MÓDULO 7 – SAÚDE MENTAL E O CUIDADO ÀS DOENÇAS
CRÔNICAS NÃO TRANSMISSÍVEIS
DANIEL ALMEIDA GONÇALVES
São Luís-MA
2017
APRESENTAÇÃO
Não há dúvidas que as doenças crônicas e agravos não transmissíveis
fazem parte da rotina do Médico de Família e Comunidade (MFC) e de muitos
outros profissionais que trabalham na atenção primária, e sua condução, quando
bem realizada, tem por consequência a diminuição do número de óbitos e dos
gastos em saúde, bem como dos custos previdenciários por invalidez precoce.
Neste módulo, iremos abordar sobre a abordagem do profissional com os
pacientes que apresentam condições crônicas.
Aproveite a leitura!
OBJETIVO
Descrever os principais problemas psicossociais associados as
doenças crônicas não transmissíveis mais frequentes identificadas na
Atenção Primária em Saúde.
Demonstrar abordagens psicossociais que podem ser desenvolvidas na
atenção primária com os pacientes portadores de doenças crônicas não
transmissíveis
1 INTRODUÇÃO
Você já parou para pensar o que são as doenças crônicas não
transmissíveis?
Você já se deparou com a preocupação acerca de uma pessoa que está
sob seus cuidados e que deveria aderir ao tratamento de um problema
continuado de saúde e não está preocupada com isso, demandando
atendimento do serviço de saúde para queixas agudas? Ou sequer procura o
serviço e valoriza o apoio profissional?
Seriam as doenças crônicas, hipertensão e diabetes, que comumente são
as prioridades de atendimento em uma Unidade Básica de Saúde? Ou ainda,
você que trabalha na Estratégia Saúde da Família com certeza já se deparou
com a demanda de cuidar prioritariamente de hipertensos e diabéticos, não é?
Porque será que este tema está em um curso de saúde mental?
De acordo com Mendes (2012, p.33), as condições crônicas vão, portanto,
muito além das doenças crônicas (diabetes, doenças cardiovasculares, câncer,
doenças respiratórias crônicas, etc.):
Ao envolverem doenças infecciosas persistentes (hanseníase,
tuberculose, HIV/Aids, doenças respiratórias crônicas, etc.),
Condições ligadas à maternidade e ao período perinatal
(acompanhamento das gestantes e atenção perinatal, às
puérperas e aos recém-natos);
Condições ligadas à manutenção da saúde por ciclos de vida
(puericultura, hebicultura e senicultura);
Distúrbios mentais de longo prazo; deficiências físicas e estruturais
contínuas (amputações, cegueiras, deficiências motoras
persistentes, etc.);
Doenças metabólicas; doenças bucais;
As condições de saúde caracterizadas como enfermidades
(illnesses) em que há sofrimento, mas não doenças que se
inscrevam nos padrões biomédicos.
O denominador comum destas condições e doenças é a necessidade
de atenção continuada e eficaz de profissionais de atenção primária, que se
deparam com o desafio da manutenção e adesão aos tratamentos propostos.
As condições crônicas, especialmente as doenças crônicas, muitas vezes
vêm acompanhadas de sintomas. Inicialmente podem ser assintomáticas, tal
como acontece na diabetes mellitus e hipertensão em estágios iniciais e sem
agravos, o que imputa um desafio ainda maior para adesão ao tratamento.
Porém, é comum também apresentação sintomática difícil de ser valorizada
pelos profissionais de saúde quando não consideram a singularidade da pessoa
que apresenta a queixa.
Os principais sintomas nestes casos são:
Fadiga
Raiva
Tristeza
Problemas de sono
Estresse
Dificuldade de respiração
Dor
Todos os sintomas interagem entre si e se retroalimentam. Por vezes, a
atenção às pessoas portadoras de doenças crônicas torna-se ainda mais
complexa, especialmente quando associadas aos transtornos mentais.
ATENÇÃO!
É importante ressaltar que muitos problemas que envolvem a esfera
emocional e subjetiva, desde o sofrimento psíquico ao quadro psicótico,
acompanham as pessoas de forma crônica e se relacionam integralmente com
o bem-estar físico. Deste modo, é importante enquadrar e valorizar as doenças
mentais também como doenças crônicas e não transmissíveis. Recente
pesquisa mostrou que pessoas com asma, hipertensão, diabetes, insuficiência
cardíaca, hipertensão arterial e coronariopatias, internam mais e geram mais
custo para o sistema de saúde quando portadoras de depressão (IVBIJARO
et al., 2014).
Levando-se em conta a população atendida pelos profissionais da
atenção primária, em geral indivíduos em situação de vulnerabilidade social,
sujeitos a más condições de trabalho, desemprego, má alimentação e violência,
os desafios da assistência são ainda maiores. Encontramos indivíduos
adoecidos mental e socialmente, cuja doença crônica não transmissível (DCNT)
é vista com pouca ou nenhuma importância diante de tantos outros
enfrentamentos. Ou ainda, profissionais e equipes de atenção primária que
focam o cuidado somente em um grupo de doenças crônicas, em especial a
hipertensão e diabetes, quando para as pessoas o principal problema advém do
quadro mental.
Como abordar adequadamente um paciente obeso,
diabético, hipertenso, tabagista e/ou etilista,
deprimido e/ou ansioso?
Esse paciente, sem dúvida, já passou por diversos profissionais e níveis
de atenção e ouviu várias vezes que deveria comer menos sal, evitar doces,
parar de fumar, beber e perder peso, mas mesmo assim vivencia uma espécie
de “inércia” quando o assunto é saúde. Suporta suas dores com uso intermitente
de medicamentos e/ou tragos de bebida e cigarro. É possível que ele não esteja
suficientemente motivado, ou tenha perdido a esperança na própria melhora.
Diante disso é fundamental que o profissional da atenção primária
saiba conduzir o paciente no auto-cuidado apoiado na gestão da própria
saúde (LORIG, 2006).
A atenção primária é um espaço precioso para o cuidado destas pessoas,
pois além de ter, dentre seus princípios, aspectos fundamentais para o apoio
(cuidado longitudinal e integral, por exemplo), seus profissionais podem lançar
mão de dois valiosos instrumentos tecnológicos como fundamentais no manejo
de pessoas com DCNTs:
Entrevista motivacional (PROCHASKA; DiCLEMENTE, 1982).
Consulta centrada na pessoa (STEWART, 2003).
Para isso, algumas reflexões são necessárias para os desafios no manejo
de uma pessoa na Atenção Primária em Saúde (APS) com múltiplas doenças
crônicas:
O que os vários membros da equipe podem fazer?
Qual a importância do cuidado integral na perspectiva da avaliação
do estado mental e a evolução da doença clínica?
E a pessoa doente, como deve agir?
Que diferença faz a organização do serviço em termos de
educação em saúde (grupos) ou disponibilidade de agenda ou atendimento não
programado?
Para o cuidado exitoso de pessoas com condições crônicas, é
fundamental o trabalho interdisciplinar entre os profissionais da unidade de
saúde, bem como a organização de serviço que contemple aspectos de acesso
e organização de agenda (WOLLMANN et al., 2005).
Para conseguirmos entender melhor estes fatos e responder estas
perguntas, vamos acompanhar um caso comum na rotina da APS:
CASO CLINICO – PARTE 1
Cláudio, 68 anos, negro, divorciado, vigia noturno, evangélico “não
praticante”, pai de 4 filhos, duas moças (Kelly - 22 e Larissa - 26 anos) e dois
rapazes (Anderson - 24 e Roberto - 35 anos). Os filhos Kelly e Anderson residem
com ele e os dois outros filhos Larissa e Roberto são casados e residem com
suas famílias. Cláudio se preocupa com os dois filhos mais jovens, tem medo
que eles se “desencaminhem”. Suspeita que Kelly esteja grávida, e que
Anderson faça uso de drogas devido conviver em “más companhias”. Traz
queixas subjetivas na consulta com o médico e diz ter vindo à consulta porque a
agente de saúde marcou. Não entende direito o motivo de estar ali.
Observação: o paciente foi rastreado como suspeito de ser hipertenso
durante uma visita domiciliar realizada pelo agente comunitário de saúde,
embora fosse totalmente assintomático.
Na consulta informou que se sentia um pouco tonto, mas não valorizava
a queixa, já que também bebia, e então associava a algum “mal do fígado”. Diz
ainda ser tabagista (20 cigarros/dia) há mais de 45 anos, sempre desejou parar,
mas nunca conseguiu. Faz uso “moderado” de bebida alcoólica (bebe todos os
dias, pelo menos 3 cervejas de garrafa, mas no final de semana diz que
“arrepia”), fazia caminhada 2x semana mas parou há sete meses atrás. Não sabe
informar se é diabético, mas informa que já teve colesterol alto e que o pai era
diabético e a mãe tinha “começo” de diabetes. Deseja fazer exames de rotina e
diz: “Doutor, quero fazer um check-up completo!”
Os dados clínicos levantados na consulta foram: pai diabético e
hipertenso, faleceu por AVC (acidente vascular cerebral). Mãe morreu de IAM
(infarto agudo do miocárdio) aos 76 anos. Tem um irmão de 55 anos com
“problemas no coração”.
EXAME FÍSICO: P: 86 kg; E: 1,65 cm. PA: 180x110 mmHg, assintomático,
IMC 31,6 kg/m². Circunferência Abdominal: 95 cm.
QUESTÃO NORTEADORA 1: A partir das informações do caso clínico,
procure estabelecer uma lista de problemas para constar na avaliação global do
Cláudio. Qual seria um plano de apoio adequado?
Resposta:
Foi realizado um plano de apoio para Cláudio, considerando os seguintes
aspectos:
Plano de apoio
- Orientação quanto à necessidade de cuidado em saúde, que é
importante ainda na ausência de sintomas. E no caso dele, fundamental em
função dos problemas observados.
- Solicitação de exames de rastreamento.
- Aferição de pressão arterial ambulatorialmente até retorno.
- Orientação quanto à necessidade de parar tabagismo, sendo
disponibilizado grupo de apoio na UBS.
- Avaliação do padrão de uso de álcool no retorno.
- Discussão do caso em equipe para apoio na vigilância em saúde, se
pactuado com paciente.
CASO CLINICO – PARTE 2
Após algumas semanas, o Cláudio retorna e diz que não consegue
agendar consulta.
Nesta ocasião, traz algumas queixas: refere que ainda sente um pouco de
tontura, está tentando diminuir o cigarro e a bebida, porém ainda não conseguiu
e isso deixou-o muito nervoso. Fez os exames e está preocupado com os
resultados e com a pressão, pois veio à UBS e teve que tomar uma medicação
sublingual porque estava com a pressão alta, ainda que não estivesse sentindo
nada.
Foi feita avaliação de etilismo e Cláudio pontuou 2 no CAGE. Apresenta-
se disposto a parar de fumar, mas ainda não se sente pronto para isso. Não quer
marcar data ou seguir em tratamento na UBS. Refere sentir-se muito
desanimado, sem interesse nas atividades que gostava de fazer, inclusive
“afogar o ganso” (algo de que as namoradas têm reclamado). Está muito irritado
com os filhos que não entendem suas reações e refere que tudo isso piorou ao
tentar diminuir o uso do cigarro e da bebida, por isso prefere continuar usando.
Dados clínicos: Exames Laboratoriais: Glicemia de Jejum: 290 mg/dl;
HBGlic: 11,2; Colesterol Total: 356 mg/dl; HDL: 35 mg/dl; TG: 477 mg/dl; LDL:
218 mg/dl; Cr: 1,0 mg/dl; K: 4,1 mEq/L; UI: nl, TGO/TGP: 86/109; GGT: 184, FA:
273, TGO/TGP: 86/109; GGT: 184, FA: 273. ECG: Sinais de sobrecarga VE. Fez
curva pressórica ambulatorial: 180x110, 170x100, 180x100, 190x120.
QUESTÃO NORTEADORA 2: Complete a lista de problemas para
avaliação deste episódio de cuidados com Claudio.
Resposta:
Lista de problemas
- Preocupação com a saúde;
- Hipertensão Arterial Sistêmica;
- Diabetes melitus (aponte sobre a prontidão para mudança e adesão ao
tratamento)
- Sobre Tabagismo (aponte sobre a prontidão para mudança e adesão ao
tratamento)
- Sobre Alcoolismo (aponte sobre a condição de uso do álcool, a prontidão para
mudança e adesão ao tratamento)
- Sedentarismo
- Dislipidemia mista
- Obesidade
- Alto risco cardiovascular
- Risco de doença mental: investigar Transtorno Mental Comum (aponte sobre
a compreensão da condição, prontidão para mudança e adesão ao tratamento)
QUESTÃO NORTEADORA 3: Organize o plano de cuidado para Cláudio,
a partir da atualização da lista de problemas observados no caso apresentado.
Resposta:
Plano de cuidado
- Orientação sobre o diagnóstico de síndrome metabólica e seus riscos
- Prescrição de anti-hipertensivo, estatina e insulina
- Aferição de pressão arterial ambulatorialmente até retorno
- Abordagem do tabagismo
- Abordagem do uso do álcool
- Plano de tratamento conjunto com a equipe
- Retorno breve
- No retorno, fazer melhor avaliação sobre quadro mental: exame do estado
mental.
- Discussão com equipe sobre achados da consulta, incluindo a avaliação do
estado mental
- Encaminhado para o “grupo de hiperdia”
Considerar no plano de cuidado que o paciente nega-se a insulinização
direta, fala rapidamente sobre as mudanças do estilo de vida, alimentação e
perda de peso e ainda diz que tomará os medicamentos para hipertensão e
colesterol porque seus parentes morreram disso. Além disso, disse que vai
parar de comer açúcar para controle do diabetes.
Paciente saiu atordoado!
Médico fica irritado com a “indisciplina” do paciente e pensa – “mais um
tigrão que vai morrer logo!”.
Em reunião de equipe, foi aberta Ficha B do SISAB (Sistema de
Informação em Saúde para a Atenção Básica) para diabetes e a agente
comunitária de saúde, que já está há muitos anos na área, informou ao Dr.
Manoel que Claudio é um paciente que já teve a glicemia anteriormente alterada,
porém nunca aceitou tratamento.
Dizia que não gostava de doces, portanto, não era possível que fosse
diabético. Esse fato o afastou da equipe por muitos anos. Referia que era uma
das pessoas mais animadas do bairro, que tocava violão na praça local e que
fazia festas e churrascos para a vizinhança e amigos. Há algum tempo não é
mais visto entre as rodas de amigos a não ser quando está no bar.
O paciente ainda chegou a ir num grupo de Hiperdia para conhecer, mas
dormiu durante a palestra da auxiliar de saúde sobre colesterol alto. Tentou
marcar uma nova consulta rápida pois estava se sentindo estranho, mas foi dito
que a agenda do Hiperdia com Dr. Manuel é fechada e que deveria aguardar o
retorno.
CASO CLINICO – PARTE 3
Claudio volta à UBS na semana seguinte, queixa-se de dor no pé, e
manchas escuras na pele. Pediu para passar no acolhimento, está agitado e com
hálito etílico.
Exame clínico: PA: 190x110 mmHg, Dextro (Dx) 255, assintomático.
Auxiliar de Enfermagem (AE) informa ao médico, que estava em
atendimento no momento, que o paciente tem um “olho de peixe” no pé e que
não havia tomado as medicações do dia. Foi prescrito bolus de correção,
compressas mornas e analgésico e orientado a tomar as medicações
diariamente. Médico não viu o paciente, prescreveu apenas pelo prontuário e
relato da AE. Paciente foi liberado com PA: 150x90 mmHg, Dextro 190.
Paciente saiu da UBS com a intenção de não voltar mais às consultas pois
ficou com a sensação de que foi mal atendido, mesmo tendo sido liberado com
valores de PA e Dx próximos do normal.
No mês seguinte, a ACS traz informação de que o paciente está internado,
com risco de amputação devido a pé diabético. O uso do analgésico não
melhorou o quadro e fez uso de dois frascos de “duofilm”, prescrito por um antigo
farmacêutico do bairro. Como estava “brigado” com o posto, não quis voltar.
Durante a internação, o paciente evoluiu com quadro de abstinência alcoólica e
foi transferido para UTI, segundo relatos dos vizinhos.
QUESTÃO NORTEADORA 3:
a) Quais as considerações que podemos fazer com o caso do Cláudio?
b) Quais são as condições crônicas identificadas?
c) Como a equipe se portou e o que poderia ter feito de forma diferente?
d) Qual o papel das condições que envolvem a saúde e doença mental no
manejo do adoecimento físico?
e) Como você reescreveria esta história?
Resposta:
Poderíamos reescrever a história da seguinte forma ...
Paciente retorna à unidade de saúde preocupado com a dor no pé e com
as “manchas” pelo corpo sendo acolhido pela auxiliar de enfermagem que
direciona a consulta para o médico. As “manchas” que preocupam o paciente,
tratam-se na verdade de acantose nigrans cervical, axilar, chegando nas regiões
inframamária e inguinal. Paciente nunca havia dado importância a elas, mas
percebeu que aumentaram e ficaram mais salientes.
Dr. Manoel informa que as manchas são decorrentes do diabetes, e
paciente se recorda que no passado já disseram que ele era diabético e ele não
acreditou. Diz que tem as manchas desde então. Agora a história do diabetes
parece fazer sentido para ele.
Paciente confessa então que tem um “encontro” agendado com Zulmira,
manicure conhecida do bairro, (e também paciente do Dr. Manoel) e teme que
ela o ache “sujo” e queira saber porque o seu “amigo” já não aparece tanto para
“brincar” como antigamente e teme que a pretendente não tenha paciência com
ele. Dr. Manoel então quebra o gelo e pergunta se o “ponteiro só marca 6:30h”.
Diz que Cláudio precisa de um “relógio novo”, que marque pelo menos 3:15h. O
Paciente ri da situação, e Dr. Manoel se lembra que Zulmira é evangélica, mas
dessas bem “carolas”, portanto esse primeiro encontro talvez fique só numa boa
conversa.
Enquanto isso, podem tratar melhor dos problemas dele.
Isso parece tranquilizar o paciente, que sente mais confiante e
determinado a se tratar. Tem calosidades plantares, com sinais flogísticos, que
sugeriam infecção secundária bacteriana, sendo prescrito antibiótico e anti-
inflamatório não esteróide.
O paciente foi encaminhado para avaliação da enfermeira e orientações
quanto à prevenção de pé diabético. Ao ser questionado, diz que de fato anda
triste e desanimado quase todos os dias há alguns meses. Além disso, já não
faz as coisas que gosta, em especial tocar violão e se divertir com os vizinhos
na praça aos finais de semana.
Conta ainda que não dorme direito - antes conseguia descansar durante
o dia, já que é vigilante noturno - e que sente muita fraqueza e, às vezes, dores
estranhas pelo corpo. Tenta controlar a dieta, mas o apetite está muito alto.
Acha que não vale mais nada e que os filhos não gostam dele. Já pensou
que seria melhor morrer, mas agora não pensa mais nisso, pois não é “de Deus”
pensar este tipo de coisa. A bebida alivia as angustias e o nervosismo, já que
está de fato muito irritado.
Nega sintomas de euforia exagerada ou episódios de falta de controle de
gastos ou agressividade com outras pessoas, que não seus familiares. Nega
ainda que ouça vozes ou que tenham pessoas o perseguindo. O paciente sai
satisfeito e diz que nunca foi tão bem atendido na vida!
QUESTÃO NORTEADORA 4: Descreva quais as funções mentais e
outras condições associadas que podem ser examinadas a partir desse relato
de Cláudio.
Resposta:
Note que pequenas mudanças na maneira de atender foram
diferenciais nesse caso. Tecnicamente, pensando na
medicina de modo mais prático, um paciente liberado com
baixos níveis pressóricos e glicêmicos foi “bem atendido” e
teve revertida a situação urgente na qual se encontrava.
Contudo, pensando no cuidado longitudinal, na necessidade
da construção do vínculo, na experiência de adoecer, e na
importância de todos estes aspectos na lógica do cuidado,
inclusive na abordagem integral, devemos levar em
consideração o que é importante para o doente.
Tratamos de uma lesão de pele, e agendamos um retorno
breve para falarmos sobre o tabagismo e continuidade do
tratamento de depressão, por exemplo. Podemos e devemos
fazer uso da espera permitida para a construção do plano
assistencial.
Dentro da proposta do método clínico centrado na pessoa, são estabelecidos
os seguintes princípios:
Explorar a doença e a experiência de adoecer
Quais são os medos de Cláudio?
Qual o entendimento dele sobre a própria doença?
Será que ele entende a relação da “mancha” (acantose) com o diabetes?
Podemos utilizar isso como um “gancho” para vinculá-lo?
Entender o paciente integralmente
O paciente é mais do que uma “DOENÇA”. Quando restringimos o doente
a um mero valor de glicemia capilar ou um valor pressórico, limitamos a nossa
abordagem, e, tratamos o que para o profissional da saúde parece ser o “mais
importante”, mas talvez não seja o mais importante para o doente.
Note que muitas vezes pacientes crônicos, com descompensação
metabólica de longa data, se apresentarão oligossintomáticos ou até mesmo
assintomáticos, diante de variações de pressão e dextro. Desse modo, é fácil o
paciente presumir que “não tem nada”.
O mesmo ocorre nas dislipidemias. Novamente podemos explorar outros
aspectos da doença na tentativa de sensibilizar o paciente a olhar para a própria
saúde, de modo mais crítico.
Associar a acantose ao diabetes, ou ressaltar a melhora do diabetes a
uma melhora da disfunção erétil pode ser um bom começo.
Elaborar um plano terapêutico pactuado entre o profissional da
saúde e o paciente.
Perguntas do tipo “como posso ajudá-lo?” ou “o que o motivou a
agendar essa consulta?” norteiam nossa linha de cuidado. Nesse sentido,
novamente devemos entender o que é mais importante ao paciente e considerar
riscos iminentes à saúde.
No caso de Cláudio:
A disfunção erétil e a acantose parecem lhe preocupar mais.
Observe que a intenção não é “fazer as vontades do doente”, mas sim, trabalhar
de modo que o plano terapêutico ideal coincida com as expectativas de
tratamento do paciente, por exemplo:
Veja Cláudio, seus problemas tem uma fonte em comum: o
diabetes. Se melhorarmos seus níveis de açúcar no sangue,
seu ponteiro vai marcar pelo menos 3:15, e as manchas vão
diminuir. Perder peso também pode ajudar. O que você acha
disso”?
É sempre bom perguntarmos o que o paciente acha, até para,
novamente, alinharmos as expectativas e aumentar a adesão
ao tratamento. Esteja preparado para ouvir muitos “ah, o que o
senhor achar melhor doutor(a)...”. Mesmo que a resposta mais
frequente seja essa, insista na questão!
Incorporar a prevenção na prática diária.
Nesse sentido, inserir na rotina do paciente a prática de atividades
físicas e uma alimentação mais saudável, seria importante como terapia
adjuvante. Motivar o paciente para assim fazê-lo pode ser uma árdua tarefa. É
aqui que entra a entrevista motivacional.
Cabe ao profissional de saúde a sensibilidade de
abordar outros temas de modo racional: PA elevada,
possível diabetes, dislipidemia, alimentação saudável,
atividade física, etc.
Durante essa abordagem, caso o paciente pareça
“incomodado” ou pouco à vontade (paciente começa a
se ajeitar na cadeira, desvia o olhar, respira de modo
enfadado), talvez ele esteja pré-contemplativo e não
esteja “pronto” para tais informações.
Encerre o “sermão”, mas deixe claro que falarão disso
no futuro, por exemplo: “Seu Cláudio, hoje vamos pedir
os exames, mas vamos voltar nesse assunto na
próxima consulta. Quero que o senhor reflita sobre sua
alimentação, e veja o que é possível mudar”.
Se insistirmos muito na questão, além de diminuirmos
a efetividade da abordagem, muita informação se
perde, pois, o paciente não é capaz de absorver tudo,
e isso pode prejudicar o vínculo.
No retorno com os exames, o paciente já se prepara “lá
vem o Dr. Manoel com a mesma ladainha de sempre”.
Pode ser inclusive um fator de abandono definitivo:
“não volto no posto porque toda vez é a mesma
conversa”.
Intensificar a relação profissional/paciente, sendo realista com o
que esperar do tratamento, é a chave para a uma maior adesão e
para a construção do cuidado.
Toda equipe deve se empenhar em construir esse vínculo utilizando
estes instrumentos, inclusive os agentes comunitários. Os agentes de saúde, ao
visitarem sempre os mesmos domicílios, prestam quase sempre as mesmas
informações, estão mais sujeitos ao desgaste da relação profissional/usuário.
Eles também devem estar preparados para realizar uma abordagem
motivacional, baseada na mesma roda giratória de Prochaska e DiClemente, a
fim de preservar o vínculo e otimizar a promoção da saúde.
Caso contrário, deverão estar sujeitos ver dona Maria correr para se
esconder, ao visualizar o ACS descendo a rua, dizendo “lá vem aquela menina
me dar o mesmo sermão de sempre”.
Para encerrar a apresentação do caso, enfatiza-se que Claudio apresenta
sintomas depressivos clássicos, tais como:
o perda de interesse e prazer em fazer as coisas que habitualmente o
agradava;
o humor deprimido diariamente;
o irritabilidade;
o alteração no padrão de sono e apetite;
o cansaço e falta de energia;
o pensamentos recorrentes de menos valia, por achar-se pior que outras
pessoas e os filhos não gostam mais dele;
o pensamentos de morte, ainda que com baixo risco suicida (não tem
plano estruturado, por exemplo) ;
o disfunção sexual (perda de libido).
No caso apresentado, há comorbidade do quadro de humor com abuso
de substâncias, em especial álcool e tabaco.
O tratamento destes problemas deve ocorrer de forma simultânea ao
controle metabólico, suporte psicossocial devido a mudança do estilo de vida e
manejo do quadro mental, como visto em outros momentos neste curso.
SÍNTESE
Desta forma, podemos destacar que o manejo de condições crônicas na
atenção primária requer:
- Habilidades de comunicação específicas.
- Organização do processo de trabalho.
- Conhecimento para identificação e manejo dos problemas de saúde
mental, sempre no sentido de fortalecimento do vínculo terapêutico para a
garantia da adesão ao tratamento.
MAPA DE REDE
VAMOS PRATICAR?
Após acompanhar o caso de Cláudio, identifique os diferentes dispositivos
que podem ser acionados para estabelecer uma rede de cuidados adequada às
condições apresentadas.
REFERÊNCIAS
IVBIJARO, G. O. et al. Collaborative care: models for treatment of patients with
complex medical-psychiatric conditions. Curr Psychiatry Rep, v. 16, n. 11, p.
506, nov. 2014. Disponível em:
<https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25218604>. Acesso em: 16 jan. 2017.
LORIG, K. et al. Living a healthy life with chronic condition: self-
management of heart disease, arthritis, diabetes, asthma, bronchitis,
enphysema and others. 3. ed. Boulder: Bull Publishing Company, 2006.
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questionário CAGE: utilidade e limitações. J. Bras. Psiquiatr., v. 34, p. 31-4,
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http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cuidado_condicoes_atencao_primari
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PROCHASKA, J. O.; DiCLEMENTE, C. C. Transtheoretical therapy: toward a
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2. ed. Abingdon, United Kingdon: Redcliffe Medical, 2003.
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http://www.saude.curitiba.pr.gov.br/images/cartilha%20acesso%20avan%C3%
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