hífen oculto’ que impede os brasileiros de se definirem como afro-brasileiro, ítalo-brasileiros, Líbano-brasileiros, e assim por diante” (SANSONE, 2004 p. 11).
29
O autor nos faz refletir sobre um dilema, ao se tentar reescrever a história
brasileira moderna, a partir da visão étnica, primeiro porque haveria uma curiosidade
muito grande sobre esses “outros étnicos”, atitude rara em um país em que se celebra
a miscigenação e o hibridismo, e que nos discursos dizem não reparar em diferenças
raciais, já que todos nós seríamos negros porque temos sangue de negro, e com isso
é dada menos importância a questão étnica.
SANSONE(2004) encontra nos estudiosos Richard Handler e Paul Gilroy, a
ideia de que identidade é um conceito transcultural. A identidade étnica, segundo o
autor, não deve ser entendida como essencial, e sim como um processo influenciado
tanto pela história quanto pelas circunstancias contemporâneas, sendo levado em
conta tanto a dinâmica local quanto a global. SANSONE(2004) prefere usar o termo
“etnicização”, já que estamos lidando mais com uma dinâmica do que com uma
efetividade.
Em relação ao Brasil, o autor expõe que tanto as comunidades quanto as
políticas étnicas não são contínuas e são sempre apresentadas de maneira discreta.
SANSONE(2004) analisa nesse seu livro como a “etnicização” do Brasil, mais
especificamente as relacionadas à criação de “identidades negras”, se compara e
muito com outras comunidades, em outros lugares do “Atlântico Negro”, expressão
utilizada por Paul Gilroy para as culturas formadas durante o translado de povos
escravizados, através do tráfego negreiro no Oceano Atlântico. Esses imigrante
construíram novas expressões culturais, em vez de simplesmente adaptarem a sua a
esse novo contexto, por conta do confronto que tiveram que encarar nas relações
raciais cotidianas, não polarizado, mas baseado num continuum de cor, além de
proibições explícitas a qualquer forma de organização étnica, fortemente coibida
durante a década de 1930, anos de intervenção e ditadura militar no Brasil.
Somente com o equilíbrio desse dilema, como conclui o próprio
SANSONE(2004), é que poderemos ter grandes contribuições nas discussões em
torno das relações etnicorraciais. Há uma contradição muito forte e presente na
realidade brasileira, que é a de assistirmos cotidianamente atos de racismo contra
negros e negras e, mesmo assim, o discurso da miscigenação ainda se apresenta
como grande trunfo da sociedade em se considerar democrática racialmente, o que
nos leva a questionar até que ponto esse mesmo discurso corrobora e legitima de
forma velada todos esses atos de preconceito, a ponto de termos instaurado no meio
de nossa sociedade um racismo institucional fortemente excludente.
30
O autor questiona porque tais atos de exclusão ainda não geraram conflitos tão
fortes quanto os tumultos, movimentos e guerras que assistimos em outros países, e
menciona três fatores que viraram tendência internacional generalizada, e que influem
diretamente nesse dilema:
“o papel dos meios de comunicação de massa e da globalização; a mudança da agenda política do mundo acadêmico; e a inexistência de uma perspectiva comparada madura e internacional sobre as relações raciais e a etnicidade no Brasil”. (idem, p. 14)
O papel tanto da globalização quanto da mídia nas construções de identidades,
principalmente da identidade étnica, têm se revelado de grande influencia, já que são
responsáveis pela propagação de símbolos etnicamente marcados tanto pelas
localidades quanto pelas características individuais; dessa forma esses símbolos
parecem significar que vale a pena ser etnicamente diferente. Porém, apesar dessa
heterogeneidade acentuada, por mais que o indivíduo venha a apresentar-se com
símbolos diferentes os modos como se expressa essa diferença são singularmente
parecidos, e isso SANSONE(2004) relaciona ao fato de recorrermos sempre ao que
Nederveen Pieterse (1995) chamou de “memória global”, um banco de símbolos que
oferece a indivíduos do mundo inteiro imagens para identificação, como as subculturas
de jovens, estilos musicais etc., acessíveis aos mesmos, desde que esses possam
comprá-los, o que nos leva a concluir que essa influência leva a que as identificações,
sejam, até certo ponto, uma construção do campo das mercadorias.
Essa hiperabundância pode trazer uma variedade de identidades étnicas, mas
também constrói outras formas de relações etnicorraciais, constrói outros racismos, e
a mídia tem um grande desempenho nesse aspecto.. Como afirma SANSONE(2004) o
jornalista ou fotógrafo irá preferir fazer ou vender trabalhos e reportagens mais
relacionados à etnicidade do que à diferença social, o que consequentemente acaba
por relacionar “cultura” a um grupo étnico ou religioso, vendo a produção cultural como
um todo estático, ou seja, influenciando diretamente nas ideias sobre etnicidade e
raça.
O que podemos ver é que popularmente não se faz distinção entre cultura,
etnia e raça, tornando essas categorias fluidas e intercambiáveis, porém com
ramificações problemáticas. SANSONE(2004) nos sugere que devamos desconstruir
os significados de negritude e de branquitude, e deveríamos falar em racialização, ou
seja, como algo em processo. Dessa ideia de “racialização” compreendemos que
“raça” torna-se então em mais uma entre as muitas maneira, de se expressar e
vivenciar a etnicidade.
31
O autor ainda afirma que em toda América Latina iremos encontrar padrões
similares em relação à cor, com discursos que estão sempre enaltecendo a
miscigenação e criando outra raça, nesse caso a latina, nunca a separação étnica dos
grupos, já que há uma espécie de cultivo de uma cegueira formal para a cor na
sociedade.
Para entendermos melhor a situação de negros e negras na América Latina,
sob uma perspectiva internacional e comparativa, SANSONE(2004) tece dois
comentários: “Primeiro, ser “negro” não corresponde à mesma posição social em todas
as sociedades” (idem, p.21), uma vez que em sua maioria os negros concentram-se
nas classes mais baixas; “Segundo, a existência de pessoas que parecem fisicamente
‘diferentes’, ou são percebidas como ‘culturalmente’ diferentes, não resulta, necessária
e automaticamente, num problema racial ou étnico” (idem p. 21-22), o problema seria
o destaque da etnicidade na história política, seja ela de um país ou de uma região.
O autor esclarece em quatro pontos uma certa mudança em relação às
identidades étnicas, tanto no Brasil quanto na América Latina como um todo, nas
últimas décadas. O primeiro ponto é em relação aos avanços políticos que tornaram
os direitos étnicos possíveis, com mudanças inclusive em Constituições garantindo
direitos às minorias étnicas, principalmente da comunidade negra; um segundo ponto
está relacionado a cobrança ao Estado das reivindicações políticas das demandas das
minorias étnicas e raciais, esperando desse uma postura efetiva, seja como parceiro,
ou seja como mediador; todos os países passaram por um período que o autor chama
de “rápida internacionalização do mercado”, ou seja, em pouco mais de 20 anos esses
países passaram de uma economia razoavelmente fechada para um mercado em
rápida expansão; e quarto e última mudança relaciona-se ao contato das culturas
locais com outras culturas mundiais e com isso as identidades étnicas estão se
tornando menos locais, já que nesse contato o banco de símbolos torna-se mais vasto,
amplo e internacional.
SANSONE(2004) no indica um caminho para examinarmos a situação
brasileira em relação à criação de identidades racializadas e dos efeitos variáveis de
conceitos como os de raça, classe e juventude. Ao analisar a formação das culturas
negras no Brasil, o autor diz que devemos direcionar nossos estudos para a
criatividade, ou seja, para a forma como a África é reinventada, mais do que investigar
possíveis vestígios de “africanismos”. Sansone desenvolve seus escritos sobre as
relações raciais no Brasil a partir de uma visão geral da posição socioeconômica dos
afro-brasileiros no Brasil, especificamente na Bahia, através de dados do
32
recenseamento nacional, confrontados com pesquisa de campo em espaços ocupados
prioritariamente por uma população jovem negra..
O autor aborda as relações raciais no Brasil a partir de três períodos, cada um
deles correspondendo a níveis diferentes de desenvolvimento econômico, e das
tentativas de integração da população negra no mercado de trabalho. O primeiro
período abarca desde o fim da escravidão, em 1888, até a década de 1930, período
em que a economia do país ficou concentrada nas regiões sul e sudeste, provocando
o êxodo de populações das outras regiões, o inchaço das grandes metrópoles e uma
grande imigração de povos europeus. As relações raciais se davam em meio a uma
sociedade altamente hierarquizada, principalmente em relação a cor e classe.
Um segundo período é traçado pelo autor da década 1930, época da ditadura
populista de Vargas, até o fim do regime militar, no final dos anos 1970. Durante os
anos trinta, o regime autoritário e populista da era Vargas restringiu a imigração
europeia e incentivou a utilização da mão-de-obra brasileira, como parte de um projeto
de modernização. Após o golpe militar de 1964, também em um regime autoritário, o
Estado começa a patrocinar e promover um crescimento econômico, além do emprego
nas indústrias e nas grandes obras de infraestrutura começarem a se tornar acessíveis
aos negros: “Mais negros do que nunca conseguiram obter emprego formais com
oportunidades de mobilidade social, numa transição gradativa que deflagrou o início
de um tipo diferente de consciência social e racial” (idem, p. 43).
Ainda que entre os anos 1964 e 1983 o governo militar tenha reprimido os
direitos civis e impedido qualquer tipo de organização de negros, durante os dez anos
decorridos entre 1970 e 1980, época que houve um certo afrouxamento militar, houve
um crescimento de algumas organizações negras e da cultura negra. Essa nova
geração de trabalhadores negros, através da mobilidade social ascendente
conseguida a partir da sua entrada no mercado de trabalho, se deparou com
determinadas barreiras relacionadas à cor que antes não eram percebidas, já que, por
conta dos abismos hierárquicos de nossa sociedade, havia pouca expectativa em
relação aos direitos civis para os pobres. Com isso, esses novos trabalhadores
começaram a se juntar em organizações negras e a exigir igualdade de direitos, e
tanto a cultura quanto a religião negras ganham um maior reconhecimento oficial.
O autor traça um terceiro momento a partir da redemocratização do início dos
anos oitenta até o final do século, quando observamos um período de acelerada
recessão, democratização e modernização, que provocaram o surgimento de novos
sonhos e novas frustrações na população negra. Ao longo da década de 1990, os
33
canais de mobilidade social que antes eram vistos como importantes para a inserção
da classe operária negra no mercado de trabalho perderam sua importância nas
gerações mais novas. Os setores de empregabilidade, tanto os privados quando os
públicos, reduziram seus números de empregos, e o valor dos salários despencou. Os
jovens buscaram outras formas, “alternativas”, de subsistência em contrapartida aos
baixos salários, seja através do trabalho informal, seja pela ilegalidade da venda de
mercadorias de origem duvidosa, por não apresentarem nota fiscal poderiam ter sido
roubadas, ou até mesmo no tráfico de drogas. Como resultado disso, vimos uma
grande defasagem de renda entre os da classe alta e os que se concentravam na
base da escala econômica. A classe média sofreu um grande colapso em sua renda,
vindo a empobrecer acentuadamente nesse período. A criação de shopping centers de
luxo trouxe um outro tipo de segregação, baseada na cor, já que para frequentar ou
até mesmo trabalhar nesses espaços exigem-se como requisito, o indivíduo ter uma
“boa aparência”, ou seja, ser de “fino trato” que, apesar de não ter nenhuma referência
à cor da pele, muitos jovens negros e negras acabam sendo excluídos e
discriminados, como não bem vindos à esses espaços, sendo excluídos de entrevistas
considerados fora do perfil, ou sendo perseguidos por seguranças ao visitarem esses
espaços, confundidos como possíveis criminosos. Nos anos recentes, apesar da
retomada do crescimento econômico, da ampliação dos empregos formais e das
oportunidades, das transformações políticas e sociais reconhecíveis, não se pode
considerar que a situação de desvantagem e de discriminação da população negra
dentro da sociedade brasileira tenha mudado de forma substancial. Os episódios
recentes do cerceamento do ingresso de jovens negros nos shoppings de São Paulo,
de um lado, e os indicadores de mortalidade de jovens negros nas periferias das
grandes cidades como o Rio de Janeiro e Salvador, de outro, são dados expressivos.
Porém uma mudança de significativa importância apresentada por
SANSONE(2004), e que muito nos orientará aqui nesse trabalho, são as análises que
o mesmo faz em relação à educação. O autor cita que a educação escolar de massa,
assim como os meios de comunicação massiva, contribuíram nesse período para a
construção de uma elevação drástica das expectativas. Os jovens atuais
apresentavam um nível de estudos mais elevado do que o de seus pais, porém não se
constatam melhoras significativas na qualidade das oportunidades no mercado de
trabalho, gerando uma grande frustração nas duas gerações. Como entender que na
geração de seus pais o ingresso em determinadas ocupações eram mais fáceis e os
empregos mas compensadores, e agora que seus filhos já apresentam instrução que
podia ser considerada adequada as exigências de qualificação ficaram maiores?
34
Essa frustração arrasta vários fatores negativos, pois além de gerarem conflitos
domésticos, cria uma insatisfação entre os jovens que não conseguem acreditar em
construir uma trajetória educacional mais longa, pelo desestímulo das dificuldade de
um emprego correspondente ao investimento formativo. Devido a cortes de verbas do
Governo è educação na década de 1990, a qualidade do ensino público,
principalmente nas séries iniciais, caiu muito. A frequência escolar deixou de ser um
hábito normal para muitos pois a escola “não era um evento em torno do qual a
semana se organizasse, nem tampouco era essencial para prepará-los para a idade
adulta e a vida profissional” (idem, p.53).
Outros espaços tornaram como fatores importantes de socialização entre esses
jovens desde os anos de 1990. Entre esses espaços SANSONE(2004) cita três: o
grupo de pares (a turma), a galera (grupo de jovens de determinado bairro, composto
por vários grupo de pares) e a televisão. Consequentemente, outras prioridades
surgem dessas interações, sem o caráter crítico da escola, os jovens traçam suas
conversas em torno de namoro, consumo e diversões, ocasionando, segundo o autor,
uma grande evasão escolar. Se antes os pais abandonavam a escola para poderem
trabalhar e contribuir com a renda familiar, hoje em dia o abandono dos jovens aos
estudos é mais complexo, segundo o autor, “a falta de confiança na instrução, e não a
necessidade de trabalhar, é que os havia afastado da escola” ( idem, p.54). A palavra
“desempregado”, depois dos grandes indicadores de desemprego do final do século,
parece não ter tanto peso estigmatizante quanto teve para os pais e avós da geração
atual. Mesmo quando faziam pequenos trabalhos informais, as gerações anteriores
preferiam chamá-los de “minha profissão”, do que se considerarem desempregados, e
costumavam se identificar por suas ocupações, como, por exemplo, Zé pedreiro, João
bombeiro, Maria lavadeira etc., o que é dificilmente encontrado nos dias de hoje,
quando, segundo o próprio autor, por exemplo, muitas jovens empregadas domésticas
se dizem desempregadas por terem vergonha de exporem o tipo de trabalho que
desempenham.
Percebemos a construção de uma grande crise de insatisfação nos jovens,
tornados mais próximos e sintonizados com os altos padrões e com os altos estilos de
vida, pelos meios de comunicação e também por conta da ampliação do nível de
instrução, por leem mais, pela propagação em massa de estilos de vida estruturados
pelo alto consumo, por conhecerem e desejarem frequentar espaços elitizados, como,
por exemplo, dos shopping centers de luxo, onde, quando conseguem penetrar e ao
se compararem os seus usuários habituais, percebem-se ainda mais como pobres e
negros.
35
Ainda segundo Sansone, essa diferença de gerações também é percebida nas
relações construídas no mercado de trabalho. Por exemplo, enquanto os pais tinham
total respeito para com seus chefes, pessoas consideradas mais ricas, ou brancas, já
que dependiam desses para sobreviverem em seus empregos, seus filhos encaram de
outra forma esse “respeito”, vendo-o como perda de dignidade, e não sabem lidar com
essa expectativa de chefes ou patrões em terem funcionários subalternos, não
aceitando humildemente as ordens de superiores, o que leva a uma espécie de
autoexclusão em determinados setores do mercado de trabalho.
As práticas religiosas tradicionais foram usadas sempre como válvula de
escape para as “frustrações” para a população negra, porém, segundo o autor, as
novas gerações são mais secularizadas, ou seja, não participam, nem acreditam nas
cerimônias religiosas como seus pais. Usam outras possibilidades de “fuga mágica da
pobreza”, preferem fingir que não eram pobres usando os símbolos de status que
pudessem associá-los à classe média alta e à cultura jovem global. Como o consumo
desses símbolos é bastante caro, os jovens buscam fontes de rendas alternativas,
seja no comércio de rua, na venda de eletrônicos, ou enquadrando-se no mercado de
turismo como dançarinos, jogadores de capoeira ou músicos. SANSONE(2004) cita
ainda como campos de aquisição de renda para os jovens com pouca instrução, os
pequenos delitos, além do uso ostensivo do próprio corpo, através da prostituição.
O autor analisa que esse padrão agressivo de consumo praticado por essa
nova geração dificilmente seria satisfeito por qualquer emprego convencional. Em
seus grupos de pesquisa a pergunta de ordem era: “quanto você ganha?” e não “o que
você faz para ganhar a vida?”, como aconteceu com seus pais, que inclusive
utilizavam suas profissões em seus nomes. Se os filhos seguem as profissões de seus
pais podem ser chamados de “otários”. Assiste-se então a mudança frequente de
emprego, sempre insatisfeitos com seus trabalhos, e longos períodos de desemprego,
e dessa maneira as gerações mais jovens demonstram a sua insatisfação com o
cenário presente.
SANSONE (2004) pergunta então: “”Quais são as consequências dessas
realidades para a percepção da ‘raça’?”(p. 59) Antes de qualquer reflexão, precisamos
entender a complexidade de se conceber um sistema de classificação racial no Brasil.
A utilização de determinados termos ou vocábulos raciais surgem dentro do espaço do
negro, em diferentes aspectos da vida cotidiana, e refletem sua situação econômica, o
desenvolvimento de suas identidades negras, identidades essas também
determinadas tanto pela interferência do Estado, da Igreja Católica, pelos políticos,
36
além dos discursos sustentados pela mídia e pelas ciências sociais. Essas instituições
ainda são detentoras de determinadas posições de status quanto à criação de
identidades étnicas.
Dentro dessa ideia de identidade racial, e entendendo os privilégios que os
grupos de pele branca detém em nossa sociedade, não é difícil entender o porquê da
preferência de muitos indivíduos, principalmente os que se encontram em condições
mais desfavoráveis socialmente, em querer se identificarem como indivíduos brancos,
já que o autor utiliza para seus estudos o sistema de autoidentificação racial pelo
entrevistado. Segundo o autor, o fato das pessoas procurarem se identificar como
mais claras está ligado ao desejo de desenfatizar a negritude, para não se tornar
vítima de racismo. A autodescrição torna-se matéria relevante nos escritos de
SANSONE(2004), já que a partir dela é que vão se traçando as relações etnicorraciais
brasileiras entre negros e brancos, e até entre negros com tonalidades de pele
variadas. O que determina que um indivíduo seja negro ou branco? A cor da pele
ainda é um fator muito forte e determinante para muitas ações de racismo, quando por
exemplo uma pessoa com a cor da pele preta entra em algum estabelecimento
comercial da “ cidade branca”, ainda é seguido pelo seguranças por desconfiança de
alguma atitude ilegal; ou quando é impedido de utilizar o elevador social, confundido
com algum trabalhador doméstico e não como um proprietário de algum apartamento.
Como forma de fuga desses atos de violência através da exclusão, o discurso
do mito de democracia racial e da miscigenação tornaram-se fundamentais para criar
uma relação racial onde a maioria prefere uma identificação com o grupo que detenha
algum tipo de privilégio, no caso o “branco”, e renegue qualquer aproximação com
uma identidade negra, a ponto de criar outros tipos de representação negra de acordo
com a tonalidade da cor da pele, desde moreninha, morena clara, etc., menos preta.
II.2 Algumas experiências da educação brasileira com as questões étnicas e
raciais.
Hoje em dia, alguns institutos de pesquisa da população brasileira, como por
exemplo o IBGE, utilizam as seguintes denominações: branca, preta, parda, índio,
amarela; na Plataforma Lattes, o pesquisador também precisa se autodeclara a partir
dessas mesmas denominações, como forma de se ter uma dimensão mais objetiva
sobre as políticas de promoção de igualdade racial, ou seja, serve para avaliar se as
mesmas já estão surtindo algum tipo de efeito.
37
Depois da Lei 10.639/03 ter sido aprovada, questionários foram encaminhados
pelo MEC e pela SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção à Igualdade
Racial), a grupos do Movimento Negro, Conselhos no âmbito estadual e municipal de
Educação, professores empenhados em trabalhar os assuntos raciais em sala de aula,
e aos pais e responsáveis, no qual os mesmos contribuíram com suas ideias sobre
como essas questões poderiam ser abordadas de maneira efetiva em sala de aula. A
partir desses questionário foi elaborado um documento que serviria como Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Este documento traz vários
esclarecimentos políticos e históricos sobre as Relações Etnicorracias, destinados
tanto aos mantenedores dos estabelecimentos de ensino e professores, como também
às famílias e aos envolvidos diretamente com os alunos e a qualquer cidadão
comprometido em dialogar com essas questões.
O documento começa nos apresentando como os negros e negras eram
excluídos da escola a partir de registros amparados pela Lei, conforme apresentação
desenvolvida pela SEPPIR, como forma de entender porque no Brasil tanto enquanto
Colônia, Império ou República, houve e continua havendo uma “postura tão ativa e
permissiva diante da discriminação e do racismo que atinge a população
afrodescendente brasileira até hoje”. (p.7) Historicamente, essas posturas tiveram um
amparo legal, como no Decreto n° 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, que impedia que
escravos fossem admitidos nas escolas públicas brasileiras, e no caso de negros
adultos, dependia da disponibilidade de professores. Já no Decreto n° 7.031-A, de 06
de setembro de 1878, permitiam a matrícula de alunos negros, mas somente no
período noturno. Observamos que desde essa época foram muitas as estratégias
usadas para que os grupos de negros e negras não pudessem ter acesso à educação.
O país também veio a conhecer uma outra estratégia de ensino marcada pelo
caráter segregacionista, embasada nos ideais eugenistas, criados por Francis Galton
(1922-1911) para designar “o melhoramento biológico da raça humana” através da
reprodução seletiva, em sua obra Inquiries into human faculties (1883), a partir das
ideias de melhoramento da espécie, de Chales Darwin (1809-1882) em seu livro “A
Origem da Espécie”. Simone Rocha, doutora em História pela PUC-SP, em seu artigo
“A educação como ideal eugênico: o movimento eugenista e o discurso educacional no
Boletim de Eugenia 1929-1933”(2011), faz um apanhado de alguns artigos publicados
no “Boletim de Eugenia” que fazem correlação com alguma proposta de intervenção
no campo educacional, e não é difícil encontrar inclusive intervenções na própria
Constituição, que digam respeito à Educação, já que muitos dos seguidores da ideia
38
de eugenia tinham influência política. Rocha(2011) menciona que nas Constituições
de 1934 e 1937, existiam vários artigos que defendiam que os ideais eugênicos
fizessem parte do meio educacional como forma de conscientização para uma
melhoria nos comportamentos sociais de indivíduos considerados “degenerados”. No
artigo 138, da Constituição de 1934, encontramos por exemplos esses dois incisos, os
quais a União, o Estado, e os Municípios deveriam cumprir:
“b) Estimular a educação eugênica; f) Adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis”. (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil – 1934).
Rocha(2011) faz uma reflexão sobre os dois incisos, relacionando-os às ideias
defendidas pelos eugenistas, entendendo essa “educação eugênica” para além dos
conhecimentos sobre genética, assunto esse defendido como primordial para a
propagação e defesa dos ideais eugênicos, mas também, e principalmente, à
educação em relação aos casamentos entre pessoas de mesma classe social e etnia.
No inciso “f” traz a discussão eugênica o combate às doenças transmissíveis como
pertencente à ordem da eugenia. Todo esforço por parte desses estudiosos, era em
defesa de uma legalização da eugenia.
No Brasil, durante os anos de 30 e 40, foi desenvolvida uma política
educacional na qual o cidadão brasileiro seria “moldado” conforme os parâmetros
europeus, seguindo uma proposta de desenvolvimento físico, moral e disciplinar do
indivíduo. É o que encontramos por exemplo na Constituição de 1937, na era Getúlio
Vargas, em meio ao regime de ditadura do Estado Novo. Uma das implementações do
pensamento eugênico nas escolas seria a criação da disciplina “Educação Física”,
essa de caráter obrigatório, juntamente com o ensino cívico e trabalhos manuais em
escolas primárias, normais e secundárias, e a escola só conseguiria a autorização ou
reconhecimento de funcionamento se cumprisse tais exigências. (Art.131. Constituição
dos Estados Unidos do Brasil 1937)
É importante observarmos como estava a educação pública em nosso país
desde o início do século XX. Países desenvolvidos como a França, Alemanha,
Inglaterra e Estados Unidos da América, começaram a ensaiar as primeiras iniciativas
de democratização do ensino, por conta da reorganização da produção industrial
capitalista. Segundo artigo de autoria de Eloiza Amália Bergo Sestito, Sonia Maria
Vieira Negrão e Teresa Kazuko Teruya, sob o título “O ensino de arte na escola
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pública brasileira da racionalização aos sentidos dos sentidos à racionalização”3, nos
apresenta um panorama sobre a situação da educação brasileira:
“É importante salientar que as ideias difundidas nesses países influenciaram as concepções de educação no Brasil, configurando um novo cenário nacional, com base no modelo liberal de organização social e econômica para o desenvolvimento da produção capitalista, que se firmava como um modelo a ser seguido em âmbito mundial”
Mas o país ainda estava em processo de descoberta de uma ideia nacional,
ainda no início da República, e com a vinda de muitos imigrantes, a preocupação entre
os intelectuais e os dirigentes do país passou a se tornar alarmante. Somando a isso
ainda tinha a despreparação da mão de obra considerada insuficiente para esse novo
modelo de produção que surgia, tudo isso resultou nas primeiras iniciativas de criação
da escola primária e da organização do Sistema Nacional de Ensino. Dessa forma, foi
criado o primeiro Grupo Escolar em São Paulo, em 1894, com o objetivo de oferecer a
escolarização primária.
Em relação ao programa para o ensino primário, encontramos no artigo, “Início
e fim do século XX: Maneiras de fazer educação física na escola”4, de autoria de
Tarcísio Mauro Vago, que faziam parte o ensino de “Leitura, Escripta, Língua Patria,
Arithmetica, Geographia, Historia do Brasil, Instrucção Moral e Civica, Geometria e
Desenho, Historia Natural, Physica e Hygiene, Trabalhos Manuaes e Exercícios
Physicos”. Na verdade esses saberes eram o que aquela cultura escolar, ainda em
processo de afirmação, estava autorizada a praticar.
Um ponto é especial em destacar que é o ensino de “Hygiene”, entre as várias
medidas de implantação de uma racionalidade, além do intelecto, mas também no
corpo dos alunos. No caso da disciplina específica “Hygiene”:
“O professorado era instruído a dar noções gerais que facilitassem os alunos o conhecimento do corpo humano, aproveitando tudo que pudesse para ministrar-lhes noções precisas para a conservação da saúde e seu bem estarem físico, ensinando-lhes cuidar da sua própria pessoa. Dentre os temas previstos constavam tópicos como a necessidade do banho e do asseio do vestuário; necessidade da boa mastigação e regularidade das refeições; cuidados com os dentes, com os cabelos e as mãos; nutrição e respiração; asseio do corpo; saneamento das casas; alimentação, vestuário e higiene da habitação; efeitos do fumo e do álcool no organismo humano” (idem).
3 disponibilizado, na internet no domínio
http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada7/_GT4%20PDF/O%20ENSINO%20DE%20ARTE%2
0NA%20ESCOLA%20P%DABLICA%20BRASILEIRA.pdf, (acesso em: 15. jun.2013)
4 disponibilizado no domínio http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v19n48/v1948a03.pdf (acesso em: 15. jun.2013)
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Somente na década de 1930, a Educação Física, aliada a esses ideais, iria
integrar a ideia de regenerar uma sociedade considerada por alguns intelectuais e
cientistas como degenerada, por conta da miscigenação, em prol da salvação de uma
sociedade ainda em fase de construção de sua identidade nacional.
Mas entender o porquê da implantação da Educação Física entre 1900 e 1920,
foi em parte uma possível resposta ou tentativa de saída da grande repercussão do
fracasso econômico que se assistia no Brasil. Um dos componentes, bastante citado
nessas discussões, era em relação ao fator racial, que entendia a baixa capacidade ao
trabalho do brasileiro como reflexo da sua constituição a partir de raças inferiores.
Portanto, o Brasil nunca poderia ser uma nação economicamente forte.
Então com a intenção de melhorar sua imagem, as elites intelectuais brasileiras
tentaram “embranquecer” o país (Schwarcz, 1993). Daí surgiram duas correntes
eugenistas que procuravam corrigir esse traço brasileiro. Uma das correntes do
“movimento higienista” chega a cogitar estratégias como a esterilização,
regulamentação de casamentos, além da crescente imigração europeia. Uma outra
corrente do movimento higienista, com críticas fortes à primeira, considerada como
fatalista, acreditava mais em um pensamento intervencionista, e entendia que a real
situação da sociedade brasileira era por conta do abandono pelas autoridades
governamentais, que davam pouca atenção à educação e à saúde dos brasileiros,
então, tratava-se de um povo que estava doente e abandonado.
Podemos observar a educação como uma forte e eficaz máquina de
propagação de um ideal, que de inicio poderia ter sido vista com certa desconfiança,
mas por conta da ciência conseguiu aval de conquistar muitos espaços em vários
lugares no mundo, inclusive no Brasil.
A educação colaborou para por em prática as ideias de experimentar uma
eugenia mais próxima da “higienização”, apostando em outras formas de construção
de uma sociedade mais próspera.
O importante é analisar, hoje em dia, o que desse pensamento eugenista ainda
se mantém vivo nas práticas educativas cotidianas, principalmente às referidas à
educação corporal, tanto da Educação Física, quanto aos conhecimentos relacionados
à higienização do corpo. Será possível, ainda hoje em dia, encontrar resquícios dessa
época?
A partir de 1940, após o fim da II Grande Guerra, a eugenia começou a entrar
em decadência. Já nos anos de 1950 e 60, essas questões já não apresentavam mais
o mesmo impacto, apesar das tentativas dos admiradores dessa ideia em publicar
artigos em jornais e revistas especializadas.
41
II.3 Em busca de uma Pedagogia Antirracista.
As relações humanas sempre foram entremeadas de conflitos das mais
variadas naturezas. Esses conflitos sempre geraram, como se observa hoje em dia,
uma sociedade de privilégios e exclusões. Por mais que os grupos organizados
tenham se solidificado e angariado um grande contingente de benefícios para a sua
inserção social, através de políticas públicas, muitos espaços ainda continuam
inacessíveis para determinados grupos sociais. Entender como essas estruturas
sociais foram construídas e justificadas nos levará a repensar de que forma a escola
poderia reverter esse quadro, propondo e ferramentas para a construção de uma
relação entnicorracial menos discriminadora e, portanto, mais igualitária. Para refletir
sobre essas questões em sala de aula, e mediante reivindicações de grupos que
defendiam uma mudança na forma como a imagem do negro era trabalhada na
escola, a Lei 10.639 encontrou grande impulso para sua aprovação.
No artigo “Educação e Relações Etnicorraciais: refletindo sobre algumas
estratégias de atuação” de Nilma Lino Gomes (2005), a autora começa seus escritos
nos apresentando as experiências da Sra. Jane Eliot, uma professora e psicóloga
branca dos EUA, que teve seus workshops sobre o racismo e seus desdobramentos,
registrados em forma de documentário, intitulado: Olhos Azuis. O primeiro
questionamento feito por GOMES(2005) foi: Por que uma mulher branca nos EUA se
interessaria em desenvolver workshops sobre esse assunto? Através de uma longa
citação, transcrita do documentário, a autora expõe a dificuldade da professora em
tentar explicar para seus alunos sobre quais os motivos que levaram ao assassinato
do líder negro Martin Luther King, em 1968, nos EUA. Ela repensou várias
possibilidades didáticas para que seus alunos pudessem entender o problema racial
pelo qual o país estava passando, de forma que os alunos pudessem enxergar a
grande violência do racismo. A professora chegou a conclusão de que não havia
recursos didáticos para que o racismo fosse explorado em sala de aula de forma
eficiente, ou seja, ao chegar a essa conclusão, Jane Eliot nos dá uma dimensão do
apagamento das questões no âmbito escolar, a ponto de todo e qualquer recurso
didático que se tenha mão dentro da sala de aula não nos servissem para discutir esse
assunto tão recorrente e tão “espinhoso”, fazendo com que o professor muitas vezes
prefira não adentrar esse campo árido.
Então a professora resolveu construir uma proposta pedagógica, através da
qual seus alunos pudessem se colocar no lugar daqueles que eram discriminados
racialmente, pensando que dessa forma as questões raciais pudessem ser melhor
42
entendidas pelos mesmos. Durante um dia letivo inteiro, em comum acordo com os
alunos, os que tivessem olhos azuis, passariam por situações de discriminação, ou
seja, seriam rejeitados por causa da cor dos seus olhos, azuis. Ninguém conversaria
com eles, não os respeitavam, e nem mesmo dividiam o mesmo bebedouro, práticas
que eram comuns nos EUA na época mais dura de perseguição racial.
“A escolha da cor dos olhos, uma característica do fenótipo (assim como a cor da pele), foi a forma mais próxima de fazer as crianças se aproximarem do drama dos negros que sofrem a discriminação racial devido a fatores históricos, culturais e também raciais” (GOMES, 2005, p. 144).
Quem assiste o documentário tem um verdadeiro choque de realidade, se os
alunos conseguiram ou não entender a problemática racial americana que os envolvia
e vitimizou o líder Martin Luther King, através de depoimentos dessas crianças, hoje
adultos conscientes racialmente, nos mostram que sim, e foi tão expressiva essa
prática pedagógica que a professora ficou marcada socialmente como “amiga de
negros” em uma época onde a perseguição racial era bastante forte nos EUA, a ponto
da mesma ter tido sua vida devastada pelo ódio branco americano. A extensão dessa
prática é tão grande que não conseguiu atingir somente os alunos, quando se assiste
o documentário e você vê Jane Eliot em prática, por exemplo, através de um workshop
para professores, consegue-se identificar várias práticas pedagógicas de exclusão e
com requintes de crueldade ainda em ação, naturalizadas, seja através do incentivo à
competição, ou aos elogios e até preferências aos que se encaixam no perfil ideal de
aluno.
Nossos discursos dentro do campo educacional, enquanto educadores, tem um
poder muito grande na vida escolar de nossas crianças, e somos indivíduos
mergulhados culturalmente em uma sociedade de caráter muito racista. Refletir sobre
que práticas pedagógicas poderiam nos auxiliar no combate às manifestações racistas
em sala de aula é nosso dever enquanto cidadãos, porém, mais sério ainda, é quando
nós somos os agentes desses discursos racistas. Por isso a importância da Lei 10.639
em todos os âmbitos educacionais, inclusive na formação de professores aptos para
levantar essas discussões em sala de forma mais democrática e humana. O
documentário “Olhos Azuis”, além de surgir como mais um exemplo de que práticas
pedagógicas antirracistas são eficientes em sala nas suas múltiplas dimensões,
atingindo todos os agentes envolvidos na educação, nos conduz a um pensamento
positivo sobre a abordagem das questões raciais na escola.
Para GOMES(2005) o professor deve ter um entendimento conceitual sobre o
que é racismo, discriminação racial e preconceito, e isso deveria fazer parte do seu
43
processo de formação, para que os mesmos possam compreender as especificidades
do racismo brasileiro, que os auxiliarão na identificação do que seria uma prática
racista e para que possa construir práticas de intervenção nas quais valorize a cultura
negra e a eliminação do racismo. Assim o entendimento do conceito estaria associado
às experiências concretas, podendo auxiliar numa mudança de valores. Para a autora
o contato com a comunidade negra ou com grupos culturais e religiosos negros é
importante porque, uma coisa é falar, formar opinião, dizer que respeita estando longe,
outra coisa é demonstrar esse respeito no dia-a-dia, na convivência humana:
“Não faz sentido que a escola, uma instituição que trabalho com os delicados processos de formação humana, dentro os quais se insere a aquisição dos saberes e conteúdos dando uma ênfase desproporcional à aquisição dos saberes e conteúdos escolares e se esquecendo de que o humano não se constitui apenas de intelecto, mas também de diferenças, identidades, emoções, representações, valores, títulos...” (GOMES, 2005, p.154)
Outro grande entrave das discussões das relações etnicorraciais nas escolas,
ainda é o discurso da “democracia racial”, e a ideia consequente de que no Brasil não
há racismo, pois basta uma visita a uma banca de jornal, por exemplo, para se ver
qual a cor da pele dos bandidos estampados em suas capas e expostos diariamente
para a população que, em sua maioria também compartilham daquela mesma cor.
Segundo o texto das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, criada
após a aprovação da Lei 10.639/03, traz sobre o mito:
“Requer também que se conheça a sua historia e cultura apresentadas, explicadas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade; mito esse que difunde a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros” (p.12)
Entender a importância da Lei 10.639/03 no campo educacional é encará-la
como uma política de reparação, feita pelo Estado com a participação da sociedade,
como forma de tentar ressarcir os descendentes de africanos negros dos danos
psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos durante o regime
escravista, além de suas consequências na população, como por exemplo, as políticas
explícitas ou não de branqueamento, como forma de ascensão social, e grande
influenciadora de práticas racistas em nossa sociedade atualmente.
O que a lei procura estabelecer é que se estimule práticas de ensino nas quais
a história e a cultura dos povos africanos e afro-brasileiros sejam reconhecidos como
legítimos, valorizados, e que se mude os discursos que ainda propagam a imagem do
44
negro como escravizado, imagem bastante comum nos livros didáticos. Ainda no texto
de Diretrizes Curriculares Nacionais, encontramos que “reconhecer” é questionar as
relações etnicorraciais que desqualifiquem os negros, baseados em preconceitos e em
estereótipos depreciativos que colocam os mesmos em um patamar inferior, numa
uma sociedade hierárquica e desigual, como é aqui.
Quando se discute uma reeducação das relações etnicorraciais, estamos
lidando com as relações entre brancos e negros, já formada socialmente e
influenciada por todas essas políticas públicas que nem sempre foram favoráveis aos
negros. Para essa reeducação é imprescindível um trabalho em conjunto, no qual haja
uma articulação entre processos educativos escolares, políticas públicas e
movimentos sociais, já que para termos alguma mudança ética, cultural, pedagógica e
política nas relações entre brancos e negros na sociedade não devemos concentrar
nossos trabalhos somente na escola. As práticas educacionais devem ecoar na
comunidade.
Claro que as formas de discriminação não nascem na escola, como já foi
mencionado no começo desse capítulo, mas perpassam todo o sistema educacional.
Cabe a todos os envolvidos com a escolarização, efetivar seu papel de “educar”,
considerando, segundo ainda as Diretrizes Curriculares Nacionais, que para o papel
de educar seja efetivo, é necessário que se construa um espaço democrático, onde
todos possam se ver representados de forma respeitosa, e com isso se crie uma
postura que vise à construção de uma sociedade mais justa:
“A escola tem papel preponderante para eliminação das discriminações e para emancipação dos grupos discriminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, a conhecimentos avançados, indispensáveis para consolidação e concerto das nações como espaços democráticos e igualitários” (p. 15)
A escola e seus profissionais, ao tratarem desses assuntos com seus alunos,
devem estar bem preparados, já que é um campo de efusivas discussões e a própria
sociedade se abstém de discuti-los, já que lhes custa acreditar que ainda somos
agentes de exclusão de negros e negras em uma participação ativa em sociedade.
Então, para confrontar o mito da democracia racial, e a ideia de que aqui não temos
racismo, a escola não pode improvisar, já que precisamos desalienar todo o processo
pedagógico, ainda fortemente marcado pelo eurocentrismo.
Segundo o texto das Diretrizes, para que possamos construir novas
pedagogias antirracistas é fundamental que se desfaçam alguns equívocos. O primeiro
45
deles está relacionado à preocupação dos professores em como identificar seus
alunos enquanto negros e como chamá-los de negros ou pretos, sem que isso cause
alguma ofensa. O professor deve entender que ser negro no Brasil não está
relacionado somente às características físicas, é uma postura política, é negro quem
assim se define.
O processo de construção de identidade negra em nosso país é bastante
complexo, a ponto de vermos pessoas brancas, com traços físicos europeus, por
terem algum descendente negro, se designarem negro; e pessoas com traços físicos
africanos que se autoidentificam como brancos. Não podemos esquecer que os
termos “negro” ou “preto” eram usados no período escravocrata pelos senhores para
designar os indivíduos escravizados, e esses termos, no sentido negativo, se
estendem até hoje, apesar de toda tentativa que o Movimento Negro venha fazendo
desde o final dos anos de 1970 para a sua ressignificação, através de campanhas que
propagavam as expressões: Negro é lindo! Negra, cor da raça brasileira! Negro que te
quero negro! 100% Negro!, ou por exemplo na campanha do censo de 1990 que
utilizou a expressão: Não deixe sua cor passar em branco!
Um outro equívoco exposto pelo texto das Diretrizes é a ideia de que os negros
também são racistas porque também discriminam outros negros. Se levarmos as
discussões dessa afirmação para a construção ideológica do branqueamento, na qual
defendia que as pessoas brancas eram mais humanas, possuíam inteligência superior,
por isso cabia somente a elas decidir o que era bom para todos, assumindo posições
de destaque e de poder na sociedade, e que na pós-abolição, muitas políticas de
branqueamento foram formuladas a fim de eliminar toda presença simbólica e material
dos negros, fica fácil entendermos o poder dessa ideologia sobre os negros que
tendiam a reproduzir os mesmos atos de preconceitos que sofriam.
Mais um equívoco ressaltado era o de que essas discussões se restringiam
somente ao Movimento Negro e aos que se interessariam em estudá-los, não à
escola. O que se pretende com a lei e através desse documento é que a escola,
enquanto instituição social responsável por assegurar o direito a todo cidadão à
educação, deve se posicionar politicamente contra toda e qualquer forma de
discriminação.
“A luta pela superação do racismo e da discriminação racial é, pois, tarefa de todo e qualquer educador, independentemente do seu pertencimento etnicorracial, crença religiosa ou posição política. O racismo, segundo o Artigo 5º. Da Constituição Brasileira, é crime inafiançável e isso se aplica a todos os cidadãos e instituições, inclusive à escola” (p. 16)
46
Uma última questão, levantada pelas Diretrizes, é a falsa ideia de que o
racismo, o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento só atingem os
negros. Essas ideologias estão arraigados na estrutura social e imaginária de todos os
brasileiros, sejam eles brancos, negros ou qualquer outro grupo etnicorracial, incidindo
de maneiras diferentes nas trajetórias de vida de cada um deles. Repensar estratégias
de reeducação dessas relações é dever de todos os envolvidos nesse complexo
processo social, inclusive os educadores.
Nesse sentido, a construção das pedagogias antirracistas tem uma
responsabilidade dupla, entre os brancos de despertar sua consciência negra, e entre
os negros de fortalecê-los, através do reconhecimento de sua história e sua cultura,
orgulhando-se de sua origem africana.
Como proposta de intervenção educacional, analiso aqui nesta dissertação
uma prática de ensino de teatro, entre jovens e adolescentes, com o intuito de levantar
discussões sobre as relações etnicorraciais entre os mesmos, a partir de jogos do
Teatro do Oprimido. A utilização do teatro para abordar as tensões étnicas e raciais,
segundo o artigo de Maria José Lopes da Silva, “As Artes e a Diversidade Étnico-
Cultural na Escola Básica” (2005), teria os seguintes objetivos como possíveis
orientações para inserção desse tema entre os alunos:
resgatar a cultura afro-brasileira no sentido de reintegrar os educandos nos valores étnicos e sociais da ancestralidade nacional;
levar o aluno a conhecer as concepções estéticas africanas;
levar o aluno oprimido a atuar conscientemente de modo a contribuir para a assunção da sua cidadania;
facilitar a construção da identidade do aluno através de uma autoidentificação positiva consigo mesmo e com o patrimônio histórico cultural brasileiro;
levar o aluno a reconhecer criticamente os estereótipos de representação étnica encontrados nas Artes Cênicas, em geral, e no teatro brasileiro, em particular (p.129).
Em seguida a autora traça um conjunto de possibilidades de temas e atividades
para o educador explorar para trabalhar as relações etnicorraciais dentro de sala de
aula, com os conteúdos mais variados possíveis, desde jogos, hábitos e costumes,
contação e encenação de suas próprias histórias, lendas e mitos, exteriorização de
sentimentos construídos a partir de alguma situação de agressão vivida. Citando
inclusive os diversos tipos de teatro utilizados na educação, entre esses o “teatro de
ruídos, sons e ritmos; teatro de mãos; teatro de máscara; teatro de sombras, teatro de
silhuetas; teatro de griôs” (idem, p. 130) em seguida menciona o Teatro do Oprimido
como uma possível sugestão. As técnicas sugeridas anteriormente cabem
perfeitamente na estética do teatro do oprimido, desenvolvido por Augusto Boal e que
47
iremos explorar no próximo capítulo, já que é através do desenvolvimento da Imagem,
da Palavra e do Som, que irá se estruturar as cenas trabalhadas no Teatro do
Oprimido.
48
Capítulo III - A metodologia do Teatro do Oprimido de Augusto Boal.
O teatro brasileiro teve grande importância, como estratégia de combate aos
preconceitos formados a partir das tensões nas relações interfaciais e interétnicas. Em
todas as suas dimensões, ao qual o teatro venha atingir, podemos ver projetos bem
sucedidos de intervenções ativistas nas quais submetiam-se algumas técnicas teatrais
à reflexão racial. Atualmente muitos grupos trabalham com a temática racial no Brasil,
obtendo destaque nacional e respaldo da crítica especializada, como é o caso, por
exemplo, do Bando de Teatro Olodum na Bahia e do Grupo de Teatro do Oprimido A
Cor do Brasil, no Rio de Janeiro, que tratam especificamente das questões
etnicorraciais em suas montagens, porém ainda continua sendo pouco, mediante o
contingente de negros e negras que ainda vivem às margens.
É impossível mencionar qualquer iniciativa teatral de cunho racial, sem
lembrarmos o trabalho de Abdias do Nascimento e o TEN – Teatro Experimental do
Negro, criado em 1944, que tinha entre seus objetivos a criação de um espaço teatral
aberto ao protagonismo do negro, além de uma dramaturgia negra que falasse
diretamente dos anseios desse grupo. O TEN também desenvolvia um trabalho de
alfabetização dos seus primeiros integrantes, promovendo um trabalho de conquista
de cidadania e conscientização política através da educação. Muitos de seus atores
foram recrutados de espaços mais pobres, como operários, empregadas domésticas,
moradores de favelas sem profissão definida, além de simples funcionários públicos. A
ideia principal do TEN, segundo o próprio Abdias do Nascimento, em artigo publicado
em 2004 pela Revista Estudos Avançados da USP, era que: “Não interessava ao TEM
aumentar o número de monografias e outros escritos, nem deduzir teorias, mas a
transformação qualitativa da interação social entre brancos e negros” (p.211), ou seja,
era um trabalho direto e ativo dentro das relações raciais, com seus próprios
participantes.
É dessa ideia de busca de um teatro mais político e ativo, que chegamos até o
Teatro do Oprimido de Augusto Boal. Cujo objetivo central era que o teatro deveria ser
praticado por todos! E que o mesmo pudesse ser usado como forma de reflexão e
combate as opressões sociais, inclusive as raciais.
O “Teatro do Oprimido” tem como princípio fundamentador a ideia que Paulo
Freire desenvolveu para a educação sobre a denominação de Pedagogia do Oprimido,
porém dando-lhe um caráter mais envolto às dimensões teatrais, repensando todos os
49
campos contemplados com o processo de encenação, incluindo a democratização do
acesso ao teatro pelas camadas sociais menos favorecidas, estimulando-as a uma
transformação da realidade social que vivem.
As identidades em jogo dentro de uma aula de teatro poderão nos revelar muito
de nossa turma de alunos, já que é através da representação simbólica do real que os
mesmos irão construir as várias possibilidades de encenação. Direcionando esses
jogos para as relações etnicorraciais, com textos, músicas, vídeos, imagens que
estimulem a discussão de assuntos comuns ao tema, sensibilizaremos nossos alunos
à reviverem momentos nos quais os mesmos passaram por algum tipo de problema
em relação à questão racial, para posterior debate sobre o assunto, tentando
encontrar quais os problemas a serem resolvidos, e finalizarmos a atividade com a
desconstrução da cena original, a partir da interferência de todos os envolvidos nesse
processo cênico. Apesar de ser um caminho simples, essa metodologia de discussão
das experiências de cada um relacionadas às discriminações raciais, a partir de uma
atividade cênica, constitui um campo fértil para desenvolvermos projetos escolares nos
quais estejam envolvidos temas como: racismos, estereótipos e preconceitos. A sala
torna-se uma imensa “panela de pressão” a ponto de explodir de tantos debates, de
tantas opiniões, de tantas vivências a serem compartilhadas e muitas das vezes até
bem parecidas, efeitos da postura fechada e enraizada de preconceitos, na sociedade,
para com os negros e negras em nosso país.
Entender como uma postura de preconceito social foi construída, ao longo da
história, poderá ser favorável ao processo de desconstrução social, experimentada e
elaborada a partir de um jogo de cena, como os propostos pelo Teatro do Oprimido, de
Augusto Boal, como uma espécie de ensaio para a revolução, como bem mencionava
o autor em seus discursos.
O ensino da Arte, atualmente, baseado nos conceitos de Arte-Educação da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/96, é considerado como gerador de
conhecimentos e meio de desenvolvimento cultural. Por essa razão, a partir dessa
reformulação ganhou espaço no currículo da Educação Básica, de caráter obrigatório,
e se baseará nos seguintes princípios:
Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
O ensino de Arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.
50
A compreensão do ambiente natural e social do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade.
5
A necessidade de ser compreendido nos leva a representar uma realidade que
seja a mais próxima da nossa, ao desenvolvermos o ato de dramatizar. Podemos
observar isso claramente nas brincadeiras infantis, por exemplo. Toda criança, por
ainda não ter desenvolvido seu conhecimento de mundo, utiliza-se dessa prática, para
podere se integrar melhor no mundo em torno dela. Da necessidade de dramatizar seu
mundo, a criança evolui, das manifestações espontâneas até o jogo de regras que
constitui o mundo. Esse poder que o "jogo” exerce nos seres humanos é algo que vai
além de tentar entendê-los como um fenômeno fisiológico, ou como um reflexo
psicológico, como nos indica Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens(1996). Há
algo que envolve os participantes de um jogo que vai além do próprio jogo, algo que
não está no campo material, já que o ato de jogar é anterior à própria formação da
cultura. Primitivamente, o homem sempre sentiu essa necessidade de jogar, exemplo
disso é observar que quase toda a nossa dimensão social e cultural, seja na
linguagem, nos rituais sagrados, no campo jurídico, de acusação e defesa, e até
mesmo no combate ou na guerra se estrutura como jogos.
Impossível desenvolver qualquer projeto que tenha o jogo com uma de suas
atividades, se não sustentarmos a ideia que HUIZINGA(1996) defende de que a ação
para se jogar é “voluntária”, ou seja, as regras são compartilhadas de comum acordo
entre os participantes envolvidos no jogo, e eles comandam toda a atividade de dentro
da ação. A partir do momento em que, de fora, tenta-se dar qualquer ordem extra às
regras, ou que interfira no andamento natural das ações do grupo, deixa de ser jogo
para ser no máximo uma imitação forçada da realidade pretendida.
Desse cuidado com a pouca interferência no jogo é que encontramos a
importância do sistema curinga para a prática do TO6, sistema esse já experimentado
por Boal quando fazia parte do grupo Teatro de Arena, em São Paulo, ainda na
década de 1960, quando o grupo, influenciado pela estética brechtiana de construção
de um teatro épico, dialético e antiaristotélico, buscava uma alternativa cênica
diferente das que se encontravam nos palcos brasileiros, surgindo assim o sistema
coringa que será fundamental posteriormente para a prática das técnicas de TO.
Nesse sistema, cada ator move-se em cena dentro das regras predeterminadas
de acordo com sua posição já estabelecida, porém não há a distribuição de
5 (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm). Acesso em: 05 .mai. 2013.
6 TO é uma grafia reduzida normalmente usada para designarmos Teatro do Oprimido
51
personagens aos atores, mas sim de funções que seguem a estrutura dos conflitos
presentes dentro do texto. De acordo com BOAL(2011) as funções de um coringa são:
“A primeira função é a ‘Protagônica’ que, no sistema, representa a realidade concreta e fotográfica. Esta é a única função na qual se dá a vinculação perfeita e permanente ator-personagem: um só ator desempenha só o protagonista e nenhum outro.(...)
A segunda função do sistema é o próprio Coringa. Poderíamos defini-la como sendo exatamente o contrário do Protagnista.(...)O Coringa é polivalente: é a única função que pode desempenhar qualquer papel da peça, podendo inclusive substituir o Protagonista nos impedimentos deste, determinados por sua realidade naturalista.(...)
Todos os demais atores estão divididos em dois Coros: Deuteragonista e Antagonista, tendo cada um seu Corifeu. Os atores do primeiro Coro podem desempenhar qualquer papel de apoio ao Protagonista: isto é, papeis que representam a mesma ideia central deste. (...)
Completando esta estrutura, está a Orquestra Geral: violão, flauta e bateria. Os três músicos deverão também tocar outros instrumentos de corda, sopro e percussão. Alem de apoio musical, deve a Orquestra cantar, isoladamente ou em conjunto com o Corifeu, todos os Comentários de caráter informativo ou ilusionístico” (p. 274-279)
Essa estrutura é considerada básica para montagem de qualquer espetáculo
com o sistema coringa, que apesar de inovador não avançou muito em outras
montagens do grupo, mas sofrerá algumas modificações e será usado pelo Teatro do
Oprimido, segundo SANCTUM(2012), para nomear o “especialista na metodologia do
Teatro do Oprimido, sendo comparado ao curinga da carta de baralho, que têm
diferentes papeis de acordo com determinada necessidade” (p. 31)
A utilização do teatro na escola começou a ser repensada, a partir da segunda
metade do século XX, segundo Ricardo Japiassu no seu livro Metodologia do Ensino
de Teatro, de 2001, através de uma abordagem de ensino essencialista ou estética,
fundamentada na especificidade da linguagem teatral, buscando compreender seus
princípios psicopedagógicos, compreendendo o teatro como um sistema de
representação semiótica acessível a todos os seres humanos, para a comunicação do
seu pensamento e sentimentos, dando-lhes um valor e importância para a formação
educacional:
“Importante meio de comunicação e expressão que articula aspectos plásticos, audiovisuais, musicais e linguísticos em sua especificidade estética, o teatro passou a ser reconhecido como forma de conhecimento capaz de mobilizar, coordenando-as, as dimensões sensório-motora, simbólica, afetiva e cognitiva do educando, tornando-se útil na compreensão da realidade humana culturalmente determinada. (JAPIASSU, 2001, p. 22)
Essa descoberta do caráter pedagógico do teatro, interagindo o semiótico e o
terapêutico com as pesquisas no campo da estética, ambicionava uma renovação na
52
linguagem teatral como um todo, verificando um crescimento nas experimentações e
propostas pedagógicas, das mais variadas crenças e compromissos ideológicos,
políticos ou preferências estéticos possíveis.
JAPIASSU(2001) nos traz algumas formas pedagógicas teatrais praticadas nos
últimos anos, no Brasil. Entre essas estão: a terapêutica psicodramática de Moreno, a
dimensão política-estética do teatro em Brecht, a abordagem pedagógica anglo-
saxônica do drama, a proposta metodológica de ensino do teatro de Viola Spolin e a
pedagogia do teatro do oprimido de Boal. Conduziremos nosso textos a partir das
reflexões feitas por este autor sobre o Teatro do Oprimido.
Boal começa citando as influências da estética brechtiana e da pedagogia
libertadora de Paulo Freire, na luta para transformar através dessa arte as relações
tradicionais de produção material, típico das sociedades capitalistas, e que vem
corroborando com um sistema forte de opressão, em uma conscientização mais
política de seu público.
Um dos pontos positivos de se trabalhar com o TO em sala de aula, é que a
turma de alunos, ao ser dividida entre palco e plateia, experimenta esses dois polos de
formação teatral escolar, e através de revezamentos entre grupos os alunos tornam-se
espectATOR, ou seja, a plateia assiste e participa diretamente nas cenas, sendo esse
o principal objetivo da Poética do Oprimido. BOAL (2011) descreve como o espectador
era visto na Poética de Aristóteles, na qual se delegam poderes ao personagem para
agir e pensar por eles em cena, produzindo uma catarse; já em Brecht o espectador
delega o direito ao personagem para atuar por ele, porém mantendo-se distante, e por
conta disso pode pensar por si mesmo, podendo fazer também oposição ao
personagem, produzindo, em vez de uma catarse, uma “conscientização”. O que Boal
propõe agora com sua Poética é a própria ação, sem delegar poderes a personagem
algum, pelo contrário:
“ele mesmo assume o papel protagônico, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, preparando-se para a ação real. Por isso, eu creio que o teatro não é revolucionário em si mesmo, mas certamente pode ser um excelente ‘ensaio’ da revolução (BOAL, 2001, p.182)
BOAL(2011) estruturou em quatro etapas distintas o seu plano de conversão
do espectador em ator:
1ª. Etapa: O Conhecimento do próprio Corpo através de uma série de
exercícios que lhes dê uma dimensão das possibilidades do mesmo;
2ª. Etapa: Tornar o Corpo Expressivo, com a ajuda de jogos no qual o individuo
passa a compreender no próprio corpo seus mecanismos de comunicação;
53
3ª. Etapa: Entender o Teatro como Linguagem viva e presente, através de três
graus: 1 – Dramaturgia Simultânea; 2 – Teatro-Imagem: imagem feita com os corpos
dos demais participantes; e 3 – Teatro-Debate: os espectadores intervêm na cena,
substituindo determinados atores.
4ª. Etapa: O Teatro como Discurso. As formas simples como o espectATOR
apresenta o espetáculo. São eles:
1. Teatro Jornal – transforma qualquer notícia de jornal em cena;
2. Teatro Invisível – representar em lugares públicos, sem o conhecimento da
plateia de que aquilo não era verdade;
3. Teatro fotonovela – improvisação teatral sobre um enredo de uma
fotonovela;
4. Quebra de repressão – é um recorte de um momento de opressão e
repressão, reconstruindo teatralmente, da forma mais fiel possível;
5. Teatro-mito: identificar as relações de produção material e de poder
“ocultas” na narração original.
6. Teatro-julgamento: os participantes experimentam diversas possibilidades,
discutindo alguns papéis sociais que influenciam na compreensão do
caráter dos personagens;
7. Rituais e máscaras: discutem os condicionamentos histórico-culturais
impostos ao repertório gestual e comportamental.
JAPIASSSU(2001) faz a seguinte conclusão desse processo: o espectATOR
significa libertação do sistema “opressor”. Segundo ainda esse autor, o TO está
interessado por um teatro como ação cultural estético-pedagógica, que se propõe a
“ensaiar uma revolução política, econômica e histórica nas sociedades humanas” (p.
47)
Outro estudioso da prática do TO, é Flavio Desgranges(2010) em seu livro
Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo, no qual traz reflexões sobre algumas
metodologias de ensino de teatro experimentadas nos espaços educacionais
brasileiros, e uma delas é a do Teatro do Oprimido, com uma reflexão importante para
justificarmos a utilização desse método em sala para as relações étnico-raciais: a que
público essa forma teatral se destina?
Para desenvolvermos as metodologias do Teatro do Oprimido, precisamos
primeiramente entender que tipo opressão exerce maior poder sobre aquele grupo,
para podermos direcionar os jogos e as futuras reflexões de intervenção. A escola
acaba sendo um espaço múltiplo de vivências sociais, que ecoam a todo instante nas
54
salas de aula, nos corredores, nas relações entre alunos versus alunos, ou entre
alunos versus professor, professor versus professor, professor versus direção, etc.
Todas essas relações vêm carregadas de fatores hierárquicos embasados no
cotidiano de cada um desses agentes envolvidos na educação. Não é difícil encontrar
uma relação de opressão nesses espaços, que ainda procuram disciplinar seus alunos
em vez de formarem cidadãos críticos. Trabalhar com o Teatro do Oprimido é
reconhecer a cultura e os valores daquela comunidade escolar como um todo,
identificar os tipos de opressão que a impede de qualquer mobilidade social e trazer
para os jogos em sala de aula, e posteriormente para as interações através do teatro-
fórum, por exemplo, algo que diga respeito às suas realidades. DESGRANJES(2010)
traça nesse seu livro um olhar crítico específico sobre a arte teatral, utilizada com
caráter pedagógico, ou seja, onde possamos identificar claramente seu valor
educacional através dos aspectos provocativos e dialógicos presentes nas várias
formas de se fazer teatro.
A grande experiência teatral é desafiar o espectador na decodificação dos
seus diversos elementos de significação, estabelecendo uma linguagem própria da
encenação, convidando o espectador a um mergulho de sentimentos nesse jogo da
linguagem teatral: “O mergulho na corrente viva da linguagem acende também a
vontade de lançar um olhar interpretativo para a vida, exercitando a capacidade de
compreendê-la de maneira própria” (idem, p.23), despertando uma tomada de
consciência desse indivíduo/plateia, para uma efetiva leitura de mundo.
Ao tratar especificamente do Teatro do Oprimido, DESGRANGES(2010), traz
uma análise critica dessa metodologia com uma ótica particularmente pedagógica.
Procuro aqui refletir sobre alguns equívocos provocados por essas análises. A
primeira ressalva que o autor faz é a de que essa prática requer algum engajamento
político por parte do grupo envolvido, o que muitas vezes não acontece, reduzindo as
apresentações de Teatro do Oprimido a meros acontecimentos demonstrativos, onde
se exibem as técnicas e os espectadores assistem ou até participam sem
compromisso nenhum: “sem envolvimento orgânico, visceral com o ato em questão”
(p.74) Percebemos nas palavras do autor uma forma bastante simplória de se reduzir
o ato cênico provocado pelo Teatro Oprimido. Se o indivíduo que opta por fazer Teatro
do Oprimido, já assume com isso uma postura política, assim também acontece
quando decide, por exemplo, pesquisar os problemas das minorias, como é o caso
das relações etnicorraciais. E se todas essas discussões perpassam o ambiente
escolar, nossos alunos, enquanto cidadãos, devem ter uma opinião formada sobre
toda e qualquer forma de opressão que se construa socialmente, em seus mais
variados aspectos, então com isso, qualquer sessão de TO vai além de uma simples
55
exibição, já que propõe ao público possíveis reflexões e interações sobre determinado
problema.
Levar o indivíduo a pensar criticamente sobre algum tipo de opressão, e trazê-
lo à cena substituindo o papel do oprimido, o que acontece na maioria dos casos, é
trazê-los também a um envolvimento orgânico, já que o mesmo se encontra ali por
completo em cena, mesmo que não tenha passado por determinado problema de
opressão, ou que não tenha percebido determinada opressão em sua vida, ou até
mesmo que venha a ser um agente de opressão sem se dar conta da violência que
pratica, já que estamos lidando com uma sociedade fortemente marcada por uma
colonização europeia, híbrida por formação e complexa culturalmente, então
dificilmente veremos esses mecanismos de opressão bem definidos entre os
indivíduos, ou seja, estamos todos passíveis a sofrer ou a cometer qualquer tipo de
opressão que venha a ser construída em nossa sociedade.
Outro equívoco levantando pelo autor é em relação à utilização demasiado
instrumental da linguagem teatral pelo Teatro do Oprimido, segundo
DESGRANGES(20010), por conta da imediatez das apresentações dos grupos, ou
seja, da urgência em se discutir determinadas situações de opressão com suas
comunidades, em prol de estratégias de resolução desses problema. Muitas vezes as
cenas acabam sendo pouco elaboradas, podendo ocasionar um empobrecimento da
linguagem, e como menciona esse autor “o enfraquecimento da potencialidade
estética própria a esta arte” (p.74).
Um dos últimos livros que Augusto Boal desenvolveu, em parceria com sua
equipe de Coringas do Centro de Teatro do Oprimido, foi exatamente em relação à
Estética do Oprimido, no qual podemos encontrar toda a preocupação dos seus
idealizadores em relação aos elementos da linguagem cênica, e a importância desses
para a efetivação de uma sessão de Teatro do Oprimido.
A necessidade de criar estratégias de combate à exclusão social e ao
preconceito encontra na escola, nas aulas de teatro, um espaço efetivo para essa
discussão, através do reconhecimento e da valorização da cultura africana e afro-
brasileira. Ao levarmos os sujeitos a refletirem sobre essas condições, vivenciando e
fazendo parte das mesmas através de suas atuação teatrais, nos aproximaremos
muito das ideias da professora Jane Eliot, discutidos anteriormente através do artigo
de Nilma Lima Gomes (2005), nos fazendo refletir que ao colocarmos as pessoas
diante de seus próprios valores raciais, levando-as a questioná-los, a partir do
momento em que se encontram numa situação de discriminação semelhante àquela
vivida pelo outro, pelo diferente, poderíamos fazer com que esse sujeito entre em
contato diretamente com situações que o levarão a um pensamento crítico acerca das
56
relações e tensões raciais em que estão envolvidos. Aproximando-se muito dos
conceitos desenvolvidos pelas técnicas do Teatro do Oprimido, nas quais “O ser
humano pode ver-se no ato de ver, de agir, de sentir, de pensar. Ele pode se sentir
sentindo, e se pensar pensando” (BOAL, 1996, p.27).
III.1 O Teatro do Oprimido
Começo essa apresentação sobre o Teatro do Oprimido, tomando
emprestadas as primeiras palavras também de apresentação de Augusto Boal a um
de seus livros, datado de 1974, no qual insere toda a sua preocupação em recuperar o
caráter político do teatro, justificando que todas as atividades do homem são políticas,
e o teatro é apenas mais uma delas. Por conta disso, os que pretendem esvaziar esse
discurso político do teatro, na verdade querem tomar para eles uma das mais
eficientes formas de dominação sociocultural, por isso, defendia Boal, devemos lutar
por ele.
Em meio aos anos conturbados das décadas de 1960 e 1970 no Brasil, Boal
procurava uma forma de fazer teatro que fosse além da Arte Cênica propriamente dita,
queria pensar construções cênicas nas quais todos os envolvidos fossem levados a
um despertar da consciência crítica, inclusive a plateia, que deveria ser instigada a sair
do seu estado de “observador” e interferisse na cena, como se fosse um jogo,
construindo-se como espectador e ator, o que Boal denomina como Spect-atores. Ele
acreditava que, partindo desse princípio básico, da libertação da plateia enquanto um
ser “oprimido”, o espetáculo seria o “início de uma transformação social necessária e
não um momento de equilíbrio e repouso”. (BOAL, 2011, p.19).
Boal cria suas técnicas tendo como inspiração a figura de uma árvore. É
através dessa metáfora da Árvore do Teatro do Oprimido, que o mesmo irá conectar
todos os jogos desenvolvidos, as técnicas de TO, os elementos da estética, sempre a
Ética e a Solidariedade como solo produtivo para as ações desenvolvidas através do
Teatro do Oprimido. A cada fruto que cair nesse solo se reproduziria através da
Política de Multiplicação, e a Solidariedade entre semelhantes é a parte medular do
T.O., ou seja, é preciso conhecer não só suas próprias opressões, mas as alheias
também. Os Jogos logo no início tronco da árvore, se devem ao fato do mesmo reunir
duas características essenciais para a vida em sociedade: a primeira é que para se
praticar qualquer jogo tem-se que respeitar regras, porém, necessita-se de liberdade
criativa, para que o Jogo, ou a vida, não se transforme em servil obediência: “Sem
regras não há jogo, sem liberdade não há vida” (BOAL, 2011, p.16)
57
FIG. III.1 – Árvore do Teatro do Oprimido.FONTE: ctorio.org.br
Através de jogos com Imagem, Som e Palavras, os alunos envolvidos no nosso
experimento com o TO são conduzidos em sala a expor seu pensamento sobre as
temáticas relacionadas às questões raciais, como o racismo. Esses pensamentos, em
sua maioria, são expressos a partir de “vivências” experimentadas pelos próprios
alunos, que os expuseram a alguma situação de submissão, vexame ou até mesmo
violência.
Dentro do jogo lúdico da encenação, ela é compreendida como processo de
interação, levando ao declínio da ideia de regra como lei exterior, fazendo-os
entenderem que a mesma é um resultado de uma decisão livre, porque foi
mutuamente consentida.
Assistimos, hoje em dia, a vários debates em relação às comunidades
chamadas de “minorias”, que há muito tempo têm sido excluídas de determinados
58
setores da sociedade, principalmente daqueles setores privilegiados com acesso ao
“poder”. Entendendo a Educação como um dos poderes de ascensão social, é que
podemos observar o porquê da criação de algumas políticas afirmativas, como é o
caso do sistema de cotas para ingresso nas universidades, por exemplo, que
possibilitaram a negros e negras o acesso ao ensino superior, e até a vagas pré-
determinadas nos concursos públicos do país. Foi a partir de estratégias como essas
que pudemos ver um número crescente de negros e negras podendo participar de
vários setores da vida social onde antes seria impossível visualizá-los.
Em seu livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas (2011) Boal faz
algumas reflexões sobre a sua pretensão com essa técnica teatral e uma delas é a
popularização do teatro, pois são técnicas que poderão ser utilizadas tanto por atores
como por não atores. O autor declara que pretendia “mostrar que todo teatro é
necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o
teatro é uma delas” (BOAL, 2011, p.11). Boal iguala o “fazer teatral” e sua utilização
como uma “arma eficiente” utilizada pelas classes dominantes em nossa sociedade,
por isso o teatrólogo defende que é necessário lutar por ele.
O que Boal pretendia era instigar uma retomada do teatro pelo povo, pela
grande “massa” que se viu afastada de uma arte que acabou por se tornar elitizada.
Por isto desenvolveu algumas técnicas de encenação para que qualquer um possa ser
ator dessa ação cênica, utilizando-se das relações sociais, nas quais observamos
posturas opressoras, por conta de uma constituição social ainda embasada em ideais
coloniais. Mas faz uma ressalva de que nessa relação “Oprimidos e opressores não
podem ser candidamente confundidos com anjos e demônios. Quase não existe em
estado puro, nem uns nem outros”. (Idem, p.23) Abrindo a discussão para as outras
possibilidades de opressão, nas quais opressores são encontrados como oprimidos e
oprimidos fazem a vez de opressores.
Entre essas técnicas de encenação podemos citar o Teatro Jornal,
considerada a técnica mais antiga do TO, utilizada desde o Teatro de Arena, época
em que a Ditadura Militar censurava várias peças teatrais e controlava o que era dito
ou denunciado em cena. Nesta técnica, escolhiam-se notícias publicadas em jornais
pela manhã, para encená-las à noite. A ideia era que, através dessa encenação, as
entrelinhas do texto fossem reveladas e que todos pudessem compreender qual era
realmente a ideologia propagado pelo jornal. Essa técnica pode ser desenvolvida a
partir das seguintes práticas:
a) leitura simples – a notícia é lida destacando-se do contexto do jornal, da diagramação, que torna falsa ou tendenciosa – isolado do resto do jornal readquire sua verdade objetiva;
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b) leitura cruzada – duas notícias são lidas de forma cruzada, uma
lançando nova luz sobre a outra, e dando-lhe uma nova dimensão; c) leitura complementar – à notícia do jornal acrescentam-se dados e
informações geralmente omitidos pelos jornais das classes dominantes; d) leitura com ritmo – a notícia é cantada em vez de lida, usando-se o ritmo
mais indicado para se transmitir o conteúdo que se deseja: samba, tango, canto gregoriano, bolero, de tal forma que o ritmo funcione como verdadeiro filtro crítico da notícia, revelando seu verdadeiro conteúdo, oculto nas páginas dos jornais;
e) ação paralela – paralelamente à leitura da notícia, os atores mimam ações físicas, mostrando em que contexto o fato descrito ocorreu verdadeiramente; ouve-se a notícia e, ao mesmo tempo, veem-se imagens que a complementam;
f) improvisação – a notícia é improvisada cenicamente, explorando-se todas as suas variantes e possibilidades;
g) histórico – a notícia é representada juntamente com outras cenas ou dados, que mostrem o mesmo fato em outros momentos históricos ou em outros países, ou em outros sistemas sociais;
h) reforço – a notícia é lida, ou cantada, ou bailada, com a ajuda de slides, jingles, canções ou material de publicidade;
i) concreção da abstração – concreta-se cenicamente o que a notícia às
vezes esconde em sua informação puramente abstrata: mostra-se concretamente a tortura, a fome, o desemprego, etc., mostrando-se imagens gráficas, reais ou simbólicas;
j) texto fora do contexto – uma notícia é representada fora do contexto em que sai publicada: por exemplo, um ator representa o discurso sobre austeridade pronunciado por um ministro da economia enquanto devora um enorme jantar; a verdade do discurso fica assim desmistificada: quer austeridade para o povo, mas não para si mesmo. (Idem, p. 217-218)
Mas logo em seguida veio a prisão e o exílio de Augusto Boal, que buscou
refúgio em países da América Latina como Argentina, Peru e Chile. Boal continuou
seu trabalho enquanto ativista teatral nesses países, e começou a desenhar uma
metodologia onde o teatro pudesse ir além de simplesmente comentar sobre política,
que ele fosse uma atividade política em si.
III.1.1 Dramaturgia Simultânea e Teatro Fórum
A Dramaturgia Simultânea foi uma prática teatral desenvolvida por Boal no
Peru, para a alfabetização de adultos, na qual os atores profissionais escutavam as
histórias de opressão de alunos e posteriormente as encenavam para outros
estudantes. Boal conduzia os debates e a plateia podia opinar sobre possíveis
resoluções para os problemas apresentados em cena, fazendo o papel que hoje
reconhecemos como o de um Coringa.
Porém durante uma apresentação na cidade de Chaclacayo, ainda no Peru, de
uma cena que discutia o machismo de um marido contra a sua mulher; ele a traía e ela
não fazia nada, e após várias tentativas de resoluções daquele conflito, e nenhuma
delas agradou a plateia como um todo, uma senhora eufórica com a impossibilidade
de uma conclusão efetiva para a cena, sugeriu uma resolução: a esposa
60
primeiramente deveria ter uma conversa “clara” com o marido, depois o perdoaria. O
elenco tentou encenar essa proposta várias vezes, mas a mulher não se sentia
contemplada com nenhuma tentativa, principalmente com relação à “conversa clara”
que a esposa deveria ter com o marido. A atriz tentou de várias formas, mas nada
chegava próximo ao que a mulher tinha pensado para a cena. Segundo relatos do
próprio Boal, através do documentário de Zelito Viana, BOAL – Augusto Boal e o
Teatro do Oprimido, de 2011, a mulher já estava quase saindo do teatro, dando as
costas para o elenco, em tom de decepção, quando Boal a questionou o porquê
daquela atitude, e ela respondeu: Você não entende o que quero dizer por que você é
homem! Então, Boal sugeriu que ela fosse até a cena e mostrasse então a todos qual
era sua real intenção. A mulher subiu com uma raiva, como se ela mesma tivesse
passado por aquela opressão, e a forma de “conversa clara” que a mesma teria
pensado foi representada pela mesma de forma completamente diferente. A mulher
agarrou o ator que representava o marido pela camisa com um cabo de vassoura na
mão, partiu para cima do ator, batendo nele, dizendo que era para ele aprender a
nunca mais cometer aquela loucura, jogou o pau fora e mandou que ele fosse pegar
uma comida pra ela porque ela estava com fome. Surgindo naquele instante a ideia do
que viria a se desenvolver a mais utilizada do TO, o Teatro Fórum.
III.1.2 Teatro Imagem
Técnica na qual não se utilizava a palavra. Após alguns trabalhos com
indígenas, Boal percebia que quando utilizava a palavra para a comunicação nem
sempre a mensagem era entendida ou interpretada como se pretendia, então resolveu
desenvolver uma técnica de encenação onde os participantes davam suas mensagens
através de imagens corporais: “deve apenas usar os corpos dos demais participantes
para ‘esculpir’ com eles um conjunto de estátuas, de tal maneira que suas opiniões e
sensações resultem evidentes” (BOAL, 2011, p.204) O importante é que o grupo
consiga chegar até uma representação física da opressão que se pretende discutir, e
que essa imagem seja entendida pela maioria do grupo. Depois pede-se ao mesmo
escultor que modifique essa imagem, chamada de imagem real, para outra que
transmitisse o desejo desse escultor em por fim aquela opressão, construindo uma
imagem ideal. Por fim, é pedido a alguém da plateia que construa uma terceira
imagem, chama de Imagem de trânsito, ou seja, como seria possível através de
algumas modificações transformar a imagem real na imagem ideal? Cada um dos
participantes, sem a fala, teriam o direito em esculpir as modificações essas
necessárias, construindo seus próprios caminhos de transformações, que consistia em
seu próprio caminho para a revolução: “Todo debate é feito pelos ‘escultores’ que
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modificam ‘esculturas’: cada escultura terá inequivocamente um significado, e cada
modificação, igualmente, terá um significado particular” (idem, p.205). A palavra
apesar de possui uma denotação, ou seja, o mesmo significado para todos, ela
também carrega a conotação, que acaba lhes transmitindo significados diferentes para
cada um, de acordo com sua cultura, lugares de pertencimento, suas experiências,
etc., por conta disso, o teatro-imagem torna-se uma prática muito eficaz em tornar o
pensamento visível, já que, segundo BOAL (2011) a imagem consegue sintetizar a
conotação individual e a denotação coletiva.
Trabalhar com a leitura de imagens nos dias de hoje torna-se importante
mediante a pesada indústria do marketing e da propaganda, que cria através da ilusão
do consumo exacerbado outras formas de opressão, como mencionado no capítulo
anterior sobre os “jovens e o consumismo”. Segundo SANCTUM (2012) essa indústria
“cria e perpetua ferramentas justamente para viciar nossos olhares a não perceberem
as mensagens subliminares ou indiretas” (p.41).
III.1.3 Teatro Invisível
Essa técnica foi criada e praticada parte na América Latina, parte na Europa, e
a ideia era tornar visível as opressões não percebidas pela população. A encenação
pode acontecer em qualquer lugar, sem que o público saiba que se trata de atores. É
escolhida uma situação problema geradora de algum tipo de opressão que já esteja
banalizada, ou seja, que passa despercebida pela população. Para se preparar um
espetáculo de teatro invisível, tudo deve ser pensado minuciosamente, além do texto,
das cenas, da relação entre os atores, a possível interferência das pessoas que
estejam passando pelo local onde a cena esteja acontecendo. De acordo com BOAL
(2011) o Teatro Invisível deve “explodir”, ou seja, ecoar no meio da população, em um
local de grande movimentação, tornando escandalosa uma situação de opressão e
“todas as pessoas próximas devem ser envolvidas pela explosão, e os efeitos desta
muitas vezes perduram até depois de muito tempo de terminada a cena” (p. 219).
SANCTUM (2012) ressalta que, como “toda ação realizada no método do
Teatro do Oprimido tem um cunho político de transformação social e protagonismo de
espectador” (p. 42), não devemos confundir essa prática do TO com determinados
quadros apresentados pela televisão, nos quais pessoas são enganadas sobre
determinadas ações tidas como verdadeiras, sem nenhuma preocupação de mudança
de pensamento dos sujeitos envolvidos, a única preocupação que podemos perceber
neles é a do espetáculo: “Brincadeiras jocosas que desmerecem a inteligência da
62
população como vemos nos programas dominicais – as chamadas ‘pegadinhas’”
(ibidem), muitas vezes expõem o espectador ao ridículo.
III.1.4 Arco-Íris do Desejo e Psicodrama
Método de Teatro do Oprimido que tem como função revelar os opressores
internalizados em cada indivíduo, por conta disso também é chamado de Método de
Boal de Teatro e Terapia. Ao praticar o Teatro do Oprimido em grupos na Europa, já
nos anos de 1980, Boal percebeu que a opressões reveladas e discutidas nesses
grupos eram em sua maioria de caráter particular, com forte introspecção e nenhuma
origem clara, diferentemente das opressões observadas nos países da América
Latina. Se até então Boal confrontava seus opressores em funções e lugares
concretos, como policiais, patrões, latifundiários, agora as opressões eram subjetivas
e introspectadas. Então Boal buscou através dessa prática, trazer as opressões à
expressão, criando a técnica o tira na cabeça, com a intenção de “facilitar o confronto
entre o oprimido e os ‘policiais’ alojados dentro de suas próprias cabeças, para
concretizá-los em imagens e, a partir de então, conseguir combatê-los” (SANCTUM,
2012, p.46). Entre as outras técnicas criadas por Boal, está a que dá nome a esse
método de TO, o Arco-Íris do Desejo, na qual sugere metaforicamente a análise de
todas as cores do arco-íris, recombinando de acordo com o desejo de cada um em
resignificar suas opressões internalizadas, possibilitando outras formas de se lidar com
suas opressões.
SANCTUM (2021) destaca dois pontos relevantes em relação ao método Arco-
Íris do Desejo, o primeiro em relação à diferenciação entre esse método e o
psicodrama criado por Jacob Levy Moreno. Não devemos esquecer que no Teatro do
Oprimido as reflexões propostas têm como víeis a análise da ação individual para uma
transformação de caráter social, ou seja, parte da opressão compartilhada por um
indivíduo ou grupo, para uma ação de combate a essa opressão que atinge um
grande número de pessoas: “Enquanto Boal se concentra no coletivo, o psicodrama de
Moreno tem por finalidade trabalhar os problemas individuais em sessões de terapia.
Boal crê que o teatro é terapêutico, mas não é terapia” (idem, p. 47)
O segundo ponto relevante é em relação à catarse, a propósito da qual Boal
lista quatro tipos independentes:
1) Catarse Clínica: o paciente expurga o que lhe está fazendo mal e pode se curar.
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2) Catarse Moreniana: o paciente expurgar seus pensamentos negativos, ao
interpretar, durante uma sessão de psicodrama, um personagem com emoções
semelhantes as suas.
3) Catarse Aristotélica: através das tragédias, os problemas sociais eram postos em
destaques, representados por heróis trágicos e eram assistidos por muitos,
tornando-se como arma de controle e coerção pelos governantes, já que o teatro
era incentivado e financiado pelo Estado. Segundo o próprio Boal a função dessa
catarse na Grécia era a de podar qualquer movimento político que tentasse
reivindicar algum tipo de mudança na “polis”.
4) Catarse de Boal: o que pretendia com a sua proposta era quebrar esse repouso
praticado pela catarse aristotélica para sua plateia, e trazer um desequilíbrio que
provoque uma ação de intervenção da mesma, através da dinamização, que seria
a ação que provém dela (exercida por um espect-ator em nome de todos)
destruindo os bloqueios que proibiam a sua realização. “Isso quer dizer que ela
purifica os espectatores, que ela produz uma catarse. A catarse dos bloqueios
prejudiciais. Que seja bem vinda!” (Boal, 2002, p. 83)
III.1.5 Fábrica de Teatro Popular
Em 1986 Boal aceita o convite de Darcy Ribeiro, então vice-governador do Rio
de Janeiro, para desenvolver seu Método e participar do projeto da criação dos
Centros Integrados Para a Educação Pública (CIEP), para possibilitar através do
apoderamento do processo de criação teatral o aumento da confiança e da
consciência de alunos que viviam às margens, para convertê-los em cidadãos ativos e
participativos.
A partir de então seguiram-se capacitações de artistas, animadores culturais e
professores, com o intuito de criar grupos comunitários de Teatro-Fórum, que iriam
percorrer algumas cidades do Estado, com a função de multiplicar o Método e criar
outros grupos, formando uma rede. Esse projeto inicial era chamado de Fábrica de
Teatro Popular.
Porém, o projeto teve que ser cancelado por conta de um novo governo eleito.
Como estratégia para não paralisar o projeto, Boal e outros participantes tentaram
continuar o trabalho, fundando em 1989 o Centro do Teatro do Oprimido (CTO), na
cidade do Rio de Janeiro, cujo principal objetivo era o de seguir difundindo os métodos
de Boal. Mas não foi fácil a manutenção desse novo espaço. As dificuldades
financeiras quase levaram os envolvidos a abandonar o projeto por várias vezes, a
solução veio através da campanha eleitoral de 1992, quando o CTO decidiu então
64
apoiar ativamente a campanha do PT, e Boal lança sua candidatura, por esse mesmo
partido para vereador da cidade do Rio de Janeiro. Com uma proposta de governo
bastante clara que era a de continuar levando seu projeto de Teatro do Oprimido,
porém com uma participação mais ativa na política, sendo um dos seis vereadores
eleitos pelo PT, tomou posse na Câmara dos Vereadores em janeiro de 1993.
III.1.6 Teatro Legislativo
A partir desse mandato de Vereador e através do trabalho com o Teatro-
Fórum, Boal criou uma nova forma de atuação, juntando o teatro com a atividade
legislativa, no projeto que ficou conhecido como Teatro Legislativo, no qual, ao entrar
em cena, no Fórum, podia-se sugerir propostas de leis para a resolução dos
problemas que eram expostos e discutidos através da encenação. BOAL (1996)
descreve esse seu Método em um livro chamado Teatro Legislativo, no qual faz uma
reflexão sobre essas duas atividades: o Teatro do Oprimido, onde o espectador se
transforma em ator, e o Teatro Legislativo, onde o cidadão se transforma em
legislador; a semelhança entre ambos existe a partir do momento em que “não
admitimos que o eleitor seja mero espectador das ações dos parlamentares, mesmo
quando concretas: queremos que opine, discuta, contraponha argumentos, seja co-
responsável por aquilo que faz o seu parlamentar” (p.45-46).
O Teatro Legislativo se propõe, através de uma atividade lúdica, que se realiza
por conta da encenação, discutir e propor políticas, por qualquer um que se sinta
envolvido, inclusive por aqueles que dizem não gostar de política, entendendo esse
próprio descontentamento como também uma postura política, já que fazer política é
da própria natureza do homem.
Para o funcionamento dos grupos de Teatro Legislativo, BOAL(1996) relata a
sua organização em torno de “Núcleos” e “Elos”, cada subgrupo apresenta suas
específicas importâncias para o desenvolvimento desse Método:
Um Elo é um conjunto de pessoas da mesma comunidade e que se comunica periodicamente com o Mandato, expondo suas opiniões, desejos e necessidades. Essa relação pode-se dar através da presença na Câmara Municipal, na comunidade ou em outros locais onde se realizem atividades do Mandato. Pode-se dar pessoalmente, através da Câmara na Praça ou da Mala Direta Interativa. Um Núcleo é um elo que se constitui em grupo de Teatro do Oprimido e, ativamente, colabora com o Mandato de forma mais frequente e sistemática. (p. 66)
As sessões de Teatro Legislativo aconteciam na calçada em frente ao prédio
da Câmara dos Vereadores, na Cinelândia, e utilizavam as escadarias como
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arquibancada, uma lona para o chão e uma estrutura que servia de fundo, o qual
chamavam de “palquinho”, e assim delimitavam o Espaço Cênico. BOAL(1996)
também conta que outros vereadores eram convidados a participar dessas sessões, já
que a ideia era reproduzir na rua o que acontecia, ou deveria acontecer, no plenário.
Mas somente 10% desses apareciam, talvez porque não fosse tarefa fácil encarar,
frente a frente, a população em temas polêmicos. Quando aconteciam as votações
dentro do Plenário, essas pessoas, que participavam de uma sessão de Teatro
Legislativo, eram convidadas para acompanhá-las.. Muitas nunca tinham entrado
antes no prédio e gostavam de acompanhar as sessões, solicitando inclusive oficinas
de Teatro Legislativo em suas comunidades e bairros.
Dessa forma, o Teatro Legislativo, conseguiu aprovar 13 Leis Municipais, além
de propor vários outros Projetos de Lei que não foram aprovados. Desses grupos
também surgiu a proposta que resultou em 1997, após o final do Mandato, na Primeira
Lei brasileira de Proteção às Testemunhas de Crimes, que veio a inspirar a Lei
Federal de Proteção às Testemunhas, segundo texto sobre o Teatro Legislativo
disponibilizado na página do Centro de Teatro do Oprimido, na internet:
www.cto.org.br .
Após o fim do mandato de Augusto Boal, alguns curingas continuaram a
desenvolver o Método, devido a grande riqueza da experiência, o que Boal descreveu
como EXERCÍCIO PLENO DA CIDADANIA, porém agora com o desafio de não terem
nenhuma ligação direta com qualquer legislador. O Centro de Teatro do Oprimido –
CTO, foi registrado como Associação Sem Fins Lucrativos, para criar as condições
jurídicas necessárias na busca de apoio a projetos que possibilitassem o CTO nessa
dura tarefa de continuação. E os curingas passaram então a fazer contatos com
gabinetes de vereadores(as) e deputados(as) estaduais em busca de apoio e parceira.
O êxito aconteceu a partir de outras propostas aprovadas, como foi o caso da
Primeira Lei Estadual do Teatro Legislativo, proposto pelo grupo popular de Teatro
Fórum “Corpo EnCena”, de uma comunidade do Rio, que propôs uma alternativa para
se obter professores(as) voluntários(as) em seu Pré-Vestibular Comunitário,
comprovando com isso que os trabalhos com Teatro Legislativo independiam de se ter
ou não um legislador oficialmente ligado a ele.
Segundo ainda o mesmo texto da página do CTO, os trabalhos com o Teatro
Legislativo conseguiu aprovar uma Segunda Lei Estadual, no ano de 2004, originada a
partir de proposta feita pelo grupo “Panela de Opressão”, de uma comunidade da Zona
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Oeste do Rio de Janeiro, que instituiu a obrigatoriedade de camisinhas femininas em
motéis, hotéis e similares.
Outras várias propostas, cerca de 100 (cem), haviam sido encaminhadas a
vereadores(as) e deputados(as) parceiros(as), porém dificilmente conseguiam algum
retorno positivo na aprovação das mesmas, o que levou a equipe do CTO, a pesquisar
outras formas para propor suas ideias, sem que dependessem diretamente de algum
legislador. Foi então que descobriu-se a Comissão de Legislação Participativa – CLP,
um canal criado para que a população brasileira pudesse participar efetivamente, de
forma democrática, sem a intermediação de qualquer deputado(a), para propor leis. A
CLP as chamam de “Sugestões Legislativas”, e elas podem ser sugeridas por
qualquer instituição brasileira, registrada juridicamente, como é o caso do CTO, por
exemplo.
Comprovamos que é possível a aprovação de leis mesmo sem um parlamentar ligado diretamente ao TL, mas também essa experiência nos mostra que a MOBILIZAÇÃO é essencial para que o acompanhamento de todas as etapas SEJA EFETIVO, desde o acolhimento de uma proposta por um(a) parlamentar ou pela CLP – Comissão de Legislação Participativa (no caso da Proposta ser de âmbito federal) até se tornar um projeto de Lei e daí para a aprovação como Lei
7.
Com isso a atuação do Centro de Teatro do Oprimido vai se desenvolvendo no
cenário político-cultural brasileiro, de forma efetiva e autônoma. Prosseguindo com
novas formações de grupos comunitários, formações específicas nas técnicas do TO
através de laboratórios e seminários de caráter permanente, continuando com um
trabalho de pesquisa, revisão, experimentação, análise e sistematização dos
exercícios, dos jogos e das técnicas do TO. Continua também desenvolvendo projetos
nas áreas de educação, saúde mental, sistema prisional, pontos de cultura,
movimentos sociais, comunidades, tanto a nível nacional quanto internacional - mais
de setenta países hoje em dia praticam o TO em suas comunidades, dos Estados
Unidos à Alemanha, Índia, Afeganistão, Palestina, e em países como Moçambique,
Guiné Bissau, Angola e Senegal.
Antes de sua morte, no ano de 2009, Boal lançou em parceria com sua equipe de
coringas do CTO o livro A Estética do Oprimido, contendo os princípios básicos da sua
metodologia, como tentativa de alicerçar teoricamente a prática do TO. O livro é
dividido em duas partes: a primeira contém uma fundamentação teórica sobre as
influências dos meios de comunicação em transformar a população em consumidora
7 Disponível no site: http://ctorio.org.br/novosite/arvore-do-to/teatro-legislativo/ Acesso em 10.jul.2014.
67
do que em produtora de arte; na segunda parte do livro vemos uma sistematização de
algumas práticas realizadas em projetos sociais e oficinas de TO, como forma de
sensibilizar nosso lado artístico, para que possamos nos perceber como produtores de
arte em potencial, ou seja, todos nós podemos fazer teatro.
BOAL(2009) faz algumas reflexões em relação ao seu método de
popularização do fazer teatral, sobre o ponto de vista estético e não científico. Começa
por apresentar uma conceituação de “Analfabetismo Estético”, relacionado ao teatro, o
qual é produzido a partir do afastamento, isolamento, opressão e exploração dos ditos
mais pobres socialmente, pelas classes, clãs ou castas dominantes.
Tão lamentável quanto o analfabetismo do não saber ler ou escrever é o
mencionado por Boal, no qual o cidadão não é estimulado a saber falar, ver e ouvir,
entrando em um estado de alienação da produção de sua arte e de sua cultura,
afetando todo o seu exercício criativo de suas formas de “Pensamento Sensível”. A
partir daí os indivíduos são relegados a uma posição passiva de espectadores que
apenas consomem e reproduzem a imagem ou informação apresentada socialmente.
Boal nos alerta que “a castração estética vulnerabiliza a cidadania, obrigando-a a
obedecer a mensagens imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do púlpito e
de todos os sargentos, sem pensá-las, refutá-las, sem sequer entendê-las!” (BOAL,
2009, p. 15)
Conhecer e dominar esses canais estéticos da Palavra, Imagem e do Som,
como são os explorados pelo viés teatral a partir da metodologia do Teatro do
Oprimido, nos ajudará a travar as lutas sociais e políticas pretendidas por Boal, em
busca de uma sociedade mais justa e democrática.
BOAL(2009) nos indica dois caminhos para conseguirmos reverter esse quadro
de opressão, instalado fortemente nas sociedades que viveram um processo de
colonização e escravismo, como foi o Brasil. Primeiro, ele denomina duas outras
formas humanas de pensamento, além daquela que se traduz no discurso verbal, são
elas a Sensível e a Simbólica: “São formas complementares, poderosas, e são,
ambas, manipuladas e aviltadas por aqueles que impõem suas ideologias às
sociedades que dominam”(idem, p.16); o segundo caminho seria questionar o fato de
que em sociedades como a nossa, caracterizada pela multiplicidades de classes,
etnias, religiões etc., ainda se pense na existência de uma só estética que padronize e
contemple todas as regras sociais e seus paradigmas. Temos que estar atentos às
muitas estéticas que nos são apresentadas socialmente, para tentar entendê-las em
suas significações e representações:
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“Só com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis(som e imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia” (idem, p.16).
Para entender essas inter-relações, Boal classifica o ser vivo como um ser em
“expansão”, movido por uma necessidade de “existir” transformada em luta,
comparando ao reino vegetal, onde determinadas plantas que matam a partir de suas
folhas ou raízes e as trepadeiras parasitas que definham suas hospedeiras, concluindo
que: “A vida come a vida” (Idem, p.17). E faz uma analogia entre essa luta biológica
com as relações humanas, nas quais se observa a luta pelos espaços, sejam eles
físico, intelectual, amoroso, histórico, geográfico, social, esportivo ou político. Quando
se pensa em dominação no campo social, por determinadas classes, principalmente
nas sociedades moldadas pelo sistema político neoliberal, esse poder ou riqueza é
representado pelos espaços ocupados e dominados e pela forma como esses são
utilizados para oprimir os que estão à margem.
Entendendo as palavras de Boal (2009) é através da arte, da cultura e de todos
os meios de comunicação que as classes dominantes, utilizando-se do analfabetismo
estético, “controlam e usam a palavra (jornais, tribunas, escolas...), a imagem (fotos,
cinema, televisão...), o som (rádios, CDs, shows musicais...) monopolizando esses
canais” (idem, p.17-18). Produzem assim o que Boal considerou ser uma espécie de
estética anestésica, na qual o cérebro dos cidadãos são conquistados, esterilizados e
programados para a obediência, o mimetismo e a falta de criatividade.
Boal (2009) nomeia então o Pensamento Sensível, como uma das grandes
armas de poder, por isso o interesse das classes dominantes em estar sempre com o
domínio dos meios que possam manipulá-lo. A partir desse entendimento faz uma
reflexão sobre as “formações dos submissos rebanhos de fiéis” (Idem, p.18),
representados tanto pelas igrejas e seus espetáculos televisionados, ou pelos
torcedores esportistas ou eleitorais de massa, na construção do fanatismo; para se
sair desse estado de verdadeira passividade, só através da contra-comunicação, da
contra-cultura-de-massa, do contradogmatismo, acredita Boal (2009).
A partir desses pensamentos, sobre o que pretendia Augusto Boal ao repensar
seu fazer teatral, nos anos de 1970, quando começou a sistematizar as Técnicas do
Teatro do Oprimido, experimentando outras formas de encenação nas quais os
indivíduos postos em jogo cênico, seriam instigados a um Pensamento Crítico e a
desconstrução de determinadas atitudes opressoras em cena, estimulando outras
formas de desconstrução, tornando possível, não só o rompimento com a ideia da
69
“quarta parede teatral”, aquela que separa espectadores do ato cênico no teatro
clássico, já que Boal convida a mesma a interferir critica e cenicamente nas ações
experimentadas no palco, porém o que se espera é que essa ação também extrapole
outros limites, e que estimule uma interferência na desconstrução das relações
opressoras em suas próprias vidas.
Com o mesmo intuito, Boal experimenta essa interação cênica em leituras de
jornais atuais, para levar os indivíduos a entenderem de que forma os meios também
são utilizados como propagadores de uma postura opressora, resultando no que
denominou como Técnica do “Teatro Jornal”, muito utilizado na época da ditadura
brasileira, para entender a dinâmica opressora da censura. Essas são duas das várias
técnicas desenvolvidas por Boal e sua equipe de Curingas do CTO, digo algumas
porque o próprio Boal deixa em aberto que os métodos do Teatro do Oprimido são
vários, e há alguns que ainda estão por descobrir, ficando o caminho aberto para
novas experimentações. Essas novas experimentações serão contextualizadas a partir
das necessidades apresentadas pelas comunidades a serem trabalhadas e suas
respectivas opressões.
Esta dissertação irá analisar uma prática com o Teatro do Oprimido, utilizada
em sala de aula para discutir questões étnicas e raciais que atendam as propostas da
Lei 10.639. A utilização do método de improvisação do Teatro do Oprimido, poderá
nos auxiliar na compreensão e no enfrentamento de aspectos identitários conflituosos,
principalmente os referentes às questões etnicorraciais, entendendo na “realização da
ação” como esses processos se constituem e como se manifestam em nosso
cotidiano.
A prática do teatro, relacionada a essas questões identitárias, pode se tornar
eficiente a partir do momento em que entendemos que o teatro tem o poder de
expurgação de todo sentimento de dor, decepção, alívio ou amor, através da catarse.
Esse poder, conseguido através da apropriação simbólica de cada potencial exposto
em cena, é aquele que, para além da ferramenta política e da transformação social,
pode também funcionar como uma verdadeira “atividade terapêutica”, despertando a
partir da ludicidade, criatividade e improvisação inerentes ao jogo dramático, o olhar
sensível-crítico-cognitivo dos alunos.
Essa apropriação simbólica poderá expandir as formas de contato e
comunicação que os envolvidos no processo de teatro-educação mantêm com o seu
próximo e com o seu meio, servindo-se de possível agente transformador da sua
realidade e, por conseguinte, de toda realidade que o envolve.
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O Teatro do Oprimido desenvolve-se a partir de três vertentes: a educativa, a
social e a terapêutica. Dentro da nossa abordagem, essas três vertentes irão se
entrecruzar a todo instante, recorrendo-se por vezes de uma ou outra para o
direcionamento das atividades. Fazendo uma contextualização geral encontramos:
“O Teatro do Oprimido é um sistema de exercícios físicos, jogos
estéticos, técnicas de imagem e improvisações especiais, que tem
por objetivo resgatar, desenvolver e redimensionar essa vocação
humana, tornando a atividade teatral um instrumento eficaz na
compreensão e na busca de soluções para problemas sociais e
interpessoais” (BOAL, 1996, p.28).
Ao compreender e até desmistificar determinadas convenções de práticas
sociais, o aluno entrará em contato com outras formas de participação em sociedade,
percebendo-se como agente observador e também como agente que tem o poder de
interferir numa realidade pré-estabelecida que não o favoreça. O Teatro do Oprimido
vai além das convenções de ator e espectador. O princípio fundamental é: “ajudar o
espectador a se transformar em protagonista da ação dramática, para que possa,
posteriormente, extrapolar para a sua vida real as ações que ele repetiu na prática
teatral” (BOAL, 1996, p.53), ou seja, as cenas ou imagens propostas em jogo devem
proporcionar a intervenção dos observadores a qualquer instante, tornando-se esse
um “espectator”, concentrando em si essas duas funções.
Ao criar essa tal DINAMIZAÇÃO, como mencionado anteriormente, o indivíduo
passa a romper todos os bloqueios que o proibiriam qualquer realização dessa ação,
primeiramente na cena e posteriormente em sua vida social, levando esse jovem a
possibilidade de interferência a qualquer instante em sua própria realidade, nos
bloqueios que provocam a exclusão dos mesmos em determinados setores, e nas
construções de identidades que estão sempre em movimentos. Como afirma Stuart
Hall(2006, p.38): “[...]a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo,
através de processos inconscientes[...] Ela permanece sempre incompleta, está
sempre ‘em processo’, sempre sendo formada”. Acreditamos que a função desse
“espectator” ajudará o jovem na conquista do potencial de controle de agente e
observador para a construção de seus próprios acordos sociais.
O projeto surge então com o intuito de levar os alunos na compreensão da
construção de suas identidades negras e, consequentemente, da sua valorização
rumo a autoafirmação e a libertação de um sistema opressor que dita as regras de
exclusão presentes na nossa sociedade, assim como revela Desgranges(2010, p.72),
“essas sessões de Teatro do Oprimido têm o intuito de constituir-se no ensaio de um
processo de transformação", ou em “um ensaio da revolução”. Afirma o autor que “se o
71
participante experimentou no teatro a sua capacidade de mudar a ordem estabelecida,
tentará agir da mesma maneira na sua vida”. (idem, p.72), tornando-se uma verdadeira
revolução para a vida, como sempre mencionou e defendeu Augusto Boal em suas
experimentações e escritos sobre o Teatro do Oprimido.
Dentro da perspectiva teatral em forma de jogo, encontramos nas pesquisas de
Peter Slade (1978, p.17-18, grifo do autor) uma importante consideração em trabalhá-
lo com nossos alunos: “O Jogo Dramático é uma parte vital da vida jovem. Não é uma
atividade de ócio, mas antes a maneira da criança pensar, comprovar, relaxar,
trabalhar, lembrar, ousar, experimentar, criar e absorver[...]”. Como na etmologia da
palavra, drama, originada do grego drao: “eu faço, eu luto”, a criança vai descobrindo
aos poucos a vida e a si mesma, através das tentativas de improvisação emocionais e
físicas, nas práticas repetitivas a partir do jogo. Por conta disso, explicita o mesmo
Slade(1978, p. 63): “O Jogo Dramático bem-sucedido é não só educação no que ela
tem de melhor, mas prevenção também. Ele oferece uma válvula de escape legitima
para a energia de bomba-atômica desse grupo social que chamamos de turma.”
72
IV. O Teatro do Oprimido e a construção de Identidades Etnicorraciais:
um estudo de caso.
Após várias experiências com o ensino de teatro em escolas, projetos sociais,
grupos amadores e profissionais, resolvi desenhar um projeto teatral que pudesse
despertar o olhar crítico para as questões etnicorraciais, em uma turma de
adolescentes, na qual presenciava diariamente diálogos e discussões calorosas, onde
a questão etnicorracial identitária era fortemente marcada por discursos de teor
racistas.
Esses jovens participavam de um projeto desenvolvido por uma Organização
Não Governamental, Instituto Bola Pra Frente, idealizado por um ex-jogador da
seleção brasileira, Jorginho. A ONG tem o intuito de proporcionar às crianças e jovens
no Complexo do Muquiço8, comunidade próxima aos bairros de Deodoro, Guadalupe e
Marechal Hermes, a partir do esporte, reforço escolar para crianças de 06 a 09 anos
com deficiência no aprendizado, através do projeto chamado Craques de Bola e de
Escola; para as crianças de 10 a 14 anos, contato com habilidades artísticas como
dança, música e artes plásticas no projeto ARTilheiro; e formação profissionalizante
para inserir os jovens de 15 a 17 anos no mercado de trabalho, através do projeto
Campeão de Cidadania. Há outros projetos paralelos a esses, como o Craque dos
Craques que visa a aproximação dos familiares dos educandos ao instituto. Importante
ressaltar que para a matrícula nos projetos, um dos requisitos é que além do
educando está matriculado em uma escola regular, que o mesmo também comprove
sua residência próxima ao instituto, com a justificativa de que, dessa forma fica mais
8 SANTOS, Susana Moreira dos (2008) Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-
Graduação em História, Política e Bens Culturais do Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas - Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de mestre: “O termo Complexo do Muquiço foi adotado pelo Instituto
Bola Pra Frente em 2008, a partir de um Censo Demográfico, realizado pelo próprio Instituto, em
parceria com o SESC-Rio e a empresa norueguesa Kongsberg Maritime, e coordenado tecnicamente pelo
Instituto Muda Mundo. Rosane Cristina Feu, mestre em Geografia e geógrafa participante do Censo,
explica: “O Complexo do Muquiço, recorte espacial enfocado neste diagnóstico social, está localizado
em área limítrofe dos bairros Deodoro, Guadalupe e Marechal Hermes na cidade do Rio de Janeiro. O
Complexo é constituído internamente por seis comunidades de organizações espaciais e construções
históricas diferenciadas. Tais diferenciações constituem importante tema de análise para a
compreensão da estrutura espacial do Complexo que, apesar de aparentemente caótica, possui uma
ordem própria. (...) A delimitação atual do Complexo, e de suas comunidades componentes, baseou-se
no reconhecimento da própria população acerca de seu espaço. Os questionários do censo, dirigidos aos
moradores, interrogavam não apenas o endereço completo como também a “comunidade” em que o
domicílio está localizado”. (Fonte: INSTITUTO BOLA PRA FRENTE, Censo Muquiço 2008, p 21 e 22,
mimeo) (p. 65 e 66)
73
fácil observar o impacto social dos trabalhos desenvolvidos no Bola Pra Frente na
comunidade.
Eu trabalhei diretamente com os jovens do Campeão de Cidadania e foi com
eles que desenvolvi as sessões de teatro do oprimido, que me ajudaram na
construção dessa dissertação. A ideia da pesquisa surgiu a partir de observações
diárias em algumas etapas do projeto social do qual participava, por exemplo, somos
nós professores que auxiliamos o instituto nas matrículas dos educando, dessa forma
os pais têm um primeiro contato com os professores que irão orientar seus filhos
diariamente, construindo um primeiro canal de comunicação. Observei que a maioria
dos pais, ao identificar a cor dos filhos, ou até mesmo a própria, sempre respondia
como cor branca, mesmo que apresentassem características fenotípicas negras. E
isso se manifestava nas relações dos alunos do projeto no cotidiano, ainda mais
quando os mesmos estavam em campo, nas aulas de esporte, onde o sentimento de
competitividade aflora. As discussões eram muitas, apesar de sempre ter um educador
mediando e controlando os educandos nesses momentos de fúria, quando perdiam
algum ponto em jogadas consideradas não adequadas para o jogo, ou mesmo quando
precisavam aceitar que tinham perdido o jogo.
Trabalhar com a “derrota” era um ponto muito importante para aquelas crianças
e adolescentes, já que esse sentimento faz parte de toda e qualquer disputa esportiva,
mas era nesses momentos que escapavam os xingamentos e alguns atos de
violências, nada de grave fisicamente, porém repletos de preconceitos internalizados
que vinham à tona nesses momentos de explosão, principalmente os preconceitos
etnicorraciais. Expressões racistas das mais variadas formas eram trocadas entre os
educandos, principalmente contra os que tinham da cor da pele mais escura. E ao
serem questionados sobre tais atitudes, todos se defendiam dizendo que aqueles
insultos eram comuns na comunidade e que eles (os mais escuros) não se
incomodavam, o que era confirmado pelos ofendidos, justificando que por serem
irmãos da favela estava tudo bem. Ouvi este comentário após um aluno insultar o
outro de “macaco”.
Observamos a partir disso que os jovens desenvolviam a ideia de grupos nos
quais se podia utilizar tais xingamentos e comparações ofensivas, sem que isso fosse
recebido como atitude de preconceito; entretanto, vindos de outro grupo os mesmos
xingamentos tinham uma carga de significância muito grande como preconceito,
evidenciando que para esses grupos o critério territorial era muito forte, separando os
que eram da comunidade e os que não eram.
74
Após ter lido vários autores que já trabalhavam com as discussões raciais em
sala de aula, resolvi desenvolver um projeto educacional no qual pudesse levar
aqueles educandos a uma reflexão sobre essas questões etnicorraciais que os
envolviam no seu cotidiano.
No Instituto eu era contratado para dar aulas de inglês técnico no curso
profissionalizante Campeão de Cidadania, não havia nesse projeto aulas de teatro ou
qualquer outra habilitação artística. Para inserir as aulas de Teatro do Oprimido,
precisei da colaboração e parceria do professor de filosofia, que tinha como um dos
temas de suas aulas, a sociedade e a opressão.
A faixa etária de cada projeto era de acordo com a idade escolar estipulada
pelo MEC para as escolas de ensino básico, ou seja, uma forma também de assegurar
que esses alunos estariam preparados para ingressarem no mercado de trabalho sem
muitos problemas, inclusive o boletim escolar era um dos documentos exigidos para a
matrícula do educando, além do comprovante de residência, documentos de
identificação dos educandos e de seus responsáveis, além de um atestado médico,
por conta dos exercícios físicos praticados em campo. Com isso, podemos imaginar
que parte desses educandos, que auxiliaram na construção desse projeto, são jovens
alfabetizados, possuindo bons desempenhos em leitura e escrita, e de comportamento
considerado exemplar para que convençam as empresas parceiras a lhes darem uma
oportunidade para o primeiro emprego, já que noções de Empreendedorismo também
lhes eram ensinadas. Porém, o contexto social dos mesmos era contrastante, estamos
falando de jovens que estudavam em escolas públicas do subúrbio do Rio de Janeiro,
e como vários comentavam, faltavam professores, a estrutura física das salas era
precária e faltava inclusive material escolar, ou seja, nos dando outro retrato da
realidade desses jovens.
Esses educandos eram considerados, a partir da autodeclaração da renda
mensal de cada responsável, como grupo em situação de vulnerabilidade social, ou
seja, expostos a toda e qualquer mazela de opressão e exclusão de uma sociedade
fortemente marcada por suas hierarquias. Tendo como base a realidade desses
jovens, desenvolvi as sessões de Teatro do Oprimido (TO), para tentar levá-los a
refletir sobre todas essas questões, inclusive as etnicorraciais, de forma que, através
do jogo democrático desenvolvido pelo TO, pudessem perceber os problemas
etnicorraciais de dentro para fora, sem que alguém precisasse lhes fornecer qualquer
conceito ou juízo de valor sobre determinadas posturas sociais. Eles que deveriam
perceber a necessidade de reflexão sobre as questões etnicorraciais dentro de sua
75
comunidade, já que ninguém melhor do que eles para entender os jogos de
convivência social que ali se estabeleciam.
Planejei a sessão de acordo com o tempo livre dos educandos, numa sexta-
feira. Eles permaneciam no Instituto nos seguintes horários: manhã das 08h às 11:00h
e tarde das 13:30 às 16:30h.
A ideologia do Instituto era de valorização do esporte educacional, ou seja,
todos os matriculados deveriam praticar algum tipo de esporte, paralelamente à
alguma outra atividade educacional. No projeto Campeão de Cidadania, os jovens
tinham aula de educação física uma vez por semana, nos outros dias seguiam com
aulas de língua portuguesa, matemática financeira, língua inglesa, informática, filosofia
e empreendedorismo. Como cada disciplina dispunham de 1hora e 10minutos de
duração, para as sessões de TO era pouco tempo para trabalhar os exercícios e jogos
cênicos propostos por Boal para se desenvolver uma técnica de teatro do oprimido.
Para que o TO fosse utilizado em sala de aula, os estudantes passaram por
duas fases. A primeira em que foram treinados enquanto atores, para construírem as
cenas, divididos em equipes; depois experimentaram eles mesmos serem
espectatores, quando puderam assistir e interagir nas cenas desenvolvidos por seus
colegas. Para aproveitar o pouco tempo que tínhamos, aproveitei o preparo físico
desenvolvido em campo e a ludicidade desenvolvida pelo esporte para já condicioná-
los ao espaço cênico, dessa forma eles já vinham para a sala com o corpo aquecido e
pronto para a ação.
A meta do instituto era 100 alunos para esse projeto, divididos em duas turmas
de 25 alunos pela manhã e duas pela tarde. Sempre começávamos o ano com mais
de 100 educandos, mas a desistência era grande no decorrer do projeto. Havia uma
tentativa de resgatar os mesmos, ligando para saber o motivo da ausência ou
desistência, visitando suas residências, mas essas tentativas obtinham pouco êxito. As
justificativas eram sempre as mesmas, ou tinham começado a trabalhar, ou
desanimavam com o projeto, por conta das inúmeras exigências, já que muitos eram
encaminhados para trabalharem como “Menor Aprendiz” nas empresas parceiras, e
nem sempre eles estavam dispostos a isso, já que ainda estavam em pleno Ensino
Médio em suas escolas regulares, e precisavam dar conta de uma dupla jornada de
estudos.
Então as aulas aconteciam da seguinte forma: enquanto uma turma estava em
sala trabalhando os jogos e os métodos do Teatro do Oprimido, a outra turma estava
76
na aula de educação física, praticando alguma modalidade esportiva. Infelizmente por
conta de uma divisão sexista na qual as meninas praticavam vôlei e os meninos
futebol, tive que trabalhar com grupos separados por gênero. Tentei conversar com as
coordenadoras do projeto sobre essa divisão, mas elas foram irredutíveis, porém na
segunda sessão de TO eu consegui misturá-los, porque a professora de Educação
Física tinha faltado, liberando-os da atividade. Dessa forma pude ter as turmas
divididas normalmente com grupos de meninos e meninas misturados.
Na primeira sessão, deixei os alunos livres para que expusessem todo o seu
conhecimento prévio sobre a questão: O que era opressão, para você? Aproveitei que
muitos já tinham aquecido o corpo em campo e sugeri jogos teatrais com mais
movimentos, para aproveitar a energia deles, principalmente dos meninos que
estavam um pouco desconfiados em deixar o campo de futebol para ter aula de teatro.
Durante o alongamento todos relembraram dos alongamentos já propostos pelos
professores em campo antes de uma partida, então fui desenvolvendo um jogo de
linguagem que me aproximasse do contexto esportivo. Propus o “Jogo do Espelho”,
onde cada um repetiria a ação do outro, como um reflexo no espelho, revezando quem
faria imagem real e a imagem espelhada. Selecionamos de cada dupla cinco
movimentos espelhados e pedi para que os mesmos a repetissem juntos, repassando
a noção de partitura. Ao final formamos uma partitura comum com toda a turma e uma
grande coreografia, que deixou os alunos mais soltos e mais a vontade com o espaço
cênico. Depois juntei grupos de quatro alunos, duas duplas, e o comando agora era,
formar quadros, imagens sem movimentos, estáticas, nas quais pudéssemos
identificar uma ação de opressão observada pelos mesmos em seus cotidianos, e
nessa ação identificamos quais os indivíduos participantes que representavam os
oprimidos e quais eram os opressores, trabalhando uma das Metodologias do
Oprimido, o Teatro Imagem. Cada grupo teve um momento para pensar e
experimentar suas ideias, ao final enquanto um grupo apresentava sua ideia os outros
assistiam como espectadores, mas já sendo instigados a participarem da cena como
“espectatores”, ação esperada nas apresentações de Teatro Fórum.
O desenrolar da aula se deu com as turmas totalmente envolvidas nas
discussões sobre opressões sociais que observavam em seus cotidianos, desde
violência doméstica, no trabalho, na escola, racismo, machismo, perseguição e duras
de policiais a pessoas inocentes, e ao questioná-los sobre o porquê daquelas atitudes
sempre respondiam Porque somos pobres, pretos e favelados. E ao levar os mesmos
a refletir sobre possíveis mudanças de pensamento e comportamento, observei que
poderia ser uma prática educacional eficiente para desenvolvermos o pensamento
77
crítico dos nossos alunos em relação às questões etnicorraciais, já que a maioria
daquelas cenas, assistidas naquele momento, eram cenas comuns no cotidianos
daqueles jovens, ou seja, um momento de reflexão sobre algo muito próximo a eles.
A aula toda foi direcionada com jogos teatrais, estruturada a partir da
metodologia do Teatro Imagem, sem nenhuma imposição para a reflexão de
determinado assunto que exigisse uma leitura de um texto, como acontecem nas aulas
expositivas, mas a discussão sobre a questão racial foi bastante fervorosa a partir do
material que eles trouxeram em sua memória e em seu corpo, e encontraram campo
para se manifestar ali no espaço cênico.
Figura IV.1 – Meninas praticando Teatro Imagem. FONTE: Acervo do autor.
Refletir sobre essas contribuições e propor a utilização do Teatro do Oprimido
em sala para explorar as questões etnicorraciais passou a ser um caminho possível
para a utilização da lei 10.639/03 e a 11.645/08. Foram ao todo 08 (oito) sessões de
T.O desenvolvidos a partir de dois planos de aulas. Nessas sessões, foi pedido que
cada aluno escrevesse suas percepções sobre as discussões que aconteciam, coma
recomendação de que o fizessem de forma simples, como um diário, que chamamos
de Diário de Bordo. Nele, os jovens deveriam escrever sem receio todas as suas
percepções, angústias, o que mais gostaram ou não gostaram da prática do teatro do
oprimido e das discussões levantadas. De um grupo de 60 a 70 alunos, que puderam
participar das aulas, somente 20 diários foram recolhidos, alguns se esqueceram de
fazer, com a desculpa de que não valeria nota, pois o processo de avaliação do
projeto era outro no qual pesava mais a frequência e os trabalhos direcionados ao
mercado de trabalho; outros alunos ainda disseram que não sabiam o que escrever,
apesar de toda a orientação dada para uma escrita simples. Enfim, o fato é que não foi
imposta uma cobrança maior na entrega dos diários, e entre os que foram recebidos,
78
alguns continham pesquisas sobre o que era o Teatro do Oprimido, copiada em parte
da internet, e em outros pude observar uma presença maior dos questionamentos e
observações pessoais deles. Foi a partir dessas observações deles, das minhas
enquanto professor pesquisador, e com o auxílio das fotografias que registraram essa
aula, que comecei esta pesquisa, na qual procurei entender como poderia discutir a
construção de identidades etnicorraciais em jogo nas encenações das técnicas de
Teatro do Oprimido.
Foram desenvolvidas quatro sessões de Teatro Imagem com esses jovens,
divididos em 04 turmas, duas no horário da manhã e duas no horário da tarde. As
sessões aconteceram em dois dias, utilizando primeiramente as técnicas do Teatro
Imagem, quando os alunos, divididos em grupos, foram sensibilizados a construir
quadros estáticos, espécies de fotografias humanas, nas quais o restante da turma
deveria identificar quais as relações de opressão estavam sendo representadas ou
reproduzidas, partindo para o desenlace da mesma, rumo à libertação. Procurei
trabalhar primeiramente com essa técnica, para incluí-los aos poucos na linguagem
teatral. Logo nas sessões seguintes, trabalhamos com as técnicas do Teatro Fórum,
que exige dos participantes uma inclusão em cena, com diálogos e movimentos, ou
seja, com uma estética mais elaborada, deixando sempre uma pergunta no ar, um
incômodo opressor, que faça com que alguém da plateia queira interferir em cena para
transformar aquela situação de opressão.
As sessões seguiam o seguinte planejamento de aula, com duração de 1:10h:
• Alongamento: despertar o corpo e deixá-lo disponível para a ação cênica;
Figura IV.2 – Meninos fazendo alongamento. FONTE: Acervo do autor.
79
• Aquecimento: acordar o corpo e a mente para o trabalho de improvisação
cênica, proposto através de um jogo, nesse caso o jogo proposto foi o Jogo do
Espelho Simples, proposto por BOAL(2012) em Jogos para atores e não atores, p.193.
Figura IV.3 – Meninas fazendo o jogo do espelho simples. FONTE: Acervo do autor.
• Montagem cênica: o grupo foi dividido em equipes, e cada equipe,
desenvolveu suas cenas, tendo como objetivo reproduzir alguma situação de
opressão.
a) Nas primeiras sessões trabalhamos com a técnica do Teatro Imagem, as cenas
eram estáticas, como fotografias, mas que possibilitavam uma leitura de uma situação
de opressão;
Figura IV.4 – Meninas em cena com o Teatro Imagem. FONTE: Acervo do autor.
80
b) Na segunda sessão para as sessões de Teatro Fórum, as cenas tinham
movimento e falas, com duração de no máximo 20 minutos, seguidas das
interferências da plateia para a resolução do problema posto em questão.
FIG. IV.5 – Alunos em cena com o Teatro Fórum. FONTE: Acervo do autor.
• Roda de Discussão: ao final o grupo discutiu sobre as relações de opressão
desenvolvidas em cena, quais as mais comuns que apareciam e o que cada um
pensava sobre as mesmas. Dessas “Rodas de Discussão” os alunos foram orientados
a desenvolver “Diários de Bordo”, nos quais cada um deveria relatar por escrito as
suas observações em jogo durante as sessões de Teatro do Oprimido.
Figura IV.6 – Eu com os alunos na Roda de Discussão. FONTE: Acervo do autor.
81
Tanto esses “Diários de Bordo”, quanto algumas imagens propostas pelos
alunos e registrados em fotografias, serão utilizadas nas análises. A pesquisa se
servirá mais de dados qualitativos do que quantitativos. Quais imagens de suas
identidades negras aparecerão em jogo, nas técnicas do Teatro do Oprimido, e quais
as relações de opressão relacionadas a elas?
Ao analisar seus escritos, observaremos que muitos fazem associação de
alguns temas desenvolvidos nas improvisações com acontecimentos observados em
seu próprio cotidiano, construindo narrativas biográficas para tentar entendê-las no
contexto do trabalho proposto.
IV.1 Os Diários de Bordo Essa expressão, “Diário de Bordo”, faz menção às anotações registradas por
viajantes em suas conquistas, em descobrir o que até então não era do conhecimento
de todos, e para conduzir essa busca, registrava-se tudo em “diários”, como uma
atividade de reflexão sobre determinados acontecimentos. Com esse intuito, é usada
assiduamente por pesquisadores acadêmicos em Artes Cênicas, através de suas
observações em pesquisa-ação, o que em teatro é chamado de work in process.
Segundo Maria Marcondes Machado, em seu artigo O diário de bordo como
ferramenta fenomenológica para o pesquisador em artes cênicas, publicado na
Revista Sala Preta, nº 2/2002, editada pela Escola de Comunicação e Artes –
ECA/USP: “O Diário de Bordo é a compilação de todas as anotações que um
encenador-criador faz durante a escritura, montagem e encenação do espetáculo”
(p.261). Esse escrito reflexivo pode se estender até os alunos, ou seja, a todos os
indivíduos envolvidos nesse trabalho em processo, o que ajuda a entender, qual a
visão de cada um no desenvolvimento/experiência do jogo proposto.
Através do “Diário”, os alunos são orientados a escreverem seu dia a dia nas
aulas de teatro, como se fosse um diário pessoal, com linguagem simples, valendo-se
do próprio vocabulário. Por conta disso, MACHADO(2002) nos alerta para as
características desses registros: “trata-se de um metatexto, de um escrito, misto de
realidade e ficção, inicialmente caótico e mais tarde reflexivo, meditativo, até mesmo
confessional” (idem).
Por causa do pouco tempo no desenvolvimento do nosso experimento de
Teatro do Oprimido, os textos dos alunos que entregaram seus diários parecem por
vezes desconexos, com poucas reflexões, como mencionado por MACHADO(2002),
mas mesmo assim, algumas pistas para as relações etnicorraciais nos são
82
apresentadas, e muito do cotidiano de opressão e preconceito por parte dessa
relações vêm à tona nesses escritos, já que apareceram antes em cena.
IV.2 Algumas Palavras dos Diários de Bordo
Nas sessões de Teatro Imagem e Teatro Fórum com esses jovens, cerca de 20
diários foram entregues. Desses selecionei aqueles que apresentassem um tom mais
reflexivo sobre as relações etnicorraciais discutidas em cena, para tentar analisar de
que forma a atividade despertou alguma outra forma de encarar suas posições sociais
em suas comunidades; alguns depoimentos, transcritos aqui, cuja autoria terá suas
identidades preservadas aqui por meio do uso de letras, como por exemplo o de B.R
de 17 anos:
“O mais interessante foi o fato de trabalhar com sentimentos, dando
liberdade para cada um expressar o que estava sentindo. Eu puder
refletir sobre várias coisas, e principalmente sobre o assunto dos
oprimidos e opressores, que foi o mais comum na aula, e infelizmente
também está presente em nosso cotidiano”. (B.R. 17 anos)
Se o aluno destaca que foi trabalhado o “sentimento”, podemos entender uma
certa busca a um sensível perdido no cotidiano escolar. É necessário então pararmos
e refletirmos sobre a seguinte questão: “a quem se destina essa educação?” O aluno
ao destacar que o trabalho ocorreu “dando liberdade” deixa-nos claro seu sentimento
de sujeito aprisionado a algo, que nesse caso pode ser a um sistema educacional que
orienta o “repasse de conhecimentos” e não a troca. É na “troca”, entretanto, que se
dá o processo de ensino-aprendizagem. O que fica da convivência com esses alunos
é exatamente aquilo que se torna evidente em seu dia a dia, um conhecimento de
mundo atuante, e isso fica bastante claro nas palavras do aluno B.R. ao constatar, a
partir das técnicas do TO, que seu cotidiano está repleto de relações opressivas,
camufladas com um sentimento de aceitação baseado na ideia de que “isso é normal”.
Observação encontrada também nas palavras de J.B 16 anos:
“Tive algumas reflexões sobre o opressor e o oprimido, porque em todos os lugares tem isso, sempre tem alguém para oprimir uma pessoa, pode ser na escola, no trabalho, na rua e em sua própria casa, podem falar coisas para você e você vai virar uma pessoa oprimida”.
A partir dessa fala podemos estabelecer uma correlação com questões
exploradas por Stuart Hall através dos Estudos Culturais desde os anos 70, em meio a
um turbilhão de transformações que refletem na sociedade multicultural que
presenciamos atualmente. Hall tem a preocupação de teorizar as novas formas de
comunicação que estreitavam as relações no dia a dia dos indivíduos, e as tensões
83
ocasionadas na cena cultural contemporânea. Assim como Augusto Boal, também no
mesmo período, ao presenciar um sistema de opressão militar, procura, com seu
teatro, deslocar os poderes sociais de opressão, através de métodos cênicos
destinados a todos os oprimidos desse sistema. Hall procura formular estratégias
culturais que possam deslocar as disposições do poder, o que ele, inspirando-se em
Gramsci, chamou de “guerra de posições”, procurando também focar a “questão
paradigmática da teoria cultural”, observando o social e o simbólico de forma não
reducionista.
Seguir esta análise dialogando com o campo dos Estudos Culturais e com a
obra de Stuart Hall (2009) parece ser bastante produtivo para entender as múltiplas
linguagens adquiridas no campo cultural contemporâneo; o autor nos direciona que os
estudos culturais dão conta de discursos múltiplos, assim como de numerosas
histórias distintas, o que pode nos ajudar a entender de que forma essas comunidades
constroem suas historias de resistência, perante ainda a uma forte opressão social.
Outro depoimento também recolhido dos “Diários de Bordo” produzidos nessas
sessões de TO:
“(...) fez com que enxergássemos coisas que não estávamos
enxergando. Eu passei a perceber algumas atitudes erradas que estava
tendo, passei a entender mais como me comportar, estar, me expressar,
lidar com as pessoas. Foi divertido e ao mesmo tempo com um
propósito(...)”. (D.M. 16 anos)
O aluno D.M. assume uma postura política ao identificar traços de opressão em
sua postura, para com os outros colegas e entende que uma mudança nessa relação
passa a ser um propósito em sua vida, e isso foi despertado no mesmo enquanto era
envolvido pelo processo cênico no qual o mesmo sentiu prazer em estar inserido,
podendo vir a ser um possível multiplicador dessa técnica em sua comunidade. Já que
a partir do momento que ele assume o Teatro do Oprimido como um espaço favorável
para um “propósito” social, ele começa a construir sua postura política, é o que
BOAL(2011) menciona ao afirmar que o indivíduo ao escolher fazer Teatro do
Oprimido já fez a sua escolha estética, ou seja, já tomou o partido dos oprimidos,
significando uma postura crítica e política.
Um termo interessante levantado por Hall (2009) é o de “mundanidade” dos
estudos culturais, termo tomado emprestado a Edward Said, um dos mais importantes
críticos literários e culturais palestino. A “mundanidade” seria especificamente a
“sujeira” em um jogo semiótico. “Estou tentando devolver o projeto dos estudos
culturais do ar límpido do significado, da textualidade e da teoria, para algo sujo, bem
84
mais embaixo” (p. 202). Isto pode ser lido como trazer de volta às camadas populares
uma arte que realmente dialogue com elas, que mostre suas identificações, que fuja
dos estereótipos forjados pelas classes elitizadas, que apresente outras formas
culturais como legitimas, e que se retome este espaço de poder que é o teatro, para
fazer dele um espaço rico para esses diálogos, já que ele pode contribuir muito para
essas discussões, como mencionado por J.C. 17 anos: “Foi uma aula bem
descontraída onde pudemos aprender e quebrar paradigmas através do teatro e de
uma forma bem divertida”.
Observar essas posturas de opressão no dia a dia e estimular um pensamento
reflexivo sobre tais atitudes é desenvolver em nossos alunos os seus
comprometimentos enquanto cidadãos politizados, em prol de uma sociedade mais
justa, como no depoimento de I.R. de 16 anos:
“Eu gostei pelo fato de nós fazermos isso no dia a dia sem nem ao menos perceber. No Teatro parado (Teatro Imagem) as meninas da tarde fizeram coisas que acontecem na escola, em casa, na rua em vários lugares que nós frequentamos com frequência”.
Uma autoavaliação crítica despertada nos alunos é um aprendizado para a vida
toda, e uma ação multiplicadora de atitudes positivas e democráticas para que esses
alunos possam interferir em suas comunidades de forma a reduzir as relações de
opressão vivenciadas por eles, seja através das agressões mais violentas ou nos
comportamentos considerados naturais no dia a dia, com a desculpa de serem apenas
simples brincadeiras, não enxergando o poder de opressão nessas pequenas atitudes,
como o observado pelo aluno J.T. 15 anos:
“Nessa aula aprendemos também que a gente às vezes até gosta de brincar, zombar das outras pessoas, mas não gosta quando as pessoas zombam de você. Isso nos fez refletir sobre todos os atos que comentemos e pensar antes de fazê-los, porque se não tiver opressor não terá oprimido”.
A partir desse depoimento, parte da finalidade das aulas - levá-los a refletir
sobre seus relacionamentos diários, e suas posturas preconceituosas e violentas para
com os colegas - foi conseguida, como bem observou J.T. 15 anos: “Sendo uma
maneira mais fácil para entender o assunto e captar a mensagem enviada para nós
em forma de uma brincadeira”, mencionando o tom lúdico dos jogos e exercícios do
TO. Repensar criticamente essas atitudes foi o grande ganho de nossos alunos, ao
enxergarem nesses comportamentos, mesmo em tom de brincadeiras ou em lances
de menor importância, que eles contribuíam para propagar determinadas posturas de
discriminação, como por exemplo, a etnicorracial. E esta foi observada em alguns
escritos e imagens encenadas. Como, por exemplo, no depoimento abaixo:
85
“(...) e ali eu fiquei muito sentida, porque isso já aconteceu comigo. As
pessoas me ofendiam e eu ficava quieta, porque o calado vencerá. As
pessoas são muito racistas, isso me ofendia muito, me chamavam de
macaca e outras coisas. E eu acho isso errado, não é por causa da cor,
do cabelo, que nós não somos humanos, não tem que ser tratado como
um bicho(...)”. (M.S. 16 anos)
A identificação com seus sentimentos em cena deve partir de uma situação de
opressão para a libertação desses indivíduos. M.S. relembrou que uma das cenas
propostas pelo grupo, o mesmo já tinha vivido em seu dia a dia, mas aceitava com um
discurso religioso cristão de que: “o calado vencerá”. Compreender a continuidade do
seu discurso, e o entendimento sobre aquela relação como uma postura de opressão,
preconceito e racismo, faz-nos enxergar uma mudança transformadora no seu modo
de pensar e de agir. Ela reconhece claramente que “as pessoas são muito racistas”,
ao mencionar que por vezes era chamada de: “macaca e outras coisas” (a palavra
“macaco” apareceu em cena em uma das improvisações), mas deixa claro a sua
posição política em relação a isso: “e eu acho isso errado”, houve uma quebra com o
pensamento passivo, manso e religioso, para uma postura mais ativa de buscar
mudança, explicitando seus motivos: “não é por causa da cor, do cabelo, que nós não
somos humanos, não tem que ser tratado como um bicho”. O opressor ou o oprimido
sai do seu estado de opressão, aceitação, o qual Boal chama de sujeito reprimido, e
parte para a libertação.
Todos os alunos se sentiram envolvidos no processo e nas discussões. Todos
contribuíram de alguma forma para refletir sobre os principais problemas de opressão
presenciados em sua comunidade, principalmente as de origem etnicorraciais, e
entenderam o objetivo das sessões de TO: “Através do que eu aprendi na aula eu
estou levando para o meu dia a dia, e usando da melhor maneira possível, e aulas
como essa nós sempre temos que ter” (D.M. 16 anos), ou através das reflexões de
J.T. 15 anos: “Além dessa aula poder ajudar muitas pessoas que são oprimidas, vendo
nisso uma saída para acabar com esses problemas”.
A partir do despertar para essas reflexões, a atividade propõe que os mesmos
interfiram na cena de opressão que incomodou e faça, ele mesmo, sua libertação.
Essa interferência cênica é como se fosse um preparo para uma interferência social,
em seu cotidiano. É como se fosse um “ensaio para a revolução”, como defendia Boal,
ao analisar a prática do Teatro do Oprimido.
86
IV.3 Algumas Fotografias das Aulas
Nas primeiras sessões de Teatro do Oprimido, trabalhamos com a técnica do
Teatro Imagem. Primeiramente em duplas, os alunos deveriam criar fotografias que
expressassem alguma cena de opressão observada em seus cotidianos. Depois os
outros alunos deveriam interferir na cena, para mudar aquela situação de opressão.
Ao final, voltamos a primeira imagem e cada aluno iria compor a cena, deixando claro
que posição ocupavam em relação aquela opressão. Em seguida, fazia-se uma roda
de discussão, na qual refeltimos sobre cada uma das cenas, que foram devidamente
registradas, para nos auxiliar nessa análise.
Uma observação que ficou bem clara durante a criação das cenas, foi que em
sua maioria, as meninas construíram cenas de caráter privado, internas, como a casa,
a escola, as igrejas etc.; enquanto os meninos construíam cenas mais no caráter
público, externo, como a rua, por exemplo, lembrando DAMATTA(1986) que define
“casa” e “rua” como algo além do simples espaço físico, para o autor, “são também
espaços onde se pode julgar, classificar, medir, avaliar e decidir sobre ações, pessoas,
relações e moralidades” (p.33). Enquanto a “rua” vai se desenhando como um espaço
do movimento, em contraste com a tranquilidade e calmaria da casa, essas definições
também vão demarcando o gênero que “pode” frequentar cada um desses lugares.
FIG.IV.7 – Meninas em cena com o Teatro Imagem –Relação de Trabalho Doméstico. FONTE:
Acervo do autor.
Uma das primeiras cenas mostra uma relação de trabalho doméstico, onde a
“patroa”, através do dedo em riste demosntra uma relação autoritária de poder sobre
87
sua funcionária, que não revida, abaixa os olhos e aceita aquela postura. Uma clássica
cena de opressão, realizada dentro do espaço doméstico, e muito discutido pelo TO
através do grupo Marias do Brasil, constituído com empregadas domésticas,que
discutem as formas de opressão construídas nessa relação de trabalho, que ainda
caminha em busca de seus direitos, como é o caso da PEC das Domésticas.
Durante a roda de discussão, um quesitonamento foi feito, já que eles eram
livres para desenvolverem suas cenas, inclusive na determinação dos papéis; um
aluno perguntou: Por que elas tinham escolhidos a que era negra para ser a doméstica
e a branca para ser a patroa? Sim, por quê? Elas não tinham uma resposta, só
falavam que era normal encontrar pessoas negras como empregadas domésticas.
Dessa afirmação, perguntei em que outros empregos vocês consideravam “normais”
encontrar pessoas negras? Seguiram uma lista de empregos tais como: pedreiro, gari,
vendedor ambulante, comerciante, eletricista, etc. Quando questionei se era comum
ver negro como médico ou advogado, eles foram suscintos: Não, né professor?! Para
esses tem que ter faculdade! Você já viu a quantidade de negros na faculdade? E a
discussão continuou em torno da formação profissional do negro em nosso país, e a
democratização do acesso a um ensino superior. Houve uma unanimidade entre eles,
em aceitar o sistema de cotas para negros em universidade como favorável para a
mudança desse quadro de exclusão. As oportunidades não são as mesmas para
quem é negro ou morador de periferia nesse país, diziam eles, citando inclusive
algumas experiências próprias, por exemplo, quando iam fazer alguma entrevista
preferiam levar comprovante de residência com outros endereços.
FIG.IV.8 – Meninas em cena com o Teatro Imagem –Relação de Humilhação ou Bullying na
escola. FONTE: Acervo do autor.
88
O espaço educacional também foi marcado por esses alunos como um campo
bastante fecundo para a manifestação das mais variadas formas de opressão, como já
citado e embasado teoricamente aqui, nos capítulos anteriores. Essa opessões
seguem os graus de hierarquias de poder estruturadas no espaço escolar, onde o
aluno, indivíduo que fica na base desse sistema, acaba sendo a parte mais afetada e
consequentemente excluída, ou tendo que conviver com uma perspectiva de fracasso
escolar.
Uma outra discussão levantada após as cenas e as interações foi a de que “até
entre os oprimidos existe um opressor!”. Trazendo novamente o racismo para o
debate, os alunos mencionaram o fato dos negros também serem racistas, ou o velho
discurso do racismo reverso, no qual os negros têm preconceito contra os brancos, e
ainda levantaram a questão de classe afirmando que quando se tem dinheiro tudo
muda. Todos esses questionamentos surgiram logo após a encenação representada
logo abaixo
FIG.IV.9 – Grupo de Meninas em cena com o Teatro Imagem – Relação de Opressão na
escola. FONTE: Acervo do autor.
Dividimos então a discussão em três pontos, já que a cena despertou três
pontos conceituais sobre as relações etnicorraciais que deveríamos discutir com os
jovens. O primeiro ponto, em relação ao racismo praticado pelos negros, todos falaram
a popular frase por vezes dita pela maioria dos defensores do mito da democracia
racial, quando pronunciam que “os negros são mais racistas que os brancos!” para
começar a reflexão sobre o assunto, pedi que me conceituassem o que é ser “branco”
e o que é ser “negro”, e aos poucos fomos chegando a conclusão de que ser “branco”
é ser um indivíduo que possui privilégios já definidos para eles, antes mesmo deles
89
nascerem, e que por isso acaba sendo um ideal a ser alcançado por toda e qualquer
pessoa. Segundo SOVIK(2009) ser branco em nossa sociedade ainda fortemente
marcada com valores coloniais, é ter pele branca e feições europeias, como o cabelo
liso, basta que o indivíduo tenha duas ou três dessas características para ser
considerado branco no Brasil, e ser identificado por essas caracterísitcas implica em
dizer que esse indivíduo: “desempenha um papel que carrega em si uma certa
autoridade e que permite trânsito, baixando barreiras” (SOVIK, p.36) Se você cresce, é
educado e criado em meio a uma sociedade que a todo instante lhe impõe
massivamente, inclusive com o auxílio dos meios de comunicação de massa, que ser
branco é alcançar um status, e que ser negro ainda está atrelado às consequências da
escravidão e da eterna força do trabalho, basta olharmos as imagens ainda
propagadas pelos livros didáticos, com que ideal os indivíduos irão querer se
identificar e buscar traçar suas vidas? Apesar do poder da branquitude ser mais a
nível social e cultural, ou seja, “ser branco não exclui ‘ter sangue negro’(...)
Branquitude não é genética” (ibidem), nosso racismo é também fortemente ditado pela
cor da pele, ao que Kabenguele Munanga chama de “Geografia do Corpo”, por mais
que o indvíduo venha a ter condições financeiras suficientes para ascender
socialmente, ele sempre irá sofrer as desconfianças da polícia durante uma blitz, ou
ser monitorado por seguranças em lojas por o associarem a possíveis deliquentes,
chegando ao segundo ponto sobre “basta ser rico!”, só as discussões sobre classe
não dão conta das tensões raciais em nosso país.
A partir disso, concluímos que, é impossível atribuir aos negros uma função de
“opressor” mediante a sua história de luta e resistência, então o terceiro ponto sobre o
racismo reverso é algo que não se sustenta. A história e a cultura negra estão
marcadas em seus corpos, em sua ancestralidade, e não é negando-a ou substituindo-
a, como no caso da branquitude, que conseguiremos uma sociedade mais
democrática e justa. É deixando-a aparecer, apesar dos incômodos que ela provoque
em determinados grupos. É fazendo com que ela viva, tão importante e legitimidade
como qualquer outra história e cultura, mas sempre lembrando que ela não é igual as
outras histórias exatamente por conta das suas particularidades.
As cenas seguiram tendo inclusive exposto relações de opressão dentro de
casa, sofridos a partir do relacionamento com pais, mães ou qualquer outro
responsável, que exigiam daqueles jovens alguma postura social que apesentassem
valores cristãos. A maioria desses alunos eram praticantes fervorosos da religião
conhecida como “Evangélica”, e tentavam seguir a todo custo esses valores,
defendidos em seus discursos, por vezes carregados de preconceitos, com a
90
justificativa de que eram “pecado” determinadas posturas. Exisitam então, algumas
cenas de expulsão do próprio lar, pelo chefe ou a chefe da família, porque a garota
estava saindo com um garoto que não era da sua igreja, ou porque deixou de
frequentar a igreja e queria ir aos bailes, ou ao samba, etc. demonstrando uma forte
imposição de valores. O termo macumba apareceu em uma cena, quando uma
menina queria ir ao samba e o pai falou que aquilo era coisa do capeta. Conhecer a
história de resistência do samba tornou-se necessário para que aqueles jovens
pudessem refletir a carga de preconceito depositada em um ritmo musical, que
extrapola os limites culturais e tornou-se um modo de vida dos grupos que o praticam,
e o quanto esse ritmo tem colaborado em alçar a cutura negra em outros patamares
mais elevados.
A expulsao do lar, como menciona DAMATTA(1986) não é só a expulsão de
um lugar de calmaria por ser o local onde dormimos, comemos, nos abrigamos dos
fatores climáticos etc., a casa é “um espaço profundamente totalizado numa forte
moral. Uma dimensão da vida social permeada de valores e de realidades múltiplas”
(p.24-25). Ou seja, esses dois lugares devem ser tratados para além de meros
espaços geográficos, e nossos alunos nos trouxeram essa dimensão em cena, são
dois modos de se entender, explicar e falar do mundo.
FIG.IV.10 – Grupo de Meninas em cena com o Teatro Imagem – Cena de expulsão do lar.
FONTE: Acervo do autor.
Entre os meninos, muitas cenas de perseguição nas ruas, seja fugindo de
policiais, seja de bandidos. Cenas de vendedores ambulantes de trem, ônibus, ruas.
Até nas cenas em que são mencionados a escola e os amigos, são sempre em
91
lugares abertos, externos. Apenas as cenas de opressão no trabalho e em
penitencária que pudemos perceber os espaço internos cosntruídos pelos meninos.
FIG.IV.11 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena em uma penitenciária.
FONTE: Acervo do autor.
A simbologia da palavra “rua”, como define DAMATTA(1986), não pode ser
vista somente como oposição ao da “casa”. São diferentes e os dois se
complementam. A rua é o espaço da luta, é local perigoso, onde devemos respeitar
autoridades que não são os da família. As relações começam a ser mediadas pelas
construções históricossociais de luta e perseguição de determinados grupos, contra o
domínio de outros grupos que sempre estiveram no poder, e fazem de tudo para
mantê-lo.
FIG.IV.12 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de violência e luta.
FONTE: Acervo do autor.
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Outra reflexão feita pelo grupo foi a de que corpo dos meninos em cena
demonstravam muito a luta contra a violência, principalmente quando os espaços
eram externos, como a rua por exemplo. Quando a cena se realizou no espaço interno
do trabalho, percebemos um corpo mais passivo e aceitação sobre determinadas
atitudes de opressão sofridas por parte de seus patrões. Até mesmo durante as
intervenções da plateia, diferentemente do que aconteciam quando as cenas eram na
rua, predominava a tentativa do diálogo, como a cena não permetia a fala, os corpos
eram mais esvaziados daquela energia da luta. Uma das explicações encontradas por
eles foi, que precisavam daquele emprego e podiam ser demitidos do trabalho caso
contrariassem o empregador.
FIG.IV.13 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de opressão no
trabalho. FONTE: Acervo do autor.
Nas cenas de perseguição, diferente do que aconteceu com as meninas, que
contruíram cenas determinando os papeis estigmatizados para a população negra,
como foi o caso em relação aos empregos, e só depois perceberam e refletiram o
porquê, esses durante o processo de ensaio das cenas, começaram a se questionar e
trouxeram a seguinte reflexão para o grupo: “É uma cena de perseguição de polícia e
bandido! Mas porque só tem pretinho fazendo os bandidos? Heim professor? Isso já
um preconceito!” Nesse mesmo momento retornei a pergunta para eles, já que eles
eram livres para definirem isso, por que dividiram os personagens daquela forma?
Então eles perguntaram: ”Podemos trocar?” Vocês são livres em cena. E assim foi
feito.
93
FIG.IV.14 – Grupo de Meninos em cena com o Teatro Imagem – Cena de perseguição.
FONTE: Acervo do autor.
Durante a roda de discussão, os alunos que fizeram os policias relataram que
não gostaram de fazer o opressor, porque não concordavam com aquele tipo de
opressão. Que sempre viam pessoas morrendo inocentemente nas comunidades onde
as polícias invadiam procurando traficante. Que nem queriam saber quem eram,
bastava sem negro e está na rua, que já seria vítima fácil. Então relembramos que um
dos objetivos do Teatro do Oprimido, não é fazer com o indivíduo saía do estado de
oprimido e ocupe o do opressor, mas sim que procure refletir como aquela situação de
opressão se controi e busque alternativas para descontruí-la, senão teremos uma
hierarquia de opressões, onde um vai oprimindo o outro, num ciclo sem fim, como
identificado pelas meninas e encenados abaixo:
FIG.IV.15 – Grupo de Meninas com o Teatro Imagem – Cena de vários tipos de opressão.
FONTE: Acervo do autor.
94
Durante as sessões de Teatro Fórum, os alunos puderam perceber a
importância da palavra e o poder que ela exerce em propagar determinadas posturas
de preconceito, principalmente as etnicorraciais. As discussões sobre como devem
chamar os amigos se de “negro”, “preto” ou “afrodescendente”, conduziram as
primeiras reflexões. Alguns mencionaram que gostavam de ser chamados de
“pretinhos” pelas meninas porque era uma forma carinhosa, mas se algum
desconhecido os chamassem assim, já viriam de outra forma, por quê? Entender a
carga semântica da palavra, e que ela deve sempre vir contextualizada pela siutação
em que ela foi dita, nos levará a entender as reais siginifcações do uso da palavra. Em
seguida conhecer um pouco da história do movimento negro, das conquistas e
realizações a partir da utilização da grafia “negro” os levaram a entender porque essa
palavra ainda causa muito incômodo em determinados grupos, porque ela vem
carregada com todas essas conquistas históricas, de direitos e de liberdade.
FIG.IV.16 – Grupo de Alunos em cena com o Teatro Fórum – Cena de opressão de gênero.
FONTE: Acervo do autor.
Como os meninos ainda estavam com seus corpos mais ativos em cena, e com
isso o direito das falas acabam sendo em sua maioria deles, sugeri que fizéssemos
uma troca de gênero entre eles. Os meninos irão representar meninas e vice-versa.
Houve um atrito, um dos garotos que demonstrava uma performance social
efeminada, mas que não falva sobre isso, foi questionado pelos outros meninos como
ele iria se comportar? Pensei que isso fosse causar algum constrangimento para esse
aluno, mas intervi e deixei claro que no jogo cênico cada um deve fazer aquilo que não
lhe cause desconforto, e isso valia para qualquer um na sala. Porém o garoto falou, eu
sou menino e se a regra é meninos serem meninas, vou fazer melhor do que vocês!
95
Durante essa experimentação o que pudemos perceber foi uma transformação
total no corpo das meninas e no tom de suas falas. Ficaram mais agressivas e
gritavam muito, como se quisessem fazer isso há muito tempo. Por vezes eu tinha que
interferir para que os meninos não se machucassem, porque elas os pegavam com
muita força, e isso se repetia a cada interferência durante as possbilidades de
resolução do fórum. As meninas reproduziam atitides de domínio masculino sobre
elas, brigas e violências, etc. que segundo eles, nas rodas de discussão eram comuns
em seu cotidiano.
Ao final de cada sessão, a pedido deles mesmos, faziam uma sessão de
abraços, fui surpreendido pelo pedido naquele momento, mas depois refletindo sobre
as cenas, era uma carga muito pesada de contato com atitudes violentas que os
mesmos possivelmente tenham tido contato, e revivê-las naquele momento com a
força do drama provocado pelo teatro, e com a possibilidade de transformação
daquela realidade promovida pelo Teatro do Oprimido, aquele abraço simbolizava um
momento particular e especial de que, apesar de todas aquelas experiências, um novo
mundo era possível, e que eles estavam dispostos em tentar, ainda mais ao
perceberem enquanto agentes dessa mudança, e que a mesma pode ser feita através
do jogo lúdico do teatro, que apesar de dura a realidade pode ser poetizada, pode ser
repensada por todos, e que a exposição deles em cena simbolizava que os mesmos
existiam enquanto indivíduos, marcando seu lugar no mundo e sua postura política
nele, que não eram mais um, um grupo, ou uma massa, ao imprimirem suas
identidades e individualidades compartilhadas em cena eles passavam a existir.
FIG.IV.17 – Alunos no Teatro Fórum – Sessão de abraços. FONTE: Acervo do autor.
De acordo com essas experiências, através das falas dos alunos em seus
diários de bordo ou dos comentários surgidos durante a prática de Teatro do Oprimido,
96
pudemos constatar a eficácia dessa metodologia de ensino, para as discussões sobre
as relações e tensões etnicorraciais, já que a partir do jogo cênico teremos um espaço
fecundo para debates e reflexões, que por conta da ludicidade do teatro consegue
inserir os alunos nessa discussão de forma prazerosa.
IV.4 Outros lances são possíveis
Após a experiência aqui relatada, e de acordo com sugestões da banca de
qualificação, após um ano de pesquisa e estudos sobre as relações etnicorraciais,
consegui organizar mais algumas aulas com o Teatro do Oprimido para as discussões
etnicorraciais, agora com mais conhecimentos teóricos adquiridos nesses meses nas
disciplinas do Mestrado, e observar de que forma o meu olhar de pesquisador tenha
mudado.
Consegui espaço na escola Educandário São Pedro de Alcântara, escola que
apesar de particular tem como missão oferecer uma educação de qualidade para
grupos que dispõem de poucas rendas, recebendo inclusive doações para
manutenção de parte da sua estrutura, atendendo hoje em torno de 200 crianças, no
bairro de Todos os Santos, na cidade do Rio de Janeiro. Desenvolvi quatro sessões de
TO, na classe do 5º. ano do Ensino Fundamental I. Em torno de 23 crianças, entre 10
a 12 anos, participaram das aulas que aconteceram durante os meses de outubro e
novembro, dentro das aulas de arte, com duração de uma aula regular, ou seja, 45
(quarenta e cinco) minutos. Os alunos conheceram e praticaram exercícios e jogos
sugeridos por Boal, e em seguida experimentaram as técnicas do Teatro Imagem,
Teatro Fórum e Teatro Jornal, e estão em fase final de montagem de um espetáculo
sobre os preconceitos em torno do vírus ebola.
Por conta do fraco desempenho observado nos diários de bordo desses
alunos, em parte devido à idade, mas normal para MACHADO (2002) já que esses
escritos inicialmente podem vir em desordem e muitas vezes desconexos, uma escrita
caótica, mas que revelam muito dos nossos alunos, porém demonstraram uma
imaturidade reflexiva, para colocar em suas próprias palavras o que sentiram durante
as aulas, nos mostrando com isso que quanto mais cedo pudermos trabalhar com
nossos alunos temas reflexivos, e preferencialmente através do Teatro do Oprimido,
melhor será sua leitura de mundo. Alguns alunos não conseguiam identificar o que era
uma cena de opressão, aliás, esses termos “oprimido e opressor” já eram bastante
estranhos para eles. O meio educacional fez um trabalho bastante pesado em torno da
palavra “Bullying”, que passou a ser mais comum do que uma palavra em língua
portuguesa “Opressão”, embora seja evidente que as duas palavras não significam a
97
mesma coisa. Uma das saídas para que o diário fosse feito de forma prazerosa, foi
permitir-lhes também fazer desenhos das cenas assistidas, e depois que dessem um
depoimento.
FIG IV.18 – Desenho de um aluno do 5º. ano, representando uma das cenas apresentadas.
FONTE: Acervo do autor.
Esse desenho foi feito em um diário de bordo de um aluno de 10 anos, no qual
o mesmo expressou o que mais lhe chamou atenção naquela sessão de TO. A cena
era uma briga entre garotas no pátio da escola, demonstrando o bullying, e o
preconceito dentro das escolas.
FIG.IV.19 – Meninas em cena de Teatro Imagem sobre Preconceito na Escola. FONTE: Acervo
do autor.
No depoimento escrito em seu diário de bordo, a aluno expôs que ficou muito
triste em ter que fazer a cena das agressões, mas que já tinha visto colegas passarem
por aquilo, e achava aquilo uma grande covardia, que já não concordava com aquela
98
atitude, e depois ao encená-la, sentiu na pele um pouco do que suas amigas poderiam
ter passado e sentiu-se triste e contra tudo aquilo.
Durante as aulas com as técnicas de Teatro Imagem, muitas discussões
importantes foram retratadas pelos alunos, como por exemplo, o caso do jogador
Aranha, xingado pela torcida do Grêmio como “macaco”. Os meninos reproduziram
uma cena de racismo que se tornou comum no futebol, através do ato de jogar
bananas para os jogadores negros que estejam com baixo desempenho no jogo.
FIG.IV.20 – Meninos em cena de Teatro Imagem sobre Racismo no Futebol. FONTE: Acervo
do autor.
Através do fórum no final da cena, vários alunos entraram em cena e fizeram o
seu fechamento sobre a cena. A cena se passava durante um jogo de futebol, onde
um jogador já perdido vários gols, e de repente a torcida começa a vaiá-lo, logo em
seguida jogam uma banana no campo. O primeiro aluno comeu a banana, como fizera
o jogador brasileiro Daniel Alves, durante um jogo do Barcelona, no começo do ano de
2014. Outro aluno falou que não bastava só comer, que aquilo não iria resolver o
problema do racismo em campo, tinha que ignorar, pois era só uma banana. Outro
aluno falou que não podia ignorar, nem comê-la, tinha que devolver para quem jogou,
e jogou a banana de volta para a torcida. A cada solução discutíamos o racismo
velado em nossa sociedade, e a relação com a comparação ao animal “macaco” como
forma de marcar os negros e negras como se fossem intelectualmente inferiores por
se aproximarem mais do macaco do que do branco.
Dessa vez eles tiveram oficinas de acordo com a Estética do Oprimido de Boal,
que se desenvolve a partir dos três elementos: Imagem, Palavra e Som. Na oficina de
imagem, construímos através de desenhos alguns possíveis personagens, cenários,
99
figurinos etc. Durante a oficina de som, buscamos produzir uma percussão corporal,
ouvimos os sons do ambiente e algumas músicas que falavam sobre preconceito e
racismo. Na oficina da palavra, construímos textos, falas, frases, que significavam algo
para nossa cena.
Através das técnicas do Teatro Jornal, feito com o jornal do próprio dia, cada
aluno selecionou uma notícia que veiculasse algum tipo de opressão, selecionariam
frases da notícia, e experimentamos construir cenas. Essas frases podiam ser ditas,
cantadas ou exposta em forma de desenho, cenário (instalação) ou figurino. Depois de
experimentarmos essas ideias em vários tipos de notícias, uma foi escolhida pelo
grupo para montarmos nosso Teatro Fórum, especificamente a matéria que falava
sobre o engano do diagnóstico do paciente que suspeitavam que tivesse o vírus ebola,
e todo o discurso de preconceito e racismo sofrido pelo mesmo.
Com isso, constatamos que trabalhar com o Teatro do Oprimido e as relações
etnicorraciais torna-se prazeroso porque levantamos essas discussões de forma lúdica
e leve, mas sem esvaziar o teor político das relações etnicorracias presentes no
cotidiano de brasileiros e brasileiras, que torcem por dias melhores.
100
Conclusões
Para entendermos como uma prática cultural poderia ter uma grande influência
nos “deslocamentos” de poder, pretendidos por Stuart Hall (2009), basta que
entendamos como a máquina ideológica do poder opera em favor de uma
massificação e de uma espécie de estética anestésica, defendida por Augusto Boal
(2009), ao citar como jornais, televisões, música, teatro, cinema, etc., tornaram-se
armas letais daqueles que procuram a todo instante manter as relações de
poder,contra os excluídos socialmente. Como uma “palavra de ordem”, precisamos
retomar esses espaços artísticos, que Boal chama de estética, a qualquer custo!
A aproximação do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, com a Pedagogia do
Oprimido de Paulo Freire, vai além da utilização da mesma palavra. Boal trás a sua
metodologia de fazer teatro, o que Freire despertou para o ensino: transitividade, a
democracia e o diálogo. Assim como no ensino todo mundo poderia ensinar e
aprender, no teatro todos podem atuar, incorporando “a proposta que cada pessoa
construa o seu conhecimento, com liberdade, autonomia, construindo ele mesmo o
seu caminho
A necessidade de criar estratégias de combate à exclusão social e ao
preconceito, exige a transformação da escola em um espaço efetivo para o
reconhecimento e a valorização da cultura africana e afro-brasileira, já que nele, além
de podermos encontrar alguns dos vários conflitos de relações sociais, dispomos de
pedagogias, nas várias áreas educacionais, para levarmos os sujeitos a refletirem
sobre essas condições, indo ao encontro do pensamento de Nilma Lima Gomes (2005,
p.147), a qual defende que “colocar as pessoas diante de seus próprios valores
raciais, levando-as a questioná-los, a partir do momento em que se encontram numa
situação de discriminação semelhante àquela vivida pelo outro, pelo diferente”, poderá
fazer com que esse sujeito entre em contato diretamente com situações as quais o
levarão a um pensamento crítico das relações etnicorraciais nas quais o mesmo possa
estar envolvido. O que aproxima esse conceito das técnicas do Teatro do Oprimido,
ditado por Boal (1996), é o fato de que “o ser humano pode ver-se no ato de ver, de
agir, de sentir, de pensar. Ele pode se sentir sentindo, e se pensar pensando” (p. 27)
Esta pesquisa tem como referencial um estudo de caso com práticas de Teatro
do Oprimido em dois espaços educacionais, um reconhecido como informal, por ser
uma organização não governamental (ONG); e o outro um espaço formal e de ensino
regular, atendendo crianças e jovens desde a educação infantil até o ensino
fundamental I. Entre os dois espaços, trabalhamos com a faixa etária de 10 a 17, o
101
que significa que este projeto se inseriu nas classes do 5º ano até o 9º ano do ensino
fundamental II.
Entre os problemas encontrados, o tempo de hora/aula destinado à disciplina
de Teatro nas escolas regulares foi um grande entrave no desenrolar das cenas, já
que contávamos apensa com 45 minutos, semanais, para desenvolvermos, os jogos e
exercícios de preparação para o Teatro do Oprimido, seguidos das técnicas
específicas para construirmos as cenas, o que requer um tempo maior de preparação
desses alunos para assumirem as cenas e suas discussões durante a etapa do fórum,
com a interferência da plateia. Esse tempo para o processo muitas vezes foi
sacrificado por conta do calendário escolar e suas datas comemorativas, que exigem
apresentações artísticas temáticas dos alunos, de acordo com cada evento, o que por
vezes acaba interferindo no processo de preparação dessas estratégias político-
educativas.
Outro problema encontrado no espaço escolar é em relação especificamente à
temática étnica e racial. Poucos são os professores que encaram essa discussão em
sala de aula, alguns por terem um certo receio em levantar essas discussões, pela
falta de informação e despreparo em lidar com o assunto; outros por simplificarem e
identificarem a história e a cultura negras com a religiosidade, praticam a intolerância
religiosa preferindo não tratar do assunto, por descordarem em seus credos; outros
ainda por acreditarem no mito da democracia racial, e que o Brasil é um país cordial
com seus negros, acreditando que aqui todos são igual por sermos uma sociedade
miscigenada. Por conta desses problemas, ainda encontramos determinadas barreiras
em tratar das relações etnicorraciais dentro do espaço escolar, a ponto de leis como é
a 10.639/03, serem de caráter obrigatório para poderem ser praticadas, e mesmo
assim ainda encontram uma resistência muito forte.
O Teatro do Oprimido, atendendo às questões referentes às relações
etnicorraciais, surge então como uma proposta pedagógica antirracista, na qual
poderemos tratar das questões raciais de forma dinâmica e democrática,
proporcionadas a partir do jogo cênico e da interação de plateia e palco, definidos nos
fóruns de TO, com o intuito de resgate dessa identidade negra e consequentemente
da sua valorização rumo a uma autoafirmação e à libertação de um sistema opressor,
que dita as regras de exclusão presentes na nossa sociedade Como revela
Desgranges(2010, p.72) essas sessões de TO têm o intuito de constituir-se no ensaio
de um processo de transformação, ou em “um ensaio da revolução” que os levará a
experimentarem em sua vida.
A pesquisa concentrou-se no Teatro do Oprimido enquanto uma metodologia
de ensino, ou seja, em sua utilização dentro da sala de aula, seja na educação formal
102
ou na informal, com os agentes ali presentes, alunos e professor, este na função de
curinga, aquele que organiza, direciona e conduz os jogos, exercícios e discussões
das cenas; aqueles enquanto atores ou públicos, interagindo tanto na estética do
teatro do oprimido, responsabilizando-se pelas imagens, sons e palavras no processo
de montagem das cenas, ou na função de plateia que participa ativamente nas
interferência durante os fóruns, propondo outras possibilidades de resolução da
situação problema.
Uma próxima reflexão e estudo poderia ser o contato desses grupos de alunos
praticantes de Teatro do Oprimido com a comunidade escolar, ou seja, de que forma
as reflexões levantadas em sala de aula sobre as questões etnicorraciais seriam
recebidas por todos os outros agente participantes do espaço escolar: - pais,
familiares, diretores, coordenadores, professores, funcionários em geral que
desempenham suas funções dentro da escola. Acredito que esse possa ser um
próximo passo, já que o primeiro já foi dado, que foi a preparação destes alunos para
a cena e para a prática do TO, enquanto sujeitos artísticos, criativos e políticos, que ao
praticarem teatro repensam a sociedade e a possibilidade de um futuro melhor.
Concluo refletindo sobre as palavras de Terry Eagleton (2011), e sua obra A
ideia da Cultura: “A cultura é, assim, sintomática de uma divisão que ela se oferece
para superar. Como observou o cético a respeito da psicanálise, é ela própria a
doença para a qual propõe uma cura” (p. 50). Imerso a tantos caminhos, sigamos
refletindo, e reflitamos sobre esses caminhos seguindo!
103
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