TICUNAS
Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil http://pib.socioambiental.org/pt/povo/ticuna
ticuna. In Britannica Escola Online. Enciclopédia Escolar Britannica, 2014. Web,2014. Disponível em: <http://escola.britannica.com.br/article/483589/ticuna>. Acesso em:06 de novembro de 2014.
1. Introdução
Os Tikunas ou tukunas formam a maior etnia indígena da Amazônia brasileira,
com 36.377 pessoas (dados da Fundação Nacional da Saúde, Funasa, 2009)
concentradas em mais de cem aldeias no estado do Amazonas. Os ticunas são
encontrados também no Peru e na Colômbia. No Peru são cerca de 4.200 e na
Colômbia 4.535. A soma da população de Tikuna dos três países é de 41.348, um
número que tende a aumentar, tendo em vista o momento histórico que tem se
mostrado mais favorável as suas lutas e reivindicações. As inúmeras fontes
históricas e bibliográficas revelam que os Tikuna, desde a colonização, convivem e
se relacionam com diferentes atores sociais (missionários, comerciantes,
pecuaristas e outros) e, apesar do intenso contato, preservam ainda hoje a língua
materna e mantêm, de forma dinâmica, peculiaridades da cultura material e
imaterial.
Com uma história marcada pela entrada violenta de seringueiros, pescadores
e madeireiros na região do rio Solimões, somente nos anos 1990 que os Ticuna
lograram o reconhecimento oficial da maioria de suas terras. Hoje enfrentam o
desafio de garantir sua sustentabilidade econômica e ambiental, bem como qualificar
as relações com a sociedade envolvente mantendo viva sua riquíssima cultura. Não
por acaso, as máscaras, desenhos e pinturas desse povo ganharam repercussão
internacional.
2. Autodenominação – Origem do povo Tikuna
Magüta
De acordo com as narrativas da tradição Tikuna amplamente descritas por
Curt Nimuendajú e outros importantes etnólogos, foi Yo´i e Ipi que criaram o povo
Tikuna. Yo’i usando isca de macaxeira pescou no igarapé Évare, peixes que se
transformaram em gente ao serem retirados da água, conseguindo, desta maneira,
formar o povo Magüta, que quer dizer “povo pescado do rio”, dos quais descendem
os Tikuna. Que passaram a habitar nas cercanias da casa de Yo´i, na montanha
chamada Taiwegine. Mesmo hoje em dia, este é para os Ticuna um local sagrado,
onde residem alguns dos imortais e onde estão os vestígios materiais de suas
crenças (como os restos da casa ou a vara de pescar usada por Yo´i).
3. Localização
“De acordo com seus mitos, os Ticuna são originários do igarapé Eware,
situado nas nascentes do igarapé São Jerônimo (Tonatü), tributário da margem
esquerda do rio Solimões, no trecho entre Tabatinga e São Paulo de Olivença. Ainda
hoje é essa a área de mais forte concentração de Ticuna, onde estão localizadas 42
das 59 aldeias existentes” (Oliveira, 2002: 280).
Esse povo vivia no alto dos igarapés afluentes da margem esquerda do rio
Solimões, no trecho em que este entra em terras brasileiras até o rio Içá/Putumayo.
Houve um intenso processo de deslocamento em direção ao Solimões.
No início, mantiveram sua tradicional distribuição espacial em malocas
clânicas e, na década de 1970, havia mais de cem aldeias. Hoje, essa distribuição
das aldeias ticuna se modificou substancialmente. Sabe-se ainda que alguns índios
desceram o rio até Tefé e outros municípios do médio Solimões, outros se fixaram
no município de Beruri, no baixo curso do Solimões, bastante próximo à cidade de
Manaus.
Habitam tradicionalmente na região do Alto Solimões, contudo, os Ticuna são
encontrados em todos os seis municípios da região, a saber: Tabatinga, Benjamim
Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá e Tonantins. Sua
população está distribuída em mais de 20 Terras Indígenas.
Um levantamento realizado pelo Conselho Geral da Tribo Tikuna (CGTT)
aponta que um número significativo de Tikuna também reside no Município de
Manacapuru-Am e na área periférica do Município de Manaus-Am. No Peru, são
cerca de 4.200 e na Colômbia, 4.535 (Instituto Socioambiental, 2000). A soma da
população Tikuna dos três países é de 41.348, um número que tende a aumentar,
tendo em vista o momento histórico que tem se mostrado mais favorável as suas
lutas e reivindicações.
Verifica-se que os Tikuna ocupam um território para onde convergem as
fronteiras políticas de três países: Brasil, Colômbia e Peru. Vale ressaltar que essa
especificidade faz com que os Tikuna, ao mesmo tempo em que se autoreconhecem
como grupo indígena diferenciado, também reconheçam as diferentes identidades
nacionais relacionadas aos três países citados (LOPES, 2003, p.11).
4. Língua
A língua Ticuna é amplamente falada em uma área extensa por numerosos
falantes (acima de 30.000) cujas comunidades se distribuem por três países: Brasil,
Peru e Colômbia. No lado brasileiro, o número de comunidades ascende a um alto
número de aldeias (cerca de 100) contidas em diversas áreas localizadas em vários
municípios do estado do Amazonas.
Nas aldeias que se encontram do lado brasileiro, o uso intensivo da língua
Ticuna não chega a ser ameaçado pela proximidade de cidades (quando é o caso)
ou mesmo pela convivência com falantes de outras línguas no interior da própria
área Ticuna: nas aldeias, esses outros falantes são minoritários e acabam por se
submeter à realidade Ticuna, razão pela qual, talvez, não representem uma ameaça
do ponto de vista lingüístico.
Em cidades de municípios do estado do Amazonas nos quais são
encontradas aldeias Ticuna, escuta-se a língua Ticuna sempre que seus falantes,
transitando por essas cidades, se dirigem a outros Ticuna igualmente em trânsito ou
aí fixados. Com relação ao uso da língua pelos filhos daqueles que, falantes de
Ticuna, se fixaram em cidades, é possível observar que esse uso tem, entre suas
variáveis mais fortes, a atitude dos pais em relação à própria língua: quando tal
atitude é norteada pela valorização da língua Ticuna e pelo que é próprio do
universo Ticuna, a língua usada pelos pais com seus filhos é o Ticuna (casos
freqüentes); quando não, a língua Ticuna deixa de ser usada e cede lugar ao
português (casos raros).
Com relação aos Ticuna que, por razões diversas, se deslocaram para a
capital do estado do Amazonas, Manaus, esses vivem mais dramaticamente a
imposição da língua dominante (o português) e de seus veículos - razão pela qual
reúnem-se por meio de projetos que têm por meta, entre outras coisas, manter viva
sua língua.
O Ticuna é uma língua tonal. Considerada como geneticamente isolada, é
uma língua que apresenta complexidades em sua fonologia e em sua sintaxe.
Adotam como segunda língua aquela utilizada no Estado Nacional no qual
estejam situadas as suas terras; assim, além de sua própria língua, os Tikuna falam
também o espanhol e o português.
5. Histórico do contato
A primeira referência aos Ticuna remonta aos meados do século XVII e se
encontra no livro Novo Descobrimento do Rio Amazonas, de Cristobal de Acuña. A
referência, abaixo transcrita, está no capítulo LI:
"Mantêm estas tribos, por uma e por outra margem do rio, contínuas guerras
com os povos vizinhos que, pelo lado do sul, são, entre outros, os Curina tão
numerosos, que não apenas se defendem, pelo lado do rio, da grande quantidade
dos Água, como também sustentam armas, ao mesmo tempo, contra as demais
nações que por via terrestre os atacam constantemente.
Pelo lado norte os Água têm como inimigos os Tecuna que, de acordo com
boas informações, não são inferiores aos Curina nem em número nem em brio, já
que também sustentam guerras com os inimigos que têm terra adentro".
“Os primeiros contatos com os brancos datam do final do século XVII, quando
jesuítas espanhóis, vindos do Peru e liderados pelo Padre Samuel Fritz, criaram
diversos aldeamentos missionários às margens do rio Solimões. Essa foi a origem
das futuras vilas e cidades da região, como São Paulo de Olivença, Amaturá, Fonte
Boa e Tefé. Tais missões foram dirigidas principalmente para os Omágua, que
dominavam as margens e as ilhas do Solimões, impressionando fortemente os
viajantes e cronistas coloniais pelo seu volume demográfico, potencial militar e
pujança econômica. Os registros da época falam em muitos outros povos (como os
Miranha ou os Içá, Xumana, Passe, Júri, entre outros, dados como extintos já na
primeira metade do século XIX pelos naturalistas viajantes), que foram aldeados
juntamente com os Omágua e os Ticuna, dando lugar a uma população ribeirinha
mestiça” (Oliveira, 2002: 280).
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contidas em diversas áreas localizadas em vários municípios do estado do
Amazonas (entre os quais estão Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de
Olivença, Amaturá, Santo Antonio do Içá, Jutaí, Fonte Boa, Tonantins, Beruri). A
maior parte das aldeias encontra-se ao longo/ nas proximidades do rio Solimões.
Nas aldeias que se encontram do lado brasileiro, o uso intensivo da língua
Ticuna não chega a ser ameaçado pela proximidade de cidades (quando é o caso)
ou mesmo pela convivência com falantes de outras línguas no interior da própria
área Ticuna: nas aldeias, esses outros falantes são minoritários e acabam por se
submeter à realidade Ticuna, razão pela qual, talvez, não representem uma ameaça
do ponto de vista lingüístico. Exemplificam essa situação os Kaixana (ou Caixana),
os Kokama (ou Cocama) e os Kanamari - os dois primeiros presentes em várias
aldeias Ticuna e os últimos com presença reportada em um número muito pequeno
dessas aldeias. Os Kaixana são falantes de português. Os Kokama que, no lado
brasileiro, vivem entre os Ticuna não têm mais o Kokama como sua língua materna,
papel majoritariamente desempenhado pelo português; alguns poucos Kokama
lembram-se de palavras, seqüências ou frases na língua Kokama, sendo que a
maioria tem como meta readquiri-la de algum modo - o que vem sendo feito no
âmbito da educação escolar indígena. Com relação aos Kanamari que vivem entre
os Ticuna no Brasil, não se tem notícia de que tenham deixado de falar sua própria
língua - o Kanamari, pertencente à família Katukina -, nem que essa língua se
sobreponha à realidade lingüística Ticuna no interior da própria área Ticuna.
Em cidades de municípios do estado do Amazonas nos quais são
encontradas aldeias Ticuna, escuta-se a língua Ticuna sempre que seus falantes,
transitando por essas cidades, se dirigem a outros Ticuna igualmente em trânsito ou
aí fixados. Com relação ao uso da língua pelos filhos daqueles que, falantes de
Ticuna, se fixaram em cidades, é possível observar que esse uso tem, entre suas
variáveis mais fortes, a atitude dos pais em relação à própria língua: quando tal
atitude é norteada pela valorização da língua Ticuna e pelo que é próprio do
universo Ticuna, a língua usada pelos pais com seus filhos é o Ticuna (casos
freqüentes); quando não, a língua Ticuna deixa de ser usada e cede lugar ao
português (casos raros).
Com relação aos Ticuna que, por razões diversas, se deslocaram para a
capital do estado do Amazonas, Manaus, esses vivem mais dramaticamente a
imposição da língua dominante (o português) e de seus veículos - razão pela qual
reúnem-se por meio de projetos que têm por meta, entre outras coisas, manter viva
sua língua.
Também segundo Curt Nimuendajú, o etnólogo alemão que, em 1929, fez sua
primeira viagem ao alto Solimões, os Ticuna são citados pela primeira vez como os
inimigos dos Omágua, moradores da margem esquerda do rio Solimões. Os Ticuna,
que já fugiam das agressões deste povo, refugiando-se nos altos dos igarapés e
afluentes da margem esquerda do Solimões, fazem o mesmo com a chegada dos
espanhóis.
Desde a instalação da missão jesuíta espanhola até a consolidação da posse
desta região por Portugal, no século XVIII (com a construção de uma fortaleza em
Tabatinga), os espanhóis e os portugueses vinham disputando a hegemonia no alto
Solimões. Os temidos Omágua (também conhecidos como Cambeba), de tradição
guerreira, quase foram exterminados neste processo, seja por contraírem doenças
ou por sua participação na querela entre os dois Estados coloniais. Com o tempo, os
europeus não quiseram ou não conseguiram povoar a região antes habitada pelos
Omágua, e os Ticuna passam a ocupar esse espaço, descendo dos altos igarapés,
onde conseguiram se esquivar do contato mais intenso.
Nas duas últimas décadas do século XIX, com a exploração da borracha, a
Amazônia se tornou palco de uma intensa exploração do trabalho seringueiro. O alto
Solimões, apesar de não contar com seringais tão produtivos quanto os do Acre, por
exemplo, também não ficou de fora da corrida pelo “ouro branco”, como era
chamada a borracha.
Através da instituição do sistema de barracão, o “patrão” tinha exclusividade
no comércio com índios, já que seu armazém era o intermediário comercial
obrigatório. A legitimidade dessa empresa era dada por títulos de propriedade
conseguidos por poucas famílias, vindas em sua maioria do Nordeste, que incidiam
sobre a terra dos Ticuna, os quais passavam a dever obediência aos recém-
chegados. Os patrões instalaram-se na boca dos principais igarapés, controlando
assim os moradores dali. Para reforçar esse controle, o patrão ainda nomeava um
tuxaua que exerceria a liderança entre os índios, cuidando dos seus interesses. Esta
liderança nem sempre se baseava em relações tradicionais, mas na subserviência
do tuxaua aos patrões seringalistas.
Sua habitação tradicional, a maloca, em que viviam juntos membros de um
mesmo clã, foi ainda encontrada por Curt Nimuendajú quando de sua primeira
viagem ao alto Solimões. Nesse momento, contudo, ela já estava em vias de
desaparecimento, devido à atuação dos “patrões da borracha” no sentido de forçar
fragmentação das malocas para atender aos objetivos da empresa seringalista. É
que a dispersão dos índios ao longo dos igarapés atendia melhor aos interesses da
exploração da borracha, visto que a baixa produtividade dos seringais do alto
Solimões era otimizada com a dispersão demográfica ao longo da floresta, onde
estavam as diversas estradas de seringa.
Em 1910, ainda segundo Nimuendajú, uma nova agência de contato se faz
presente no alto Solimões. Nessa época, capuchinhos vindos da província da
Úmbria, na Itália, instalam a Prefeitura Apostólica do alto Solimões. A presença do
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) nessa situação de domínio dos seringalistas
era meramente formal, ou seja, restrita a relatórios de um delegado desta repartição
a partir de 1917. É somente em 1942 que este órgão da administração federal vai
criar um posto na região.
A dominação do órgão tutor seria mais facilmente exercida com a
centralização do poder entre os Ticuna. Assim sendo, os funcionários do SPI
atuaram de modo a criar uma liderança única dentro da aldeia, já que esta inexistia
dentro da tradição ticuna. Havia, contudo, ao nível dos grupos vicinais, lideranças
reconhecidas (os toeru), que dentro de um limitado grupo de parentes e vizinhos
dispunham de autoridade para convocações para trabalhos coletivos, resolução de
pequenas disputas etc. Essa liderança, por seu caráter bastante fragmentado, não
satisfazia os interesses da administração regional do órgão tutor. A solução
encontrada foi a indicação pelo chefe de posto de um capitão (Oliveira, 1988:237-8).
Uma nova situação histórica começa a se delinear em meados da década de
1960: a Amazônia e sua faixa de fronteira vão sendo transformadas em área de
segurança nacional para o exército brasileiro. A antiga guarnição militar de
Tabatinga cresce em tamanho e importância, transformando-se no Comando de
Fronteira do Solimões (CFSOL), com mais autoridade para intervir localmente. Isso
faz com que a relação entre patrões e índios seja profundamente alterada. Sem a
possibilidade da coerção por castigos físicos, coibida pelo exército, os patrões
descobriram outros modos de fazer valer seu controle sobre a população indígena
(Oliveira, 1988: 211-3).
A atuação da Igreja Católica - por meio da província apostólica do alto
Solimões, inaugurada pelos capuchinhos em 1910 - gerou uma infra-estrutura de
saúde e educação pouco desprezível, visto que Belém do Solimões é hoje uma das
maiores aldeias ticuna. Durante a década de 1960, também missionários batistas
americanos chegam ao alto Solimões com o objetivo de catequizar os índios. Em
uma época em que os “patrões” ainda dispunham de autoridade, principalmente por
serem considerados os donos da terra onde moravam os Ticuna, utilizaram como
uma das estratégias de mobilização da população indígena da região a compra de
terras, que disponibilizaram para os que quisessem viver junto, compartilhando os
ensinamentos de sua religião. Desta forma, surgiram ainda outros aglomerados que
hoje constituem algumas das aldeias Ticuna de maior expressão populacional, como
Campo Alegre e Betânia.
O número dos que passaram a viver em aldeias, no entanto, só vai sofrer
alterações realmente significativas a partir do aparecimento do movimento
messiânico da Irmandade da Santa Cruz. Em um contexto de progressiva perda de
autoridade sobre os índios, já no princípio da década de 1970, os antigos “patrões”
deram apoio à penetração das idéias de um homem chamado José Francisco da
Cruz.
Com alguma correspondência com a tradição ticuna, já que esta admitia a
possibilidade de punição divina em momentos de intensa desagregação sócio-
cultural, e com o apoio das principais lideranças políticas da região, as idéias de
José da Cruz vingaram com extrema facilidade e o movimento religioso por ele
fundado se tornou hegemônico em pouco tempo. Converteu, deste modo, índios e
não-índios por todo o alto Solimões, e assim as posições de liderança na hierarquia
da Irmandade foram sendo rapidamente conquistadas pelos antigos “patrões”. Estes
conseguiram contornar a crise de autoridade pela qual passavam, ao instituir uma
nova legitimidade moral/religiosa para o controle que exerciam (Oliveira, 1978).
Os funcionários da Funai, que nessa época já substituíra o antigo SPI,
também perceberam logo a utilidade do movimento da Santa Cruz como catalisador
de seu projeto de integração do indígena e passam a apoiar explicitamente aquelas
lideranças ligadas ao movimento, incentivando, inclusive, o faccionalismo religioso
que até hoje divide aldeias como Umariaçú e Belém do Solimões (Oliveira, 1987).
No final de 1981, as principais lideranças ticuna convocaram uma reunião na
aldeia de Campo Alegre, onde foi discutida a proposta de demarcação de suas
terras, encaminhada à Funai. Nesta reunião foi escolhida também uma comissão
para ir até Brasília apresentar ao Presidente a proposta ali debatida. Como resultado
dessa pressão dos Ticuna, a Funai mandou, em 1982, um grupo de trabalho com o
fim de identificar as áreas ticuna nos municípios de Fonte Boa, Japurá, Maraã, Jutaí,
Juruá, Santo Antônio do Içá e São Paulo de Olivença.
Também em 1982, os Ticuna criam o Conselho Geral da Tribo Ticuna
(CGTT), com a figura do coordenador geral, eleito em assembléias quadrianuais
entre todos os capitães de aldeia e com poderes semelhantes aos de um ministro
das relações exteriores. Posteriormente, outras organizações indígenas foram
criadas: a Organização dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB), foi fundada em
1986 no intuito de realizar cursos de reciclagem e formação dos professores; a
Organização dos Monitores de Saúde do Povo Ticuna (OMSPT); e a Organização
de Saúde do Povo Ticuna do Alto Solimões (OSPTAS), em 1990, cuja atuação teve
como marco o combate à cólera vinda da Colômbia e do Peru.
Ainda em 1986, foi criado o Centro Magüta - Centro de Documentação e
Pesquisa do Alto Solimões, voltado principalmente para as populações ticuna e com
o auxílio de pesquisadores que já trabalhavam ali havia pelo menos uma década.
Sua principal conquista foi o desenvolvimento do processo de reconhecimento
fundiário que culminou com a demarcação, em 1993, de cerca de um milhão de
hectares de terras naquela região. O Centro Magüta realizou ainda trabalhos nas
áreas de saúde e desenvolvimento. Entre 1996 e 1997, devido a dificuldades com o
financiamento de suas ações após o processo de demarcação das principais terras
ticuna, o Centro deixou de existir e na sua sede passou a funcionar o CGTT.
6. Movimentos messiânicos
Curt Nimuendaju e Maurício Vinhas de Queiroz foram os primeiros
pesquisadores a observar a existência de traços de movimentos messiânicos entre
os Ticuna. Segundo eles, houve sete manifestações deste tipo entre estes índios do
princípio do século XX até 1961.
O primeiro movimento que se aproxima a um movimento messiânico, ocorreu
em território peruano, no princípio do século XX, quando uma jovem ticuna começou
a ter visões e a profetizar, atraindo em torno de si Ticuna tanto do Peru quanto do
Brasil. Como a afluência de índios aumentava sempre mais, Nimuendaju conta que
os “civilizados” intervieram, atacando o grupo com armas de fogo, ocasião em que
alguns ticuna morreram, outros foram maltratados e a jovem profetisa teve um
destino desconhecido (Nimuendaju, 1952: 138).
O segundo movimento ocorreu entre 1930 e 1935 quando um jovem ticuna do
lago Cujaru, no rio Jacurapá, chamado Aureliano, começou a ter visões. Os índios
lhe construíram uma casa à parte para que recebesse mais facilmente as
revelações. Como sua reputação aumentava, reunindo cada vez mais outros índios
em torno de si, os “civilizados intervieram novamente e prenderam Aureliano sob o
pretexto de que não pagava imposto de uma espécie de violão que fabricava”
(Nimuendaju, 1952: 138).
Em razão da precariedade dos dados apresentados por Nimuendaju, não é
possível saber detalhes sobre o conteúdo das profecias da jovem ticuna e de
Aureliano, nem sobre a real situação dos que os seguiram; igualmente, não se sabe
ao certo qual era a identidade dos não-índios que acabaram com os ajuntamentos
ticuna, mas, sabendo-se que esses movimentos ocorreram numa época em que o
regime do barracão já estava implantado na região é lícito supor que tais ataques
foram desfechados por ordem dos proprietários regionais que, como se sabe,
usavam de todos os expedientes para impedir a evasão da mão-de-obra dos
seringais.
Outra manifestação messiânica teve lugar no Auati-Paraná, em torno de
1932. Segundo informações obtidas por Vinhas de Queiroz junto aos não-índios da
região, um certo número de Ticuna se reuniu no Auati onde aguardavam a aparição
de deus. O movimento acabou em razão de uma epidemia que se propagou na
região dizimando a maioria dos seus membros (Queiroz, 1963: 46).
Um quarto evento aconteceu entre os anos 1938 e 1939, no igarapé São
Jerônimo. Espalhou-se, naquela época, a notícia de que um jaguar teria dito a uma
criança ticuna que uma grande enchente inundaria tudo, inclusive a sede do
seringal. Diante dessa nova, os índios que habitavam próximos da desembocadura
do referido igarapé se reuniram na sua parte superior onde construíram uma grande
maloca de estilo tradicional e fizeram grandes plantações. Como a catástrofe
anunciada não se produzia, os índios acabaram por retornar para as suas
habitações e levaram uma vida normal (idem: 49).
7. Irmandade da Santa Cruz
Tudo indica que os antigos movimentos messiânicos ticuna obtiveram êxito
durante um certo momento, isto é, durante o seu período de efervescência. Mas é
verdade que seus projetos, suas aspirações e seus desejos não se concretizaram,
na maioria dos casos, como vimos, em razão da violência perpetrada pelos
“patrões”. Contudo, a esperança continuou a se manifestar e as freqüentes recaídas
não desembocaram numa consciência de fracasso. Ao invés de desistirem de
encontrar saídas para sua situação pela via messiânica, isto é, por intermédio dos
seus heróis e imortais, os Ticuna vão reforçá-la, considerando-se uma população
predestinada a receber um Messias que lhes mostrará o caminho da salvação.
É por isso que nos últimos meses de 1971, quando chegou ao alto Solimões a
notícia de que um Padre Santo, fazedor de milagres, estava descendo o Solimões
vindo do Peru, a população ticuna se pôs repentinamente de alerta: os índios mais
próximos das cidades da fronteira se encarregaram de espalhar a novidade nos
povoados ticuna mais distanciados e mesmo naqueles situados no meio da floresta.
À medida que o tempo passava e que a mensagem circulava de grupo em
grupo, o seu conteúdo inicial também era ampliado e começava mais um momento
de efervescência social. Mesmo se neste momento os sentimentos eram mal
definidos e incertos, estavam persuadidos de que acontecia mais uma manifestação
dos imortais em suas vidas. Em certas áreas ticuna chegou-se mesmo a comentar
que o esperado era o próprio Yo´i (um dos heróis criadores). O grau de excitação
aumentava sempre mais e quando souberam da chegada do referido personagem
em Rondinha, no Peru, e depois em Marco e em Atalaia do Norte, muitos índios que
habitavam nos igarapés, abandonaram suas habitações e se dirigiram aos povoados
ticuna situados às margens do Solimões para assistir a sua chegada.
Nem todos os Ticuna aderiram ao movimento fundado pelo Irmão José, o
José Francisco da Cruz. Estes eram principalmente os habitantes das comunidades
protestantes batistas, sobretudo de Campo Alegre e de Betânia, totalizando cerca de
quatro mil indivíduos, e outro tanto de católicos, um certo número deles de Belém do
Solimões.
A maioria das pessoas que aderiram à Irmandade da Santa Cruz ficou
impressionada com os prodígios atribuídos ao Padre Santo que ouviram falar antes
mesmo da sua chegada ao alto Solimões. Eis alguns exemplos: como os habitantes
de um povoado o tinham expulso e ridicularizado, o Irmão José anunciou um castigo
do céu; logo uma forte tempestade varreu as casas e as plantações provocando a
morte de pessoas e de animais. Animais e pessoas também morreram em outro
povoado por causa de uma seca anunciada pelo Irmão José visto que seus
habitantes haviam-lhe negado água para beber. Numa outra ocasião, ele recusou
uma galinha que alguém lhe oferecia, dizendo: “devolva a galinha pro dono, tu robô
ela”. Isso foi confirmado, acrescentam os informantes. Conta-se também que ele
disse a uma senhora: “não se aproxime de mim, tu ta me queimando”. “A mulher
tinha matado o filho”, acrescentam os membros da Irmandade. Além disso,
comentava-se que o Padre Santo possuía estigmas, que ele não se alimentava e
que não precisava dormir.
Fora os prodígios atribuídos ao fundador no começo da sua missão naquela
região do Brasil, é preciso acrescentar que o cenário formado pela caravana
messiânica, por ocasião da sua peregrinação na região, também contribui
fortemente para o reconhecimento da sua graça carismática. Com efeito, o
espetáculo fluvial que teve lugar a partir de maio de 1972 foi triunfal: quase mil
pessoas, contando os brasileiros, peruanos, índios e não-índios, sobre canoas e
barcos, cantavam e rezavam em voz alta. Eles acompanhavam um homem magro,
de barba longa, vestido com batina, que carregava uma Bíblia e uma cruz; o cortejo
formava uma verdadeira procissão fluvial.
O caráter grandioso do espetáculo, associado à semelhança do Irmão José
que viam e escutavam com a imagem que possuíam de Cristo causou um profundo
impacto psicológico nos habitantes da região, principalmente entre os Ticuna. A
pregação de José da Cruz, fortemente escatológica, também os impressionou que
em razão de sua tradição messiânica eram sensíveis a esse tema. O Irmão José
anunciava a proximidade do fim dos tempos, convidava todos a despertarem do
sono espiritual enquanto houver tempo, e a viverem em comunidades, em torno das
cruzes, onde então encontrariam a salvação.
Assim o fundador da Irmandade da Santa Cruz, depois de partir de sua
cidade natal (Cristina, Minas Gerais) em 1962 e peregrinar em várias cidades
brasileiras e em vários países sul-americanos, alcança em 1972 a calha do rio
Solimões. Após um ano de peregrinação nas vilas e povoadas desta região – nas
quais sempre erigia uma cruz de mais ou menos cinco metros de altura, celebrava
cultos e recebia os doentes – ele atingiu o rio Içá.
Instalou-se no meio da floresta, na margem do igarapé Juí, pequeno afluente
do rio Içá, num lugar que denominou de Lago Cruzador, distante aproximadamente
250 quilômetros da maioria dos povoados de seus seguidores. Nunca mais deixou
esse lugar. Pensava edificar ali a sede espiritual de sua Irmandade e dali
comandava os seus fiéis.
Foi nesse local que ele faleceu, no dia 23 de junho de 1982, com a idade de
69 anos. Antes de falecer, teve o cuidado de legitimar o seu sucessor, um
descendente de índios Cambeba, denominado Valter Neves. Ao assumir a sua
função, este nomeou uma nova diretoria administrativa da Irmandade e levou em
frente o projeto do fundador de construir a Vila Espiritual da Irmandade de Santa
Cruz.
As cruzes bentas e/ou erguidas pelo fundador da Irmandade - ou seus
emissários - deram origem seja a uma nova dinâmica social nos povoados já
existentes, seja a novos povoados, onde os seus habitantes procuram viver de
acordo com a doutrina desse movimento religioso. A mais importante de todas as
comunidades é, sem dúvida, aquela em que o Irmão José viveu e começou a
edificar a sede da Irmandade, e onde o sucessor, seus discípulos e fiéis continuaram
a sua construção: a Vila Alterosa de Jesus.
Ainda hoje existem adeptos desse movimento religioso entre os Ticuna.
8. Organização social
A sociedade ticuna está dividida em metades exogâmicas (só se pode casar
com um membro da outra metade) não-nominadas, cada qual composta por clãs.
Estes grupos clânicos patrilineares [isto é, o pertencimento ao clã é transmitido de
pai para filho] são reconhecidos por um nome que é geral a todos, kï´a. Em
português, os índios traduziram por nação.
O conjunto de clãs ou nações identificadas por nomes de aves forma uma
metade, enquanto as demais, identificadas por nomes de plantas, formam a outra.
Mesmo os clãs Onça e Saúva (ver quadro a seguir), um mamífero e um inseto, são
associados à metade “Planta” por razões descritas na mitologia ticuna.
A condição de membro de um clã confere a um indivíduo uma posição social,
sem a qual não seria reconhecido como Ticuna. Cada clã ticuna é constituído por
outras unidades, os subclãs. Nesse sistema social, cada indivíduo pertence
simultânea e necessariamente a várias unidades sociais (metade exogâmica, clã e
subclã), uma vez que elas estão contidas umas nas outras.
Os quadros abaixo ilustram exatamente isso:
É notável que as designações em Ticuna se referem aos subclãs, guardando
para os clãs nomes regionais (alguns neologismos). Como já foi dito, as metades
exogâmicas não são nomeadas, mas aqui neste quadro foram indicadas pelos
termos "Plantas" e "Aves", fazendo alusão a um modo de classificar os clãs a partir
de classes botânicas e zoológicas.
Dentro desse sistema, há um mecanismo de nominação por meio do qual é
possível identificar o pertencimento social de cada indivíduo. O nome de um homem,
kvai´tats´inï(n)-kï, por exemplo, que significa "arara batendo asas sentada" e que se
refere a uma das qualidades da arara (que dá nome ao clã), mais especificamente
da arara vermelha (que dá nome ao subclã), faz parte do repertório de nomes
próprios que cada grupo clânico dispõe para seus membros. Assim, a simples
enunciação de um nome permite classificar seu possuidor como membro de um
certo clã e subclã e de uma das metades.
É possível notar que por trás do sistema clânico ticuna há o seguinte
encadeamento de classes: nome-qualidade do epônimo [o que dá nome ao clã, por
exemplo, a arara] ---subclã --- clã --- metade.
Os epônimos clânicos transformados em signos fornecem uma espécie de
código, um plano de referência importante para o comportamento social. Desse
modo, ao dizer o nome kvai´tats´inï(n)-kï, como no exemplo dado acima, afirma-se o
pertencimento do indivíduo a um certo clã, o que lhe impede de casar-se não só com
pessoas do seu próprio clã, mas também com aquelas de sua metade. Em
contrapartida, aqueles indivíduos que são classificados como membros da metade
oposta passam a ser cônjuges potenciais, daí a exogamia de metades característica
dos Ticuna.
Podemos introduzir um comentário elucidativo a respeito dos fundamentos
míticos do dualismo ticuna. Nos referimos aqui ao papel de Yo´i como criador da
organização clânica. Um dos mitos coletados por Nimuendajú relata que Yo´i e Ipi,
os heróis culturais, depois de apanharem um grande número de pessoas no rio (os
Ticuna recém-criados), não conseguiam distinguí-las por falta de classificação. "Mas
Yo´i separou-as, colocando as suas a leste e as de Ipi a oeste. Então ele ordenou
que cozinhassem um jacururu e obrigou todo mundo a provar o caldo. E assim cada
um ficou sabendo a que clã pertencia, e Yo´i ordenou aos membros dos dois grupos
que se casassem entre si" (Nimuendajú, 1952: 129-30). Como se vê, o mito sublinha
a exogamia de metades.
*A grafia aqui reproduzida está de acordo com aquela utilizada pelo autor, no
entanto deve-se ressaltar que, hoje em dia, a grafia adotada pelos Ticuna nas
escolas é outra.
9. Organização política
Antigos papéis políticos: tó-ü e yuücü
Nos relatos sobre o passado a guerra e a rivalidade parecem constituir fatos
essenciais da existência dos Ticuna. Ainda hoje os índios falam extensamente das
guerras entre as diferentes nações, dizendo que eram freqüentes as investidas de
um grupo sobre o outro, com muitas mortes de ambos os lados. Os mais velhos
procuram mostrar o seu desagrado face àquelas características do passado,
confrontando a convivência tranqüila de hoje em dia nas aldeias com o medo e a
belicosidade do tempo de seus avós. Cardoso de Oliveira também indica haver
ouvido notícia de tais conflitos e guerras entre as nações [grupos clânicos
patrilineares] (1970: 59).
Utilizando os relatos atuais, seria possível dizer que dentro de uma maloca
todos se subordinavam a um mesmo código de autoridade que estabelecia a
existência de somente dois papéis especializados, o tó-ü e o yuücü. O tó-ü não era
alguém cuja chefia fosse exercida genericamente em muitos contextos. A melhor
tradução seria a de um chefe para a guerra. Cada nação tinha um só chefe, que
comandava a todos quando se tratava de defender ou atacar a outra nação. O
fundamento para o reconhecimento dele - a sua condição de chefe - decorria do fato
de que "era ele que defendia os povoados, que defendia dos inimigos". A esse
personagem poderia também ser aplicado o termo daru, além do chamamento usual
de tó-ü.
Devido à sua função especializada e à sua força excessiva, o tó-ü não podia
trabalhar na roça ou pescar: "não podia gastar a força dele assim à toa, com o que
qualquer um podia fazer (...) os outros que faziam tudo para ele". Tão grande era a
sua força, que nenhuma atividade comum dava certo: "pegava um terçado para
cortar um mato e batia com tanta força que quebrava o terçado". A própria palavra
tó-ü usada para designar esse chefe militar, é utilizada para referir-se ao macaco
caiarara, animal muito admirado pelos Ticuna devido à sua grande agilidade, sendo
muito difícil de se deixar apanhar ou surpreender por outro.
Os informantes distinguem também o tó-ü, como um elemento de sua própria
tradição, de outros títulos que o branco utiliza para estabelecer chefes entre
quaisquer índios:
"O tó-ü era o chefe de Ticuna mesmo, verdadeiro... O tuxaua não era próprio
dos Ticuna. Era um chefe dos índios, assim como Mayoruna ou outros também têm".
Em outras descrições a caracterização do tó-ü como o protetor das pessoas
de sua nação se sobressai fortemente, evidenciando que a sua função não se
exerce apenas na guerra, mas também no cotidiano de malocas isoladas na floresta,
mantendo rivalidades com outras nações.
Por sua atuação em momentos cruciais à defesa ou afirmação do grupo, o tó-
ü deveria ser bastante identificado com a sua nação, sendo um símbolo e um fator
importante dessa unidade. Já o yuücü (atualmente os termos empregados são
yuücü para o feiticeiro e ngetacü para o xamã) exercia funções estritamente privadas
e pessoais, não se identificando ao grupo com a mesma intensidade que o tó-ü.
Além disso podia haver mais de um xamã ou feiticeiro por cada nação, cada um
dispondo de um prestígio diferente e lhe sendo atribuído graus diversos de
eficiência.
De qualquer modo os pajés também participavam dessas guerras e conflitos.
Geralmente a transferência de um grupo de um local para outro é explicada pela
busca de "um lugar bonito para viver", estando associada ao medo de doenças
enviadas pelo yuücü, bem como pela necessidade de fugir de epidemias e
inundações. Nimuendajú conta que um bom xamã pode afastar de seu grupo,
através de um tratamento mágico, as epidemias, anunciadas por meio de uma
auréola esverdeada no sol (1952: 105).
Não havia igualmente uma correlação estabelecida de modo rígido entre uma
dada nação e um certo território. Os terrenos de caça, pesca e coleta eram mantidos
sempre com oscilações, dependendo das pressões exercidas por outros clãs sobre
essas mesmas áreas. Existem, no entanto, alguns locais que não eram ocupados ou
reivindicados por qualquer uma das nações, embora fossem (e sejam) reconhecidos
unanimemente como ponto de origem de todos os Ticuna. É esse o caso da
montanha do Taiwegüne e do igarapé do Eware, ambos situados no alto do igarapé
São Jerônimo. Usualmente, no entanto, os direitos de uma nação a um certo
território eram sempre vinculados à existência de uma ocupação real (e mutável),
derivando de uma necessidade de utilização efetiva, bem como do empenho e da
capacidade militar em manter tais limites.
No tempo dos patrões
Com a dissolução das malocas clânicas (desde as décadas de 1910 e 1920)
e o fim das guerras entre as nações, o papel do chefe militar, o tó-ü, perdeu toda
significação e não foi mais preenchido. Os patrões [seringalistas] criaram um novo
papel político, o de tuxaua ou tuxawa, cuja definição nada tinha a ver com os limites
da tradição tribal, pretendendo se constituir em um instrumento de reforço e
favorecimento da dominação sobre os índios.
A caracterização mais freqüente usada pelos informantes deixa claro que o
tuxawa era visto pelos índios como um representante do patrão: "o tuxawa era assim
como um capataz, um chefe. Ele dizia para todo pessoal as ordens do patrão...
quando tinha que fazer algum trabalho, ele chamava, convidava... era como um
comandante". O termo capataz foi usado diversas vezes por informantes para definir
o tuxaua, indicando dessa forma que o cargo e a sua investidura eram de
responsabilidade exclusiva do patrão.
As diferenças entre o tó-ü e o tuxaua eram grandes demais para que um
elemento que ocupasse o primeiro cargo pudesse ser utilizado no segundo. Em
geral, os que foram escolhidos pelos patrões como tuxaua eram índios que
dispunham de uma certa liderança sobre alguns grupos familiares, e que embora
tivessem influência sobre os outros, não possuíam qualquer título, nome ou mandato
específico que não decorresse de sua vinculação com os brancos.
A área de atuação do tuxaua era usualmente um rio ou igarapé, mas podia
ser mais ampla para englobar toda a propriedade.
Todos os suportes para o tuxaua eram externos à tradição tribal e os seus
limites eram desconhecidos (incompreensíveis e ilegítimos) para os próprios índios.
A força efetiva que possuía, a capacidade de coerção e retaliação de que dispunha,
era apenas parte do poder real do seringalista, de seu potencial de intimidação. O
tuxaua servia como um veículo direto dessa dominação e o seu procedimento
refletia essa condição de submissão.
Novos papéis políticos - o líder do grupo vicinal e o capitão
Os grupos vicinais não são unidades estruturais,no sentido de decorrerem da
aplicação direta de princípios organizativos gerais (como seria o caso das nações
que decorrem do princípio de patrilinearidade). São, ao contrário, unidades
circunstanciais e políticas, que resultam de escolhas individuais praticadas por seus
integrantes. A constituição e a continuidade de um grupo vicinal não podem ser
deduzidas da operação automática de regras preferenciais de casamento, de
residência, ou de descendência. Em certo sentido correspondem a criações
independentes de alguns indivíduos que, por capacidades reconhecidas, conseguem
polarizar em torno de si os seus parentes mais próximos, para isso manipulando
com as regras de residência e incentivando certas escolhas matrimoniais. A
formação de um grupo vicinal exige o encontro dessas habilidades e interesses por
parte de um (ou mais) líder(es), com a sua aceitação pelos demais. Implica ainda na
cristalização de uma preferência dos seus membros pela vida em grupo e com
atividades de cooperativas, por contraste à condição de uma família isolada.
Em princípio qualquer chefe de família dentro de um grupo vicinal pode
abandoná-lo no momento que quiser, indo estabelecer-se com os seus em outra
localidade ou mudando-se para outro lugar dentro da mesma área. A sua
permanência é, de fato, um ato de escolha, que implica uma avaliação positiva da
cooperação nas atividades de subsistência, de estratégias econômicas acionadas,
de um relacionamento harmonioso, da partilha de costumes, predileções e crenças.
O sustentáculo dessa unidade é dado pela existência de um líder que consegue
elaborar fins comuns, mobilizar os meios adequados, e dar um certo nível de
satisfação aos componentes do grupo, evitando o surgimento de antagonismos
insuperáveis.
O grupo vicinal não possui uma marca específica que o visualize, nem foi
encontrada na língua Ticuna uma expressão que caracterize especificamente essas
unidades sociais, não tendo notícia igualmente de algum título usado por esse chefe
de grupo vicinal.
A função do líder do grupo vicinal é tanto a de comunicar-se com estranhos e
civilizados (não-índios), representando os membros de seu grupo perante qualquer
autoridade (capitão, chefe de posto, militares, comerciantes, professores,
missionários, etc), quanto a de organizar a cooperação entre os vários grupos
domésticos que habitam próximos uns dos outros. Isso se manifesta, por exemplo,
nas atividades econômicas, religiosas e em algumas tarefas comunitárias, como nos
ajuri.
A fonte de autoridade do líder de grupo vicinal é o fato de agir de acordo com
o consenso do grupo, de pôr em execução medidas e decisões que os outros
julguem acertadas. Agindo sem o apoio do grupo, porém, ele não dispõe de poder
algum para coagir qualquer indivíduo, exceto suas qualidades pessoais. Dentro do
grupo, e mesmo contanto com o seu apoio, ele não possui um poder coercitivo
singular e especializado. Se um indivíduo do grupo apresenta conduta desviante e
reputada como errônea, o máximo que o líder do grupo local pode fazer por si só é
procurar aconselhá-lo e demovê-lo de manter suas atitudes.
É importante perceber que a existência de um líder para o grupo vicinal não
implica na negação da autoridade por parte do chefe de cada segmento familiar.
Dentro de cada casa e nas questões relativas aos membros de sua família, esse
chefe de família tem reconhecida uma enorme autonomia.
O papel do capitão tem seus precursores, como já anotava Nimuendaju
(1952:65), no tuxaua no Brasil e no curaca no Peru. Hoje em dia esse último termo é
quase inteiramente desconhecido no Brasil. Os poucos que o utilizam, o fazem com
uma tradução bastante ambígua para o português algumas vezes como capitão,
outras como capataz. Nos últimos anos também o termo tuxaua caiu em desuso, o
significado mais freqüente que lhe é dado é o de capataz e está sempre associado à
idéia de um preposto do patrão.
O ponto de distinção entre tuxaua e capitão parece estar ligado ao seguinte
aspecto: o primeiro representa diretamente o patrão seringalista, enquanto o
segundo recebe um reconhecimento por parte do governo brasileiro. O uso da farda
nesse sentido é um fator básico de separação, marcando a conexão do capitão com
um outro poder, diferente daquele diretamente emanado dos seringalistas.
Para tentar uma compreensão do papel de capitão é necessário fazer
referência a um outro papel também presente nos esquemas administrativos de
atuação do órgão tutelar: o de inspetor, encarregado ou chefe de Posto. O capitão é
um instrumento de comunicação e controle acionado pelos funcionários do antigo
SPI (Serviço de Proteção aos Índios).
A fonte última do poder do capitão é sempre o representante local do órgão,
que reitera ou retira o seu apoio ao capitão, de acordo com a avaliação que tem de
seu desempenho no cargo. Quem escolhe o capitão é de fato o chefe do Posto e
assim esse indivíduo fica geralmente encarregado de transmitir aos índios as
exigências, proibições ou propostas emanadas dos civilizados que o empossaram e
titularam. Uma de suas funções é assim se constituir em fator da comunicação
regular entre civilizados e índios: ele procede como um tradutor e mensageiro,
ouvindo o discurso dos primeiros, traduzindo-o para o universos dos costumes e da
língua nativa, divulgando-o entre os índios. Para os índios (e para o próprio capitão)
a mensagem do capitão expressa necessariamente o ponto de vista da
administração, concorde ou não a mensagem com as idéias pessoais do capitão.
O capitão, porém, não somente transmite a mensagem, mas também procura
executar as determinações nela contidas; para isso atua normalmente na aldeia
como árbitro para os conflitos, estabelecendo punições e prêmios, alocando
responsabilidades entre seus liderados.
Na realidade para a ótica dos índios uma mensagem impositiva, perante a
qual não existe possibilidade de rejeição ou de reformulação, é identificada através
do meio pelo qual ela é expressa, anunciada formalmente pelo capitão e proveniente
dos civilizados. Toda mensagem que satisfaça a essa praxe é classificada e dita
como uma ordem, sendo tomado como implícito que o capitão não está somente
comunicando algo, mas ainda compelindo a aceitar algo.
10.Atividades produtivas
Os Ticuna praticavam o cultivo de espécies nativas como a macaxeira, o cará,
uma espécie de cana-de-açúcar e outros tubérculos. Antigamente, com uma
alimentação baseada na carne de caça, a pesca tinha uma importância mínima e era
praticada com uma tecnologia de cercados e envenenamento dos peixes com o
sumo do timbó (Oliveira, 1988). Essa situação, no entanto, se inverteu a partir da
ocupação das várzeas do Solimões. Hoje, a pesca é uma das atividades produtivas
mais importantes para os Ticuna.
Cada família ticuna possui sua roça e a considera de sua propriedade. Mas
não se trata de propriedade da terra, nem mesmo de propriedade coletiva. Nas
roças da família trabalham, em geral, o pai, sua esposa e os filhos mais velhos que
ainda não são casados. No entanto, os filhos homens, maiores e solteiros, poderão
ter uma roça própria quando casarem. Os mais idosos têm também roças
independentes de seus filhos e genros, mesmo quando moram na mesma casa.
Quando mais de uma família vivem em uma mesma casa, elas costumam trabalhar
separadas, cada uma em sua respectiva roça.
Além da mão-de-obra familiar, os Ticuna contam com uma outra ajuda na
agricultura por parte de parentes e amigos. São os ajuri, estruturados sobre os
grupos vicinais, que são realizados com freqüência em todas as aldeias. Em um
ajuri, o dono da roça é responsável pela comida e bebida dos seus convidados. Ele
prepara o pajuaru, bebida fermentada feita de mandioca ou macaxeira, e providencia
peixe e farinha para todos os participantes. Ao terminar o serviço, os participantes
vão à casa do dono do ajuri, onde passam a noite em cantos e danças.
O ajuri pode ser realizado em qualquer etapa da produção, bastando que o
dono da roça necessite da ajuda dos integrantes de seu grupo vicinal. Existem,
portanto, o ajuri da derrubada, o da colheita, o da palha (em que os convidados
levam a palha e a trançam para a cobertura da casa do dono do ajuri), o da canoa
etc. O trabalho que aquela família demoraria vários dias para fazer é terminado em
uma manhã de trabalho conjunto dos parentes e vizinhos.
Os instrumentos agrícolas utilizados pelos Ticuna são basicamente o terçado,
o machado, a enxada e o forno de torrar farinha. Os instrumentos de trabalho
utilizados no seu cotidiano são comprados por meio dos regatões ou nas cidades
vizinhas, principalmente em Letícia, na Colômbia. Alguns machados e fornos de
farinha foram ganhos da Funai. Pequenos comércios, instalados na própria aldeia
por moradores com mais recursos, e que vão mais vezes à cidade, também
fornecem os instrumentos necessários à produção, principalmente o terçado, que é
aquele de maior demanda.
As técnicas agrícolas dos Ticuna não são diferentes daquelas utilizadas em
todo o Vale Amazônico, que incluem a derrubada seguida da queima e coivara. As
roças de terra firme estão no centro, como eles costumam dizer. Já aquelas da
várzea são geralmente cultivadas nas ilhas e florestas alagáveis principalmente pelo
Solimões.
Os produtos mais plantados, em ordem decrescente de importância, são: a
macaxeira e a mandioca, a banana, o abacaxi, a cana e o cará, além do milho e da
melancia, no período da seca (verão), quando estas roças que são de várzea estão
sendo trabalhadas. Alguns desses produtos têm seu excedente comercializado.
Além destes, podemos ainda citar algumas frutas como a pupunha, o mapati, o açaí,
o abiu e o cupuaçu, que não são, senão raramente, plantadas. Estas frutas estão
comumente localizadas nas capoeiras, antigas roças deixadas em pousio.
A pescaria é um trabalho dos homens. A pesca conjunta é muito rara, mesmo
entre moradores da mesma casa. A grande maioria dos Ticuna costuma pescar de
caniço e flecha, e os melhores locais para a pesca são geralmente os numerosos
lagos que margeiam o rio Solimões.
Já a caça não é praticada por muitos, apesar de tradicionalmente estar
bastante ligada aos Ticuna. Utilizavam uma zarabatana que lançava projéteis
envenenados, mas hoje se valem da espingarda. As presas citadas com mais
freqüência são: o macaco guariba, o macaco prego, a cutia, o veado, a queixada, o
caititu, a anta, o mutum, o jacu, a arara, o macaco parauacu, o macaco barrigudo, a
preguiça real, o macaco caiarara e o pinhuri.
A criação de animais entre os Ticuna não costuma ser muito expressiva. A
maioria das famílias possui poucas galinhas, mas estas são criadas soltas e apenas
para a venda aos regatões e nas cidades, não sendo consumidas, assim como seus
subprodutos. Além da galinha, há ainda uma pequena criação de patos, porcos e
carneiros.
A coleta de frutas é realizada por todos da família. As frutas mais comuns nas
aldeias ticuna são: mapati (tchinhã), umari (te'tchi), ingá (pama), abiu (tao), castanha
(nhoí), pupunha (itu), cupuaçu (cupu), sapota (otere) e açaí (waira). As capoeiras
onde os índios vão colher as frutas são, em geral, localizadas nas suas antigas
roças, que deixaram em repouso, preservando as árvores frutíferas.
Os Ticuna não costumam comprar muita variedade de produtos. Algumas
famílias chegam a comprar café, bolacha, arroz, feijão, óleo (tudo em pequenas
quantidades), e algumas vezes macarrão, cebola etc. A maioria, entretanto, costuma
comprar apenas fósforo, sabão, sal, açúcar e algum querosene para suas
lamparinas. Muitos não compram nem mesmo o açúcar, e mesmo os que o fazem
compram muito pouco.
Todos esses produtos são, em geral, trazidos pelos regatões que passam
pelas localidades. Esta transação é feita normalmente a partir da troca da farinha
que produzem e das galinhas que criam. Algumas vezes, tais produtos são
comprados.
As famílias com mais recursos fazem suas compras nas cidades mais
próximas. Algumas compram em grandes quantidades para revender mais tarde na
aldeia, formando assim casas "armarinhos", com produtos como pilhas ou linha de
costura.
11.Dieta alimentar
A dieta alimentar é composta basicamente de peixe com farinha de mandioca.
O preparo do peixe, quase diário, é feito principalmente de duas formas. Os
diferentes tipos de peixe são cozidos (o seu caldo é bastante apreciado por todos).
Depois de comer o peixe cozido com muita farinha de mandioca, os Ticuna
costumam tomar vários pratos do caldo, como se fosse uma sopa. Também é muito
comum fazer o peixe assado (moqueado) e comê-lo acompanhado de um pratinho
de sal colocado ao lado, onde todos molham o dedo.
A farinha de mandioca é consumida torrada e muitas vezes misturada ao que
eles chamam de vinho de açaí, um suco feito desta fruta. Outro importante
componente da alimentação ticuna é a banana. O mingau de banana é bebido como
um suco bastante grosso. A banana assada na brasa é também muito utilizada,
assim como frita. Devido à pequena expressão da caça na dieta desse povo, não há
descrições do preparo de todas as carnes.
A carne de queixada, assim como a da anta e a do caititu, costuma ser
cozida. A carne de jacaré, também apetitosa, costuma ser preparada do mesmo
modo que os peixes. Há ainda dois modos diferentes de se preparar os peixes, não
tão comuns quanto aqueles já descritos. São eles a pupeca (uma espécie de
trouxinha preparada com a folha de bananeira onde é assado o peixe) e a mujica ou
massamoura (uma massa de banana amassada e apimentada com pedaços de
peixe desfiados).O artesanato é, em geral, responsabilidade da esposa de uma
família ticuna. Quase a totalidade das mulheres sabe fazer o tipiti (instrumento
utilizado para espremer a massa de mandioca), o pacará (cesto com tampa), o aturá
(cesto cargueiro), a maqueira, a peneira, colares e alguns outros tipos de artesanato.
A maioria desses artefatos, entretanto, não é feita para a venda, mas para uso
doméstico. As famílias que vendem algum tipo de artesanato o fazem aos regatões
ou nas cidades mais próximas, mas isso não ocorre com muita freqüência.
Semelhante ao que ocorre com a venda de frutas nas aldeias mais próximas à
cidade, a venda de artesanato é mais intensa.
12.Artes
A variedade e riqueza da produção artística dos Ticuna expressam uma
inegável capacidade de resistência e afirmação de sua identidade. São as máscaras
cerimoniais, os bastões de dança esculpidos, a pintura em entrecascas de árvores,
as estatuetas zoomorfas, a cestaria, a cerâmica, a tecelagem, os colares com
pequenas figuras esculpidas em tucumã, além da música e das tantas histórias que
compõem seu acervo literário.
Um aspecto que merece atenção é o acervo de tintas e corantes. Cerca de
quinze espécies de plantas tintórias são empregadas no tingimento de fios para
tecer bolsas e redes ou pintar entrecascas, esculturas, cestos, peneiras,
instrumentos musicais, remos, cuias e o próprio corpo. Há ainda os pigmentos de
origem mineral, que servem para decorar a cerâmica e a “cabeça” de determinadas
máscaras cerimoniais.
Ao longo dos quase quatrocentos anos de contato com a sociedade nacional,
os Ticuna mantêm uma arte que os singulariza etnicamente, e as transformações
constatadas em alguns itens de sua produção material raramente acontecem em
detrimento da qualidade estética ou técnica das peças. Em certos casos, ao
contrário, as inovações vieram beneficiar a aparência dos artefatos – especialmente
aqueles destinados ao comércio artesanal – tornando-os mais vistosos e com
melhor acabamento.
Para os Ticuna, a raiz matü designa todo o tipo de decoração ou “enfeite”
aplicado na superfície dos objetos ou do corpo, bem como as manchas, malhas ou
desenhos encontrados na pele ou couro de certos animais. Além de ser adotado
para nomear os motivos que resultam do cruzamento de fios ou talas ou os
desenhos pintados sobre as entrecascas, papel e outros suportes, esse termo é
também usado para designar a escrita introduzida com a escolarização.
Como suportes de decoração há, no âmbito do trançado, os cestos com
tampa, as peneiras e os tipitis, cuja manufatura cabe às mulheres. Outro conjunto de
motivos encontra-se nas redes, tanto nos exemplares fabricados para venda como
nos de uso doméstico. São motivos que resultam de uma técnica complexa que
exige da tecelã grande conhecimento, experiência e atenção, adquiridos após um
longo período de aprendizado.
A tecelagem está intimamente ligada à mulher. A fabricação de fios é uma
das primeiras tarefas desenvolvidas pelas meninas e na adolescência a importância
dessa atividade ganha uma expressão ritual. Durante o período de reclusão a
menina moça, worecü, dedica-se a trabalhos em tucum, especialmente à torção de
fios, que são enrolados em forma de “flor”, de modo diferente dos novelos circulares
vistos usualmente.
A confecção da cerâmica é tarefa preferencialmente feminina, mas os
homens também costumam exercê-la. Outro suporte que possibilita o prazer de
desenhar e colorir são os painéis feitos de entrecasca de certas espécies de Ficus
ou tururi, como é denominado regionalmente. O tururi, nome dado a esse tipo de
painel, é uma invenção recente e surgiu do reaproveitamento de técnicas e
matérias- primas tradicionalmente empregadas na manufatura de máscaras. Os
tururis são pintados exclusivamente para fins comerciais. Os especialistas
reconhecidos na arte de pintar o tururi são os homens, em sua maioria jovens ou de
meia-idade.
O elenco de figuras desenhadas é infinito. Há uma marcada preferência pela
representação de animais (onça, jabuti, cobra, borboleta, anta, jacaré e várias
espécies de aves e peixes), que em alguns casos vêm combinados com elementos
da flora ou com figuras antropomorfas.
Na esfera ritual, os suportes mais representativos da arte gráfica são as
máscaras, os escudos, as paredes externas do compartimento de reclusão da moça-
nova e o corpo. Na confecção das máscaras, os Ticuna utilizam como matéria-prima
básica entrecascas de determinadas árvores e os motivos ornamentais podem estar
distribuídos pela vestimenta inteira. Na parte superior ou “cabeça”, a decoração
serve para salientar as feições da entidade sobrenatural, mas é nas entrecascas
com as quais cobrem o corpo que se observa um maior número de desenhos.
A confecção e o uso das máscaras são de domínio dos homens, que também
se encarregam da feitura de grande parte dos objetos rituais, como alguns adereços
da worecü, os instrumentos musicais, o recinto de reclusão, os bastões esculpidos
etc.
A pintura da face, por sua vez, pode ser realizada por ambos os sexos e é
empregada hoje em dia apenas durante os rituais, por todos os participantes,
inclusive crianças. Essa pintura, feita com jenipapo, já no primeiro dia da festa, tem a
função social de identificar o clã ou nação, como dizem os Ticuna, de cada pessoa.
É possível detectar em alguns ornamentos faciais uma certa similaridade com a
natureza, ou seja, com os animais e as plantas que dão nome aos clãs. Além da
função social de especificação do clã, pintar-se na festa é um ato obrigatório. A
decoração corporal das jovens e crianças iniciadas, por sua vez, é realizada
segundo normas rigidamente estabelecidas.
A aptidão e a sensibilidade ticuna para a arte relevam-se agora em novos
materiais e formas de expressão plástica e estética, como as pinturas em papel
produzidas por um grupo de artistas que formam hoje o Grupo Etüena. Segundo a
mitologia ticuna “Etüena é a pintora dos peixes. Ela sentava na beira do rio
esperando a piracema passar. Ela então pegava cada peixe e pintava, dando uma
cor que ficava para sempre”. Esse grupo nasceu no contexto dos cursos de
formação ministrados pela Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngües
(OGPTB), em que a arte teve um espaço privilegiado no programa curricular.
13.Educação
A Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngües (OGPTB), criada em
dezembro de 1986 e constituída juridicamente em 1994, atua numa extensa área
formada pelos municípios de Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença,
Amaturá, Santo Antônio do Içá e Tonantins, na região do alto rio Solimões (AM). Ao
longo de quase 20 anos, a OGPTB tem sido uma importante referência para os
professores ticuna e, mais recentemente, também para os professores de outras
etnias que habitam a região, como os Cocama e os Caixana.
Sua importância está relacionada ao desenvolvimento de projetos e
programas de educação bilíngüe (Português e Ticuna), com destaque para a
titulação de professores no nível médio e a oferta de cursos de especialização em
educação indígena, iniciativas que vêm suprindo a falta de ações públicas de
formação específica por parte dos órgãos governamentais em todos os níveis. Os
cursos são desenvolvidos no Centro de Formação de Professores Ticuna-Torü
Nguepataü, na aldeia de Filadélfia (Benjamin Constant), com 481 professores
indígenas matriculados nas diferentes modalidades.
Essa capacitação tem contribuído para a criação de novos níveis de ensino
nas escolas indígenas localizadas na área de atuação da OGPTB e um substancial
crescimento do número de alunos, revertendo o quadro de exclusão escolar
observado em décadas passadas, reduzindo a necessidade de deslocamento de
jovens para as escolas da cidade ou mesmo a interrupção dos estudos. Se
tomarmos como referência as escolas ticuna situadas nos cinco primeiros
municípios citados, constatamos que, em 1998, havia 7.458 alunos, com apenas 841
nas classes de 5ª a 8ª série, ao passo que em 2005 o censo escolar apresentava um
total de 16.100 alunos, dos quais 4.580 encontravam-se nas classes finais do Ensino
Fundamental e nos cursos de Ensino Médio.
Outro aspecto importante foi a substituição gradativa dos docentes não-índios
por professores ticuna, os quais assumiram todas as classes de 1ª a 4ª séries,
atuando também nas séries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, onde
compõem cerca de 50% do quadro docente. As escolas municipais são dirigidas por
professores ticuna, que também desempenham em alguns municípios atividades de
supervisão e coordenação de pólos. Existem 118 escolas municipais e duas
estaduais.
A partir de 2002, as iniciativas da OGPTB começaram a ter a participação dos
demais grupos étnicos do alto Solimões, principalmente pela inserção dos
professores cocama, caixana e cambeba nos cursos de formação e nos encontros
que objetivam discutir as políticas educacionais na região. Tendo como referência a
mobilização dos Ticuna por uma educação escolar adequada a seus interesses e
realidades, esses professores, com apoio de suas respectivas organizações, vêm
lutando para implementar uma nova escola em suas comunidades e, ao mesmo
tempo, obter o reconhecimento das prefeituras municipais.
Para os Ticuna, assim como para outras etnias, há uma expressiva demanda
pelo ensino superior. Existe, de um lado, a necessidade de atender às exigências
legais para a formação dos professores e, de outro, a necessidade de atendimento
da demanda escolar que se amplia da 5ª a 8ª série e ensino médio. Dessa maneira,
a formação específica de nível médio já não era suficiente, o que levou a OGPTB a
criar o projeto do curso de licenciatura a partir de um longo processo de discussões
com professores e lideranças indígenas.
Para realização do Curso de Licenciatura para Professores Indígenas do Alto
Solimões, a OGPTB buscou a parceria com a Universidade do Estado do Amazonas
(UEA) e apresentou a primeira versão do projeto em abril de 2004. O projeto foi
aprovado no âmbito da UEA em 2005, e em julho de 2006 foi iniciada a primeira
etapa. O curso destina-se a 230 professores ticuna, dispondo de 20 vagas para
professores cocama, caixana e cambeba.
Já foram desenvolvidas quatro das dez etapas previstas no projeto, e as aulas
são ministradas no Centro de Formação de Professores Ticunas durante as férias
escolares.A atuação da OGPTB tem contribuído para uma maior autonomia dos
professores e comunidades na condução do processo educacional em suas escolas
e no entendimento da escola como espaço de produção de saberes, de reflexão e
ação política, de proteção do território e defesa dos direitos sociais, de promoção da
saúde, de valorização da língua materna e do patrimônio cultural.
Assim como outras organizações indígenas do país, a OGPTB luta pelo
reconhecimento e cumprimento da legislação de educação escolar indígena na
região do alto Solimões. Embora enfrente dificuldades de toda ordem - reiterada falta
de reconhecimento, descaso, discriminação -, a persistência e a incansável
mobilização dos membros dessa organização têm permitido superar inúmeros
obstáculos e desafios para fazer valer os direitos dos povos indígenas de atuarem
com autonomia na condução de seus projetos, de suas escolas e de seus propósitos
por melhores condições de vida.
14. MEDICINA TRADICIONAL
Os métodos de cura utilizados pelos Ticuna eram feitos através do uso de ervas
medicinais, cultivadas ao redor das casas. Foram encontradas ervas usadas contra
mordida de cobra, diarréia, feridas, dor de ouvido e conjuntivite. Para mordida de
cobra venenosa os Ticuna aplicam um líquido preparado da raspagem de uma
planta chamada tapeari-ei. O bulbo de uma planta cultivada, dayaa’ari-e, raspada e
feita em água fria, é usado contra a diarréia e a raspagem de uma raiz de etimaa,
um cipó fortemente enraizado é aplicado da mesma maneira para a conjuntivite.
Maioretnia da Amazônia brasileira, conta com uma população de 20.135 indivíduos,
que ocupam cerca de 70 aldeias às margens do rio Solimões, no Estado do
Amazonas. Outra parte do grupo vive no Peru. As meninas, quando ficam
menstruadas, são submetidas a um ritual de iniciação, que sempre acontece na lua
cheia, representando a bondade, a beleza e a sabedoria. Nesta festa, os índios
fabricam máscaras de macacos e monstros e enfeites para as virgens. Um dos
índios usa uma máscara com cara de serpente e incorpora o espírito do principal
personagem do ritual, um monstro que vivia na água. Durante os festejos, o monstro
faz gestos obscenos que divertem a tribo. Ele também ronda o cubículo onde fica a
menina, batendo com um bastão no chão. Durante três dias e três noites, essa
garota é protegida por duas tias que aproveitam o tempo dando conselhos de como
ser uma boa mulher Tikuna: respeitar o marido, ser ativa e trabalhadeira.
Com uma história marcada pela entrada violenta de seringueiros, pescadores e
madeireiros na região do rio Solimões, foi somente nos anos 1990 que os Ticuna
lograram o reconhecimento oficial da maioria de suas terras. Hoje enfrentam o
desafio de garantir sua sustentabilidade econômica e ambiental, bem como qualificar
as relações com a sociedade envolvente mantendo viva sua riquíssima cultura. Não
por acaso, as máscaras, desenhos e pinturas desse povo ganharam repercussão
internacional.
(2014, 11). TICUNA. TrabalhosFeitos.com. Retirado 11, 2014, de
http://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/Ticuna/53472461.html
15.HOMOSSEXUALISMO
KÁTIA BRASILda Agência Folha, em Tabatinga (AM)
Entre os índios ticuna, a etnia mais populosa da Amazônia brasileira, um grupo de jovens não quer mais pintar o pescoço com jenipapo para ter a voz grossa, como a tradição manda fazer na adolescência, nem aceita as regras do casamento
tradicional, em que os casais são definidos na infância.
Esse pequeno grupo assumiu a homossexualidade e diz sofrer preconceito dentro da aldeia, onde os gays são agredidos e chamados de nomes pejorativos como "meia coisa". Quando andam sozinhos, podem ser alvos de pedras, latas e chacotas.
Índios gays são alvo de preconceitoNa frente, Manuel Guedes, pai dos índios Marcenio Guedes (de branco) e Natalício (ao fundo, de azul), que assumiram ser gays
Três ticunas da aldeia Umariaçu 2, na região do Alto Solimões, em Tabatinga (1.105 km de Manaus), contaram para a Folha como é a vida dos homossexuais indígenas na fronteira com a Colômbia e o Peru.
A população ticuna no Alto Solimões soma 32 mil índios. Na aldeia Umariaçu 2, que fica no perímetro urbano de Tabatinga, vivem 3.649 índios ticunas, 40% com menos de 25 anos. Entre esses jovens, pelo menos 20 são conhecidos como homossexuais assumidos.
Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), há registros de gays também nas aldeias de Umariaçu 1, Belém do Solimões, Feijoal e Filadélfia.
"Isso é novo para a gente. Não víamos indígenas assim, agora rapidinho cresceu em todas as comunidades. São meninos de 10, 15 anos", disse Darcy Bibiano Murati, 40, que é indígena da etnia ticuna e administrador substituto da Funai.
Marcenio Ramos Guedes, 24, e seu irmão, Natalício, 22, pintam o cabelo e as unhas e fazem as sobrancelhas. Trabalham como dançarinos em um grupo típico ticuna que se apresenta nas cidades da região.
Marcenio diz que brigava muito com o pai e que saiu de casa aos 15 anos. "Fui para Tabatinga trabalhar como "empregada doméstica". Eu fazia comida, passava roupa, lavava."
Ao voltar para casa, uma construção de madeira com dois cômodos, onde mora com quatro dos sete irmãos e os pais, Marcenio resolveu cuidar dos afazeres domésticos. O grupo de dança foi criado em 2007, com apoio da família.
"Não sofro discriminação por dançar, todo mundo respeita, assiste. Sofro preconceito [de outros jovens] na aldeia. Se falo alguma coisa, querem me bater, jogar pedra, garrafa."
Natalício diz que tem medo de andar sozinho. "Vou sempre com um colega", afirma.
O ticuna Clarício Manoel Batista, 32, é professor do ensino fundamental e estuda pedagogia na UEA (Universidade Estadual do Amazonas), em Tabatinga. Ele foi um dos primeiros a assumir a homossexualidade na aldeia Umariaçu 2. "Alguns me discriminam --indígenas daqui, não-indígenas também. Fico calado, não falo nada. Eu não ligo para eles", diz.
Clarício disse que contou aos pais que era gay aos 16 anos. "Meu pai não me maltratava porque sempre gostei de estudar, sempre fiz tudo em casa: limpeza, comida, lavar louça."
Questionado se foi pelo trabalho doméstico que ganhou respeito em casa, ele confirmou. "Na verdade, eles [os pais] não queriam que eu fosse assim [gay]. Eles não gostam. Dizem: ninguém gosta desse jeito."
O antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) escreveu que há registros de homossexualidade entre índios desde ao menos o século 19. Em Mato Grosso, ele estudou os cadiuéus, que chamavam o homossexual de kudina --que decidiu ser mulher.
O cientista social e professor bilíngüe (português e ticuna) de história Raimundo Leopardo Ferreira afirma que, entre os ticunas, não havia registros anteriores da existência de homossexuais, como se vê hoje.
Ele teme que, devido ao preconceito, aumentem os problemas sociais entre os jovens, como o uso de álcool e cocaína.
FONTE: http://religiaoeveneno.org/discussion/1588/indios-gays-sao-alvo-de-preconceito-no-am
NA FRENTE, MANUEL GUEDES, PAI DOS ÍNDIOS MARCENIO GUEDES (DE BRANCO) E NATALÍCIO (AO FUNDO DE AZUL), QUE ASSUMIRAM SER HOMOSSEXUAIS.
16.CONCLUSÃO
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Rapazes ticuna pintando tururi. Foto: Jussara Gruber, 1979
Índio Ticuna durante ritual, Belém do Solimões,
Terra Indígena Évare I, Amazonas. Foto: Frei Arsênio Sampalmieri, 1979