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Arcano Dezenove

Arcano dezenove renata bomfim

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Livro de poemas da escritora Renata Bomfim

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Arcano Dezenove

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Copyright 2010 by Renata BonfimTodos os direitos resevados. A reprodução de qualquer parte desta obra, por qualquer meio, sem a autoriza-ção do autor ou da editora, constitui violação da LTDA

9610/98.

Editor: Christoph Schneebeli

Capa e Projeto Gráfico: Roberto Nicolau

Revisão: José Augusto Carvalho

Fotografia: Jove Fagundeswww.Jovefagundes.com.br

Modelos: Canino: Chicão

Humana: a poeta

Catalogação:Dados internacionais da Catalogação-na-Publicação (CIP)

Bonfim, RenataArcano Dezenove/Renata Bonfim - Vitória: Helvética Produções Gráficas e Editora, 2010.98 pag.

ISBN 978-85-8809-71-71- Arcano Dezenove. Título

CDD: B869.1

(2010)

HELVÉTICA PRODUÇÕES GRÁFICAS E EDITORA LTDARua Antonio Aleixo, 645 - Consolação

CEP: 29050-150 - Vitória - ESTelefone: (27) [email protected]

Contato com a autora: [email protected]

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Renata Bonfin

Arcano Dezenove

Novembro 2010

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Sumário:

ÍNDICE

PREFÁCIO: José Augusto Carvalho

ARCANO DEZENOVE

MEMÓRIA

QUINTESSÊNCIA

TRANSIÇÃO

RITUAIS

POSFÁCIO: Fábio Mário da Silva

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PARA TODAS AS PESSOAS QUE ACREDITAM...

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11 PREFÁCIO

17 Poeta adâmico

18 Dionísio

19 O poeta

20 Guernica Hoje

21 Despertar

22 Eu canto a pátria-planeta

23 Nó na garganta

24 Há vagas

26 Poesia I

26 Poesia II

26 Eu e o mar

27 Nossa Senhora dos raios multicoloridos

28 Um dia após o outro

29 ?

30 Gênese compartilhada

30 Tara moderna

31 Nada

32 Poemas

33 A doçura da carne

34 Humanoide

ÍNDICE

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35 Arcano dezenove

36 Memória38

37 Cicatriz

38 Post Mortem I

39 Post Mortem II

40 Poema inacabado

41 Versos de orgulho e solidão

42 Gato

43 Canção Para Rubén Darío

44 Saturnais: Mito de origem

45 Florbela em canto

46 Entre a luz e a escuridão

47 Orgânica

48 Despedida

50/51 Não-materialidade

52 Quintessência

52 Transluzir

53 Confissões de uma apaixonada

54 Lilás

56 A fúria de Eros

57 O gato rei

58 Carnaval

59 Terra Santa

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60 Brutal singeleza

61 Onde os tempos se encontram

62 Efeito Borboleta

63 Jesus Cósmico

66 Antes do Éden

67 Gente da era da Luz

68 Humanidade Nata

70 Prece

71 Rituais

71 Desejos de feiticeira

72 Terra

72 Semear

73 O açafrão e seu destino

74 Impotenza strumentale

75 Barba Azul

76 Filtros mágicos

77 Banho de limpeza

78 Patuás

79 Cerimônia do chá

80 Cadê o uru?

81 Poesia vegetal

81 Imago

83 - POSFÁCIO

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10 Renata Bonfim

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11Arcano Dezenove

PREFÁCIO

Renata Bomfim não é estreante. Seu primeiro livro de poemas, Mina, foi bem recebido pelo público capixa-ba. Agora, com este Arcano Dezenove, ela se renova, revelando sua verve, seu talento, sua cultura, sua eru-dição, sua enorme sensibilidade. A cultura de uma pessoa se caracteriza pela capacidade que ela tem de multiplicar as conotações e de mostrar novas leituras do mundo. E é o que faz Renata Bomfim, revelando-nos sua leitura múltipla do mundo. E mostra, sem pedantismo, com simplici-dade, sua visão de Bakhtin, de Ítalo Calvino, de Cecí-lia Meireles, de clássicos como Virgílio e Plínio, e não apenas nas epígrafes bem-escolhidas. Assim, os versos seguintes, que ilustram o conceito de polifonia, numa releitura de Bakhtin: “As letras que, a duras penas, saltam dos dedos para o papel condensam vozes.” (poema “Poemas”) “Será que a poesia do século XVI era minha?” (poema “?”)Ou esta afirmação pungente que lembra Cecília Mei-reles ou Marly de Oliveira: “Não sou alegre nem triste, apenas sou!” (poema “Jesus Cósmico”)Ou quando define o poeta, numa alusão à famosa dicotomia de Forster, que, em Aspectos do romance, classificou os personagens de ficção:

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12 Renata Bonfim

“Este ser esquisito, redondo e plano...” (poema “O poeta”) Aliás, esse poema – “O poeta” – é uma das muitas pérolas deste livro extraordinário. Veja-se o seguinte verso: “Ele [o poeta] necessita beber da alma alheia.” O que lembra Newton Braga, em Lirismo per-dido, quando diz que a sensibilidade do poeta é uma antena delicadíssima que capta as dores do mundo e que o “fará morrer de dores que não são suas”. Há ao longo do livro versos que se constituem em pensamentos de elevado sabor, em que se mesclam o social, o político e o lírico: “Dor dentro e fora do tempo que me atinge e te atinge, e fingimos que não a temos. Letargia ignorante: Nem pão nem circo. Guernica atualiza-se:Iraques, Palestinas, Brasis (...)” (poema “Guernica hoje”)“(...) este ser da confusãoperdido no mar da indiferença,ansiando por salvação,compaixão,benevolência;por um gesto simples,um sorriso,para aplacar a sede de amorque se sente na ilha secaem que cada um de nós se transformou.”

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13Arcano Dezenove

(poema “Tara moderna”)“O alimento é comum:Miséria, angústia, esperança...” (poema “Despertar”)

“O silêncio é a voz que sonha e não realiza.” (poema “Brutal singeleza”)Ao falar de uma prostituta, a definição do que há de mais puro na impureza: “Dentro de uma caixa preta, Seu coração blindado. A boca é virgem, não beija, É da vida que não é fácil Que é pureza de alma Mesmo que padeça sob O olhar enlameado.” (poema “Há vagas”) Se fiz tantas citações, foi não apenas para mos-trar ao leitor o encanto desta obra de Renata Bomfim, para quem a poesia “desce redondillha / garganta abaixo” (poema ”Poeta II”), mas também para sentir a alegria e o prazer de repetir essas belezas. Se casual-mente privei o leitor do prazer da surpresa de descobrir por conta própria, pelo menos fiz com que repetisse, em sua leitura, os momentos que revelei aqui de puro encantamento. Outros aspectos há a ressaltar neste livro, além do lirismo, do social, do político: a fé, a religiosidade. Os poemas “Nossa Senhora dos Raios Multicolori-

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dos”, “Post Mortem I” e “Post Mortem II” são sua profissão de fé, “não a fé que só enxerga $” (poema “Gente da Era da Luz”), mas a fé sem a qual, nada germina (poema “Semear”), a fé de quem despetala flores uma a uma “como quem ama pela primeira vez” (poema “A doçura da carne”). Acrescente-se a isso a linguagem saborosa, com jogo de antíteses (“Vamos discriminar sem discrimi-nação”, “Somos Adão e Eva sem o sermos” – poema “Antes do Éden”), e paronomásias (tememos/treme-mos; escorre/corre – “Mesmo lugar”; voz e vez –“Antes do Éden”; pavor/porvir – “Cicatriz”), numa veneração pela língua, patente no poema “Gênese compartilha-da”: “Vamos conjugar verbos,/ Formar palavras-ima-gens, (...) / Subverter o alfabeto. / Enunciar as boas novas, / Gozar nas texturas plurais / Dos domínios da sintaxe.” A fim de celebrar “os milagres da língua / que se realizam em múltiplas e / paradisíacas mira-gens.” Que o leitor se extasie com as belezas que des-cobrir neste livro. Afinal, a poesia existe em toda parte. Mas, para descobri-la, são necessárias essa sensibili-dade que só os poetas têm e a sintonia com o leitor, que só um grande livro de poemas pode proporcionar.

José Augusto CarvalhoDoutor em Letras e professor da Universidade Federal

do Espírito Santo

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15Arcano Dezenove

Como perfume que se detémno corpo que o coloca, também

a tua lembrança se detendono fundo de minha mente

não me deixará, tudo me deixa e você se detém...

(Arthur Symons)

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16 Renata Bonfim

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17Arcano Dezenove

Poeta adâmico

No paraíso da linguagem,O poeta, com desvelo, Inclina-se para amar a letra. Nesse momento, ele é Adão,Ansiando companhia, à esperaDe que a fêmea se submeta.Cometidos os pecados,Do outro lado, a pena:“Ganharás o pão com trabalho, Com o suor de tuas mãos,E também, com teus pulmões, Rins, fígado e coração."O homem se pega em desatino,A sua vida será labor e sacrifício, Mas estava escrito:Havia de ser assimPara que pudesse seguir nomeando As coisas e povoando a terra Com Abeis e Cains.

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18 Renata Bonfim

Dionísio

Á memória de Rubén Darío

Na selva sagrada os instintos afloram.Cada planta, cada bicho, o ar,tudo é vivo, tudo fala.Do verde brotammovimentos sinuosos,sussurros, risos...É a ninfa que do deus imponentebebe o vinho.Ela se torna a própria taçatransbordante de desejos.Dionísio, em desalinho, a enreda arrastando-a, furtivo, por entre a relva,para que desabroche, caprichosa e perfumada.Ela cede aos seus apelos e se deixa possuir.Seu corpo agora é fluidez entre mãos ásperas.É gazela. Impiedosa, a sua lança a transpassa.Fustigada, ela quer mais...Agora os dentes do deus a carne se adentrammarcam-na signos criados por seus chifres reluzentes.A ninfa ascende entre agonias,a selva orquestra gemidos de prazer.Em êxtase, comungam contentes.Ela reverencia o deus pagãosenhor dos seres desse reino.Depois, descansa recordando o idílio,até que a noite a cubra com seu manto de prata.

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19Arcano Dezenove

O poeta

O poeta julga-se superior e,no momento da criação, sente-se plutão,atingido por meteoritos.Ele necessita beber da alma alheia eplainar seus versos com os ventos norte e sul.Banhar-se na chuva mansa, regozijar na tempestadee dormir ao relento, onde o frio adensa;buscar veios de ouro e água doce no deserto;ser natural e urbano, humano a se desfazerem materiais vários.Este ser esquisito, redondo e plano, preto e branco, traz no sangue as linhagens de reis,de putas, de soldados e de santos.Possui grande olhos azuis e orelhas atentas, faróis que iluminam a existênciae captam sentidos no vazio, esvaziandooutros tantos.É um mago condenado.É tantos e todos que é ninguém.Bruma solitária que vagaentre pepitas de ouro e cadáveres.

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20 Renata Bonfim

Guernica hoje

Para aqueles que têm sede de justiça

Alivia-me dessa dor!Seca o sangue que escorre e corre,manchando a terra, a água e a flor.Livra-me da força do império da agonia,Livra-me do medo dessa corte maldita,consagrada à fantasmagoria,à vergonha!

Dor dentro e fora do tempoque me atinge e te atinge,e fingimos que não a temos.Letargia ignorante: nem pão, nem circo.Guernica atualiza-se:Iraques, Palestinas, Brasís,tsunamis, maremotos, terremotosHaitís, favelas, esquinas, praças escuras,instituições mesquinhas.

Nada vemos, temos ou queremos,nada de ventos, nem de brisa ou de Paz!Tememos!Trememos!

Alivia-me do grito que está preso nas entranhas!Liberta-o!Conjuga os fragmentos dessa tragédia cardeal,estranha: sem nome, sem rosto e sem norte.Revela o poder pulverizado que faz chover sangue.Alivia-me dessa dor que fede, anestesia e tem gosto de morte.

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21Arcano Dezenove

Despertar

Desperta!Acorda pleno e olha,És imagem:Traços, cores, texturas,Contornos espetaculares.Tua tribo anseia e canta,Nasce a músicaBrota a dançaCoreografia de milhares.

O alimento é comum:Miséria, angústia, esperança...Desperta!Acorda pleno e senteÉs letra!Símbolos e marcasAdornam teu corpus,te abençoam com a imortalidade.Recorda teu sonho, mito:Astros em conjunção, Rituais de vida e de morte.Pariste fantasia!A alma existe?

Desperta e ama o saber: filosofia!Desperta tudo o que dormita:Emoção, mímica, interjeição...Transita no ritmoExplode e goza num grito:Poesia!

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22 Renata Bonfim

Eu canto a Pátria-Planeta

Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria de que escrevo é a língua que por acaso de gerações nasci. (Jorge de Sena)

Eu canto a Pátria-planeta,antes que o pensamento,Divagando entre futilidades,se perca.

Pátria amada!Mãe gentil!Assim também te cantam Cainsde bocas encarniçadas.

Pátria armada!Suor, sangue, lágrimas:Salve! salve!Salve-se quem puder...

Pátria refém,Povoada por motosserras.

A minha alma anseia,ao som do mar,e a luz do céu profundo,ver brotar de ti poesia.

Já cultivamos de sobradesencanto, tristezas,soja, eucalipto e café.

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23Arcano Dezenove

Nó na garganta

Revelo-te meus sonhos mais íntimosporque são não- sonhos.Se te engulo em dias de calor e teenrolo nas cobertas da saudade no frio,é porque minhas lembranças clamamdas profundezas.Não sou especial!Sou apenas eude mãos vazias,versos translúcidos,Sou apenas eu.Opretéritoa preterida.Sou apenas euembalada por verbos- pirações,me derramando sobre o papel em fantasias enriquecidas pela paranoia.Esse nó na garganta difícil de desataré a minha vida.Sou eu buscando ar, espaço, acolhida,tentando ser gente, precisando de amor.Fazendo como cachorro pulguento,buscando dono e lambendo as feridas.

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24 Renata Bonfim

Há vagas

Um quarto e muitas cadeias,Espelhos, febres.Lá fora o letreiro avisa:Há vagas!

Ela brilha mais que o letreiroPor entre as plumas.Vestido de cetim surrado,Sorriso zombeteiro,Finge ser freira, santa, mártir.É puta.

Vende a carne flamejante,Como um joalheiro, diamantes.A oferta é especial:Fantasias e sonhos delirantes.Ela segue uma estrelaO infinito a invade.

Sonha com Hollywood,Guarda recortes de revistas.Dentro de uma caixa preta,Seu coração blindado.A boca é virgem, não beija,É da vida que não é fácilQue é pureza de almaMesmo que padeça sob O olhar enlameado.

Mulher de fumaça e de pedra;A razão bambeia.Verdadeira, é natureza.

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25Arcano Dezenove

O que dizer do amor que sente?Que é também ódio, dor, ternura...Lilases a atravessam até a medula.Ângulos oblíquos emergemde suas curvas atraentes.

Sua espinha emocional Desenha formas indecentes:Mosaico, plural...Como julgar decadenteEssa flor que resiste e brotaDo asfalto frio, inclemente?Lírio entre espinhais.

Eu e o mar

As ondas me constituemParentesco que me abismaE me pego, assim, mareada,Ansiando tons de cinza e azul Enquanto, silenciosamente,quebro na praia.

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26 Renata Bonfim

Poesia I

Poesia é a palavra dando cria,germinando,brotando edespontandoa guia.

Poesia II

O grego e o latimencharcam a minha línguacom veneno,Produzindo a poesiaque desce redondilhagarganta abaixo.

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27Arcano Dezenove

Nossa Senhora dosraios multicoloridos

A tua face, Bendita,Como posso vê-la?Como atravessar os teus portais?A minh’alma te canta e deseja,Clama pelo teu calorDo mais escuro abismo.Fazes com que eu encontre a paz.Erro por terras distantes.Te sonho infinitamente.Te busquei no mais alto das montanhasCujos picos eram branco- azuladosE lembravam aqueles que partiram sem se despedir.Clamei por teu nome, doce e secreto, Do abissal de minhas entranhas e,Nos meus pensamentos, armadilhas intangíveis,Te procurei.Meu canto, aprendiz, foi marcadoPelo ritmo da natureza.Bendita, adorada,Como posso tocar o teu manto de luzesMulticoloridas e vislumbrar a tua rara santidade? Mil sóis estão explodindo, estrelas colidem ruidosas,O caos se instaura dentro de mim.Vem plena de amor, iluminada.Eu não resistirei e serei a flor Colhida e fresca, perfumosa,à mercê de tua sábia providência.

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28 Renata Bonfim

Um dia após o outro

É como mergulhar lúcido, sem a necessidade de ar ou de terra para plantar os pés. Lançar-se infinitamente, rastejar... Ou seria nadar? Até não poder mais. Flutuar na espuma acinzentada.Entregue...É assim o ânimo, sangra violento,ri, gargalha irônico.Surpreende e estarrece essa visão.Bater os braços e as pernas,explorar, sem fôlego, o conhecido.Cansar, estar atento e relaxado,Contradizer-se e morrer,por excesso de opção.Assim o cotidiano invade a carne,um dia após o outro:mata as células, esmaga os sonhos.Nele, milagrosamente,tudo se quebra e se reconstrói,tudo, se não igual, bem parecido:um pouco mais do mesmo.Mas dos dedos brotam letrasque não se repetem jamais!Cada uma delas com consciência de si,algumas alienadas das outras, mas vivas, vibrantes e prenhes de inéditos.Letras de carne, de osso e de sangue.

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29Arcano Dezenove

?

Serão meus os versos que escrevo,ou apenas palavras- frags que conjugo e organizo?Serão estas palavras partes de mim que desconheço?A poesia que gesto é embate, é utopia, é também, filosofia: de onde vim, para onde vou?

Era eu ou a era a letra em esgarço noutros tempos?Será que a poesia do século XVI era minha?Pois as trovas são, para mim, tão familiares. Vejo rostos, sinto cheiros, dialogo com reis, rainhas, observo os elementais dando o tom à natureza.

São estes os amigos secretos da contadora de históriasque recria o próprio mundo e brinca dando voz ao cinema mudo, preto e branco e opaco da vida.Teria sido eu uma amazona, lançando palavras- se-tas buscando atingir sem pedir licença?

Serão antipoesia os sentidos desconexos buscados no mistério de ser outro?

Quem se habilita a ser eu noutro corpo?Quem ousa ser paralelo e unir versos criando super-novas?Quem arrisca a própria vida rabiscando folhas em branco,garatujando e recriando o verbo?Metapoesia.

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30 Renata Bonfim

Gênese compartilhada

Companheiro, Vamos conjugar verbos,Formar palavras-imagens,Flexibilizar rígidas frases,Subverter o alfabeto.Enunciar as boas novas,Gozar nas texturas pluraisDos domínios da sintaxe.Celebremos os milagres da língua,Que se realizam em múltiplas eParadisíacas miragens.

Tara moderna

É obsceno produzir lixo em profusão,degradando a natureza.Elogiar a razão indolente estruturada sob o signo da incerteza.

É triste ser este ser da confusão,perdido no mar da indiferença,ansiado por salvação,compaixão,benevolência,por um gesto simples,um sorriso.para aplacar a sede de amorque se sente na ilha secaem que cada um de nós se transformou.

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31Arcano Dezenove

NadaTristeza é nadaé vazioé ausência.

Voltar no tempoParar o tempoocoburacoecoespaçamento.

Longe daquilonge do agorasem lembrançasbranco totalnem eunem você.

Não saberNão querernada, nãoVárzeaCharcoLodoChão.

AtoleiroVão VácuoDespovoamento totalDeserto.

Sem fim.

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32 Renata Bonfim

Poemas

As letras que, amorosamente, coloco sobre o papelnão fazem o poema e oritmo embalado que se alterna em toquesnão lhe confere musicalidade.A minha pena guarda segredos.Ela tem um quê de mistério e maldade.Assim, o poema nasce, em parte, em lugar que desconheço.Eu também nasço dessa poesia que não é resquício de um diacomo outro qualquer oureminiscências, lembranças.As letras que, a duras penas, saltam dosdedos para o papel condensam vozese formam uma corrente, poética, que atao medo, liberta. E a palavra Insurrectatriunfa.

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33Arcano Dezenove

A doçura da carne

A carne apodrece de tanta doçura,as palavras, torrões, desenham cadeias de montes,cujos picos, cobertos de açúcar, convidam.No sangue as plaquetas enfraquecidas se rendem.Há fenda na carne, líquido carmim jorra abundante.Quem sequer imagina penetrar este ermo que me invade?Caminho só, essa é a lei. Caminho...De tanta doçura as mãos derretem,se fazem arredias frente ao Jardim.Sufoquei Íris, Lírios, Cravos, Violetas, Margaridas,de tanto desejo, embriagada pela falta.Despetalei uma a uma como quem ama pela primeira vez.Essa carne à mostra, afável de branduraestá em decomposição e exsuda licores.É a beleza revelando a sua outra face.

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34 Renata Bonfim

Humanoide

Plenos de macheza.Os humanoides repudiam o somde suas próprias letras.Criam confusões.Desejam tudo o que é vão.Estão prenhes de ambições:Sempre mais, mais, mais...

À beira de um precipício,as ilusões.Rodam perdidos:−A terra parou?

Haverá saída desse escarpado?Há face possível para esse horror?Quem cala?Escala Hishister?

“Um vulcão na Islândia explodiu.”A arrogância explodirá em breve,unindo desgraças, aproximandoseres, humanidades transformadas.Assim que a face da terraestiver condenada,os humanoides se escutarãoe aos outros também.

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35Arcano Dezenove

Arcano dezenoveSim! Despi-me de tudoNão foi fácil abrir mão da doresquecer a solidãoo banimento.

Estive olhando o marno horizonte.Uma linha perfeitacomo jamais serei.Sou tortuosa.Com esta visão,garatujei.

Tornei-me esboço, cálice.Estou pronta para receber todo o amordesde sempre, a mim, destinado:Despertar misterioso no infinitode olhos cinzentos e de sorriso largo.

Inunda a minh’alma um sol de sétima grandeza e te desejo toda, inteira, Terra amada, Santa, Natureza!Despi-me toda para recebê-la.

Veste-me de lírioslilases e caprichosos.Respiro profundamenteTe sinto mistério maior:Quasares, buracos negros, estrelastudo, tudo, tudo me leva a ti.

Estou nua, sim!E preparada para tudo o que,a partir de agora,Venha a acontecer.

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36 Renata Bonfim

Memória

Ó língua onde as línguas acabam.Ó tempo posto a prumo sobre o sentido dos corações transitórios. (Rainer Maria Rilke)

Ó felicidade de entender, maior que a de imagi-nar ou a de sentir! Vi o universo e vi os desígnios íntimos do universo. Vi as origens que o livro do Comum narra. [...] Que morra comigo o misté-rio que está escrito nos tigres.(Jorge Luiz Borges, O aleph)

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37Arcano Dezenove

Cicatriz

Marca de Caim Sua e de mimMulherColherFlorBordadoSedaCetimDiuCalcinhaSutiãMeia- calçaFilha da putaFilha da mãeClichêPavorPorvir?

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38 Renata Bonfim

Pos mortem IEstou morta, maspensem que fui viajar.Quem sabe voltei para o lugar de onde, um dia, vim.Fazer o quê? Ainda não sei.

Confeccionei bibelôs em gesso, elaborei mosaicos dos infernos,tão belos que Gaudí invejaria.Criei joias, contei histórias, pintei, bordei, toquei violão, fiz mandingas,macumbas. Aprendi dança de salão, dança do ventre, escrevi versos.

Fiz amor, fiz guerra e muita caridade,fiz o dobro de maldades...E rezei todos os dias, com a Bíbliaem uma mão e cristais e incensos na outra.Cultivei ervas e produzi patuás.

Dei graças, todos os dias.Cantei com toda a força dos pulmõeso mantra que escolhi: Obrigada, obrigada...E pela humanidade que me assoloumais “obrigadas”, e cânticos de louvor.Vivi: experiência única e irrepetível.

Post mortem “Ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. (Machado de Assis, Brás Cubas)

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39Arcano Dezenove

Post Mortem II

Amigos, não sejam mesquinhosquando eu passar destapara outra muito melhor,me levem flores e chorem bastante.Se possível, contratem carpideiras.Vocês sabem como eu gosto de uma cena.Mas, por favor, não sofram nem fiquem tristes.Experimentei da dor, da violência,da solidão, da amizade e de incontáveis alegrias.E amei, amei... não o suficiente, mas o bastante, se é que isso é possível.Não fui mais porque não quisnunca pensei no amanhãEntão, digam de mim: "Inventou muita arte e, cansada,foi dormir.”

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40 Renata Bonfim

Poema inacabado

O amanhecer está aídespontandoarrebentando na abóbada chumboDa minha catedralcontrariando aqueles que profetizarama ruína da minha vida. Carpe Diem!Sorvo até a última gota este diaHoje vou aproveitarvou ser feliz agoraEstrangular a hidraEstrapolarSer criativasem medo de erraracolher o erroe gritar bem alto"Não me importo com isso!"Vou me importarapenas com os riscosde não arriscarVou Rabiscarlambuzarvira o disco!Traduzir para a língua dos homenssonhos utópicosjamais pensados ou vistos.

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41Arcano Dezenove

Versos de orgulho e solidão

Que me julguem!Prefiro o inferno a me dobrarPrefiro a morte à sujeição,Prefiro este frio na alma.Até que tudo se abrandeSilencio a consciência.Calo completamente a voz.

Não há lamentos, nem murmúrios,Não permitirei intromissõesNos campos dos meus desejos.Nem que colham os morangosDa minha dignidade.

Recolho os sonhosguardo com cuidado.Respeitosamente espero a chuva cair.Experimento o sabor do perdãoPor serem meus os pés e as mãos Que constroem rápido o próprio buraco:Minha sepultura-solidão.

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42 Renata Bonfim

Gato

Para felinos e gatófilos

Amigo macio e misterioso,o que anima a tua essência?Qual motivação divina te fez assim:Astúcia, graça e beleza?Vens até mim e te vejo transmutado.Enxergo-te como ninguém mais.Tu és um ser alado,és gigante, tremendo, feroz...

Companheiro generoso e de boa linhagem,quais valores adornam a tua face brilhante?O que faz com que, num átimo, o tempo parepara que seu pulo seja perfeito e preciso?Observo teus bigodes elegantes etua postura altiva, interrogo-me...

Os outros não conhecem as tuas marcas,as tuas sombrase as idas e vindas de outras dimensões.Para eles és apenas linhas duras.Para mim és perfeito,És ∏.

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43Arcano Dezenove

Canção para Rubén Darío

Para Ester Abreu Vieira de Oliveira

Poeta do Azul, quem te cantará?Quem entrará na selva sagradapara desembruxar o Fauno que,surdo, já não escuta Orfeu?Quem desvendará teus mistérios? Eu? Não! A América te cantará!Não aquela, hipócrita de dentes de ouro, mas esta, a minha, a tua, a nossa América!Central nos nossos corações, periférica e excitada como os nossos sexos.

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44 Renata Bonfim

Saturnais: mito de origemAntes era Nada.E de dentro do Tudo nasceu o Sol.A grande roda brilhante se alimentava nas generosas tetas cósmicasdas mulheres galáxias, que eram, também filhas do Tudo e netas do Nada.

Gotas de leite estelar caíram,pingaram abundantes ederam forma a inúmeras raças:os Syrios, os Krianose também, a humana, de complexidade rara.

Para louvar o grande Nadae agradar ao Sol,organizavam festas que duravamsete luas.Ocasião em que essa raça, que ainda não conhecia a sabedoria,não roubava, nem matava, mascantava celebrando a vida efazia amor na alvorada.

Um banquete público era o que, ao contrário,amor traduzia, ato que refletia o lampejo da origem.E, durante a festa, essa rude criaturarevelava o que, da sua face, a rotina ocultava.De tanto arranhar a Terra e violar os Riosofendendo o grande Nada,Tudo veio ensinar-lhes a compaixão e,resgatando-os da ignorância,ensinou coisas de partículas brilhantes.Essa raça de pés sujos vive olhando para o céu,esperando voltar ao seio da mãe primordial.

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Florbela em cantoPara a Sóror Saudade.

No claustro, o silêncio ensurdece.Fado? A alma resiste e canta. Da mouraria chegam ecos de vozes distantes.Torres de marfim e vitrais formampaços adornados com lágrimas e cristais,gotas brilhantes que correm pela face das monjase são, caprichosamente, colhidaspelas mulheres e por homens que versejam em Portugal.

Ouço dizer de Princesas ornadas.De virgens pálidas e febris refletidas em vitrais espetaculares. Seus sexos são cobertos por violetas maceradasque perfumam e inebriam os pensamentos,desviando os caminhos de quem passa.Seus sonhos sensuais aquecem o frio das celas de ouro.A simplicidade de seus gestos contrasta com o tesouro: pérolas e jades que saem de suas bocas rosadas.

- Oh! Roseirais e lírios que perfumam os campos!- Oh! Árvores que guardam os ninhos dos rouxinóis,levem este canto, espalhem este odor e retornem plenos. Tudo o que vejo é santo, é vivo, causa espanto: O universo, o caos, a beleza...- Astros dispersos iluminam verbos e letras e inquietam amantes que nunca se tocaram, e despertam na memóriaimagens que insistem em ir para além de mim.

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Entre a luz e a solidão

Entre a luz e a escuridãohá um rasgo,uma fissura,por onde o tempo espia.De lá se contrai,em dores, a ternura.E já nascemos na bruteza,com um grito embargado na garganta,que, quando liberto,revela ecos de outras vidas,palavras-trama. Esomos postos entreo estro e a afasia.Sempre em busca da beleza,a alma só na arte se encontra, aprende a plasmar a terra e a si;sua ferramenta, o coração.E, para validar a existência,transforma o caos em esperança,recria, pariu a si mesma fora do tempo,nas asas da poesia.

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Orgânica

OrgânicaA mulher era verde E sem veneno.Nem a flor da laranjeira,A lavanda,O sândaloSe comparavam ao seu cheiro.Ela se comunicava Com os bichos.FotossintesementeTrocava seus fluidos Com o ambiente.Um dia, ela se abriu toda,De uma forma diferente,Ninguém entendeu nada.Mas ela estava, milagrosamente,Soltando brotos e Parindo alvoradas.

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Despedida

À memória de Lili

Você está aqui comigo,mas, aos poucos,como uma vela brilhante, se apaga...Quanta luz você fez, chama perfumada!Quanta luz vertida em cascata sobre mim,em forma de amor!Temo não ter mais lágrimasquando você se for, apenas poemas encharcados. Esta é a nossa despedida!

Amar é se esvair, eu acho,é se esgotar devagarzinho...Me sinto assim, reduzida, mas, realizada.Amei e cuidei de você.E você me amou e cuidou de mim.Fechou-se um ciclo...

Uma dor lancinante, querida,parte daqui de dentro e lançado meu peito, raios errantes.O que restará de mim depois de tudo isso?Matéria seca?

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Oh! Deus, por que comigo?Por que com ela ?Por que agora?Por que assim, dessa forma?Por quê? Por quê? Por quê?Por que precisamos aguentar, firmes, quando a estrutura é frágil e ameaça ruir?

Estou olhando para você, meu amor,com doçura e atenção.Arrancando de dentro tudo o que é luzpara lhe ofertar com alegria,em agradecimentopelo tempo que você me dedicou,pelos sorrisos que fez brotar no meu jardim.

Mesmo em meio à doreu acolho você nos meus braços e canto: “fica, fica, fica...”Mas o meu poder vai, somente, até aí:cantar, cantar, cantar... sou poeta.Mas ponho no tempo ainda não cantadoesperanças e novas letras, banho os versosque não fiz com utopia e crio um não-canto:“Vá em Paz, amor”.

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Não materialidade

Para o abade Daiju Bitti

Eu-pedra preciso cindir,quebrar,partir,fazer-me em mil,mas não posso.Seria mais fácil cultivar a glória que,sob o Sol, é vã.Eu-água preciso derramar-me,fluir,inundar,mas não posso.Seria mais fácil empoçar-me em desejose vontades sem sentido que,sob o Sol,são apenas vaidades.Eu-planta poderia florir, nutrir,multiplicar,mas não posso.Seria mais fácil entregar-me à força do egoísmo parasita que corrói a carne e intoxica o sangue.Sim, seria mais fácil escutar a voz de um eu enganosoque cala outras vozes entusiastas,mascarando a verdadeira identidade,a cósmica.

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Eu superior, big bang latentede ações de paz e solidariedade:Eu-não-eu, Tu!Que brote de nós a luz necessária. Que saltem das cabeças e dos coraçõesde homens e mulheres letras benditas agrupadas em palavras que apontam para o porvir.Que surjam frases que confluamPara os rios do bem-dizer.

Que nasça austero o outro ser e desfaçamal-entendidos. Que surja um novo tempode brotação sobre a terrapara acabar com a fome de sentido,para colhermos o fruto, poesia, que será liberado, acessível e nunca mais o saber será proibido.

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Quintessência

“Pelos lábios de uma possível alma amorosa eu canto a mim mesmo”.(Mikhail Bakhtin)

“Quem somos nós, quem é cada um de nós se não uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações?”.(Ítalo Calvino)

Transluzir

Tudo se dissolve ao sabor do momentoNo instante, tudo se desfaz.O que era, já não é maisO que fui, sou, e sereiAquarela!

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Confissôes de uma apaixonada

O sol toca a minha face aquecendo o peito resistente. Lança luz sobre o maior tesouro,meu coração dourado e ardente.No compasso das estações,este órgão apaixonadoe tenro,pende entre o derretimentoe a evaporação.Não sei mais se tenho um coraçãoou se o cárdio-bandidosubverteu a ordeme é quem me detém,refém de sentimentosque me engolem.

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Lilás

À Maria Lúcia Dal Farra

Explosões de lilases.Ela é exibida, invade as retinas domina os sentidos.Começamos a sentir e a cheirar lilases. Deliramos de estranheza ao seu sabor.

Tudo, tudo, tudo se destina a ser lilás:a casa, o rio, a montanha,a árvore, o passarinho, o gato.Mas é no jardim que ela impera.Vence o poderoso verde dos arbus-toscom a singeleza de seu manto com o perfume suave extraído pelo vento.Ela é legião, uma diaba de mil flores.

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Excita os desavisados com seus micropistílos coloridos e açucaradosNão dá paz à grama, sobre a qual,se lança, pois ela jamais, involuntariamente, cai.

Eis a flor insurrecta do Éden situada ao lado da árvore da sabedoria,era ela que incitava Eva a provar do fruto:- Come, danada, e enxerga o mundo.

A rosa ela despreza; o cravo, ignora, é amiga do joio, mas o bambu ela adora.A Hortênsia é assim, excêntrica, cheia de vontades e manias.Decifra-a, se fores capaz!

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A fúria de Eros

Desejo a luz azuladado teu peito abrasadoDá-me o teu gozoo teu coraçãoDá-me também o teu pulmãoteu baçopernas e braçosSê meu por inteirosem sombras, nem saudades.Deixa para tráspaimãeirmãoDeixa de comer e beberVem para mim com cuidado esem demoraTraze o fogo de Prometeu ede Zeus, a chuva de ouro. Vem dissimulado,Deita com os olhos semicerrados,finge que não me viste.Vou te dar todo o ódio contidoem férreos beijos e abraços,cacos afiados de antigas convenções.Nesse delírio de posse, Sê meu,Antes que a noite acabe,e se desfaça a fantasia,Antes que vire dia,Dá-me a fonte de luzque o teu sexo irradia.

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O gato rei

Para Elvis

O gato rei aproximou-seexangue. Seu olhar,di(amante),dizia que fora picadopelo mesmo bichoque vitimara Romeu, Júlio César, Garibaldi eAbelardo. Pulou sobre o meu peito,com a ferocidade de um leão. As suas (benditas) garraslanharam a minha carne,rasgaram as fibras,marcaram pulmões, coração.Agora sou súdita fiel,sempre pronta a satisfazer-lheos desejos mais peludos.Sou sua humanade estimação.

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CarnavalCanto, brinco, vibro,é carnaval, o corpo está autorizado,redimido pelos desejos mais loucos.Nada é profano,nada é pecado,Simplesmente canto, brinco, vibro, danço,seduzo e sou desejada.Entrego-me à orgia.Liberadas as fantasias, expludo brilho e cores quenem sabia que existiam.

Sou quem não sou,sou quem gostaria de ser,sou um ser que jamais seria.Esbanjo fluidos divinos,no êxtase pagão dessa alegria.

Na terça, sob máscaras, sem terço nem mordaça,coberta pela fantasiafestejo o dia de reis. Sou Rainha,executo ritos e entoo ladainhas, Tudo é santo, especialmente a carneque vibra e goza até o pranto.

Experimento vislumbrar,no rosto, a face esquecida.Amanhã será outro dia,outro início, ou o fim...Vão-se os gritos, os brilhos e os véus,vão-se os poderes todos.Fica o resquício desse eu carnal,pele bendita, prenhe de vontades,epiderme espacial, onde, coletiva, existo.

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Terra Santa

Terra santabendita, adoradaO que fizemos contigo?Tua dor me trespassa.

Vejo as fissurasna tua carne azul e parda.Ouço teus gritos,Mas o medo me paralisa.Estarreço, silencio.

Sinto o cheiro e os sons da mortedos teus rios, sonâmbulos e errantes.Veios desviados por húmus mutanteshumanos, desvio da tua própria natureza.Esperamos o banho ritual,águas santas que nos lavarãodo pior mal:a indiferença.

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Brutal singeleza

Queimaram as bruxas desencantaram o mundo.Depois disso, ficou difícil fazer poesia.Depois de tanta dor,Como não silenciar?Depois de silenciar,como vencer o medo?

Avanço e recuoconjugando a mulher da minha sombra.Na língua há asperezas;no coração, esperanças;e a carne, essa,sangra por natureza.

Que status plural e confuso!Que peso e que penasustentar esse Serde brutal singelezaque quer ouvir o inaudito quebrota do verbo luminoso!

Quero poetizar o cinismoque oprime e mata.Busco forças em Safo, Dal Farra, EsterColho Florbela Escolhendo a mim mesma.

O silêncio é a voz que sonha e não realiza,Foi assim que a sombra acordouresgatando da sombra as outrasque o tempo silenciou.

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Onde os tempos se encontram

“Triste de quem é feliz”.(Fernando Pessoa)

“Na vasta sintaxe do mundo,os seres diferentesajuntam-se uns aos outros; a planta comunica com o animal; a terra com o mar; o homem com tudo o que o rodeia!”.(Michel Foucault)

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Efeito borboleta“Entre o planeta e o Sem-Fim,A asa de uma borboleta”(Cecília Meireles)

Buscar salvação para o abandono, Desenterrar forças para mudar o mundo,Revelar o mundo descoberto no subterrâneoDe sorrisos frios e olhares cínicos.Testemunhar o diálogo entre a ausência e a morte.

Conhecer a si mesmo de um outro jeito,Libertar a borboleta aprisionadaDentro da larva e voar em curvas,Levantando poeira bem longe.Fazer o caos!A minha errância é como a água turvaDe um rio caudaloso:Não permite que lhe encontre a fonte Ou que lhe desnude os mistérios do fundo.

A minha alegria, Árvore carregada de tristezas,Labirinto com minotauros anões...Não há fio com que contar.Preciso tear um casulo e adormecer, Já sinto as dores da transformação.Minha pele começa a romper.Essa mutação é necessária?Guardarei o silêncio para quandoAbrir misteriosas asas.

Buscarei a luz que ainda não conheci.Assim como o néctar, a essência,Irei desvendar a flor,Com tudo isso eu sonho, Enquanto me arrasto pelo chão.Arranhada e faminta.

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Jesus cósmico

Eu sou Dele e Ele é meu! Conhecemo-nos há muitas eras.Eu era apenas uma plantinha inquieta,fazendo sombra e alimentando bois.Nessa época, cada estrela eu conhecia,e girava, girava, a cada volta que o Sol fazia.Lembro que cada célula do meu corpo vegetalvibrava com a sua presença angelical.

Depois, por entre mistérios e forças, Encontrei- me dura e brilhante, pedra.Chamavam- me diamante.Eu precisava aprender tantas coisas,mas algo em mim resistia.Estranhamente, essa brutezaencantava e seduzia.

Muitas sombras, fluxo, vertigem...Senti meu corpo flutuando; bailarina, conheci o mar e, entre criaturas irmãs,cantei com a maré: Água-Viva!Em sintonia com os ciclos lunares,seguimos juntos a poderosa voz do oceano,e conhecemos muitos lugares.Um menino eu fui também, pobre e alegre.Nasci na seca, filho da fome do agreste,não sei bem do verde, nem ouvi barulho de fonte.Mas a barriga vazia conheci,aprendi que lutar é preciso, quando escolhemos viver.

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Acho que foi nesse lugarque comecei a entender o sentido do perdão.Então, perdoei a mim mesmo,por ser fraco, coberto de poeira e solidão.

Sob o Sol, acariciavas-me os cabelos Em códigos celestiais, sussurravas:jamais te abandonarei!Estavas comigo sempre.Mesmo que o chão tremesse,ardesse o Sol ou chovesse,estavas ali, comigo...

Fui tantos e tantas que desconheço...Trago gostos adquiridos,Alguns procuro esquecer.Lembro-me de coisas que preciso rever.Viva! Posso fazer novas escolhas.

Anseio descodificar esta existência.Qual o sentido da busca? Veja que, há muitos séculos, fui moça e passava horas a esperar por alguém à janela,alguém que nunca chegava.Outra vez, achei um tesouro.Com ele aprendi que a felicidadenão se compra nem se vende.Vale mais que ouro.Sou hoje os vestígios dessas vidase dessas mortes, vidas e mortes, e vidas...E vivo e morro a cada dia.

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Que privilégio, o teu amor!Que honra ser este mosaicoainda em construção, obra do teu capricho e cuidado.

Reúnes-me em partes conflitantes,Fazes-me sombra e luz.Assim, reflito tudo o que existe,Não sou alegre nem triste, apenas sou!

Amo-te pura e santamente,Jesus Cósmico!Que meu corpo e mente sejam aindamil vezes plasmados!Que eu seja um rio caudaloso,cujos afluentes invadam outros mosaicos,regando outras plantinhas esaciando os bois que têm sede,almas mais nobres que a minha.

Sinto você aqui, agora, do meu lado.De dimensão em dimensão,seguimos, unidos por este laço sagrado,guias-me , sigo-te.Viajamos pelo infinito,vou cantando um canto novo em cada novo canto.

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Antes do Éden

Para Luiz Alberto

Desejo a tua essência:Música!Ah! Meu bardo, poeta...Vem para mim nessa madrugada,quando o espírito das coisasrepousa sobre o Nada.Vem comigo, vamos nomear ad infinitum.Observa as formas e as cores.Vem sentir os nossos cheiros eexperimentar o sabor dos nossos sexos juntos.Vamos discriminar sem discriminação,dar voz e vez ao menor dos seres.Somos Eva e Adão sem o sermos.Une teus lábios aos meus.Selemos um pacto para a eternidade.Apenas eu e tu, meu bardo, poeta,neste mundo verde sem pecados, sem culpa, nem frutas, sem deus, nem diabo.

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Gente da era da luz

A natureza pelo prisma do não.O mal maior, a degradação:planeta devastado,valores corrompidos.A fé só enxerga $.Trememos diante dessas verdades.Melhor seria não conhecê-las.Optamos pela estratégia: Não saber para não sofrer.A única certeza é a de quevamos morrer.Variadas questões assombram de formas diferentes.

Quando os polos da Terra se invertereme o dia chover raios luminescentes,uma nova gente vai nascer.Gente da Era da Luz,formas transformadas,filhos que resgatarãoa nossa dívidae viverão o que perdemos.

Os fótons de um grande Solnos atravessam.A mudança é iminente!O DNA está mudando também.Já sinto lampejos de esperança e esclarecimento.Que nasça essa gente bendita.Que rebentem novas sementes.

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Humanidade nata

A flauta toca o peito eabre buracos no tempo/espaço(aproveito)

Afasto os pensamentos limitadores,sombras,A leveza me invade.Viajo nas asas do vento.Sou Ulisses nos braços de Circe,Eva cantando triste(desejosa)pela fruta de que tanto gosta.

AH! se eu pudesse beber do Letese ser inaugural como a alvorada,ser Divina,e não essa fêmea bruta,mulher em construção,alterada e mesquinhatrazendo a humanidade nata.

As mãos tecerão desafiosabro os olhos (tímida)

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Construo estes versos,andorinhas que voam em direção a você.Me empresta a sua voz?Cante com aminha lira,escreva um poema sobre este.Vivo e lúcidoRizoma que justificao meu intento.

Estou descansada,respiro suavemente,a cabeça está erguida,as mãos estendidas.Amigo,somos flechas,mirando o infinito.

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Prece

Jesus Cósmico, fonte de misericórdia,Ajuda-nos a trilharo caminho do teu amor.

Desperta os nossos sentidospara a beleza. Abre nossos ouvidospara teus discípulos: as árvore e os animais,emissários divinos queassassinamos com crueldade,assim como fizemos contigo,quando estavas encarnado.

Quebra as certezas arrogantese ensina-nos a desaprender,para que possamos mudar e romperas barreiras do ódio e da indiferença.

Reavive a fé em nós mesmose a esperança de que podemos ser e fazer diferente.

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Rituais

“Não faltaram as injúrias. Chamavam-nas de sujas, indecentes, impudicas, imorais. No en-tanto, os seus primeiros passos nessa via foram, pode-se dizer, uma feliz revolução no que é mais moral, a bondade e a caridade”. (Jules Michelet)

Desejos de feiticeira

Eu quero tocar os espírito alheioscom encantos luminosos.Acordar dormentes e sonâmbulos,com fluidos escândalo-viscosos,colhidos nas veias dos cristaise das ervas.Lançar bênçãos,Distribuir afagos e,justificando a minha natureza,distribuir, também,olhares de secar pimenteiras

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Semear

Não despreze a natureza,Não pise a grama,Nem arranque a flor. Se brigar com esses seres,Será amaldiçoado e perseguido.Não adiantarão rezas, nem filtros.

O segredo é simples:Semeie, plante, cultiveAmizades, flores, árvores, ideias de luz.Plante e acredite.Sem fé, amigo, nada germina.Não há fotossíntese.Tudo morre, definha.

Anote esta dica:Não arranque nem erva daninha.Pense que elas estão aqui por alguma razão.Mesmo que desconheçamos sua utilidade.Talvez estejam aqui para nos ensinar queA perfeição não existe,Que jardim bonito é plural,Alegre e triste,Florido na primavera e Sem folhas no tempo outonal.

Terra

Amo a TerraDas entranhas ao infinitoE aos seus arabescosConflitantesDivinamente pintados

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O açafrão e seu destino

A crocina está dentro das plantas,assim como a crocetina,substância semelhante aos hormôniosfeminino e masculino. São os estigmas dessa plantarara, cor de ouro.Deles, pistilos que também são suculentos,se obtém uma matéria corante,o açafrão.

O poeta Virgílio cantou o seu poder e seu odor.Plínio chamou-a de Croci.Desses pistilos também vinham os vinhos, que eram derramadosno chão dos teatros:“Recte crocum perambulare”, Traduzindo: “Tenha sucesso em cena”.

O açafrão só pode ser colhido bem cedinho,quando desabrocha junto com o Sol.Os estigmas de ouro são depositadossobre papéis como as palavras sobre os corações.Depois são fechados em caixas como joias.

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Impotenza strumentale

Para todos os machões

O homem fazia um grande esforço:mentalizava,desfolhava rezas fervorosas,e nada acontecia.Para acordar sua masculinidade trágica,fruto da fatalidade.Nada adiantava.Coitado. Seu órgão não mais o atendia.Seu orgulhoso instrumentonão se elevava.Ficava ali, estático. Parecia um cadáver,só que mais rosado.

Ele fez de tudo para retardaro advento sombrio.Recorreu à magia, Mas de nada adiantou.Seu mundo havia caído.

Iniciou uma peregrinação, para mudar sua história,reverter a situação.Foi ao mangue sagrado da Birmâniae afundou os testículos na lama.Nada aconteceu.Depois, passou a comer ostras todos os dias e a esfregar nas partes pudendasóleos, essências, que também não surtiram efeito.

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Ele recorreu a gorduras fedorentas que,além da vergonha, atraíram moscas.Emplastos, a cartada final.De desatino em desatino,Buscou a felicidade, se concentrandoem outras partes do corpo,até mesmo no coração.

Barba Azul

O meu sangue é ávido, inflamadoE premente. Aperta meu coraçãoA natureza libidinosa do que penso,Ao tocar a terra e recolher seus frutos.Sou pouco rica, ao contrário da nobreza.Mas posso curar, predizer, adivinhar e Evocar almas.Tudo isso faz de mim o que mais desejas:Teu objeto absoluto.Fantasias em tua maldade.na soberba que oculta sua verdadeira face,As formas de me reduzir.Barba Azul.Fujo de tua rude presença,Antes que o tempo clareie e tudo que é luz em mim anoiteça.

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Filtros mágicos

Se você ama alguém,mas não é correspondido;Se perdeu todas as esperançasde ser feliz e de ter prazer;Se está triste, doente, e precisadesesperadamente foder,esqueça as promessasao santo de devoção.Ele tem mais o que fazer.Deixe também de lado os despachos.Deixe as encruzilhadas limpas.Por favor, as ruas já estão bastante sujas,e a cidade poluída. Recorra à magia:faça um filtro.Os filtros são a regra no jogo do sexo.Pode acreditar: eles funcionam.Pegue uma ervinha brejeira,catuaba ou coentro.Besunte no mel e depois enrole em um lenço de algodãovirgem.Diga: “Ervinha poderosa e amiga,faça “fulano”(diga o nome da pessoa) se entregar aos meus caprichos.”Repita a frase três vezes enterre o lencinho na praia e espere...

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Banho de limpeza

Pegue sete galhos de arruda;Sete de aroeira,Sete folhas de espada- de- São- JorgeE de Ogum;Sete folhas de abre- caminho,Sete galhinhos de boldo,E, para finalizar, sete punhados de sal grosso.Ferva tudo com fé.Resulta um líquido milagroso!

Deixe esfriar e lave-se.A cabeça não deve ser molhada.Se quiser prosperidade,Acrescente a esta fórmula:Cravos, sete também.Erva cidreira, manjericão,Mel e pétalas de rosas.

Os caminhos se abrirão,Olho gordo cairá por terra,Tua sorte voltará,Tudo isso com um banho,Ou melhor, com sete banhos,Respeitando a sabedoria Do ciclo lunar.

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Patuás

Não precisa de jeito,Apenas de boa vontade.O material é barato.Alguns são de graça.Basta coragem. Agora, é botar a mão na massa.

O patuá pode ser até mesmo decorativo,um adorno colorido.Mas eles são bem mais que isso:São objetos mágicos de poder e força.Vamos lá, faça o seu.

Patuá de proteção contra mau olhado:Pegue alecrim e coloque pra secar.Pegue um pedaço de fita amarela,cor do segundo raioo da Santíssima Trindade.Pegue também um pedaço de pano.Faça um saquinho.Dentro, deposite o alecrim. Junto,coloque uma pedrinha, tirada de algum jardim.

Costure e decore, coloque miçangas ,pendure a fita e passe a contar com a iluminação e a sabedoria divinado mestre Confúcio.Avatar dessa senda.

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Cerimônia do chá

O chá deve ser feito de cravos,noz-moscada,rum efolhas de menta.Deve ser tomadona Lua crescente,por pessoas quedesejam recomeçar algoou estejam, simplesmente,descontentes.

Deve ser bebido de forma ritual:Esteja vestido com roupas brancas,tenha em mente aquilo queprecisa deixar partir. Imagine-se feliz.Sonhe com algo bom.É preciso coragem para abraçar o inesperado, para receber o novo.Diga sim e acredite!

Beba e adentre-se em novos caminhos,Fale novas línguas.Admire outras cores.Pluralize.Depois do chá,agradeça à natureza e aos amigos invisíveis.

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Cadê o urú ?

Cadê o uru?Sumiu.Caçador pegou,ninguém viu,e, se viu,não se importou.

E o peixe-boi?Dele, só lembranças,Vi um, dias desses, em um livro.Morreu, certamente,para aumentar alguma pança.

E o corocoró?Nem có, co, nem piu, piu.Sumiu também.Deve estar empalhadoem algum canto da sala de ciências.

E a cutia, o papagaio-moleiro,o sagui-da-serra, o guigó,o macaco-prego, o caititu e o catatau?Escondendo-se por aí, talvez,em buracos e fendasde sítios e fazendas, pois,terra sem dona não há mais.

Rezam, cada um na sua língua,ensaiando sobreviver,mas sabem que o caçadorlogo vai chegar.

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Imago

A imagem está prenhede inexoráveis sentidose de ideias.Nelas, as palavras dormitam.Ídolo inclementeMãe de inéditos. Adorada e temidaGesta coisas que existemMas que ainda não foram vistas.Ima

Poesia vegetal

Existe uma poesia que guarda em siElementos combinados,Que suporta invernos inclementes.Ela dormita. mas, na primavera, Desperta, trazendo consigoCoisas antigas que, durante séculos,Foram silenciadas.ww

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O que nos resta, após a leitura de arcano dezenove?

Mística, lirismo, realismo, simbolismos ocultos, ques-

tões do mundo filosófico, da tradição alquímica, do

cotidiano e do ambiental – é por este labirinto poé-

tico que Renata Bomfim nos conduziu para formar

as suas (nossas) “palavras-imagens”. Ao término de

nossa leitura fica fácil constatar que o discurso me-

tapoético prevaleceu em alguns poemas, como quem

procura dialogar narcisicamente, buscando alcançar a

essência da poesia. Para isso, a poetisa utilizou várias

formas versificatórias, como forma de seduzir o leitor.

Seduzidos, notamos que foram postas as cartas do seu

jogo poético. Após a primeira carta/parte (Arcano De-

zenove), nós, leitores, estupefatos, com a intensidade

da sua linguagem lírica, nos perguntamos: será que

a autora ainda nos surpreenderá? Constatamos que

Renata Bomfim cumpriu – além de questões formais

(as acadêmicas) – o propósito que deve ter todo traba-

lho artístico. Ou seja, a obra não como objeto acabado

e definido, mas que o seu sentido seja, como elucida

Umberto Eco, de abertura a várias possibilidades; ou

seja, provocar como respostas diferentes, mas confor-

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84 Renata Bonfim

mes a um estímulo definido em si. É exatamente esta

sensação, caro amigo leitor, que você tem ao terminar

de ler Arcano Dezenove. Compreenderá um emara-

nhado de sentidos, que já não fazem mais parte da es-

critora, mas adentra no nosso mundo, ressignificando

as palavras, vemo-nos em seus textos, que nos trans-

portam para o lugar que deve ter toda leitura poética:

a do prazer artístico.

Já embevecidos na sua poética – que cumpriu, ritua-

listicamente, um percurso estratégico situado em diá-

logos com outros autores (como, por exemplo, Florbela

Espanca, Rubén Darío, Maria Lúcia Dal Farra), atra-

vés de um discurso focado na alteridade, proposta im-

portante atual dos estudos literários –, a poetisa mos-

trou os seus espelhos poéticos, sem, no entanto, perder

a sua originalidade. Pois, afinal, a inovação desta

poética está centrada numa concepção pós-moderna

da poesia, aliada a auto-consciência de seu labor lí-

rico, levantando uma das principais questões que to-

cam as várias ciências atuais, bem como a sociedade,

a questão do ativismo socioambiental, aliada a um

entendimento e comunhão com o cosmo-natureza. O

ambiente poético inovador de Renata Bomfim é, en-

tretanto, não apenas arraigado às questões de preser-

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85Arcano Dezenove

vação, diálogo e identificação com a natureza, mas

ambienta-se em outros paradigmas, dos quais destaco

uma das grandes questões da sociedade moderna: a

feminização do mundo.

Diz a poetisa-poeta: “Eu quero tocar os espírito alheios/

com encantos luminosos./(…)Distribuir afagos e,

(…)/ olhares de secar pimenteiras.” E ela consegue,

ao final desta obra, através do seu “olhar/cantar” fe-

lino, de poesia liricamente fertilizada de desejos, tocar

o mais fundo de nossa alma. Transporta-nos para o

mundo mágico artístico; afaga o nosso coração chaga-

do e arranca, abruptamente, as mais profundas raízes

resistentes às intempéries da nossa incredulidade em

compreender que nasce uma poetisa contemporânea

brasileira que ainda dar-nos-á uma vasta obra de

qualidade para a nossa tão desprestigiada literatura

de autoria feminina.

Fabio Mario da SilvaDoutorando em Literatura pela Universidade de Évora

(Portugal)Pesquisador do CNPq, num projeto sediado na

Universidade Federal de SergipeProfessor Convidado da Universidade de Varsóvia

(Polônia)

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