As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 1
Mrcia Dadalti
CONDIES DE VIDA: VIVER NA COMUNIDADE SAGRADO CORAO DE JESUS,
EM MARLIA- SO PAULO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em xxxxx. rea de xxxx, da Faculdade de Medicina de Botucatu Unesp, para obteno do ttulo de mestre.
Orientador:
Botucatu 2006
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Ficha catalogrfica
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Dedicatria
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Agradecimentos
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sumrio
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RESUMO________________________________________________ 1001. AS QUESTES ENVOLVIDAS: DO PESSOAL AO MACRO-
ESTRUTURAL_________________________________________
1.1 Apresentao: a trajetria pessoal em direo C.S.C.J.........
1.2 Este mundo to desigual...........................................................
1.3 Base material da sociedade na conformao das condies de vida e sade de uma populao favelada............................
1.4 Ter um abrigo: de necessidade direito fundamental X a favela.........................................................................................
1.5 Questes de famlia e gnero: outras esferas fundamentais nas condies de vida e sade.................................................
1.6 Refletir sobre a sade e a doena: questo bsica para a vida............................................................................................
2. OBJETIVO____________________________________________ 3. A PESQUISA: SUA CONCEPO ________________________
3.1. PRIMEIRAS RESPOSTAS PARA O PROBLEMA COLOCADO______________________________________ 3.1.1. O cenrio ........................................................................
3.1.2. Populao de estudo.......................................................
3.1.3. Coleta de dados..............................................................
3.1.4. Anlise dos dados...........................................................
4. OS PERSONAGENS: O VIVIDO E O PENSADO______________
4.1 Quem so e o que fazem..........................................................
4.2 O espao fsico..........................................................................
4.3 A favela enquanto a Casa do Homem....................................
4.4 Viver na favela: hoje e o amanh ..................................................
5. PALAVRAS FINAIS_____________________________________ 6. REFERENCIA _________________________________________ 7. ANEXOS _____________________________________________
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APRESENTAO
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A trajetria pessoal em direo Comunidade Sagrado Corao de Jesus
Podemos considerar como ponto de partida para esta jornada
o envolvimento, desde quando estudante de enfermagem, com as questes
contrastantes apresentadas pela realidade brasileira. Ao longo do tempo, a
prtica profissional foi acentuando ainda mais essas inquietaes, e durante
sete anos como assistente de ensino no curso de enfermagem, pudemos
vivenciar esse complexo mundo de desigualdades atravs do
relacionamento contnuo e freqente com uma populao moradora em rea
de favela, que faz parte de uma microrea da rea de abrangncia de uma
Unidade Bsica de Sade. Esta rea tem sido um dos cenrios de ensino-
aprendizagem para a formao profissional do enfermeiro, cenrio real da
prtica profissional, pois o currculo visa formao de um profissional
crtico e reflexivo que possibilite sua interveno em uma dada realidade.
Em 1999, iniciou-se um processo de desenvolvimento de um
programa inter-setorial, envolvendo a Prefeitura de Marlia, a Faculdade de
Medicina de Marlia (FAMEMA) e representaes da sociedade civil,
denominado Projeto UNI (Uma Nova Iniciativa: Universidade, Servio de
Sade e Comunidade), financiado pela Fundao Kelloggs.
O programa apoiou a construo de um projeto integrado
que contemplasse a relao sade e desenvolvimento social, direcionando
aes comunitrias para o enfrentamento de fatores que determinam as
precrias condies de vida e sade de uma parcela da populao. Dada a
existncia de atividades da FAMEMA junto favela Comunidade Sagrado
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Corao de Jesus (C.S.C.J), buscou-se fortalecer a comunidade para que
fosse a prpria articuladora do processo de desfavelamento. Em 2000 teve
incio a discusso desta problemtica com a Prefeitura Municipal, que apoiou
a causa, estabelecendo parceria com o projeto UNI, tendo a colaborao
dos estudantes e docentes do curso de Enfermagem. Providenciou-se toda
documentao pessoal das famlias para o cadastramento no programa e,
em 2002, foi assinado um convnio com a Companhia do Desenvolvimento
Habitacional Urbano do governo do Estado de So Paulo (CDHU).
No incio de 2004, iniciaram-se as obras pelo sistema de
mutiro, e as famlias dedicavam horas de trabalho na construo das
casas. As primeiras casas foram entregues em julho de 2005.
Desse modo, foi-nos possvel acompanhar a complexidade
da vida dessas famlias durante quase uma dcada, e, concomitante ao
atendimento de enfermagem realizado, a vivncia contribuiu para identificar
as contradies de uma sociedade capitalista, o modo de viver dessas
pessoas, excludas de necessidades humanas bsicas, em que o
desemprego, a pobreza, suas concepes e representaes interferem no
processo sade-doena.
Dar voz aos moradores, aos excludos, trazer o pensado e o
vivido por quem mora numa situao peculiar e , tambm, um dos passos
de um processo de transformao subjacente para quem trabalha na rea
social. Essa tem sido a direo desse projeto de mestrado no campo da
sade coletiva.
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Resumo
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Condies de vida: viver na Comunidade Sagrado Corao de Jesus, em Marlia - So Paulo.
Vive-se num pas de muitos contrastes em todos os setores. Com ampla
extenso territorial, terras frteis e riquezas naturais, livre de algumas das
grandes catstrofes naturais, o pas caracteriza-se pela m distribuio do
produto do trabalho social global. A partir dessa distribuio desigual, volta-
se o olhar para uma maneira especfica de se viver, isto , em agrupamento
denominado favela, ambiente que oferece um grande contraste com o
esperado em termos de qualidade mnima de vida. Diante de um cenrio de
crises econmicas e polticas cclicas, no qual o Estado deixa a desejar
quanto distribuio do bem-estar social, as redes de solidariedade e
sociabilidade scio-familiar ganham fora e destaque. Elas representam,
para as camadas populares, a condio de sobrevivncia, em que a famlia
ampliada e o grupo de conterrneos so possibilidades de aumento da
renda, afeto, emprego, moradia, sade, etc.
Sendo considerada a favela uma das maiores expresses da violncia
urbana, o objetivo deste trabalho analisar as condies de vida das
famlias moradoras na favela da Comunidade do Sagrado Corao de Jesus,
utilizando-se de abordagens quantitativa e qualitativa, e recorrendo-se s
entrevistas estruturadas para um conhecimento mais aprofundado.
Tem-se uma populao jovem, com uma parcela significativa de adultos em
fase produtiva, no alfabetizados e desprovidos de emprego, estando uma
parte expressiva deles excluda do mercado formal de trabalho. Esses
fatores contribuem para a perpetuao do ciclo da pobreza entre as
geraes. De outro lado, v-se que, embora as condies geogrficas no
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sejam favorveis e as moradias se apresentem em situaes muitas vezes
subumanas, pelo ngulo das famlias, que em sua maioria se caracterizam
como nucleares, o ambiente apresenta uma vasta rede de relaes sociais
primrias necessrias para a sobrevivncia. Dependendo da rede de
relaes sociais desenvolvida e da avaliao que tm dos outros, a favela
torna-se um lugar bom para se viver, mesmo com obstculos, principalmente
em relao s precrias condies da moradia e a falta de privacidade,
considerando o nmero de cmodos e as pessoas que nela habitam. Nessa
situao de precariedade, a associao e a solidariedade esto presentes
para essas pessoas enfrentarem condies crticas de sobrevivncia,
compartilhando os escassos e intermitentes recursos para conseguirem se
impor em grupo s circunstncias que certamente as fariam sucumbir como
indivduos isolados.
Analisar as condies de vida das famlias da CSCJ em todas as suas
peculiaridades e profundidades equivale a aproximar o estranho, desvendar
o outro to estranho na aparncia, mas no na essncia, pois se trata,
sobretudo, de seres humanos. Resultados diferentes de um nico processo
de desenvolvimento, a favela, com seus moradores, criada e recriada
como o paradoxo da sociedade capitalista ao lado de condomnios fechados
de alto luxo. Apenas com a participao contnua de todos os atores sociais
na definio de suas escolhas, nos locais onde se formam e adquirem
significados, que se teria oportunidade de insero social, criando-se
novos valores e nova tica que, amplamente compartilhados poderiam
passar a orientar uma nova ordem. Essa constatao, resultado da anlise
feita, representa o passo inicial de um longo processo de mudana.
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AS QUESTES ENVOLVIDAS: MACRO E MICRO ESTRUTURA
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1.1. Este mundo to desigual
Oh mundo to desigual, tudo to desigual, . De um lado este carnaval, de outro a fome total, ......
(Gilberto Gil)
A msica refletindo a vida; a vida, fonte de inspirao para a
msica. Nessas poucas linhas da composio, o autor retrata um dos
contrastes, a fome, que, inter-relacionado a outros, sero focos de ateno
deste trabalho: as pssimas condies de moradia e as conseqncias
oriundas das mesmas.
Diante de tal premissa, faz-se necessrio ampliar o olhar
para o modo de vida das pessoas, buscando e propondo mudanas que
possam resultar em melhora na qualidade de vida da populao menos
favorecida.
Vive-se num pas com muitos contrastes em todos os setores
e, como questiona Manzini-Covre (1989), ao lado de toda extenso territorial
que comporta terras frteis e riquezas naturais, livre das grandes catstrofes
naturais, tem-se um pas onde menos se realiza a distribuio do produto do
trabalho social global. A partir da constatao dessa distribuio desigual,
volta-se o olhar para uma maneira especfica de se viver, isto , em
agrupamento denominado favela que oferece um grande contraste com o
esperado em termos de qualidade mnima de vida.
Essa maneira precria de se viver e ocupar espaos de
riscos sade e vida pode ser considerada uma das maiores expresses
de violncia urbana, em que, alm da excluso social externa imposta pela
sociedade capitalista, tambm se tem que sobreviver s lutas travadas
internamente dentro desse espao (Cohen, 2004).
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1.2. Base material da sociedade na conformao das condies de vida e sade de uma populao favelada
Quando seu moo, nasceu meu rebento/No era o momento dele rebentar/J foi nascendo com cara de fome/E eu no tinha nem nome pra lhe dar/Como fui levando no sei lhe explicar/Fui assim levando ele a me levar/E na sua meninice ele um dia me disse/Que chegava l/Olha a, ai o meu guri...
(Chico Buarque)
Ao se viver numa sociedade capitalista com a formao de
classes sociais ocupando posies diametralmente opostas em relao
produo, tem-se, entre as vrias conseqncias, a apropriao desigual
dos bens e servios produzidos. Marx (1983) j havia demonstrado que o
modo de produo capitalista determina a necessidade da reproduo da
fora de trabalho e que esta no vista como uma unidade social
homognea, porque se estrutura em setores produtivos cuja importncia
definida pelo estgio das foras produtivas. Desse modo, com o
desenvolvimento cientfico e tecnolgico, a reproduo social de grupos
sociais em setores no importantes, do ponto de vista do capital, ser
afetada por inseres diferenciadas e que hoje se manifestam na existncia
contrastante de condies de vida e sade to precrias e frgeis quanto
aquelas to ricas e poderosas.
Por outro lado, Marx e Engels mostraram que o Estado
emerge da contradio entre o interesse individual ou da famlia e o
interesse comum de todos os indivduos. Constitui expresso poltica da
classe dominante, uma instituio socialmente necessria para cuidar de
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tarefas sociais para que a comunidade sobreviva, devendo intermediar os
conflitos entre os diversos interesses.
Numa situao em que a acumulao do capital passa a ser
a fora motriz da sociedade, o papel do Estado torna-se fundamental para,
tambm, atender as necessidades sociais. H momentos em que se torna
um Estado intervencionista a fim de concretizar o processo de concentrao
e centralizao capitalista. Em outros, discute-se sua sada medida que as
relaes de mercado tendem a regular as relaes econmicas.
Simultaneamente, deve se direcionar para o atendimento tanto dos direitos
de cidadania como os da justia social quando os movimentos sociais
comeam a pressionar. O seu desafio tem sido evitar o confronto entre
capital e trabalho, tendo-se excludo das decises polticas, no Brasil, a
maior parte da populao trabalhadora at o final dos anos 80.
A consolidao do capital monopolista no pas acabou por
levantar a bandeira dos direitos sociais, porque a poltica de excluso
adotada teve, como conseqncias, o aumento do desemprego e a limitao
do acesso aos bens de consumo e servios fundamentais vida. De acordo
com Dowbor (1998), o Estado deve reparar uma particularidade do
capitalismo por meio de consistentes polticas sociais, pois eficiente
organizador da produo, mas gerador de desequilbrios de distribuio.
Como analisa o autor, reproduo do capital e reproduo social se
contrapem. De um lado, fala-se no processo de crescimento econmico
centrado nas atividades produtivas; de outro, de um processo que engloba
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tanto a produo como os servios sociais, alm das vrias atividades de
gesto do desenvolvimento, como planejamento e segurana, entre outros.
Esse conceito mais ampliado procura romper a tripartio
que se fez entre a economia, produo de riquezas e o social, que est em
atraso no processo, buscando reduzir as contradies, a misria, o
abandono e a excluso, atravs de polticas de compensao para um
desenvolvimento socialmente justo, economicamente vivel e
ambientalmente sustentvel.
Segundo Gomez et al (2002), o Estado tem novos desafios:
ser indutor, normativo, regulador atuante, com a grande misso de viabilizar
servios pblicos essenciais como sade, educao, habitao e amparo
contra a excluso social para a populao mais vulnervel social e
economicamente. Deve ser capaz de estabelecer polticas para diminuir o
desemprego e promover a reduo das desigualdades e, essencialmente,
resgatar sua legitimidade e credibilidade na implementao de polticas
inibidoras da excluso social. Esta, alm da extrema privao material,
desqualifica seu portador, consumindo-lhe a qualidade de cidado, de sujeito
e de ser humano, que tem desejos, vontades que o identificam e o
diferenciam.
Segundo Paim (1997), com a estruturao das classes
sociais nas etapas do desenvolvimento capitalista, as pessoas tem
apresentado formas diferentes de insero na estrutura ocupacional
disponvel que conforma o mercado de trabalho (ou delas so excludos),
bem como um dado modo de vida. Sendo assim, o perfil epidemiolgico da
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populao, enquanto componente da situao de sade, determinado, de
um lado, pela estrutura de produo (insero na estrutura ocupacional), ou
seja, pelo processo e as condies de trabalho e, de outro, pela estrutura de
consumo (modo de vida) que, dependendo da renda obtida, conforma as
condies e o estilo de vida. Portanto, o estudo das condies de vida de
determinados grupos sociais deve levar em considerao no s a
distribuio da renda e o poder aquisitivo na esfera do consumo individual,
mas tambm certas aes estatais que buscam garantir o atendimento de
necessidades consideradas bsicas para a sobrevivncia como, por
exemplo, sade, saneamento, educao, alimentao e nutrio, lazer,
segurana, entre outras.
Do ponto de vista da economia poltica da sade, Prata
(1994) considera a existncia de relaes econmicas que criam
desigualdades na renda, na riqueza, e na sade. Conceitua desigualdade
como a relao entre desenvolvimento e justia social, por meio da
distribuio de renda, educao, moradia, servios (de sade,
abastecimento de gua e saneamento ambiental), acesso ao emprego, aos
bens de consumo, terra, bem como ao poder de deciso e de influncia
social.
Drachler et al. (2003) definem desigualdade social em sade
como sendo as diferenas socialmente produzidas e moralmente injustas, na
qualidade de vida e no modo de ser e agir dos indivduos e grupos sociais.
Assim, para aqueles com piores condies socioeconmicas, os que vivem
em favelas ou em zona rural, a sade tende a ser pior. Na dimenso
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socioeconmica, os diferentes modos de insero do indivduo no processo
de produo so as principais produtoras de desigualdade social,
determinando a formao das classes sociais, tendo como uma das
conseqncias, a discriminao o estigma sobre o trabalhador manual, os
moradores de favela e o pobre. Essas desigualdades de oportunidades
impem formas de agir, estilos de vida e comportamentos pessoais que
afetam diretamente a sade e, por outro lado, tambm tem interferncias
nas relaes sociais dessas pessoas, ou seja, com amigos, na famlia, na
escola, no trabalho, e na comunidade.
No caso brasileiro, uma outra esfera a ser considerada na
determinao das condies de vida a migrao. Segundo Durhan (1973),
a migrao rural-urbana, especialmente nos meados do sc. XX, quando o
Brasil intensifica a produo industrial, pode ser concebida como um
fenmeno de mudana scio-cultural, em que ocorre a mudana dos
padres de comportamento vivenciados nas comunidades rurais, para que
haja uma adaptao s condies urbanas de vida. A autora tambm mostra
que o trabalho a questo central do processo de integrao dos migrantes
rurais a uma sociedade urbano-industrial, cabendo famlia promover a re-
elaborao das representaes e participao em um novo contexto scio-
cultural.
A populao crescente de trabalhadores rurais nas cidades
um aspecto de transformao do sistema scio-econmico, afetando a
cidade e o campo.
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A mudana do trabalhador rural para a cidade d-se pela
necessidade/ expectativa de melhorar de vida. Com essa migrao, as
pessoas deixam de fazer parte de um conjunto de relaes pessoais
permanentes para integrar-se em outro conjunto de relaes que eram
espordicas e passam a ser permanentes. Quando o migrante decide mudar
para a zona urbana, geralmente a escolha feita pela proximidade das
relaes sociais.
Nessas situaes, a famlia, como estratgia de
sobrevivncia, no se atm mais questo da manuteno da propriedade
da terra, como ocorreu no meio rural brasileiro em determinado perodo
histrico, mas, passa a viver o enfrentamento da pobreza no meio urbano. A
rede de parentesco em comunidades fechadas relatada tambm por
Almeida e DAndrea (2004). Os parentes, alm dos conterrneos e vizinhos
que se ajudam mutuamente, formam uma estrutura que pode ser mobilizada
em caso de necessidade.
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1.3. Ter um abrigo: de necessidade a direito fundamental X a favela
(...) Mais um dia nis nem pode se alembr/Veio os homes com as ferramenta/O dono mando derrub/Peguemo tudas nossas coisas/E fumos pro meio da rua/Preci a demolio/Que tristeza que nois sentia/Cada tubua que caa/ Doa no corao/Mato Grosso quis grit/Mais em cima eu falei/Ao homes t com a razo/Nis arranja outro lug/S se conformemo/Quando o Zeca falo/Deus d o frio/Conforme o coberto(...)
Adoniram Barbosa
A partir da insero econmica, Valadares (2000) destaca
outro aspecto importante a ser considerado, isto , que o ser humano
constitudo de memria e convvio produzidos pelo espao e tempo do
cotidiano, elementos fundamentais na vida humana. Assim, a casa do
homem lugar de presena e de construo de histrias. No h cidadania
que sobreviva ao desabrigo.
Segundo Ward (1976), se nao deixa seus cidados em
moradia pobre, insalubre e abaixo do padro, isso significa que governo e
povo no deram aos lares a ateno, a importncia e a prioridade de justia,
humanidade e dignidade de que necessitam. Para o autor, problemas sociais
como violncia, delinqncia, lares desfeitos, velhice intranqila, entre
outros, desaparecero se for proporcionada ao cidado uma habitao
digna. Para que um pas seja considerado desenvolvido, dever ser capaz
de suprir a necessidade de habitao de forma adequada, tendo as casas
pelo menos um cmodo para cada membro da famlia.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 24
O sonho de possuir uma casa prpria uma forma de
adquirir estabilidade e aceitao social, ter uma casa significa ter identidade
social, referncia espacial na estrutura da sociedade (Cannone 2002).
Para Rybczynski (2002), a palavra home (lar) reuniu os
significados de casa e famlia, de moradia, abrigo e afeio, mas tambm
tudo que estivesse dentro ou fora dela.
Damatta (1985) refere que casa e rua so palavras que
no dizem respeito apenas aos espaos geogrficos ou algo fsico
comensurvel, mas sim a entidades morais, esferas de ao social,
domnios culturais institucionalizados e, por isso, so capazes de despertar
emoes, reaes, leis, oraes, msicas e imagens esteticamente
inspiradas.
Carpintro (1990) refere que, com a casa tem uma funo
social como agente formador do ambiente moral, a distribuio interna da
casa adquire relevncia. A sala considerada a parte mais importante da
casa, pois onde aps um dia de trabalho, a famlia pode se encontrar. Ao
lado dever ficar a cozinha, como uma forma de aproximar a mulher do
controle da casa e dos cuidados com os filhos. Quanto aos dormitrios,
constitui-se no espao privado dos pais separados dos filhos. O quintal um
espao fundamental para os filhos brincarem, caso contrrio, vo para a rua,
alm da lavagem da roupa que a se processa.
No espao da casa satisfazem-se as necessidades fsicas,
biolgicas e culturais, tornando-se, ela prpria, uma necessidade para o
desenvolvimento das relaes individual e coletiva. Todos os sentimentos, e
as expectativas com relao s pessoas esto nesse espao, assim a casa
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 25
um espao que significa projetos e desejos individuais dentro de um
projeto coletivo que a sociedade (Carpintro 1990).
Durante o processo de consolidao do desenvolvimento
capitalista, os homens lutaram pela conquista dos direitos civis, polticos e
sociais, medida que, simultaneamente, a injustia e a desigualdade foram
se acirrando com um modo de produo antagnico nas suas relaes de
produo. Em tal contexto, estabeleceu-se o consenso de que,
independente do nvel econmico e social, o ser humano tem direito a um
ambiente sadio, adequado ao desenvolvimento da vida. Definido como um
princpio, emerge o artigo XXV da declarao UNIVERSAL DOS DIREITOS
DO HOMEM:
"todo homem tem direito a um padro de vida capaz de assegurar a si e a sua famlia sade e bem estar, inclusive alimentao, vesturio, habitao, cuidados mdicos e os servios sociais indispensveis, e direito a segurana em caso de desemprego, doena, invalidez, viuvez, velhice e outros casos de perda dos meios de subsistncia em circunstncias fora de seu controle" (ONU, 1948).
A Assemblia Geral das Naes Unidas, reunida em
Estocolmo, em 1972, estabeleceu princpios comuns de orientao
humanidade e aprovou a Declarao sobre o ambiente humano. O primeiro
princpio estabelece que:
O homem tem direito fundamental liberdade, igualdade e ao desfrute de condies de vida adequada, em um ambiente de qualidade que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem estar, e portador solene da obrigao de proteger e melhorar o meio ambiente para as geraes presentes e futuras. A esse respeito, as polticas que promovem ou perpetuam a segregao racial, a discriminao, a opresso e a dominao estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas (ONU, 1972).
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 26
Na amplitude da idia de condies de vida adequada
que a trajetria da conquista dos direitos sociais no Brasil desenvolve, com o
movimento da reforma sanitria (final da dcada de 1970), um novo
entendimento do processo sade-doena e uma nova organizao dos
servios de sade, que culminaram com a implantao do Sistema nico de
Sade (SUS) em 1988.
A reforma sanitria, segundo Mendes (1993), foi
considerada um processo modernizador e democratizante para que se
pudesse atender a sade dos cidados, abordando trs aspectos
fundamentais: A) ter um conceito abrangente de sade que estabelecesse a
relao entre sade e condies de vida, meio ambiente, habitao,
alimentao, trabalho, lazer, renda, educao, justia social e acesso a
servios de sade. B) erigir a sade como direito de cidadania e dever do
Estado. C) propor uma reformulao do Sistema Nacional de Sade, com a
criao de um Sistema nico de Sade que tivesse, como princpios, a
universalidade de acesso, integralidade das aes, descentralizao e
participao popular.
A Declarao de Direitos que compe a Constituio
Brasileira passou a se caracterizar como um dos mais avanados textos
constitucionais do mundo, principalmente no que se refere aos direitos no
campo da sade, ao considerar a sade um direito de todos e dever do
Estado (Bosi, Affonso, 1998) e de outro lado, por reconhecer as
determinaes mais amplas que incidem sobre a sade, conforme o artigo
3 da lei n 8.080 de 19 de setembro de 1990:
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Sade tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, alimentao, a moradia, o saneamento bsico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educao, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e servios essenciais; os nveis de sade da populao expressam a organizao social e econmica do pas.
Morita (2002) refere que a conquista da sade, como direito
de cidadania, est num processo de construo repleta de confrontos dos
diferentes interesses, ainda que, pelo texto constitucional, o Estado
capitalista brasileiro reconhea o direito da populao sade, como
condio inerente cidadania. Se existe o direito, existe o dever, no caso,
do prprio Estado, de assegurar e proporcionar sade.
Apesar das determinaes da declarao de Direitos
Humanos e das Constituies Federal e do Estado de So Paulo, que
dizem, estabelecem que todo ser humano tem direito a uma vida digna, h
no Brasil 921.782 domiclios em favelas, o equivalente a 5,5 milhes de
pessoas, em torno de 3,5% da populao brasileira (Bremacker, 2001).
Tanto as favelas quanto os cortios so tipos de moradia tradicionalmente
considerados precrios (Genevois, Costa, 2001) e que demandam uma
poltica habitacional. Genevois e Costa, baseados na Pesquisa de
Condies de Vida (Fundao Seade SP), consideram moradias
precrias aquelas ... construdas com material imprprio (barracos), as que
esto localizadas em loteamento no-planejado (favelas) e as que obrigam
seus ocupantes a dividir equipamentos e instalaes sanitrias
indispensveis, como cozinha, banheiro e tanque de lavar roupas (cortios)
(Genevois, Costa, 2001, p.74). O barraco, segundo a mesma pesquisa,
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aquela moradia construda inteira ou parcialmente com material adaptado,
ou seja, no-apropriado a uma habitao (...) quando o material utilizado na
construo da moradia todo ou em parte adaptado, ou seja, material
reutilizado, de qualquer tipo: alvenaria, madeira, placa, zinco, papelo,
plstico, etc., as portas e janelas so aberturas precrias e no h
acabamento na casa (Genevois, Costa, 2001, p.77).
Os mesmos autores destacam os domiclios rsticos
conforme descritos pela Fundao IBGE, como aqueles cuja construo
predominantemente feita por material improvisado, ou seja, paredes de taipa
no-revestida, madeira aproveitada ou material de vasilhame; piso de terra,
madeira aproveitada, palha, sap ou material de vasilhame (Genevois,
Costa, 2001, p.77).
Reis et al (1989) definem favela como sendo aglomerados
humanos em que a relao espao-populao pequena, de maneira a
concentrar, numa determinada rea, um nmero de indivduos superior ao
que ela poderia comportar sob condies razoveis de vida. Este espao
ocupado por pessoas de condies scio-econmicas muito baixas e que
possuem cuidados higinicos bsicos precrios por falta, quase sempre, de
gua, esgoto e luz.
Como se percebe, as denominaes precrias ou rsticas
e a prpria definio de barraco do conta de um tipo de moradia que no
oferece conforto, dadas as condies de insalubridade. Genevois e Costa
(2001) ressaltam que tambm representam risco de contaminao por
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 29
doenas, alm de risco de desmoronamento, o que demandaria sua
construo em locais adequados.
Almeida e DAndrea (2004:106), sob uma outra perspectiva,
analisam os vnculos societrios que se estruturam na favela Paraispolis
como uma estratgia de enfrentamento das condies adversas, sejam
materiais e espirituais, criando um capital social baseado no vnculo entre
as pessoas e no nas prprias pessoas.
Considerando a situao desvantajosa de se morar numa
favela, e considerando que ela est presente na realidade brasileira, volta-se
o olhar para o municpio de Marlia, no estado de So Paulo, que no foge
regra, por ser plo de desenvolvimento, atrair fluxo migratrio e ter favelas.
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1.4. Questes de famlia e gnero: outras esferas fundamentais nas condies de vida e sade
Famlia, famlia Papai, mame, titia
Famlia, famlia Almoa junto todo dia
Nunca perde essa mania
Tits
A partir desse quadro mais amplo no qual se estruturam
classes e grupos sociais diferenciados, volta-se a ateno para a esfera
mais prxima do sujeito, isto , sua famlia. Ela o espao que forma a
estrutura psquica, emocional e social, no qual as geraes se defrontam e
os dois sexos estabelecem suas diferenas e relaes de poder (Wrigley,
1979). Portanto, uma relao social que assume, como resume Chau
(1980), formas, funes e sentidos diferentes em decorrncia das condies
histricas e da situao de cada classe social na sociedade.
De acordo com ries (1979), modelos de estrutura familiar
do passado ajudam a compreender o atual, tendo-se como marcos as
famlias aristocrticas e camponesas dos sculos XVI e XVII, as da classe
trabalhadora que surge com a revoluo industrial e a burguesa, nos
meados do sculo XIX. O modelo de famlia nuclear burguesa, que se
desenvolve no sculo XX em reas urbanas e se estende enquanto
concepo de famlia para todas as classes sociais, tinha uma rgida diviso
dos papis sexuais, no qual ao cnjuge masculino cabia a autoridade e
sustento da famlia. A viso sobre o cnjuge feminino era a de uma pessoa
menos racional e capaz, que se preocupava apenas com a casa, com a
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 31
criao dos filhos, devendo satisfazer as necessidades do marido, no se
importando com as mudanas polticas e econmicas a seu redor.
Simultaneamente, os filhos tornaram-se importantes para os pais, surgindo
um novo grau de profundidade emocional e intimidade na relao entre os
pais e filhos dessa classe.
No perodo contemporneo, com o desenvolvimento do
capitalismo, fundem-se a antiga classe trabalhadora fabril e o novo
proletariado. O padro burgus em que o pai possua os meios de produo
que transmitia aos filhos fica limitado apenas a uma parcela pequena e as
grandes companhias ocupam lugar das pequenas unidades fabris e lojas de
varejo. As novas necessidades da economia capitalista acarretam mudanas
nas famlias, tornando-se, estas, unidades de consumo e de produo de
valores de uso.
De acordo com Carvalho (2002), espera-se que a famlia
possa proporcionar cuidados, proteo, aprendizado dos afetos, vnculos e
um espao para construo de identidades, para incluir-se socialmente na
comunidade e sociedade, sendo capaz de promover a qualidade de vida dos
seus componentes. A famlia pode fortalecer ou acabar com suas prprias
potencialidades e possibilidades, dependendo do seu contexto de vida.
Diante de um cenrio de crises econmicas e polticas
cclicas, no qual o Estado deixa a desejar quanto distribuio do bem-estar
social, as redes de solidariedade e sociabilidade scio-familiar ganham fora
e destaque. Elas representam para as camadas populares a sua condio
de sobrevivncia, em que a famlia ampliada e o grupo de conterrneos so
possibilidades de aumento da renda, afeto, emprego, moradia, sade, etc.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 32
A famlia, portanto, tem um papel importante na poltica
social, sendo beneficiria, parceira, prestadora de servios de proteo e
incluso, favorecendo a preveno de riscos de isolamento social, devido
ausncia do trabalho. Esta solidariedade pode ser adquirida quando a
famlia entende que ela prpria necessita de proteo para poder gerar
proteo.
Segundo Szymanski (2002), quando a famlia se distanciava
do modelo nuclear burgus, historicamente construdo, era considerada
desestruturada ou incompleta, sendo valorizada sua estrutura e no a
qualidade de suas relaes. Para a autora, cada famlia constri sua cultura,
com seus cdigos, suas normas e regras, sua linguagem, ritos e jogos.
Desta forma, aps uma concepo construda a partir do cotidiano das
famlias, ela mostra que em qualquer arranjo em que as pessoas que
convivem possuam ligao afetiva, como um casal e filhos, ou uma mulher,
a afilhada e filho adotivo, a relao de cuidados significa um compromisso; a
especializao de funes termina com a mudana na estrutura da famlia.
Bilac (2002) refere que houve um avano, visto que se
pensava a famlia sob a perspectiva da reproduo da fora de trabalho,
para pens-la na perspectiva da reproduo social. Foi o pensamento
feminista que trabalhou o conceito de reproduo na esfera especfica da
vida social, organizada pelas relaes de gnero e na diviso sexual do
trabalho, articulada e diferente da esfera da produo de bens e servio.
Segundo Bilac, tanto do ponto de vista funcionalista quanto do ponto de vista
marxista, a famlia como instituio vem perdendo suas funes e
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 33
importncia social, considerando-se a crise do esvaziamento da instituio
familiar que no poderia referenciar ou organizar a reproduo.
Para Sarti (2002), com o capitalismo, a famlia deixou de ser
uma unidade de produo, passando a constituir uma unidade de consumo
para a organizao da vida material. As mudanas ocorridas na famlia
contempornea esto ligadas perda do sentido da tradio. Assim, o que
era vivido a partir de papis pr-estabelecidos passa a ser projeto individual
tendo implicaes em suas relaes. Relata que esse movimento foi
impulsionado pelas mulheres por meio do controle da reproduo, o que lhes
possibilitou reformular o seu papel na esfera privada e a sua participao na
esfera pblica. Considera, porm, que os pobres que vivem nas cidades no
se inserem nesta dimenso individualizada da identidade social. Para isso,
haveria necessidade de condies sociais de educao e de valores sociais
que esto fora do seu mundo de referncias culturais. Conseqentemente,
mantm a tradio como referncia para sua sobrevivncia, em que
fundamental a solidariedade dos laos de parentesco e de vizinhana.
Nessa situao da construo de uma rede de solidariedade
tambm deve ser considerado o papel da mulher e, mais ainda, na condio
de moradora de favela.
Segundo Neves (1998), em trabalho desenvolvido com um
grupo de mulheres nesta mesma comunidade (CSCJ), a mulher est sempre
em desvantagem, pois assume toda a educao dos filhos e os afazeres da
casa, alm do trabalho fora de casa. Os homens apenas trabalham fora,
quando possuem emprego.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 34
Entendendo-se as relaes de gnero como diviso sexual
das atividades socialmente construdas, interessa salientar que homens e
mulheres constituram-se como sujeitos e estruturaram sua prtica de um
ponto de vista masculino e feminino. Conforme Saffioti (1992), as relaes
de gnero no resultam da existncia de dois sexos, macho e fmea, o vetor
direciona-se, ao contrrio, do social para os indivduos que nascem. Tais
indivduos so transformados, atravs das relaes de gnero, em homens e
mulheres, cada uma destas categorias-identidades excluindo a outra
(Saffioti, 1992, p.187).
A literatura na rea da sade constata que para a mulher
so delegadas as questes de sade na famlia, como apontaram Boltanski
(1979) e Fonseca (1999), e que as preocupaes com o cuidado do corpo e
as representaes sobre sade-doena so quase sempre obtidas junto s
mulheres (Ferreira, 1998; Paim, 1998, Oliveira, 1998).
A partir deste quadro de referncias, indaga-se: quais so os
elementos existentes na favela, enquanto objeto de estudo, cuja
identificao e anlise contribuiriam para uma compreenso mais
aprofundada dessa populao, visando a uma melhoria da qualidade de
vida? Para responder a isso, pretende-se analisar as condies de vida das
famlias moradoras na favela da Comunidade do Sagrado Corao de Jesus,
as quais esto vivendo um processo de desfavelamento. Tais condies
formam os temas de relevncia que recobrem uma sociedade saudvel.
Assim, conhecer a situao da moradia, do acesso aos bens materiais e
servios, entre outros, ser objeto de reflexo na medida em que isso
interfere nas condies de sade.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 35
1.5. Refletir sobre a sade e a doena: questo bsica para a vida
(...) Eu vi o nome da favela/Na luxuosa Academia/Mas a favela para dot/ morada de malandro/E no tem nenhum valor/No tem dotores na favela/Mas na favela tem dotores/O professor se chama bamba/Medicina na macumba/Cirugia, l, samba.
Assis Valente
Destaca-se que o impulso dado s atividades de Ateno
Primria Sade desde os finais dos anos sessenta, especialmente aps a
Conferncia de Alma-Ata, com alguns eixos norteadores como a
participao social, a utilizao de estratgias baseadas no saber popular, a
recuperao de aes baseadas em redes sociais, grupos de apoio e auto-
cuidado entre outros, favorece uma aproximao estratgica junto a um
conjunto social. No importa se um grupo domstico, ou um grupo
ocupacional, ou um grupo de idade; trata-se de identificar os indivduos
concretos para perceb-los como membros genricos de um modelo scio-
cultural e, atravs de suas falas, de suas reflexes, ressignific-los como
cidados (Menndez, 1998).
Nesse sentido, a procura de uma concepo de sade-
doena tambm busca compreender o processo de vida dos homens ao
longo da histria.
Segundo Albarracn (2001), os homens sempre buscaram um
significado e explicaes para sade e doena que pudessem estabelecer
uma relao de causa e efeito para resolver o problema, surgem, ento, com
o tempo, os modelos explicativos elaborados com o fim de compreender
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 36
tanto os elementos do processo sade e doena como os objetos utilizados
para interveno, os saberes, os atores sociais envolvidos e as finalidades
perseguidas. Esses modelos foram elaborados a partir do modo de pensar,
sentir e agir da populao, revelando assim diferentes interpretaes do
processo de adoecer e curar. Essa construo de modelos que expliquem
sade e doena caracterstica da histria da humanidade, devido
necessidade de adaptao do homem s novas formas de viver,
considerando os avanos da tecnologia e cincia. Por conseguinte, nos
diferentes grupos de populao, os conceitos de sade e doena no so
iguais e estticos, pois esto relacionados com o modo como os indivduos
esto socialmente organizados, participam e se envolvem no processo
cultural. De acordo com Chamm (1996, p. 61):
A sade no decorrer da histria dos homens, foi sempre um bem e, por isso, mereceu constante preocupao, no sentido de tornar-se geradora de modas, de modos de fazer e de existir, de conflitos, dualidades e controle social. No decorrer desse tempo, modelos de sade foram sendo criados, interpretados e recriados, quando necessrio, provocando igual processo de transformao nas maneiras de sentir, pensar e agir da populao usuria dos mais variados recursos de sade disponveis, segundo as relaes entre o mgico e o necessrio, estabelecendo entre os que serviam e os que eram servidos, uma relao tambm to mgica quanto necessria, intermediada pelo corpo, destes sujeitos, depositrio do estado de sade ou de doena. Alm do processo de transformao das mentalidades, so ainda levados em considerao os processos de construo, desconstruo e de evoluo do imaginrio e das representaes sociais vivenciados pelos sujeitos e seus corpos. A evoluo dos conhecimentos e o avano cientifico e tecnolgico so enfocados tambm como fontes modelares e comunicativas no sentido de ditar regras ao corpo que a humanidade porta socialmente neste sculo.
As concepes de sade-doena esto expressas de forma
diferenciada na sociedade, dependendo da viso de mundo de quem fala e
da posio social que ocupa nas relaes de produo. Portanto, em uma
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 37
sociedade capitalista, as condies de vida e de trabalho, ou sejam, as
diferentes classes e as desigualdades existentes na distribuio de riquezas,
qualificam de maneira diferente a concepo de sade-doena que
marcada por essas contradies que caracterizam o sistema. (Minayo,
1999).
Tambm de acordo com a mesma autora, estar doente para
a classe trabalhadora representa a incapacidade para trabalhar tendo
relao com a economia, com a criao de mais-valia e possibilidade de
acumulao capitalista. Portanto as expresses sade a maior riqueza,
sade tudo, o maior tesouro, etc, so representaes em que o corpo
se transformou no nico gerador de bens.
A concepo de sade-doena est relacionada maneira
como o ser humano, durante a sua existncia, foi se apropriando da
natureza, buscando formas de suprir suas necessidades e assim
transformando-a (Fracolli, Bertolozzi 2001). As autoras, tendo como
referencial a Teoria da Determinao Social do Processo SadeDoena,
relacionam o modo de viver das pessoas e a forma de organizao da
sociedade com a sade ou doena, ou seja, dependem da insero dos
indivduos no sistema de produo para que possam ter mais ou menos
acesso s necessidades essenciais para sobrevivncia. Desta forma,
diferentes grupos scio-econmicos possuem diferentes riscos de adoecer e
morrer, resultado do processo histrico da sociedade na qual se inserem.
Outros estudos mostram que, dependendo do contexto
cultural dos diferentes grupos sociais, as representaes sobre sade e
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 38
doena tm caractersticas prprias e, conhec-las, poderia contribuir para
melhorar o sistema de sade (Boltanski, 1979; Alves e Minayo (orgs.), 1994;
Duarte e Leal (orgs.), 1998; Alves e Rabelo (orgs.), 1998). Assim, voltar o
olhar sobre esse aspecto significa avanar na compreenso da vida na
favela.
Face aos aspectos referenciados, considera-se a importncia
do estudo proposto visando o movimento a uma nova sociedade.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 39
2. OBJETIVO
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 40
Tem-se como objetivo descrever e analisar as condies de
vida das famlias moradoras na favela Comunidade do Sagrado Corao de
Jesus.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 41
3. A PESQUISA: SUA CONCEPO
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 42
Trata-se de um estudo de caso que tem por objetivo
aprofundar a descrio de determinada realidade para conhec-la em seus
traos caractersticos, suas gentes, seus problemas, seus valores, de forma
que com os resultados obtidos, conforme Trivios (1987), seja possvel
formular hipteses para encaminhamento de outras pesquisas.
Simultaneamente, esses resultados devem orientar aes de mudanas nas
situaes identificadas como problemas.
Nesta investigao utilizaram-se as abordagens quantitativa
e qualitativa, as quais, segundo Minayo (1999), so perspectivas
complementares quando se pretende conhecer uma determinada realidade.
Corroborando com esta idia, a abordagem quantitativa supe uma
populao de objetos de observao comparveis entre si, enquanto os
mtodos qualitativos enfatizam as especificidades de um fenmeno em
termos de suas origens e de sua razo de ser (Haguette, 1997).
Trata-se, ...de uma abordagem interessada no microssocial,
baseada em palavras, histrias e narrativas cujo interesse a dimenso
subjetiva, aplicando o mtodo indutivo (MercadoMartinez, 2004, p.35). Para
isso recorreu-se s entrevistas estruturadas e observao direta, tcnicas
privilegiadas para obteno de informao.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 43
3. 1. PRIMEIRAS RESPOSTAS PARA O PROBLEMA COLOCADO
3. 1. 1. O Cenrio
Marlia localiza-se na regio centro-oeste do Estado de So
Paulo e possui uma populao de 198.719 habitantes. Segundo pesquisa
anterior, levantou-se que no municpio h 17 favelas, 1.307 domiclios com
5.980 pessoas, sendo 3.045 do sexo masculino e 2.935 do sexo feminino,
50,92% e 49,08% respectivamente (Carvalho; Carvalho, 2003).
O abastecimento de gua do municpio executado por uma
autarquia municipal e 99% dos domiclios esto ligados rede de
abastecimento, sendo que 95% dos domiclios esto ligadas s redes
coletoras de esgoto. A Rede Municipal de Educao possui um total de 27
Escolas de Educao Infantil (EMEI), 18 Escolas de Educao Fundamental
(EMEF) e 04 Berrios. A Rede Estadual conta com 33 Unidades de Ensino
(Fundamental e Mdio), 02 Unidades de Educao Supletiva e 01 Unidade
de Supletivo Profissionalizante. A Rede Particular conta com 32 Unidades de
Ensino (Infantil, Fundamental e Mdio) e 02 Unidades de Educao
Especial. Tambm possui duas Universidades, uma Fundao de Ensino
Superior e uma Autarquia Estadual de Ensino Superior. Na rea de
Assistncia Social, o Municpio possui programas voltados populao de
rua, crianas e adolescentes (Casa do Pequeno Cidado), aos idosos
(Centro do Idoso) e s mulheres vtimas da violncia (Casa Abrigo). O
Municpio considerado Plo Nacional na rea Alimentcia, devido grande
nmero de indstrias voltadas produo de massas, balas, doces e
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 44
biscoitos, com participao em torno de 17% da produo nacional do
gnero. A rede de ateno bsica sade do municpio constituda por: 24
unidades de sade da famlia, 13 unidades bsicas de sade, 03 servios de
pronto atendimento, 01 policlnica, 01 banco de leite humano, 01 equipe de
programa interdisciplinar de internao domiciliar, 01 ncleo de sade do
trabalhador, 01 unidade de preveno e educao em sade, 01 ncleo de
vigilncia sade, 01 centro de atendimento psicossocial, 01 unidade
central de assistncia farmacutica (Marlia ,[200-?]).
Esta pesquisa enfoca uma micro-rea pertencente rea de
abrangncia da Unidade Bsica de Sade Planalto, denominada
Comunidade Sagrado Corao de Jesus (CSCJ), localizada na zona sul, no
municpio de Marlia SP, sendo considerada de risco ambiental.
Anteriormente denominada Favela Risca Faca, a mudana de nome
ocorreu em 1994, quando um grupo de voluntrios desenvolvia um trabalho
na comunidade. Aos sbados, havia reunio com um grupo de mulheres
para que as mesmas contassem suas histrias de vida, seus sonhos e suas
esperanas. Num desses encontros, as participantes do grupo relataram o
incmodo que sentiam com o nome da favela, e a discriminao dela
decorrente. Foram sugeridos vrios nomes, sendo escolhido por elas o de
Comunidade do Sagrado Corao de Jesus, posteriormente bem aceito por
toda a comunidade, com o consentimento da parquia mais prxima.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 45
3.1.2. Populao de estudo
Para caracterizao das condies de vida foram includas
nesta investigao todas as sessenta e duas (62) famlias que compem a
Comunidade do Sagrado Corao de Jesus.
Para o conhecimento aprofundado das condies de vida
dessa populao foram investigadas onze (11) famlias, selecionadas por
critrios de amostragem que refletiram as mltiplas dimenses da totalidade
das famlias existentes na CSCJ.
Os critrios de incluso utilizados foram:
Tempo de moradia na comunidade: um primeiro (E1) e o
mais recente morador (E2) -2 famlias.
Tipo de moradia: um de alvenaria (E3), um de material
aproveitado (E4), e um de madeira (E5) -3 famlias.
Uma famlia inscrita na pastoral da criana (E6) -1 famlia.
Uma famlia que recebe auxlio bolsa do governo (E7) -1
famlia.
Uma famlia com renda (E8) e outra sem renda (E9)
advinda de trabalho formal ou informal -2 famlias.
Uma famlia nuclear, composta por um casal e seus filhos
(E11) -1 famlia.
Uma famlia com outros arranjos (E10) na qual no se
encontra mais o ncleo original -1 famlia.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 46
Estes critrios de incluso das famlias na investigao
foram elaborados a partir dos aspectos abaixo relacionados:
a) A famlia mais antiga na favela desenvolveu uma ampla
rede de relaes sociais, valores, prestgio, alm de
hbitos e costumes.
b) O mais recente morador no teve tempo necessrio de
se socializar nas regras da favela, favorecendo a
adaptao na nova vila.
c) A famlia que mora em casa de alvenaria tem
motivaes diferentes daquela que habita um barraco de
madeira, e da que possui um barraco de material
reciclado (papelo, etc.)
d) A famlia atendida pela pastoral da criana est
recebendo normas e preceitos de um estilo de vida.
e) A famlia atendida por alguma bolsa do governo
responde a regras definidas, o que leva socializao
de seus membros segundo alguns valores mais amplos,
socialmente aprovados.
f) A famlia que tem renda destaca-se no acesso a bens
que uma sem renda no consegue, o que desenvolve
representaes diferenciadas sobre oportunidade,
trabalho e a vida em geral.
g) A famlia nuclear e aquela com outros arranjos
vivenciam situaes diferentes em relao :
privacidade, total de rendimentos; organizao do
espao; higiene, e outras.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 47
3. 1. 3. Coleta de dados
As informaes referentes caracterizao das condies
de vida foram levantadas a partir de dados secundrios obtidos junto s
fichas de Cadastro Familiar da Secretaria de Higiene e Sade de Marlia,
ficha A (anexo 1).
A tcnica de entrevista, utilizando-se de um roteiro
estruturado (anexo 2), permitiu trazer tona a fala de um grupo social que,
segundo Minayo (1999), revela as condies estruturais, os sistemas de
valores, normas e smbolos, trazendo, na magia de transmitir, as
representaes de grupos determinados atravs de um porta-voz, em
condies histricas, scio-econmicas e culturais especficas. Para cada
famlia includa foi selecionado um morador adulto que, no ato da entrevista,
possusse disponibilidade de tempo. As entrevistas foram gravadas e
posteriormente transcritas na ntegra, gerando-se, assim, os dados para
anlise.
Foi utilizado o termo de consentimento livre e esclarecido
(anexo 3) em que os participantes, esclarecidos sobre os princpios ticos
para o desenvolvimento do estudo, assinaram.
O projeto de pesquisa foi submetido aprovao do Comit
de tica em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Marlia, conforme
Resoluo do Conselho Nacional de Sade n 196/96. Por fim, solicitou-se
autorizao para a realizao das entrevistas junto Secretaria Municipal de
Higiene e Sade de Marlia, por meio do Comit de tica em Pesquisa da
instituio.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 48
3. 1. 4. Anlise dos dados
A anlise dos dados possui trs finalidades, segundo Minayo
(1999). A primeira estabelecer uma compreenso dos dados coletados, em
seguida, responder s questes formuladas e/ou pressupostos da pesquisa
e, por fim, ampliar o conhecimento sobre o tema em estudo, articulando-o ao
contexto cultural do qual faz parte.
Para a caracterizao das condies de vida das famlias foi
utilizada anlise descritiva quantitativa, por meio de uma anlise univarivel
que, segundo Medronho (2002), aquela na qual apenas uma varivel
objeto de ateno, devendo-se descrever a distribuio de cada varivel na
amostra examinada. Desta forma, ser apresentada uma anlise univariada
com nmeros absolutos e freqncia simples.
A partir de fontes primrias constitudas pelas entrevistas,
abre-se um espao para a anlise qualitativa, medida que a fala dos
sujeitos entrevistados, ao ser transcrita de maneira literal, fornece um texto
escrito e, como tal, pode ser recopiado, arquivado e classificado
(Maingueneau, 2001). O discurso obtido submete-se a algumas regras: o
plano do texto est definido e o discurso, orientado para uma finalidade, qual
seja, registrar informaes que permitam identificar aspectos que atendam
os objetivos pretendidos. A partir da produo de um locutor (seu discurso),
tem-se um dos domnios da aplicao da anlise de contedo que, segundo
Bardin (1977), deve realizar a descrio objetiva, sistemtica e quantitativa
do contedo manifesto da comunicao. Para isso, seguem-se as etapas: a)
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 49
pr-anlise; b) explorao do material; c) tratamento dos resultados, a
inferncia e a interpretao.
Na primeira fase (pr-anlise), visando-se organizao do
material e reconhecimento das idias iniciais, foi realizada, uma leitura
flutuante do texto. Na fase de explorao, o material foi submetido a um
estudo aprofundado, orientado pelos objetivos e referencial terico. A partir
de um agrupamento por temas, recortou-se o texto, agregando discursos
similares e classificando-os, o que possibilita atingir uma representao do
contedo para posterior categorizao. Na fase de tratamento dos
resultados, aps apreenso da mensagem contida nas entrevistas, sero
construdas categorias empricas, conforme proposta por Minayo (1999).
A leitura das entrevistas foi orientada, ento, por vrias
questes: trajetria de vida, avaliao das condies de moradia, transporte,
alimentao, lazer, sade, violncia, e outras, para se obterem informaes
sobre que espao em foco, com a hiptese de que a vivncia na favela
intensifica representaes sobre um estilo de vida muito prprio.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 50
4. OS PERSONAGENS: O VIVIDO E O PENSADO
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 51
4.1. CONDIES DE VIDA DAS FAMLIAS
Viver implica o atendimento de algumas necessidades
bsicas para a prpria reproduo social. Neste sentido, a abordagem dessa
comunidade se estrutura para o levantamento dos seguintes dados:
distribuio por idade, acesso escola, alfabetizao, condio de atividade,
arranjo familiar, distribuio de gua, esgoto, destino do lixo, eletricidade,
tipos de casa e nmero de cmodos.
4.1.1 Quem so e o que fazem
Na Comunidade Sagrado Corao de Jesus encontram-se
sessenta e duas famlias (oito famlias j no se encontram mais residindo
na favela no momento da entrevista), num total de 276 pessoas, cuja
distribuio por idade e sexo pode ser vista na Tabela 1. A populao
jovem, pois at os 19 anos, encontram-se 56,52% da populao local, sendo
que o segundo maior grupo composto pelos que tm de 20 a 49 anos
(38,40%), e os de mais de 50 anos so apenas 5,07%. interessante
destacar que os menores de um ano compem apenas 1,08%, enquanto os
pr-escolares (1 a 4 anos) e os escolares de ( 5 a 9 anos) j compem um
grupo mais expressivo (11,6% e 17,4%, respectivamente).
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 52
TABELA 1- Distribuio da populao por sexo e faixa etria da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS-Planalto no ano de 2004.
FAIXA ETRIA FEMININO MASCULINO TOTAL %
< 1 ANO 1 2 3 1,1 1 A 4 16 16 32 11,6 5 A 9 17 31 48 17,4
10 A 14 24 15 39 14,1 15 A 19 20 14 34 12,3 20 A 49 52 54 106 38,4 50 A 59 4 4 8 2,9 60 A 69 2 3 5 1,8
> 69 1 1 0,4
TOTAL 137 49,64 139 50,36 276 100,0 Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
Uma questo que se destaca nessa distribuio
populacional a possibilidade do aumento da vulnerabilidade1 dessas
famlias, considerando-se a presena maior de crianas, adolescentes e
jovens, dado o aumento do volume de recursos necessrios para a
satisfao de suas necessidades bsicas. A presena de idosos tambm
aumentaria a vulnerabilidade, mas nessa favela seu nmero no
expressivo, embora as famlias que os abriguem, devam enfrentar
problemticas especficas.
1 A vulnerabilidade de uma famlia representa o volume adicional de recursos que ela requer para satisfazer suas necessidades bsicas, em relao ao que seria requerido por uma famlia-padro (Barros et al., 2003, p.8)
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 53
TABELA 2- Distribuio da populao menor de 15 anos que tem acesso escola por faixa etria na micro rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto no ano de 2004
FAIXA ETRIA FORA DA ESCOLA
n %
FREQENTA ESCOLA
n %
TOTAL
n % < 1 ano 3 100,0 - 3 100,0
1 a 4 31 96,9 1 3,1 32 100,0 5 a 9 21 43,7 27 56,3 48 100,0
10 a 14 1 2,6 38 97,4 39 100,0
TOTAL 56 46,0 66 54,0 122 100,0 Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
Na tabela 2, verifica-se que mais da metade (54%) das
crianas at 14 anos tem acesso instituio escolar, sendo que a quase
totalidade dos que tm entre 10 e 14 anos est freqentando a escola
(97,4%). Em relao s crianas fora do sistema escolar, chama-se a
ateno para a oferta reduzida de equipamentos sociais aos mais jovens,
especialmente as creches, que recebem crianas at 4 anos, e prescola
para os que tm entre 5 e 6 anos. As mes apontam que uma das
dificuldades a distncia entre a favela e a creche mais prxima, alm da
dificuldade de obteno de vagas, consideradas praticamente inexistentes
para essas faixas de idade.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 54
TABELA 3 - Distribuio da populao de 15 anos e mais segundo condio de alfabetizao na micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto no ano de 2004.
FAIXA ETRIA
ALFABETIZADOSn %
NO ALFABETIZADOS n %
TOTAL n %
15 a 19 33 21,5 1 0,7 34 22,1 20 a 49 90 58,5 16 10,4 106 68,8 50 a 59 3 2,0 5 3,3 8 5,2 60 a 69 2 1,3 3 2,0 5 3,3
> 69 - - 1 0,7 1 0,7
TOTAL 128 83,1 26 16,9 154 100,0 Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
Face pergunta se sabiam ler e escrever, observou-se que,
das 154 pessoas com 15 anos e mais, 83% consideraram-se alfabetizadas
enquanto cerca de 17%, no alfabetizados. Chama-se ateno, no entanto,
para a presena de adultos entre 20 e 49 anos no alfabetizados, que no
atendem s necessidades do desenvolvimento de atividades ou
oportunidades relacionadas ao acesso ao trabalho. A taxa de analfabetos da
CSCJ de quase 17%, maior do que a taxa existente no Brasil e regio
sudeste, 11,6% e 5,4% respectivamente ( IBGE 2003).
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 55
TABELA 4- Distribuio da Populao por condio de atividade na micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS-Planalto no ano de 2004.
EMPREGO N %
APOSENTADO 3 1,1 DESEMPREGADO 78 28,3 OCUPADO 50 18,1 NO SE APLICA* 145 52,5
TOTAL 276 100,0 *NSA: crianas, donas de casa e estudantes Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
Nesta comunidade, o nmero dos que afirmaram ser
desempregados (28,26%) elevado, comparando-se aos ocupados
(18,12%), frente a um grande contingente (52,54%) de donas de casa,
estudantes e crianas que no esto ocupadas. Na CSCJ considerou-se na
condio de ocupado tanto o trabalhador formal quanto o informal, ou seja,
aquele que faz bicos ou trabalho eventual, ou so autnomos, no tendo
renda fixa.
Os 276 moradores esto agrupados em 62 unidades
familiares com seguintes caractersticas: predomnio de famlias nucleares
(69,4%), isto , composta pelo casal original e filhos; seguidas de famlias
com outros arranjos (20,9%), e seis pessoas morando sozinhas (9,7%).
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 56
TABELA 5- Distribuio segundo arranjo familiar na micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS-Planalto no ano de 2004.
Tipo de famlia N %
unipessoal 06 9.7 nuclear 43 69.4 Outros arranjos* 13 20.9
Total 62 100
Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto. * qualquer outra situao em que no haja mais um ou mais cnjuge original, inclusive novos casamentos com filhos trazidos de outros matrimnios, ou pelo falecimento ou abandono de um ou dos dois cnjuges.
4.1.2. O Espao Fsico
A rea de abrangncia da Unidade Bsica de Sade
Planalto, na qual se situa a favela Comunidade Sagrado Corao de Jesus,
apresenta vrias barreiras geogrficas: terreno em declive, eroses, ruas
sem pavimentao, solo bastante mido com grande quantidade de minas
de guas, localizadas ao lado de valas de esgoto a cu aberto. Na micro-
rea CSCJ, o abastecimento de gua provm de duas fontes: poo/nascente
e da rede. A maior parte das casas/barracos (55%) abastecida por gua da
rede pblica e 45% da que provm de poos/nascentes. As moradias com
abastecimento da rede utilizam essa gua geralmente para cuidar dos
afazeres domsticos, e para consumo, usam a gua da mina no tratada.
Estas minas no so devidamente tampadas alm de ficarem ao lado de
valas de esgoto.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 57
4555
0102030405060708090
100%
po/nasc rede
Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
GRFICO 1- Distribuio dos domiclios segundo o abastecimento de gua
da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS-Planalto em 2004.
Cerca de 77.5% do esgoto da micro-rea CSCJ est a cu
aberto, 6.5% em fossa e apenas 16% est ligada rede coletiva pblica.
Apenas as casas na rua principal possuem rede de esgoto, sendo que, nas
restantes, o esgoto sai da casa a cu aberto, passando por toda a rea,
deixando o terreno mido, escorrendo at um crrego localizado ao final da
favela. Os domiclios, em sua maioria, no possuem banheiro. Assim, as
pessoas utilizam os banheiros comunitrios, que so casinhas de madeira
com um buraco no cho.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 58
77,5
6,516
0102030405060708090
100
%
Cu aberto Fossa Rede
Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
GRFICO 2- Distribuio dos domiclios segundo o destino do esgoto da
micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto em 2004.
Cerca de 27% dos barracos no so servidos por coleta de
lixo, sendo, s vezes, mais fcil jog-lo em terrenos e valas prximas; 5%
dos barracos costumam queim-lo e, em 68%, ocorre coleta porque esto
prximos s ruas principais de acesso favela.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 59
27
68
5
0102030405060708090
100%
Cu aberto coleta queima/enterra
Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
GRFICO 3 Distribuio dos domiclios segundo o destino do lixo em
relao ao nmero de famlias da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto em 2004.
Cerca de 8% das casas no possuem energia eltrica e 92%
possuem, sendo esta obtida por meio de ligaes clandestinas. As famlias
sem energia eltrica costumam utilizar velas para iluminao, o que provoca
constantes queimas de moblias, e representa um perigo permanente.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 60
92
8
0102030405060708090
100%
Com energia Sem energia
Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
GRFICO 4 Distribuio dos domiclios segundo eletricidade nas casas da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto em 2004.
As casas da comunidade so 24% feitas de tijolo/adobe,
32% de madeira, 5% mista e 39% de material reaproveitado. As casas
mistas so constitudas de tijolo e madeira, e as de material reaproveitado
so de madeira velha, plstico, lona, lata e papelo.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 61
3239
5
24
0102030405060708090
100%
Madeira Mat. Aprov. Mista Tijolo/Adobe
Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
GRFICO 5 Distribuio dos tipos de casa da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto em 2004.
Considerando as condies de habitabilidade, o tamanho da
moradia se torna importante quando se parte da premissa de que so quatro
as funes bsicas num domiclio familiar: repouso, estar, preparao de
alimentos e higiene. Dependendo do nmero de cmodos, aqui
considerados quaisquer compartimentos de uma casa, tem-se uma
indicao sobre a adequao do espao s atividades familiares (Troyano et
al., 1991). Na tabela abaixo, verifica-se que estas funes no esto sendo
exercidas em locais apropriados:
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 62
TABELA 5 - Distribuio do nmero de cmodos das moradias das famlias da micro-rea CSCJ da rea de abrangncia da UBS- Planalto no ano de 2004.
Nmero de cmodo (s) Total de famlias %
1 10 16,1 2 21 33,9 3 09 14,5 4 15 24,2 5 05 8,1 6 02 3,2
Total 62 100,0 Fonte: cadastro familiar 2004, UBS Planalto.
Chama a ateno o fato de que famlias residindo em
barracos com 1 e 2 cmodos somam 50% de todas as famlias e que,
acrescentando-se esse nmero ao das que habitam em trs (14,51%), torna-
se evidente a distncia que esto de um padro aceitvel de habitabilidade.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 63
4.2. QUE ESPAO ESSE?
A construo desse espao est baseada na trajetria at a
favela, na descrio de como viver na favela segundo aspectos como
condies de moradia, rede social, acesso alimentao, pensar a sade,
violncia, lazer e como sobreviver com to poucos recursos.
4.2.1. A favela enquanto a CASA DO HOMEM
Para Rodrigues (2001), morar uma das necessidades
bsicas dos indivduos, pois no possvel viver sem ocupar um espao.
no interior da casa que se realizam outras necessidades - onde se dorme,
tem-se privacidade, alimentao, higiene pessoal, podendo ser local de
trabalho para subsistncia. Mas, para alm da casa, no caso da favela, ela
prpria constitui um espao social de sobrevivncia, tornando-se a casa do
homem.
Num pas capitalista que no distribui sua riqueza de forma
equnime, como discutido anteriormente, h dificuldade de se pagar aluguel,
de possuir uma casa prpria, entre outras, que colocam certa parcela da
populao na condio de favelado.
As famlias mais antigas na Comunidade Sagrado Corao
de Jesus chegaram no comeo dos anos 80 e, ao longo destes mais de
vinte anos, seus filhos constituram novas famlias no mesmo local,
reproduzindo a pobreza, mas, constituindo um grupo de relaes primrias
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 64
cuja intensidade dada pela proximidade do parentesco. Como mostrou
Durhan (1973), a famlia e os parentes constituem um importante ponto de
apoio e referncia para a adaptao e ajuste. Nas entrevistas realizadas,
ficou evidente o papel da famlia como suporte, sendo o aluguel pago antes
da mudana para a favela, um fator presente e certamente decisivo no
relato das trajetrias de vida. Em alguns depoimentos, a mudana para a
favela ocorreu como um projeto familiar: sair do local de origem se deveu
ao desejo de melhoria no padro de vida que se estendeu aos familiares
mais prximos. Por outro lado, como indicaram Almeida e DAndrea (2004),
ter um ponto de apoio, um ponto de chegada estvel, isto , um familiar j
instalado, facilita a deciso de mudana para a favela.
... a n eu fiz meu barraquinho, falei pra minha filha, ela pagava aluguel n, tinha muita criana...voc vai junto ca me e nois faiz um cmodo pra voc perto da me... e nis tamos tudo aqui e meus filho foi casando tambm, e j foi ficando tudo aqui perto nesse meiozinho, ento eu gosto de morar aqui, adoro esse lugar aqui, onde cabei de criar meus filho (E1). Ah.. um pouco bo, mas se o povo daqui fosse mais unido...Os vizinho tem uma parte legal mas outras no (E2).
Como se percebe, E1 vive h longo tempo na CSCJ, na
realidade 20 anos, tempo suficiente para que seus filhos estabelecessem
suas prprias famlias no mesmo espao numa ntida reproduo das
condies de vida, o que no impede uma valorao altamente positiva de
morar na favela. Portanto, essa possibilidade de sobrevivncia das
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 65
geraes que se agrupam no local, que parece estar subjacente
representao favorvel acima.
J E2 sendo o mais recente morador, 01 ano na CSCJ,
ainda tem uma avaliao parcial sobre o morar nesse espao, como se
percebe em sua fala, considerando-se que o estabelecimento de diferentes
relaes sociais, de amizade, de vizinhana, etc., depende de inmeros
fatores, inclusive tempo de conhecimento do outro.
se eu fosse pagar aluguel como que eu ia sobreviver, no tem como sobreviver, ento no to ruim morar aqui...(E9).
De outro lado, contingncias materiais determinam
necessidades, inclusive de afirmao positiva sobre o morar na favela, como
em E9.
A explorao da mo de obra no campo tambm foi uma
causa da migrao dessas pessoas para a favela, associada a outros
fatores, como podemos observar nos relatos abaixo:
Morava na fazenda,.....a o homem no pagava direito, ficava muito longe pra as criana estuda, .....a meu filho falou: vamo l a senhora arruma um servicinho e a senhora arruma um lugarzinho e vai mora l (E1) A meu pai veio um dia aqui e falou: l na fazenda no ta dando certo, porque o pouco que tava ganhando, estava sendo pouco. A comeou a poca de muita chuva......a eu falei: pai l no ta dando pro senhor, ento vem pra c, a ele veio mora aqui.(E6)
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 66
Segundo Rodrigues (2001), a favela surge com a
necessidade de onde e como morar, sendo produto de vrios processos
como a expropriao dos pequenos proprietrios rurais e da
superexplorao da fora de trabalho no campo, levando no apenas a
migraes rural-urbanas, mas tambm urbana-urbanas. O empobrecimento
da classe trabalhadora e o preo da terra urbana, sendo inacessveis para
a maior parte dos trabalhadores, tornam a favela uma expresso da luta
pela sobrevivncia.
Dada as condies histricas, a lgica capitalista
contrria vida associativa e coletiva s quais os moradores devem
recorrer, advindo disso algumas das contradies da vida em favela. Na
explicao de Sawaia (1990, p.47), na favela, as pessoas vivem muito
prximas, todas se conhecem, mas nem sempre se gostam. No se
entreamam, se entredependem e muitas vezes entretemem.
...a gente se conhece todo mundo que mora aqui perto, tem amizade de bem com todo mundo...(mas) aqui...uns toma uns arco, ce j no dorme em paz, outro j grita, ce j tem que acorda fora de hora...uns reclama bem dos outros...mas o povo se combina da maneira que pode, n... (E11). tambm tem muita coisa boa, tem vizinhos bons, tem uns que no bom, no todo lugar tambm que maravilhoso, mas d para viver... (E8).
Assim, dependendo da rede de relaes sociais
desenvolvidas, da avaliao que uns tm dos outros, a favela um lugar
bom para se viver, mesmo com obstculos, principalmente em relao s
precrias condies da moradia e falta de privacidade, considerando o
nmero de cmodos e as pessoas que nela habitam. Na famlia em que j
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 67
no se encontra o ncleo original (E 10), podemos perceber dificuldades, em
relao ao espao fsico, como falta de privacidade, de organizao e de
convivncia, comuns tambm a outros moradores:
Eu gosto daqui, um lugar calmo, mas o que me incomoda que a casa no s minha, s tem um cmodo e fica muito difcil pra dormir, a gente dorme tudo amontoado e quando o sr. J. chega bbado as menina j no gosta (E10). ...meu irmo veio morar comigo, a reparti minha casa no meio, ento fiquei com 3 cmodos, quando vem a chuva molha tudo e entra gua aqui dentro....mas eu acho que a casa boa, s o pobrema que no pode chover (E6).
Mesmo com uma avaliao negativa sobre a infra-estrutura
no local, as diferentes famlias valorizam a rede de relaes sociais
desenvolvida:
A gente conhece todo mundo que mora aqui, tem amizade, de bem com todo mundo. O ruim daqui um monte de coisa que falta, no tem asfalto, quando chove vira aquele barreiro.... (E11). ...eu tenho esse pessoal aqui como uma famlia, sabe...os pessoal no me aborrece, no briga com a gente n. O pessoal so muito honesto com a gente, ningum fica falando da vida de ningum, ento eu adoro muito o pessoal daqui (E1).
As trs falas a seguir so de famlias que moram em
diferentes tipos de moradia como alvenaria (E3), material reaproveitado
(E4) e madeira (E5), mas que apesar das dificuldades e precariedades de
suas casas, gostam do lugar e das pessoas:
O bom daqui que mais sossegado, a casa s tem um cmodo mais boa, tenho minhas planta, a horta que ajuda muito (E3).
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 68
A casa que no boa n, fia. Quando chove, a chuva ta l em So Paulo aqui j t chovendo, chove tudo dentro,...nis que fizemo, eu e meu fio. O patro deu as tbuas, as teias e nois feiz esses dois cmodos... banheiro pra necessidade l traz, de buraco (E4). Quando chove vira uma barrera, um brejo, as teias va tudo, entra muito vento ...Mas eu adoro esse lugar que foi abenoado por Deus, considero todo mundo meus fio e amigo, todo mundo me chama de v e me respeita (E5).
Em caso de necessidade, a rede de parentesco e de
vizinhana forma uma estrutura de ajuda, desenvolvendo-se grupos de
intercmbio e relaes de troca. Numa situao de precariedade,
associao e solidariedade devem estar presentes para se enfrentarem
condies crticas de sobrevivncia. Conforme Sawaia, uma situao na
qual se deve compartilhar recursos escassos e intermitentes para lograr
impor-se em grupo s circunstncias que certamente os fariam sucumbir
como indivduos isolados. Para a autora, na vida em situao de misria,
... preciso socializar a desgraa, solidarizar-se na troca de favores entre
os pares (SAWAIA, 1990, p. 47).
... passei por uma fase difcil n...de no ter mesmo o que por no fogo, no ter mesmo de jeito nenhum. Ento assim, uma irm do lado, ou a outra pra ajudar... (E8) s vezes tem as condies de ter n, s vezes a gente passa por dificuldade. Ento j procurei a Assistente Social, j procurei os Vicentinos e eles sempre me forneceram... (E11). ... mas o povo se combina da maneira que pode, n, quando um precisa o outro ajuda, quando um t podendo tambm ajuda o outro e a ns vamos levando assim devagar, at chegar l n (E 7). Fiz aniversrio e ganhei tanto parabns que foi uma bno, do povo todo, ento eu adoro o pessoal daqui pra mim uma famlia que eu tenho (E1).
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 69
Alm da troca entre os pares, formando vnculos entre
parentes, vizinhana e conterrneos, existem as instituies religiosas, da
sade e do terceiro setor que formam redes sociais por meio das quais
circulam benefcios materiais. Como ressaltaram Almeida e DAndrea (2004),
algumas vezes esses benefcios se traduzem em forma de informaes e
contatos, sendo que, alm de afetivos, contribuem para a integrao
socioeconmica e atenuam a condio de vulnerabilidade.
Olha, eu quero agradecer faculdade. Antes no vinha ningum para olhar a gente. A comeou a vir os alunos. Eu amei vocs aqui, dando ateno que ningum dava, vieram aqui de corao, de peito aberto, no com medo da gente, porque os outros pensam que a gente que mora na favela bicho... (E8). A funcionria do posto me conhece e, quando eu no tenho comida, ela ajuda a arrumar o arroz, feijo porque eu no tenho capacidade de sair pedindo...(E3). A pastoral da criana ajuda, pesa as crianas, faz leite, almoo, ns rezamos tudo certinho, faz fila e ela distribui...(E9). A pastoral da criana pesa todo ms, vem d leite, d bolacha, ensina a gente te educao, explica vrios tipos de coisa pra gente aprend (E6).
Observamos a ampla rede de relaes sociais primrias que,
sejam de parentesco e vizinhana, sejam de entidades religiosas e
instituio de ensino, se complementam enquanto estratgias de
sobrevivncia, como identificamos inclusive nos relatos das famlias
atendidas pela pastoral da criana (E6 e E9) e a que recebe auxlio do
governo (E7), oferecendo diferentes tipos de apoio: do material ao
emocional, compartilhando-se tristezas e alegrias. Nesse sentido, viver na
favela fazer parte dessa rede, garantindo uma identidade social para
aquele que j vtima em potencial da sociedade capitalista.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 70
4.2.2. Viver na favela e pensar sobre a sade, alimentao, violncia e lazer.
Como se viu, a trajetria de vida das pessoas da
Comunidade Sagrado Corao de Jesus marcada pela migrao (em
alguns casos rural-urbana; em outros, urbana-urbana), luta pela
sobrevivncia, fome, falta de dinheiro, desemprego, enfim, pela falta de
acesso s necessidades essenciais da vida. Nesta condio marcada pela
carncia, no se estranha que representaes sobre a sade e doena
valorizem a dimenso biolgica. De um lado, porque uma das formas
tradicionais de compreenso da sade, embora no deixe de ser uma viso
reducionista, seja pelas condies de vida que no permitem um olhar mais
amplo, seja pela ideologia mdica que vem privilegiando esta determinao
orgnica em relao social e psicolgica.
Ah... sade pr mim uma pessoa que num doente, que num tem nada. Mas tamem muito difcil n, porque ... tem uma gripinha ali mas isso normal.... E 1. ..... porque eu acho que assim se for pr gente fic doente a gente fica em qualquer lugar, num tem lugar pr ficar n, a gente fica em qualquer lugar... E7.
Do outro lado, encontra-se a incorporao, mesmo que
fragmentada, de noes vindas de uma medicina cientifica. Isto se deve a
extenso do campo de normatividade da medicina ( Donnangelo, 1978,
p.33), processo pelo qual a pratica mdica, ao tomar as diferentes classes
sociais como seu objeto, divulga suas concepes e representaes de
sade, e os meios para obt-las. Identifica-se, na explicao a seguir, a
participao dos servios de sade e outros que desenvolvem a puericultura:
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 71
Ah, a sade higiene, limpeza n, tem que ter cuidado com tudo n, inda mais a gente tendo criana n, em tudo tem que estar pensando n, e deixar tudo as coisa limpinha, fazer tudo da maneira adequada n, alimento fervido, bem lavado, a comida bem lavada tambm, perfeita, ter um lugar limpo E11.
No entanto, mesmo com a expanso da racionalidade
mdica, para dar um sentido aos acontecimentos na vida lana-se mo de
um estoque de experincias anteriores, transmitidas pela tradio, que
funcionam como um cdigo de referncia (Souza, 1999). Segundo Schutz:
O homem na vida diria tem a qualquer momento um estoque de conhecimento mo, que lhe serve como um cdigo de interpretao de suas experincias passadas, presentes e determina suas antecipaes das coisas futuras. Este estoque de conhecimento a mo tem sua histria particular. Foi constitudo de e por atividades anteriores da experincia de nossa conscincia, cujo resultado tornou-se agora posse nossa, habitual (Schutz, 1979 apud Souza, 1999).
Nesse aspecto que tratamento mdico e tradio religiosa
combinam-se de forma inter-relacionada para o enfrentamento do dia-a-dia,
evidenciando a fora de um pensamento mgico-religioso que vem
acompanhando a cultura humana:
sade eu nem sei respond isso a ce sabe! Porque graas a Deus que feiz eu viv, toda semana eu tava no mdico, vivia... toda hora tinha uma coisa. Faiz um ano que graas a Deus eu num sei o que que um mdico. Eu num fui mais. E sabe que uma hora acord e a gente fala ah meu Deus, me ajuda que amanhea o dia logo e por a v passando o dia intero. Agora eu t precisando de i mas sei l, continua assim( E5).
Para a classe trabalhadora estar com sade ter
condies de trabalhar, sobretudo em uma sociedade capitalista, em que a
fora de trabalho a nica maneira de sobreviver conforme podemos
observar no relato abaixo:
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 72
Pr mim ter sade a gente precisa de te um pouquinho pra gente trabalh, pra gente cresc na vida, fica numa situao melhor, n? Pr mim ter sade essa parte a... Luta por um ideal pr gente consegui uma coisa melh pros menino. No s o sucesso da gente mas como pros filho da gente, n. Pr mim sade isso ( E6) .
Numa viso mais ampla, englobando a relao pessoal e a
boa alimentao, alm de se ter condies para o trabalho, fatores esses
relacionados s condies de vida, a representao abaixo bastante clara:
t sade assim, a gente n, guent convers, a gente t comendo bem graas a Deus n, pod trabai, a gente vai num lugar a num sente nada... (E3).
Percebeu-se, portanto, a existncia de um conceito ampliado
de sade que envolve seus determinantes sociais, embora em muitos
depoimentos esteja mais presente a percepo biolgica do corpo
organicamente saudvel, da ausncia de doena e do acesso ao mdico
que asseguraria a sade. A experincia de sade individual, por outro lado,
muito marcada pela presena da doena ou sua inexistncia e negao.
A viso medicalizada de sade, na qual a nfase se d no
tratamento mdico, levanta questes de acesso ao sistema pblico de
sade. Para os moradores da CSCJ h um difcil acesso e descaso, que os
levam a se utilizar de estratgias prprias para conseguirem ser ouvidas,
alm de reclamarem da demora do governo em relao aos benefcios e da
eterna espera por um atendimento digno, que possa resolver seus
problemas.
As questes envolvidas: Macro e Micro Estrutura 73
Nis feiz um cadastro l pelo.... como que ?.... Espao Cultural at hoje, vai faz treis mes j. Ouo vai vim, vai vim, vai vim at hoje nada. E ns esperano esse dinheiro porque nis precisa n, porque tem criana, as criana tem vontade e o governo v d, v d, v d. Ai vai no posto remdio j cheg? Num cheg ainda, tem que esper, tem que esper, esper, tudo tem que esper. S promete, s promete. Foi um monte de gente at hoje nis t esperando, vai faz treis ms j (E2). O posto resolve, no sempre, mas resolve. s vezes no tem mdico, t faltando mdico...Tem dia que tem mdico, dia que no tem mdico... Dia de segunda no tem nem pediatra nem clnico.... A fica esse rolo a... Mas quando tem, resolve a situao da gente (E 4).
No posto de Sade, no Planalto, e se no ti