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Rivista elettronica del Centro di Documentazione Europea dell’Università Kore di Enna www.koreuropa.eu O MODELO EUROPEU E A QUESTÃO DA CIDADANIA Janaína Rigo Santin Pós Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa e Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo RESUMO: A pesquisa problematiza a questão da cidadania europeia e do déficit democrático das instituições supranacionais. A situação de crise por que passam as instituições nacionais em face do processo de globalização traz consigo um déficit democrático, o que provoca uma série de gravames sociais. E essa problemática torna-se mais evidente na União Europeia, que se encontra em um momento crucial sobre quais competências que deve assumir para tomar as decisões fundamentais capazes de fazer frente à globalização. E para isso precisa adotar mecanismos ágeis e rápidos de decisão, com a transferência maior de competências para as instituições europeias, a qual necessariamente deve vir unida a uma maior democratização dessas instituições, eis que o déficit democrático da Europa é algo bastante presente. É uma questão não só de funcionalidade e operacionalidade como também de democracia. Defende-se a ideia de que os cidadãos europeus devem ter o poder de efetivamente participar dos assuntos comunitários, evoluindo-se a democracia representativa para uma democracia participativa em âmbito supranacional PALAVRAS-CHAVE: Cidadania europeia, Participação, Constitucionalismo europeu 1. Considerações Iniciais Em face da evolução do Estado Moderno, o conceito de Cidadania obteve diversas conotações, todas elas voltadas de acordo com o momento histórico que a humanidade passava, e naturalmente com o modelo social imposto pela forma estatal da época. Os Estados na ordem mundial atual são, em sua maioria, estruturas sociais democráticas. Diante disso, a noção de cidadania, que remonta a épocas primitivas da sociedade, se faz de suma importância, visto que sem a participação da população nos desígnios do Estado, a democracia perde seu foco, destoando dos objetivos a que se propõe. É a cidadania, enquanto fundamento da democracia, que deve promover a participação, fazendo com que os cidadãos, através do poder originário que possuem, cobrem e também ajudem seus governantes a tomar decisões que sejam benéficas a todos. Todavia, frente ao contexto social apresentado hodiernamente, relevante se faz uma análise mais profunda nos aspectos que tangenciam a questões da cidadania e da democracia. A crise que se abate sobre a sociedade, demonstra a fraqueza de estruturas até então consideradas inabaláveis,

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A pesquisa problematiza a questão da cidadania europeia e do déficit democrático das instituições supranacionais. A situação de crise por que passam as instituições nacionais em face do processo de globalização traz consigo um déficit democrático, o que provoca uma série de gravames sociais. E essa problemática torna-se mais evidente na União Europeia, que se encontra em um momento crucial sobre quais competências que deve assumir para tomar as decisões fundamentais capazes de fazer frente à globalização. E para isso precisa adotar mecanismos ágeis e rápidos de decisão, com a transferência maior de competências para as instituições europeias, a qual necessariamente deve vir unida a uma maior democratização dessas instituições, eis que o déficit democrático da Europa é algo bastante presente. É uma questão não só de funcionalidade e operacionalidade como também de democracia. Defende-se a ideia de que os cidadãos europeus devem ter o poder de efetivamente participar dos assuntos comunitários, evoluindo-se a democracia representativa para uma democracia participativa em âmbito supranacional

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O MODELO EUROPEU E A QUESTÃO DA CIDADANIA

Janaína Rigo Santin Pós Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa e Professora da Faculdade de Direito da

Universidade de Passo Fundo

RESUMO: A pesquisa problematiza a questão da cidadania europeia e do déficit democrático das instituições

supranacionais. A situação de crise por que passam as instituições nacionais em face do processo de globalização

traz consigo um déficit democrático, o que provoca uma série de gravames sociais. E essa problemática torna-se

mais evidente na União Europeia, que se encontra em um momento crucial sobre quais competências que deve

assumir para tomar as decisões fundamentais capazes de fazer frente à globalização. E para isso precisa adotar

mecanismos ágeis e rápidos de decisão, com a transferência maior de competências para as instituições europeias,

a qual necessariamente deve vir unida a uma maior democratização dessas instituições, eis que o déficit

democrático da Europa é algo bastante presente. É uma questão não só de funcionalidade e operacionalidade como

também de democracia. Defende-se a ideia de que os cidadãos europeus devem ter o poder de efetivamente

participar dos assuntos comunitários, evoluindo-se a democracia representativa para uma democracia participativa

em âmbito supranacional

PALAVRAS-CHAVE: Cidadania europeia, Participação, Constitucionalismo europeu

1. Considerações Iniciais

Em face da evolução do Estado Moderno, o conceito de Cidadania obteve diversas

conotações, todas elas voltadas de acordo com o momento histórico que a humanidade passava, e

naturalmente com o modelo social imposto pela forma estatal da época.

Os Estados na ordem mundial atual são, em sua maioria, estruturas sociais democráticas.

Diante disso, a noção de cidadania, que remonta a épocas primitivas da sociedade, se faz de suma

importância, visto que sem a participação da população nos desígnios do Estado, a democracia

perde seu foco, destoando dos objetivos a que se propõe. É a cidadania, enquanto fundamento da

democracia, que deve promover a participação, fazendo com que os cidadãos, através do poder

originário que possuem, cobrem e também ajudem seus governantes a tomar decisões que sejam

benéficas a todos.

Todavia, frente ao contexto social apresentado hodiernamente, relevante se faz uma análise

mais profunda nos aspectos que tangenciam a questões da cidadania e da democracia. A crise que

se abate sobre a sociedade, demonstra a fraqueza de estruturas até então consideradas inabaláveis,

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como o Estado, o que denota uma realidade difícil. Vive-se em um mundo que desconhece

fronteiras, e que com o advento da globalização “plugou” sociedades até então de complicada

interconexão. Porém, no momento presente, da “informação simultânea”, ao invés de corroborar

o propósito democrático, invocando as sociedades para uma participação mais efetiva dentro dos

Estados, alienou-a, dificultando a participação política do cidadão quando se tratam de

mecanismos institucionais supranacionais.

E essa problemática evidencia-se ainda mais no caso da União Europeia, que se encontra

em um momento crucial de decisão sobre quais competências deve assumir para tomar as

medidas fundamentais capazes de fazer frente à globalização e tudo o que dela decorre, como a

crise da dívida soberana de muitos de seus membros. Para isso precisa adotar mecanismos ágeis e

rápidos de decisão, com a transferência maior de competências para as instituições comunitárias.

Entretanto, essa transferência deve estar acompanhada necessariamente a uma maior

democratização dessas instituições, eis que o déficit democrático da Europa é algo bastante

presente. É uma questão não só de funcionalidade e operacionalidade como também de

democracia. Defende-se a ideia de que os cidadãos devem ter o poder de efetivamente participar

dos assuntos comunitários, evoluindo-se a democracia representativa para uma democracia

participativa em âmbito supranacional.

A globalização trouxe consigo fantásticas inovações ao mundo, sendo que, hoje, pergunta-

se como é possível viver sem tais invenções tecnológicas. Porém, trouxe consigo também alguns

ônus para a sociedade. O cidadão passou a ficar à deriva dentro do Estado, pois, atualmente,

quem passa a influir nas políticas públicas nacionais cada vez mais são fontes supranacionais de

poder.

Decorrente disso, a cidadania vem se aprimorando, galgando novas características, com a

reorganização espacial dentro dos Estados. E a mistura desses fatores, que se complementam, traz

à tona a possibilidade de respostas aos novos desafios lançados à cidadania, nessa nova

formatação de mundo atualmente exposta.

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É em relação a esses aspectos que a presente pesquisa desenvolve-se, buscando demonstrar

a existência das mais tênues linhas de inter-relação entre conceitos que a todo instante são

suscitados, porém utilizados desvencilhados do seu correto sentido. Da mesma forma, visa trazer

propostas de possíveis soluções a estes problemas.

2. Desenvolvimento Histórico da Cidadania em face da Evolução do Estado

Moderno

Em toda a história da evolução humana, desde os tempos mais primitivos, o homem buscou

associação a outros homens para desenvolver e aprimorar suas técnicas, em busca de uma vida

melhor. Sendo um ser naturalmente associativo, o homem passou de um estágio de vida solitária

para uma vida em grupo. Esses agrupamentos humanos, pequenos inicialmente, foram

desenvolvendo-se, tomando proporções cada vez maiores. Automaticamente, irrompem, dentro

dos grupos, novas relações capazes de gerar conflitos e discordâncias1.

Para que a ordem nesses grupos fosse mantida criou-se uma pequena organização;

entretanto ainda não eram considerados sociedades. Posteriormente, devido a uma imensa gama

de fatores, tais grupos passaram a interagir e a se inter-relacionar, surgindo relações diversas das

existentes, o que tornou estas organizações sociais precoces cada vez mais complexas2.

Essas intrincadas relações exigiram novas formas organizacionais, o que fez desabrochar o

fenômeno estatal, trazendo para a história o elemento Estado com todas as suas características. E

o fenômeno estatal, entidade abstrata criada pelo direito e desenvolvida em especial na

modernidade, a partir de noções de contrato social, foi dotado da finalidade complexa de

organizar a sociedade incrustada sobre um território próprio, com população e normas próprias,

dotado de soberania, para que essa ordem social complexa possa desenvolver-se em vista ao bem

comum.

1 NASCIMENTO, Lições de História do Direito, 3ª ed., Rio de Janeiro, 1984, p. 12. 2 NASCIMENTO, op. cit., p. 13.

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Em meio a todas estas transformações por que passava a humanidade, o homem começou a

ter um papel crucial dentro do desenvolvimento da sociedade, passando a ser qualificado como

cidadão. A origem da palavra remonta a Roma e Grécia, nas antigas Polis (cidades-estados) que

foram as precursoras de uma sociedade estatalmente organizada. Polites ou Cives eram para os

romanos os sócios da Polis ou Civitas. Cidadãos eram, portanto, todos os homens que

participavam do funcionamento da cidade-estado, os titulares de direitos políticos3.

A participação desses cidadãos era efetuada da forma direta, sem a existência de

representantes, visto que este instituto da representação privada só teve origem no mundo

moderno. Essa participação dava-se através da votação das leis e no exercício de funções

públicas, especialmente a judiciária. A participação dos cidadãos era tão importante que sem ela,

a Polis não existiria4.

Em Atenas, na Grécia, o principal privilégio dos então denominados cidadãos era a igual

liberdade da palavra nas assembléias do povo. Assim sendo, o grau de participação do povo

ateniense foi bem maior que o do povo romano. No campo Legislativo, as leis eram votadas pelo

povo reunido em comícios, por proposta de um magistrado. No campo judiciário, o juiz era

alguém do povo, e existiam regulamentos que permitiam ao condenado a penas graves de

recorrer diretamente ao julgamento popular5.

Vale enfatizar que, por cidadania, entendia-se a qualidade de o indivíduo pertencer a uma

sociedade, e estar adstrito a todas as implicações decorrentes da vida em sociedade. Logo,

cidadão era aquele que morava na cidade e participava dos seus negócios. Assim sendo, era

caracterizada por uma minoria, aqueles que podiam acessar cargos públicos, visto que os

estrangeiros, os escravos, as mulheres, os artesãos e os comerciantes eram discriminados e não

eram considerados cidadãos6.

3 COMPARATO, A Nova Cidadania, São Paulo, 1993, n. 28/29, p. 85-106, p. 23. 4 SILVEIRA, Cidadania. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=78. Acesso mar. 2012. 5 COMPARATO, op. cit., p. 24. 6 SILVEIRA, op. cit..

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Indubitavelmente, a civilização Greco-Romana tinha em seu ápice um extraordinário

desenvolvimento político. Porém, contrastando a isso, os indivíduos pertencentes a estas

sociedades não gozavam de liberdade privada alguma. Encontravam-se totalmente submetidos à

cidade-estado a qual pertenciam. Toda e qualquer atividade existente na Polis era controlada, das

roupas ao corte de cabelo, da religião à educação. Isso se explicava na medida em que se tratava

de moldar o caráter dos cidadãos para servir a Polis. Conforme ensina FÁBIO KONDER

COMPARATO, “o mundo greco-romano, matriz da civilização ocidental, era o espaço social da

sujeição e do poder absoluto, em contraste com a liberdade ativa que prevalecia na esfera

política”7.

Todavia, com o passar do tempo, entra em decadência o chamado “Império Romano”,

desaparecendo o modelo constituído pela civilização greco-romana, acarretando em séculos de

supressão da cidadania.

Roma, com seu império, esfacelou-se com a invasão dos bárbaros, e conseqüentemente o

seu poder central desapareceu. Os territórios passaram a ser divididos em feudos, para que assim

pudessem ser controlados autonomamente por seus senhores feudais. O poder passa, assim, de

uma centralização para uma descentralização, pois esta era a melhor forma de dominar os

territórios, em vista da imensidão de terras a serem conquistadas, o que contrastava com os meios

de dominação existentes, que eram mínimos8.

Esta nova forma de organização social foi denominada, na Europa, de Feudalismo, e pôs

um fim ao chamado Estado Medieval. Esse período caracterizou-se pela íntima ligação entre

Igreja e Estado. O Feudalismo criou uma hierarquização política, não sendo contra o Estado, mas

sim se fazendo como um meio propulsor para o seu advento9. Este modelo de organização social

7 COMPARATO, op. cit., p. 24. 8 BERUTTI-FARIA-MARQUES, História, Vol. 3, Belo Horizonte, 1993, p. 13. 9 MELLO, Curso de Direito Internacional Público, Vol. I, 11ª ed., Rio de Janeiro, 1997, p. 330.

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implantado era articulado “a partir do poder fragmentado de cada Senhor Feudal, e que se

alicerçava em uma relação indissolúvel entre o poder religioso e o poder político”10.

Com o novo quadro social que se desenhava na época, o chamado status civitatis, tão

presente na antiga civilização, foi suprimido, passando a existir um complexo sistema de relações

hierárquicas de dominação privada. Isso se explica pelo poder fragmentado, no qual cada senhor

feudal possuía sua quota-parte de poder, fazendo com que os indivíduos presentes nos feudos não

tivessem uma identidade própria, sendo nada mais do que servos do senhor feudal11.

Na metade do séc. XV, o Feudalismo tem sua força exaurida. Abate-se sobre o modo de

produção feudal uma profunda crise, enfraquecendo as bases sociais da época. Com o advento

desta grave crise, necessitava-se uma nova ordem que pudesse reorganizar a sociedade

desarticulada12.

Florescia, na época, movimentos com vistas à centralização do poder político e à expansão

territorial, o que culmina com a instauração do Regime do Absolutismo Monárquico, enterrando

de vez o espaço já limitado das liberdades. Com isso, passa a vigorar a ordem política Moderna -

a partir do séc. XVI - procurando desvencilhar a religião do Estado e fortalecer o vínculo político

do Estado para com os cidadãos. A centralização do poder deu-se nas mãos do Rei, sendo que o

Estado era visto na própria pessoa do Rei, perdendo a concepção de impessoalidade da

administração13.

Esse novo protótipo de Estado perdurou entre os séculos XVI e XVII, consolidando no

período a idéia de Estado-Nação, lastreado em uma regulamentação jurídica dos conflitos sociais

existentes. Esse Estado continua sendo “a expressão da hegemonia da nobreza que através da

reorganização estatal reforça sua dominação sobre a massa camponesa”14.

10 BEDIN, Estado, Cidadania e Globalização do Mundo: Algumas Reflexões e Possíveis Desdobramentos, in

OLIVEIRA (coord.), Relações Internacionais e Globalização, Ijuí, 1997, p. 126. 11 GOULART, Sociedade e Estado, in ROCHA (org), Teoria do Direito e do Estado, Porto Alegre, 1994, p. 26. 12 BERUTTI-FARIA-MARQUES, op. cit., p. 25. 13 BOBBIO, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, 3ª ed, São Paulo, 2000, p. 17. 14 BERUTTI-FARIA-MARQUES, op. cit., p. 25.

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Durante a existência do Estado Absolutista, o conceito de cidadania foi completamente

sufocado em nome do poder estatal, o qual se colocou acima de tudo, inclusive dos princípios

morais. Quanto aos princípios jurídicos, estes passaram a ser criação única do Estado, que tomou

para si o monopólio da produção jurídica, reduzindo o direito a uma criação estatal, tornando-o

passível das arbitrariedades impostas pelo soberano. Sobre isso BOBBIO explica que “Monarquia

Absoluta é a forma de Estado que não se reconhece mais outro ordenamento jurídico que não seja

o estatal, e outra fonte jurídica que não seja a lei”15. É assim a forma que o Estado tratava de

regular a sociedade, fazendo com que se perdesse a concepção de cidadania, tão importante nas

sociedades contemporâneas.

A nobreza foi fortalecida, e se investiu em métodos capazes de alongar as fronteiras

estatais. Um desses meios foi a navegação, que levou a um expansionismo marítimo estrondoso,

ocasionando o alastramento das práticas comerciais pelo mundo. Paralelo a isso, o Estado

começa a se desenvolver economicamente, e as práticas capitalistas vão aos poucos tomando

corpo, varrendo as últimas amarras feudais ainda vigentes. Logo, o capitalismo invade o arsenal

produtivo do Estado, instalando-se definitivamente16.

O Estado Moderno consegue firmar-se como um Estado soberano e centralizado. Porém,

diversas mudanças sociais ocorrem na época, em especial a partir da Revolução Francesa, em

1789. A principal delas é o crescimento de uma classe até então desprezada, a burguesia. Esta,

até então à margem do sistema, apossou-se dos meios de produção e, pela mão da economia,

buscou alcançar o poder questionando a ordem Absolutista vigente.

Com isso, a burguesia passa a ter um papel essencial no novo contexto social emergente,

acabando por refutar a ordem Absolutista, dando uma nova feição ao Estado Moderno, tornando-

o um Estado Moderno Liberal. Isto foi possível mediante as Revoluções Burguesas ocorridas na

Inglaterra e na França, que propulsionaram a ascensão da burguesia ao poder17.

15 BOBBIO, op. cit., p. 19. 16 BEDIN, op. cit., p. 129. 17 MELLO, op. cit., p. 335.

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As revoluções burguesas são fatos marcantes para a história da evolução dos Estados e da

cidadania. Elas abriram o caminho para o capitalismo e, da mesma forma, romperam todos os

resquícios ainda existentes do feudalismo. Abriram as portas para o Modelo Liberal de Estado,

onde pela primeira vez o povo, até então sufocado, passa a ter ouvido o seu clamor. O Estado

continua com seu poder centralizado e soberano, mas passa a ser limitado por uma constituição e

por uma declaração de direitos18.

Como decorrência destas revoluções e transformações sofridas pelo Estado, começou a se

restabelecer a cidadania política abolida, reconhecendo o indivíduo como titular de direitos

próprios, e não derivados do grupo social19. Assim foi a visão que reconheceu que o cidadão de

qualquer lugar do mundo, em qualquer época, tem os mesmos direitos basilares, mesmo que não

reconhecidos pelo Estado, dando ensejo à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do

Cidadão.

A partir deste momento, a nova cidadania passa a comportar duas dimensões, sendo uma

universal e outra nacional. Universal e pautada nos direitos humanos, uma vez que todo homem é

protegido em seus direitos naturais, independente de sua nacionalidade, conforme consagrado na

declaração; e nacional e pautada nos direitos fundamentais positivados nas cartas constitucionais

dos países, reconhecidos dentro de seu espaço vital20.

Entretanto, contrastando com o moderado avanço alcançado pela cidadania no campo

político, encontravam-se enormes discrepâncias no que tange ao campo social. Os trabalhadores

das indústrias, reformuladas pela Revolução Industrial, eram explorados de forma subumana. O

trabalho infantil era algo muito corriqueiro nas citadas indústrias. Nesse contexto, a classe

trabalhadora uniu-se, tornando-se força política, o que faz emergir os designados movimentos

socialistas. Mais uma vez, novos desafios são lançados ao Estado Moderno, que procura

novamente adaptar-se frente às novas questões21.

18 BERUTTI-FARIA-MARQUES, op. cit., p. 142. 19 COMPARATO, op. cit., p. 25. 20 COMPARATO, op. cit., p. 25. 21 BERUTTI-FARIA-MARQUES, op. cit., p. 152.

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O Estado torna-se intervencionista e ganha características sociais, passando a ser

denominado “Welfare State” ou Estado de Bem-Estar Social, no qual passam a ser reconhecidos

novos direitos sociais e econômicos à sociedade22.

A idéia tônica da nova cidadania consiste em fazer com que o povo tome parte do processo

de seu desenvolvimento e promoção social, através da participação. O próprio conceito de

cidadania, que vem se modificando através dos tempos, induz à necessidade da participação, o

que faz florescer bases democráticas no até então rígido terreno estatal. FÁBIO KONDER

COMPARATO, explica essa situação da seguinte forma:

A relevância da atuação administrativa do Estado Social é um fato sobejamente conhecido. Convém, no

entanto, advertir para a falsa dicotomia que se procura hoje inculcar, no tocante à distribuição eqüitativa do bem-

estar social, entre o estatismo e o privatismo. O princípio da participação popular permite evitar esses extremos,

introduzindo uma linha de ação mais democrática na administração da coisa pública23.

Porém, o modelo social obteve determinados desvios em sua real função, tornando-se

incapaz de acompanhar as intensas mudanças sociais e as transformações político-econômicas

por que passava o mundo. Tais mudanças desestruturaram o Estado de Bem-Estar Social, que por

volta dos anos 70 entra em crise, proporcionando o advento do chamado Neoliberalismo. O

surgimento desta ideologia acaba por desequilibrar a economia, aumentando o custo social para a

sociedade, uma vez que o Estado passa a privatizar e aumentar impostos, visando uma solução

para a crise a partir do seu minimalismo24.

Em novembro de 1989, ocorre uma reunião em Washington, capital dos Estados Unidos

entre funcionários do governo norte-americano e dos organismos financeiros internacionais ali

sediados, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Às conclusões dessa

reunião deu-se a denominação informal de “Consenso de Washington”, na qual se ratificou “a

proposta neoliberal que o governo norte-americano vinha insistentemente recomendando, por

22 WOLKMER, Pluralismo Jurídico, 3ª ed, São Paulo, 2001, p. 49. 23 COMPARATO, op. cit., p. 30. 24 WOLKMER, op. cit., p. 58.

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meio das referidas entidades, como condição para conceder cooperação financeira externa,

bilateral ou multilateral”25.

As propostas do Consenso de Washington nas 10 áreas a que se dedicou convergem para dois objetivos

básicos: por um lado, a drástica redução do Estado e a corrosão do conceito de Nação; por outro lado, o máximo de

abertura à importação de bens e serviços e à entrada de capitais de risco. Tudo em nome de um grande princípio: o da

soberania absoluta do mercado auto-regulável nas relações econômicas tanto internas quanto externas26.

Segundo CHOSSUDOVSCKY, inaugura-se uma “nova divisão de autoridade”, agora nas mãos

de instituições que agem em caráter supranacional, operando dentro do sistema capitalista global

como órgãos reguladores da política econômica dos países em desenvolvimento. Assim, o

próprio sistema democrático desses países é colocado a prova, já que “os eleitos para altos cargos

públicos atuam cada vez mais como burocratas e os credores do Estado tornaram-se depositários

do poder político real, agindo discretamente nos bastidores”27.

O mesmo cardápio de austeridade orçamentária, desvalorização, liberalização do comércio e privatização é

aplicado simultaneamente em mais de cem países devedores. Estes perdem a soberania econômica e o controle sobre

a política monetária e fiscal; seu Banco Central e Ministério da Fazenda são reorganizados (freqüentemente com a

cumplicidade das burocracias locais); suas instituições são anuladas e é instalada uma ‘tutela econômica’. Um

‘governo paralelo’ que passa por cima da sociedade civil é estabelecido pelas instituições financeiras internacionais

(IFIs). Os países que não aceitam as ‘metas de desempenho’ do FMI são colocados na lista negra. (...)A

reestruturação da economia mundial sob a orientação das instituições financeiras sediadas em Washington nega cada

vez mais aos países em desenvolvimento a possibilidade de construir uma economia nacional: a internacionalização

da política macroeconômica transforma países em territórios econômicos abertos e economias nacionais em

‘reservas’ de mão-de-obra barata e de recursos naturais28.

O Estado Neoliberal nada mais é do que um resgate da visão Liberal do Estado Moderno, e

atua sob o lema “menos Estado, mais mercado”29. Veja-se que este fator passa a ser agravado em

épocas de crise financeira por que passa o modelo europeu de bem estar social. Os Estados se

25 BATISTA JÚNIOR, O Consenso de Washington: A Visão Neoliberal dos Problemas Latino-Americanos, 2. ed., São

Paulo, 1994, p. 5. 26 Idem, p. 26-27. 27 CHOSSUDOVSKY, A Globalização da Pobreza: Impactos das Reformas do FMI e do Banco Mundial, Tradução por

MARYLENE PINTO MICHAEL, 1. ed., São Paulo, [s.d.], p. 20. 28 CHOSSUDOVSKY, A Globalização da Pobreza: Impactos das Reformas do FMI e do Banco Mundial, Tradução por

MARYLENE PINTO MICHAEL, 1. ed. São Paulo, [s.d.], p. 28 e 30. 29 BEDIN, op. cit., p. 129.

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vêem obrigados a fazer drásticos cortes nos gastos sociais e com a máquina pública, com vistas a

reequilibrar seu sistema financeiro e refinanciar suas dívidas.

Nesse contexto, deduz-se facilmente porque as propostas neoliberais – além de defenderem

a omissão do Estado, a liberdade absoluta do mercado e a abertura da economia nacional ao

capital pela privatização de empresas e serviços públicos – também defendem a

desregulamentação e flexibilização das normas que tratam dos direitos sociais, para, com essa

prática, debilitar e até extinguir direitos conquistados tão duramente durante séculos de evolução

histórica. Dessa forma, criam um ambiente de concorrência, para o qual não faz sentido nem

manter mecanismos institucionais redutores da desigualdade social, nem assegurar os direitos

sociais.

Contemporaneamente não é possível analisar a situação estatal e a da cidadania fora da

ordem globalizada, que produz grandes efeitos sobre a soberania estatal e sobre a população em

si, que, indubitavelmente, é a maior prejudicada nesse modelo de Estado desvencilhado de suas

funções básicas. As políticas nacionais passam a estar à margem dos movimentos internacionais

de capital, e a necessidade de reequilíbrio financeiro leva países que por décadas atuaram com

grandes déficits orçamentários a conter seus gastos e cortar despesas, em especial nas políticas

públicas sociais.

A expressão cidadania, atualmente, está inserida em todo o mundo, com sentidos e

intenções diferentes. Possui um caráter de “estratégia política”30, pelo fato de expressar e

responder a um conjunto de desejos, interesses, aspirações, de uma imensa parte da sociedade,

porém não se confundindo com toda a sociedade. Sem dúvida, essa noção de cidadania deriva

dos movimentos sociais enquanto engendradores de uma nova forma de inserção de espaços além

das fronteiras nacionais, para a ascensão dos cidadãos aos meios de participação previstos, e com

isso buscar intervir nos rumos das decisões políticas que digam respeito aqueles diretamente

atingidos por elas, independente das fronteiras especiais e temporais.

30 DAGNINO (org.), Anos 90: Política e Sociedade no Brasil, São Paulo, 1994, p. 103.

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3. O modelo europeu e a questão da cidadania: haverá um espaço público

europeu?

Um dos objetivos da União Europeia encontra-se no artigo B do Tratado da União

Europeia, e é o do “reforço da defesa dos direitos e dos interesses nacionais dos seus Estados-

membros, mediante a instituição de uma cidadania da União; (...)”. Logo, denota-se a

preocupação fundamental em concretizar um nível de cidadania capaz de abraçar toda a União

Europeia, indo além das fronteiras dos estados-membros que a compõe.

Na noção de cidadania europeia encontra-se o direito a livre circulação e permanência no

território dos Estados-membros de qualquer cidadão (artigo 8. A, n. 1); bem como abarca também

um conjunto de direitos políticos, como por exemplo o direito eleitoral ativo e passivo nas

eleições municipais (artigo 8. B, n. 1); nas eleições para o Parlamento Europeu no Estado-

membro de sua residência (artigo 8, B, n. 2); direito de petição ao Parlamento Europeu (artigo 8.

D) e direito de queixa ao Provedor de Justiça (artigo 8, D, 2. parágrafo).

Entretanto, sabe-se que o espaço público europeu não traz nenhum debate público nas

instituições europeias. Não há um espaço público real na Europa, em que a cidadania participe,

decidindo. Não há um reconhecimento do pluralismo do conflito e nem uma articulação deste

conflito mediante mediações políticas. O que há é uma defesa de interesses nacionais nos órgãos

supranacionais.

A teoria de INGOLF PERNICE do constitucionalismo multinível parte da idéia de

transferência de legitimidade democrática dos cidadãos de cada Estado Membro para a União

Europeia e suas instituições31. Porém, as decisões nos órgãos comunitários estão umbilicalmente

ligadas às estruturas estatais, sendo muito difícil esta transferência de legitimidade. Trata-se de

uma perda de qualidade democrática, em verdade.

31 PERNICE, Multilevel Constitutionalism and the Treaty of Amsterdam: European Constitution-Making revisited?, in,

Common Market Law Review, 1999, n. 36. Disponível em: http:www.whi-berlin.de/documents/whi-paper0499.pdf.

Acesso em 04 nov. 2010, p. 707.

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Os setores eurocéticos afirmam que ainda não está presente uma identidade, um povo

europeu. Falta, portanto, o sujeito do processo constituinte, o coletivo singular de um povo, capaz

de se definir a si próprio como uma nação democrática. E nessa senda o conceito de povo

também é bastante problemático. Autores entendem que é este conceito de povo que une os

países, e como não há um povo europeu, não é possível uma constituição europeia32. Porém,

povo não é um conceito coerente para a idéia de sociedade multicultural e pluralista, como a

europeia. A categoria povo dá a idéia de uniformidade, engloba e faz homogêneo um conjunto de

pessoas. Porém, na União Europeia não há uniformidade, singularidade, mas sim uma sociedade

pluralista e multicultural com uma identidade de interesses33.

Nas palavras de DIETER GRIMM34, a língua também é um elemento importante para se

construir um modelo político comum, não havendo essa característica na Europa. Logo, para o

autor, ainda não há um povo europeu nem estruturas identitárias comuns, como um espaço

público promotor de uma identidade coletiva. Logo, seria muito difícil criar um espaço

democrático comum, em que necessidades e interesses sociais pudessem ser debatidos por

amplos setores da sociedade. E os setores eurocéticos confirmam este pensamento, de que a falta

de uma língua comum dificultaria um debate público europeu. Da mesma forma, afirmam não

haver meios de comunicação nem partidos políticos europeus, componentes necessários para a

criação de um espaço público europeu35. Tudo isso complicaria a construção de uma comunidade

supranacional.

32 GRIMM, Constituição e Política, Tradução de GERALDO DE CARVALHO, Belo Horizonte, 2006. 33 HABERMAS, Por qué Europa necesita uma Constitución, in, Revista Bimestral de Pensamiento Social, La

Factoría, 2005, n. 25-26, p. 1-11. Disponível em:

http://www.revistalafactoria.eu/imprimir.php?tipo=articulo&id=274. Acesso em 05 nov. 2010, p. 6. 34 GRIMM, Constituição e Política, Tradução de GERALDO DE CARVALHO, Belo Horizonte, 2006. 35 A criação de um espaço público europeu passa necessariamente pela revisão das agendas dos meios de

comunicação de massa. O interesse dos cidadãos europeus nas questões que digam respeito a União Europeia é algo

que precisa ainda ser despertado. Nesse sentido são as conclusões do CES – Conselho Econômico e Social de

Portugal, conforme artigo 92 da Constituição Portuguesa. Veja-se: “O aparente desinteresse e a conseqüente

participação limitada dos cidadãos europeus no processo de construção europeia, podem estar também relacionados

com o facto de as problemáticas comunitárias estarem muitas vezes em plano secundário nas agendas dos meios de

comunicação de massa, que deverão ser sensibilizados para a necessidade e a importância de ajudarem ao

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Entretanto, para HABERMAS, a ideia de constituição europeia não exige necessariamente

uma língua oficial36. Por exemplo, na Suíça há quatro línguas oficiais, e isso não impede que haja

uma comunidade constitucional. Na Espanha a diversidade de línguas também não impede uma

constituição comum, com autonomia política para as regiões-autonômas.

Dessa forma, o autor defende os seguintes pré requisitos funcionais de um projeto de União

Europeia, constituída democraticamente: a) a necessidade de um espaço público conjunto,

construído a partir de elementos de identidade capazes de construir uma identidade comum, “una

red que dé a los ciudadanos de todos los Estados miembros la misma oportunidad de tomar parte

en un amplio proceso de comunicación política concreta”; b) a emergência de uma sociedade

civil europeia e, por fim; c) a formação de uma cultura política que possa ser compartilhada por

todos os cidadãos europeus. Tais elementos seriam diferentes daqueles da modernidade,

tradicionais, como a língua e o povo37.

Concorda-se com o argumento habermasiano. O conceito de cidadania precisa ser

atualizado, fugir daquela visão tradicional da modernidade. Fundar uma cidadania de caráter

multilateral, a qual, na opinião de BALDOMERO OLIVER LEÓN38, geraria uma relação direta dos

cidadãos com a União Europeia e com as instituições comunitárias. Uma cidadania a ser

reconhecida pelos ordenamentos jurídicos dos Estados Membros. Afinal, o cidadão deve ser o

sujeito e fim mesmo da existência da União.

A cidadania europeia é reconhecida hoje por algumas iniciativas como, por exemplo, o

princípio geral de não discriminação por razão de nacionalidade, o qual assegura, mesmo que em

âmbito muito limitado, a participação política nas eleições ao Parlamento Europeu39. Também

nos mecanismos de âmbito local para possibilitar a votação dos residentes nas eleições

autárquicas ou municipais, decorrência do estabelecido no artigo 8, B, n. 1 do Tratado da União

esclarecimento das opiniões públicas. SERRA (Relator), O Futuro da Europa (estudo), Série “Estudos e

Documentos”, Lisboa, 2005, p. 23. 36 HABERMAS, op. cit., p. 5-8. 37 HABERMAS, op. cit.. 38 LEÓN, El Derecho de Sufragio como Elemento Estructural de la Ciudadania Europea, in, Revista de Derecho

Constitucional Europeo, n. 4, 2005, p. 197-218. Disponível em: http://www.ugr.es/~redce/. Acesso em 05 nov. 2010.

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Europeia, o qual aponta para a capacidade eleitoral ativa nas eleições municipais (fenômeno que

já era concedido em alguns países europeus, como em Portugal)40. E, por sua vez, o direito de

votar e de ser eleito para representante do Parlamento Europeu do seu país de residência41. Mas

em eleições nacionais esse problema se agrava, eis que só os nacionais têm direito a voto, mesmo

residindo no estrangeiro. Porém, apenas estes mecanismos de democracia representativa são

poucos para constituir uma sociedade essencialmente democrática. É preciso avançar para uma

maior participação dos cidadãos nos processos políticos europeus.

A proposta é a ampliação do conceito de cidadania, para todos os que vivem na Europa,

independente de sua nacionalidade, possam participar das decisões comunitárias, sem suplantar a

cidadania de cada Europeu em seu país. É preciso manter a ideia de identidade nacional e, ao

mesmo tempo, fazer surgir a ideia de cidadania europeia, a partir dos estatutos jurídicos42.

A formação dos Estados modernos do século XIX permitiu a construção de identidades

nacionais, não tanto a partir da vontade dos indivíduos, mas de uma ação do poder político

dirigida a esse sentido, voltada à formação de uma Nação. Porém, na União Europeia, a

construção de uma identidade comum não pode ser dada da mesma forma, pois não pode

39 LEÓN, op. cit., p. 197-218. 40 A aplicação deste artigo não tem sido muito pacífica nos países europeus. Conforme MARCELO REBELO DE SOUSA,

como por exemplo o caso dos cidadãos portugueses residentes em Luxemburgo, os quais não puderam exercer o

direito de participação nas eleições locais e mesmo nas eleições para o Parlamento Europeu. SOUSA, A Cidadania

Europeia – Nível de Concretização dos Direitos, Possibilidade de Alargamento e suas Implicações, in PEREIRA et al,

Em Torno da Revisão do Tratado da União Europeia, Coimbra, 1997, p. 123. 41 SÓNIA GODINHO ressalta que o Parlamento Europeu, órgão com funções legislativas, orçamentais, consultivas e de

controle político, “é o único que goza de legitimidade democrática directa, na medida em que é eleito por sufrágio

universal e directo dos cidadãos europeus. A representação dos cidadãos é feita com base num princípio de

proporcionalidade degressiva com um limite mínimo de 6 deputados e um limite máximo de 96 por cada Estado,

sendo que a composição máxima do PE será de 750 deputados.” Para a autora, “o reforço dos seus poderes,

resultante da sua equiparação ao Conselho como órgão legislativo e orçamental (art. I-20, n. 1) e principalmente do

estabelecimento do procedimento de co-decisão (processo legislativo ordinário nos termos adoptados no art. I-34, n.

1) como regra na aprovação dos actos legislativos europeus constitui um avanço indiscutível de democracia no seio

da União.” Porém, a mesma autora alerta que, apesar disso, ainda subsistem decisões legislativas europeias que

prescindem do acordo do Parlamento Europeu, ou que tem sua participação meramente consultiva. GODINHO,

Federalismo e Constituição Europeia: será a Constituição Europeia uma Constituição Federal?, in MARTINS

(Coord.), Constitucionalismo Europeu em Crise? Estudos sobre a Constituição Europeia, Lisboa, 2006. p. 54-55. 42 BALAGUER CALLEJÓN, Los Tribunales Constitucionales en el Processo de Integración Europea, in, Revista de

Derecho Constitucional Europeo, 2007, n. 7. Disponível em: http://www.ugr.es/~redce/. Acesso em 05 nov. 2010.

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suplantar as identidades nacionais, substituindo-as. A construção de uma identidade europeia

deve ser dada a partir da ideia de cidadania e de pertencimento, de um estatuto jurídico comum43.

A partir das conclusões de HABERMAS, entende-se que é preciso avançar, no sentido de

criação de um espaço público europeu, uma cidadania europeia, uma unidade entre os cidadãos

integrantes deste grande bloco. Nas palavras do autor “la opacidad en los procesos de toma de

decisión a escala europea y la ausencia de posibilidad de participación em ellos produce

desconfianza entre los ciudadanos44. É preciso constituir-se um vínculo de solidariedade entre as

pessoas, uma identidade comum capaz de ser projetada em suas instituições, a fim de que se

desenvolva um sentido de pertencimento e participação política pelos cidadãos ao nível de

instituições européias e não, apenas, nacionais.

De nada adianta falar de uma constituição europeia quando não se constrói conjuntamente

um sistema democrático, um espaço em que haja um debate público sobre problemas comuns, em

que sejam mediados os conflitos. A constituição não é fruto apenas de uma vontade política, nem

pode, em Estados Democráticos de Direito, ser imposta. São necessárias condições políticas,

culturais, jurídicas e sociais para que se permita falar de um direito constitucional comum. Talvez

ainda não seja a hora de haver uma constituição europeia, eis que tais condições ainda não

existem, bem como inexiste um espaço público de discussão e interrrelação pessoal entre os

cidadãos europeus e seus representantes. Porém, é preciso caminhar para a criação de um espaço

público de decisões fundamentais na Europa, combatendo a fragmentação da cidadania europeia

nos espaços públicos estatais45.

O problema da Europa hoje são as competências que deve assumir para tomar as decisões

fundamentais capazes de fazer frente à globalização. E para isso precisa adotar mecanismos ágeis

e rápidos de decisão, com a transferência maior de competências para as instituições europeias, a

qual necessariamente deve vir unida a uma maior democratização dessas instituições, eis que o

43 BALAGUER CALLEJÓN, La Constitución Europea trás El Consejo Europeo de Bruxelas y El Tratado de Lisboa, in,

Revista de Derecho Constitucional Europeo, 2007, n. 8, p. 11-41. Disponível em: http://www.ugr.es/~redce/. Acesso

em 05 nov. 2010, p. 33-35. 44 HABERMAS, op. cit., p. 6.

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déficit democrático da Europa é algo bastante presente. É uma questão não só de funcionalidade e

operacionalidade como também de democracia.

4. Considerações finais

Frente a todas as considerações, fica clara a existência de um déficit democrático na União

Europeia, provocado pelo descaso à cidadania, visto que as instituições comunitárias, por tentar

subsistir a uma ordem globalmente imposta, deixam à deriva o cidadão, seus anseios e

perspectivas, tornando-o uma engrenagem a mais da máquina comunitária, sendo que ele é a peça

principal desta engrenagem, ou seja, o formador da sociedade.

Há uma situação crescente de declínio da governabilidade tanto das democracias avançadas

quanto das democracias em desenvolvimento, ocasionada pela crise fiscal e pelo processo de

globalização, que desterritorializa e potencializa que novas instituições de poder, grande parte

delas alheias aos estados nacionais, passem a desestruturar toda a teia institucional constituída na

modernidade. A perda da governabilidade e do apoio da sociedade civil por um governo é um

problema grave, senão fatal, já que a governabilidade é confundida com a legitimidade do poder,

ou seja, com o apoio dos governantes perante a sociedade civil.

Sabe-se que tradicionalmente, nos regimes democráticos, a governabilidade é obtida a partir

dos seguintes fatores: a) da capacidade de suas instituições jurídico-políticas intermediar os

interesses estatais e os interesses da sociedade civil; b) do oferecimento de medidas de

responsabilização e accountability por parte dos políticos e dos burocratas em favor da sociedade;

c) de uma limitação das demandas sociais e do seu atendimento pelo governo; d) da existência de

um contrato social básico, nos moldes hobbesianos, capaz de garantir às sociedades atuais

padrões básicos de legitimidade e governação46.

Agora, é preciso avançar para uma maior governabilidade na União Europeia,

aprofundando e incrementando instituições jurídico-políticas capazes de intermediar os interesses

45 BALAGUER CALLEJÓN, La Constitución, cit., p. 20.

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sempre conflitantes internos de cada país, de seus diversos grupos sociais, regiões e etnias, como

também os interesses heterogêneos das nações. Aumentar o espaço de participação dos cidadãos

europeus na gestão e no controle dos órgãos e instituições supranacionais. Ou seja, é preciso

manter o modelo europeu de democracia, de accountability e de respeito aos direitos

fundamentais, adequando-o agora para o âmbito supranacional.

Há uma transformação, em que não se pode mais aplicar no processo de integração europeia

modelos antigos. É preciso criar novas categorias, porque se está frente de uma nova realidade. E

é necessário compreendê-la para, a partir daí elaborar estas novas categorias.

Alguns afirmam que a, a partir da crise fiscal deste início de século, a Europa está em parte

estagnada, e precisa encontrar formas criativas de avançar. Para PETER SLOTERDIK, está em voga

a forma de transição neste novo milênio da modernidade, capaz de se chegar a “uma nova criação

de forma política, para lá do Império – acima do Império – acima dos Estados-nação -, e então

uma coisa se torna clara: a política do futuro depende em larga medida de uma modernização da

função visionária ou profética da inteligência”47.

Para fazer frente às novas demandas, é preciso aumentar o poder político, o âmbito de

competência da União Europeia, bem como encontrar novas formas de participação cidadã e

accountability de seus representantes, com vistas a superar o déficit democrático dos órgãos

comunitários. Esta é a única saída para os Estados europeus manterem seu sistema de vida e sua

cultura constitucional e política, com a garantia dos direitos fundamentais, em especial dos

direitos sociais.

Nesse contexto há de interpretar-se a cidadania europeia paralela à cidadania dos Estados-

membros e desta dependente, pois os direitos que a integram serão reconhecidos

automaticamente a quem for nacional de um Estado-membro. Nas palavras de MARCELO REBELO

DE SOUSA, “o acolhimento dos direitos políticos dos cidadãos europeus, bem como do próprio

46 PEREIRA, A reforma do estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle, Brasília, 1997, p. 45-46. 47 SLOTERDIK, Se a Europa Acordar. Reflexões sobre o programa duma potência mundial no termo de sua ausência

política, Trad. de MANUEL RESENDE, Lisboa, 2008, p. 51.

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conceito de cidadania europeia, representa um passo na evolução do Direito Comunitário e de

todo o processo de integração europeia”48.

Logo, a democratização da União Europeia reclama instituições políticas capazes de

representar e/ou intermediar interesses entre instituições europeias e sociedade civil, canais de

ligação entre a representação e a cidadania, a fim de proporcionar uma relação dialógica entre os

atores envolvidos e decisões mais afinadas com o interesse público.

Sabe-se que o desafio de consolidação da democracia e o seu aprendizado é um caminho

árduo e tortuoso, a ser conquistado dia após dia. No dizer de CLAUDE LEFORD, seguido por

MARILENA CHAUÍ, democracia é uma constante invenção, a ser inventada no cotidiano, criando-

se novos direitos e reafirmando-se os já estabelecidos, reinstituindo-se o social e o político. Tem

um caráter aberto e subversivo, questionando suas instituições e se recriando a todo o momento49.

Devido a tais fatores, novas alternativas devem ser buscadas para reformular o atual quadro

social. A cidadania deve sofrer uma renovação em sua configuração clássica, atrelada ao Estado

Nacional. Deverá estar assentada em critérios democráticos de participação política que não a

confine apenas na representação e no ato de votar, tanto nas instituições nacionais como

comunitárias. Implica, portanto, em uma articulação entre democracia participativa e

representativa, sendo que para esta ser possível, é necessário que o cenário político comunitário e

nacional seja redefinido e ampliado.

Uma das razões fundamentais da sedução que a noção de uma nova cidadania europeia

exerce hoje em dia é a possibilidade de que ela traga respostas aos desafios deixados pelo

fracasso tanto de concepções teóricas, como de estratégias políticas que não foram capazes de

articular essa multiplicidade de dimensões que, nas sociedades contemporâneas, integram hoje a

busca de uma vida melhor. Dessa capacidade de articular os múltiplos campos onde se trava hoje

48 SOUSA, op. cit., p. 128. 49 LEFORT, A invenção democrática: os limites do totalitarismo, São Paulo, 1983; CHAUÍ, Cultura e democracia, 7.

ed., São Paulo, 1997, p. 209.

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a luta pela construção da democracia e pelo seu aprofundamento, depende o futuro da nova

cidadania europeia enquanto estratégia política, social e econômica.

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