Download pdf - dança circular

Transcript
  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    CURSO DE PS - GRADUAO ESPECIALIZAO EM ARTE

    INTEGRATIVA

    A RITUALIZAO NA DANA CIRCULAR SAGRADA: A BUSCA DO

    SAGRADO COMO CAMINHO PARA O PROCESSO DE INDIVIDUAO

    Cathia Santos Soares Bueloni

    Orientadora: Silvia Anspach

    So Paulo, 2013

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    CURSO DE PS - GRADUAO ESPECIALIZAO EM ARTE

    INTEGRATIVA

    A RITUALIZAO NA DANA CIRCULAR SAGRADA: A BUSCA DO

    SAGRADO COMO CAMINHO PARA O PROCESSO DE INDIVIDUAO

    Cathia Santos Soares Bueloni

    Monografia de Concluso de Curso

    apresentado como requisito para

    obteno do certificado de concluso do

    curso de Ps Graduao

    Especializao em Arte Integrativa

    Orientadora: Silvia Anspach

    So Paulo, 2013

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    A RITUALIZAO NA DANA CIRCULAR SAGRADA: A BUSCA DO

    SAGRADO COMO CAMINHO PARA O PROCESSO DE INDIVIDUAO

    Cathia Santos Soares Bueloni

    Orientadora: Silvia Anspach

    Aprovada em _____/_____/________

    Nota da MCC:________

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    s minhas filhas Fernanda e Giovanna, razes de

    todas as minhas buscas.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus, que me permitiu trilhar esse caminho de descoberta.

    Agradeo minha famlia, que com seu amor, carinho, pacincia e incentivo me

    ajudou a concluir esse projeto.

    Agradeo aos pacientes que compartilharam comigo sua dor, depositando no

    trabalho conjunto as esperanas de encontrar a si mesmos.

    Agradeo aos colegas das rodas junto aos quais pude vivenciar e reconhecer o

    sagrado.

    Agradeo s minhas colegas de trabalho, cuja compreenso e apoio tornaram

    possvel minha pesquisa.

    Agradeo aos colegas de curso que nas trocas de saberes e emoes

    enriqueceram meu ser.

    Agradeo aos professores que com sua pacincia e empenho trouxeram luz

    minha nsia de saber.

    Agradeo aos mestres focalizadores que, com sua energia de amor, me

    despertaram para mais uma etapa do trabalho de auto- transformao.

    Agradeo a todos os grandes homens que com seu amor e trabalho

    descortinaram o saber sobre o qual pude me debruar e aprender.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    SUMARIO

    RESUMO .....................................................................................................................................6

    INTRODUO ...........................................................................................................................7

    CAP 1 SOBRE AS DANAS CIRCULARES SAGRADAS ................................................12

    CAP. 2 O HOMEM, A RITUALIZAO E O SAGRADO ...................................................21

    CAP. 3 A DANA, O RITUAL E O SAGRADO LUZ DOS CONCEITOS JUNGIANOS

    ...................................................................................................................................................31

    CAP 4 A CORPOREIDADE COMO MANIFESTAO DA DANA E DO SAGRADO ..49

    CONCLUSO ...........................................................................................................................57

    BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................61

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    6

    RESUMO

    Este trabalho trata da questo da ritualizao nas Danas Circulares Sagradas

    (DCS), sua relao com a vivncia do sagrado como necessidade humana. Com nfase

    nos conceitos Jugianos, busca compreender como a experincia do sagrado, proposta

    pelas danas em questo, pode ser caminho para uma transformao de ordem interior.

    Prope tambm a considerao da corporeidade como sustentadora dessa

    transformao, uma vez que no corpo que a dana e as mudanas se manifestam.

    Atravs de pesquisa bibliogrfica conecta os diversos conceitos e conclui que possvel

    pensar na DCS como um caminho para se iniciar o processo de individuao.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    7

    INTRODUO

    O instante tambm o impacto de atingir o

    conhecimento mximo. Assim, o intervalo de tempo que

    eu vivencio to somente um instante... O que eu

    realmente vivencio o instante sempre errante e assim,

    tambm eu, continuamente, caminho adiante. Contudo,

    s no presente que posso vivenciar o todo.

    (Bernard Wosien, 2000, pg. 34)

    Nos tempos atuais o ritmo acelerado da vida, a busca incessante por completude

    tem feito o homem procurar sentido para a vida nas suas razes, na sabedoria e cultura

    de todos os povos que viviam a espiritualidade como aspecto natural da vida.

    Entre as formas de refazer o contato com a essncia humana a arte, nas suas

    mais diversas formas, e a religio tem tomado lugar de destaque na vida do homem

    comum. A dana como a primeira manifestao de arte da humanidade tem ainda nos

    nossos dias ocupado espao nas relaes sociais, nos eventos e celebraes. Se bem que

    em muito perdeu o sentido de contato com a espiritualidade humana, mas ainda uma

    manifestao da arte que se mantm presente na vida comum.

    O movimento da Dana Circular Sagrada (DCS) surgiu na segunda metade do

    sec. XX, com o propsito de fazer esse resgate e de buscar nas razes da sabedoria dos

    povos antigos, a insero da dana na vida como forma de contato com a

    espiritualidade. Este resgate traz esse movimento imerso em mitos e rituais que de

    forma simblica transmitem o contedo da sabedoria dos povos que era passado de

    gerao em gerao.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    8

    A Dana Circular Sagrada um movimento iniciado por Bernard Wosien

    (Wosien, 2000), bailarino alemo, que cativado pelas danas folclricas de diversas

    culturas, passou a pertencer a um grupo que se apresentava pela Europa, alem de ensinar

    danas de roda como procedimento pedaggico na universidade de Marburg, Alemanha.

    Em 1976 Bernard apresentou seu trabalho na comunidade de Findhorn, no norte da

    Esccia onde, filosofia e historia da dana de Bernard, se somou a crena no Amor, no

    pensar positivo e no poder transformador dos grupos quando trabalhando em harmonia.

    Desde ento, esse movimento tem alcanado todo o planeta, divulgando a sabedoria e

    cultura dos povos, ensinando novas dimenses da dana, a meditao, a orao e o

    autoconhecimento.

    O homem sempre danou para expressar diferentes

    emoes felicidade, tristeza, alegria, pesar ou xtase.

    Antes de ter instrumentos musicais, o homem tinha o

    seu prprio corpo para bater palmas e marcar o

    ritmo com os ps, para usar a sua voz para cantar uma

    melodia e todo o seu corpo para expressar a emoo

    que ele estava sentindo, e agradecer imitando os

    pssaros, os animais, as arvores e os diferentes

    elementos da natureza. Aos poucos a Dana ganhou

    um significado menos espiritual. Eventualmente foi

    usada no para expressar a espiritualidade do homem,

    mas como esforo vo para encontra-la. Ao longo dos

    tempos, essa espiritualidade foi perdida e encontrada

    varias vezes. Agora ns a descobrimos de novo e eu

    acredito que no precisamos perd-la desta vez.

    (Anna Barton, 2006, pg. 14)

    A prtica das Danas Circulares Sagradas repleta de simbologia nos

    movimentos e de rituais de inicio, finalizao, alem do prprio smbolo do circulo. Essa

    simbologia e os rituais que a acompanham so a dimenso do sagrado que imprime

    intensidade a vivencia alem de promover sentimentos de plenitude, harmonia e paz,

    como ouvimos dos participantes. Esta experincia sempre seguida de inmeros relatos

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    9

    de grande bem estar, de sentimento de unio, de pertencimento, comoo e alegria.

    parte a estranheza dos pequenos rituais incorporados prtica, aos pouco as pessoas se

    do conta da necessidade deles para trazer todos para uma mesma sintonia.

    Nos ltimos anos, a DCS tem se tornado um recurso muito utilizado por

    profissionais de sade para preveno de disfunes gerais e tratamento de transtornos

    mentais. Simbolicamente a roda traduz o caminhar pela vida, se nesta experincia

    pudermos compreender nossa necessidade de ritualizao, assim como a possibilidade

    de transcender a ela, ser que a qualidade da vivencia na dana e na vida poder se

    modificar para melhor? Ser que compreender essa ritualizao, sentir o poder que ela

    tem de nos transportar para alem de ns mesmos, pode fazer diferena na maneira como

    passamos a viver nossa vida? Esses questionamentos tm sido os impulsionadores para

    o presente trabalho, que carrega a expectativa de esclarecer alguns destes pontos ou

    ampliar o olhar para a prtica.

    O primeiro captulo traz uma contextualizao da dana, o entendimento sobre o

    qual se baseia todo o desenvolver do pensamento a respeito do tema proposto. preciso

    que se atente para o fato de que cada modo de entender a realidade implica numa forma

    de viver e interpretar a vida como um todo. Para pensar a pratica da DCS,

    principalmente sua aplicao na sade, fundamental que se tenha uma fundamentao,

    crenas e caminhos a nortear as aes, as vivncias. Partimos do princpio que a

    construo de ns mesmos se d sobre a prpria vivncia cotidiana, que carrega em si

    todos os nossos postulados de vida. Ento, fundamental que se conhea o papel da

    dana na vida e, por conseguinte, o papel da DCS.

    Para compreender o papel da ritualizao na vida do homem antigo e moderno

    encontramos grande suporte, no estudo de Mircea Eliade em Mito do Eterno Retorno

    (1992). O autor explana sobre a necessidade de rituais da humanidade atravs do tempo

    afirmando que pela ritualizao nos mantemos conectados com o momento da

    CRIAO, a totalidade, o Self, a experincia do sagrado. O rito uma maneira de o

    homem fazer contato com o que imutvel, com aquilo que o transcende, com a fora

    primeira da vida. Com o desenrolar da historia da humanidade, a fora de coeso

    exercida pelos rituais primitivos foi substituda pela religio institucionalizada, que de

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    10

    alguma forma ainda mantm a presena do sagrado na vida. No homem moderno a

    racionalizao tenta substituir esse contato, impondo uma dificuldade ou

    impossibilidade do acontecer natural da conexo com o Self. Jung afirma que os rituais

    so uma forma de manter associados consciente e inconsciente, cujo desligamento leva

    ao adoecimento. Da a importncia de compreender o papel do movimento da DCS

    como uma busca de refazer esse caminho de contato com a essncia, visto ser uma

    necessidade humana.

    Na sequncia buscamos compreender alguns nuances da humanidade de todos

    ns, que Jung revela com seus conceitos de smbolos, inconsciente coletivo, consciente,

    Self, e processo de individuao. A proposta de fazermos uma relao destes

    conceitos com a prtica da DCS, apresentado uma reflexo de como estes componentes

    da psique se apresentam durante o desenvolvimento das prticas da dana. E em

    percebendo essa ligao, refletir tambm no quanto podemos ampliar a qualidade da

    aplicao da DCS na sade, se ela vier consciente da dana de cada um, ou seja, como

    cada participante se empenha e se mostra em necessidades e facilidades durante a sua

    dana. Propomos entender se a vivncia da DCS a partir de uma viso ampliada, com

    cuidadosa orientao pode ser experienciada como um caminho para o processo de

    individuao.

    Entendemos que no h como vivenciar o sagrado, muito menos a partir da

    dana, sem levar em conta a corporeidade. no corpo que marcamos as experincias na

    forma de posturas, de tnus muscular, de flexibilidade ou de rigidez. Nosso corpo,

    assim como nossa psique, contm toda a histria da humanidade em si. atravs das

    percepes corporais que o sagrado acontece. Tambm nossa inteno fazer uma

    abordagem sobre a corporeidade e sua importncia para se considerar a prtica da DCS.

    O potencial inerente DCS de trazer tona essa fora de ligao da vida comum

    com a essncia, com o sagrado pode ser entendido e cuidado como sendo um caminho

    pelo qual o individuo possa resgatar essa comunho entre consciente e inconsciente,

    fazendo acontecer o processo de individuao?

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    11

    Para compreender essa questo buscamos fazer associaes dos smbolos

    presentes na DCS: o circulo, o centro, o corpo, com os conceitos trazidos por Jung de

    Self, inconsciente coletivo, consciente, e processo de individuao (Jung, 2008), assim

    como com o papel desses smbolos nos rituais antigos. A possibilidade ou no desta

    prtica funcionar como caminho para o processo de individuao e, a partir da vivencia

    consciente de pequenos rituais, resgatar o sentido da vida razo primeira desta

    proposta de estudo.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    12

    CAP 1 SOBRE AS DANAS CIRCULARES SAGRADAS

    Para se introduzir o contexto das DCS imprescindvel que se compreenda o

    papel da dana para a humanidade e a abordagem que utilizamos para isso. Nosso olhar

    tem se ancorado no pensamento fenomenolgico, que traduz a viso de mundo que

    norteia nossas aes, de maneira absolutamente compatvel com as observaes da

    prtica diria das vivncias com as danas na rede pblica de sade. preciso entender

    que fenomenologia o estudo das essncias. Segundo ela, todos os problemas, por si

    mesmos j definem as essncias: via percepo ou conscincia, por exemplo. Ela visa

    compreender o homem e o mundo atravs dos fatos, coloca em suspenso as atitudes

    naturais para compreend-las. uma exposio do espao, do tempo, e do mundo

    vividos.

    Tudo o que sei do mundo, mesmo devido cincia, o

    sei a partir de minha viso pessoal ou de uma

    experincia do mundo sem a qual os smbolos da

    cincia nada significariam (Merleau-Ponty, 2006,

    pg.3).

    Esse olhar nos permite considerar a vivncia da DCS como contendo em si uma

    essncia que a define e que, de certa forma, esclarece seu enorme potencial curativo,

    educativo e organizador, embutido na prtica. O caminho que escolhemos para tornar

    perceptvel esse aspecto da dana se inicia por apresent-la como uma forma natural de

    conexo do homem vida. preciso entender a dana como uma maneira de viver, ou

    de se fazer presente no universo, ou seja, como um smbolo do ato de viver.

    Encontramos na abordagem potica e profunda de Roger Garaudy (1980) os

    componentes ideais para justificar nosso olhar sobre o fenmeno da dana na vida ou da

    vida que dana.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    13

    Sabemos que a dana foi a primeira forma de arte por meio da qual o homem se

    manifestou e tambm a primeira forma de orao que aprendeu com a natureza. Da sua

    importncia para os rituais desde os primrdios da humanidade. Era atravs dela que a

    comunicao, a devoo e a expresso se apresentavam. E assim tem sido at hoje, em

    propores e dimenses distintas, mas com propriedades e importncia mantida, embora

    bem menos reconhecida, em funo da civilizao e da tecnologia.

    A dana nasceu no comeo de todas as coisas; veio

    luz ao mesmo tempo que Eros, pois a dana primordial

    aparece no coro das constelaes, no movimento dos

    planetas e das estrelas, nas rondas e evolues que

    traam no cu e em sua ordem harmnica. (Lucien de

    Samosathe, apud Garaudy, 1980, pg.16))

    Para Isadora Duncan, havia motivo de dana em tudo ao seu redor, ela via dana

    em toda a Natureza (Safra, 1980) seu trabalho foi o de devolver dana sua significao

    humana; e com esse trabalho ela abriu caminho para que um novo olhar sobre a forma

    de viver a dana fosse incorporado s sociedades humanas.

    Bjart afirma que a palavra divide, a dana unio - do homem com seu

    prximo e com a realidade csmica. ritual sagrado e social. Encontramos na dana

    essa dupla significao que est na origem de toda atividade humana. Em todas as

    pocas o homem se v diante dos sentimentos incompreensveis para os quais busca,

    alm da compreenso, a comunicao de que as palavras no conseguem dar conta. A

    dana nasce dessa necessidade de dizer o indizvel, de conhecer o desconhecido, de

    estar em relao com o outro. O homem tem necessidade de se sentir fazendo parte

    integrante de um grupo tnico, social, cultural. O sentimento de pertencimento remete

    unio do todo e das partes, possibilidade de ser parte e poder voltar ao todo, de dar

    sentido vida. A capacidade de pertencer de tal importncia que tem sido por si s

    parmetro para diferenciao entre sade e doena. Muito mais que as leis, os

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    14

    costumes, o traje e a linguagem, o gesto que vai dar existncia a essa unio. As mos

    se juntam, o rtmo une as respiraes, a dana nasce...

    Hoje o homem sofre de solido e de uma diviso profunda de seu ser. No

    processo de educao dissociamos o corpo do esprito, e ambos da intuio, do corao,

    do conhecimento transcendente. Os valores ticos vm perdendo o significado e a fora

    de manter o homem inteiro. Ento ele busca em outras fontes, muitas vezes mais

    dissociativas, essa inteireza perdida. Mas tudo o que dividido, que perdeu seu sentido,

    busca incessantemente a unidade. A dana uma das raras atividades humanas em que

    o homem se encontra totalmente engajado: corpo, esprito e corao. Ela pode ser vivida

    como esporte ou como tambm meditao, um meio de conhecimento, a um s tempo

    introspectivo e do mundo exterior. (Maurice Bjart, in Garaudy, 1980). Podemos dizer

    que ela um modo de existir, pois danar vivenciar e exprimir, com o mximo de

    intensidade, a relao do homem com a natureza, com a sociedade, com o futuro e com

    seus deuses. (Garaudy, 1980).

    A dana tambm realizao da comunidade viva dos

    homens. Desde a origem das sociedades, pelas

    danas e pelos cantos que o homem se afirma como

    membro de uma comunidade que o transcende. Isto se

    deu pela experincia incessante do trabalho dos

    homens: em cada organizao coletiva do trabalho a

    comunidade se realiza, e se realiza de maneira rtmica.

    A fora do grupo, uma vez coordenada e ritmada,

    mostrava-se superior soma das foras individuais dos

    participantes. O homem adquire assim um novo poder

    e toma conscincia dessa transcendncia da

    comunidade com relao aos indivduos. Este poder e

    esta transcendncia esto ligados ao rtmo dos gestos e

    comunho que ele permite concretizar. A dana

    opera essa metamorfose: transformando os rtmos da

    natureza e os biolgicos em rtmos voluntrios, ela

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    15

    humaniza a natureza e naturaliza o homem.

    (Garaudy, 1980, pg.19)

    Ainda lembrando Garaudy (1980), sabido que a civilizao e a sociedade

    atuais se habituaram a subestimar a importncia de tudo o que no de ordem

    intelectual, cientfica. Porm, experincia vital ou todo ato especificamente humano que

    vai alm do conhecimento ou das prticas cotidianas, exige uma forma de expresso que

    seja tambm transcendida: o que fazem a dana, a msica, a pintura e a poesia, por

    meio de uma arte cuja tarefa tornar visvel o invisvel.

    Combinando os aspectos conferidos dana: arte, conhecimento, pertencimento

    e religio, a dana uma forma de comunicao do xtase e pedagogia do entusiasmo,

    ou seja, sentimento da presena de Deus vivncia do sagrado. Para os hebreus, era

    certo que ningum jamais viu Deus. Era ento preciso encontrar os gestos necessrios

    para exprimir o invisvel sem diminu-lo, dar vida aos movimentos do invisvel. Era

    conferida dana, com seu poder eterno, sua dimenso csmica, a misso de dizer o

    indizvel, de manifestar o Divino. No pensamento grego, a ordem csmica expressa

    por movimento e rtmo. A compreenso do movimento da vida no universo vem desde

    os tempos antigos; e a sabedoria milenar dos povos delegava dana a funo de

    conexo com o Todo. Danar a vida entender esse movimento como a prpria

    existncia, ou seja, danar a vida antes de tudo tomar conscincia de que no apenas

    a vida, mas o universo uma dana, e sentir-se fecundado por esse fluxo do movimento,

    do ritmo, do Todo, uma maneira de viver. A dana torna o Deus presente e o homem

    potente. (Garaudy, 1980).

    Nossos gestos e nossa maneira de expressarmos o que nos humano contm em

    si mesmo todo o movimento do universo, toda a pulsao da vida ao nosso redor,

    repetindo e refletindo a interao entre tudo o que existe numa linguagem do

    movimento do corpo. Desse dilogo entre nosso ntimo e o universo, nasce um fluxo

    que a prpria vida pulsante em tudo o que existe. A dana ento simplesmente vida

    intensificada (Wosien, 2000). Danar a vida participar desse fluxo, dessa pulsao e

    exprimi-los em movimento, em rtmo, em totalidade.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    16

    Aquele que sabe compreender a dana sagrada

    conhece o caminho que liberta da iluso individualista,

    pois a dana sua prpria natureza, sua vida

    espontnea e total, para alm de todos os fins

    particulares e limitados: ele se identifica com o

    movimento rtmico do Todo que o habita. A dana

    ento um modo total de viver o mundo: , a um s

    tempo, conhecimento, arte e religio. (Garudy, 1980,

    pg. 16)

    Como vimos anteriormente, desde o comeo da histria da humanidade, o

    homem se expressa atravs da dana. Inicialmente sozinho, e depois se reunindo nas

    cerimnias aos deuses. Comeou ento, atravs da dana, a celebrar as estaes, a

    fertilidade e os laos familiares, o que os levou a uniformizar os passos. Alm de

    celebrar com as danas, as comunidades passaram a transmitir seu conhecimento, sua

    sabedoria e sua cultura, de gerao a gerao, atravs da msica e da dana. At hoje

    nos chega essa sabedoria pelas manifestaes do folclore, nas danas, lendas, msicas,

    rituais e mitos. Foi o contato ntimo com essas danas dos povos que despertou no

    homem da atualidade a sensibilidade para o sagrado, para a fora da unio, para a

    possibilidade de reverenciar o Todo, para ser inteiro e sentir-se nico nas danas de

    roda.

    M. Bjart (Garaudy, 1980) relata que teve oportunidade de viver por algumas

    semanas, numa ilha do Mediterrneo, com pescadores e camponeses autnticos, cujo

    rtmo era identificado com o prprio rtmo da natureza. Presenciou algumas noites em

    que, na praa central, as pessoas se reuniam e de uma conversa em outra surgiam

    verdadeiras discusses e brigas, explicadas como troca de palavras, desentendimentos.

    Em outras noites, a palavra no tinha o mesmo espao. Vinha ento um homem e

    iniciava uma dana, e era seguido por outros. Fazia-se uma roda, numa sequencia de

    danarinos que se revezavam. Danava-se at tarde da noite em clima de perfeita alegria

    e unio. possvel pensar que esse poder aglutinador e harmonizador da dana o que

    chamou a ateno e aguou a sensibilidade de Bernard Wosien.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    17

    De acordo com Anna Barton (2006), a DCS nasceu em 1976 quando o professor

    Bernhard Wosien e sua filha Maria-Gabriele, foram convidados a compartilhar seus

    conhecimentos das tradies da Dana Sagrada do leste europeu na Fundao Findhorn,

    na Esccia. O prof. Wosien era um bailarino clssico de renome na Alemanha que,

    posteriormente, indo trabalhar com a pedagogia da dana, se interessou pela arte

    popular, pelas antigas danas folclricas tradicionais. Devido a sua formao religiosa,

    o simbolismo contido nos movimentos sempre foi alvo de sua observao e estudo;

    viajou pela Europa colecionando danas e msicas remotas, de aldeias onde a dana

    ainda fazia parte da vida comunitria e expressava a tradio transmitida de gerao a

    gerao. Sua inteno era de fazer a essncia espiritual da dana ser mantida, as

    tradies serem absorvidas e usadas para criar algo novo. Ele decidiu denominar o

    conjunto de suas danas de Dana Sagrada. Com a popularizao dessas danas, muitas

    pessoas que as ensinavam na Inglaterra, decidiram mudar o nome para Dana Circular.

    Desde a visita de Bernard Wosien a Findhorn l se iniciou uma prtica regular das DCS,

    com anotaes das coreografias, cursos e divulgao da prtica para o mundo todo.

    Bernard acreditava que a dana, como toda arte, surge da meditao e conferia

    DCS a capacidade de fomentar um certo arrebatamento, no qual o tempo no era mais

    mensurvel, e a fora mgica da roda se manifestava, possibilitando no s o encontro

    do indivduo consigo mesmo, mas tambm o encontro deste com a comunidade.

    Bernard percebeu, durante suas viagens e contato com os diversos povos que, na vida

    das antigas culturas altamente desenvolvidas e dos povos naturais, a dana atuou

    profunda e amplamente na sua existncia, e o que restou disso se cindiu em

    divertimentos sociais, artsticos e alguma danas de roda populares (Wosien, 2000).

    Foram estas ltimas o alvo das observaes de Bernard e seu estudo do simbolismo dos

    passos, da mitologia contida na forma e sentido das danas. Ele nos ensina que as

    propriedades dinamizadoras da dana de roda diluem as tenses, soltam o que est

    contrado, tornam livres as foras criativas e ordenadoras ao mesmo tempo.

    Anna Barton (2006) conta que na Fundao Findhorn a proposta desfrutar o

    danar junto de um modo totalmente no competitivo. Isto , aprender que possvel

    para todos danarem juntos, jovens e velhos, sentirem-se confiantes no grupo, que

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    18

    mais solidrio do que crtico. Alm disso, possibilita que as pessoas sejam capazes de

    sentir o contato com a terra, com a espiritualidade, e com cada participante atravs das

    diferentes qualidades de cada dana. A dana tambm usada como ferramenta para

    canalizar a energia de cura para os danarinos e tambm para o resto do planeta. A

    proposta que no se aprenda danas apenas como indivduos, mas que todos se unam

    para criar alguma coisa a mais em um nvel emocional, mental e espiritual. O Sagrado

    s pode ser assim chamado quando se orienta para o bem da totalidade, quando a dana

    usada para vaidade pessoal, ela no tem a conotao de Sagrada. Assim tambm nos

    processos de meditao ativa, com o sentido de lembrar que na dana meditativa as

    particularidades do ego devem se manter ausentes, mas as essncias humano-genricas

    do inconsciente devem estar presentes (afastamento do ego para que o Self se apresente)

    Osho (2007, pg. 184), nos alerta: onde a dana est, o danarino no est, e onde o

    danarino est, a dana no est.

    Bernard aponta como principais smbolos utilizados na DCS: o crculo e a cruz.

    O crculo representa uma imagem microcsmica do espao csmico original. Tambm

    na DCS, o crculo tido como o smbolo original da eternidade. como o universo se

    mostra, no cu, na Terra, nos movimentos planetrios e atmicos. Durante o percurso do

    circulo na dana, h o retorno a todos os pontos da roda, e em nenhum deles se perde a

    relao com o centro, que se mantm numa posio equidistante de todos os

    participantes, ao mesmo tempo proporcionando percepo de unio e de limite. A cruz

    um desenho de passos muito comum na pratica da DCS, ela o smbolo de nossas

    vidas, cujo eixo vertical se refere ao tempo e o horizontal ao espao, traando as

    coordenadas da nossa vida. Ela tambm significa as quatro estaes do ano pelas quais

    passamos ininterruptamente no transcurso da vida, e se disposta na diagonal, considera

    os quatro elementos: terra, fogo, ar e gua. Da cruz originam-se outros desenhos como

    as estrelas, que tambm adquirem significao; a estrela de cinco pontas, por exemplo,

    se refere ao autoconhecimento. Para Jung a cruz tinha relao com a reconciliao de

    todos os opostos, o encontro do homem com o Divino. A cada sequncia de passos

    coreografados, podem-se dar sentidos, que so traduzidos para a esfera da vida comum.

    Muitos outros simbolismos e significados fincados em conhecimentos ancestrais so

    trazidos tona para incorporar do movimento das DCS, entre eles a mitologia, a

    numerologia, a geometria sagrada, a astronomia, como tambm astrologia.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    19

    O instrutor das danas na roda o focalizador. Ele toma para si a

    responsabilidade de ser o foco da ateno de todos os participantes, de ouvir e olhar

    para o grupo como algum que percebe para alm do manifesto, do visvel. Dele

    depende a qualidade da vivncia, a captao da necessidade do grupo, a escolha de

    estratgias que melhor encontrem validade entre os participantes. O focalizador

    responsvel pela orientao sobre os passos, de forma a tornar possvel a dana s

    pessoas, utilizando as qualidades das danas com o mximo de propriedade, assim

    como fazer a traduo do simbolismo dos passos para a vida comum, alm da

    manuteno da harmonia, alegria e entusiasmo que naturalmente a dana desperta. Cabe

    ainda ao focalizador desenvolver e utilizar uma grande dose de sensibilidade e estudar

    constantemente, para ser capaz de compreender o poder que a vivncia da DCS, bem

    conduzida, pode ter sobre a maneira como as pessoas podem transformar seu viver o

    focalizador se empodera de um saber que perpassa o seu ser e atinge os participantes,

    tocando a alma destes e, em sentido mais amplo, atualizando o sentido do sagrado. O

    focalizador o portador do potencial da dana de permitir ao participante que, num

    mergulho em si mesmo, possa trazer tona a fora transformadora da comunho com o

    Todo, com o universo, com a humanidade o homem vivenciando na dana a

    transfigurao de sua existncia.

    Uma vivncia de DCS tem muito em comum com uma cerimnia ritualstica.

    Normalmente se inicia com a preparao do ambiente pelo focalizador. Tal preparao

    consiste na montagem do centro da roda, um marco no centro do ambiente, visvel de

    todos os pontos ao redor. O espao deve estar livre para que a roda possa se desenvolver

    sem obstculos. O centro contm sempre um tecido e objetos que tragam significncia

    para o focalizador ou para os participantes. O focalizador tambm se prepara, com

    alguns minutos de concentrao. Formada a roda com os participantes de mos dadas,

    faz-se sempre uma preparao dos mesmos para a atividade, com nfase na respirao,

    na percepo corporal e da roda como um todo. De forma geral inicia-se o trabalho

    com algumas danas mais fceis, lentas, de pouca complexidade e intensidade Esse

    limite vai se ampliando, at que, na metade da vivncia se alcance um maior nvel de

    rapidez nos movimentos e complexidade nos passos. A partir da metade da vivncia,

    novamente se procura diminuir aos poucos a potncia finalizando a prtica com danas

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    20

    meditativas. Cada vivncia tem objetivos especficos, que devem ser considerados na

    montagem de uma sequncia. Ao focalizador cabe a organizao das etapas e as

    alteraes necessrias no transcurso da atividade. Ao trmino da vivncia, novamente se

    chama os participantes para alguns minutos de concentrao no corpo, nos sentimentos,

    nas presenas, na experincia do sagrado.

    Aparentemente a proposta da dana circular simples e leve, mas carrega uma

    profundidade assentada no passado da humanidade, na compreenso do papel da dana

    na evoluo do homem e principalmente na funo do ritual e do sagrado para o

    desenvolvimento da psique humana. O verdadeiro significado da DCS transcende o bem

    estar relatado pelos participantes e, na busca de entender esse potencial, que seguimos

    com nossa reflexo, na direo do mito do eterno retorno e da importncia do sagrado.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    21

    CAP. 2 O HOMEM, A RITUALIZAO E O SAGRADO

    Neste capitulo pretendemos fazer relaes entre as caractersticas dos rituais

    antigos ou das condies de definio de ritualidade, com a formatao da proposta das

    DCS. Para tanto intencionamos compreender em que consiste um ritual, principalmente

    qual a importncia dos rituais para o homem no decorrer da historia, e verificar a

    possibilidade de posicionar a DCS como uma proposta remanescente dos antigos rituais,

    que continua a cumprir com a funo original dos mesmos, apesar de modificada em

    sua apresentao.

    Desde os primrdios da humanidade, o ser humano tem demonstrado a

    necessidade de sentir-se parte do Cosmo, de se reconhecer nos ritmos da natureza, seus

    ciclos e renovaes.

    Para o homem das sociedades arcaicas e tradicionais, os

    modelos para suas instituies e as normas para suas varias

    categorias de comportamento teriam sido revalados nos

    comeo dos tempos, e consequentemente, eles seriam vistos

    como tendo origem sobre-humana e transcendental.

    (Eliade, 1992).

    Essa origem sobre-humana a base para o surgimento dos mitos e heris que

    foram reverenciados pelo homem atravs de gestos e atitudes ritualsticas no decorrer da

    historia. Segundo Eliade, os rituais tm a funo de repetir o instante da origem, da

    criao. Essa repetio coloca o homem em contato com as foras do Divino, do

    Cosmo, e legitima a existncia dos objetos ou atos, pois os tornam receptculos de uma

    fora exterior (Eliade, 1992) que os diferencia do comum e lhes d significado e valor.

    Eles passam a ser o que o homem no consegue ser, tornam-se reais na medida em que

    repetem um ato primordial.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    22

    Os atos humanos que no tem origem no

    automatismo, seu significado, seu valor esto

    vinculados sua propriedade de reproduzir um ato

    primordial, de repetio de um exemplo mtico.

    (Eliade, 1992).

    Os rituais so vividos pelo homem atravs dos tempos como a maneira de

    perpetuar o instante da criao, de manter vivo o valor real e absoluto do momento da

    criao, que vai alem do prprio homem. Por isso a forma de fazer conexo com o

    sagrado, em tempo e espao sacralizados, que reconhecidos como distintos do lugar

    comum da vida cotidiana, passam ser vividos como reais. Eles tm a propriedade de

    realizar o irrealizvel, de tornar eterno o momento crucial de contato do homem com o

    sobrenatural, com aquilo que vai alem do prprio homem os Deuses, os mitos, o

    Cosmo. um ato de repetio, que por si s no tem lugar real, mas na medida em que

    traz tona o significado do ato primordial, se reveste de intenso valor e revive a

    presena do Divino na vida comum.

    Os rituais tem o potencial de colocar o homem em contato com o aspecto

    sagrado da sua existncia. As experincias comuns da vida do homem so tidas como

    profanas, desprovidas de significado, de realidade, de correspondncia com o momento

    primeiro da criao. Mas as experincias vividas ou significadas a partir dos rituais so

    tidas como sagradas, representam o universo do desconhecido, do que transcende o

    homem, do que o criou. A sacralidade na vida toma forma a partir da ritualizao, ou

    seja, o sagrado s existe porque o ritual o legitimou.

    A ritualizao tem feito parte da vida do homem como uma necessidade de

    lembra-lo de tempos em tempos que ele parte do Cosmo, que ele veio do momento da

    criao, que possvel a religao com o Divino, com o que vai alm do prprio

    homem. Este processo era vivido pelo homem tradicional como busca intencional de

    entrar em contato com o principio no humano da criao, pois reatualizava o momento

    mtico. Essa inteno era de criar o entusiasmo (presena de Deus) na alma do

    homem, alcanar o estado de beatitude, a imitao da condio Divina, ou seja, tornar-

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    23

    se, tanto quanto possvel, semelhante a Deus. A criao Divina, a natureza era ento a

    forma de reconhecer Deus, a natureza contava sobre Deus e era o caminho para chegar a

    Ele. O homem antigo s compreendia o que vivia o que observava na natureza.

    Essa conexo do homem antigo com a natureza, a intensa influencia dos ciclos

    de inicio e fim, nascimento e morte, a busca do entusiasmo, fazem com que a repetio

    do ato criador seja uma necessidade a ser vivida atravs da ritualizao. A renovao

    dos ciclos tem o potencial de destituir o j vivido dos aspectos negativos e criar uma

    nova oportunidade de viver segundo as revelaes Divinas, em contato com as foras

    mticas, a espiritualidade. Como se fosse um banho, que leva o impuro e imanta de

    possibilidades novas, sagradas e potentes a partir do contato com o Cosmo, o Criador.

    A presena dos rituais como forma de conexo com a existncia do sagrado na

    vida do homem constante em todas as pocas, apesar de ir se modificando na forma, a

    essncia se mantm, pois a necessidade de pertencer ao Todo criador nunca deixou de

    existir. Na vida do homem moderno as formas de vivenciar a ritualizao se

    modificaram muito, hoje alguns rituais so repetidos sem que as pessoas se atentem

    para o seu significado e mistrio.

    Os rituais de hoje so sobreviventes dos rituais originais,

    e muito difcil determinar at que ponto eles se fazem

    acompanhar de uma experincia na conscincia das

    pessoas que os observam. (Eliade, 1992)

    Ainda segundo Eliade, a estrutura e a essncia dos mitos e rituais permanecem

    inalteradas atravs do tempo, mesmo que as experincias que os atualizem sejam

    rotineiras. Hoje a ideia da ritualizao parece antiga e sem sentido para o homem

    comum, mas os gestos e celebraes ainda inseridos no cotidiano, para marcar a

    passagem dos ciclos da vida so a presena da ritualizao na vida moderna, e muitas

    vezes so vividos como uma real necessidade do ponto de vista social e emocional.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    24

    Uma das formas de celebrao ainda presente na vida do homem comum a

    dana. As sociedades modernas danam nas festas comemorativas, nos finais e incios

    de ciclos da vida, sem a real compreenso do significado que teve a dana no decorrer

    da historia do homem. Eliade (1992) nos lembra de que originalmente todas as danas

    eram sagradas, vinham de um modelo extra-humano, fora da vida profana do homem,

    criadas num perodo mtico, por um ancestral, um deus ou um heri. As danas podiam

    ter finalidades distintas: obter comida, homenagear os mortos, garantir a ordem no

    Cosmo, ou serem executadas em rituais diferentes como: cerimnias de iniciao, de

    casamento, religiosas, mas todas elas tinham funo ritualstica e cumpriam o papel de

    reproduzir ritmos coreogrficos ensinados pelos deuses, comemorando o momento

    mtico, ou seja, reatualizando o momento da criao, tornando sagrada a cerimnia.

    Devido a sua origem na musica e dana dos povos antigos, a DCS carrega a

    estrutura dos rituais, assim tambm os smbolos da forma e do processo inseridos na

    cultura de onde se pina a dana. Os gestos e sentidos ritualsticos inerentes vivncia

    contam que a prpria dana, sua formao e seu acontecer podem ser entendidos, tendo

    em vista os conceitos antes elucidados, como uma forma de ritual, ou tendo em si o

    potencial de um ritual. Sob esse aspecto no temos ento rituais inseridos na proposta,

    mas ela pode ser entendida em si mesma como um tipo de ritual, ou seja, uma forma de

    colocar em suspenso o homem em seu ego, permitir que contedos do inconsciente

    transitem para o consciente e a noo da sacralidade da vida tome forma. Como se fosse

    o boto de ligar a percepo da completude, como se se pudesse olhar para a prpria

    vida de um ponto de vista afastado, de cima, e o alcance da viso fosse muito maior.

    Os povos antigos usavam a dana em seus rituais de orao, de celebrao.

    Talvez numa sabedoria profunda que compreendia o corpo como lugar de existir de algo

    mais abrangente: o SER. Atravs dos estmulos dados pelos gestos, pelo ritmo, pelo

    movimento acontece o transe, que pode ser entendido como o intenso trnsito das

    informaes do inconsciente (coletivo) para o aqui e agora. Com isso no se pretende

    estender as observaes para o aspecto do transe na dana, mas ele pode ser pontual

    para conduzir o olhar para o entendimento de ser a proposta das DCS, ela prpria uma

    forma de ritualizao em busca do sagrado na vida de todos os participantes.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    25

    Os rituais tinham tambm a potencialidade de transportar o homem para alm do

    tempo profano, num tempo em que s os Deuses percebem, ou seja, durante os rituais

    perdia-se a noo do tempo como o conhecemos. O homem era transportado para o

    tempo em que ocorreu o ato criador, o tempo sagrado. A maior parte da vida comum do

    homem era vivida no tempo profano e os rituais vinham aboli-lo e projetar o homem

    para o tempo mtico, provocando a regenerao do tempo. O que contava como real era

    o tempo vivido como sagrado, pois o tempo profano no tinha significado. Podemos

    entender que a atitude ritualstica, que sacraliza o tempo capaz de expandir a

    conscincia, trazendo sentido de anulao do tempo concreto. Ela acontece no tempo,

    mas no carrega o peso dele, permite viver um presente contnuo, como o caso, ainda

    hoje, da vivncia e das prticas dos msticos e religiosos.

    A possibilidade de regenerao do tempo se comunga com a ao cclica do

    mesmo. A renovao da vida em todos os seus aspectos era intensamente vivida pelos

    povos antigos que tinham a relao estreita com a natureza impressa em sua cultura.

    Hoje o homem vem se distanciando dessa proximidade, apesar de manter a noo dos

    ciclos de tempo eternamente se repetindo no calendrio, nas estaes, etc. Os rituais

    valorizavam a relao cclica do tempo fora do homem com o tempo cclico dentro do

    homem, possibilitando que o contato com o tempo sagrado trouxesse novo

    entendimento para a retomada dos ciclos temporais da vida.

    Com relao assim chamada natureza cclica do

    tempo, todas as religies que podem ser caracterizadas

    em termos de mythos compartilham a viso de que o

    tempo recorrente e a-histrico... Tal noo do tempo

    torna-se bastante adequada quando olharmos para o

    universo ou para todas as coisas no universo do ponto

    de vista da natureza. No mundo da natureza, as quatro

    estaes se sucedem uma outra periodicamente, e os

    blocos de tempo a que chamamos meses e anos

    continuam recorrentes. O tempo da natureza,

    inclusive o tempo astronmico, retorna sem falta para

    seu ponto de partida, tempo aps tempo, seguindo o

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    26

    mesmo circuito. (Kenji Nishitani, apud Laymert Garcia

    dos Santos, 1992, pg. 196)

    Santos quando nos fala sobre a temporalidade mtica, comparando a vivencia do

    tempo do Xam e do Poeta, afirma que para ambos o tempo o mesmo tempo da

    natureza. Eles no se sentem separados dela, independentes dela, ou num outro

    compasso, e simultaneamente tambm o tempo do sobrenatural, porque est

    eternamente comeando, est sempre no incio da divina criao. Eles sabem que o

    eterno se aloja em cada momento que passa, e ento tempo e eternidade no so mais

    contraditrios nem incompatveis. O tempo circular porque sempre retorna, sempre

    se recoloca como tempo que se realiza, e linear, porque essa realizao uma

    sucesso de instantes nicos (Santos, 1992, pg. 197).

    Assim tambm circular a roda na DCS, que sempre retorna ao ponto inicial,

    permitindo novo recomeo. Os ciclos so vividos na dimenso do corpo, na

    materialidade da presena, dos gestos, dos ritmos e na sacralidade do tempo - dana-se

    como os povos antigos, repetem-se gestos e ritmos que transportavam o homem antigo

    para o presente contnuo. De acordo com a intensidade da experincia, essa repetio

    parece ter o potencial de despertar percepes como: os ciclos presentes na noo do

    tempo, e as alteraes do tempo vivido, a possibilidade de afastar-se da vida comum,

    dita profana, permitindo entrar em contato com o que sempre esteve presente em nosso

    inconsciente o tempo primordial. Os ciclos temporais so fisicamente vividos nas

    voltas da roda, nas repeties dos passos, na circularidade dos movimentos, nos ritmos

    constantes. E a eternidade do tempo vivida em cada momento na medida em que se

    abrem as percepes para o presente, pois este presentifica todos os tempos, atualiza o

    que foi no que e faz do ser um vir-a-ser.

    As formaes simblicas (cantos, poemas, danas) e

    todas as manifestaes litrgicas desenrolam-se em um

    tempo existencialmente pleno. Mais rigorosamente; so

    essas formaes que tornam o tempo existencialmente

    pleno. um tempo que a presena humana qualifica.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    27

    um tempo no qual a ao dos afetos e da imaginao

    produz uma lgica prpria, capaz de construes

    belamente ordenadas. (Alfredo Bosi, 1992, pg. 26)

    Alfredo Bosi ainda faz lembrar que o tempo do mito se realiza como

    linguagem, pelas suas analogias, e constri-se maneira de uma pauta musical com seus

    retornos, acordes e suas correspondncias horizontais e verticais. Sua nota principal a

    reversibilidade.

    uma lgica que parece reproduzir os movimentos

    cclicos do corpo e da natureza. A reiterao dos

    movimentos, feita dentro do sujeito, faz com que este

    perceba que o que foi pode voltar: com esta percepo e

    com o movimento da simultaneidade que a memria

    produz, nasce a ideia do tempo reversvel. O tempo

    reversvel , portanto, uma construo da percepo e

    da memria: supe o tempo como sequncia, mas o

    suprime enquanto o sujeito vive a simultaneidade. O

    mito e a musica, que trabalham a fundo a

    reversibilidade, so mquinas de abolir o tempo. A

    condio de possibilidade do mito e da msica a

    memria, aquela memria que se dilata e se recompe. A

    memria vive do tempo que passou e, dialeticamente, o

    supera. (Bosi, 1992, pg. 27)

    Talvez possamos pensar a dana, inseparvel da musica e dos ritmos como uma

    dessas mquinas de abolir o tempo, que pe em contato o homem comum com o

    instante primeiro da criao, com o que une a todos ns - a condio humana.

    Os rituais tambm aconteciam em lugares especiais ou tornavam sagrado o

    lugar onde ocorriam. Assim como hoje os lugares em que determinados fatos marcantes

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    28

    para o homem acontecem so sempre cuidados de forma especial, portadores de

    emoes, de lembranas, propiciam atitudes especiais, assim tambm os locais em que

    aconteciam os rituais eram sagrados e reverenciados como tal. O contato com momento

    da criao, com o tempo primordial deveria acontecer no centro do Cosmo. Esse lugar

    dos rituais era significado como sendo o centro de tudo, onde tudo que existe teve

    incio, o umbigo do mundo conhecido, e l estavam sediadas todas as formas de mitos,

    heris e divindades, e todas as foras criadoras do universo. Tudo o que existe surgiu

    neste lugar e l que essas foras se concentram. Neste local todas as coisas passam a

    existir realmente, ele detm a fora da vida, esta , pois, uma rea sagrada.

    Esse lugar sacralizado pelos rituais como centro da criao era o marco para que

    toda a vida se realizasse ao seu redor. Assim a referncia para as construes, para as

    atividades do homem antigo era sempre o centro sagrado. Ao observar o cu, o sol, a

    lua, os movimentos circulares dos astros, o homem antigo tentava reproduzir ou

    acompanhar esses movimentos na vida.

    Essa outra relao com a proposta das DCS, que tem na marcao

    simblica do centro da roda toda uma significao relativa concentrao das foras

    criadoras e transformadoras, que fazem referencia ao local sagrado em que todas as

    coisas ganharam vida real, onde o tempo abolido e se vive o eterno e o presente

    simultaneamente. A importncia deste local sagrado se perpetua at nossos dias na

    marcao do ponto central das cidades, na geometria das construes dos templos, na

    consagrao de locais para determinados cultos a partir dos rituais de celebrao, de

    inaugurao, iniciao. O espao da roda circundado pelas pessoas que a compe,

    experienciado como o espao no qual o contato com essas foras criadoras possvel,

    assim como sair do espao profano e adentrar o sagrado, num sentido de purificao, de

    contato com o divino. O centro o mbito do sagrado, a zona da realidade absoluta. A

    roda simboliza a estrada da vida, o caminho difcil que leva para o centro. Os passos e

    interaes, os rodopios, as direes diversas das coreografias vem significar as

    dificuldades do caminhar em direo ao centro de si mesmo, ao eu desconhecido.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    29

    ...A estrada rdua, repleta de perigos, porque na

    verdade, representa um ritual de passagem do mbito

    profano para o sagrado, do efmero e ilusrio para a

    realidade e a eternidade, da morte para a vida, do

    homem para a divindade. Chegar ao centro equivale a

    uma consagrao, uma iniciao; a existncia profana

    e ilusria de ontem d lugar a uma nova, a uma vida

    que real, duradoura, eficiente... (Eliade, 1992)

    Todo esse simbolismo quando vivido no corpo, na coletividade da roda, no

    espao respeitado como lugar onde no necessrio estar com as defesas alertas, no

    qual nenhum mal pode adentrar, valorizado pelos participantes e aceito como

    sagrado.

    Esse conceito de sagrado como pertencendo a todos os homens, independente

    da sua crena ou religio nem sempre foi facilmente aceito e vivido com naturalidade

    pelas pessoas que iniciavam o contato com a DCS. Para o homem moderno a

    substituio da crena pela inteligncia, pela cincia, fez surgir uma negao, at

    mesmo um preconceito sobre a questo do sagrado, e mais ainda dos rituais. A nossa

    histria tambm conta sobre a transformao da dana de experincia direta com o

    sagrado para atividade profana e condenvel, sendo abolida de todos os rituais e

    cerimnias crists na idade mdia. Mas o seu potencial de conexo com os aspectos

    inconscientes do homem parte da sua essncia, a dana conexo, assim como o o

    ritmo. Esse potencial se apresenta aos sentidos dos participantes e com naturalidade faz

    acontecer o sagrado para cada pessoa que se permite estar presente na roda e danar o

    caminho da vida.

    Cada ponto de contato da experincia ritualstica com a DCS, somado ao

    potencial natural, originrio da dana e dos ritmos reafirma a possibilidade de entender

    essa proposta como uma forma remanescente, resignificada e culturalmente aceita de

    atualizar os antigos rituais sagrados. Hoje j se conhece muito do mecanismo de

    existncia do sagrado, j no mais um mistrio sem explicao o que acontece nos

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    30

    momentos de contato com Divino. A teoria de Jung traz muito sentido para as vivencias

    ritualsticas e seu lugar na vida do homem, seja do antigo ou do moderno. Alguns desses

    sentidos podem ser chaves para olhar para a DCS como possibilidade de desenvolver

    nos participantes um caminho para o autoconhecimento.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    31

    CAP. 3 A DANA, O RITUAL E O SAGRADO LUZ DOS CONCEITOS

    JUNGIANOS

    Na expectativa de desvendar um pouco mais o significado da ritualizao para o

    homem e sua relao com a DCS buscamos na contribuio de Jung alguns conceitos

    que trazem novo entendimento para os assuntos j tratados anteriormente. Em seus

    estudos, Jung considerou o homem em sua histria e, com isso, postulou que todo o

    contedo ancestral e antigo tem sentido novo para entender a vida hoje. Este sentido de

    inteireza do homem que se faz atravs do tempo em muito ajuda a compreenso do

    lugar dos ritos e do sagrado na atualidade. Jung nos leva a entender que no somos

    fragmentados na histria, mas estamos em contnuo desenvolvimento, carregando tudo

    que j foi vivido antes como instrumental para lidar com o presente. Ele nos d uma

    nova perspectiva de entendimento sobre como podemos viver presente, passado e futuro

    ao mesmo tempo. Mistrios at ento incompreendidos ficam acessveis a todos ns e,

    de certa forma, do outro lugar para o que consideramos sem sentido no passado.

    O indivduo a nica realidade... importante

    sabermos mais sobre o ser humano, pois muitas coisas

    dependem das suas qualidades mentais e morais. Para

    observarmos na sua justa perspectiva precisamos,

    porm, entender tanto o passado do homem quanto o

    seu presente. Da a importncia essencial de

    compreendermos mitos e smbolos. (Jung, 2008, pg.

    69).

    Nise da Silveira esclarece de forma bem clara a postura de Jung diante do

    passado do homem:

    ...porque a psicologia jugueana no se interessa

    unicamente em fazer achados arqueolgicos nas

    produes do inconsciente e em interpret-los como

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    32

    sobrevivncias de mundos mais antigos. Afigura-se-lhe

    ainda mais importante descobrir e acompanhar, nessas

    produes, o contnuo processo de elaborao dos

    contedos do inconsciente. (Nise da Silveira, 1981,

    pg. 83).

    De todo o vasto trabalho de Jung, alguns conceitos em particular ajudam a

    compreender o assunto. Com uma abordagem sinttica, simples e despretensiosa

    citamos alguns deles a seguir, uma vez que bastante complexa e profunda a teoria

    psicolgica de Jung.

    Fazendo um paralelo com a representao proposta por Nise da Silveira da

    psique como sendo um vasto oceano (inconsciente) no qual emerge pequena ilha

    (consciente), tentaremos iniciar nosso mergulho no assunto. De outra forma bastante

    simplificada, podemos dizer que, para Jung, a Psique humana um grande armazm

    com alguns ambientes conhecidos, iluminados e outros desconhecidos, escuros. Esses

    cmodos so interligados entre si, e h um trnsito de contedos entre eles e entre o

    armazm (Psique) e o exterior. Podemos chamar os ambientes iluminados de

    Consciente e os escuros de Inconsciente. O trnsito de contedos acontece o tempo

    todo, mas para sair do escuro e adentrar o claro, preciso se utilizar de um transporte

    chamado smbolo. Smbolo algo que significa outra coisa que no est aparente. Em

    alguns dos compartimentos escuros o inconsciente esto guardadas experincias

    pessoais j vividas, dores, angstias, alegrias que j fizeram sentido alguma vez ou que

    no nos importaram. Cada uma delas tem uma razo de estar a, mas ns no nos damos

    conta. Em outros compartimentos escuros, moram todas as informaes que foram

    essenciais para nos tornarmos seres humanos, ou seja, tudo o que foi importante para

    nossos ancestrais e que pertence a todos os homens nosso inconsciente coletivo. Em

    meio a todo esse contedo comum, esto os arqutipos, que so modelos de

    comportamento ativados a partir dos mitos antigos, presentes ao longo da nossa

    evoluo e que, de uma forma velada, tentam se manifestar em nosso comportamento. E

    l no fundo dessa escurido, mora o Self, que a perfeita e absoluta imagem do

    Divino, o arqutipo do Divino em ns. Todo o nosso trabalho de desenvolver nossa

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    33

    psique e deixar um legado para as geraes futuras no inconsciente coletivo, se refere a

    encontrarmos, cada um de ns, uma forma nica de fazer o arqutipo do Self cada vez

    mais presente em nossas atitudes. A esse trabalho deu-se o nome de processo de

    individuao. Estamos o tempo todo construindo mais ambientes, aprisionando

    contedos, favorecendo ou impedindo o movimento dos mesmos. preciso dedicao e

    empenho para reconhecer o que aparece luz e compreender esse trnsito.

    Pensar a questo da ritualizao e do sagrado na DCS luz desses conceitos faz

    uma grande diferena. O fato de considerar o homem como produto de sua prpria

    construo inacabada e ainda que cada ser humano detenha a histria de todos os

    homens j viventes traz um sentido muito mais amplo para a ritualizao e seu papel na

    evoluo da humanidade. A proposta de estar em comunidade para danar, celebrar,

    ritualizar, unidos por um objetivo comum, parece resgatar o que torna os homens iguais,

    ou seja, a humanidade. Assim possvel que o eu e o ns se apresentem ao mesmo

    tempo, da mesma forma que a percepo do hoje, ontem e amanh sejam vividos

    simultaneamente.

    Vamos iniciar nosso trajeto pela simbologia presente na prtica das DCS. Os

    smbolos que do um carter ritualstico para a proposta. Ento, preciso

    compreend-los. Os gestos e passos da dana assim como os objetos usados para marcar

    o centro da roda so carregados de significados ligados aos rituais antigos, mas o crculo

    e o centro so os smbolos mais importantes uma vez que sempre estiveram presentes na

    histria do homem e so eles que definem a DCS.

    Jung nos diz que o que chamamos de smbolo pode ser um a palavra, um termo

    comumente usado, ou uma imagem familiar na vida cotidiana, mas seu significado vai

    alm do convencional, pois implica em algo vago, desconhecido ou oculto para ns.

    Uma palavra ou uma imagem simblica quando

    implica alguma coisa alm do seu significado

    manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem

    um aspecto inconsciente mais amplo, que nunca

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    34

    precisamente definido ou inteiramente explicado. E

    nem podemos ter esperanas de defini-lo ou explic-lo.

    Quando a mente explora um smbolo, conduzida a

    ideias que esto fora do alcance da nossa razo. A

    imagem de uma roda pode levar nossos pensamentos

    ao conceito de um sol divino, mas, neste ponto,

    nossa razo vai confessar a sua incompetncia: o

    homem incapaz de descrever um ser divino.

    Quando, com toda a nossa limitao intelectual,

    chamamos alguma coisa de divina, estamos dando-

    lhe apenas um nome, que poder estar baseado em

    uma crena, mas nunca em uma evidncia concreta...

    Por existirem coisas fora do alcance da compreenso

    humana que frequentemente utilizamos termos

    simblicos como representaes de conceitos que no

    podemos definir ou compreender integralmente... O uso

    consciente que fazemos de smbolos apenas um

    aspecto de um fato psicolgico de grande importncia:

    o homem tambm produz smbolos, inconsciente e

    espontaneamente... (Jung, 2008, pg. 19)

    Parece claro que usamos os smbolos para significar ou explicar o que no

    podemos compreender pela razo. Na antiguidade, o saber do homem era sustentado por

    seus conhecimentos da natureza e pela sua intensa conexo com ela. As explicaes dos

    fenmenos naturais eram em grande parte dadas com a utilizao de smbolos. Parece,

    ento, que os smbolos sempre foram uma necessidade do homem, e que este os produz

    conscientemente para dar conta de algo que transcende a si mesmo. A ritualizao

    mantm um carter de mistrio porque, envolta em smbolos, a cerimnia trata de

    contedos inacessveis ao homem comum, mas muitas vezes perceptveis pelos

    sacerdotes, iniciados, xams. O smbolo traz para o concreto o que est presente de

    forma inconsciente.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    35

    Na marcao do centro, o focalizador de DCS reproduz e amplifica

    simbolicamente o lugar em que se deu a criao, demarca o espao sagrado circundado

    pela roda. Nele, tambm, costumam serem colocados objetos que remontam aos

    elementos supostamente presentes no momento inicial e que representam a fora

    criadora: o fogo na forma de velas, a matria primordial nos cristais, artefatos tpicos de

    vrios pases contando da igualdade dos homens, flores ou plantas remontando

    natureza, cartas dos anjos contendo sentimentos e emoes humanos ratificando a

    presena dos arqutipos do bem e outros. Esse simbolismo realiza a tarefa de tornar

    concreto e factvel, num xtase, o grande trabalho da psique de unificar e clarear seus

    cmodos ao longo da vida. Ele tem sua origem no resgate dos rituais antigos e na

    atualizao dos mesmos a partir da experincia nica de cada dana na qual os passos

    representam portais, ciclos, busca da fonte da vida, etc.

    Tambm segundo Jung, o homem produz smbolos e essa produo vem direto

    do inconsciente para a realidade de forma espontnea sem o uso da razo, sem a

    elaborao da conscincia. Ento o smbolo cumpre o seu papel transportando

    contedos do escuro de nossa psique para o claro, tornando-os passveis de serem

    conhecidos por ns, se interpretados adequadamente pela inteligncia.

    Os smbolos tm vida. Atuam, alcanam dimenses

    que o conhecimento racional no pode atingir.

    Transmitem intuies altamente estimulantes

    prenunciadoras de fenmenos ainda desconhecidos.

    Mas desde que seu contedo misterioso venha a ser

    aprendido pelo pensamento lgico, esvasiam-se e

    morrem. (Nise da Silveira, 1981, pg. 81).

    A morte dos smbolos significa que eles no so mais necessrios, que a razo

    deu conta de interpretar a realidade e no precisa mais dos lembretes do inconsciente

    para incorporar esses contedos ao consciente. O uso de smbolos ainda hoje, por

    exemplo, na roda de dana, sugere que eles apenas representem algo que no est l,

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    36

    mas que tambm se reportem a contedos ainda impossveis de serem concretizados,

    sendo sentidos.

    Na DCS a maioria dos smbolos utilizados so basicamente aprendidos durante a

    formao do focalizador, o que leva a pensar que talvez em um passado remoto, eles

    possam ter sido evocados de forma espontnea, mas hoje j so conceitos aprendidos e

    organizados com o uso da razo. No deixam de serem smbolos, mas no mais

    cumprindo o papel que Jung a eles atribuiu: o de dar luz aos contedos do inconsciente.

    Nesse mesmo sentido se nos reportarmos ao inconsciente coletivo, esses smbolos

    podem ter sido trazidos em tempos remotos, quando os objetos colocados no local

    sagrado da criao adquiriam a mesma posio de sacralidade, podendo ser utilizados

    em outras situaes da vida dos homens de ento. Hoje eles so atualizados a cada

    vivncia porque permanecerem vivos no inconsciente coletivo.

    A mudana de situao de realidade dos objetos utilizados no centro, ou seja, a

    sacralidade adquirida pelos objetos a partir da sua presena na roda tambm uma

    situao comum de ser observada nas vivncias de DCS. Esse fato tambm abordado

    por outro ngulo com os estudos de Massaru Emoto (2010), que vem divulgando a

    modificao do formato das molculas de gua aps contato com a msica, a dana ou a

    vibrao das palavras escritas. O Sr. Emoto considera seu trabalho de fotografar os

    cristais congelados de gua, antes e depois de expostos a esses estmulos uma produo

    de arte, no um estudo cientfico nos moldes das exigncias atuais. Mas essa

    constatao refora a sabedoria ancestral de sacralizar objetos simblicos a partir de

    rituais.

    Nise da Silveira lembra que em todo smbolo est sempre presente a imagem

    arquetpica como fator essencial.... A dana dirigida por comportamentos

    arquetpicos, recria movimentos originais dos mitos e heris nos passos e gestos das

    coreografias que simbolizam a possibilidade de continuao, de eternizao da criao.

    Na sua simbologia, a dana tambm traz para a concretude do instante presente, os

    modelos potencias de comportamento e de concepo das relaes aprendidos e

    guardados no inconsciente coletivo atravs dos anos.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    37

    Sendo o smbolo o guardio da imagem arquetpica, podemos considerar que os

    arqutipos tambm moram nos lugares de escurido da nossa psique.

    Arqutipos so possibilidades herdadas para

    representar imagens similares, so formas instintivas

    de imaginar. So matrizes arcaicas onde configuraes

    anlogas ou semelhantes tomam forma... Resultam do

    depsito de impresses superpostas deixadas por

    certas vivncias fundamentais, comuns a todos os

    homens, repetidas incontavelmente atravs dos

    milnios... So disposies inerentes estrutura do

    sistema nervoso que conduzem produo de

    representaes sempre anlogas ou similares... O

    arqutipo funciona como um ndulo de concentrao

    de energia psquica unicamente uma virtualidade.

    Quando esta energia, em estado potencial toma forma,

    ento teremos a imagem arquetpica... A noo de

    arqutipo, postulando a existncia de uma base

    psquica comum a todos os humanos, permite

    compreender porque em lugares e pocas distantes

    aparecem temas idnticos nos contos de fadas, mitos,

    dogmas e ritos, nas artes e filosofia, nas produes do

    inconsciente de um modo geral. (Nise da Silveira,

    1981, pg. 77 e 78 ).

    Podemos considerar, ento, que vimos repetindo comportamentos e atitudes

    atravs dos milnios. Tais comportamentos foram sendo aprendidos pelo ser humano no

    decorrer da existncia, atravs de vivncias tpicas: emoes e fantasias suscitadas por

    fenmenos da natureza, experincias com a me e com encontros entre casais e pares,

    situaes difceis de caa, travessias de longa distncia, etc. Como lembra Nise da

    Silveira h uma base comum a todos os homens que permite aos arqutipos se

    instalarem e se manifestarem em pocas e lugares distintos com a mesma propriedade.

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    38

    Assim tambm as cerimnias de ritualizao so marcadas pela manifestao dos

    arqutipos que imprimem significado aos gestos, aos objetos usados, durao da

    cerimnia, ao local consagrado. Eles participam da vida do homem, alm da

    ritualizao, de forma intensa na produo simblica dos sonhos, nas atitudes

    espontneas, nos impulsos sem o controle da vontade. A grande diferena que na

    ritualizao, eles esto presentes como convidados e, nas atitudes espontneas, eles

    simplesmente se apresentam.

    Pode-se perceber a energia especfica dos arqutipos

    quando se tem oportunidade de observar o fascnio que

    exercem... Os arqutipos criam mitos, religies e

    filosofias que influenciam e caracterizam naes e

    pocas inteiras... A narrao ou declamao ritual de

    cerimnias e de textos sagrados e o culto figura do

    heri, com danas, msica, hinos, oraes e sacrifcios,

    prendem os espectadores num clima de emoes, como

    um encantamento mgico, exaltando o indivduo at a

    identificao com o heri... O homem comum pode se

    libertar da sua impotncia e da sua misria para ser

    contemplado (ao menos temporariamente) com

    qualidades quase sobre-humanas. (Jung, 2008, pg.

    98).

    Curiosamente, na proposta da DCS as duas formas de presena dos arqutipos

    citadas acima se configuram. Os smbolos utilizados tradicionalmente sugerem aspectos

    arquetpicos da histria do homem, mas a possibilidade de trnsito entre os cantos

    escuros e claros da psique, prprio da ritualizao, permite que atitudes, emoes e

    sentidos imperceptveis at ento se mostrem. Para o focalizador experiente e atento

    muito comum surgirem entre os participantes estados de impacincia, ansiedade,

    necessidade de controle, dificuldades na percepo e aceitao do prprio ritmo, assim

    como benevolncia, alteridade, alegria, leveza, cooperao. Pode-se dizer que a

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    39

    possibilidade de viver esses estados a grande responsvel pelo potencial curativo e

    educativo da DCS.

    Entre os arqutipos, existe o arqutipo central, o Self que se reporta inteireza,

    luz, essncia do ser, imagem do Criador no homem. Ele mora no centro de tudo, dos

    ambientes escuros e tem em si todas as qualidades da luz, do Divino. tambm

    entendido como si mesmo, ou seja, ao mesmo tempo o divino e o humano em

    essncia. O Self o caminho e a chegada da trajetria humana de se fazer homem.

    Estabelecer contato com esse arqutipo, permitir que ele se manifeste talvez seja o

    grande objetivo do ser humano, ou seja, fazer viver em ns o que nos conecta com o

    Criador. Para o homem primitivo, era esse o propsito da ritualizao, disponibilizar o

    ser para estar no Criador, s-lo com toda luz que lhe prpria.

    No mago do inconsciente coletivo Jung descobriu

    um centro ordenador o SELF (si mesmo). Desse

    centro emana inesgotvel fonte de energia. Seu papel

    importantssimo na psicologia jungueana. (Nise da

    Silveira, 1981, pg. 73).

    M. L. Von Franz explica que o Self o centro organizador da psique de onde

    emana uma ao reguladora e parece ser uma espcie de ncleo atmico do nosso

    sistema psquico. No decorrer dos tempos, os homens, por intuio, estiveram sempre

    conscientes desse centro. Os gregos, os egpcios, os romanos acreditavam cada um a seu

    modo, que ele estivesse no interior do homem como um gnio inato a orientar o homem

    no decorrer da vida. O Self est sempre intimamente ligado natureza sua volta e ao

    cosmos, pois est conectado ao mundo inteiro, tanto interior quanto exterior. Todas as

    manifestaes superiores da vida esto, de certa maneira, sintonizadas com o contnuo

    espao-tempo.

    A revelao do Self de uma grandeza que excede de

    muito a esfera do consciente, sua escala de expresses

    estende-se de uma parte ao infra-humano e de outra

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    40

    parte ao super-humano. (Nise da Silveira, 1981, pg.

    99).

    Nos conceitos de Jung, o Self ao mesmo tempo o centro mais profundo e

    tambm a totalidade da psique. Na roda, se marca o centro e para l a coreografia

    conduz os passos quando simboliza a busca de luz, de fora, de vitalidade. No centro,

    esto o Divino e o Self, numa dialtica entre o ser e o Todo ocupando o mesmo espao,

    ao mesmo tempo. Vivenciar esse conceito nas danas, atravs do corpo, mesmo que no

    trabalhado pela razo, parece ter o potencial de facilitar a trajetria do ser, minimizar o

    peso do caminhar pela vida ou, pelo menos, fornecer o mapa para a sua trajetria. A

    DCS prope essa dialtica da existncia: preciso sair de si em direo luz, ser o todo

    (ns), quando na roda de mos dadas. Mas o mergulho em si mesmo que conduz luz.

    No centro da roda est situada a fonte, a divindade e no centro que se colocam

    os objetos simblicos, entre eles os cristais e pedras. M. L. Von Franz nos lembra de

    que eles podem muitas vezes significar o Self, principalmente por sua constituio de

    preciso matemtica que desperta em ns o sentimento intuitivo de que, mesmo na

    matria dita inanimada, existe um princpio de ordenao espiritual em

    funcionamento. O cristal simboliza a unio dos opostos a matria e o esprito. E a

    pedra simboliza a experincia talvez mais simples e mais profunda, a experincia de

    algo eterno que o homem conhece naqueles fugazes instantes em que se sente

    inaltervel e imortal, como o xtase da dana.

    Na vasta amplitude da psique, a pequena ilha ou os cmodos iluminados so

    chamados de rea consciente que, por sua vez, tem como centro o ego. Consciente

    tudo o que ns conhecemos e lembramos em nosso campo psquico, sendo ego o seu

    centro regulador, tanto quanto o Self o centro regulador de toda a psique. O homem

    vem construindo sua conscincia ao longo dos milnios, vagarosamente. Essa evoluo

    est longe de ser concluda, pois h grandes reas da mente humana, ainda mergulhadas

    em trevas. Os limites da conscincia com o inconsciente pessoal so tnues e

    imprecisos. Os sentidos e a percepo do homem que dirigem seu conhecimento, que

    permeiam sua experincia. H que se entender tambm que, mesmo adentrando o

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    41

    campo da cincia para conhecer e aprender, h um limite de evidncias e de convices

    que o conhecimento consciente pode transpor.

    A conscincia humana resultado da civilizao, da capacidade de controle,

    mas ainda no alcanou um grau razovel de unidade. Ela ainda vulnervel e passvel

    de fragmentao, de dissociao ou perda da alma. Uma deciso consciente separa

    temporariamente uma parte da nossa psique, o que permite que nos concentremos em

    uma coisa de cada vez, excluindo o resto que tambm solicite nossa ateno.

    Na rea do consciente desenrolam-se as relaes

    entre contedos psquicos e o ego, que o centro do

    consciente. Para que qualquer contedo psquico

    torne-se consciente ter necessariamente que

    relacionar-se com o ego. Os contedos, os processos

    psquicos que no entretm relaes com o ego

    constituem o domnio imenso do inconsciente. Jung

    define o ego como um complexo de elementos

    numerosos formando, porm, unidade bastante coesa

    para transmitir impresso de continuidade e de

    identidade consigo mesma. (Nise da Silveira, 1981,

    pg. 71).

    A vivncia da DCS implica em estado de alerta da conscincia para o

    aprendizado dos passos, o entendimento dos significados da dana, a experincia das

    diferenas em comunho, a deteco dos sentimentos aflorados, o uso de funes

    cognitivas e corporais. Mas tambm permite a expresso de contedos e emoes

    ocultos ao consciente, como j referido anteriormente, devido ao mergulho nos aspectos

    ritualsticos que evocam a humanidade em sua histria milenar.

    A faculdade de controlar emoes que, de certo ponto

    de vista, muito vantajosa seria, por outro lado, uma

    qualidade bastante discutvel j que despoja o

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    42

    relacionamento humano de toda a sua diversidade, de

    todo o colorido e de todo o calor. (Jung, 2008).

    Contribuindo para que a unidade da conscincia se mantenha, as emoes e

    lembranas mais enfraquecidas, que no conseguem atingir a conscincia, so

    armazenadas na regio que Jung denominou inconsciente pessoal.

    Refere-se s camadas mais superficiais do

    inconsciente, cujas fronteiras com o consciente so

    bastante imprecisas. A esto includas as percepes e

    impresses subliminares dotadas de carga energtica

    insuficiente para atingir o consciente; combinaes de

    ideias ainda demasiado fracas e indiferenciadas;

    traos de acontecimentos ocorridos durante o curso da

    vida e perdidos pela memria consciente; recordaes

    penosas de serem relembradas; e, sobretudo, grupos de

    representaes carregadas de forte potencial afetivo,

    incompatveis com a atitude consciente. Acrescente-se

    a soma das qualidades que nos so inerentes porm,

    que nos desagradam e que ocultamos de ns prprios,

    nosso lado negativo, escuro. Esses diversos elementos,

    embora no estejam em conexo com o ego, nem por

    isso deixam de ter atuao e de influenciar os

    processos conscientes, podendo provocar distrbios

    tanto de natureza psquica quanto de natureza

    somtica. (Nise da Silveira, 1981, pg. 72).

    Na medida em que a experincia da DCS possibilita o relaxamento das tenses,

    a expanso da conscincia, o contedo pessoal inconsciente guardado nas suas

    fronteiras, ainda fracos para se apresentarem, encontram passagem e se manifestam,

    muitas vezes, atravs de fortes emoes, de insights. Esse parece ser o ponto de contato

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    43

    com as prprias aprendizagens guardadas, os impulsos de autocura. A roda uma

    mandala em movimento, sendo construda, desfeita, reconstruda e modificada com a

    energia corporal da criatividade e com a fuso das mos na coletividade. O fluir dessa

    energia unificadora da mandala parece abrir portas ou portais, por onde a comunicao

    entre consciente e inconsciente se d, minimizando as interferncias do ego.

    Alm do inconsciente pessoal, o grande mrito de Jung foi o de dar luz noo

    de inconsciente coletivo. Este corresponde s camadas mais profundas do inconsciente,

    aos fundamentos estruturais da psique comuns a todos os homens. o grande

    denominador comum que nos permite pensar na igualdade entre os homens como uma

    verdade tambm mental, alm de anatmica. Ao mesmo tempo, esse substrato se

    manifesta de forma absolutamente nica em cada homem, o que nos remete ao conceito

    de individualidade, ou unicidade humana, ou individuao.

    Do mesmo modo que o corpo humano apresenta uma

    anatomia comum, sempre a mesma, apesar de todas as

    diferenas raciais, assim tambm a psique possui um

    substrato comum. Chamei a este substrato inconsciente

    coletivo. Na qualidade de herana comum transcende

    todas as diferenas de cultura e de atitudes

    conscientes, e no consiste meramente de contedos

    capazes de tornarem-se conscientes, mas de

    disposies latentes para reaes idnticas. Assim o

    inconsciente coletivo simplesmente a expresso

    psquica da identidade da estrutura cerebral

    independente de todas as diferenas raciais. Deste

    modo pode ser explicada a analogia, que vai mesmo

    at a identidade, entre vrios temas mticos e smbolos,

    e a possibilidade de compreenso entre os homens em

    geral. As mltiplas linhas de desenvolvimento psquico

    partem de um tronco comum cujas razes se perdem

    muito longe num passado remoto. (Jung, apud Nise

    da Silveira, 1981, pg. 73).

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    44

    A autora acima (Silveira, 1981) infere que, a anlise dos contedos do

    inconsciente proposta por Jung, revela que os elementos arcaicos no s permanecem

    vivos e atuantes, mas que esto envolvidos num contnuo processo de elaborao

    atravs do tempo.

    Na DCS, os aspectos comuns da humanidade so expostos exatamente na sua

    potencialidade ritualstica, que se refere aos elementos arcaicos que se atualizam a cada

    vivncia. uma prtica que permite a expanso da conscincia com a experincia do

    sagrado, ampliando o trnsito entre os contedos do inconsciente, principalmente do

    inconsciente coletivo.

    No inconsciente coletivo, que ficam guardados os aprendizados milenares de

    todos os homens e, junto a eles, a necessidade de vivenciar o sagrado como forma de

    conexo com o criador. A DCS vivifica e atualiza essa forma de conexo, sem exigir

    credo anterior, sem rtulos ou pr-concepes prprias da civilizao atual, apenas

    colocando os participantes em igual posio frente fora criadora o centro. Da

    mesma forma essa experincia modifica a percepo de espao, e promove a entrada na

    dimenso do ritualstico num eterno retorno ao momento da criao, da totalidade

    alterando tambm a percepo do tempo. O aspecto numinoso (revelador, mgico), o

    sagrado inerente vida do homem parece encontrar a um modo de se fazer sentir. O

    sagrado evoca o arqutipo do Self, o ego se recolhe, e o Self se amplia. O potencial da

    dana de fazer reduzir espao e tempo ao momento crucial da existncia se confunde

    com a beleza de se poder ser o humano por inteiro.

    Esse trabalho de ampliar a presena do Self ao ponto de faz-lo identificado com

    o ego o processo do homem se tornar inteiro, o processo de individuao. Diz-se

    trabalho porque um rduo caminho a ser trilhado e que exige vontade frrea,

    disponibilidade de cognio e de emoes em sintonia como propsito. Este percurso

    implica aceitao das caractersticas menos apreciadas em si mesmo, na realizao de

    todos os potenciais ainda desconhecidos ou adormecidos, ou seja, fazer-se, completar-

    se.

    Sobre o processo de individuao Nise da Silveira explica:

  • UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

    CENTRO DE ESTUDOS UNIVERSAIS

    45

    o processo de desenvolvimento da psique at

    completar-se. No homem o desenvolvimento de suas

    potencialidades impulsionado por foras instintivas

    inconscientes e tem carter peculiar: o homem capaz

    de tomar conscincia desse desenvolvimento e de

    influencia-lo. Precisamente no confronto do

    inconsciente pelo consciente, no conflito como na

    colaborao entre ambos que os diversos

    componentes da personalidade amadurecem e unem-se

    numa sntese, na realizao de um indivduo especfico

    e inteiro. O processo de individuao no consiste num

    desenvolvimento linear. movimento de circunvoluo

    que conduz a um novo centro psquico. Jung

    denominou este centro de SELF (si mesmo). Quando

    consciente e inconsciente vm ordenar-se em torno do

    Self a personalidade completa-se. O Self ser o centro

    da personalidade total, como o ego o centro do

    campo do consciente. (Nise da Silveira, 1981, pg.87)

    O centro ordenador, ou o centro da conscincia esto representados, de certa

    forma, no centro da roda na DCS. ao redor do dentro que toda a movimentao

    acontece, e para l se dirigem os passos quando se simboliza a busca de ddivas, de

    verdade, de bnos, e at as transformaes. Na roda o centro funciona como o ponto

    aglutinador das energias, o lugar onde mora a potncia do cosmo e do homem, do Todo

    e do indivduo. O desenvolver da dana simula o processo de busca da completude de

    cada um, trazendo para a presena atemporal os contedos no sabidos. E cada um

    chamado a lidar com suas dificuldades e facilidades no desenrolar dos passos. Essa

    possibilidade de viver a sua busca pessoal no contexto da comunidade coloca em ao o

    paradoxo de ser o homem parte do Todo e este viver nas partes, sendo mais do que a


Recommended