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MIGUEL ATTIE FILHO . .. .. .. .\ \\ \ FALSAFA A Filosofia entre os rabes So Paulo 2001Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 2 . .. .. .. .\ \\ \ FALSAFA A Filosofia entre os rabes SUMRIO Tabela de transliterao das letras rabes ....................................................................4 Tabela de pronncia .....................................................................................................5 Introduo .....................................................................................................................6 1 ALGUNS INTRITOS 1.1A importncia do estudo da falsafa........................................................8 1.2A origem e o significado do termo falsafa.............................................9 1.3As principais caractersticas da falsafa ................................................12 1.4rabes, islmicos e muulmanos ........................................................14 1.5Filosofia rabe ou filosofia islmica ? .................................................17 1.6Histria do pensamento e histria da filosofia ....................................21 1.7Filosofia e teologia ..............................................................................23 1.8Filosofia e mstica ................................................................................27 2 UM TAQUINHO DE UMA HISTRIA DA FILOSOFIA 2.1...e, afinal, onde estamos?....................................................................31 2.2 Divises na Histria ...........................................................................35 2.3Os perodos da Filosofia......................................................................39 2.4Alguns ditos sobre a filosofia dos medievais .....................................42 2.5Um panorama religioso da poca .......................................................46 2.6O saber e alguns de seus centros ........................................................52 2.7A chegada dos rabes .........................................................................57 3 NO ISL M NASCENTE 3.1A Arbia pr-islmica..........................................................................59 3.2O Profeta Muammad ........................................................................61 3.3O Alcoro ...........................................................................................64 3.4A expanso muulmana .....................................................................66 3.5Os Omadas ........................................................................................67 Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 33.6Os Abssidas.......................................................................................68 3.7Os primeiros intrpretes ......................................................................72 3.8O Kalm ..............................................................................................74 4 IDE BUSCAR O SABER AT NA CHINA... A RECEPO 4.1Uma herana do saber ........................................................................78 4.2Primeiras tradues..............................................................................81 4.3Hunayn e a Casa da Sabedoria ...........................................................83 4.4De Aristteles a Arislis ................................................................87 4.5De Plato a Aflan ............................................................................91 4.6De Plotino a Aflun o mestre grego .......................................94 4.7Outras presenas .................................................................................98 5 A FALSAFA E OS FALSIFA5.1Al-Kind, o anfitrio .........................................................................100 5.2Al-Frb, o inventor ........................................................................121 5.3Ibn Sn, o sistematizador .................................................................143 5.4Al-azl, o batedor .........................................................................172 5.5Ibn Rud, o reformador ....................................................................196 6 AS DUAS FACES DA FALSAFA 6.1O pouso das guias ...........................................................................220 6.2Caminhos para o Oriente ...............................................................221 6.3Caminhos para o Ocidente .............................................................225 6.4Tradues para o latim ......................................................................227 6.5A recepo dos rabes-filsofos .......................................................230 6.6Maimnides e a falsafa......................................................................234 6.7Santo Alberto e os medievais latinos ................................................235 guisa de concluso ...............................................................................................238 Bibliografia............. .................................................................................................240 Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 4 Tabela de transliterao das letras rabes ir ,bzf :ts_q :tok _jl _,m _n .d.h .d/ w Vogais _/ y __a. _ _ i( i ) __u( ) Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 5Tabela de pronncia Letranome tranlist.som aproximadoLetranome tranlist.som aproximado ialefaspirar adThose - enftico ,bebbeleza tTodo - enftico :tettodadz Zero - enftico :tetthink(ing.)ain -------------- _jimjjuntoain-------------- _eH - aspiradofe ffeliz _juego (esp.)_qaf qquente.delddivino okef kconstruir .deldthose(ing.)lam llongo rerroda,mim mmemria zainzzeronun nnada sins seguir.he h heaven (ing.)inchance wau / wum ad Seguir - enftico_ie / yinominvel .hamza----------- ( i ---------- --------------) ( _ __ _ ----------- Vogais breves ___________ a ___________ i ______ _____ uFalsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 6INTRODUO Estenoumescritoparaespecialistasnafilosofiaemrabemasse destina,commaispropriedade,aosestudantesdefilosofiaeaopblicoemgeral, limitando-seacontornosdecarterintrodutrioaotema.Nopretendi,tambm, escreverumaHistriadaFilosofianomundoislmico.Omeuobjetivofoimais singelo:traarumroteiromnimodentrodaHistriaedaFilosofiaquepudesse fornecer ao leitor um quadro da localizao da falsafa como um momento crucial para secompreendercommaisclarezaalgunsaspectosdocursodetransformaesdo pensamento filosfico tanto do Oriente como do Ocidente. Para tal, procurei apresentar algunstemasprincipaisquecompemocenriodafalsafaparaserumguiade assuntosaoleitor.Dessemodo,inegvelqueocarterpanormicodestetrabalho carregatodasasdificuldadeseosriscosquesoinerentesatalopo.Noentanto, espero que, futuramente, outros autores venham a contribuir para preencher as lacunas que aqui se apresentam.Vale adiantar que o termo falsafa significa filosofia. Neste trabalho, porm, adquire um sentidomais especfico, e entendido comoo perodo clssicoda filosofiaentreosrabes,apartirdomovimentoderecepoedesenvolvimentoda filosofia grega nas terras dominadas pelo Islm circunscrito entre os scs VIII d.C. / II H.eXIIId.C./VIIH.Visto,portanto,comoumsegmentohistricodafilosofia,a falsafa a qual me refiro um movimento que inicia-se com as obras de Al-Kind e se encerracomamortedeIbnRudsemque,comisso,secomprometaasua continuidade, quando entendida de modo genrico.Umaimportanterazoquepodelevaroestudanteepesquisadorde filosofia adirigirsuaatenofalsafa, emprimeirolugar,oseurelevantepapelno cenriohistricodafilosofiadoOrienteedoOcidente.Almdessaimportncia histrica,ressalte-sequeaenvergaduradesuastesestrazelementosenriquecedores cenadodebatefilosfico.Muitasvezes,essepapeldeprimeiraimportnciano reconhecidocomevidnciatantopeladificuldadedeinformaescomopelaescassez de obras especializadas em nosso idioma a esse respeito.Nestetrabalho,inicialmente,soanalisadosalgunsconceitosque guardamumaproximidadecomafalsafa,taiscomo,ostermosrabe,islmico, filosofiaeteologia,indicandodireespelasquaisessasdiscussescaminham atualmente.Emseguida,soabordadosalgunspontosdaHistriadaFilosofiano Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 7Ocidente,particularmentearespeitodoperodomedieval,objetivandoforneceruma localizao da falsafado pontode vistahistrico efilosfico. Apsesse quadrogeral da Histria da Filosofia, h algumas informaes bsicas sobre o momento histrico do surgimentodareligioislmica.Comoestabelecimentodotextosagradodos muulmanos oAlcoro e a expanso do Islm, a ateno se dirige ao perodo de traduesdacinciaedasabedoriadosantigosparaalnguarabe.Emseguida,so apresentadasalgumascaractersticasbsicasdopensamentodosquatronomesde maiorenvergaduradafalsafa,ouseja,Al-Kind,Al-Frb,IbnSn(Avicena)eIbn Rud(Averris)e,tambm,algunspontosdapolmicadeAl-azl.Aofinal,h algumasindicaesarespeitodoscaminhosseguidospelafalsafanoOrienteeno Ocidente.Emtodoessetrajeto,omeumaiorintuitofoioferecerumconjunto mnimo de informaes que se traduzisse num estmulo para que, no futuro, os estudos a respeito da falsafa, aqui no Brasil,estejam de acordo com sua importncia histrica e filosfica, encontrando espao junto ao meio acadmico para criar uma base mnima para que outros possam continuar sem interrupo. Setembro de 2001 Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 81 ALGUNSINTRITOS 1.1 A importncia do estudo da falsafa. Mesmo que no pretendessemos contar a Histria da Filosofia ocidental emalgumaspginas,masprocurssemosapenastraarumalinhamnimaqueligasse asprincipaisetapasdaHistriadaFilosofia,serianaturalquetivessemosemmente que, de algum modo, o mais atual pensamento do mais jovem filsofo do nosso planeta teria alguma relao com o mais antigo pensamento do mais antigo filsofo da Histria daHumanidade;fosseessarelao,umarelaodeproximidadeeconcordnciaou fossedeafastamentoedivergncia.justamenteporadmitirmosquetalrelao inerente s diversas manifestaesfilosficas que podemos justificar o porqu damos a isso o nome de Histria da Filosofia e, tambm, o porqu do interesse em pesquis-la. Aonoshabituarmosemestabelecerumdilogocomafilosofia comumestarempresentesemnossasreflexesfilsofoscomoAristteles,Plato, Herclito,egrandepartedosfilsofosdaantigaGrcia.Almdesses,porvezes fazemosfigurarpensadoresdoOcidentemedievallatinocomoAgostinho,Rogrio BaconeTomsdeAquino.Aestes,noraro,podemosacrescentarigualmenteos nomesdealgunsmodernoscomoHegel,Kant,Nietzsche,Descarteseoutros.Mesmo sabendo que tais pensadores possuem extremas diferenas filosficas entre si, no nos sentimoscometendonenhumacontradioemreun-los,poissabemosquetodosso tributrios dos argumentos da razo propsito da filosofia para superar os desafios particularesquese-lhesapresentaramemcadapoca.Seissonosnatural,no devemoster,pois,amenorhesitaoemtrazersnossasreflexes,porexemplo,os nomesdeAl-Kind,IbnSn,Al-FrbeIbnRudquesoosnomesmais representativosdafalsafa,tendosidoajustottuloconhecidostambmcomoos filsofos rabes helenizados.Nascidos no perodo medieval em terras dominadas pelo Islm, entre os scs. VIII e XII d. C./ II e VI H., esses pensadores foram denominados, em rabe, pelo termofalsifa1,isto,filsofosemvistadesuaarte:afalsafa,isto,a filosofia.Emsuasobras,justifica-setaldenominaoemvirtudedehavertraos profundos e marcantes de grande parte da tradio da filosofia e da cincia antiga dos 1No singular, failasf(filsofo). Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 9gregos.Ofatodetaispensadoresestareminseridosnumaculturamaisdistanteda nossa,talveznosdesseafalsaimpressodequeomundorabeeomundoislmico poucoteriamaacrescentarsnossasdiscusseshistrico-filosficasemvistasda formao do nosso pensamento ocidental. Porm, ao se entrar em contato com as obras dosfalsifapode-severificarqueelesadotaramosprincpiosdafilosofiaatravsdas demonstraeslgicas,estabelecidosprincipalmenteporAristtelesparasuperaros desafiosimpostospelasmaisvariadasquestesquese-lhesapresentaram.Assim, naturalqueelesfiguremjuntamentecomosgrandesnomesdaHistriadaFilosofia. Curiosamente, em muitos aspectos, a sua importncia se deu mais em vista do impacto causadonaHistriadaFilosofiadoOcidentedoquenadoprprioOriente.Detodo modo,afalsafaumdoselosmaisesclarecedoresparaacompreensodoscaminhos dafilosofianoperodomedievalvistoquesedeunomesmoperodoemqueo Ocidente esteve sob a denominao (s vezes injusta) de Idade das Trevas. Umadascoisasquemaischamaaatenoaoatentoestudantede filosofiaque,norarasvezes,osmanuaisdeHistriadaFilosofiaaotrataremdo perodo medieval passam de Agostinho (sc. IV d. C.) a Toms de Aquino (sc. XIII d.C.) sem dar a devida ateno ao que ocorreu nesse nterim, o que indiretamente acaba reforandoque,nesseperodo,oconhecimentocientficoefilosficoteriamficado estagnados. Tal julgamento no pode se aplicar ao lado oriental medieval, pois neste, o queseviu,permiteconsider-locomoumdosperodosmaisluminososdaHistria: grandesavanosforamrealizadosempraticamentetodasasreasdoconhecimentoe, de modo particular, na filosofia. 1.2A origem e o significado do termo falsafa. Atranscriodotermogrego (filosofia)paraalngua raberesultounotermo..\(falsafa).Valeesclarecerquese,porumlado,na lngua grega, os morfemas / (filia/sofia) se unem para dar, entre outras, a idia de amor sabedoria, por outro lado,em rabe assim como nastranscries queencontramosemoutraslnguascomo,porexemplo,philosophiaemlatim; philosophieemfrancsealemo;philosophyeminglsetc.aidiaqueligaos conceitosdeamoredesabedoriasedsomenteporumaanalogiaeumretornoao termogrego.Osvocbulosusadosparasignificaramoresabedoria,nalngua rabe, no possuem qualquer semelhana com os radicais gregos decorrendo, portanto, Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 10quenovocbulo..\(falsafa)nohqualqueridiaqueprovenhadosradicais prprios da lngua rabe. uma pura transcrio da lngua grega. Mesmonosendoocasodenosaprofundarmosnadiscussode significadosdostermosgregosenemdefazercorrespondercomrigidezostermos gregos aos termos rabes, podemos aludir aofato de que alguns conceitos quepodem se incluir no conceito de (filia) so, por exemplo, o conceito de amor, de paixo, de amizade, de desejo e de inclinao da alma. No caso do conceito de (sofia), podemos incluir nele os conceitos de sabedoria, cincia e conhecimento. Quantoa (filia)htrstermosnalnguarabequepodemse aproximardesuadefinio:,.(ub),.i.(adq)e_(iq).Osdois primeiros, apesar de serem usados com frequncia na lngua rabe, no tiveram um uso muitocorrentenovocabulriodafalsafa.Nocasode,.(ub),suaaplicaosed maispropriamenteaoamornosentidodaternura,docarinhoedoafetopodendoser traduzido como o amor num sentido mais amplo. O segundo termo .i. (adq) setraduzporamizade,pormsuaraizoriginalremetenoodeautenticidade, sinceridade,veracidadeeoutrostermosafins.E,talvez,justamentepelofatodeuma amizade nopoder prescindirde todosesses atributos que,na lnguarabe, otermo amizadeprovmdaquelesprimeirosconceitos.Porfim,aidiadeamornosentido dapaixoedainclinaododesejo,encontrasuamelhortraduonotermo_ (iq). Ibn Sn, por exemplo, ao fazer uso desse termono o restringe meramente ao sentidomaterialdaatraocarnalmas,procuraespiritualiz-lonosentidometafsico do movimento da hierarquia dos seres em direo causa final. Nesse sentido, o termo _ (iq) guarda tambm uma certa proximidade com o conceito de (eros) e, novocabulriofilosfico,pois,oquemaisseaproximatambmdaidiade (filia). Emrelaoaotermo(sofia),htrstermosnalnguarabeque estorelacionadosaosentidodesabedoria,decinciaedeconhecimento.Soeles: ,\ (ilm ),. ( marifa )e.s.(ikma). Esses trs termos possuem um uso frequentenalinguagemfilosficaentreosrabes.Noprimeirocaso,\(ilm), Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 11suamelhorcorrespondnciaotermocincia.Commaisfrequnciafoiesseotermo utilizadoparatraduziranoogregade(episteme).Novocabulrioda falsafa com ,\ (ilm ) quese expressa, por exemplo,a noo de cinciadivina, cinciadanaturezacinciadaalma,cinciadalgicaetc.Nosdiasdehoje, grandepartedadenominaodascinciasmodernasesuasvariantescomo,por exemplo, Biologia, Sociologia, Economia e Ecologia antecedido pelo termo ,\ (ilm ). Quando se predica algum o adjetivo,:t (lm), o sentido mais apropriado o de queessealgumdouto,erudito,diplomado.Omesmotermotambmusadopara designar o cientista. Nosegundocaso,isto,.(marifa),estederivadaraizdoverbo (arafa)quesignificaconhecer.Assim,otermo.(marifa)podeser traduzidoporconhecimento.comessetermo,porexemplo,queIbnSnafirma que o fim da filosofia especulativa o conhecimento da verdade, e o fim da filosofia prticaoconhecimentodobem2.Mas,numoutrosentido,hcertanuancenesse termo: ao analis-lo, Goichon aproxima-o do termo grego (gnosis). Assim, por exemplo,aosepredicaralgumcomoadjetivo.(arf),podeseindicaro carter do conhecimento do iniciado, do que tem acesso ao saber esotrico, oculto. Porfim,maispropriamentecomotermo.s.(ikma)que encontramos a melhor aproximao da noo de sabedoria. Esse foi o termo usado na traduo do grego (sofia). Em alguns casos, esse termo tambm usado com o sentidodecincia,\(ilm)econhecimento.(marifa)Porm,enquanto os dois primeiros denotam um tipo de saber mais indicativo, o espectro mais amplodoconceito.s.(ikma)oquemaisseaplicanocasodovocabulrio filosficoparadesignaraextensodoconceitosabedoria.Poressarazo,svezes, .s. (ikma) tambm, foi usado como sinnimo do prprio conceito de filosofia. Se osantigosgregoschamavamumhomemsbiode (sofos),emrabeeleseria denominado ,,s. (akm). Vocbulos como governador, juiz, rbitro e outros, 2 Cf. GOICHON, Vocabulaire,p. 19 e Lexique, p.221. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 12tambm derivam da mesma raiz, remetendo a um sentido mais abrangente do conceito de sabedoria.Namedidaemque,tantonaslnguasocidentaismodernascomona lngua rabe, o termo filosofia foi uma importao de origem grega, natural que em todaselastenhahavidoumaapropriaodovocbulo.Nessesentidocomum,por exemplo, tanto em rabe como em portugus , se dizer que um tal homem pensativo um filsofo ou que determinada pessoa possui uma filosofia de vida. No entanto, podehaversutisdiferenasnessasmesmasafirmaespoisaintensidadecomqueo OcidenteeoOrienteassimilaramalgumastradiesdafilosofiadaantigaGrciano foi a mesma. Talvez, por isso, a falsafa fra, em muitos casos,mais estrangeira para os rabes do que a filosofia o foi para os ocidentais.

1.3as principais caractersticas da falsafa. Preenchendopginasemaispginasemlnguarabe,osfalsifa desenvolveramsuastesesentreossculosVIIIeXIId.C./IIeVIH.Portanto,a principal caracterstica da falsafa ser medieval. Tal condio traz consigo uma grande bagagem de pr-conceitos a respeito da Idade Mdia e, conseqentemente, da filosofia praticada nesse perodo. Se a binmia tabuleta em que se l razo e f pde guardar um olhar estreito em relao ao todo da filosofia medieval, mais ainda poderia s-lo em relao falsafa. A isso se acrescenta, no raramente, uma viso distorcida dos povos semitas, de modo geral, e dos rabes, em particular.Outracaractersticadafalsafatersidoumanovidadenocenrioda filosofia que, at ento, j havia se construdo e se alicerado ao longo de, pelo menos, 1200anos.Afinal,atosc.VIIId.C.,afilosofiahaviasedesenvolvido principalmenteentreospovosgregos,nointeriordoimprioromanoeentrea cristandadedoOrienteedoOcidente.Anovidaderepousanofatodeque,nesse panoramadepovoseculturas,tambmpassouafiguraropovorabe.E,domesmo modo,queohelenismo,quandoabsorvidoporoutrasculturas,tevequeseadaptars caractersticaslocais,omesmoaconteceunocasodafalsafa.Osingredientesda filosofia edascinciasgregastambmseadaptaram culturaereligiodosrabes. Esseencontroresultounumafilosofiaoriginalerenovadaquenoseconfundecom particularidades filosficas anteriores. Alm disso, a filosofia que havia sido, at ento, umpatrimniopraticamenteexclusivodalnguagrega,latinaesiraca,chegou,pela Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 13primeiravez,aserescritaemlnguarabe.Nessecaso,nodifcilimaginarqueos termoseosconceitosfilosficostiveramdeseguirumnovoitinerrioparaserem adaptados ao novo idioma.Outropontorelevanteofatodeafilosofiaseconfrontarcomuma novareligio.Oislamismorecebeuafilosofiapoucomaisde150anosapsoseu nascimento. A filosofia, nascida entre os mitos gregos, transportada juntamente com os deusesparaopanteodeRoma,absorvidapelospadresdaigrejaparacimentaros dogmas da cristandade, havia se confrontado, at ento, com outras formas de religio mas no ainda com o islamismo. Foi a falsafa que se encarregou de fazer com que os princpiosfilosficossedeparassem,pelaprimeiravez,comosdogmasdareligio islmica, o que foi, sem dvida, um novo desafio para ambas. Afalsafafoiaresponsvelnospelaimersodopensamentoda filosofiagregaentreosrabesmastambmpelatransmissodafilosofiagregaao Ocidente.Namedidaemqueoparadigmagregofoiumdosresponsveispela construo filosfica do Ocidente, no difcil imaginar que a falsafa ocupa um lugar histricomuitopeculiar.Sobreomeridianodafilosofiaorientaleocidental,ameio caminhodacontemplaodedoisoumaiscaminhos,afalsafacontribuiu sobremaneiraparainmerastransformaesdafilosofiadoOrienteedoOcidente. assimque,porexemplo,muitastesesdesenvolvidasnointeriordafalsafapossuem aos moldes das duas faces da alma propostas por Ibn Sn duas frontes distintas: uma voltada para o Oriente e a outra para o Ocidente. Como bem assinalou Carra de Vaux, estaescolasedivideemdoisramos:oorientaleoocidental.Al-Kind,Al-Frb, Avicenasonomesclebresdoprimeiroramo;IbnBja,Ibnufayl,Averris,osdo segundo ramo. 3 TalvezseVoltairetivesseconhecido,almdosinfindveisvolumes escritospelospensadoresdoOcidentemedieval,tambmosdosfalsifa,certamente teriacontinuadoaexclamardequetudodeveriasercolocadoemdicionrios.Eisso noseriatoa,poisumadascaractersticascomumaosfalsifa,quechamamuitoa ateno, o nmero de suas obras. Os ttulos de Al-Kind, citados por Badawi em sua Histoire de la Philosophie Islamique,chega ao nmero de241; no caso deAl-Frb, maisde120;paraIbnSn,Anawaticataloga276obras;paraIbnRud,Badawi apresenta uma lista de 92 ttulos. Algumas dessas obras no chegaram at ns, muitas 3 Cf. VAUX, C. Les penseurs de lIslam,pp. 1s. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 14encontram-seaindaemmanuscritosarquivadosembibliotecas,algumasforam editadas em rabe, as mais importantes tiveram tradues para o latim durante a Idade Mdia e pouqussimas foram traduzidas para as lnguas modernas. Ostemasabordadospelosfalsifacobriramgrandepartedos conhecimentos dapoca: lgica,fsica, matemtica,metafsica, medicina,astronomia, msica, psicologia, tica e poltica. Pelo fato de haver, dentre essas obras, comentrios sobreAristtelese,emmenornmero,sobreoutrosautores,muitasvezessequis reduziropapeldafalsafaaessescomentrios.Hmuito,porm,aspesquisasa respeitodafalsafa,jseincumbiramdemostraroquantoadenominaode comentadoreserarestritaeimprecisaparadesignarotrabalhorealizadoporesses pensadores. Se o comentrio foi uma realidade entre os falsifa, tanto o foi, tambm, o desenvolvimentodeumafilosofiaoriginal,degrandeenvergadura,porpartedecada um deles. 1.4 rabes, islmicos e muulmanos Apesar de muitas vezes serem tomados um pelo outro, esses trs termos nososinnimos.Certamente,podemtermaisdeumsentidodependendodomodo comosoempregadosmas,geralmente,osencontramosutilizadosapartirdeuma distinobsica:otermorabegeralmenteutilizadonosentidodalngua,da cultura, da poltica ou da etnia e no no sentido religioso; o termo islmico guarda o carterdareligio,mastambmdoEstadooudaculturaenodaetnia;otermo muulmano,aplica-sespessoasadeptasreligioislmica,masquenoso, necessariamente,rabes.Detodomodo,passemosaverificarcommaisdetalhestais significados. Dentre os inmeros sentidos em que usado, o termo rabe,pode ser entendidoapartirdeduasvertentesprincipais:oconceitorabeutilizadoemsua origemeosentidoatualqueguardaemnossosdias.Talvezamelhormaneirade abordaresseespinhosoassuntosejacompreenderumpoucodahistriadospovos chamadosrabeseastransformaesqueessetermosofreuaolongodessepercurso. Osrabesfazempartedospovossemitas.Aprimeiranotciaquesetemarespeito dessespovos,demodogerale,dosrabesedaregiodaArbia,emparticular, remonta ao Antigo Testamento. No captulo 10 do Livro do Gnesis, o povoamento da terra apresentado peladescendncia de No a partir de seus trs filhos: Sem, Cam e Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 15Jaf.Osrabesfazempartedoconjuntodepovosqueseformaramapartirda descendnciadeSeme,poressarazo,foramchamadossemitas.Ocaptuloem questo termina do seguinte modo: EssesforamosfilhosdeSem,segundoseusclsesuaslnguas, segundosuasterrasesuasnaes.Essesforamosclsdos descendentesdeNo,segundosuaslinhagensesegundosuasnaes. Foi a partirdeles que ospovos sedispersaram sobre aterra depoisdo dilvio.4 Oconjuntodospovossemitaslocalizou-sepreferencialmentenaregioda Mesopotmiaeoriginouascivilizaesantigasqueocuparamessasterras.Os babilnios,caldeus,fencios,hebreus,srios,assrioseosrabesso,portanto,todos primos.Porvoltade850a.C.jerapossvelencontrareminscriesassriase babilnicastermosequivalentesaovocbulorabe.Aliteraturagregaclssica, atravsdeHerdoto,tambmmencionanososrabescomotambmaregioda Arbia. Em princpio,o termorabe seaplicou maisprecisamente aosbedunos e populaonmadedodesertodaArbiaemoposiopopulaosedentriadas cidades. Restrito a esse sentido, a forma mais pura de rabe a dos bedunos, os quais preservaram com maior fidelidade do que quaisquer outros o modo de vida e a lngua rabe originais.5 Em portugus, o termo rabe derivado diretamente do original , (arab)queumcoletivo:osrabes.Nocasodoadjetivo,queparanspossuia mesma forma,nooriginalsofreumaalteraopara _, (arabiy).Asderivaesa partirdessaraizenglobamtodosostermosafinscomo,porexemplo,arabismo, arbicoearabizar.Otermohebreu_,(ibriy)derivadeumaraiz semelhante que se diferencia pela inverso da segunda com a terceira letra formando o verbo , (abara ) que significa atravessar, passar. Apartirdosc.VIId.C/IH.comosurgimentodoIslm,aaplicao do termo rabecomeou a ganharnovas variantes. Asconquistas que sesucederam logoapsamortedoprofetaMuammad,estenderamoimpriodonortedaIndiaao suldaEspanha.Nesseprimeiroperodoocalifadoesteveempoderdosrabese, 4 Gnesis, X, 31-32. 5 Cf. LEWIS, B. Os rabes na histria, p.17. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 16mesmocomarpidaexpansoqueseverificou,otermorabeaindaseaplicava somenteaosquefalavamalnguarabeedescendiamdealgumastribosrabes.No entanto,medidaqueoutrospovosforamadotandoalnguaeareligiodosrabes como,porexemplo,ossrioseosegpcios,otermorabecomeouamigrarem direo a uma conotao mais prxima tanto do conceito religioso como do lngustico, pois, tanto a lngua como a nova religio haviam sido geradas no seio do povo rabe.ComobemassinalouLewis,apartirdosculoVIIId.C/IIH.o califadofoisetransformandogradualmentedeumimpriorabenumimprio islmico.OCalifadoOmadaquedurouporpoucomaisde100anos,desdeo estabelecimento do Islm, esteve em poder dos rabes. Em meados do sculo VIII d.C. /IIH.ahegemoniarabesobreoimpriocomeouaseperder.OsAbssidas,de origempersa,assumiramocalifadoetransferiamacapitaldeDamascoparaBagd. Nessa poca os interesses do imprio j no eram mais exclusivamente rabes. Esse foi um marco importante no distanciamento entre os conceitos arabe e islmico. No difcilperceberquemedidaqueesseprocessodetransformaodospovos convertidos encontrava mais acolhida no termo islmico do que no termo rabe, as discusses entre os dois conceitos se mantiveram acesas e chegaram at os dias atuais. Questescomomedicinarabeoumedicinaislmicae,nonossocaso,filosofia rabeoufilosofiaislmicatmsuasrazesnesseprocessohistricode desenvolvimento do islamismo desde a pennsula arbica at os limites de hoje.Atualmente,otermorabeaplicadonumsentidomaisgenrico designando no somente os rabes que habitam a Arbia mas tambm os que habitam outrospasestaiscomooEgito,Marrocos,Sria,LbanoeIraque.Poroutroladoos pasesrabesnodesignamatotalidadedospasesislmicos.Issoquerdizerque rabeeislmiconososinnimos,assimcomorabeemuulmanotambm nooso:hmuulmanosquenosorabeserabesquenosomuulmanos. Nesse sentido, os rabes vem a si mesmos como uma grande nao. Do mesmo modo que os pases da Europa vem a si mesmo como uma unidade, os rabes entendem ser uma nao nos limites daqueles que falam a lngua rabe e so sensveis memria da glriarabepassada6possuindoumadivisoapenasgeogrficaepoltica,queteve, entre outras causas, o prprio colonialismo europeu. 6 Cf. LEWIS, B. Os rabes na histria, p.21. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 17Nalnguarabe,ostermosIslmemuulmanoderivamdeuma mesmaraiz:,\.(salima).Aideageralaplicadaaestaraizenglobaumasriede conceitoscomopaz,sade,benevolncia,integridade,proteo, resignao, hospitalidade e outros tantos ligados a um timo sentimento. O termo ,;.i(Islm),derivandodessaraiz,setraduznosentidodeconfianaemDeus, resignaoaDeus,conformaoaDeusousubmissoaDeus.Aadjetivaodesse termo resultou em _.;.i (islmiy) que se traduziu por islmico. Logo, aquele que aceita o princpio contido no termo ,;.i ( Islm ) um ,\.. ( muslim ), termo que setraduzpormuulmano.Apesardenohaverumaregrarigorosa,otermo islmico geralmente usado no sentido das idias e dos ideais contidos no Islm, ao passoqueotermomuulmanoaplica-secommaisfrequnciapessoa,aosujeito concreto que pratica os ideais do Islm. Assim como do verbo ,\ (alima ) saber se retira aquele que pratica o saber, isto , o ,\. (muallim ) professor , do mesmo modoaprefixaomuindica,em,\..(muslim)anoodosujeitoconcreto.Por isso mais comum encontrarmos filosofia islmica e filsofo muulmano e no o contrrio, apesar de que, em casos como mundo islmico, pode se encontrar tambm mundo muulmano. No entanto o primeiro se mantm no sentido dos ideais do Islm e o segundo denota o conjunto dos sujeitos concretos. 1.5Flosofia rabe ou filosofia islmica?

Definirotermomaisapropriadoparadesignaroconjuntode manifestaesdafilosofianoperododafalsafaesbarrounavariedadeena complexidadequelheforaminerentes.Comoseriapossvelreunirsobummesmo nome as obras medievais escritas no s em lngua rabe, mas tambm em persa e em hebraico; no spor muulmanos, mas tambmpor cristos e por judeus ? Na dcada de 50, por ocasio do Congresso de Filosofia Medieval em Louvain, Georges Anawati, um nomerespeitvel noestudo dafalsafa, patrocinouuma enquetepara tentarfixara denominaodesseperododaHistriadaFilosofia.Seaquasesinonmiaentreo Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 18conceitorabeeoconceitomuulmanoestevequasesemrestriesentreos medievais do Ocidente, a realidade do sculo XX se incomodou com essa situao.O prprio Anawati, iniciou a enquete sabendo que sua primeira opo no era definitiva: Empregamosaexpressofilosofiarabe,masobservamos imediatamenteoperigodoexclusivismoqueelapodeapresentar. Pensamos,emparticular,nosnossosamigosiranianos,preocupados, com justia, em salvaguardar os direitos de seu inestimvel patrimnio filosfico.7 ArespostadoministroiranianoAliAsgharHekmatconfirmouanegativaporparte dos iranianos, nos seguintes termos: Noqueconcerneadenominaofilosofiarabe,estetermome parece inexato e estimo ser prefervel () filosofia muulmana que , sem dvida, mais apropriada e menos contestada.8 M. Achena, tradutor de uma obra escrita em persa por Ibn Sn9, fez uma dupla crtica a esse impasse, dizendo: Mesmoquenosresignssemos,porrazesprticasououtras,auma talescolha,ottulodefilosofiarabeedefilosofiamuulmana seriamassazimprprios.Elestemoincovenientededizeroqueno devem dizer e de no dizer aquilo que devem dizer.10 Asprincipaisjustificativasemdefesadeumaoudeoutraposioforampublicadas porAnawati,ilustrandobemasdificuldadesimpostasnumadecisodeconsenso.Na mesmapocaHenryCorbinpreparouasuaHistriadaFilosofiaIslmica.A substituiodotermomuulmanopelotermoislmicoganhouterrenonosanos seguintes. O projeto de Corbin pretendeu focalizar os autores islmicos com nfase na espiritualidade persa. Mesmo que, em princpio, parecesse mais consistente, o trabalho deCorbindeixoudeforaautorescristosejudeusqueescreveramemrabeeque estavamemestreitaligaocomopensamentodosautoresmuulmanos.Emdefesa dadenominaofilosofiaislmicaCorbinentendeuqueousodotermofilosofia rabedesdeaIdadeMdiajnomaiscabianosdiasatuais.Mesmoreconhecendo queoprofetaMuammaderarabe,quealnguadarevelaofoiorabeeque,ao 7 ANAWATI, G. tudes de philosophie musulmane, p. 23.8 ANAWATI, G. tudes de philosophie musulmane, p. 23.9 AVICENNE, Le Livre de Science. Traduction du texte perse Danesh ama par Mohammad Achena e Henri Mass . Paris: Les Belles Letres, 1986./10 ANAWATI, G. tudes de philosophie musulmane, p. 24.Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 19menosnabasedoislamismo,oelementorabefoipreponderante,Corbinaludiuao fato de que o termo rabe, teria se alterado profundamente, significando um conceito tnico,nacionalepolticoprecisocomoqualnocoincidiriamtotalmenteoconceito religioso Islm nem mais os limites do seu universo.Nooutroextremo,numaposiopreferencialpelotermofilosofia rabedestacou-seoargumentodeT.Husseinquelembravaqueamaiorpartedos textos foi escrita em rabe. Alm disso, segundo ele, a ortodoxia religiosa dos falsifa foifortementecontestadaeseriaumparadoxoqualificardemuulmanaou islmicaumafilosofiaquesechocoufrontalmenteacertosdogmasdareligio.No mesmosentidotambmencontrou-seoargumentodeSchachtfavorvelaotermo filosofiarabeacompanhadopelotermocinciarabe,oqualeraaceitosem muitasrestries.Nessecasolevou-seemcontaquealnguarabefoiomeiode expresso essencial no desenvolvimento verificado tanto na filosofia como na cincia. O prprio Anawati lembrava que a lngua, no s do Alcoro, como do comrcio e da cultura,foiorabe,adotadapormuitospovosdominadospeloIslm.Noentanto, apesar dos esforos, a concluso de Anawati foi desalentadora: Osquetiveramaoportunidadedelerasrespostaspublicadapara nossaenquetepuderamsedarcontaque,teoricamente,oproblema colocado insolvel: no h conceito adequado que abrace ao mesmo tempo o ponto de vista lingustico e o ponto de vista religioso. () Ns mesmos,comM.Gardet,tentandoencontrarumaexpressosinttica, abertaatodososaspectosdoproblema,terminamosporchegar frmula: filosofia medieval em terras do Islm 11 Apesardeinovadora,apropostanofoiadotadacomamplitudepelacomunidade intelectual. Na dcada de 70, Badawi optou por lanar sua obra com a denominao de HistriadaFilosofianoIslm,aproximando-sedasugestodeAnawati,masnoa reproduzindototalmente.Nessettulo,Badawi,sublinhavabemadiferenaentreo sentidoquesedeveriaentenderporfilosofiaislmicacompreendidacomouma srie de manifestaes do pensamento, mesmo que no rigorosamente filosficos e o sentidodefilosofianoIslmentendidacomoafilosofianosentidomaisrestrito das bases da filosofia grega Nadcadade80,MajidFakhryassimcomoCorbin,masporrazes diferentesdenominousuaobradeHistriadaFilosofiaIslmica.Porm,oassunto 11 ANAWATI, G. tudes de philosophie musulmane, p. 85.Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 20no dava qualquer sinal de definio. No caso de Fakhry, as dificuldades se inverteram obrigando-o, no incio de sua obra, a fazer um alerta ao leitor:A filosofia islmica o produto de um processo intelectual complexo noqualsrios,rabes,persas,turcos,berbereseoutrostomaramuma parte ativa. Porm, o elemento rabe de tal modo preponderante que ela poderia, com todo o direito, ser nomeada filosofia rabe.12 Apoiadonofatodequealnguaqueosautoresescolheramparaseexpressarfoio rabeedequeaforadecoesoquepermitiuodesenvolvimentodafilosofiaeda cinciafoiorabe,Fahkryencerroudizendoquesemoclarointeressedosrabes pelo saber antigo, quase nenhum progresso intelectual teria sido feito ou mantido13. Certamente,mesmoqueaenquetedeAnawatitenhasidobem intencionadaparadefinirostermos,oseuresultadocontemplou,antesdetudo,a aporia.Emtodoodebate,observa-sequeoscritriosparanomearumdeterminado pensador,umdeterminadomovimentoouoconjuntodasmanifestaesdoperodo medievalorientalforamquatro:ocritrioreligioso,lingustico,geogrficooutnico. Todos, por sua natureza, se mostraram excludentes ou insuficientes.OprprioCorbinaonoaceitar,porexemplo,areduodosnascidos naPrsiacomoinclusosnotermorabe,tambmdeveterimaginadonoser possvelsereduzirtodososrabesaotermoislmico.Apenasparaquefiqueum exemplo, podemos citar o caso concreto de Ibn Sn que ilustra bem essa problemtica. NascidonaregiodaantigaPrsia,defmuulmana,amaiorpartedesuaobrafoi escrita em rabe. Com referncia a Ibn Sn, as trs denominaes podem, portanto, ser encontradas:filsofopersa,filsoforabeefilsofomuulmano.Certamentesempre seencontraralgumargumentoparajustific-la:filsofopersadenascimento, filsoforabepelalnguaefilsofomuulmanopelareligio.Aopoporouma ou outra denominao varia de acordo coma nfase que os diversos autores entendem seramaisadequadaemcadacasoparticular.Desdeque,fornecidasexplicaesque contrabalancemosoutroscritrios,issonopareceofenderoleitor.Dadaa complexidadedaquesto,anicacoisaquesedesviadobomsensoatentativade reduzir a denominao a um critrio que prevalea de modo absoluto sobre os outros. Outraopoquetemsidoveiculadaotermofilosofiaemrabe, privilegiandoalnguaemquefoiescritaamaiorpartedafalsafa.Porm,essaopo 12FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique, p. 15. 13 FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique, p. 15. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 21tambmnoconsegueabarcarasobrasescritasempersa,emsiracoeemhebraico que, em alguns, casos, foram fundamentais na histria da falsafa.A opo pelo termo a filosofia entre os rabes no pode pretender ser definitiva.Mas,fazendo-secomqueafalsafafigureentreosrabesindica-se,pois, com essa prestadia preposio,ser possvel manter a presena do elemento de coeso quehistoricamenteacompanhoupraticamentetodasasmanifestaesdoOriente medieval,semexcluir,aomesmotempo,nenhumoutroelementoqueaolongodo desenvolvimentohistricoefilosficoganhoumaisdestaque,quertenhasidoeleaprpria religio islmica, quer tenha sido a regio da antiga Prsia atual Ir , quer tenhasidoumaoutralnguaquenoorabe,ouaindaumoutrofator.Edadas,tais preeliminares,entendo-ascomoumaautorizaoparapodervariarasdenominaes sem prejuzo de nenhuma e nem do leitor. 1.6Histria do pensamento e histria da filosofia Entre os sculos VIII eXII d.C. / II e VI H a filosofia comeou a falar emrabe.NasterrasdominadaspeloIslm,afalsafafoiacontinuadoradafilosofia antiga.Poressarazo,emsentidoestrito,somentecomotermofalsafaque possvelsereferirocorrnciadafilosofiaentreosrabes.Houvemuitasoutras manifestaes do pensamento no mundo islmico nesse mesmo perodo mas, pelo fato deseusprincpiosnoestaremsobamesmagidedasdemonstraespropsitoda filosofia , torna-se incorreto designartodas elas pelo nome de filosofia.Na classificao das diversas manifestaes do pensamento ocorridos no Islm, a falsafa pode muito bem ser caracterizada como sendo o perodo dos filsofos helenizados.Essadenominao,alis,encontra-senaclassificaodeCorbin..No casodeFakhryedeHernandez,oadjetivohelenizadonousadoparadesignar essespensadoresmantendo-sesomenteotermofilsofo.Badawi,porsuavez, denominaosfalsifadefilsofospuros.Emtodososcasosparececertoqueos autoresjulgamqueoleitortenhaemmenteadiferenaentreafalsafaeasoutras manifestaesdopensamentonomundoislmico.Emlinhasgerais,adiferenaentre pensamentoefilosofianomundoislmiconoencontrapremissasdiferentesdasque aplicam-seaocasomaisgeral.Aprimeiradelasadequenosedeveconfundir pensamentocomfilosofia:emsentidoestrito,todafilosofiaumamanifestaodo Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 22pensamento mas nem todo pensamento filosofia. Vejamos alguns casos que ilustram essa questo. Noprimeirodeles,otermopensamentopodeserusadonumsentido mais abrangente, referindo-se a vrias manifestaes, como observado, por exemplo,no ttulo a Histria do Pensamento no Mundo Islmico de Miguel Cruz Hernandez; ou ainda na opo de Carra de Vaux com o ttulo Os Pensadores do Islm. A opo pelo termomaisgenricopensamentonocriamaioresdificuldadesparaagrupare classificarosautoressegundosuastendnciasecaractersticas:pensamento teolgico,pensamentoespiritualista,pensamentomsticooupensamento filosfico. Outromododeencararasdiversasmanifestaesdopensamentono mundo islmico entender que esse conjunto seria a prpriafilosofia islmica. Esse ttuloencontrado,porexemplo,nasobrasdeFakhryedeCorbin.Nessecasoos autoresentendemotermofilosofianumsentidoamplo,assimcomopodemosdizer filosofiahinduoufilosofiacrist.Essaopo,contudo,naturalmentecriauma dificuldade para distinguir o sentido estrito do termo filosofia segundo a tradio da filosofia grega.. por essa razo que Corbin optou em chamar os falsifa como Al-Kind, Al-Frb e Ibn Sn de filsofos helenizados para diferenci-los de outros pensadoresque,apesardenopoderemserclassificados,numsentidoestrito,como filsofos poderiam, ainda assim, obter essa classificao segundo o significado mais amplo de filosofia adotado por Corbin.Outraopoentenderotermofilosofianosentidomaisestritode acordo com a tradio grega. Nesse caso, filosofia possui um significado mais focal e no pode ser considerada ou dita de toda forma de manifestao do pensamento mas, aocontrrio,umcasoespecficoeparticular.dessamaneiraqueBadawientende filosofiaquandoescrevesuaHistriadaFilosofianoIslm.Nessaobranoso analisadastodasasmanifestaesdepensamentodentrodoislamismomasapenasas que seguem os princpios da filosofia em sentido estrito. Mesmo assim, Badawi divide suaobraemduaspartes:primeiraconcedeottulodefilsofostelogose segunda, o defilsofos puros . Estes ltimos so os falsifa, e nesse sentido que o termo filsofo melhor aplicado.Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 23Seporumalado,naclassificaomaisgeraldotermopensamento podemosenglobartodososquesemanifestaramdealgummodosobreasquestes maisvariadasarespeitodohomem,douniverso,dasociedade,dareligioedas cinciasnaturais;poroutrolado,naclassificaomaisrestrita,otermofilosofiacabe somente falsafa e aos falsifa na medida em que seus representantes procuraram trilharoscaminhosdopensamentosegundoatradiodafilosofiaherdadada antiguidade, notadamente pelas vias estabelecidas porPlato e por Aristteles.1.7Filosofia e teologia Sendoqueafalsafafoi,emsentidoestrito,amanifestaodo pensamentofilosficonoIslm,parecesensatoprocuraresboaralgunslimitesquea diferencia de outras linhas de pensamento, tambm surgidas aps o estabelecimento do Alcoro.Podeseespecularquedentreasinmerasposturasadotadaspeloshomens diantedeumtextosagrado,trsparecememergircomgrandefora:ateolgica,a msticaeafilosfica.NocasodoAlcoro,nofoidiferente.Severificarmoscom atenoasinmerasmanifestaesdopensamentonoIslmadotandoqualqueruma dasdivisespropostaspelosdiversosautoresdahistriadopensamentonomundo islmico,podemosagrup-lassegundoumaposturateolgica,msticaefilosfica. Porsinal,umadivisosemelhante(escolstica,teologiaemstica)foiadotadapor CarradeVauxemsuaobra14.Nessecaso,ateologiadeveserentendidanosentido modernodotermoquepautaseudesenvolvimentoapartirdafnarevelao;a mstica, no sentido da experincia interior com Deus, abandonando a razo para fundir-se no divino; e a filosofia comocincia independente que busca, a partir da razo,o entendimento dos fenmenos.NoIslmateologiadenominou-se,;s(kalm);amsticao, (fiya),isto,osufismo;eoentendimentopelademonstraolgica,a..\ (falsafa ). Entre as trs h muitas diferenas. Como neste trabalho se pretende um olhar mais detido sobre a falsafa, no cabe, aqui, uma anlise mais detida da teologia ou da msticapeloaprofundamentodosprincpiosdosufismooudokalm.Masalgumas indicaes sumrias marcam alguns pontos fronteirios entre essas posturas. Pelo fato 14 Cf. CARRA DE VAUX, Les penseurs de lIslam. Paris: Paul Geuthner, 1921, vol. IV A escolstica, a teologia e a mstica. A msica. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 24deestarmosdestacandoaspectosdessemelhantes,talvezsejarazovelobservarque tambm existem pontos de contato mas que no sero tratados aqui.Seabrirmosumdicionriodalnguaportuguesa,veremosque,hojeemdia,o termo teologia entendido como a cincia da religio, do estudo sobre Deus e das coisasdivinasluzdarevelao.15Assim,otermoteologia,emseusignificado puramentereligioso,associadoaosdogmasdafedareflexofeitaapartirdos dadosreveladosporDeusnasescriturassagradas.Osprimeirospensadoresdoincio docristianismo,porexemplo,usaramessetermonumsentidoamplo,significandoo estudo e a contemplao de Deus, sem fazer uma distino mais rigorosa entre filosofia e teologia. Foi somente aps Toms de Aquino que se deu uma distino mais precisa entreessesdoisconceitosque,paulatinamente,sedesenvolveramatchegarao modernosentidodivisocomooconhecemoshojeemdia.Nosc.XVIId.C.jse distinguiaateologianaturalouteodiciadateologiarevelada.Naprimeira,a busca do conhecimento de Deus seria feita pelas vias da razo, somente com os limites da ordem da natureza, valendo-se apenas da argumentao silogstica e sem recorrer autoridade das escrituras. A teologia revelada, de outro modo, faria uso do princpio da f na palavra revelada para conhecer a Deus. Toms de Aquino faz referncia a isso dizendoqueasagradadoutrinacinciaporquepartedosprincpiosconhecidos atravsdaluzdeumacinciasuperior,queacinciadeDeusedosbem aventurados.16Afamosadaderazoefqueseequilibrouduranteoperodo medievalpermitiumaiorproximidadeentrefilosofiaeteologia.Nocristianismo,a filosofia,salvanosmosteiros,vinculou-sesolidamenteaospadresdaigreja.Assim, talveztenhaparecidomaisnatural,nessecaso,quefilosofiaeteologiaestivessem amalgamadas.Amodernidaderealizouaseparaodessesdomniosefezcomque parecesse bvio a qualquer estudante de hoje que filosofia no teologia. No Islm no houveumparalelismoaesserespeito.Desdeoincio,oIslmviveuumquadroque distinguia a filosofia da teologia, isto a falsafa do kalm.O termo ,;s ( kalm ) significa discurso, linguagem ou palavra. e o partidrio do kalm foi denominado ,\s.. (mutakallim), isto , aquele que discursa ou aquele que fala. Geralmente so citados pelo plural: .\s.. ( mutakallimun ). Logo aps o estabelecimento do Alcoro, e mesmo antes das tradues das obras filosficas gregas, 15 Cf. Grande dicionrio Laroussse cultural da lngua portuguesa. So Paulo: Abril, 1999, p.865. 16 AQUINO, T. Suma de teologia. I.q.1,a 2 Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 25okalmjeraumarealidadenomundoislmico.Umadesuascaractersticasfoiter aplicadooraciocnioeaargumentaofilosficaaosdogmasdoislamismo.Nesse sentido, a abordagem do kalm se aproximou bastante do sentido que damos ao termo teologia tomando por base a experincia do cristianismo. Ao se falar em teologia no Islm,aosmutakallimunenoaosfalsifaqueseencontramasreferncias. Dessemodo,osrepresentantesdokalm,enquantosebasearamnarevelao,como ponto de partida para a reflexo filosfica, podem serconsiderados os mais prximos dos pensadores cristos dos primeiros sculos do cristianismo. Por isso, no razovel estabelecerumaidentidadeentreafalsafaeocarterdafilosofiamedievalcrist.A falsafa no tem precedente e no se confunde com nenhum outro movimento, seja no Orientee,menosainda,noOcidente.Suaposiohistricaassazpeculiarenica. Apesar de se desenvolver num ambiente religioso manteve-se continuadora da filosofia antiga. A teologia ficou a cargo dos mutakallimun. Mesmoassim,osmutakallimunbuscaramargumentarlgicamentea partirdosdadosdarevelao.Guardadasasdevidasparticularidades,assimcomo nossosmanuaisdehistriadafilosofiafiguramospadresdaigrejacrist,os mutakallimunpodemserincludosnahistriadafilosofianoIslam.Issoestbem colocadoporBadawiaodividirsuaobraemfilsofospurosefilsofostelogos. Osprimeirossoosfalsifapoisprescindemdosdadosdafparaargumentareos segundos so os mutakallimun que se utilizam dos argumentos lgicos para justificar o quesabidopelarevelao.DizBadawi:quemdizfilosofiadizpensamento essencialmenteracional.Assim,noslimitamosaoestudodossistemasracionalistas, tanto em teologia especulativa como em filosofia pura 17ou seja, tanto no kalm como nafalsafa.Umdosexemplosdessadistinoqueasviasdarazolevaram,muitas vezes,Al-Frb,IbnSneoprprioIbnRudaconstruremsistemasquese confrontaramcomosdogmasdareligio.Poressasrazesqueafalsafano teologia islmica e se mantm fiel tradio da filosofia herdada dos antigos. Valelembrar,porm,queosprpriosfalsifatambmusaramotermo teologia mas no no sentido da religio e sim no mesmo sentido filosfico usado por Aristteles sculos antes. Sabe-se que o prprio Aristteles em sua Metafsica no usou o termo metafsica para designar os estudos sobre a causa primeira mas a denominou de(teologia)teologiaou (protefilosofia)filosofia 17 BADAWI, A. Histoire de la Philosophie Islamique, p.5. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 26primeira. Essa cincia deveria se ocupar do estudo do ser enquanto ser e da substncia eterna e separada, isto , Deus pois a mais divina das cincias tambm a mais nobre; eesta,elas,deduasmaneirasamaisdivina.Comefeito,acinciaquemais conviria a Deus possuir uma cincia divina, e tambm o aquela que trata de coisas divinas.18 O termo metafsica teria sido, na verdade, o nome dado por Andrnico de Rodes no sculo I a.Cquando organizava os livros de Aristteles. Como esses livros haviamsidocolocadosapsosoitolivrosdaFsica,chamou-se-lhes (t met t phisic) que significa os que esto depois da fsica. Geralmenteconsidera-sequeonome,aprincpiodecarterclassificatrio,acabou servindo adequadamente ao estudo que se debruava sobre as coisas que transcendem omundodanatureza.TeriasidoapartirdessaclassificaodeRodesqueostermos teologia,filosofiaprimeiraemetafsicaforamtomadospraticamentecomo sinnimos, o que ocorreu tambm entre os falsifa.Nalnguarabe,podemosencontrartantootermoteologiacomoo termo metafsica, ora simplesmente transliterado, (como no caso de filosofia para falsafa ) ou como uma construo lingustica que corresponde idia original grega. Oprimeiroocaso,porexemplodatraduoparaorabedoapcrifochamado Teologia de Aristteles. Essa obra, que nos ocuparemos mais adiante, foi traduzida por ,:tt.i t,,:.i(AtljiyaArisls)TeologiadeAristteles.Nosegundo caso,encontramos,porexemplo,emIbnSnotermorabe_:i ,\(ilmilahiy) cinciadivinaemconformidadecomaformaodotermogrego (teologia)teologia,ouseja, (teos)deuse (logos)estudo.Domesmomodoeleadenomina_:i ..\(falsafat-alla)filosofia primeira. Esses dois termos teologia e cincia divina so usados, assim como paraAristteles,comosinnimodemetafsicaquenorabeguardaexatamenteo sentidooriginaldogrego (tmettphisic)oqueestdepois da fsica e se encontra do seguinte modo: ,,:i ., t. (m bad aabiyat) o que est depois da fsica. No segundo livro da Metafsica, Ibn Sn assim se refere a essa cincia:Elachamadafilosofiaprimeiraporqueacinciadasprimeirasdascoisasna existncia()igualmenteasabedoriaqueacinciamaisnobreconcernenteao 18 ARISTTELES, Metafsica. Porto Alegre: Ed. Globo, p. 40. 983a-5. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 27objetodeconhecimentomaisexcelente.Poiselaamelhorcincia,isto,acerteza, emvistadoobjetocognoscvelmaisnobrequeDeus,queElesejaexaltado,edas causas que vem depois dele. tambm o conhecimento supremo das causas do todo. tambmoconhecimentodeDeuseporissoqueeladefinidacomoacincia divina19 1.8Filosofia e mstica Assimcomoosfilsofos,tambmosmsticosjexistiamantesdo Islm.E,assimcomooIslmnascente,porumlado,absorveuosmtodoseos objetivos da filosofia, por outro lado, tambm absorveu as prticase o subjetivismo da mstica.Seguindoomesmoadgioderecepo,adaptaoedesenvolvimento,as inmeras manifestaes do pensamento no interior do Islm tiveram a contribuio de inmerasdoutrinasquehaviamsedesenvolvidoemoutrasculturaseemoutras religiesquelheeramanteriores.Nosufismo,algumascorrentesmsticasdo cristianismo, elementos do hindusmo e do budismo contriburam para a sua formao. ComobemassinalaChevalier,osufismosedesenvolveuemregiescristianizadase helenizadas,possuindotambmainclinaoparaoconhecimento,comocertos filsofos, msticos e ascetas desses lugares. No entanto, no de qualquer conhecimento, mas acima de tudo, do conhecimento de Deus.20 Os movimentos de ascese propostos pelo sufismo tem proximidade com adoutrinadoUnoplotinianoquejhaviasedesenvolvidosculosantesatravsdos gnsticos da Escola de Alexandria. Vale lembrar que o termo mstica j se encontra nasobrasdochamadopseudo-Dionsiodosc.Vd.Cnosentidodemostrara impossibilidadedaalmahumanaempoderconheceraDeusatravsdointelecto.Tal impossibilidademanifestar-se-ianadenominaodeDeusapartirdanegaode atributos(teologianegativa)como,porexemplo,Deusin-finito,in-efvel,etc. Paralelamenteaessaimpossibilidade,insistiu-senumarelaooriginria,ntimae pessoalentreohomemeDeus,emvirtudedaqualohomempoderetornaraDeuse unir-se finalmente a Ele num ato supremo. Esse seria o xtase supremo, que o pseudo-Dionsioconsiderouadeificaodohomem.Demodogeral,essepareceusero 19 AVICENNE La mtaphysique du Shifa, p. 95. 20 CHEVALIER, J. El sufismo. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1998, p.11. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 28esquemageraldemuitasdoutrinasmsticasque,emcertamedida,foiextradapelo pseudo-Dionsio dos textos neoplatnicos. Almdisso,osufismo,aopenetrarnaPrsia,pareceterabsorvido, tambm,influnciasdozoroastrismo.Poressasrazes,nodemaisdizerqueas origens do sufismo se perdem e, ao mesmo tempo, se encontram em tradies msticas anteriores ao Islam. De todo modo, no sc. VIII d.C / II H. a mstica islmica j havia absorvidoesseselementosapontodecriarasuaprpriafaceesotricaeosmsticos muulmanos, nesse perodo, j eram designados pelo termo sfi . A partir do sc. XI d.C./VIH.ospreceitosdosufismoforamseintitucionalizandoeosnveisde conhecimentoascticoforamorganizadossegundoumahierarquiadegrauseritosaos moldes dos crculos esotricos perdurando at os dias de hoje. por essa razo queRobertGravesafirmaque,atualmente,osufismoseriaatualmentecomouma antigamaonariaespiritual()[emque]ossufissentem-sevontadeemtodasas religies e, exatamente como os pedreiros livres e aceitos, abrem diante de si, em sua loja,qualquerlivrosagradosejaaBblia,sejaoAlcoro,sejaaToraceitopelo Estado temporal.21 Umadasinterpretaesparaosignificadodotermosufiadeque ele designaria o manto de l grossa, bem simples, usado pelos primeiros ascetas. Essa interpretaoseoriginanapalavrarabe(f)quesignificalenaformao de seu respectivo adjetivo de l, ou seja, _ (fiy ). Porm, no h acordo a esse respeito.Outrasinterpretaesbuscam,porexemplo,umaanalogiadotermo suficomotermogregosofosfazendo-oseaproximardesabedoriaouainda, comoumaderivaodapalavrarabe.t(af)quesignificapureza.Mesmo quenohajaumconsensoquantoorigemprecisadotermosufi,pareceser concrdia que essas qualidades so intrnsecas ao sufismo: o desapego, a sabedoria e a pureza.Seguiradiantenadefiniodoqueosufismopareceserumatarefapara desavisadosquedesconhecemaprpriadoutrinasufi.Emseuprefcio,IdriesShah alerta:Noporacasoqueadoutrinasecreta,cujaexistnciatemsido suspeitadaeprocuradahtantotempo,serevelatoesquivaao pesquisador.() No se chega ao sufismo, tradio secreta, tomando 21 SHAH, I. Os sufis. So Paulo: Crculo do Livro, 1987, p. 7. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 29por base suposies pertencentes a outro mundo, o mundo do intelecto. Se sentirmos que s podemos procurar a verdade do fato extrafsico por meio de certo modo de pensar, o meio racional e cientfico, no pode haver contato entre o sufi e o pesquisador supostamente objetivo.22 Apstalalerta,paranosecairemcontradio,devesecalareentenderqueo sufismoumaprticaquenecessita,apartirdeumcertoponto,dapresenadeum mestre e, por essa razo, no seria razovel avanar na linguagem para querer defin-la. No entanto, a recproca parece no valer, pois curioso que o prprio Shah possua uma obravastssimaparadivulgarosufismosevalendodarazo,daobjetividadeeda lgicadalinguagemparaisso.Mas,quenohajaengano,poisessaaparente contradiotambmpareceagradaralgunssufis.Detodomodo,estessopontosque indicamograndeafastamentonotratodalgicaedalinguagementreamsticado sufismo e a filosofia da falsafa. Mesmo quando encontramos algumas referncias sufis aalgunsdosfalsifamaisorientaiscomo,porexemplo,Al-FrbeIbnSn,estas, certamente,sereferemaalgumaspectodesuacondutaenopropriamentessuas obrasfilosficas,poisnestastodomovimentodaalmahumanafeitopelasviasdo intelecto e passveis de entendimento. Noadmitindosuadefinioforadaprpriavivnciadomstico,fica bemcertoqueosufismonopretendeserumaespeculaofilosficaouteolgicaa respeitodadivindadeaosmoldesdafalsafaoudokalm.Oseufoconoa demonstrao, mas, sim, a experincia. nesse sentido, isto , por se encontrar melhor como uma experincia interna com a divindade que se reflete no modo de viver e de se comportar do homem sufi, que Ibn Abdallah Tustari disse que:o sufi aquele que purodetudooqueoperturba,quecheiodemeditao,queseretiroudoshomens paraseconsagraraDeus,eparaquemoouroeaargilasoequivalentes.23 Juntamentecomessabelafrase,poderamospreenchermuitaspginasdeinfindos adornospoticosdomesmoquilatee,quasesempre,encontraramosabelezaea poesia nas palavras sufis. Afinal, essa uma de suas mais marcantes caractersticas. E talvez, at pelo fato de ser mais poesia do que demonstrao lgica, que o sufismo mstica e a falsafa filosofia. importante notar que o objetivo do sufismo, no sendo a especulao racional e a demonstrao pela lgica, maisum convite experincia do xtase na unio com Deus. 22 SHAH, I. Os sufis, p. 23. 23 KIELCE, A.O sufismo. So Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 15. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 30Inmeraspassagensdotextosagradodosmuulmanoslidaspelo sufismo, no sentido da experincia mstica colocam, por um lado,o sentido exotrico dotextoreveladonoAlcoro,expressopelaleiexteriorqueorganizaedeterminaos direitosedeveresdomuulmanoe,poroutrolado,osentidoesotricoquemostrao caminhoparaomsticoseunirrealidadedivina,cumprindoarealizaoltima,aniquilar-senela.24Embuscadoxtasemstico,dauniocomDeus,ohomem necessitasedesvencilhardosobstculosqueseusprprioslimiteshumanoslhe impem. Ali Shah traduz isto do seguinte modo: Nessaunio,tograndeainflunciadoEspritoEternoqueo julgamento humano aquilo que podemos descrever como a faculdade lgicadohomem,seuentendimentointeiramenteapagadoe destrudo por Ele. 25 Comparada com a passagem de Plato na Carta VII, o mtodo e objetivo da filosofia, adotada pela falsafa, a distncia fica mais evidente: S quando esfregarmos uns nos outros, nomes, definies, percepes devistaeimpressesdossentidos,quandosediscutiremdiscusses atentas,ondeainvejanoditenemasperguntasnemasrespostas, que,sobreoobjetoestudado,vemincidiraluzdasabedoriaeda intelignciacomtodaaintensidadequepodemsuportarasforas humanas.26

Nessa medida, pode se entender que os limites fronteirios entre a falsafa e o sufismo so praticamente os limites entre a filosofia e a mstica. Levadas ao extremo, as vias de acessoaoconhecimentopropostasporessasduasmanifestaesdopensamentotm maisdiferenasdoquesemelhanas.Noentanto,issonoimpedeque,em determinados autores, haja uma interpenetrao das duas posturas. Afinal, parecem ser, os homens, mais complexos do que os conceitos. 24 KIELCE, A.O sufismo, p. 9. 25 ALI SHAH, S.I.Princpios gerais do sufismo. So Paulo: Attar, 1987, p. 25. 26 PLATO, Cartas Lisboa: Estampa, 1989, p.77. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 312 UM TAQUINHO DE UMA HISTRIA DA FILOSOFIA

2.1...e, afinal, onde estamos? Contextualizarafalsafanointeriordahistriadafilosofiatemmenos umvisdidticodoqueumanecessidadenaturaldaprpriacontextualizaocomo exigncia do entendimento. muito grande o auxlio que nos prestam as coordenadas espacial,temporal,histricaeespeculativa:onde,quando,oqueeporqueacontece? Mais ricos ficamos quando seguimos o adgio de que no possvel abordar a filosofia desvinculadadahistriae,esta,desvinculadadohomeme,este,desvinculadodo universo. Mesmo que profetizasse, ningum pensou fora do seu tempo histrico, do seu espaogeogrficoedocenriodasidiasqueocercava.Poressasrazes,tambm, vale perguntar: afinal, de que mundo, de que poca e de que espao falou a falsafa ? E de onde falam, hoje,os historiadores da filosofia ? O antigo provrbio que diz: quem no sabe o que o mundo no sabe onde estapontapara umanecessidadeinerenteao serhumano:localizar-se.Mesmo quetallocalizaosejaprecria,equivocada,equesealtereaolongodotempo; mesmoqueseusparadigmassejamfluidos;aindaassim,ohomemparecequerer sempre,eantesdetudo,localizar-se.Duranteumaboaconversacomumantigo mestre, o tema da localizao se transformou numa pequena viagem e se mostrou no sumaexignciaanalticamas,tambm,umgrandeprazerexistencial,semoqual parecenohaverfilosofia.Naquelapoca,jquasecegodosolhosdorostoequase surdo dos ouvidos da cabea, me disse: Sabe, seo Miguel, antigamente bastava ao homem saber que estava sobreumpedaodeterra.Bastava-lhesaberqueosolselevantava...edepoisse deitava... queachuvacaa,queoriotransbordavaequeoalimentocrescianaterra... naquelepequeninopedaodeterra...isso,apenasisso,eraasualocalizao...elhe bastava...comoonosso,oseumundogirava,masofaziaapenasaoredordepoucos alqueires,depoucosdias,depoucasluas...issolhebastava...quandonasciamas crianas,assimnasciam...equandomorriamoshomens,assimmorriam...nomuito mais do que isso... no muito mais... Hoje,issonomaisnosbasta...nossanecessidadedelocalizao, ancestral, talvez se parea com a dos nossos antepassados, mas aquelas respostas j no Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 32nossatisfazem...precisamosdemaisedemaislocalizao...ondeestamos..?ou, melhor,atondepodemosresponder,mesmoquenosejaverdade,onossoonde estamos..?Hoje meus ps j no mais pisam a terra... debaixo deles est um tapete... e, em princpio,me bastaria e assim basta para tantos saber que se est em cima de um tapete. Se eu no fosse filsofo, a certeza de estar sobre ele tambm me bastaria... poisacertezametranqiliza...mascomoadvidaquememovimenta,eme atormenta, eu me pergunto: ora, mas o que sustenta o tapete que me sustenta ..?assim, avanominhalocalizaoalmdele...sobreumalaje...sobreumaviga...sobreuma fundao...tudoenfiadonumaterra...ah!aterra...quebom...aindahuma terra...parece que avanamos, porm nem tanto... Mas,insistoemampliarminhalocalizaoespacialesoucapazde saberqueabolaquehabitamosnoespaopossuiumdimetrodeaproximadamente 12.000Kmecircunfernciaequatorialporvoltade40.000Km:umadentreoutras nove esferas girando ao redor da nossa estrela-me, o Sol. daqui que falamos... para onde ser que vo minhas palavras..? bem, a Terra no o maior dos planetas do nosso sistema. Jpiter o maior e tem aproximadamente 10 vezes o dimetro da Terra. O do Sol chega a 1.391.704 Km. Foi-se o tempo em que nosso ego se inflava por pensarmos seroumbigodomundo...nocuhmuitasestrelaseasestrelasdocuso companheirasdonossosol,algumasmaiores,outrasmenores:todasgirandoaoredor docentrodanossagalxia,aViaLctea.AestrelaAntares,alfadaconstelaode Escorpio,aproximadamente300vezesmaiordoqueosol,30.000vezesmaiordo que a Terra... puxa! fico pensando...qual ser o tamanho do meu pensamento..? Medisseramquehmaisdecentoecinqentabilhesdeestrelasna nossagalxia...e,sabedeumacoisa?...sequernosfoidadooprivilgiodeestarno centrodanossa,estamosnaperiferia,numdosbraos,quasecaindo...daquique falamos,issobomlembrar...AVia-Lctea,comseuscentoecinqentabilhesde estrelasumadentredezenas,centenas,milhares,infindveisoutrasgalxias... algumasmaiores,outrasmenoresdoqueanossa...ouniversovasto...qualsero tamanho do meu esprito ..? Nosabemosquantasgalxiasexistem,apenassabemosquese afastam...seafastam...eseafastam...svezesmesintos...dependendodamassa contidanouniverso,dizemoscientistas,esteuniversotalvezseexpandaatesfriare morrerou,talvez,sevolteparaocentroesecontraiaeinicienovamenteuma Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 33expanso...nosabemosainda...daquiquefalamos,semprefoi...dissobom lembrar ...Algunsestudiososdefendemaidiadequeessaexpansoteveum inciocomdataehoramarcadas,emquetodaamatriadetodasasgalxiasestaria reunida num espao nfimo, menor que a cabea de um alfinete... Depois, uma grande exploso:booom!big-bang.Serqueaindasomoscapazesdeouviressebarulho?... ser que algum me ouve?...estou quase surdo... que bom... ainda ouo o momento da criao... e voc ..? MasanaturezadaNaturezacuriosa.Vejasisto:aluzdasestrelas para chegar at ns precisa percorrer um certo espao, Para isso, leva um determinado tempo. A luz do sol, por exemplo, leva aproximadamente oito minutos para chegar at ns. Portanto, se o sol sumisse do cu, s saberamos disso oito minutos depois... e, eu, quemalsabiaquetomavasolatrasado?...anaturezabrinca....umoutrocasomais longnquoodagalxiaAndrmeda,nossavizinhamaisprxima,queestauma distncia aproximada de 2.3 milhes de anos-luz. Lembro de minha admirao quando viaimagemdeAndrmedaesoubequeaquiloera,naverdade,suaimagemde2.3 milhesdeanosatrs,tempoemquehomensemacacostalvezconversassemsobre bananas... fiquei admirado... a natureza quase mgica... curioso... e eu querendo ir ao limitedaminhalocalizaonoespao,encontrei-me,surpreendentementecomo relgio do tempo ! Quanto mais nos distanciamos no espao mais para trs ns vamos no tempoe,nolimite,humadistnciademaisde12bilhesdeanos-luz,nos defrontamoscomosrudosdacriaodessenossouniverso...quasares...osmais distantesquenossosolhoseouvidoscientficospodemenxergar...talvez remanescentesdobig-bang.Especula-sequeesteuniversosejaapenasumdentre outros.Aquelugarnoslevamosburacosnegros..?talvezaoutrosuniversos...mas seoMiguelissosumaestriaqueestoucontando...podenoserassim...mas assim que nos localizamos... daqui que falamos, disso bom lembrar... Agora, imagine que pudssemos recolher tudoque eu acabei de dizer: galxias,andrmedas,quasares,sis,nuvensdegs,planetas,terras,vigas,lajes, tapetes,ns,tudo,tudo.Coloquemosissotudonumespaominsculo,menorquea pintadascostasdeumajoaninha.Apartirda,hmaisde12bilhesdeanosatrs, estariaacionadoorelgiodotempo:tic-tac...tic-tac...Amatria,entocompactada, Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 34teriainiciadosuaexpanso.Compostaquaseexclusivamentedehidrognio,essa matriaprimordialteriaformadonuvensdegsque,porsuavezteriamgeradoas estrelas. A matria excedente das estrelas teria formado os planetas e seus satlites. Foi nessa dana universal que o nosso sistema solar teria se formado, h aproximadamente 4.6bilhesdeanoseanossaTerra,teriaganhosuacrostaterrestreporvoltade3 bilhes de anos passados. Depois,asguasseprecipitaramsobreasuperfciee,porvoltade1 bilhodeanosatrs,surgiramasalgasazuis,umadasprimeirasformasdevida. Aceitando-seosprincpiosdaevoluoedaseleonatural,apartirdelaster-se-iam originadotodasasoutrasformasdevidaquehabitaramaTerra.Inclusivens... estamosindomuitorpido,nomesmo?...ora,masqualseravelocidaderealde todasessasmudanas...serquehumavelocidadereal?...ora,ora,perguntasno faltam...masvoltemosaoitinerriomarcadopeloscientistas:plantas,primeiros peixes e os anfbios... a natureza expandiu a vida ..! No perca a conta: h aproximadamente 350 milhes de anos surgiram osprimeirosrpteisque,depoisdeteremhabitadopormilhesdeanosaTerra, acabaramdesaparecendo...Porvoltade70milhesdeanos,expandiram-seos mamferose,depois,surgiramosprimeirosprimatas.Puxa...passaram-semaisde11 bilhesdeanosparaquesurgissealgumparente...daquiquefalamos,dissobom lembrar... um dos nossos ancestrais mais longnquo o Ramapithecus, h treze milhes deanos.Muitasdesuasramificaesnoconseguiramvencernalutapela sobrevivncia. O nosso parente mais prximo homo sapiens um jovenzinho de 500 mil anos. Engraado... nossa localizao temporal formada de um imenso tempo semns...nosaberiairalmdisso...ocalendriocsmicodeSaganmostroubem nossaposio...dessetempoquefalamos...somosrecmchegados...quandotempo ser que dura o meu pensamento ..? Mas, por que o homem pensou ?.... pouco se sabe... o que se especula que o homem, assim como os outros animais, deveria estar at o pescoo na luta pela sobrevivnciareunidoembandosparacaaepesca.Masnumdadomomento,as circunstnciaseacompleiodesseanimal-homemteriamsecombinadodetalmodo que ele se diferenciou dos demais. Como ? Talvez nunca saibamos...acho mesmo que no saberemos... podemos, por enquanto, s imaginar... talvez sempre imaginar... o que certo que esse homem pensou e, pensando,saiu da imediatidade da natureza. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 35Nonovomomentodesuaexistncia,temendoostroves,osraiosea morte,essemesmohomemlevousacrifciossforasdanatureza,desconhecidas... ajoelhou, rezou... e, nesse momento, esse homem se tornou um ser religioso... mas foi numoutroinstante,squandoessemesmohomem,depoisdepensar,depoisde mitologizaranatureza,depoisdesecurvardiantedosdeusesqueelemesmocriara, perguntou-se: ...mas por que?... por que os deuses?.. por que a natureza?... por que o mundo?..oque,afinal,issotudo?Oque,afinal,essecuquecircundaeessa gua?.. o que so as estrelas, a terra, essa gente toda ?... o que sou eu, afinal? ... Nesse instanteohomemfilosofou...efilosofouporquepensousobreaquiloquejhavia pensado. Pensou em segundo grau se que isso possvel. E talvez tenha sido esta, a pergunta,amaiordasrevoluesnahistriadohomem...apergunta...sistemtica... incansvel e duradoura pergunta... A prova disso que hoje, depois de milhares e milhares de anos, ainda existemhomensque,orasozinhos,oraemgrupo,aindaseperguntam:mas,afinal,o quesoestasestrelas?..oquesoasgalxias?..oquesoosplanetas?..oquea terra?..oqueopensamento?..afinal,oquesoueu?..oquesomosns?..eoque fazemos aqui, em cima desse tapete?... 2.2Divises na Histria. Filosofiaehistriaandamjuntas.Ibnaldn,nosculoXIVd.C./VIII H., aps considerar quea histria em seu aspecto exterior poderia parecer meramente umasriederegistrosquemarcaramocursodepocasecivilizaesdaantiguidade, adiantou que, pelo fato de a histria possuir caracteres intrnsecos como, por exemplo, o examee a verificao dos fatos e a investigao atenta das causas e da natureza dos acontecimentos histricos, ela a histria , forma um ramo importante da filosofia e merecesercontadanonmerodesuascincias.27Eporsermaiscompletofalarde uma com o auxlio da outra, importa indicar, por mais suscinto que seja, a sobreposio daHistriadaFilosofianaprpriaHistriacomointuitodecontextualizarafalsafaemambas.Aindaquehajanissooinconvenientedarepetiodetemasconhecidos paraoestudantemaisacostumadoaocenriohistrico,queprevaleaacondiodo iniciante. Comecemos pela Histria. 27 JALDUN, IBN.Introduccin a lahistoria universal. Mxico: Fondo de Cultura Economica, 1997, p.92. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 36Enquanto este livro est sendo escrito, o Brasil comemora 500 anosde descobrimento. Nunca a nossa histria fora to contada, de muitos modos. Aquela velha histria que se aprendia no ginsio parece, hoje, quase um engodo e nos faz sentirmos vitimados pelo olharpositivistaeeurocntrico,notadamentedosculoXIX.Essemesmoolharque, at h pouco,foi seguido como paradigma por grande parte dos historiadores. Mesmo assim, as mudanas no contar a histria, tambm, j eram uma idia existente no sculo passado. Vejamos um comentrio a respeito do verbete histriaem um dicionrio do ano de 1873 28.A histria muda de aspecto a cada gerao. O sculo XIX no teve da histriaaidiaquedelateveosculoXVIIIe,este,noteveaidia quedelativeramossculosprecedentes.Cadapocaaestudasobo ponto de vista que lhe preocupa. O objeto material da histria, isto , o conhecimentodosfatos,mudatambmsegundoostempos,porcausa da incerteza inerente aos dados do testemunho humano. Dos relatos de viagens de Herdoto(484/420 a.C.) at os dias de hoje, muitas foram as abordagensarespeito da histria.Decclica e circular, decadente ou apologstica, as vises sobre a histria, por se modificarem,modificamsua prpriacompreenso. Na experincia decontar suaprpria histria, ohomem tem revisto o modo como a contoueaconta.Grandepartedasalteraesdeenfoquedeve-se,muitasvezes, menosnovasdescobertasdoqueaumamudananoolharsobreosmesmosfatos. NohorizontedasmudanasdoenfoquedohistoriadordosculoXXI,asmudanas enfatizam, entre outras coisas, a incluso de elementos esquecidos ou negligenciados. Surgemnovasabordagenssobretemasquepareciampetrificados.Essanovadireo pode ser sentida numa passagem contempornea de Dominique Vallaud : HnomaisdemeiosculoqueaHistriasaiudoquadroestreito no qual a escola positivista a havia trancado, e se abriu aos fenmenos sociaiseaosfatosdecivilizao.Almdisso,osprogressos fulminantesdacomunicao,conjugadosdescolonizao,afizeram sairdeseueurocentrismo.AHistrianomaissomenteadobaixo mediterrneoedaEuropaocidental,masigualmenteadafrica,da Amrica pr-colombiana, do Extremo Oriente. Ela tem a vocao para abraaroconjuntodopassadodahumanidadee,alis,osprogramas 28 LARROUSSE, M. Grand dicctionaire universal universel du XIX sicle. Paris, 1873, p. 301. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 37dasescolastemprogressivamentedadoojustolugaraessanova viso.29 No causasurpresa,pois,que apartirdesseesprito renovadordacinciadaHistria, enquanto, hoje, aps 500 anos, se procura uma nova histria na Histria do Brasil, ao mesmo tempo, no mbito da Histria Universal, tambm se procure uma outra histria no interior da idade mais hostilizada da Histria: a Idade Mdia. Nodemaislembrarquefoiapartirdapropostaentabuladaporum pedagogo alemo do sc. XVII d.C. Cristoph Keller em latim Cellarius (1638/ 1707 d.C.)queseconsagrouadivisodaHistriaemantiga,medievalemoderna.Essa diviso,compequenasmodificaeseoacrscimodadataodarevoluofrancesa, permaneceu como sendo a mais usada. A Idade Antiga iniciando-se com o surgimento da escrita h, pelo menos 4.000 a.C., e terminando com a tomada de Roma em 476 d.C. pelochefegermnicoOdoacro;aIdadeMdiacompreendidaentreoperodode476 d.C.ataquedadeConstantinoplaem1453d.C.,pelasmosdosturcos;eaIdade Moderna, de 1453 d.C.at a Revoluo Francesa em 1789 d.C, a partir de quando se inicia, ento, a Idade Contempornea. notrioqueoestabelecimentodessadivisoprivilegioudoispontos, umemcadaextremidade,consideradospeloshomensdossculosdasluzescomoos mais significativos: aantiguidade e amodernidade. Aose denominar osmil anosque separavam esses dois extremos de idade mdia, a impresso que se tem , que por si s, essa idade, sendo mdia, no sedefiniria de modo positivo mas apenasfigurava como coadjuvantedas outrasduas.Em outraspalavras, elaexistiria,ou emfunode uma antiguidade que esperava ansiosa paraser revivida pelo renascimento daEuropa, ou ento em funo de uma modernidade que dela Idade Mdia , fez seu alvo crtico preferido.Detodomodo,noserianecessrioespecularmuitoparaconcluirqueessa impressopreconceituosa.ParecequeoprprioCellarius,vozdesuapoca,se encarregoudisso:aofixaressadivisofixoutambmaidiadequeesteperodo intermedirio entre a antiguidade e a poca moderna nada produziu de importante. Foi um perodo no s estril, mas de retrocesso: a idade das trevas.30 No valeria a pena, aqui,desfilarasinmerasdesqualificaesquepartiramdamodernidadeemdireo aos medievais. De todo modo, preciso ressaltar que os efeitos dessas crticas ecoaram pormuitotempo:afirmaeshistoricamentefalsas,massuficientesparaimporum 29 VALLAUD, D. Dictionnaire historique. Paris: ed. Librarie Arthme Fayard, 1995, p.7. 30 NASCIMENTO, C.A. filosofia medieval, So Paulo: ed. Brasiliense, 1992, p.9. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 38cenriodecatstrofedoqualaserasposterioresseabasteceroatoinciodosculo XX. 31 Umcomentrio do Prof. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento sintetiza bem a estupefao natural a qualquer mente de bom senso a respeito das dificuldades que tal divisoarbitrriaeadesconsideraodoperodomedievalcomoummomento igualmente rico da histria proporcionou: Tantoaperiodizaodahistriaocidentalemantiga,medievale moderna como a interpretao negativa do perodo medieval foram e so objeto de profundas crticas. No h nenhuma razo evidente para privilegiar como marcos de incio e fim as datas de 476 e 1453. No tambmnadaclaroqueosmilanoscompreendidosentreestasdatas constituam um nico perodo. Alm disso, nada mais estranho do que supor que a humanidade tenha sido vtima durante to longo tempo de umairreparvelestupideze,repentinamente,setenhacuradoda doena com o renascimento do sc. XV d.C. (!)32 Pensarahistriaapartirdessadiviso,isolandoaIdadeMdiadasluzesda humanidadecertamenteencontramuitasdificuldadesquandosepensa,sobretudo,na cinciaenafilosofiadesenvolvidasnomundorabemedieval.Essehiatocriou inmerosobstculosparaoestabelecimentodeumacadnciacontnuados acontecimentosedastransmisseserecepesentreacinciaantiga,medievale moderna.Aoseentenderahistriacomoalgoquesecaracteriza,entreoutrascoisas, porsuaininterruptacontinuidade,torna-sedifcilreestabeleceressamesma continuidadedepoisquesepassatantosanosaprendendoahistriapordivisesde pocas,eras,idadeseperodos.Secertoqueumcontinentenoconheceostraos que o divide em vrios pases, assim tambm a histria, em suacontnuacaminhada, nopoderiaconhecerasdivisesqueaelaatribumos.Afalsaimpressodeuma interrupomedievalcomprometeosfiosquetecemahistria.Nosempropsito que,paracompreendermelhoratrajetriahumana,seriamelhorentoarmosemcoro comDeLiberaque,numatentativaextremademudaranossalenteaesserespeito, diz: a primeira coisa que um estudante deve aprender ao abordar a Idade Mdia que a Idade Mdia no existe.(!) 33

SegundoDeLibera,ofatodeaIdadeMdiaestarcircunscritaentreo nascimentoemortedaromanidadedeveriaserfatorsuficienteparaqueaomenos 31 DE LIBERA, A.A filosofia medieval. So Paulo: Ed. Loyola: 1998, p. 12. 32 NASCIMENTO, C.A. filosofia medieval, p.9. 33 DE LIBERA,A. A filosofia medieval, p.7. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 39Constantinopla a Roma do oriente figurasse como um dos pilares sobre os quais se apoiaria uma viso no de trevas, mas de luzes no perodo medieval. Isso sem falar na contribuiodosrabes,apartirdosc.VIIId.C.Porm,issonoacontecedemodo razovel e as razes dessa discrepncia, para ele, se devem ao fato de que no fundo, a viso de Idade Mdia confunde-se com o que chamado ocidente cristo, ela est nele centrada, e o que no simultaneamente ocidentalecristopostomargem,considerando-seapndice exticosemlegitimidadeprpria.Assimrejeitam-se:oquecristo mas no ocidental, quer dizer, os cristo do oriente; o que ocidental masnocristo,ouseja,osrabeseosjudeus.()Dessaforma,a Idade Mdia confiscada em proveito de um s grupo: os ocidentais cristos ou cristos ocidentais. 34 AscrticascontraospreconceitosatudooqueserefereIdadeMdiatmse acumulado na recuperao de uma viso mais justa a respeito desse perodo. Contudo necessrio, ainda, muito trabalho para desvincular a srie de conceitos negativos que se associaramaosmedievais.Namedidaemqueafalsafafoiumadasmanifestaes filosficasdesseperodo,naturalmente,alinha-secomessarecuperao,reforandoa visodaininterruptibilidadedatradiofilosficadesdeoseuestabelecimentoata atualidade.Assim,fazmaissentidoamxima:aquiloqueahistriauniu,queo homem no separe 2.3 Os perodos da filosofia Se a diviso da Histria em antiga, medieval, moderna e contempornea trouxe inmeros inconvenientes, a justaposio da histria da filosofia sobre tal diviso histricasefezigualmenteproblemtica.AIdadeAntiga,berodafilosofiagrega, salientou a questo inicial da classificao da manifestao de sistemas de pensamento desenvolvidosemcivilizaesanterioresaGrcia,antesdonascimentodafilosofia. No obstante a filosofia ocidental ter como marco inicial o pensamento grego, este no se formou de modo isolado mas esteve em contato com outros povos e culturas que lhe forneceram inmeros elementos tais como o alfabeto e a moeda por parte dos fencios. A prpria filosofia grega, nascida nas colnias estabelecidas nas costas da sia menor, 34 DE LIBERA, A. A filosofia medieval, p.12. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 40justificaram, em parte, o fato de alguns manuais de histria da filosofia reservarem um espaoinicialtambmsfilosofiasorientaisentendidasemsentidoamplotais como o sistema de pensamento originrio dos Vedas, na India, e suas vertentes como o budismo e o jainismo; assim como o taosmo e o confucionismo na China ou, ainda, o dualismo de Zaratustra e as tradies persas. Afinal, India, China,Egito e os povos da MesopotmiajeramcivilizaesmilenaresaotempodaGrciaetiveram manifestaesanterioresaosurgimentodafilosofiagrega.Mesmonosendo tributriasdarazodomundogrego,apresentaramelementosenriquecedoresparase compreender as transformaes do pensamento e a formao da filosofia na Grcia.comumaperiodizaotradicionaldafilosofiaantigaseiniciarcom TalesdeMileto(aprox.624/546a.C.)eterminarcomPlotino(aprox.204/270d.C.), enquanto a histria antiga se inicia milnios antes do nascimento de Tales e se estende at476d.C.comaquedadeRoma,oquemostraqueaHistriaeaHistriada Filosofianoandam,enempoderiam,andarparepassomas,aocontrrio,ofazem num certo descompasso. Nesse intervalo acomoda-se, com alguns anos de diferena o perododafilosofiacristnascenteapatrsticachegandoatamortedeSanto Agostinho (430 d.C.) que, praticamente, coincide com o fim da Idade Antiga. Tomando-se Talescomopontodepartida,segue-seoperododospr-socrticos(aprox.624/470a.C.)marcadoporumareflexoinicialarespeitodos pincpiosdanaturezaEmseguida,operodoclssico(aprox.470/324a.C.)como trio Scrates, Plato e Aristteles numa relao direta de mestre e discpulo em Atenas. Foi, portanto, nesse perodo clssico da filosofia antiga quea filosofia encontrou no apenas uma slida sistematizao mas tambm suas principais direes, estendendo-se, inclusive, atravs de todo o perodo medieval entre os rabes. A esseperodo clssico, o intercmbio que se estabeleceu entre o Oriente e o Ocidente, a partir das conquistas de Alexandre, denominou-se de filosofia helenstica. Esta teve na escola epicurista e na esticasuasprincipaismanifestaes.Oneoplatonismo,praticamente,encerrouo perododafilosofiaantiga.ComPlotino,omaioremaisvigorosorepresentantedos pensadoresplatnicosdesseperodo,afilosofiaantigateveumnovoapogeue praticamente seu trmino.Na classificao da Histria da Filosofia, o encontro do paganismo com ocristianismoqueseiniciaraaindanaantiguidadetardiaequesedesenvolveu durante o sculo II d.C. preenche o hiato entre o final da filosofia antiga e o incio da IdadeMdiacomapresenadosprimeirospensadoresconvertidosaocristianismo. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 41Esse perodo, denominado patrstica com duas vertentes: uma de lngua grega e outra delngualatinaencerrou-secomasntesedeSantoAgostinho(354/430d.C.).Bocio(aprox.480/524)chamadooltimoromanoeoprimeiroescolstico35,foi umtransmissorimportantedafilosofiaantigaparaoperodomedievaldoOcidente latino e um dos smbolos da ligao entre os dois perodos. ApartirdosculoVd.C.,ospensadores,jambientadosnadiviso histrica da Idade Mdia encontraram a tradio filosfica dividida em dois mundos: o mundodoOcidentedelngualatinaeomundodoOrientedelnguagrega.Dolado ocidental, a filosofia medieval foi, praticamente, uma filosofia crist tanto do ponto de vistadesuasintenescomopelosseusprpriosrepresentantes.Apartirdosc.VII d.C./IH.,aescolsticadominoutodooespaofilosficodoOcidenteatosc. XIVd.C./VIII H. Nesse nterim, do lado oriental, a patrstica grega preparou o caminho paraarecepodafilosofiaantigaparaomundorabe.Apartirdosc.VIIId.C./II H.,ovolumedetraduesparaorabeseconfigurounumdesenvolvimentodos caminhosdafilosofiatotalmentediversodoocidentelatino.Arecepodafilosofia antigaporAl-Kind,asconsistentestesesdeAl-Frb,aenvergaduraea sistematizaodaobradeIbnSneascrticasdeIbnRudforamrealizadasnum perodo em que o Ocidente latino, meia luz, sequer sabia o que no sabia. Apartirdosc.XIId.C./VH.iniciou-seumperodofecundode traduesdeobrasfilosficasecientficasdorabeparaolatim.Inicialmente,o Ocidentelatinofoirevigoradopelastraduesdeobrasemrabee,quase simultaneamente, pelas obras gregas.Ao mesmo tempo em que a falsafa j no tinha maistantaforanomundomuulmano,a.escolsticacristconheciaseuapogeu. TomsdeAquinotendorealizadoumanovasntesedocristianismosobreasbases aristotlicasfoioexemplomaisacabadodesseperodo,equilibrandoobinmiofe razo.Aofinaldaescolstica,GuilhermedeOckham(1280/1348d.C.)apontou inmeras questes que anunciaram o final desse perodo. Sobre muitas de suas teses, os modernos se ampararam para separar os dois caminhos em questo: razo e f. Nesseponto,pois,jpossvellocalizarecontextualizarafalsafano interior da Histria da Filosofia: situa-se entre os sculos VIII d.C/II H. e XIII d.C./VI H.Maisprecisamente,apartirdarecepo,porAl-Kind,dasobrastraduzidasparaa lngua rabe at a morte de Ibn Rud. Vale notar que a influncia da falsafa no se deu 35 KUNZMANN,P. Atlas de la philosophie. Paris: La Pochothque, 1993, p.63. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 42domesmomodonasduasfrentesqueabsorveramsuasteses,isto,oOrienteeo Ocidente, mas isso ser detalhado mais adiante. ContinuandocomnossovopanormicosobreaHistriadaFilosofia, podesedizerqueapartirdosculoXIId.C./VIH.,ocontatocrescenteentreo Ocidentelatinoeomundoislmicofoioresponsvelpelaintroduodacinciaeda filosofianaEuropa.Nessapoca,umgrandevolumedetratadosenovos conhecimentos encontrou solo frtil nos pensadores ocidentais e alicerou as condies para o renascimento europeu. O que no se imaginava, talvez, que muitos pensadores dorenascimento,aoredescobriraantiguidade,paradoxalmente,preparassemtanta ingratidoparacomosmedievais,esquecendo-seque,durantesculos,esteshaviam sidoosresponsveisporguardaredesenvolverafilosofiaeascinciasdosantigos. Nessa poca, a filosofia medieval, mesmo no tendo o seu fim lembrado de modo to marcante e aparente quanto o final da prpria Idade Mdia em 1453 d.C. com a tomada de Constantinopla pelos turcos, tambm j se findava.Comoincrementodascinciasemdireoaodomniodanatureza,os nomes de Francis Bacon (1521/ 1626 d.C.)e Rene Descartes (1596/ 1650 d.C.) foram grafadoscomoalgunsdossmbolosmaisilustresqueimpulsionaramoseuropeusna direodoquesechamoudefilosofiamoderna.Nonovocenriodafilosofia,trs principais tradies se destacaram: a francesa, a inglesa e a alem associando-se a elas, comumente, o o racionalismo, o empirismo e o idealismo, respectivamente. Em alguns casos, muitos dos partidrios dessas escolas foram tributrios, ainda que indiretamente, detesesdesenvolvidaspelosmedievais,inclusivepelosfalasifa.Osistemadegrande envergadurapropostoporHegel(1770/1831d.C.)pdeserconsideradocomoo apogeu e o fim da modernidade, coincidindo, praticamente, com a data histrica do fim daIdadeModerna,isto,comaRevoluoFrancesaem1789d.C.Temporale espacialmente,oscrticosmaisprximosdeHegeltaiscomoSchopenhauer(1788/ 1860d.C.)eNietzsche(1844/1900d.C.)anunciaramalgunscaminhosdafilosofia que,naviradadosculoXXd.C.seexpandiunumamiradeinfindveldeescolas, tendnciasecaminhos.Aqui,afilosofiajnotinhamaisumsrosto.Masteve, algum dia? O que ser que pensaria Ibn Sn a esse respeito ? 2.4alguns ditos sobre a filosofia dos medievais Ascrticasnegativasarespeitodafilosofiamedievaldemodo indiscriminadoacompanharam,emlinhasgerais,oquesedissededesqualificanteda Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 43prpriaIdadeMdia.Afalsafa,sendomedieval,noesteve,pois,isentadetais preconceitos.NosculoXVIIId.C.,aspalavrasdomarqusSaint-Aubinemseu Tratadodaopiniopodemdoumaidiadavisonegativaqueafilosofiamedieval despertouentreosmodernos,tantodemodogenrico,comodemodoparticularem vistas da interseco da falsafa com o pensamento do Ocidente latino. Assim o lemos: ApsatomadadeConstantinopla,osfrancesestrouxeramoslivros deAristtelescomentadospelosrabes.Introduziu-se,ento,uma filosofiatiradadeAvicenaedeoutroscomentadoresafricanos;eo maugostoarabescoestragouasescolas,comoaarquiteturaeas demais artes haviam sido corrompidas pelo gosto gtico.36 Gradualmente,interpretaescomoessaforamsendosobrepostaspelobomsenso. Assim como os tempos mudaram para a Histria, tambm mudaram para a Histria da Filosofia.NamesmadireoeintenoderecuperaraspectospositivosdaIdade Mdia,oestudoarespeitodafilosofiamedievaltambmprocuroulanarumolhar maisgenerososobreaproduofilosficadesseperodo.Essanovaabordagemda filosofiamedievalinevitavelmentelevouafalsafaaserincludademodomais consistente no trajeto da Histria da Filosofia, tambm ocidental; pois se, em boa parte, ahistriadafilosofiamedievalfoiahistriadafilosofiaescritaepensadaemrabe, issosignificaquetodoreclamoemvistasdarecuperaodovalorfilosficodaIdade Mdiaparaquenomanquedeveincluir,necessariamenteedemodopositivo,a falsafa.Novaleriaapena,aqui,analisaroespaodedicadofalsafanos inmeros manuais da histria da filosofia do Ocidente escritos no sculo XX d.C. pelos europeuspois,bastaaoleitorverificarqueamaioriadelesgeralmentelacunarao tratardafalsafa.Apenasparacitarumexemplodepeso,umdosmanuaismais completos a respeito da filosofia medieval foi escrito por tienne Gilson, um dentre os trs nomes de maior destaque no medievalismo francs que surgiu no sculo XX d.C. O ttulo dessa obra exemplar, que tem aproximadamente 1.000 pginas, A Filosofia naIdadeMdia37.Ressalte-sequeesselivrotornou-serefernciapraticamente obrigatriaaosmedievalistas.Oenfoquedoautorjbastanteclaroemsua introduo,percorrendoostemaseasquestesprincipaisconcernentesfilosofia ocidental do ponto de vista do cristianismo. Mesmo assim, Gilson dedica dois captulos 36 DE LIBERA, A.A filosofia medieval, p.13. Falsafa, a Filosofia entre os rabes Miguel Attie Filho 44referentes filosofia em rabe: o captulo VI, denominado de As Filosofia Orientais e o captulo VII, intitulado A influncia greco-rabe no sculo XIII e a fundao das universidades. Esses dois captulos ocupamaproximadamente dez por cento da obra. ApesardavalorosacontribuiodeGilsonaosestudosmedievais,ageraoqueo sucedeu na Frana, buscou novos caminhos e propostas. Dos nomes atuais, destacou-se o de Alain de Libera.Em sua A Filosofia Medieval, De Libera,apresenta sua viso a respeito dafilosofianesseperodoemdezcaptulosqueocupamaproximadamente500 pginas.Osquatroprimeiroscaptulossodedicadosaoutrasfontesquenoasdo Ocidentelatinoetmosseguintesttulos:AfilosofiaemBizncio;OIslm oriental;OIslmocidentaleAfilosofiajudaica.Essesquatrocaptulosocupam quase a metadedo referidolivro. Ofato no meramente decarter quantitativomas indica o interesse crescente a respeito da falsafa. Uma das teses centrais de De Libera diz respeito a uma viso descentradada filosofia medieval crist procurando incluir de modopositivooutrasfilosofiasquesedesenvolveramduranteomesmoperodo.Isso permitiuqueoestudodafalsafaseemancipassedavisomeramenteutilitriadeter sidoatransmissoradafilosofiadeAristtelesaoOcidente;opinioprovinda,muitas vezes, dos prprios medievalistas; opinio essa to funesta quanto a dos modernos em relao Idade Mdia como um todo. Um breve recolhimento de algumas palavras de De Libera nos fornece essa distino: A histria da filosofia medieval escrita, em geral, do ponto de vista do cristianismo ocidental () [mas] filosoficamente o mundo medieval no tem centro. No s porque o mundo medieval ocidental tem uma pluralidadedecentrosmas,sobretudo,porquehmuitosmundos medievais.38 Em outra obra Pensar na Idade Mdia , De Libera intitula um dos oito captulos do livrodeAheranaesquecida39,noqualapresentaaimportnciadafalsafana dimensodosestudosdafilosofiamedieval.Aodiscutir,porexemplo,otemado nascimento do conceito de intelectual na Europa, vincula algumas posturas dos falsifa aoqueseriaoespritodosintelectuais,aludindoaofatodequeesseespritoeo nascimentodoprprioconceitoseriamamarcam