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AZEVEDO

FERNANDO DE

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Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco Coordenao executiva Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari Comisso tcnica Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente) Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle, Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas, Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero Reviso de contedo Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto, Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia Secretaria executiva Ana Elizabete Negreiros Barroso Conceio Silva

Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio Teixeira Aparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy Ribeiro Durmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan Fernandes Frota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires Azanha Julio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo Freire Roquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas

Alfred Binet | Andrs Bello Anton Makarenko | Antonio Gramsci Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin Freinet Domingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich Hegel Georg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques Rousseau Jean-Ovide Decroly | Johann Herbart Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev Vygotsky Maria Montessori | Ortega y Gasset Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund Freud

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ISBN 978-85-7019-526-5 2010 Coleo Educadores MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites. A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia, estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98. Editora Massangana Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540 www.fundaj.gov.br Coleo Educadores Edio-geral Sidney Rocha Coordenao editorial Selma Corra Assessoria editorial Antonio Laurentino Patrcia Lima Reviso Sygma Comunicao Ilustraes Miguel Falco Foi feito depsito legal Impresso no Brasil

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca) Penna, Maria Luiza. Fernando de Azevedo / Maria Luiza Penna. Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 162 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-526-5 1. Azevedo, Fernando de, 1894-1974. 2. Educao Brasil Histria. I. Ttulo. CDU 37(81)

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SUMRIO

Apresentao, por Fernando Haddad, 7 Ensaio, por Maria Luiza Penna, 11 Caracterizao de uma conscincia, 19 Ideal moral e crtica, 19 O projeto azevediano de reconstruo, 29 O inqurito de 1926: um momento decisivo, 36 A experincia administrativa no Distrito Federal, 42 A concepo azevediana da Escola de Trabalho, 46 A escola-comunidade, 52 Educao e poltica, 57 Elites e participao, 66 A importncia das elites, 66 A tradio das elites, 73 Contradies azevedianas, 77 O humanismo de Fernando de Azevedo, 88 O conceito de humanismo, 88 Universidade e liberdade, 90 Estudos desinteressados, 97 Educao e transformao, 106 Fernando de Azevedo atual, 122

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Textos selecionados, 127 Nota explicativa, 127 Plano de livro, 129 Manifesto dos intelectuais, 130 Fernando de Azevedo: o retratista, o ensasta, 132 A cultura brasileira. Psicologia do povo brasileiro, 132 Cronologia, 147 Bibliografia, 153

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APRESENTAO

O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educadores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colocar disposio dos professores e dirigentes da educao de todo o pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram alguns dos principais expoentes da histria educacional, nos planos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentos nessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importante para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da prtica pedaggica em nosso pas. Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao instituiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes do MEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unesco que, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros e trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimento histrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avano da educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a coleo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau of Education (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos maiores pensadores da educao de todos os tempos e culturas. Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projeto editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo Freire e de diversas universidades, em condies de cumprir os objetivos previstos pelo projeto.7

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Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC, em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favorece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, como tambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a prtica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transio para cenrios mais promissores. importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coincide com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao e sugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em novembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de esperanas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas que se operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulgao do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Universidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em 1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos to bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros. Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e do Estado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosa do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passado, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em 1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possibilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas educacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprovao, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no comeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas e aspiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetizadas pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido por Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios.

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A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste volume.

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Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio da educao brasileira representa uma retomada dos ideais dos manifestos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o tempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, do Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanismo de estado para a implementao do Plano Nacional da Educao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educacional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no ser demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja reedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifesto de 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos problemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao da educao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideias e de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer da educao uma prioridade de estado.

Fernando Haddad Ministro de Estado da Educao

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FERNANDO DE AZEVEDO (1894 - 1974)Maria Luiza Penna

Fernando de Azevedo ocupa lugar de destaque na histria da educao no Brasil. Estudar o pensamento azevediano, em especial suas reflexes sobre as relaes entre educao e mudana social, o objetivo deste livro. Ao faz-lo, fui, ao poucos, insensivelmente, traando tambm uma biografia intelectual do socilogo educador, de tal maneira a dedicao aos problemas da educao e sua prpria vida esto imbricados. Objeto de condenao sumria por crticas tanto direita quanto esquerda, Fernando de Azevedo, por suas ideias e por sua ao, esteve adiante da maioria dos educadores do seu tempo, levantando as bandeiras histricas da burguesia progressista e liberal. Atualssimas so suas indagaes sobre a natureza e finalidades da educao num Brasil em processo de transformao e insero no modo de produo capitalista como nao perifrica e dependente. Por isso, o socilogo educador teve de enfrentar a oposio daquela parte da intelligentsia que persiste, via de regra, em operar com ideologias incompatveis com o capital industrial. Ao pensar um projeto de reconstruo nacional, viu na democratizao da educao um meio eficaz para alcanar tal fim. As transformaes, entretanto, seriam de dois nveis. Uma, interna, do prprio sistema educacional, transformao essa que deveria resultar da ntima ligao da escola com o meio social e no apenas burocrtico-administrativa.

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Outra, externa, pois Fernando de Azevedo percebe que sem uma modificao no sistema econmico, que reside base de toda poltica de planejamento social no qual inclui a educao uma obra educacional no tem possibilidade de ser eficaz. No h, de fato, virtude (ou saber) sem um mnimo de condies materiais. Por isso pensa a educao como problema poltico e, em ltima anlise, filosfico e tico. O tema, portanto, leva a vrias interrogaes, como todos os temas filosficos. Parece difcil estudar Fernando de Azevedo sem ser sensvel ao fato de que ele abordou de maneira criativa problemas candentes da realidade educacional brasileira, exercendo uma liderana rara nesse campo, feita ao mesmo tempo de inteligncia e coragem, mantendo, ao longo dos anos, fidelidade a seus ideais e s instituies. Abridor de caminhos, seu pensamento no apenas o de um homem que se quis filsofo da educao, mas o de um reformador que tentou transformar suas ideias em ao. Caminho original, percorrido provavelmente ao preo de extrema tenso interior, o deste visionrio, cujas ambiguidades so talvez inerentes a uma poca de transio, marcada por contradies. Ao refletir sobre a possibilidade da educao atuar como fator de transformao, suas ideias conduzem a questes como a da educao das massas e formao das elites, seu papel, a questo dos vnculos entre educao e sociedade, a ao recproca de uma sobre a outra, a correlao entre a pedagogia clssica e o velho humanismo, e deste, enfim, com o que qualificou de neo-humanismo. Superou, assim, o tabu do humanismo clssico ao reorient-lo em direo a um neo-humanismo pedaggico que preparasse a sociedade brasileira para a construo do bem comum e ao introduzir em sua viso do humano o conceito de progresso. Tem, sob esse ltimo aspecto, a viso otimista do sculo XIX, supondo que o conhecimento cientfico levaria a uma mudana da realidade, para melhor, e a uma modificao adequada das realizaes soci-

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ais, rumo ao socialismo e aos grandes ideais humanitrios. Nessa perspectiva, confere s universidades uma funo importante de corao cultural do pas, centros irradiadores do verdadeiro humanismo, feito de esprito cientfico, de reflexo, exame e crtica constantes, na vanguarda do processo social brasileiro. Est-se diante de um pensamento extremamente complexo, no s pelo alcance das questes tratadas, mas tambm pelos sucessivos contextos histricos que servem de pano de fundo a seu pensamento. Por isso suas ideias no so nunca estticas e seu evolver comporta vrias revises, realizando-se atravs de processos e caminhos. No por acaso diversos livros e artigos seus tm como ttulo principal a palavra caminho. Pens-lo ser, no caso, ver de que se trata naquele momento, que conceitos foram pensados e revistos, as lacunas, as oposies e interpenetraes possveis entre esses conceitos. Intelectual de uma poca de transio, seu pensamento reflete, em muitos pontos, as dificuldades de nossa realidade em mudana industrializao incipiente, Revoluo de 30, estabelecimento do Estado Novo, seu trmino em 1945, ao findar a Segunda Guerra Mundial mas tambm as contradies de um mundo em que surgiam regimes totalitrios, em que predominavam a fora e o arbtrio. Nessas condies procurou pensar o Brasil com os instrumentos e categorias que lhe pareceram mais adequadas e com os quais realizou uma tomada de conscincia da realidade educacional brasileira, suas especificidades, tendncias, conflitos e necessidades. Mas, Fernando de Azevedo foi alm, procurando refletir, ao longo de sua vida, e durante pocas conturbadas, sobre todos os problemas por que o pas passou. Sua produo intelectual mais importante situa-se entre 1926 e meados da dcada de sessenta. Por isso a obra de Fernando de Azevedo no apresenta aquela unidade de concepo, prpria das categorizaes sistemticas, perceptveis facilmente em uma superfcie lisa e inteira. Espelho que se partiu, mostra, reconstitudo nos seus inumerveis pedaos de formas e cores variadas, as ideias,

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vontades e aspiraes do momento em que viveu seu autor e sua tomada de posio. A poca tudo admite: so as grandes ideias em educao, a viso megalpica, global, da sociedade brasileira e seus problemas, o tempo da ortopedia pedaggica, fsica e espiritual (o culto da energia), os dispositivos mais diversos, a viso em grande, a marcha para o oeste, o avano, o esforo de territorializao, o estrangulamento das diferenas, das vises unilaterais, o estado, grande demiurgo, pater omnipotens, fortalecendo-se em funo dos conceitos de coeso e unidade nacionais. Situado entre duas pocas a das velhas tradies, que procurou romper, e a que se iniciou com a entrada do Brasil em um novo processo de modernizao, aps a Primeira Guerra Mundial e que coincide com o comeo de sua carreira, na administrao do ensino no Distrito Federal, de 1926 a 1930 , Fernando de Azevedo foi fiel ideia de que uma revoluo de mentalidades o passo mais importante para uma mudana de estruturas. Para isso muito contribuiu sua viso simultaneamente sinttica, megalpica, como dizia, do Brasil, e analtica, na medida em que estava consciente das diferenas e contradies que o pas apresentava e que se mostravam tambm na educao, processo por excelncia de transmisso ideolgica. No lhe escapou que transformaes na rea da educao dificilmente ultrapassam determinado limite porque h formas de controle ideolgico, sutis ou indiretas, mas no menos eficazes, sobre a escola. Uma delas a de distanciar a escola dos cenrios sociais onde se insere. Apesar disso, ou talvez por causa disso, preocupou-se, desde moo, com os problemas sociais, acreditando at o fim de sua vida por necessidade e reflexo que o mundo caminhava para sua progressiva socializao. No considerou impossvel, republicano e liberal, uma conciliao da justia social com a liberdade, do socialismo com as ideias e instituies democrticas: nessa conciliao devero concentra-se

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todos os seus esforos. De um racionalismo radical, procurou pensar cada um dos problemas que lhe pareciam essenciais de modo completo, relacionando tudo com tudo, no omitindo quaisquer aspectos das questes educacionais do seu tempo. Tendo recebido uma formao clssica estudou, depois de terminar o ginsio jesuta em Friburgo, cinco anos no Seminrio da mesma ordem, em Campanha, Minas Gerais dedicou os primeiros anos de sua vida profissional ao ensino da literatura, do latim e ao jornalismo, com especial nfase nos assuntos literrios. Sendo ligado ao grupo do jornal O Estado de S.Paulo, cujo ncleo era formado por uma elite de intelectuais liberais, foi convidado a realizar um inqurito sobre a educao no Brasil, em 1926. Esse inqurito foi essencial porque lanou Fernando de Azevedo como o grande perito em educao. Por essa poca, enveredou, como autodidata, pelos caminhos da sociologia e dos problemas da educao por sentir que eram de maior urgncia para o Brasil. A princpio um intelectual de cultura clssica, aos poucos foi se atualizando com o pensamento social de sua poca e com a necessidade de um embasamento cientfico. As afinidades eletivas de Fernando de Azevedo, como tambm as de Julio de Mesquita Filho, seu incentivador poca do Inqurito de 26, e com quem manteve um dilogo ininterrupto, inclinavam-se para o pensamento de Durkheim e a sociologia francesa. No por acaso, um dos seus primeiros livros, No tempo de Petrnio, j revela talento e sensibilidade sociolgica para analisar uma poca de decadncia e perda de valores. Como os antigos gregos, Fernando de Azevedo no pensou a educao como arte formal ou teoria abstrata apenas, mas como algo imanente prpria estrutura histrica e objetiva da vida espiritual de uma nao, manifestando-se de modo exemplar na literatura, expresso real de toda a cultura. Paradoxalmente, esse crtico literrio de estilo clssico, muitas vezes retrico, retratista exmio, no modernista, ser um opositor

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feroz da clssica escola burguesa, cujo ensino considerava elitista, fazedora de bacharis e letrados. Seu sonho ser a realizao de uma Grcia clssica nova, la Lunatcharsky, um novo humanismo. Trata -se de um antropocentrismo refletido que, partindo do conhecimento do homem, tem por objeto a valorizao do homem: tudo o que desperta o sentimento de solidariedade humana e concorre para facilitar a circulao do homem no mundo humano. No uma negao dogmtica do passado, mas processo de recuperao crtica, ligao entre passado e presente, timebinder, mas tambm gerador do futuro em um esforo para o universal e a verdade. Assim se delineia a atitude que parece mais caracterstica de Fernando de Azevedo. No sem razo a Alegoria da Caverna de Plato , ao mesmo tempo, um discurso sobre a essncia da educao (e da deseducao) e da verdade. Educao e verdade cristalizam-se tambm em Fernando de Azevedo numa identidade essencial. Por isso, qualifica-se de crtico idealista. Percorrendo sua extensssima obra, suas tentativas muitas vezes frustradas de implantar, na realidade, uma educao nova, dentro de um processo de reconstruo nacional, tem-se a impresso de que suas teorizaes e esforos de pensamento se constituem em uma ao travada. Vale dizer que, se com ideias se constri a cincia, se estabelecem relaes lgicas, se criam modelos ideais, preciso refletir e pensar incansavelmente sobre os enigmas que a realidade apresenta. Essa exigncia obstinada de racionalidade, entretanto, apenas um momento, necessrio e insubstituvel, do pensamento azevediano. Grande intelectual, no apenas um terico, criador dos grandes ideais da educao. A volta ao real significa, para ele, constatar a necessidade de uma luta reformista na esfera da educao, de uma radical mudana de mentalidade, uma nova viso de mundo, fundamentada no conhecimento e servindo como instrumento eficaz para uma ao consciente. Ao travada, tambm, porque nunca conseguiu concretizar de fato seus planos para uma revoluo coprnica na esfera da edu16

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cao. Acreditando numa via democrtica para a socializao da educao, no aceita, entretanto, a possibilidade de uma evoluo natural para que isso se concretize. Estudioso de nossa cultura, percebe que sem uma modificao de mentalidade no haver uma real transformao da vida social porque, para ele, a cultura uma forma de ser que determina, em aspectos fundamentais, a conscincia. Da sua nfase na necessidade da organizao da cultura e a universidade ocupar para Fernando de Azevedo um espao fundamental com vistas interveno no desenvolvimento poltico e econmico. Percebe-se, entretanto, no decorrer de seu pensamento, uma oscilao entre a afirmao da necessidade de liberdade e um autoritarismo que se poderia qualificar de progressista. Nisso, ele certamente se enquadra na tradio autoritria brasileira, no tendo sido insensvel pregao de um Estado forte, ou seja, de um Executivo forte, como soluo para os problemas do Brasil, embora aceitando o princpio da autonomia para os poderes Judicirio e Legislativo. A inquietao permanente diante de problemas e suas solues, entretanto, compensou o autoritarismo imanente sua personalidade e a seu tempo. Esse tufo lcido buscava a luz permanentemente. Tateando, tentando ultrapassar o presente, desejando realizar, agora, pela ao, um futuro ideal. Duas linhas parecem confluir para a formao de sua personalidade e no pouco contriburam para isso sua experincia pessoal de vida e obstinada reflexo: a via tica e a via da razo. Ambas no absolutas, situadas na concretude de uma existncia histrica contraditria, ambgua, mas nem por isso formas menos acertadas de um agir responsvel. No cenrio brasileiro, alis, excluindo evidentemente os meros burocratas, que grande educador no figura controvertida? Se Paul Valry acerta, ao dizer que criar sem dificuldades e criticar sem medida um jogo perigoso, por nos levar inevitavelmente ao desconhecimento, tentou-se elaborar esta biografia intelectual sem cair na armadilha. Tentei compreender um homem,17

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suas ideias, num contexto histrico extremamente complexo e que at hoje surpreende os estudiosos. O projeto azevediano de educao constituiu-se no segmento mais extenso, no qual se estuda a necessidade de uma nova mentalidade, capaz de compreender as funes de uma sociedade moderna, refazendo a ordem de prioridades educacionais, de acordo com essas novas funes, as relaes entre educao e poltica, a importncia do inqurito de 1926, a experincia administrativa no Distrito Federal, a concepo da escola do trabalho, a escola-comunidade. Lder intelectual nato, foi escolhido para redigir o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, em 1932, movimento cuja importncia at hoje inspirao e bssola para se estudar os princpios de uma educao democrtica e que retira suas razes da experincia azevediana no Distrito Federal. Em seguida, se examina a viso do socilogo-educador em relao questo das elites e participao. Unindo-se a Jlio de Mesquita, Fernando de Azevedo foi um dos principais fundadores da Universidade de So Paulo (USP) e redator de seus estatutos. Ali, exerceu o magistrio por mais de quarenta anos, ocupando a Cadeira de Sociologia. Ao criar uma verdadeira escola no campo das Cincias Sociais, formou um grupo de discpulos que se destacam entre os mais notveis em suas especialidades. A existncia dessa continuidade, alis, d a moldura essencial a qualquer instituio que queira contribuir para a criao de uma tradio de produtividade e eficcia em qualquer campo da cincia e do pensamento humano. Foi, por isso, nas palavras do professor Antonio Cndido de Mello e Souza, a viga mestra da Universidade de So Paulo. O texto trata ainda do neo-humanismo de Fernando de Azevedo, no qual se fundamenta uma nova concepo de vida, a nova mentalidade, essenciais para seu projeto de Reconstruo; procura analisar as condies de possibilidade de a educao atuar como agente de mudana social e, por fim, h uma tentativa de concluso.

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Na medida em que grandes excertos de seus livros so analisados detalhadamente no decorrer do meu trabalho, optei por incluir outros documentos importantes de sua trajetria intelectual, como, por exemplo, o projeto de um livro que tencionava escrever: Misria da Escola e Escola da Misria. Na cronologia de sua longa vida, destaquei os pontos essenciais de trajetria originalssima, rica de iniciativas. Fernando de Azevedo viveu, porm, sob muitos aspectos, uma existncia pessoal trgica, tomado frequentemente por profunda depresso e sofrendo o infortnio de perder dois filhos em plena juventude e um genro, Comandante Murilo Ribeiro Marx, por quem curtia sincera afeio, casado com Lollia, filha querida. Como base de pesquisa utilizaram-se os textos de suas obras publicadas e o riqussimo acervo fornecido por sua correspondncia, seus discursos, manifestos. Inestimveis foram tambm as entrevistas com assistentes, amigos e outras pessoas que de uma forma ou de outra cruzaram seu caminho ou se interessaram por sua atuao. O mtodo empregado derivou exclusivamente dos problemas que o pensamento de Fernando de Azevedo parece levantar. Por isso, optou-se pela reflexo e crtica, instrumentalizando--se as citaes e pontuando-as com algumas observaes e indagaes. Comentar criticamente, entretanto, no significa apenas apontar falhas, julgar. Significa debater, questionar, mantendo o respeito pelo objeto da crtica, no por subservincia, mas porque h sempre uma parcela de verdade no objeto criticado. A atitude filosfica adequada, nesse caso, seria, parafraseando Wittgenstein, a de elaborar e pensar os problemas como problemas e no como doenas.Caracterizao de uma conscincia Ideal moral e crtica

As ideias educacionais de Fernando de Azevedo esto profundamente ligadas s preocupaes de ordem tica e poltica que desde cedo nortearam seu pensamento. Nessas ideias est includo o

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pressuposto de que uma reforma na educao brasileira teria influncias modificadoras na prpria sociedade, podendo, portanto, estabelecer-se uma relao entre educao e transformao social. Se bem que modulasse de modo crtico, ao longo de sua vida, essas conexes, permanecem em seu pensamento a necessidade de reforma moral e de mudana de mentalidade. Da sua concepo da educao como agenciadora de uma conscincia moral, encaminhando o indivduo ao desenvolvimento de suas potencialidades e sua imerso no mundo social. Assim, a s educao do cidado condio para a sade do Estado. A moral passa, desse modo, a ser uma moral social e a educao uma verdadeira pedagogia social. No mbito de um pensamento sobre educao na linha de Plato e Kant, qualificando suas ideias de idealismo crtico, Fernando de Azevedo, no incio de sua vida como professor, procura refutar aqueles que, a exemplo de Paul Duproix, considerariam Kant individualista. No considera evidente que Kant tenha sido um homem [...] que se encerrou obstinadamente na conscincia pessoal, que se isolou em face do dever e que, se ensinou alguma coisa ao homem, o ensinou a viver exclusivamente da vida interior1. Fernando de Azevedo procura equacionar a oposio indivduo e sociedade na formao da personalidade humana. Kant seria o criador de uma conscincia coletiva, em que sobressai o princpio de justia como princpio fundamental, expresso no segundo imperativo categrico kantiano, assim interpretado:ver no homem a pessoa moral, trat-lo sempre como um fim em si mesmo, nunca como um simples meio, to longe est de habitu-lo a tomar-se a si mesmo por um fim nico, que, ao contrrio, tanto mais sentir ele seus laos com os outros homens e o que lhes deve, quanto mais se fizer um homem2.

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AZEVEDO, Fernando. O segredo da renascena e outras conferncias. So Paulo: Empresa Editora Nova Era, 1925. p. 40, citando o livro Kant et Fichte et le problme de lEducation, de Paul Dproix. Idem, p. 41.

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Aqui transparece o racionalismo do educador, inspirado em Kant. Nos seres racionais, a mera apreenso de um bem moral leva a um agir adequado, a uma ao boa. O que bom (e justo) deve ser desejado por si s, por ser bom em si mesmo, parte de suas relaes com outras coisas. A justia em si mesma a razo de aes justas. O fato moral essencial deve apresentar a caracterstica de universalidade reconhecida pela razo humana. Kant encontra no primeiro imperativo categrico essa universalidade: No agir seno de acordo com uma mxima que possa tornar-se lei universal. Kant indaga, prosseguindo em seu argumento: h de fato seres que valem por si ss e no podem ser meio para mais nada? Em outras palavras: haver seres que so fim em si prprios? Supondo, entretanto, que haja algo cuja existncia tenha em si valor absoluto, algo que, sendo um fim em si prprio, possa ser uma fonte de leis definidas, ento nisso e nisso apenas, deveria permanecer a fonte de um possvel imperativo categrico, isto , uma lei prtica.3 A resposta kantiana : O homem e qualquer ser racional existe como um fim em si mesmo.4 Somente como ser racional o homem fim em si mesmo. Mas, como saber se os seres humanos so fim em si mesmos e no simplesmente meios para qualquer outra coisa?O homem necessariamente concebe sua prpria existncia como tal. Temos ento um princpio subjetivo das aes humanas. Mas todos os seres humanos percebem sua existncia de modo similar, baseados no mesmo princpio que serve para mim: deste modo , ao mesmo tempo, um princpio objetivo5.

Se, ento, fato de ser um ser racional que torna cada homem um fim em si prprio, segue-se que o mesmo raciocnio deve ser aplicado a todos os seres racionais. Nossa razo reconhece todos3 FIELD, G.C. Moral Theory: an introduction to ethics. London: University Paperbacks Methuen, 1966 (1st edition, 1911), p. 30. 4 5

Idem, ibidem. Idem, p. 31.

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os seres racionais como fins em si mesmos e obriga-nos a trat-los assim, mesmo que nossas inclinaes nos levem a considerar-nos como fim e todos os outros seres como meios. Isso, claro, seria contraditrio e a razo o probe. Surge ento a segunda lei. Fundamentando-se nela, Fernando de Azevedo elabora as relaes entre moral individual e social: Aja de modo a tratar a humanidade, quer na sua prpria pessoa ou qualquer outra, em todos os casos, como um fim em si mesmo, nunca como um meio apenas.6 O homem, como ser racional, consciente e sujeito lei moral, bom em si mesmo. No pode ser usado como meio para se atingir outro fim. Graas ao reconhecimento irrecusvel da razo humana, o domnio prtico da moral assume um sentido prenhe de significados. Como a ordem psicolgica depende da razo, assim tambm a ordem social estaria condicionada ao exerccio dessa faculdade. Mas esse objetivo, para Fernando de Azevedo, alcanado, pelo menos em grande parte, mediante a educao, que deve realizar uma sntese racional da oposio entre indivduo e sociedade. No livro Novos caminhos e novos fins, resultado de sua prtica poltica e pedaggica, como Diretor de Instruo Pblica no Distrito Federal (1926-1930), desenvolve o tema:Eu tenho da vida, e, portanto, da educao, uma concepo integral que no me permite considerar o homem apenas como instrumento de trabalho; que me criou a conscincia da necessidade de aproveitar, na educao, todas as foras ideais, isto , tudo aquilo que d sentido e valor vida humana, e, que, portanto, me obriga a reivindicar para o indivduo os seus direitos em face da sociedade, qual, alis, ele tanto mais se adaptar e servir como unidade eficiente, quanto mais desenvolver e aperfeioar sua personalidade, em todos os sentidos. Se os problemas da educao se devem resolver em funo da sociedade e se a educao deve servir para edificar a sociedade nova, no menos certo6 Idem, ibidem. Uma anlise penetrante desse imperativo tambm feita por Lucien Goldmann, para quem Kant conseguiu concentrar ali a condenao mais radical da sociedade burguesa e formular o fundamento de todo o humanismo. GOLDMANN, Lucien. Introduction la Philosophie de Kant. Editora Gallimard, 1967, pp. 235-236.

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que s redundar em proveito da sociedade o indivduo, cuja personalidade atingir o mximo de desenvolvimento e, portanto, de eficincia dentro de suas aptides naturais. No vejo onde colidem e se opem os interesses do indivduo e da sociedade, na escola socializada, que tem por base psicolgica o respeito personalidade da criana. A educao nova , de fato, e deve ser uma iniciao na vida econmica e social, e, pelo trabalho educativo, uma iniciao no trabalho profissional e nas atividades produtoras; ela tem, e deve despertar e desenvolver o sentido da vida econmica, o culto do trabalho, da mquina, e da cincia; mas a economia, a cincia e a mquina s adquirem sentido humano porque nos proporcionam os meios indispensveis criao e ao gozo de ideais e de valores da cultura7.

A ideia de uma finalidade moral para a educao persistir na trajetria de seu pensamento, ainda que acrescida, atravs de processo de conciliao e superao, das finalidades sociais de educao; no existe oposio irredutvel entre os deveres do indivduo e os interesses da comunidade, sendo impossvel ignorar a repercusso profunda do trabalho de cooperao e do esprito de solidariedade social sobre a conscincia humana. Formao da personalidade moral e do sentido social seriam, portanto, as duas finalidades essenciais do processo pedaggico. Numa sociedade em processo incipiente de modernizao (industrializao, aumento da fora de trabalho etc.), Fernando de Azevedo, influenciado por Durkheim, Kerchesteiner, Dewey e Lunatscharsky, pensa a questo social e educacional, vinculando-as, desde 1923, com a tica poltica. Para ele, nessa poca, a chave do problema social estaria em uma reforma moral e religiosa, endossando a encclica De Rerum Novarum, de Leo XIII, profundamente humana porque reduz, em ltima anlise, a questo social a uma questo tica8.

7 AZEVEDO, Fernando. Novos caminhos e novos fins: a nova poltica da educao no Brasil. 3 ed. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958. pp.19-20. 8 FERNANDO DE AZEVEDO, No Tempo de Petrnio. Ensaios sobre a Antiguidade Latina, 3 ed., revista e ampliada, So Paulo, Edies Melhoramentos, 1962, pp. 57 e 58.

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Se a tica exigncia que se impe ao homem pela razo, o exerccio da criticidade comea a ser visto por Fernando de Azevedo como condio indispensvel para uma ao racional na realidade. Criticidade no seria, entretanto, apenas clarificar o uso dos conceitos, remover obscuridades, contradies. Seria tambm examinar, julgar, dar valor e escolher o que deve ser criticado. S assim atingir-se-ia a sabedoria que , ao mesmo tempo, cincia e virtude, dois produtos da razo humana. Homem culto aquele que exerce a capacidade crtica, diferencia, raciocina incansavelmente sobre a realidade que o cerca. Por isso, preciso meditar na funo do educador: O mestre no deve ensinar pensamentos, mas ensinar a pensar (Kant). Pensar bem penetrar uma questo, esquadrinh-la em todos os recantos e encar-la por todas as faces que apresenta (Fernando de Azevedo)9. Delineia-se a necessidade de identificar a metodologia a ser empregada.Como enfim seno pelo hbito de observao e reflexo, poderemos pensar fortemente, remontar atrs na srie das causas e impelir-nos para adiante na srie das consequncias, aprofundar a psicologia das coisas, estudar o homem e os fatos, nas suas relaes ntimas com as tradies, a raa e o meio?10

Mas a vida, sempre a grande predicadora, ensina que preciso viver a vida atravs da vida, conduzindo o predicado moral a uma referncia prtica, pelo contato imediato com as realidades de vida e no esse otimismo americano, produto de um idealismo excessivo, das obras pregoadas por estimulantes, de Ellick-Morn e de tais quejandos alqumistas, eternamente absorvidos na tentativa ilusria de procurar a pedra, que transforme em felicidade inopinada tudo o que existe no reino da dor e do trabalho11.

9 10 11

Idem, pp. 19 e 20. Idem, p. 23. Idem, pp. 31-32.

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Em meio a esse idealismo crtico vai buscar em antigo estudo sobre Descartes os fundamentos tericos de uma preocupao pelos problemas da finalidade das cincias e da importncia da experincia e da observao: O imaginrio, fosse o racional, no o que nos importa; preciso tomar p no real e evitar sempre a precipitao e o preconceito. Podemos pressenti-lo; mas no adivinh-lo; a utilidade a nossa ambio e nosso fim; a cincia feita para o homem e no o homem para a cincia12. Este p no real certamente foi colocado por Fernando de Azevedo ao fazer o Inqurito sobre a Educao, em 1926, para o Estado de So Paulo, por sua experincia com a reforma da Instruo do Distrito Federal, em 1928, e pelo exerccio de sua vida como socilogo e educador. J no apenas o professor de literatura, o especialista em educao fsica (o seu primeiro livro, publicado em 1920, sobre ginstica!) que fala. Seu pensamento ganha conciso, procura ir direto coisa:Na base da civilizao atual, esto a mquina, que produto e obra da cincia e as ideias igualitrias, cujo desenvolvimento se deve, em grande parte, s prprias descobertas e conquistas cientficas. A cincia. [...] contribuiu para o nivelamento das classes e para a solidariedade social pela interpenetrao cada vez mais rpida e profunda dos grupos humanos. No se pode, pois, separar democracia da cincia, num sistema de educao popular13.

Havia, no Brasil, o choque entre duas mentalidades. A diferena era a maneira de encarar as transformaes polticas e sociais que uns viam como fatos e problemas e outros como espectros e fantasmas. A atitude azevediana de desassossego intelectual, o esprito de pesquisa, exame e reviso, constantes.

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BERTRAND, Alexis. Descartes et 1'ducation, Revue pedagogique, set. out. 1897, in O Segredo da Renascena e outras conferncias. So Paulo: Empresa Editora Nova Era, 1925, p. 24. Grifos meus.

13 AZEVEDO, Fernando. Novos caminhos e novos fins: a nova poltica da educao no Brasil. 3 ed. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, p. 19.

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Ns que vivemos em estado inquietao, nos empenhamos na reviso constante de nossas doutrinas, duvidando de ns mesmos, sem descrermos da eficcia de nossos esforos, e trocando a f baseada sobre o hbito e sobre a autoridade tradicional pela f que repousa sobre a experincia, as necessidades e os fatos14.

A racionalidade azevediana, entretanto, no pode ser equacionada diretamente com o esprit de gomtrie cartesiano. Em carta a Alzira Vargas explica como, para ele, a inteligncia humana multifacetada, envolvendo vrias dimenses.Fui sempre, tambm eu, um inquieto em torno desse terrvel problema de educao moral, mas toda a minha preocupao a de no trair pelos meios as finalidades que preciso atingir. O fim profundo da educao , certamente, o aperfeioamento moral do indivduo. Nada, porm, (e este um conceito socrtico) nos levar a maior apuro moral do que o cultivo da inteligncia nas suas formas essenciais de penetrao compreensiva, de alcance imaginativo e de informao esclarecida. [...] A inteligncia , de fato, qualquer coisa de muito mais amplo, muito menos geomtrico, muito mais real do que a razo do mundo cartesiano15.

Fernando de Azevedo acentuou, ao longo de sua vida, em seus trabalhos e depoimentos, a necessidade do esprito cientfico, da objetividade. Perguntado16, pouco antes de morrer, pela caracterstica essencial da cincia, respondeu: a objetividade. E ele a definiu, ento, como sujeio ao objeto, aliada a um esforo de anlise e reflexo. Percebeu, porm, que nem a realidade, nem o sujeito, que tenta compreend-la, so transparentes. H no socilogo educador, mesclada ao seu indefectvel racionalismo durkheimiano,

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AZEVEDO, Fernando. A educao e seus problemas. 4 ed., tomo I, revista e ampliada. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, p. 17. Grifos meus. AZEVEDO, Fernando. Carta a Alzira Vargas do Amaral Peixoto em 3 de setembro de 1938. Arquivo Fernando de Azevedo. Instituto de Estudos Brasileiros. Universidade de So Paulo, pasta 48. Depoimento prestado em 30 de novembro de 1973. A partir da definio do conceito de homem, Fernando de Azevedo abriu um debate com estudantes e professores. Arquivos fonogrficos da IEB, USP.

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uma nostalgia do no previsvel, do incontrolvel, que a intuio e a imaginao oferecem.Penetrando todos os domnios do ensino, da geografia como da histria, das lnguas e das literaturas, esse movimento de conquista do esprito cientfico no s contribuir, aqui como em outros pases, para a renovao dos mtodos nos mais diversos setores de estudos, como tambm lhes alargar cada vez mais as perspectivas. Certamente permanecero sempre irredutveis a toda disciplina cientfica a sensibilidade, o gosto e a fantasia livre que imperam, soberanas, no reino das artes e constituem o segredo da seduo incomparvel de suas criaes imortais. Mas no somente no domnio literrio ou artstico que se expandem, em toda a sua fora, as intuies luminosas e o poder da imaginao, e satisfaz o esprito humano s suas exigncias de beleza e de harmonia como ao desejo sempre renovado do desconhecido e do mistrio. A harmonia de construo das teorias matemticas, quer provenientes das sugestes e das inspiraes da intuio, quer originadas da potncia criadora do engenho humano, ou das teorias cientficas, experimentalmente comprovadas, apresenta-se a qualquer esprito que seja capaz de penetr-las e ame por instinto todas as formas que pode revestir a beleza, como uma fonte maravilhosa de prazer esttico, semelhante ao que proporciona aos homens literariamente cultos a beleza de um poema em que a observao, a arte e a fantasia solicitam e repousam a imaginao17.

Se a cincia procura desfazer mistrios, clarear zonas obscuras da realidade, a arte, ao contrrio, avanaria no terreno do obscuro e do mistrio. Mas tambm nas regies do desconhecido que a cincia, como toda criao, desenvolve seu trabalho criador, diante da inesgotabilidade dos problemas colocados pela vida. Os homens da cincia so, eles tambm, poetas, porque no cientista, tanto quanto no poeta, existiria essa busca do desconhecido, a necessidade de fugir do dj vu, das realidades aparentes, da doxa. Partindo do obscuro, do aparente, do velado, deseja chegar s ideias claras, reali-

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AZEVEDO, Fernando. A educao e seus problemas. 4 ed., tomo II, revista e ampliada. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, pp. 79-80.

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dade, verdade. atrado pelo caos perturbador, mas tenta transform-lo num cosmos racional e compreensvel, extraindo dos fenmenos, leis, e do desconhecido, o conhecido. Apesar disso, sua sensibilidade esttica o impele para o lado incompreensvel da vida, para aquilo que Fernando de Azevedo qualifica de iluso.A iluso acaba sempre por tirar a sua desforra sobre a verdade. Por mais que se desenvolva (e nunca ser demais favorec-lo) o culto da cincia pura ou aplicada e de seus mritos rigorosos, h de se encontrar, pois, no fundo das almas, a persistncia dessas longnquas tendncias hereditrias que as fazem rondar s portas do mistrio e do desconhecido, da arte, da beleza e da religio18.

No sem uma profunda razo, entretanto, amou Fernando de Azevedo o Satiricon, de Petrnio. que ali a fico retrato, esteticamente perfeito, trespassado pela lucidez sociolgica de Petrnio, de uma realidade insustentvel. Caracteristicamente, Fernando de Azevedo procura uma conciliao, uma coincidncia de vises de mundo aparentemente opostas. A arte a iluminao da realidade e a cincia, viso e descrio:Enquanto tivermos sensibilidade e gosto, capacidade de sonho e de imaginao, os cidos da lucidez no podero atacar o sentimento esttico seno para fazer nele efervescncia e desenvolver, com o esprito crtico, o entusiasmo pelas coisas belas, sejam construes tericas do saber humano, sejam as criaes do gnio artstico e literrio. So os homens de cincia que, nos seus laboratrios, nos desvendam os mistrios que se ocultam na natureza ou mais propriadamente na matria, mas so os sbios, pensadores e artistas, que nos descobrem atravs do que passa, o que fica, ou nos recolhem e lhes do forma, para transmitir-nos as impresses de que cada dia a vida nos perturba e nos enriquece; e nesse prisma mudvel, em que as coisas se iluminam ou se transfiguram, que nos comprazemos em seguir a refrao da vida e do universo. A arte nos d, portanto, a viso, doce ou violenta, a iluminao de uma realidade, com mais ou menos parcialidade, enquanto a cincia nos d a viso da realidade com o maximum de

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Idem, p. 81.

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objetividade e de exatido. Procuramos, enfim, marchar dentro da claridade; e, a zona de claridade se vai fazendo e ampliando volta de ns, por toda parte em que os homens se sacrificam na procura da verdade, pelo exame dos fatos19.

A educao, portanto, contem em si mltiplas possibilidades. Uma delas a de conduzir o indivduo, atravs do exerccio da razo, pelo caminho de uma tica ao mesmo tempo individual e comunitria. O esprito de solidariedade seu resultado. A outra seria a de considerar que o esprito crtico, usado por Fernando de Azevedo no sentido de apreciao rigorosa de cada problema, a via real da razo que busca, em processo de aproximaes sucessivas, solues para as questes que o mundo apresenta. A razo azevediana, entretanto, contm dimenses mais amplas que a razo em seu sentido restrito, cartesiano. Na verdade admite que a inteligncia humana no s lgica, mas tambm imaginao e capacidade criadora.Fernando de Azevedo em 1926, poca em que publicou o Inqurito sobre a Educao, pesquisa encomendada por Julio de Mesquita Filho, diretor de O Estado de S.Paulo. O projeto azevediano de reconstruo O que faz de nossos estudantes mestres to idiotas que tudo quanto veem ou ouvem nas escolas no lhes oferece nenhuma imagem da sociedade. Petrnio, Satiricon. A nova mentalidade dos fins sociais da educao

O surgimento de uma conscincia educacional emergiu de uma gerao vtima, ela prpria, das falhas do meio social e do sistema de educao em que se formou20. Por isso, tentar inscrever no seu progra20

AZEVEDO, Fernando. A educao entre dois mundos: problemas, perspectivas e orientaes. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958. Introduo ao Manifesto de 1932, p. 47. Idem, ibidem.

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ma de ao reformas econmicas, sociais e pedaggicas. Essa conscincia no eclodiu de repente, aps a Revoluo de 30, mas j estava em desenvolvimento desde os anos 20, quando se processaram reformas escolanovistas em diversos estados21. Com a dupla presso de uma crise universal Guerra de 1914 e Revoluo Russa e, mais tarde, com a crise por que passou a Repblica com a Revoluo de 1930 um grupo de educadores tenta refletir e submeter as instituies, os homens e os fatos a um processo de reviso e crtica. Idealistas prticos, realistas a servio do esprito, assim os classifica Fernando de Azevedo. Acredita-se que a educao possa ser fator importante, se bem que no o nico, de transformao social, na medida em que qualquer projeto de reconstruo nacional necessita de uma fora de trabalho suficiente, tcnicos e universidades onde se desenvolvam, no campo das diversas cincias, pesquisas tericas e prticas. Est-se, no Brasil, quase na estaca zero. Educao elitista, percentual imenso de analfabetos. preciso, antes de mais nada, que se estabelea o novo sistema de fins sobreposto ao sistema de meios, apropriado aos novos fins necessrios para realiz-los22. Duas ideias-vetores parecem constituir o cerne no s da Reforma Educacional, realizada por Fernando de Azevedo, em 1928 no ento Distrito Federal quando exerceu o cargo de Diretor de Instruo Pblica como tambm do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, redigido por ele. 1) A necessidade de uma mudana de mentalidades, condio essencial para que se possa resolver problemas urgentes da realidade educacional brasileira. 2) A constatao de que o problema da educao comporta uma discusso de suas finalidades, sendo, portanto, um problema de ordem filosfica e poltica.21

NAGLE, Jorge. Educao e sociedade na Primeira Repblica. E.P.U./ MEC, 1976. (Reimpresso).

22 AZEVEDO, Fernando. A educao entre dois mundos: problemas, perspectivas e orientaes. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, p. 49.

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Uma transformao de mentalidades estaria vinculada ao ideal de um novo humanismo e possibilidade de se fazer da escola um elemento ativo e dinmico na sociedade, contribuindo eficazmente para uma verdadeira mudana social e cultural, ao introduzir novos fins ao processo e prtica educativos. Esses fins, por sua vez, dependeriam de ideais filosficos e polticos que deveriam ser analisados. Em 1925, Fernando de Azevedo pergunta: Que a escola, no conceito moderno, seno a preparao para a vida? Trata-se, antes de mais nada, de abandonar uma concepo social vencida, escola da erudio sem sentido, produtora e reprodutora de intelectuais agentes da perpetuao do status quo, por uma outra concepo de vida, eminentemente social, em uma poca que acordava para a questo social e a da unidade nacional. Pelo que se pode depreender de seus textos, essa concepo inovadora da escola daria nfase no apenas preparao para o trabalho, um mnimo de conhecimentos necessrios prtica racional de um trabalho, mas tambm conscincia dos deveres e ao exerccio dos direitos do cidado. A reforma de 1928 extraiu sua fora de expanso, assim ele pensa, de uma ideologia clara, firme e francamente renovadora, dominada por uma nova concepo de vida23. Essa nova concepo de vida comporta uma crtica s ideologias que teriam at ento dominado a mentalidade educacional. Para Fernando de Azevedo, seria necessrio perceber o trabalho de forma diversa, como a maneira de o homem influir ativamente na vida natural, modificando-a, transformando-a, socializando-a. A educao seria nica, isto , igual para todos no nvel primrio e para que isso fosse possvel seria necessrio o auxlio da Unio. S assim, teoricamente pelo menos, haveria difuso universal do ensino, sem prejuzo da qualidade e sem discriminaes classistas.

23 AZEVEDO, Fernando. Novos caminhos e novos fins: a nova poltica da educao no Brasil. 3 ed. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, p.16.

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Curiosa a identidade de opinio do socilogo-educador Fernando de Azevedo e do poltico Antnio Gramsci24, com respeito escola tradicional. Em ambos se delineia uma forte crtica escola tradicional, instalada para uma concepo burguesa que mantm o indivduo na sua autonomia isolada e estril, resultante da doutrina do individualismo libertrio25. [...] e uma apologia da escola socialista reconstituda sobre a base da atividade e da produo, em que se considera o trabalho como a melhor maneira de se estudar a realidade em geral (aquisio ativa da cultura) e a melhor maneira de se estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da sociedade humana...26 Azevedo, como Gramsci, critica acerbamente toda cultura verbal, demais afastada do concreto, cheia demais de retrica e poesia, demais desdenhosa das realidades humanas, sem contrapeso cientfico. Se Gramsci vincula a herana retrica influncia da cultura clssica ensinada nas escolas italianas, Fernando de Azevedo atribui essa cultura arcaica ao fato de nossa colonizao ter sido feita por um Portugal transmissor de cultura escolstica, tributria de uma religio mais transmissora de rituais que propriamente criadora, eminentemente literria, e nas condies sociais e econmicas que, na maior parte dos pases ibricos, marcam a transio de uma civilizao patriarcal para a civilizao tcnica industrial. A pregao azevediana, portanto, d nfase necessidade de uma mudana de mentalidades. Se a escola no deve ser apenas o reflexo do meio, mas elemento dinmico, capaz de contribuir para uma obra de transformao social, faz-se necessria uma outra24

Interessante tambm o acordo de ambos, em poca anterior, quanto aos motivos para defesa do ensino do latim: disciplina mental, formao civil, sabedoria histrica etc. Fernando de Azevedo, entretanto, modificou suas ideias a respeito, diferentemente de Gramsci, que fez at o fim da vida a apologia do latim, inseparvel da cultura italiana. Veja-se, a esse respeito, o livro Gramsci e la cultura contemporanea, Editori Riuniti, Instituto Gramsci, 1975 (vrios autores).

25 AZEVEDO, Fernando. A educao entre dois mundos: problemas, perspectivas e orientaes. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, p. 64. Manifesto da Escola Nova. 26

Idem, ibidem.

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maneira de encarar o Brasil, a questo social, as finalidades da educao. Se bem que atribua aos fatores econmicos, s condies materiais da existncia, grande importncia e da a necessidade de, conjuntamente com as reformas educacionais, serem introduzidas reformas econmicas , confere aos fatores ideolgicos e culturais um lugar privilegiado. Fazer educao , preliminarmente, tomar o sentido da vida e nas altas regies do pensamento que se esclarecem e definem a concepo e o sentido da vida, e, portanto, os ideais, as diretrizes e os princpios da educao.O confronto do sistema escolar com o conjunto do sistema social, levando-nos a rejeitar o ideal concebido como absoluto nos deu o sentimento do relativo, no s quanto ao papel da escola na sociedade, como no ideal que a deve corrigir. A nossa concepo de ideal estreitamente ordenada nossa representao da realidade. Ora, se o jogo das causas econmicas e o progresso das mquinas desenvolveram, na sociedade atual, o predomnio da indstria que criou uma civilizao em mudana, o alargamento quantitativo das sociedades, com a multiplicao dos crculos e dos contatos sociais, trouxe em consequncia o desenvolvimento das ideias igualitrias, que presidem a nossa evoluo social. A educao nova, nas suas bases, na sua finalidade e nos seus mtodos, no podia, pois, fugir, de um lado, s ideias de igualdade, de solidariedade social e de cooperao que constituem os fundamentos do regime democrtico, e por outro lado s ideias de pesquisa racional, trabalho criador e progresso cientfico, que guiam a sociedade cada vez mais libertada da tirania das castas e da servido dos preconceitos. Se a educao a socializao do indivduo, se ela tem por objetivo sobrepor uma natureza social s naturezas individuais, no estudo e comparao das utilidades sociais, nas reflexes que resultam dessas realidades, que se tem de buscar os ideais e lanar os fundamentos de suas reformas27.

O que almeja nada menos que uma revoluo na educao, transformao coprnica28 com a participao do povo, at ento, em sua maioria, alijado do processo educativo. So as ideias que27 AZEVEDO, Fernando. Novos caminhos e novos fins: a nova poltica da educao no Brasil. 3 ed. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, p.17. Grifos meus. 28

AZEVEDO, Fernando. No tempo de petrnio: ensaios sobre a antiguidade latina. 3 ed., revista e ampliada. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1962, p. 59.

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se refletiro no manifesto da Escola Nova, com nfase na escola nica (para todos), universal e gratuita, na escola do trabalho e na escola-comunidade. A escola-comunidade, sob o regime de autogoverno e de corresponsabilidade de mestres e alunos, permitiria a interveno dos alunos na prpria administrao, habituando-os ao governo, isto , a pensar e agir em funo do bem coletivo, criando a conscincia da funo social da riqueza29. Em Novos Caminhos e Novos Fins, Fernando de Azevedo expe de maneira clara os ideais da Escola Nova:A reforma da educao com que se institui a escola para todos (escola nica), organizada maneira de uma comunidade e baseada no exerccio normal do trabalho em cooperao, implantou no Brasil escolas novas para uma nova civilizao. Pondo na base as ideias igualitrias de uma sociedade de forma industrial, em marcha para a democracia e na cspide da pirmide revolucionria da reforma, os ideais de pesquisa, de experincia e de ao, quis o estado preparar as geraes no para a vida, segundo uma representao abstrata, mas para a vida social do seu tempo, sob um regime igualitrio e democrtico em evoluo, transmudando a escola popular no apenas em instrumento de adaptao (socializao) mas num aparelho dinmico de transformao social. Para este fim, a reforma articulou a escola com o meio social, modificou a sua estrutura remodelando-a num regime de trabalho e de vida comum, sob a feio de uma comunidade em miniatura, em que seriam utilizadas as diversas formas de atividade social, que desenvolvem o sentimento de responsabilidade, de sociabilidade e de cooperao30.

Para ele, os maiores obstculos concretizao de seus ideais educacionais no projeto de reconstruo nacional leia-se democratizao em um sistema capitalista so de ordem cultural e ideolgica. Dificilmente se levaria a bom termo, uma modificao no sistema educacional, num projeto educacional contextualmente to avanado quanto o dele, sem uma nova concepo de vida. Cotejando a reforma de 1928, no Distrito Federal, com o texto do Ma29 AZEVEDO, Fernando. Novos caminhos e novos fins: a nova poltica da educao no Brasil. 3 ed. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, pp. 85 et passim. Grifos meus. 30

Idem, p. 17.

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nifesto dos pioneiros da Escola Nova ver-se-, porm, que as ideias principais do ltimo esto contidas na primeira, excetuando-se, claro, a seo referente criao de universidades e a nfase na laicidade. E nem poderia ser de outra forma, j que a reforma foi realizada e o manifesto redigido por Fernando de Azevedo...31 As circunstncias, claro, seriam diferentes. A reforma efetivou-se no governo do Presidente Washington Lus, tendo sido Fernando de Azevedo trazido ao Rio pelo prefeito Prado Jnior e por Alarico da Silveira, secretrio do presidente. O manifesto surgiu da necessidade de se delinear algum projeto educacional mais amplo depois da Revoluo de 30, que no trouxe consigo um iderio educacional preciso. Essa nova tbua de valores, entretanto, se no se constitui na linguagem corrente das classes dominantes, polticas ou burocrticas, Fernando de Azevedo a apresenta como a mais racional dentro de um alargamento da prpria mentalidade burguesa. Os fracassos e vicissitudes do processo de democratizao do ensino seriam devidos ao extremo obscurantismo que caracteriza a burguesia nacional (e no apenas as classes dominantes), incapaz sequer de viver seu papel histrico. A raiz disso tudo, Fernando de Azevedo a desenterra na complexidade de nossa cultura, autoritria e conservadora, sofrendo daquela doena que mais tarde qualificar de sinistrismo. A revoluo educacional, por conseguinte, deveria passar-se dentro dos limites do prprio sistema burgus. No se trata apenas de uma modificao reformista, no sentido de ser imposta massa pelos intelectuais-educadores. No. A noo de escola-comunidade, como veremos adiante, a possibilidade da entrada de uma outra cultura, do ingresso no sistema educacional de modos de ver e sentir diferentes. A abertura para o desconhecido, de repercusses imprevisveis, e na qual se pode perceber a influncia europeia das Schulgemeinde [comunidade escolar] de Paulsen, seria talvez a ideia mais fecunda de Fernando de Azevedo.31

A esse respeito, h duas cartas de Fernando Azevedo para Frota Pessoa.

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No , todavia, radical, se radical for apenas o pensamento que recusa reformas em nome de uma hipottica revoluo futura. Duas solues diferentes, que Fernando de Azevedo procurou superar, atravs de sua ao como educador, pela construo de um sistema educacional mobilizador e capaz de ativar pela fora de sua prpria organizao as potencialidades educacionais do pas intervindo no desenvolvimento econmico, poltico e cultural. Sua nfase na necessidade de uma mudana de mentalidades radica na sua convico de que no adianta mudar o sistema educacional apenas na exterioridade de suas regras manifestas. Seria preciso que se modificasse at mesmo aquela concepo de vida, aquela ideologia, enfim, que no mera excrescncia ou reflexo deformante, mas uma dimenso essencial das condies da existncia, na medida em que determina a significao das prprias condutas sociais. O que importaria, para ele, a modificao no tanto dos contedos j codificados por nossa cultura, mas o prprio sistema de codificao da realidade: uma nova mentalidade. Conceito importante para Fernando de Azevedo, mentalidade parece significar um conjunto de disposies, de hbitos de pensar e crenas fundamentais. Comporta, por conseguinte, no apenas tendncias intelectuais, como tambm afetivas e volitivas. A expresso mudana de mentalidade refere-se, em ltima anlise, necessidade de uma atitude diferente, um alargamento do horizonte mental daqueles que se ocupavam (e preocupavam) com os problemas da educao no Brasil.O inqurito de 1926: um momento decisivo

Cinquenta anos aps o inqurito sobre educao realizado por Fernando de Azevedo para o jornal O Estado de S.Paulo, o que chama ateno a permanncia dos mesmos problemas, j agora aumentados exponencialmente por fatores de ordem demogrfica, social e poltica.

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O clebre inqurito, publicado mais tarde sob o ttulo de Educao na encruzilhada32 , na verdade, documento histrico de uma poca de transio que nela se reflete com suas contradies internas, seu apego ao passado e suas novas tendncias educacionais. ao mesmo tempo uma obra atual, pelos problemas que discute e que ainda no saram da tela de debates. No prefcio 2 edio (1960), Fernando de Azevedo constata:Pois nessa encruzilhada que ainda hoje a educao se encontra, igualmente perplexa hesitante em escolher, entre as perspectivas e orientaes que se lhe oferecem, a direo mais consentnea com as novas condies da civilizao [...] Entre os que foram ouvidos todos, autoridades na matria, encontram-se, porm, representantes de diversas correntes de pensamento pedaggico, conservadoras e radicalistas, que era do maior interesse fixar em um inqurito destinado a reproduzir fielmente a realidade social e cultural e as tendncias ideolgicas daquele tempo. Pois o perodo que se seguiu Primeira Guerra Mundial (1914-18), foi para ns uma fase de transio, certamente lenta, mas bem definida, como dizia a princpio, entre a educao tradicionalista e as novas ideias de educao. O inqurito ou o livro em que se publicou, e que antes de tudo o levantamento de uma situao, tem ainda esse valor documentrio, de ser um testemunho sobre a evoluo dos espritos e das ideias nessa poca. O que ele apanhou ao vivo, a mudana de atmosfera cultural, resultante das transformaes que se operavam na estrutura econmica de So Paulo, mas sem a intensidade necessria para influrem de modo decisivo na mentalidade do professorado e no aparelhamento institucional da educao. O sistema educacional, herdado da tradio, conservava ainda, por volta de 1926, uma continuidade sem ruptura, mas no sem desvios e acidentes. A perda da crena em certos valores antigos, a inquietao e o desejo de uma tomada de conscincia da realidade e de planos de reconstruo j se acusam, no entanto, fortemente, na quase totalidade dos depoimentos tanto mais expressivos quanto mais se considerar a diversidade de posies ideolgicas de seus autores33.

32 AZEVEDO, Fernando. A educao na encruzilhada: inqurito para o Jornal O Estado de S.Paulo (1926), 2 ed. Edies Melhoramentos, 1960. 33

Idem, pp. 17-19.

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As reformas administrativas e educacionais levam invariavelmente discusso da dicotomia entre uma educao, mola propulsora e transformadora da realidade, e educao como instrumento de conservao apenas e, portanto, inoperante em uma sociedade em transformao. Se naquele inqurito j se delineou uma conscincia educacional, para um grupo (restrito) de educadores, que queria substituir uma democracia de nome por uma democracia de fato, no menor foi a resistncia passiva de indivduos instalados na rotina, reao obstinada de interessados em manter o status quo. Participaram do inqurito: Manuel Bergstrm Loureno Filho, A.F. de Almeida Jnior, educadores; Teodoro Ramos, engenheiro e matemtico; Artur Neiva, cientista; Navarro de Andrade, especialista em agricultura; Reinaldo Porchat, jurista e professor; Ovidio Pires de Campos, professor de clnica mdica; Roberto Mange, engenheiro; Amadeu Amaral, poeta, escritor e jornalista. Fernando de Azevedo chama a ateno para o fato de que a educao, sufocada pela burocracia asfixiante e rgida, se divorciava cada vez mais do meio em que se inseria, falhando em suas finalidades sociais e democrticas, montada para uma concepo vencida, havendo uma inadequao entre a real realidade e o sistema educacional. Por que a persistncia dos erros e, portanto, das crticas? Caracteristicamente, d prioridade aos fatores culturais: que os elementos adquiridos da tradio nacional se encontram ainda, como revelavam naquela poca, bastante vivos para oporem tenaz resistncia s inovaes, e o terreno em que comeava a erguer-se a reconstruo escolar continuava minado pelo formigueiro das intervenes polticas e das administraes desastradas, provenientes, umas e outras, da absoluta falta de conscincia, por parte das elites governantes, da importncia, gravidade e complexidade dos problemas da educao34.

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Idem, p. 23.

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Loureno Filho, respondendo ao inqurito, percebe que a escola tradicional no serve o povo, e no o serve, porque est montada para uma concepo social j vencida, e seno morta de toda, por toda parte estrebuchante burguesismo35. Com o inqurito de 1926 que, por incrvel ironia, Fernando de Azevedo hesitou em realizar36, iniciam-se seus esforos para compreender os problemas da educao no Brasil. Partindo do princpio de que o conhecimento da realidade educacional fundamental, ele faz um primeiro diagnstico e constata que esta realidade desoladora, havendo doloroso contraste entre a relevncia dos problemas educacionais e a mesquinhez do tratamento dado a essas questes. Realiza um levantamento, objetivo e arrasador, das caractersticas do Sistema Educacional Brasileiro: 1) empirismo anrquico; 2) interveno desabusada das polticas partidrias, sempre alertas e mobilizadas para explorar, nas reformas escolares, o vasto campo que oferecem, com a criao de cargos, para satisfao de interesses subalternos37. 3) Uma escola tradicional, rgida e sedentria, cujo smbolo mais representativo o banco escolar, quase convertido em instrumento mecnico de preciso ortopdica. 4) Averso educao tcnica considerada uma agresso ao tradicional currculo da escola secundria, organizada especialmente em vista das exigncias das escolas superiores, e, portanto, das profisses liberais.35 36

Idem, p. 102.

Mas o que ilustra de modo significativo a pobreza do meio de ento em matria cultural o fato de que tivemos as maiores dificuldades para encontrar os elementos necessrios a levar a cabo aquele trabalho jornalstico, pois o prprio Fernando de Azevedo, a quem cometemos a delicada misso de realizar as consultas, no se considerava em condies de desempenhar-se dela e, por isso, pelo fato de, at aquela data, se ter dedicado a outros estudos. Foi no decorrer do inqurito que, deixando-se empolgar pelo problema, resolveu dedicar-se inteiramente ao assunto em que mais tarde se revelaria um mestre. Julio de Mesquita Filho, Poltica e cultura, Livraria Martins Editora, 1969, (pp. 186-189).37

A esse respeito, h carta escrita por Fernando de Azevedo a Francisco Venancio Filho.

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5) uma idiossincrasia burguesa pelos ofcios manuais e mecnicos, nutrida e cultivada por uma mentalidade de bacharis e doutores. 6) a inexistncia de universidade. J ento percebe (1926) a necessidade de participao dos diversos grupos sociais nas polticas de educao e cultura.Onde quer que se tome a srio esse problema capital (da educao) em que entram em jogo os mais altos interesses da coletividade, o pronunciamento dos tcnicos e o debate franco na imprensa e nas assembleias legislativas constituem elementos imprescindveis ao esclarecimento dessas questes ventiladas sempre em todos os seus pormenores e estudadas a todas as luzes38.

Quanto questo do segredo, vcio inaltervel de nossas polticas de educao e cultura, Fernando de Azevedo assim o denuncia:Entre ns, porm as leis de organizao e de reforma de aparelhos pedaggicos pecam, na sua quase totalidade, por dois vcios de origem que bastariam para despertar as mais justificveis dvidas sobre a sua solidez e elevao. De iniciativa do Poder Executivo, as reformas, esboadas quase sempre debaixo de um sigilo impenetrvel, sobem como questes fechadas, aprovao do Congresso, justamente reconhecida por mera formalidade, para transformao de qualquer projeto governamental, em lei. Apressadas na sua elaborao, geralmente clandestina, de autoria de funcionrios cujos nomes se mantm em reserva sem consulta preliminar s congregaes, sem solicitao pblica de sugestes e sem debate provocado na imprensa, essas reformas ainda encontram, para passagem vitoriosa de todos os erros de que sejam portadoras, as facilidades abertas pela complacncia ilimitada das duas Cmaras39.

Se bem que as finalidades da educao popular tenham sido definidas posteriormente, de modo mais claro, por Fernando de Azevedo na Reforma de 1928 e no Manifesto da Escola Nova, de que foi redator, j as enfatiza nesse primeiro inqurito:AZEVEDO, Fernando. A educao na encruzilhada: problemas e discusses. Inqurito para O Estado de S.Paulo, em 1926, 2 ed. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1960, p. 31. Idem, ibidem.

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Nestas condies s por milagre se poderia ter (em So Paulo) um aparelho de ensino harmnico e integral, posto pela legislao a servio de claros intuitos sociais e educativos e com bastante plasticidade de adaptao s correntes renovadoras do pensamento moderno. Mas, se de um lado, como se v, tem faltado a conscincia da gravidade e complexidade do problema, abordado quase sempre de afogadilho, em tropelias burocrticas, sem colaborao de tcnicos de responsabilidades definidas e sem debate pblico, por outro lado, ainda no se fez sentir entre ns, da parte dos dirigentes, aquilo que se pode chamar uma poltica de educao norteada no por homens mas por princpios. Nada que denuncie um grande ideal orientador formado no sentido profundo das realidades e necessidades nacionais e vivificado ao sopro das ideias cientficas de educao. Por isso, com sucederem no poder, homens do mesmo partido, no se criou sequer o esprito de continuidade bastante temperado na forja de ideais comuns, para desenvolver, com esforo pertinaz e ininterrupto, e no mesmo sentido, uma poltica de cultura, de bases slidas, de esprito marcadamente nacional e de objetivos precisos40.

Embora o inqurito se tenha restringido a problemas do Estado de So Paulo e tenha sido respondido por educadores daquele estado, inegvel que ultrapassa as fronteiras paulistas. Os problemas educacionais do Brasil, em suas linhas gerais, excetuando-se, claro, diferenas especficas das diversas regies, apresentam semelhanas. Pode-se concluir, por isso, que o inqurito foi a tomada de conscincia da questo da educao por Fernando de Azevedo, importando descobrir, j ali, os germes de inabalvel convico azevediana. Os problemas educacionais so, claro, de ordem tcnica. Fazem-se necessrios novos mtodos, uma administrao eficiente, um professorado capaz e preparado. Mas os problemas educacionais so, sobretudo, problemas de ordem poltica. Profundamente ligados democratizao e discusso do que fosse um plano de Educao ou de Cultura. Ideias ainda algo soltas, mas que em sua prtica pedaggica, como reformador e professor, s contribuir para confirmar.40

Idem, p. 32.

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A experincia administrativa no Distrito Federal

Se a ideia do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova se origina da IV Conferncia Nacional de Educao realizada em Niteri (dezembro de 1931, Rio de Janeiro) e se aquele foi considerado por Fernando de Azevedo conter o essencial de seu pensamento em matria educacional, importa chamar a ateno para o fato de que desde a dcada de 20, alguns educadores brasileiros viam a necessidade de uma renovao educacional. O movimento, iniciado com as Conferncias de Educao (1922), tomou vulto com a fundao da Associao Brasileira de Educao, em 1924, que teve como presidente e incentivador Heitor Lira da Silva (18791926). Adquirindo foros de campanha, o movimento irradiou-se pelos estados. As primeiras reformas foram as do Cear (Loureno Filho, 1923), Rio de Janeiro (Carneiro Leo, 1926), Paran (Lismaco da Costa, 1927), Minas Gerais (Francisco Campos e Mrio Casassanta, 1927-1928), Bahia (Ansio Teixeira, 1928), Pernambuco (Carneiro Leo, 1928). Mas a reforma empreendida por Fernando de Azevedo, em 1928, no Distrito Federal, suscitou polmicas apaixonadas, porque produziu uma ruptura no pensamento pedaggico dominante desde o Imprio, repercutindo sobre diversos estados da Unio. Houve mais que mera reao aos novos mtodos propugnados; as divergncias eram ideolgicas, oriundas de um contraste de vises de mundo diferentes.Na tempestade de protestos e aplausos, na corrente de entusiasmo ou na avalancha de crticas que levantou por toda parte, no se pode deixar de reconhecer antes o choque de conflitos ideolgicos do que uma simples reao diante de uma reforma com que o Brasil se integrava no movimento de renovao escolar que se vinha desenvolvendo em alguns pases europeus e americanos41.41 AZEVEDO, Fernando. A cultura basileira: introduo ao estudo da cultura no Brasil. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), Comisso Censitria Nacional, 1943, p. 657.

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Sobre o ambiente da poca, assim se expressa o educador:Em 1918 rompia a Inglaterra esse movimento de reformas com o Education Act de Lord Fisher; em 1919-1920 iniciava-se por uma srie de medidas convergentes, a execuo progressiva da grande obra planejada por Otto Gloeckel, em Vienna; logo a seguir a Prssia e os estados Alemes empreendiam, de 1922 a 1925, a reorganizao de seus sistemas escolares, desenvolvendo-se sob a constituio liberal de Weimar, uma atividade extraordinria de estudos, pesquisas e experincias pedaggicas; Lon Brard levava a debate, em 1923, na Cmara dos Deputados, uma nova reforma de ensino, na Frana, e nesse mesmo ano, Gentile traava o plano de reconstruo educacional da Itlia fascista e Lunatscharsky, auxiliado por Kroupskaia, atacava igual problema na Rssia comunista pela mais audaciosa e radical de todas as reformas que ento se realizaram e suscitam por toda parte iniciativas semelhantes de reorganizao do ensino em todos os seus graus, de acordo com as novas correntes de ideias e os novos regimes polticos. Mas, ao mesmo tempo que as questes sociais, polticas e pedaggicas, rompendo os crculos restritos em que se debatiam, de filsofos, homens de cincia, reformadores e polticos, passavam a interessar a opinio pblica do mundo inteiro e envolviam o Brasil na rbita de suas influncias, entrava o nosso pas numa poca de transformaes econmicas, devidas no s aos extraordinrios progressos da explorao agrcola e grande alta dos preos do caf, como ao maior surto industrial que se verificou, na evoluo econmica da Nao. [...] o impulso tomado pela indstria nacional, depois do conflito europeu, criavam o ambiente favorvel fermentao de ideias novas que irradiavam dos principais centros de cultura tanto da Europa como dos Estados Unidos42.

Sem dvida, a experincia azevediana como diretor de Instruo Pblica no Distrito Federal, de 1926 a 1930, ensejando-lhe um contato direto com nossa misria educacional (o problema fundamental...) e poltica, f-lo tambm pensar de maneira original esses problemas e suas solues. Ao apresentar ao prefeito Antnio Prado Jnior seu projeto radical de reestruturao da educao no Distrito Federal, no poderia supor, entretanto, o tipo de recepo negativa

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Idem, pp. 643-644.

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que a princpio teria de enfrentar. Recepo negativa seria talvez a maneira corts de se qualificar o verdadeiro faroeste que se travou na assembleia dos edis tentando bloquear de todos os modos o projeto pioneiro de Fernando de Azevedo. Ele o defendeu perante o Conselho Municipal (hoje Cmara dos Vereadores, tido e havido ento como a cloaca mxima do Distrito Federal), suas Comisses, e o publico em geral. Fernando de Azevedo manteve-se calmo, sereno, durante a longa exposio de motivos. Mas, encenando o que infelizmente se tornou um acontecimento usual em nossas cmaras supostamente representativas, sua explanao do projeto educacional que idealizara terminou em tumulto, tiros e ordem de se evacuarem as galerias. No meio da confuso, um representante do povo o apoiou: Orestes Barbosa. Sem conhec-lo pessoalmente, o criador da cano Cho de estrelas, uma das mais belas da lngua portuguesa, saltou em defesa do Diretor de Instruo Pblica. Foi atacado por todos, oposio e situao. Houve manobras de ambos os lados para coopt-lo. Cada lado o procurou, depois, para oferecer apoio com a condio de que tivessem direito a 50% das nomeaes. Fernando de Azevedo no aceita tais condies, mas consegue manter o projeto na ntegra apoiado pelo prefeito que obtm tambm a aquiescncia do Presidente Washington Lus. Surpreendentemente, Maurcio de Lacerda, que a princpio o atacara violentamente, reconhece o alcance do projeto e lhe d seu voto de confiana. Em seu livro Educao e Sociedade na Primeira Repblica, Jorge Nagle43, aps definir o movimento da Escola Nova, aponta no caso da remodelao de instruo pblica no Distrito Federal, um esquema escolanovista diferente, tanto nos pressupostos quanto nas consequncias. A obra de Fernando de Azevedo teve uma finalidade eminentemente social, fugindo da distoro tcnica e vendo a educao como problema poltico.43

NAGLE, Jorge. Educao e sociedade na Primeira Repblica. E.P.V./MEC, 1976 (reimpresso), pp. 255-256.

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A nova reforma de ensino inspirou-se como se conclui de todas as suas disposies fundamentais, no propsito de dar escola uma conscincia profunda de sua tarefa social e nacional e de se aparelhar dos meios necessrios realizao dessa tarefa poderosamente educadora, tanto pela intensidade, como pela extenso de sua influncia. Mas essa obra de educao cvica e social no depende apenas da renovao interior da escola, na sua organizao e nos seus mtodos, com o objetivo de conformar o ensino com a criana e s leis de seu desenvolvimento44.

Em outras palavras:A reforma no apenas uma reforma de mtodos pedaggicos. a reorganizao radical de todo o aparelho escolar em vista de uma nova finalidade pedaggica e social. (...) A educao deve ser uma para todos (nica), obrigatria e gratuita (...) um ponto de partida comum para todos os alunos dos meios diversos, a poderosa instituio de aprendizagem da vida coletiva, de realizao da unidade nacional. (...) A escola do trabalho a escola em que a atividade aproveitada como um instrumento ou meio de educao. Nada se aprende, seno fazendo: trabalhando (...). Assim, a tarefa da escola, alm de criar e desenvolver o sentimento democrtico (escola nica), poder transformar-se num instrumento de reorganizao econmica pela escola de trabalho. A reforma baseou toda a educao na atividade criadora e pesquisadora do aluno, estimulada pelo interesse, que, permitindo desenvolver-se o trabalho com prazer, lhe d o carter educativo de que deve revestir-se na escola primria. (...) A escola nova se prope, por uma forma de vida e de trabalho em comum, a ensinar a viver em sociedade e a trabalhar em cooperao. O aluno no deve exercer a sua atividade isoladamente, mas quanto possvel, em grupos, em que a realizao e a responsabilidade de um trabalho sejam atribudas a vrios indivduos para se habituarem a agir em cooperao, afirmando a sua personalidade, com esprito de disciplina coordenador de esforos individuais (...) A classe dever organizar-se como uma pequena oficina, de vida e trabalho em comum, onde cada aluno deve tarefa coletiva a sua contribuio pessoal, trabalhando todos no j para o mestre, mas antes para a pequena sociedade de que fazem parte45.

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AZEVEDO, Fernando. Novos caminhos e novos fins: a nova poltica da educao no Brasil. 3 ed. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, p.69. Idem, pp. 72-74.

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Apenas secundariamente, portanto, se pode ver na Reforma de 28 um interesse nos aspectos de estrutura tcnico-pedaggica da escola, tais como os relacionados com o currculo, o trabalho docente e a medida de rendimento. No se trata, portanto, de substituir um modelo poltico por um modelo tcnico. Para Jorge Nagle, estes so aspectos derivados de uma outra natureza mais ampla e profunda o aspecto social e, por isso, s devem ser considerados enquanto instrumentos ou meios para se alcanarem os novos fins. , portanto, a estrutura geral de reorganizao ou o sistema escolar montado sobre as novas bases que constitui o ponto de partida para o julgamento das realizaes do novo modelo empregado na reorganizao da instruo pblica do Distrito Federal. Para aquele autor, a remodelao afasta-se, nos seus fundamentos, da que se executou em Minas, bem como representa a integrao, em outro nvel, dos ideais poltico-sociais em desenvolvimento desde o incio do sculo com os ideais do escolanovismo que apareceram na dcada dos vinte46.A concepo azevediana da Escola de Trabalho

A leitura dos textos azevedianos que se referem escola de trabalho e suas entrevistas a respeito levam a diversas indagaes. Certamente o objetivo parece ter sido o de possibilitar, atravs de uma escola igualitria e nica, baseada no trabalho em comum, a entrada de contingentes de operrios e tcnicos, dotados de preparao profissional sria, no universo industrial brasileiro. O impacto do crescente processo de industrializao no mundo, em pases capitalistas ou socialistas, e dentro do Brasil, embora ainda em sua fase inicial foi considervel e influenciou de modo evidente seu pensamento com relao especificamente ao processo educacional.46

NAGLE, Jorge. Educao e sociedade na Primeira Repblica. E.P.V./MEC, 1976 (reimpresso), pp. 256-257. Grifos meus. Para o referido autor na reorganizao mineira coexistiu a proclamao dos novos ideais com uma estrutura tcnico-pedaggica essencialmente tradicional. Notam-se, por exemplo, nos artigos 323 e 439, do Regulamento do Ensino Primrio, regulamentaes no ativistas, falta de autonomia para o professor etc. (pp. 254-255, op. cit.).

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A educao, no , na concepo azevediana, apenas fornecedora de conhecimentos. Sua finalidade eminentemente social no sentido de preparar para a vida, na qual o trabalho tem lugar importante, mas tambm porque concorre para a formao do sentido social do trabalho: a conscientizao de sua importncia. Se verdade que a criana pobre aprender a trabalhar, a criana rica, trabalhando igualmente, aprender a respeitar o trabalho alheio47. At aqui no parece haver incoerncia nem com a nova concepo de vida que Fernando de Azevedo propaga nem com as finalidades sociais da educao por ele propostas. Trata-se de adaptar o sistema escolar nova concepo social baseada no desenvolvimento crescente das cincias, das indstrias e na expanso correlata das classes operrias. Ora, essa concepo de escola de trabalho conflita com um dos pontos mais estabelecidos da mentalidade brasileira: o desprezo pelo trabalho manual. H, de fato, uma idiossincrasia da burguesia no Brasil pelos ofcios manuais e mecnicos, nutrida e cultivada por uma mentalidade de bacharis e doutores. Por isso, polticos e educadores, no alto de sua transcendncia, viam na educao tcnica uma agresso ao tradicional currculo da escola secundria, organizado especialmente em vista das exigncias das escolas superiores, e, portanto, das profisses liberais48. Na educao profissional pode-se perceber pelo menos dois aspectos: deve, por um lado, dotar os alunos de slida base profissional, de maneira a elevar-lhes o nvel de capacidade tcnica e plos altura das circunstncias, mediante a prtica racional de um ofcio, e, por outro, dot-los de um mnimo de conhecimentos necessrios ao cumprimento dos deveres e ao exerccio dos direitos de cidado. educao tcnica caber:47 48

AZEVEDO, Fernando. Entrevista ao jornal A Noite. Rio de Janeiro, 24 de maio de 1927.

AZEVEDO, Fernando. Novos caminhos e novos fins: a nova poltica da educao no Brasil. 3 ed. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1958, p. 157. Notvel tambm a abordagem que o educador fez desse problema em seu livro A Cultura Brasileira, em especial o captulo II da Parte Segunda dessa obra.

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elevar o nvel moral e intelectual do operrio; despertar-lhe ou desenvolver-lhe a conscincia de suas responsabilidades, como a conscincia das bases cientficas e a significao social de sua arte; alargar-lhe a viso tcnica e artstica; aperfeioar-lhe a tcnica, no sentido do maior sentimento do trabalho, e transform-lo, por esta maneira, em elemento de progresso tcnico nas oficinas e nas indstrias nacionais49.

A revoluo industrial deveria provocar uma revoluo tambm na educao, a fim de que esta fosse capaz de responder s constantes modificaes de um saber cada vez mais complexo. Para se atingir esses objetivos naquela fase industrial (dcadas de 20 e 30) como ainda, e com mais razo, em nossa atual era eletrnica, era necessria e mais do que isso urgente, a preparao de tcnicos de todos os tipos e nveis, desde os operrios qualificados at os tcnicos dos mais altos escales na hierarquia dos seus quadros. Disso tudo decorre a necessidade de uma mudana radical de mentalidade ou, por outras palavras, de criao e difuso de novos estilos de vida, de pensamento e ao. E o primeiro passo seria uma escola bsica igualitria. Interessante o texto sobre a escola profissional, como tambm o comentrio de Fernando de Azevedo, em entrevista a jornal, sobre o assunto. Ambiguidades e contradies aparecem sobretudo no que se refere ao conceito de escola igualitria. Assim:Foi o que, antes de tudo, pretendeu a reforma de 1927, transformando a escola primria de letras em escola do trabalho (Art. 82 Reg.), reorganizando nas bases de um regime de vida e trabalho em comum; dirigindo-lhe os ltimos anos do curso no sentido vocacional (curso pr-vocacional) e articulando as escolas primrias e profissionais (Art. 274), por meio dos cursos complementares de feio marcadamente vocacional, anexos a essas escolas e sob a direo de professores primrios. A reorganizao radical da escola primria, baseada sobre o exerccio normal do trabalho em cooperao; o predomnio do desenho e dos trabalhos manuais que constituem a atividade fundamental de numerosos ofcios e as largas perspectivas

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Idem, p. 160.

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que abre a reforma a todas as formas de atividade da vida social (cooperativas, caixas econmicas etc.) e s atividades prticas nas oficinas de pequenas indstrias: sobre contriburem para desenvolver o gosto e o hbito das atividades profissionais de base manual ou mecnica, concorrem para despertar a vocao, chegar a uma prorientao do aluno e levar a uma contribuio notvel obra da orientao profissional das novas geraes. A introduo, com carter obrigatrio, da ficha escolar, com anotaes sistemticas sobre o desenvolvimento, o carter e as aptides do aluno; o exame e o conserto de medidas tendentes a desenvolver, na escola primria, o interesse pela educao profissional (Art. 274): a reunio de pais e professores, com o fim de orientao profissional e as visitas frequentes dos alunos das escolas primrias no s s oficinas das escolas tcnicas, como s fbricas e s empresas comerciais e de trfico, mostram evidncia o papel importantssimo da escola primria na obra de orientao profissional e


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