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MARCELO CEZAR

S DEUS SABEDITADO POR MARCO AURLIO

O nosso agradecimento estende-se s duas faces de Eva:

Lucimara Gallcia,por nos representar o caminho, a verdade e a vida.S Deus sabe o quanto a sua alma nobre.

E

Ktia Cabello,pelo dom de embelezar o nosso trabalho.S Deus sabe o quanto a sua alma sensvel e bela.

Sinopse:

Nossas escolhas tecem as tramas dos fios de nosso destino. A inteligncia da vida, contudo, transforma nossas decises em fonte de autoconhecimento e sucesso.Porque um acidente de carro ceifa duas jovens vidas? O que ou quem toma a deciso de qual dos dois irmos gmeos deve morrer? E a identidade da moa morta,por quefoi ocultada? Se a vida inteligente, o mistrio apenas reflexo da ignorncia. O destino tem suas leis. Neste livro encontramos muitas respostas que nosajudama entender como a vida funciona. Mas no queira adivinhar o futuro. Tudo segue na Sabedoria Universal. E diante de nossas limitaes: S Deus Sabe.

Sumrio

Captulo 1 ---------------------11Captulo 2 ---------------------17Captulo 3 ---------------------31Captulo 4 ---------------------45Captulo 5 ---------------------55Captulo 6 ---------------------71Captulo 7 ---------------------83Captulo 8 ---------------------91Captulo 9 -------------------- 103Captulo 10 ------------------- 117Captulo 11 ------------------- 137Captulo 12 ----------------- 151Captulo 13 ----------------- 165Captulo 14 ----------------- 173Captulo 15 ----------------- 183Captulo 16 ----------------- 191Captulo 17 ----------------- 201Captulo 18 ----------------- 217Captulo 19 ----------------- 229Captulo 20 ----------------- 243Captulo 21 ----------------- 253Captulo 22 ----------------- 261Captulo 23 ----------------- 279Captulo 24 ----------------- 293Captulo 25 ----------------- 307Captulo 26 ----------------- 321Captulo 27 ----------------- 335

CAPTULO 1

1966. O mundo passava por uma das mais profundas transformaes sociais, polticas e culturais ocorridas no sculo XX. As pessoas assistiam extasiadas,outrastantas estarrecidas, aos avanos tecnolgicos, evoluo da guerra fria, ao surgimento da cultura pop e s mudanas radicais no comportamento dosjovens. A rebeldia juvenil tomava propores cada vez maiores, atingindo e se manifestando atravs de vrios outros segmentos da sociedade. Logo, o mundo inteiroseguiaa juventude britnica, aderindo ao som dos Beatles e s ousadas minissaias criadas por Mary Quant.Os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que investiam em tecnologia para enviar o homem lua antes dos soviticos, tambm enviavam seus jovens para a Guerrado Vietn.No incio desse ano, j eram contabilizados mais de cento e oitenta mil soldados em combate. Os americanos passavam tambm por graves problemas sociais. Osnegros,depois de anos sendo mantidos margem da sociedade, lutavam pela igualdade de direitos, tendo Martin Luther King como lder desse movimento.O Brasil tambm no escapou das transformaes. O golpe dado pelos militares havia quase dois anos, comeava a mostrar as profundas feridas criadas nasociedade.Considerado o pas do futebol, nem mesmo a expectativa de se tomar tri-campeo com a prxima Copa do Mundo na Inglaterra, como acontecera respectivamente em1958na Sucia e 1962 no Chile, era capaz de amenizar a dura vida de muitas das oitenta e quatro milhes de almas brasileiras sufocadas pela ditadura.O Congresso fora fechado, direitos polticos foram cassados, os partidos polticos extintos. A populao comeava a questionar o golpe. Afinal de contas,para queele servira? Por quanto tempo duraria? Voltaramos a ser um pas democrtico? - eram perguntas que circundavam as mentes de alguns setores da sociedade, descontentescom o rumo que a nao tomava.O pas comeava a se transformar numa bomba prestes a explodir. Manifestaes pela democracia pipocavam nas praas pblicas quase que semanalmente. Muitosestudantes,artistas, intelectuais e polticos clamavam pelo retorno dos civis ao poder.Esse clima tenso e pesado diminua um pouco com os recm-criados festivais de msica popular, com a empolgao pelas novelas dirias e com a turma daJovem Guarda.Embora diante desse panorama tumultuado, nada era capaz de tirar Rogrio de seu estado de euforia. Enquanto para muitos o ano fosse palco de lutas e manifestaes,para ele seria um ano de conquistas e realizaes. Acabara de terminar a faculdade e antegozava o prazer da to esperada festa de formatura.Os pensamentos fervilhavam-lhe a mente, com as imagens dele e Leonor, a namorada, chegando colao de grau, sendo cumprimentados por amigos e familiares.- Imagine s, eu entrando no baile de formatura com Leonor, a mulher mais linda que eu j conheci - pensava.Ele estava coberto de razo. Leonor era uma moa encantadora, linda. Alta, esguia, pele bem clara, cabelos castanhos, olhos verdes, lbios carnudos. Faziaum belopar ao lado de Rogrio, tambm muito atraente. Alto, forte, pele bronzeada, olhos azuis e cabelos pretos bem lisos, que o gel teimava em manterem jogados paratrs.Namoravam havia dois anos e formavam um casal adorvel.O sonho maior do jovem, de formar-se em Administrao de Empresas j estava concretizado. Faltavam dois sonhos a serem realizados ainda no decorrer desse novoano:diversificar os negcios de seu pai e casar-se com Leonor.Rogrio sempre fora um rapaz aplicado. Mesmo fazendo parte de uma famlia economicamente estvel, quis ser independente desde cedo, sentir-se til, ter oprpriodinheiro. Trabalhava no escritrio central do pai, responsvel pelo controle de uma rede de papelarias, desde os quinze anos. O contato desde cedo com o escritriolhe dera estmulo para estudar Contabilidade e, posteriormente, Administrao.Seu irmo gmeo, Ricardo, no se interessava muito pelos negcios.Nunca se adaptara rgida disciplina imposta pelas escolas da poca e tampouco se interessara em trabalhar, fosse no escritrio ou em alguma loja da rededo pai.Embora fosse firme e decidido quanto profisso que desejava seguir, perdia-se no campo afetivo. Ricardo sentia muita dificuldade em se relacionar com as meninas,o que o tornava um rapaz tmido e inseguro. A toda e qualquer moa que se aproximava, ele se entregava de corpo e alma, fazendo todos os caprichos da amada.Desnecessriodizer que tempos depois a garota se enjoava dos excessos de agrados, e ele era abandonado. Frustrado em suas relaes, extravasava seus sentimentos reprimidosatravsde monlogos, sempre diante de um espelho como testemunha e fiel espectador. Ricardo adorava representar.Desde garoto era flagrado em frente penteadeira de Ester, sua me, fazendo poses e gesticulando. A contragosto, Andr matriculara o filho numa escola deteatro.Era uma preocupao diria que povoava a cabea do pai:- Puxa vida! O que vai ser do meu filho quando crescer, quando se tornar um homem? Eu sei que tenho dinheiro para que ele viva bem, mas ser ator? Isso no carreira...- dizia sempre, orando para que o filho no seguisse essa profisso.Ricardo no dava ouvido a tais comentrios. Compreendia que, desde a morte de sua me, naturalmente seu pai passara a se preocupar cada vez mais com ele ecom seuirmo. Ele tentava, debalde, mostrar ao pai que no tinha perfil para ser seu sucessor frente s papelarias. Demonstrava, atravs de um temperamento divertido,quecontrole de dinheiro, organizao e sentar-se atrs de uma mesa cheia de papis no eram o seu forte.- Pelo menos h algum na famlia que vai fazer essa rede de papelarias prosperarem. Acho timo que Rogrio goste de ficar enfiado horas a fio dentro doescritrio- dizia sempre ao pai.Os irmos se davam muito bem e eram fisicamente idnticos, nos mnimos detalhes. Somente os pais, depois de anos de contato, conseguiam distinguir quem eraquem,embora fosse ntido o devotamento maior por parte da me a Rogrio.Ricardo incentivava Rogrio nos estudos, que retribua incentivando o irmo a dedicar-se ao teatro, cinema e mais recentemente, televiso.Rogrio ultimamente sentia uma felicidade indescritvel. Estava realizando seus sonhos, portanto era natural estar feliz, muito embora, l no fundo de seupeito,sentisse que algo muito maior estava por acontecer. No conseguia decifrar, s sentia um bem-estar muito grande. Comeara o ano sentindo-se leve como uma pluma.Logo ele, um rapaz que sempre fora muito dinmico, dedicando-se aos estudos e s lojas do pai.Numa dessas noites quentes de janeiro, ao deitar-se, Rogrio sentiu-se muito cansado.Aps remexer-se de um lado para o outro, levantou-se da cama e abriu a janela. Procurou inspirar o ar puro da leve brisa que, sorrateira, invadia seu quarto. Sentiuum delicioso aroma de perfume, e em seguida todo o cansao comeou a desaparecer. Espreguiou-se, bocejou e deitou-se novamente. Olhando para as estrelas atravsda janela de seu quarto, Rogrio adormeceu.Nesse momento, seu esprito separou-se de seu corpo fsico. Ele acordou, sentindo-se mais leve e disposto. Ao olhar para os lados, viu sua me ao p da cama.- Mame! Quanto tempo! - exultou.Ester, procurando conter as lgrimas que se misturavam, entre doces e amargas, afagou-lhe os cabelos com amor. Com voz doce e melodiosa, tornou:- Querido, no reclame. Passamos o reveillon juntos, no se lembra?O jovem, um tanto confuso, procurando fazer fora para lembrar-se, retrucou:- Vagamente... Mas por que papai e Ricardo nunca est conosco? Por que s aparece para mim?- Disse-lhe isso muitas vezes, meu amor. Ainda no est no tempo certo de saber. Em breve vida espiritual ser-lhe- descortinada. Estou aqui para dar-lhetodoo meu amor e apoio, alm de torcer para que voc aceite os fatos como so. Confie.- Voc me disse isso na outra vez. Confie... - Ele coou e meneou a cabea, procurando entender o que a me lhe falava.- Isso meu amor, confie. Agora preciso ir.- Mas j?- J, mas em breve teremos mais tempo. Aguarde... E confie.Ester levantou-se e beijou a testa do filho. Em seguida, Rogrio adormeceu e seu esprito permaneceu deitado um palmo acima de seu corpo.Uma voz doce, porm firme, tirou Ester do pranto que teimava em domin-la.- Querida, agora deixe-o. Ele no pode perceber o seu desespero. Controle-se. Voc encontra-se preparada para essa empreitada. O plano maior confiou-lhe essamisso.No v ceder. Estamos quase chegando ao fim. Voc precisa manter sua vibrao em sintonia com nossos amigos da luz.Ester, limpando as grossas lgrimas que desciam pelo rosto, procurou recompor-se.- Voc est certo, Otvio. Desculpe. Quando chego perto de Rogrio meu corao comea a trepidar...Ela ruborizou-se. Otvio considerou:- Deixe-o trepidar. O corao, quando trepida por amor, est em sintonia com a luz, vibrando de acordo com a alma. No se acanhe pelo que sente por Rogrio.Lembre-seque ele foi seu filho nessa ltima encarnao justamente para perceberem o verdadeiro amor que os une.- A vida nunca erra. Somente sendo me eu pude aprender a reformular a paixo doentia que arrastamos por muitas vidas.- Exatamente. O amor de me incondicional, puro e verdadeiro. Por viver em sintonia com esse amor, voc foi capaz de reavaliar seus verdadeiros sentimentosporRogrio. S Deus sabe como manejar isso, Ester. Agora vamos. No podemos mais ficar aqui. Passamos da hora.- Est certo.Ester passou delicadamente as mos nos cabelos do filho. Virou-se para Otvio e lhe deu as mos.Logo ambos volitaram e seus espritos fundiram-se ao brilho magistral das estrelas, que davam um colorido prateado ao vasto universo.

CAPTULO 2

A idia da compra de um carro para Rogrio, como presente de formatura, fora de seu irmo. Ricardo procurava, sempre que possvel, incentivar o pai.Costumavadizer:- Pai, ele se matou de estudar. Ficava o dia inteiro trabalhando a seu lado e depois saa correndo para a faculdade. Eu sei que ele gosta muito de estudar, e queest se formando naquilo que gosta que e sempre sonhou. Bem que o senhor podia dar um carro para ele, no?Andr, passando as mos por entre os cabelos prateados, procurou argumentar:- Eu estava juntando dinheiro para comprar um carro para cada um. Embora estejamos bem de vida, no tenho condies de comprar dois carros de uma s vez.Eu malterminei de pagar o Simca.- Sei disso. No estou resmungando, porm levo uma vida mais sossegada. No preciso e no dependo de carro. Um veculo no est nos meus sonhos, porenquanto.- Voc no se importaria meu filho? No ficaria zangado caso eu comprasse primeiro um carro para o seu irmo?- Claro que no, pai. Ele merece. E caso precise de carro, eu pego o dele, ou o do senhor, ou ando com o Douglas, nosso motorista.- Filho, voc vale ouro! - tornou o pai emocionado. - Pena que no abraou uma profisso de futuro certo. Gostaria muito que voc seguisse uma carreiraslida. Infelizmentenem tudo na vida como queremos que seja. Mas voc um excelente rapaz. Adoro voc.- Eu tambm o adoro. Quanto carreira, no se preocupe. Estou seguindo a minha intuio, a minha vontade. Sou-lhe profundamente grato por me pagar o cursode teatro.Saiba que no farei faculdade somente para agrad-lo.- Estude Comunicao, ento.Estapeando levemente as costas do pai, Ricardo redargiu:- Pai, eu adoro o que fao. O senhor ficaria contente de ver seu filho trabalhando em algo que no gostasse que no preenchesse sua alma de alegria e contentamento?- Voc no acha que isso conversa fiada? Como fica o amanh? E quando eu no estiver mais aqui? Vai viver do qu, meu filho?- Vou viver de rendas - concluiu o filho, com largo sorriso nos lbios. - J temos um administrador na famlia, no preciso me preocupar. E tem outra coisa,pai.- Fala Ricardo, fala...- Rogrio est pensando em ficar noivo. Um carro para ele e Leonor ser mais til do que para mim, que estou sem ningum, concorda?Andr percebeu o tom de malcia com que o filho lhe dirigira a palavra. Passando as mos pelas costas de Ricardo, respondeu bem-humorado:- Est certo. Voc sempre me dobra. Mas acha mesmo que seu irmo vai ficar noivo de Leonor? E se ela no quiser morar em So Paulo?- Duvido. Leonor gosta muito da irm.- Aquela tal de Odete que anda sempre de mal com a vida?- No a conheo para tecer quaisquer comentrios.- No falo por mal. Seu irmo que me disse. Ela vivia bem em Braslia com o marido. Vai ver ficou deprimida quando ele foi transferido para So Paulo.- Pode ser. Em todo caso, tudo caminha a favor de Rogrio. Ele muito convincente. Se quiser, pode fazer Leonor mudar-se com ele at para o Amazonas. Eletem muitalbia.- Espero que seu irmo se acerte com Leonor. Sempre gostei muito dela, excelente moa. Caso decidam morar no Rio, pelo menos eu e voc vamos nos divertircom aquelasbeldades na praia, certo?Ricardo se divertia com o jeito do pai. Mas sentia um leve aperto no peito quando tocava no nome de Leonor. Percebera desde o incio o quanto invejava o irmo.Emsua mente havia inclusive aventado a possibilidade de se passar por Rogrio para chegar mais perto, sentir o aroma suave que seu perfume vaiava. Afastava-se semprequando ela estava por perto. No podia trair o irmo. Procurando disfarar o que ia a seu peito, perguntou bem-humorado ao pai:- J pensou no carro?- Cheguei a pensar num Simca igual ao nosso.- Pensou em algum outro modelo?- Talvez um Aero-Willys.- gozao? Pai, voc est comprando um carro para o seu filho. Esses modelos so lindos, excelente mecnica, mas muito conservadores.- E qual carro voc acha que deveramos comprar para seu irmo?Passando os dedos pelo delicado furinho no queixo que deixava-o mais bonito, Ricardo considerou:- Um Fusca. Um carro superbacana. uma brasa, mora?- Est certo. Mas pare de falar comigo usando essas palavras esquisitas. Voc j um homem, no um adolescente. Por acaso aderiu Jovem Guarda?- No. Mas outro domingo, quando estava passando pela Consolao, foi impressionante ver a quantidade de jovens que faziam fila para entrar no teatro e assistirao programa. Pelo menos agora a garotada tem o rock nacional. E lembre-se que no h limite de idade para se apreciar qualquer gnero musical.- Voc est certo. Fale como quiser, oua a msica que quiser. Estou muito feliz. Voc tirou o fardo que eu carregava nas costas. Estou aliviado por compreender-me.Assim que os negcios melhorarem, dar-lhe-ei um carro.- No pense nisso agora. J disse que me viro. Agora vamos at a loja. Estou louco para escolher a cor.Saram de casa felizes e radiantes, em busca do presente de Rogrio.Ricardo era um rapaz educado e inteligente, no seguia os ditames sociais. Por mais avassaladoras e desastrosas que fossem suas relaes afetivas, ele eraequilibrado.A nica mulher que lhe despertara o interesse fora Leonor. Ele a vira primeiro, mas Rogrio fora mais rpido. Quando tomara coragem para falar com a moa,ela jse encontrava nos braos do irmo. Resignara-se e procurara esquecer.Rogrio no se envolvia afetivamente com as mulheres. Desde adolescente namorava uma garota atrs da outra. Estava sempre atrs do prazer. Nunca acreditaranumarelao estvel, at o dia em que conhecera Leonor.Nesse vero Rogrio sentia-se leve, feliz, pressentia que algo muito bom estava por acontecer. Ser que se casaria em breve? Chegara a pensar nessa possibilidade,afinal de contas Leonor era excelente companheira. Gostava muito dela, mas no sabia ao certo se era amor. Ser que logo assumiria a direo das lojas dopai? Indagava-separa tentar descobrir o porqu de sentir-se excitado e feliz, porm leve e despreocupado.Radiante com o presente de formatura, Rogrio subia e descia a Rua Augusta, na capital paulista, com os amigos madrugada adentro. Sentia-se um adolescente. Agoraque tinha as noites livres, freqentava lugares interessantes e na moda, como a badalada boate Cave.Leonor, por sua vez, prestara vestibular para o curso de Psicologia no Rio e em So Paulo. Conseguira passar nas duas cidades. Estava feliz ao lado de Rogrio.Poressa razo, optara por fazer o curso em So Paulo, estando mais perto dele e de sua irm Odete.Sentia-se triste por deixar Carmem, sua me, sozinha morando no Rio. Tentava a todo custo convenc-la a morar em So Paulo, mas Carmem no queria sair doRio. Sempredizia:- Eu no sou uma invlida. Trabalho e sou dona da minha vida. Sou funcionria pblica. Tenho emprego fixo e garantido. Graas a Deus, seu pai nos deixouesta belacasa. No preciso de ningum.- Vai ficar aqui sozinha? A sua filha, o seu genro e os seus netos esto em So Paulo. Agora sou eu quem est se mudando para l. Pea transfernciana prefeitura.- No to fcil assim, filha. Est tudo muito conturbado neste pas. Eu prefiro ficar quieta no meu canto, levando a minha vida. Tenho minhas amigas,minhas novelas.Voc vem passar os feriados comigo, o que acha?- Voc osso duro de roer!Percebendo a firmeza na deciso da me, Leonor deu novo rumo conversa:- Rogrio est chegando amanh. Vamos passar o fim de semana com a senhora e depois partimos para So Paulo. As aulas vo comear logo e a faculdadeprecisa de umasrie de documentos. H tambm o baile de formatura semana que vem. Quem sabe Rogrio no a convena?- Pode vir o Rogrio, a sua irm, ou o papa. Estou convicta do que quero. Sempre gostei de me virar. E vou continuar assim at morrer.- Como eu e Odete podemos ser to diferentes da senhora? Odete to insegura que s vezes chego a pensar que ela no seja sua filha.- Engano seu. Sempre fui apegada a vocs duas, dependente de seu pai, e muito, mas muito insegura. Da a vida tirou o seu pai de mim. Tive de me virar. Notnhamosparentes ricos. S ficamos com esta casa, mais nada. Batalhei muito. Valeu o esforo. Como poderia ficar apegada s minhas filhas se eu tinha que pensar numamaneirade sustent-las? Hoje estamos bem. Trabalho, ganho o meu dinheiro. No preciso me preocupar em pagar seus estudos, pois voc ingressou numa universidade pblica.O que mais posso querer?- Um marido! No seria timo a senhora se casar de novo?- No me faz falta nenhuma, tanto que nem penso nisso por ora. Estou viva a tanto tempo que j me acostumei a viver sozinha.- Mas quem sabe, no ? Um bom partido sempre bem-vindo! E a senhora ainda no de se jogar fora.- Sei disso. Quem sabe, um dia aparea um que arrebate o meu corao?Carmem possua atitudes firmes e temperamento forte. Casara-se com Otvio mal havia completado dezesseis anos, pouco depois de perder os pais num acidente detrem.No tinha irmos e perdera o contato com seus familiares, que moravam na regio Centro-oeste. Era uma linda garota. Olhos verdes penetrantes, estatura mignon,cabeloscastanhos que contrastavam com sua tez morena. Logo no primeiro ano de casamento nascera Odete. Dez anos depois, Carmem engravidara novamente. Durante a gestao,Otvio morrera de ataque cardaco. Fora um grande baque. Por pouco ela no perdera Leonor. Com duas filhas para sustentar e sem nunca ter trabalhado, matriculara-ses pressas num supletivo. A duras penas, formara-se e prestara concurso para trabalhar na prefeitura. Desde ento fizera tudo o que estava ao seu alcance paracriarsuas duas meninas. Aos dezoito anos, Odete casara-se com Tadeu e logo engravidara. Assim, Carmem seguia sua vida junto a Leonor. Davam-se muito bem. Eram muito amigas.Continuavam, me e filha, a conversar animadas, quando foram surpreendidas pelo som de uma buzina estridente. Como no a reconheceram, Carmem perguntou:- Quem ser uma hora dessas?- Deve ser o Rogrio, me! Tenho certeza que ele.- Mas ele no vinha s amanh?- No sei, mas algo me diz que ele. Vamos ver.Foram at a porta de entrada. Ao abrir a porta Leonor gritou, animada:- Ele veio no carro novo. Nossa, Rogrio, que carro lindo!- O carro pode ser lindo, mas o som da buzina horroroso - retrucou Carmem, bem-humorada.- Desculpem, meninas. No esperava chegar a esta hora. que est chovendo muito, seno chegaria muito mais cedo. Parece que o Rio vai sumir em meio a tantagua.- Entre logo, meu filho - disse Carmem. - A chuva est muito forte.Rogrio entrou correndo pela varanda da casa. Abraou e beijou Leonor. Aps beijar Carmem, considerou:- Estou morrendo de fome. Por acaso tem alguma coisa que restou do seu jantar?- Claro que sim. Fiquem a na sala conversando e namorando um pouquinho, enquanto eu vou esquentar sua comida. Volto num instante.- Puxa, Leonor, sua me maravilhosa. Pena que eu no tenha mais uma me - lamentou.- No fale assim, querido. Voc ainda teve a sorte de conhecer e conviver um pouco com sua me. E eu que nem cheguei a conhecer meu pai?- De certa forma no fez falta alguma. Sua me tem cumprido os dois papis muito bem.Carmem, ouvindo a conversa, deu meia-volta:- Meu filho, esta a nica cobrana que sinto por parte de Leonor. Ela sempre reclamou por no ter tido um pai. Se a vida a privou de um porque haviamotivos.- A senhora fala assim porque nunca foi rf de pai. Perdeu o seu quando tinha quinze anos, mas pelo menos conviveu um pouco com ele. Eu acredito em Deus, masnuncaaceitei o fato de no ter um pai. Nas minhas oraes sempre peo isso.- Isso o qu? - perguntou Rogrio, com expresso interrogativa no semblante.- Peo para Deus me dar um pai. Sonho com um casamento para minha me. Minhas preces sero ouvidas, acredite.- No ligue para ela, Rogrio - tornou Carmem, meneando negativamente a cabea. - Se ela pensa que vou caar um marido para satisfazer os seus caprichos,vai morrerrf.- Assim que se fala, dona Carmem. Deixe que vou demov-la dessa idia.- Tenho certeza disso, meu filho - respondeu Carmem, sorridente.Dando o assunto por encerrado, a jovem senhora beijou a testa do casal e voltou para a cozinha.Meia hora depois, o casal foi chamado para comer. Levantaram-se e foi com gosto que Rogrio saboreou a refeio. Leonor, vendo o semblante do namorado contorcidode prazer, tambm no resistiu e fez seu prato. Ao terminarem, Carmem perguntou, ansiosa:- Quando vo embora?Rogrio apressou-se em responder:- Amanh noite, porquanto quero chegar o mais rpido possvel em So Paulo. Leonor precisa dar entrada com os papis na universidade. Odete vai querergrudar nairm por um bom tempo. Por isso quero ir rpido para ficarmos a ss um pouco.- No fale assim de minha irm. Grudar em mim? Ela no tem ningum para conversar. S a mim. Se o marido lhe desse mais ateno...- No diga isso, Leonor - redargiu Carmem. - Sabemos que Tadeu tem feito tudo para manter o casamento. Sua irm vestiu o papel de esposa. Tadeu no queriauma esposa,mas uma companheira.- A senhora defende o seu genro, dona Carmem?- No questo de defend-lo. Sabe, meu filho, Odete sempre demonstrou ser dependente e insegura. Desde garota. Quando meu marido morreu, ela entrou emparania.Achava que no iramos conseguir sobreviver sem ele. Sempre foi muito medrosa. E no acho que ela estivesse pronta para se casar, embora percebesse em seusolhoso amor que sentia por Tadeu.- Me! - gritou Leonor.- Como pode falar uma coisa dessas na frente de Rogrio?- No me importo em falar a verdade, minha filha - e virando-se para Rogrio:- Bem, meu filho, o casamento de Odete para mim sempre foi fadado ao fracasso, mesmo Tadeu sendo louco por ela. Odete no expressa o seu amor, no faz nada porsi.Sempre precisou ter algum que lhe desse o comando. Por isso infeliz. E do jeito que as coisas andam, acho que Tadeu vai pedir o desquite. Leonor empalideceu.No imaginava que a relao de sua irm com o marido estivesse to ruim.- verdade, me? E a? O canalha larga dela, deixa os filhos... E o que Odete vai fazer? Sempre foi uma me e esposa dedicada. No tem profisso nenhuma.Paroude estudar para casar-se.- No sei, Leonor. Sua irm fez uma escolha. Ningum a obrigou a casar-se. Tadeu tambm no foi machista a ponto de no permitir que ela trabalhasse.Ela quis serdona de casa e me, por livre e espontnea vontade. Caso ocorra o fim do casamento, ela ter de fazer o que eu sempre fiz desde que seu pai morreu: se virar.- Mas o seu caso diferente, dona Carmem - disse Rogrio.- O marido morreu, mas o marido de Odete est vivo.- E o que importa estar morto ou vivo? De que adianta um casamento de aparncias, onde no h trocas, onde s h dependncia e falta de sintonia? Qualo problemade se separarem? Tadeu no merece ter uma mulher apagada e infeliz a seu lado.- Acha que eles no se amam, me?- Tadeu sempre amou e sempre vai amar sua irm. Odete que no consegue perceber isso. Dedica-se demais a suas lamentaes e esquece de seu marido. Tudotem ummeio-termo. Ela abusa demais da pacincia de Tadeu.- Nossa! Agradeo a Deus por ser sua filha e amiga, me -e virando-se para Rogrio: - Voc j viu uma cena como esta, meu bem? Uma me que, em vez dedefender afilha, defende o genro?- Acho que sua me est certa. Eu mal conheo Odete e Tadeu. Tivemos pouco contato. Mas agora, ouvindo sua me falar, percebo que ela est coberta de razo.Suairm nem parece esposa do Tadeu, mas sim a me dele. Alis, sua me est com a aparncia muito melhor do que a dela.- Voc acha, meu filho? Estou to bem assim? Leonor, esse o homem certo para voc. Ele muito sincero.Riram muito. Continuaram a conversa por horas a fio. No se deram conta do horrio.Aps tomarem um delicioso licor, Carmem pacientemente ajeitou o quarto que antes era de Odete para Rogrio. Despediram-se e foram desfrutar o silncio quea altamadrugada lhes ofertava.Carmem demorou a conciliar o sono. Mal cochilou, comeou o pesadelo. Gritos, pedidos de socorro, pnico e desespero. As cenas embaralhavam-se em sua mente. Imagensse sobrepunham. Nas cenas, a imagem de seu marido falando-lhe com firmeza, porm tranqilo:- Estarei a seu lado. No se preocupe.Carmem sentiu ser to real que acordou assustada, suando bastante.- Meu Deus, o que ser isto? Um sinal?! Que sonho mais confuso! Por que venho sonhando a mesma coisa h dias? Que esquisito...Levantou-se, perdera o sono. Sentiu sede e foi para a cozinha. Bebeu um pouco de gua e ficou sentada numa cadeira, apoiando os cotovelos na mesa.- Uma semana sonhando a mesma coisa! O que Otvio quer me dizer com "estarei a seu lado?" Ser que alguma coisa ruim vai acontecer comigo? Tenho s quarentae quatroanos! Ser que est chegando h minha hora? Ser que vou partir?Carmem sentiu uma grande dor no peito. No era uma dor fsica, mas um aperto emocional, uma sensao de perda. Friccionou o peito, como a arrancar essa sensao.Foi at a estante na sala e comeou a vasculhar os livros, enfileirados e organizados. Curvou sua cabea para ler os ttulos, que se encontravam na vertical.Falava para si mesma:- Onde est aquele livro que Marta me emprestou?Continuou procurando. Achou.- Ah, este livro aqui. Hum, "O poder do pensamento positivo", de Norman Vincent Peale. J ouvi bons comentrios a respeito.Pegou o livro, sentou-se em sua poltrona preferida, ao lado de um grande abajur. Com as lmpadas voltadas para a cabeceira e o centro da poltrona, sentiu-se vontadepara iniciar a leitura. Carmem no era religiosa. No gostava de ser escrava de alguma doutrina ou religio que fosse. Era catlica apenas pelas convenessociais.Raramente ia igreja. Quando seu marido falecera, no conseguira encontrar respostas do porqu de sua partida.Aps sentar-se na poltrona e antes de ler o livro, lembrou-se da poca em que fora buscar conforto com um padre.- No sei o que fazer! Eu no tenho parentes, meu marido morreu. Tenho uma filha de dez anos e outra recm-nascida para criar. Por que Deus me tirou Otvio?- Foi vontade Dele. Agora seu marido descansa no mundo dos justos.- Descansa?! Otvio era um homem dinmico, trabalhador muito ativo. Era moo, no gostava do cio. Acha que iria querer descansar? Ele sempre gostou detrabalhar.Se for assim, por que ento Deus no mata os maridos vagabundos, bbados e encrenqueiros, ou aqueles que batem nas esposas? Por que Deus tem que levar o bommarido,companheiro, atencioso, carinhoso como o meu...- Porque o seu marido era bom. E Deus quer pessoas boas a seu lado.- Desculpe-me, padre. Mas no somos todos filhos de Deus?- Claro.- E por que Ele no leva os filhos imprestveis? No seria melhor bani-los do mundo? J que Ele o Pai, que leve os filhos para o lado Dele e lhes duma lio.- Voc no est entendendo. Todos somos filhos de Deus, mas alguns preferem seguir outro caminho. Esses nunca mais sero chamados por Ele.- Eu vim procurar conforto, e veja s o que encontrei: baguna na minha cabea. Da maneira como fala, me parece que Deus parcial, levando somente aquelesque Lheso caros. Isso no justo. E deixar uma mulher sem marido tambm no leal. Desculpe, mas estou com muita raiva, no entendo esse jogo de Deus.At mais...Carmem voltou ao presente. A conversa com o padre na poca da morte de Otvio fora um ponto decisivo para no seguir mais nenhuma religio. Em seu ntimo,acreditavaque a vida continuava depois da morte. Mas no gostava de se meter nesses assuntos. Tinha medo, e o preconceito sobre o tema era muito forte.Novamente seus pensamentos comearam a fervilhar. Pensou em sua vizinha, que tinha como melhor amiga. Marta era uma mulher liberada para a poca, que passaraalgunsanos morando com parentes em Washington, nos Estados Unidos. Tempos atrs, participara de uma manifestao contra a guerra no Vietn. Desiludira-se com ogovernoamericano, mas encantara-se com alguns membros de um grupo pacifista dos quais se tornara amiga ntima. Esse grupo mostrou-lhe algumas obras sobre o poder do pensamentoe outras obras ligadas espiritualidade, pois naquela poca comearam a pipocar grupos pacifistas nos Estados Unidos, principalmente em So Francisco. Martaficaraencantada com a possibilidade de poder se expressar livremente no mundo, sem estar ligada a qualquer tipo de conveno. Mesmo beirando os trinta anos, sentia-sejovem. No considerava idade fator limitante, pelo contrrio. A liberdade de poder ser e de fazer o que o corao clamava, e no o que a sociedade mandava,alegravasua alma.Assim que retornara ao Brasil, procurara encontrar livros que retratassem de maneira livre as leis da vida.Marta instalara-se em pequeno, porm gracioso sobrado em frente casa de Carmem, no bairro de Ipanema. Por ser diferente da maioria das mulheres de seu tempo,encontraraem Carmem uma grande amiga.Carmem, tambm descontente com os ditames da sociedade, encantara-se com a maneira descontrada de Marta, suas histrias e seu modo novo e interessante depensar.A princpio, acatara com facilidade os ensinamentos relativos ao pensamento positivo. Quando o assunto chegava prximo s questes espirituais, ela vetavao assunto,com veemncia.- No adianta Marta. No me venha com delongas. Pensamento positivo faz sentido, mas espiritualidade, no. J chega o que passei sendo educada em colgiode freirase sendo obrigada a freqentar a igreja aos domingos. Com pacincia e ternura na voz, Marta insistia:- O que lhe ofereo so outras coisas. Nada ligado a dogmas ou igrejas. Pelo menos, voc podia me ouvir. Veja, para se ligar em Deus, ou estar conectada aosespritosde luz, no h necessidade de se converter em alguma religio. Basta aceitar e observar que essa realidade existe, que estamos cercados por espritos.- Por enquanto fico com este livro aqui que voc est me emprestando. S de voc falar em espritos eu fico toda arrepiada. J no chega sonhar commeu marido falecido?No me sinto preparada para aceitar essa realidade agora.- Est bem, voc quem manda. Muito embora algo me diga que voc logo interessar-se- pelo assunto - disse Marta, olhando para um ponto indefinido dasala e comvoz suave, porm firme.- Por que me diz isso?! - rebateu Carmem, assustada.- Disse o qu? Eu no disse nada de mais.Carmem abriu os olhos, suspirou profundamente. Voltou a colocar ateno no livro e comeou a folhe-lo. Leu alguns trechos. Foi se acalmando lentamente,mas o apertoem seu peito continuava forte. Mais algumas pginas e, vencida pelo sono, adormeceu na poltrona.

CAPTULO 3

Assustada pelo barulho dos troves e relmpagos, Carmem acordou. Sonolenta, procurou pelo relgio. Oito da manh. Falou em voz alta, ainda que bocejando:- Nossa, acabei dormindo na poltrona.Levantou-se, sentiu o corpo dolorido pela posio em que dormira. Procurou se espreguiar. Pegou o livro, que havia cado de seu colo e o ps na estante.Ouviu passosno corredor.- Bom dia.- Ainda cedo, Rogrio. Por que no volta para a cama?- Bem que eu queria. Dormi bem, graas ao silncio da noite. Mas h pouco acordei incomodado com o barulho das trovoadas.- Esto fortes mesmo. Fique aqui na sala, vou fazer um bom caf para ns. Depois acordaremos Leonor. Antes, vou me banhar. Tive poucas horas de sono e precisomerefazer. Com licena.Carmem foi para o banheiro. Rogrio ligou a televiso e recostou-se no sof.- Venha ver, dona Carmem. Olhe que calamidade. A emissora est mostrando tudo.Carmem voltou para a sala.-Meu Deus, Rogrio! Que horror!Realmente, o estado da Guanabara estava um caos. Centenas de barracos deslizaram pelos morros feito casas de papelo. Muitas ruas se transformaram em rios, tamanhaa quantidade de gua que no parava de cair. Milhares de desabrigados.- A emissora est fazendo coleta de mantimentos e cobertores. H muita gente desabrigada. A senhora tem alguma coisa para ofertar?- Tenho sim. H ainda algumas roupas do Otvio que esto no guarda-roupa. Acho que vou juntar tudo e poderemos enviar. Agora eu vou me banhar e fazer um bomcaf.Pegue o endereo a na televiso. Depois do almoo poderemos levar algumas coisas.- E eu passarei num mercado qualquer e comprarei alimentos de primeira necessidade.Carmem voltou para o banheiro. No lhe agradava ver aquelas cenas to assustadoras e trgicas. Rogrio continuou assistindo ao noticirio.- Bom dia, meu bem! J est acordado?- Eu que pergunto, Leonor. Voc, to dorminhoca, j est de p?- No agento mais ouvir tanta trovoada.Esparramando-se no sof e recostando a cabea suavemente no peito de Rogrio, Leonor perguntou, olhos fixos na televiso:- O que isso?- E o estrago que as enchentes esto causando aqui no Rio.- Puxa, eles esto fazendo campanha de arrecadao de mantimentos e roupas. Eu no podia sequer imaginar que a cidade estivesse sendo to castigada pelaschuvas.Carmem veio at a sala.- Bom dia, minha filha. Tambm est assustada com as cenas das enchentes?- Estou, mame.- Eu estava com Rogrio agora a pouco na sala e resolvi que vou ajudar, levando as roupas de seu pai que ainda tenho no guarda-roupa.- Vou fazer uma compra de gneros alimentcios de primeira necessidade - tornou Rogrio.- timo. Tambm quero ajudar. Depois do caf vou fazer uma limpeza no meu armrio. Tenho um monte de roupas que no uso h muito tempo. A senhora tambmpodia fazero mesmo. Veja o que no usa h bastante tempo e doe tambm.- Pronto! - rebateu animadamente Rogrio. - Agora arrumamos servio. Enquanto vocs ficam arrumando os armrios e separando as roupas, eu vou ao mercadoaqui pertofazer as compras, o que acham?- Est chovendo muito, Rogrio - disse Carmem. - Espere baixar um pouco a gua.- Qual o problema, dona Carmem? O mercado fica aqui perto, no se preocupe. Mas, por favor, vamos tomar caf? Estou morrendo de vontade de comer os seus bolinhos.Desligaram a televiso e seguiram animados at a cozinha. Aps o caf, Carmem e Leonor foram vasculhar os armrios. Rogrio saiu compra de mantimentospara asvtimas da enchente.- Me sabe que tem muita roupa aqui que eu no vou usar mais, mandei tanta roupa l para a casa da Odete e ainda tem mais; No sei por que, mas estou comvontadede doar tudo.- V com calma. No adianta voc agora querer vestir todos os desabrigados.- No isso. Sinto que no preciso disso tudo. Alm do mais, Odete prometeu-me comprar roupas novas. Disse que presente de Tadeu.- Est vendo? E voc implica com seu cunhado. Ele um amor de pessoa.- s vezes eu sinto que a senhora muito dura com Odete. Mas algo l no fundo me diz que fala a verdade. No gosto de dar o brao a torcer, mas realmenteTadeu um excelente marido.- Marido, companheiro, amigo e amante - completou a me. - Odete me diz que ele perfeito em tudo. Mas ela se perde naquela casa, implicando com as crianas,etambm no se cuida mais.- Concordo. Sabe, o que Rogrio falou na cozinha verdade. A senhora parece filha dela. Odete est um caco. Engordou tanto! E os cabelos, ento? Aquelescabeloscacheados, longos, viraram um monte de tufos desalinhados. Ela est acabada.- Corre srio risco de perder o marido. A vida est sendo muito generosa com sua irm, porquanto Tadeu continua lindssimo, como sempre foi. E est apaixonadoporela, ainda. Mas saiba que o amor precisa de combustvel. Um homem apaixonado precisa de uma mulher tambm apaixonada, que se cuide e que tenha uma boa conversa,que seja companheira. No vejo isso em Odete. Acho que ela vai perder o marido, caso no mude a postura.- No diga isso, mame! Pode deixar que assim que eu me instalar em So Paulo, vou ajud-la. Dar-lhe-ei uns conselhos. A meu ver, essa minha ida para SoPaulo vaimudar as nossas vidas.-Tenho certeza. Voc tem a cabea aberta, tem opinio. Odete se parece comigo na poca em que me casei. Precisei levar uma bofetada para acordar.- A senhora acha que a morte de pa... Papai...Leonor pigarreou. Emocionada, com os olhos marejados, tornou:- Desculpe, me, ainda difcil para mim. Nasci e cresci sem a presena dele.Carmem passou delicadamente as mos sob os olhos da filha, procurando secar suas lgrimas.- Imagino que isso no tenha sido fcil para voc - tornou, tambm emocionada a me, tentando penetrar no ntimo de sua filha para perscrutar-lhe a dor.Ficaramquietas por alguns segundos. No perceberam que foram envolvidas por deliciosa e suave brisa. Um bem-estar invadiu o quarto. Sentindo-se aliviada de sbito,Carmemcontinuou:- Seu pai estava radiante com a gravidez, fez planos para voc.Pelo menos ele a amou enquanto voc estava aqui dentro - falava, fazendo sinal com a mo apontando para a barriga.- Que intuio, a de papai. Quanto mais voc fala, mais gostaria de conhec-lo, ou de ter um. Por que voc no se casa de novo, me?- Ora, filha, continue separando as roupas. Que conversa!Meneando negativamente a cabea, Carmem considerou:- Voc arrumou um bom partido, talvez seja hora de largar essa fixao de ter um pai. No me obrigue a fazer coisas das quais no gosto. Nos damos bemporque nosrespeitamos. No quero que esse respeito entre ns seja quebrado por um capricho seu.Leonor, envolvida ainda pela brisa suave que pairava no quarto, tornou, amvel:- Peo desculpas. Voc sempre foi fantstica, me e pai ao mesmo tempo. Devo tudo o que sou a voc, inclusive o ingresso na universidade. Sem o seu suporte,amore carinho, tudo seria mais difcil.Carmem nada falou. Apenas deixou que lgrimas de gratido escorressem pelo seu rosto.- Me, eu fico aqui reclamando a falta de um pai, enquanto voc me deu tudo. Agora fico pensando, deve ter sido duro para voc tambm.Leonor, limpando as lgrimas e esboando um leve sorriso, continuou: - Caso seu pai no morresse, eu no teria virado a mulher que sou hoje. Com a morte dele tive de despertar e me virar na vida, entende?- Mas no poderia haver um jeito mais fcil da senhora acordar? Precisava Deus matar papai?- No meta Deus nisso, Leonor. Eu tenho o meu jeito de enxergar as coisas. Se o seu pai continuasse vivo, eu continuaria sendo a pacata esposa de sempre. Noteriaestmulo para mudar, e nem conscincia. Eu acho que a vida, como sbia, tirou-o de perto para que eu voltasse a me valorizar, a descobrir a fora queh em mim.E graas a Deus hoje eu sei que tenho muita fora.- Concordo. Voc anda muito filosfica ultimamente. De onde vem tirando esses novos conceitos? Marta est enchendo a sua cabea? Daqui a pouco a senhoravai usarminissaia e ser falada na rua.Deram sonoras risadas. Carmem continuou:- Eu sempre fui assim, desde que Otvio morreu. Voc que nunca percebeu.- Pode ser, mame. Agora que me sinto madura, comeo a perceber outras coisas. Mas prometo-lhe que nunca serei como Odete.Rindo muito, me e filha foram tirando do armrio s roupas que no mais queriam usar.Carmem estava um pouco intrigada com tudo isso. Leonor estava tirando todas as suas roupas, e deixou o armrio totalmente vazio. At algumas peas que antesnemCarmem se atreveria a usar, tamanho o apego, estavam agora entrando na velha mala para serem doadas.Carmem sentiu novamente o aperto no peito.-Talvez seja a chuva, ou o noticirio - pensou.Continuaram a ajeitar as roupas.Duas horas da tarde. Nada de Rogrio aparecer. O telefone tocou. Me e filha correram desesperadas para atend-lo. Leonor alcanou primeiro o aparelho:- Que minha filha? - perguntou Carmem, aflita.Leonor fazia gestos largos com a mo para que a me baixasse o tom de voz.- Fale mais alto... No estou escutando direito. A ligao est com muito chiado!Carmem, postada aflita ao lado da filha, apertava as mos em desespero.- Est bem - respondeu Leonor. - Estarei aguardando... Ah, a ligao caiu.- Quem era, minha filha?- Rogrio. Parece que atravessou uma rua toda alagada, entrou gua no motor, ou algo parecido. Est saindo do mecnico. Disse que em meia hora estar aqui.- Ento vamos voltar a assistir TV.Carmem foi at o aparelho e o ligou. A emissora continuava com transmisso ao vivo, mostrando pontos da cidade do Rio completamente inundados. Logo depois ouviu-seo reprter dizer:- Sero bloqueadas as vias que do acesso s estradas, devido aos deslizamentos de terra. Por precauo, o aeroporto tambm ser fechado.- Leonor, acho que vocs vo ter de ficar alguns dias por aqui. Do jeito que andam as chuvas, voc e Rogrio no podero partir.- Isso no. Nem que tenhamos de ir de trem. Eu preciso entregar os papis da universidade na segunda-feira. Tenho a prova do vestido de formatura com a modista.No se esquea que o baile sbado prximo.- Sei, mas, e a? melhor perderem dois dias, no acham?- Que coisa! Voc nunca foi assim antes. O que est acontecendo? Por que tanto medo?- Sabe, voc tem razo. Nunca fui medrosa. Faz uma semana que venho sentindo essa dor no peito...- Dor no peito? Por que no me falou? Vamos marcar uma consulta hoje mesmo.- No isso. uma dor esquisita. Eu sinto um aperto, uma tristeza muito grande. E tenho sonhado com seu pai.- E mesmo? A ltima vez que a senhora sonhou com ele foi quando a tia Alzira morreu.- Isso o que me preocupa. Sempre que sonho com seu pai tenho a certeza de que algo ruim vai acontecer. Talvez eu esteja ficando velha e...- Velha?! Me, voc e engraada. Mal virou os quarenta anos se acha uma velha? Bonita desse jeito? Est melhor do que eu.- Tambm no assim, minha filha. Talvez seja algo com o casamento de Odete e Tadeu.- Pode ser. A senhora pode estar preocupada com ela. Coisas de me.Massageando levemente o peito, como a afastar a dor emocional que a incomodava, Carmem respondeu:-Pode ser minha filha, pode ser.Meia hora depois Rogrio chegou.- Meninas, impressionante! Acho que s o Cristo Redentor vai se safar dessa.Carmem, ainda aflita, perguntou-lhe:- Est to feio assim, Rogrio? O que a televiso est mostrando verdadeiro?- Sim.- Ento o melhor a fazer ficarmos por aqui.- Nada disso, mame. Vamos almoar. Depois vamos levar as roupas e os mantimentos para a emissora. Logo em seguida partimos.- Isso no, Leonor. Vocs no vo partir hoje.- O que isso, dona Carmem? A senhora nunca agiu assim.- Acho que ela est impressionada com as cenas que a televiso mostrou, Rogrio.- Tambm acho, filha. Eu no sou assim. Vamos almoar e mudar de assunto.- Assim que eu gosto de ver.Desligaram a televiso e foram para a cozinha. Rogrio e Leonor arrumavam a mesa para o almoo enquanto Carmem esquentava a comida. Terminada a refeio,Rogrioe Leonor foram pegar as roupas que levariam para a emissora, bem como os seus pertences.- Filha, eles vo fechar o acesso s estradas. No acha melhor partirem amanh?- De jeito algum. Leonor me disse que viu na televiso anunciarem o bloqueio s estradas logo mais noite. E por quanto tempo ficaro bloqueadas? Eu jliguei parao meu pai e l em So Paulo no chove tanto assim. Portanto, creio que assim que pegarmos estrada estaremos livres das guas.- Concordo - disse Leonor. - Meia hora de estrada com chuva e depois acaba. Fique tranqila, me.- Vou tentar.Carmem procurou ficar tranqila, mas no conseguia. O aperto em seu peito voltou na mesma intensidade que antes. Torceu as mos no avental e abraou os dois:- Vo com Deus, meus filhos, mas tomem cuidado. Voc acha que o mecnico fez tudo direito, Rogrio?- Sim. Os freios ficaram molhados, mas o carro novo, estou com ele h pouco mais de um ms.- No se preocupe, me. Assim que chegarmos, ligamos.- Estarei esperando.- Escutem - disse Rogrio.- O qu? - perguntaram ambas.- A chuva parou. Est vendo, dona Carmem? No precisa ficar preocupada.Entraram no carro e partiram. Carmem ficou acenando do porto de casa. Do outro lado da rua, uma voz familiar:- Boa tarde.- Marta! Que bom v-la. Pensei ontem em voc.- Em mim? O que a fez pensar em mim?- Lembra-se de um livro que me emprestou h um bom tempo?- Lembro. Ento finalmente voc tirou o preconceito e comeou a leitura.- Livros sobre pensamento positivo, que possam me ajudar a mudar algumas crenas velhas e erradas, sempre foram bem-vindos. Nunca tive preconceito em relaoa esseslivros.- Eu a entendo. No queira se forar. Deixe que a vida a conduza. Saiba que ela usa uma srie de recursos para a nossa melhora. Se voc tiver de aprofundaros seusestudos no campo da espiritualidade, aguarde. A vida lhe dar o sinal, no tempo certo. s confiar.- Obrigada, Marta. Conversando com voc me sinto melhor. Confesso que estava sentindo um aperto muito forte no peito. Mas j passou. Estou sentindo isso desdeasemana passada.- E quando dorme, sente alguma coisa?- No. Mas tenho sonhado com Otvio, e imagens embaralhadas vm a minha mente.Marta sentiu leve tontura. Procurando dissimular, redargiu:- Preciso ajeitar umas coisas em casa. Depois nos falamos.- Est certo, minha amiga. Tambm preciso entrar. Tenho a cozinha para arrumar.- At logo, Carmem. E lembre-se: tudo est certo na vida. S Deus sabe o que melhor para ns.- Por que est me dizendo isso?- Por nada. V descansar, minha amiga. Boa tarde.- Boa tarde.Marta entrou em casa e sentiu um grande desconforto. Acostumada a preces e mentalizaes, sentou-se no sof. Fechou os olhos e em sua mente vieram os rostosde Leonore Rogrio. Sentiu arrepios pelo corpo. Procurou serenar e orar, desejando o melhor para ambos. Em seu ntimo sabia que algo estava prestes a acontecer. Suspiroualiviada e adormeceu.Carmem entrou em casa. Reinava um silncio absoluto. Ligou a televiso, foi virando o seletor de canais at encontrar o programa de auditrio. Aumentou ovolume,para ouvir da cozinha. Cantarolando as msicas do programa, foi lavar a loua do almoo.Rogrio e Leonor chegaram ao endereo que a emissora havia dado. Pararam perto de um enorme galpo. Dezenas de pessoas corriam num frentico vaivm, procurandoorganizaro que os moradores da cidade mandavam aos desabrigados. A cidade toda estava solidria com a tragdia das enchentes. Roupas e mantimentos no paravam de chegar.Entregaram o que traziam no carro e foram embora.Por pouco, Rogrio e Leonor no conseguiriam seguir viagem. Quando acessaram a estrada, os policiais comearam a bloque-la.- Tivemos sorte, hein, Leonor? Imagine ns dois presos no Rio por mais alguns dias?- Nem me fale. Chegando hoje noite na casa de Odete, tenho de agendar a prova do vestido. Vai ser uma semana tumultuada, voc ver.Aps uma hora de estrada, a chuva voltou forte.- No acha melhor pararmos? Estou ficando com medo.- Medo? Por qu? Por acaso est chovendo dentro do carro?- No, claro que no! Mas olhe, est ficando embaado. Vamos parar naquele posto logo ali.- Est bem, voc venceu, por ora.Rogrio pegou o acostamento. Logo pararam no posto. Leonor, menos preocupada, considerou:- Vamos aproveitar e comer algo. No comi muito no almoo. Temos horas de viagem pela frente.- Concordo. Vamos fazer um lanche.Desceram e foram ao restaurante do posto. Aproveitaram e cada qual foi ao toalete.Ao entrar no banheiro, Leonor deparou-se com uma moa aos prantos. Sensibilizada com a cena, aproximou-se e perguntou:- O que houve? O que est acontecendo com voc? Est machucada?A moa continuava a chorar. Nada falava. Leonor continuou:- Vamos, me diga. O que se passa?A moa esfregou os olhos com a manga da blusa, como a afastar as lgrimas que teimavam em rolar pelo seu rosto. Leonor pegou um pedao de papel higinicopara elaassuar o nariz. Feito isso, a moa lhe disse:- Desculpe. Estou sem rumo. Perdi minha famlia num deslizamento de terra l no Rio. Desesperada, pedi carona a um motorista de caminho...Novamente o pranto a impedia de falar. Leonor, com voz firme, disse:- Calma. Pare de chorar. No sei o que lhe aconteceu, mas chorar no vai ajudar agora. Continue, por favor.- Abalada com a tragdia, eu no sabia o que fazer. Com a roupa do corpo subi na bolia. Chegando perto do posto, ele parou o caminho no acostamento. Dissequeprecisvamos acertar o preo da viagem.Desatou a chorar novamente. Leonor entendeu a situao. Precisava saber se a garota tinha sido vtima de abuso sexual ou no, a fim de tomar providncias.Perguntou:- No quero ser indiscreta, mas preciso que voc continue a contar o que ocorreu. Se ele abusou de voc, vamos ter de procurar a polcia.- No! Ele no abusou de mim. Eu tenho dezesseis anos, mas sou esperta.- Voc tem s dezesseis anos? Parece que tem a minha idade.- porque sou alta como voc - respondeu a garota.- Bem, se ele no abusou, melhor assim.- Eu sei me defender. Ele veio em cima de mim, e eu dei um chute no seu...- Est bem, est bem - disse Leonor -, no precisamos entrar em detalhes. Mas por que ento voc est chorando?- Porque eu no tenho para onde ir. No tenho dinheiro, no tenho famlia, no tenho nada.- Ento vamos. V se lavar e passe bastante gua no rosto que voc volta comigo. Estou indo a So Paulo. Chegando l, veremos o que fazer.-Verdade?! Posso mesmo? No vai me cobrar nada?- E eu tenho cara de quem vai querer cobrar alguma coisa, menina?Ambas comearam a rir. Leonor ajudou a garota a se lavar e foram ao encontro de Rogrio. Ele estava irritado com a demora:- Pensei que voc tinha se afogado. O lanche j est frio. Quer que eu pea para requentar?- No precisa, Rogrio. No fique bravo. Demorei-me porque estava com... Com... Desculpe, mas qual o seu nome?- Cleide.- Bem, eu estava com Cleide, batendo um papo. Ela est precisando de carona e vai conosco para So Paulo.- Conosco? Voc maluca, Leonor? O carro est cheio de pacotes no banco de trs. Esqueceu-se que voc est se mudando? S tem espao para nsdois.- Calma. Esqueci-me desse detalhe, mas qual o problema? A Cleide aqui magrinha. Apertamos um pouco e vamos.- Mas vai ser muito desconfortvel. Leonor, so horas de viagem. No vamos conseguir, loucura.Cleide interveio na conversa:- Desculpem-me, eu no quero amolar ningum. S quero uma carona, mais nada. Com licena.Leonor tentou segur-la:- No, Cleide, fique. Resolveremos questo.- No se preocupem comigo. Eu me arranjo. At logo.Cleide, cabisbaixa e passos lentos, saiu do restaurante, voltando ao banheiro. Leonor virou-se para Rogrio:- Est vendo o que voc fez?- Como o que eu fiz? Ela se ajeita. No tenho nada a ver com isso. No gosto de dar carona a estranhos.- Sabia que tentaram estupr-la?Rogrio balanou a cabea. Confuso, indagou:- Como assim? Quem?- O rapaz que lhe deu carona l no Rio. Tentou agarr-la fora. Ela perdeu a famlia na enchente e est sem rumo. Ser que muito para vocfazer esse favor?- Desculpe-me, no sabia que ela havia passado por situao to desagradvel. V l, chame a garota. Ns a levaremos a So Paulo.Leonor rodou os calcanhares e saiu alegre em direo ao banheiro do posto. Encontrou a garota chorando novamente. Com voz amvel, disse-lhe:- No fique assim. J resolvemos tudo. Vamos realmente lev-la.Cleide estancou o choro no mesmo instante. De seus lbios abriu-se um enorme sorriso.- Muito obrigada. Deus lhe pague.Saram do banheiro e foram ter com Rogrio, que ainda estava no restaurante. Aproveitaram e pediram um lanche para Cleide. Sua fisionomia demonstrava que seuestmagoestava completamente vazio. Aps comerem um delicioso misto quente acompanhado de guaran, partiram.Leonor ajeitou-se no banco de trs, em meio aos seus pertences e Cleide sentou-se no banco da frente. Algum tempo depois, a noite era presente no cenrio e fortechuva voltou a cair. Leonor preocupou-se:- O vidro est embaando de novo. A visibilidade est muito limitada.- Eu sei, mas o que posso fazer? No posso desviar os olhos.Leonor abriu uma sacola e tirou uma flanela. Estendeu para a frente, dizendo:- Cleide, por favor, passe este pano a no vidro.- Deixe comigo.Rogrio, procurando dissimular o nervosismo, brincou:- Logo a chuva passa. Vamos, Cleide, passe o pano mais aqui perto de mim.A garota, solcita, comeou a limpar o vidro. Abalada ainda pelos ltimos acontecimentos, Cleide soltou um grito histrico, desviando a ateno de Rogrio.- Olhe o cachorro na pista! Cuidado!Tudo aconteceu rpido demais. Instintivamente, Rogrio desviou o veculo e freiou bruscamente. A pista molhada facilitou a derrapagem e os freios no responderam.O veculo desgovernou-se e atravessou a pista, capotando vrias vezes. Leonor foi jogada a grande distncia. Rogrio e Cleide morreram na hora.

CAPTULO 4

Noite de sexta-feira 13, ms de dezembro. Tadeu estava sentado confortavelmente no sof da sala, assistindo televiso. O programa foi interrompidopela vozgrave do reprter:- Interrompemos a programao para o pronunciamento do ministro da Justia.Atravs de cadeia nacional, o ministro colocava aos brasileiros os termos do Ato Institucional nmero cinco, bem como do Ato Complementar nmero trinta e oito,quedecretava o fechamento do Congresso Nacional.Com o AI-5, o Governo assumiria, por dez tenebrosos anos, controle irrestrito sobre a sociedade brasileira. O pas acabava de entrar num dos momentos mais tristese duros de sua histria, os famosos anos de chumbo.Naquela noite, mesmo para os que no acreditavam nas crendices da "sexta-feira treze", comeava o drama de muitas famlias. Muitas das pessoas que eram contraoregime militar foram perseguidas, torturadas e mortas. Logo, a censura em todos os meios de comunicao no permitiria que a sociedade ficasse a par de tamanhabarbrie.Tadeu comeou a suar frio. Passou a mo nervosamente pela testa. Suspirou:- Meu Deus! Eles no podem estar fazendo isso. No pode ser verdade!Enquanto o ministro continuava com o discurso, Tadeu ligou para seu amigo da universidade:- Al, Cludio? Voc est vendo tambm?Do outro lado da linha, ouviu-se uma voz preocupada e tensa:- Estou vendo sim, Tadeu. E agora? Estou com muito medo. No brincadeira. Eles vo pegar todo mundo. melhor a gente se preparar.- Cludio, somos professores. Ns s estamos ensinando aos nossos alunos. No podemos deixar de contar-lhes a verdade. Talvez precisemos mudar o tom e nocontaraos alunos alguns fatos da Histria que os milicos no queiram.- Isso um insulto - rebateu Cludio. Eu sou professor de Histria do Brasil. Estudei e me formei para qu? S porque eles querem manter o controle achamque podemsubjugar a nossa inteligncia?- Voc sabe que tem gente do governo infiltrado l na universidade. Lembra-se de quando invadiram e fecharam a Universidade de Braslia? Tivemos sorte de nosermospunidos. Vamos nos encontrar amanh no refeitrio. No convm ficarmos ao telefone. Com o decreto desse ato eles podem grampear o telefone de suspeitos.E ns somos.- Eu no sou suspeito, Tadeu.- Como no? Voc conta fatos da nossa Histria que no agradam aos militares. E tem mais.- Mais o qu?- Lembre-se que faz menos de dois meses que quase fomos presos l em Ibina. Sabamos que estvamos correndo risco, porque era um encontro ilegal, segundoo governo.Procuramos ajudar os estudantes. Marcaram a nossa cara, embora at hoje no saiba por que no nos prenderam. Precisamos tomar cuidado. Amanh conversamos.- Mas amanh sbado.- Por isso mesmo. No teremos escuta. E os ltimos exames terminaram hoje, portanto no haver alunos por l. E melhor. s oito da manh, no refeitrio.- Est combinado. Durma bem.- Vai ser difcil. Mas vou tentar. At amanh. Tadeu desligou o telefone com as mos molhadas pelo suor. O pnico povoava sua mente. O que faria agora?Como vivernum pas amordaado, tolhido por um regime que se mostrava cada vez mais austero? Deixou-se cair pesadamente no sof. Na televiso, o ministro continuavacom ostermos do AI-5.Na cozinha estava Odete, sentada na cadeira, escolhendo o feijo esparramado pela mesa. Alheia ao que ocorria naquele momento, estava prostrada. Cabea baixa,olhosfixos nos feijes. Suas mos mecanicamente iam separando-os.Tadeu desligou a televiso. No agentava mais ficar na sala vendo aquele monte de barbaridades. Levantou-se do sof, dirigiu-se cozinha. Passou porOdete, aindacabisbaixa. Abriu a geladeira e pegou uma cerveja. Com a voz nervosa, inquiriu:- Voc ouviu?- O qu? - perguntou Odete, sem levantar a cabea.- O ministro na televiso, Odete. Fecharam o Congresso. Muita gente vai ser perseguida, torturada, exilada.- E da?- Como e da? Voc louca?! No percebe que estamos cada vez mais longe da democracia?- E o que eu tenho a ver com isso? Vai mudar a nossa vida aqui em casa? Vai trazer a minha irm viva?Tadeu sorveu um gole na garrafa de cerveja e foi em direo esposa. Abraando-a por trs da cadeira e alisando suavemente seus cabelos, delicadamentedisse:- Meu amor, no adianta ficar assim. Faz quase trs anos que Leonor morreu. Por que voc no aceita a realidade? Ela se foi, era a hora dela.Odete revirou-se abruptamente. Deu um salto da cadeira, derrubando a cesta com os feijes pelo cho. Furiosa, comeou a gritar com o marido:- Voc vem com essa histria de que era a hora dela? Voc maluco, Tadeu? Que negcio esse de hora? Como Deus pde ser to cruel?- No fique assim, meu amor, desculpe. Eu sei que a dor muito grande. Voc sabe que eu no gosto de religio, mas acho que Deus no tem nada a vercom isso.- No tem nada a ver? Ento Ele faz o qu? Diga-me, Tadeu, Deus fica fazendo o qu? Escolhendo quem vai morrer? Escolhendo as pessoas boas e jovens, comuma vidapela frente? E por que que Ele no mata esses marginais? Por que Deus no leva esses arruaceiros que esto solta pelo pas?- No fale assim! No admito. Sei que voc sente muito pela morte da sua irm, mas veja a realidade. Muitos de ns ainda tm dignidade e esto lutandopara mant-lafirme e viva no pas. A democracia precisa ser soberana. No confunda arruaceiros com pessoas que querem uma vida digna para o pas, com direito liberdade.- E eu l quero saber de liberdade? Eu quero Leonor de volta!- Isso impossvel. Ns a enterramos. Ela est morta. Aceite.Odete no agentou. Cobrindo o rosto em desespero, desatou a chorar e saiu da cozinha estugando o passo. Subiu as escadas s pressas e trancou-se no quarto.Tadeu no sabia mais o que fazer. J havia tentado de tudo. Sentia estar em seu limite. Suas foras estavam se exaurindo. O noticirio da televiso e apostura amargade sua esposa fatigaram sua mente e corpo.Abrindo e fechando a boca, deixou-se cair no sof. Desabotoando o colarinho de sua camisa e agarrado a uma almofada, entregou-se ao sono.Tadeu remexeu-se no sof. Tateou a mesinha lateral procura de seu relgio. Sete e trinta da manh.- Meu Deus! Marquei com Cludio no refeitrio s oito horas. Preciso me arrumar rpido.Espreguiou-se, levantou-se do sof e olhou ao redor. Uma sensao de tristeza invadiu sua alma. Por que vivia um matrimnio fadado ao desquite? Onde fracassaracom Odete? Por que ela havia mudado tanto?Subitamente, sua mente passou a projetar imagens dos tempos de namoro. Esqueceu-se por instantes do compromisso assumido com o amigo e deixou-se cair novamente nosof. Com os olhos semicerrados, mos entrelaadas na nuca, Tadeu passou a recordar:- Puxa, como Odete era linda! Aqueles cabelos castanhos, sedosos, aquela pele suave...Suspirou profundamente e continuou em suas memrias:- Apaixonei-me por ela no instante em que a vi! Que corpo fantstico! Ah, Odete, como voc era moleca, divertida. O que aconteceu com voc? Por que tornou-setotriste e abatida?Lgrimas comearam a rolar por sua face triste. Ele j tentara de tudo para que a esposa voltasse a ser a mesma moa de anos atrs. Tentava, debalde, saberondehavia fracassado. Procurava dentro de si descobrir qual a sua parcela de culpa pela infelicidade da nica mulher que amara na vida.O fluxo de idias foi interrompido por uma voz doce e suave:- Papai, o senhor dormiu na sala? - indagou Lvia.Tomado pela surpresa, Tadeu nervosamente enxugou as lgrimas. Levantou-se de pronto e abraou carinhosamente a filha. Com voz que procurou tornar natural, respondeu:_ Dormi sim, minha filha. Sua me no estava muito bem e pediu-me para ficar s.Beijando o pai na testa, Lvia carinhosamente lhe disse:- Outra crise. Mame est abusando. Voc incrvel, pai. No sei o porqu de tanta resignao.Envergonhado, Tadeu baixou os olhos. Cabisbaixo, perguntou filha:- Voc me julga um bom marido, Lvia?- Ora, papai. Se eu fosse mulher feita, escolheria um homem como voc.Tadeu corou. Lvia procurou esclarecer:- Entenda, papai. No se trata aqui de transferncia. Estou falando que me casaria com um homem que tenha a mesma sensibilidade que voc. Eu admiro muito asua personalidade.Voc o marido ideal para qualquer mulher. Pena que mame no enxergue isso. Ela sempre se preocupou demais comigo e com Lucas. Mas agora que estamos crescendo,acho que ela se sente meio perdida, sem rumo.- Eu sei que voc ainda uma garota, Lvia. Apesar de adolescente, diferente das meninas da sua idade. Possui uma maturidade que me alegra e encanta.s vezesvejo em voc uma grande amiga, em vez de filha. Obrigado por me ouvir. Gostaria de conversar mais, mas estou atrasado. Tenho um encontro com Cludio na universidade.Os olhos de Lvia brilharam de emoo ao ouvir o nome de Cludio. Procurando disfarar o sentimento, deu um ligeiro beijo na testa do pai e foi correndopara a cozinha.- Voc j est bem atrasado. V tomar um banho rpido, enquanto eu preparo o caf.- Obrigado, filha.Na cozinha, Lvia procurou conter a emoo. Desde o primeiro dia em que vira Cludio, seu corao tremera.Perto de completar quinze anos, Lvia era uma linda garota Lembrava muito o pai. Possua uma vasta cabeleira loira, naturalmente cacheada, que se harmonizavacomsua tez clara e com seus olhos azuis e expressivos. O corpo bem feito e a altura lhe davam um aspecto mais maduro.O jantar servido por seus pais a Cludio, um ano atrs, no saa de sua mente. Percebera que o moo a olhara diferente. Porm, como no mais se encontraram,ficavana expectativa de que o pai convidasse o amigo professor para um jantar, na esperana de reencontr-lo.Ainda embalada pela figura bela e sorridente de Cludio, a garota foi despertada por uma voz rouca.- Caiu da cama? - indagou Odete, ainda sonolenta e relaxada.- Ora, mame, dormi cedo ontem. Estou desperta. Preparo o caf para o papai. Ele vai ter com Cludio logo mais.- Ontem seu pai disse algo sobre fechamento do Congresso, sei l, no me lembro direito. Estava com tanta saudade de Leonor que no prestei ateno noque ele medizia.Lvia, desligando o fogo do leite que ensaiava entornar da leiteira, dirigiu-se amorosamente at Odete.- Me, por que voc foge? No use a morte de tia Leonor para justificar seu comportamento. Voc j estava assim antes dela morrer.Odete, tomada de surpresa, redargiu:- Como assim?- Em vez de dedicar-se a sua aparncia e a sua relao com papai, mergulha somente nas responsabilidades do lar. Isso tudo antes de titia morrer.Odete, tomada por forte irritao, alterou o tom de voz:- Ora, quem voc pensa que para me dirigir a palavra dessa maneira? Escute aqui, voc no passa de uma garota ftil e pedante. S porque fica lendoos livros daquelaamiga esquisita da sua av, que alis no so prprios para a sua idade... Faa o favor de me respeitar, porque eu sou sua me.A garota, mesmo ouvindo os improprios, tornou tranqila:- Me, no adianta me xingar, nem tecer comentrios desse tipo. No precisa me agredir para se defender. Eu s quero ajud-la. Voc est se largandocada dia quepassa.- E quem vai fazer as coisas por aqui? Quem pode cuidar de uma casa grande como essa?- No se faa de vtima. Temos condies de pagar uma boa criada. H uma edcula nos fundos. Papai, eu e at mesmo Lucas tentamos anim-la a contrataruma empregada.- Voc bem poderia me ajudar. Voc e seu irmo no fazem quase nada.Lvia, imperturbvel, continuou:- Fazemos a nossa parte. Eu arrumo o meu quarto, Lucas, o dele. Sempre que estamos livres de nossos estudos, procuramos ajud-la nos afazeres domsticos. Asminhasresponsabilidades com os estudos so mais importantes do que lavar roupa. A senhora escolheu ter a vida que tem. No nos culpe.Odete, atordoada com as firmes palavras de Lvia, deixou-se cair pesadamente na cadeira. Chorando, acusou a filha:- Voc no me respeita, no me entende. Ningum me entende nesta casa. Eu pareo um ser do outro mundo. Ningum ouve minhas reclamaes. Vocsno ligam para mim.- Me, no me venha com esse discurso novamente. Por que voc se recusa a ser feliz? Tem um excelente marido, dois filhos que a adoram e fica se perturbandocomidias negativas a seu respeito.- Se pelo menos eu tivesse Leonor ao meu lado... S ela me entendia. E Deus a tirou de mim. No entendo como vocs querem que eu seja feliz depois daqueleacidente.Odete no aceitava a perda da irm. Sentia-se injustiada pela vida. Qualquer argumento para mostrar-lhe o contrrio era intil. Estava presa em seus castelosdeiluso.Lvia deu um leve suspiro, passou carinhosamente suas mos pelos cabelos desalinhados da me. Procurou ficar quieta. De nada adiantava demover sua me daqueleestado.Em silncio, passou a arrumar a mesa para o caf.- Ora, ora! No resisti ao cheiro do caf. Sabia que voc estava na cozinha, Lvia.- Bom dia, Lucas. Venha, j est quase tudo mesa. Papai j vem descendo.O garoto, bocejando ainda, beijou a me.- Bom dia me. Vamos, d-me um sorriso.Odete, mesmo entristecida em seus pensamentos, no resistiu ao jeito carinhoso do filho. Enxugando as lgrimas, procurou esboar um leve sorriso.- Bom dia, meu filho. Sente-se. Comecem com o caf. Vou me arrumar.- No senhora - entrecortou Tadeu. - Agora que desci, vamos todos juntos tomar o caf. J liguei para Cludio dizendo que vou me atrasar um pouco. Por sorte,eletambm perdeu a hora. Dormiu demais.- Estou com dor de cabea, Tadeu. Vou tomar um banho, depois deso para o caf.Odete levantou-se e foi se arrastando para o p da escada. Tadeu olhou para os filhos com ar cansado.- No fique assim - disse Lvia, pousando delicadamente suas mos nas do pai. - Um dia ela vai despertar para a vida. uma questo de tempo.- No sei no, minha filha. O estado emocional de sua me muito me preocupa. Ultimamente nem ao salo de beleza ela tem ido. Ela nada lembra a garota radiantequeconheci h anos.- Voc sempre fez a sua parte, o seu melhor. No se torture -interveio Lvia.- Acha mesmo?- Acho. O problema na relao de vocs no voc, mas o comportamento dela. Vamos deix-la imersa em seus pensamentos. Quando se cansar, ela largatudo isso.- No sei, filha. Voc to nova, to criana, e me diz coisas que s uma pessoa madura e sensata poderia dizer. Confesso que s encontro apoioe compreenso nassuas palavras e nas de Cludio.Novamente, leve tremor percorreu o corpo de Lvia. Procurando disfarar, perguntou em tom curioso ao pai:- A mame estava falando sobre fechamento do Congresso, censura. Aconteceu algo, pai?Tadeu, com voz tensa, respondeu:- Isso mesmo. Vocs j haviam se deitado ontem. O ministro da Justia baixou dois atos que nos probem de expressarmos livremente nossas idias. ofim da democracia.- E isso pode nos afetar de alguma maneira? - perguntou a filha, querendo entender.- Sim. Tanto eu como Cludio lecionamos Histria do Brasil. Teremos de tomar cuidado com as palavras. No sei como vou viver sendo vigiado o dia todo.- Ora, pai. No se preocupe. Procure se acalmar. No acho que o momento seja de aflio. Converse com Cludio, procure se abastecer de informaes.Nem tudo o quese diz na televiso deve ser acatado como verdadeiro.- Sei disso. Mas no foi nenhum reprter que falou ontem, mas o prprio ministro. Isso me preocupa.- De nada adianta o senhor ficar desse jeito. Vai mudar alguma coisa? No momento no. Tome o seu caf com tranqilidade. J ligou para o Cludio dizendoque ia seatrasar um pouco.- Ele j deve estar a caminho. Preciso ir.Tadeu sorveu mais um gole de caf. Levantou-se apressado, beijou os dois filhos e saiu.

CAPTULO 5

O dia amanheceu com o sol forte a despertar os habitantes do estado da Guanabara. O calor do vero convidava a todos para um delicioso banho de mar. Carmemmarcara de ir praia com Marta. Arrumava sua sacola quando a campainha tocou. Bem disposta e humorada, Carmem respondeu alto:-J vou. Um momento.Desceu as escadas e dirigiu-se rapidamente at a porta.- Bom dia, minha amiga. Como est hoje?- Estou bem melhor. s vezes me condeno... No sei se deveria me permitir ser feliz.- Por que diz isso? A tristeza no vai trazer sua filha de volta. No creio que Leonor gostaria de v-la triste e chorando pelos cantos.- Voc tem razo - e passando as mos pelos cabelos, continuou. - V pegar as cadeiras e as esteiras l no quintal, enquanto eu pego a sacola l em cima.- Assim que se fala. Vamos logo, porque daqui a pouco no teremos lugar para deitar. Est muito quente. Acho que todo o bairro est pensando em fazer omesmo quens.Saram animadas a caminho da praia. L chegando, no mesmo local que sempre marcavam, prximo ao per, Carmem e Marta encontraram alguns amigos. Montarampacientementeo guarda-sol e ajeitaram as sacolas e cadeiras. Passaram leo pelo corpo e deitaram-se de bruos nas esteiras, com os cotovelos postados na areia.Aps acomodarem-se, Carmem puxou conversa:- Sou-lhe muito grata. No fosse a sua ajuda, talvez no suportasse a perda de Leonor. Tem dias que a saudade bate forte, mas tento compreender e aceitar osdesgniosda vida.Procurando posio melhor para conversar com a amiga, Marta virou-se de lado. Com o cotovelo flexionado, mo segurando o rosto, disse animada:- Voc mudou muito, Carmem. Eu lhe disse que a vida s vezes nos acorda para a realidade espiritual de vrias maneiras.- Eu sei disso. Hoje entendo o porqu de muitas coisas em minha vida graas aos estudos que nosso grupo vem fazendo. Eu tinha uma viso muito diferente daespiritualidade.A maneira de encarar o mundo espiritual sempre me causou medo. Quando se fala em espiritualidade aqui no Brasil, logo pensamos em feitiaria ou macumba. Freqentaro Centro onde voc trabalha e estuda me trouxe contentamento para continuar a viver. A maneira como os dirigentes abordam o tema me estimula a querer estudar esabercada vez mais.- Que bom. Fico contente que voc esteja interessada e gostando do assunto. Voc est coberta de razo, mas temos de ter discernimento. H Centros Espritasmuitobons aqui no pas, gente que trabalha por amor, com o intuito de esclarecer e orientar o prximo, com conselhos positivos e otimistas acerca da vida. O lugarquefreqentamos leva o estudo da vida espiritual e das energias muito a srio. Enquanto muitas pessoas sentem-se vtimas e querem que espritos do mal faamtrabalhospara conseguir o que querem, mantendo-as presas em suas iluses, muitas outras procuram entender o porqu de atrarem situaes desagradveis na vida,olhando paradentro de si e procurando trocar as velhas crenas erradas por outras mais positivas, melhores.- Nada como espritos de luz para nos orientar nesse processo de evoluo e crescimento interior.Em tom que procurou tornar engraado, Marta inquiriu amiga:- Isso deve ser hereditrio, voc no acha?- Como assim?- Bem, digo isso porque sua neta leitora voraz dos livros que estudamos. Gosto muito quando Lvia vem passar as frias aqui com voc. Embora seja adolescente,ela aprende com muita rapidez. muito lcida. Sua filha e seu genro devem levantar as mos para o cu por terem uma filha assim.- Uma filha e um filho - completou Carmem.- verdade. Lucas leva jeito para isso. Lvia j moa, no se prende s futilidades e rebeldia das meninas de sua gerao.- Gostaria que Odete tambm pensasse dessa forma.- Sua filha um caso parte. Na hora certa, a vida vai saber como despert-la para a verdade. Voc precisa saber que ela ainda no est pronta paradestruir asiluses que criou.- Tenho medo - falou Carmem, preocupada.- Medo de qu?- Medo de que Tadeu perca a pacincia com ela. No sei como ele agenta uma pessoa to negativa e sem auto-estima a seu lado. Ele to carinhoso, tobonito. Comominha filha pode ser to cega!- Concordo com voc. Tadeu um belo homem.- Confesso: caso ele se desquitasse de Odete, torceria para vocs ficarem juntos.- Esquea disso. Embora Tadeu seja um homem que desperte os desejos mais ntimos de qualquer mulher, no sinto nada mais do que atrao fsica. Paraencarar umarelao que valha a pena, preciso mais do que atrao fsica. A bem da verdade, eu s o tenho visto em algumas reunies clandestinas para ajudarpresos polticosa fugirem do pas. Voc sabe, aquisio de passaporte, passagens, etc.- Espero que voc no arrume encrenca por causa disso.- De maneira alguma. Estou fazendo o meu melhor. Se puder ajudar algumas pessoas presas injustamente a terem uma vida livre e digna fora do Brasil, ajudarei semtitubear.- Alm de bonita e inteligente, voc tem personalidade. autntica. Toro para que encontre um homem a sua altura.- No tenha dvidas. No momento em que eu estiver livre de minhas inseguranas afetivas, sei que a vida me trar naturalmente um homem que esteja vibrandona mesmasintonia que vibro.- Espero.Marta tornou animada:- Voc tambm poderia arrumar um bom partido. nova e independente. Est bonita, bem ajeitada. No se sente s aps a morte de Leonor?- No comeo foi muito duro. Agradeo a voc pelo socorro emocional e ao Centro pelo amparo espiritual. Com o tempo fui aceitando e me acostumando. Ultimamenteattenho pensado em me envolver com um homem maduro. Mas os homens da minha idade, em sua maioria, encontram-se emocionalmente desequilibrados. Sentem-se velhos, nameia-idade, alguns j trazendo o trauma de um desquite. No sei. Se tiver de amar de novo, naturalmente aparecer um belo e garboso senhor.- No sei se carregam o trauma do desquite. Esse tipo de separao horrvel, embora seja a nica sada que temos no Brasil.- Isso verdade. O desquite somente garante penso mulher e alguns direitos aos filhos, nada mais. Tanto o homem quanto a mulher no podem mais se casar.Serque com todas as mudanas que nossa sociedade vem enfrentando, teremos direito ao divrcio?- Precisamos ter esse direito. Ns, mulheres, somos as que mais sofremos com a separao. As amigas casadas ficam com medo de que as desquitadas possam roubar-lhesos maridos. As desquitadas sempre sero taxadas de incompetentes, aquelas que no souberam preservar a famlia. Continuaram animadas entabulando conversaessobre relaes afetivas e assuntos correlatos. Em determinado momento, Carmem disse:- Algo me intriga. Por mais que eu tente, no consegui no Centro uma comunicao com o esprito de Leonor. Ser que ela ainda est em estado de refazimento?-J me perguntei isso - respondeu Marta, virando o corpo e sentando-se. - Mas a nossa equipe espiritual nos disse para termos calma, que no tempo certo, teremoscontato. O plano superior sabe o que faz. Eles tm uma viso global dos acontecimentos, enquanto ns, presos ao corpo de carne, ficamos limitados nos sentidos.Vamosconfiar.- O esprito de Otvio j me disse isso numa reunio. O fato de termos tido contato com Rogrio diminuiu as minhas aflies. Nunca pensei que ele fossese adaptarto bem vida no astral. Poderia ter se revoltado, no ter aceitado a verdade. Estava envolvido com Leonor, havia se formado, tinha uma vida pela frente.- No se esquea que somos espritos eternos. Fazendo o nosso melhor, tanto aqui na Terra como no astral, d na mesma. O importante sabermos aproveitaras oportunidadesque a vida nos d no importa a dimenso onde estejamos. E tambm no podemos esquecer que temos o poder de escolha. O curso que estou fazendo fala sobreisso.- Isso o qu?- Sobre a responsabilidade que temos pelas conseqncias de nossas escolhas. Mas ainda preciso aprender muito.- Com o tempo chegaremos l. Precisamos estudar sempre, livres de preconceitos, a fim de manter nossas mentes largas para o novo.Mudando de posio para bronzear outras partes do corpo, Marta perguntou:- Continua tendo aqueles sonhos estranhos?- Continuo. Aqueles com Leonor, ento, so difceis de interpretar.- Continua sonhando com ela e com Otvio? - perguntou amiga, interessada.- Sim. Sempre a mesma cena. Leonor tendo pesadelos e chamando por mim. Logo depois ela acorda e a vejo sem saber quem ou onde est. Nessa hora procuro abra-lae a conforto com palavras de otimismo. Depois, Otvio faz o mesmo, abraando-a e mantendo-a calma. Acordo bem-disposta, com uma sensao de que...- De qu?- De que ela est viva. estranho, no acha?- Isso sinal de que ela, onde quer que esteja, est bem, Carmem. Confie.- Acho que voc tem razo. A confiana tem me ajudado a modificar minha vida para melhor. Procuro focalizar minha ateno no bem. Confesso que no inciopensei queno fosse agentar o baque.- Voc teve sorte. Ainda bem que tiveram o senso de lacrar os caixes. Ficamos com a imagem de Leonor bonita, sorridente. Ainda estamos num estgio onde facilmentenos impressionamos com as coisas.- Isso verdade. O fato de Tadeu ter feito o reconhecimento do corpo de minha filha aliviou muito o meu corao. Por mais positiva e otimista que eu fossena poca,no suportaria ver o corpo de minha filha retalhado.Marta, sorvendo um gole de refresco, continuou:- E j que estamos nesse assunto, como vai Andr? Voc tem notcias dele?- Depois do enterro, nunca mais vi o pai de Rogrio. Por algum tempo tive contato com Ricardo, mas a ele se envolveu com televiso e as ligaes foramescasseando.Ricardo uma criatura fantstica, tem boa cabea. Pena que os compromissos o impediram de conhecer o nosso grupo.- Se ele tiver de participar, a vida vai arrumar uma maneira de aproxim-lo de ns, mesmo tendo compromissos, ou morando em So Paulo.- Gostaria muito de reencontr-lo.Assim as duas permaneceram horas a conversar, discursando sobre suas vidas, aproveitando o sol e contemplando a beleza da praia de Ipanema.Nesse mesmo domingo, o calor na cidade de Guaratinguet, ao norte do Estado de So Paulo, no era menos intenso. As famlias abastadas possuam piscinaem suas residncias.Por ser uma cidade agradvel, onde seus moradores davam-se muito bem, o ponto de encontro da elite, em dias ensolarados, era o clube da cidade.Sentados em graciosa mesa prxima piscina, estavam dois homens trajando sungas que embelezavam ainda mais seus corpos bronzeados e bem-feitos.- Santiago - disse Nelson, aps um gole de cerveja -, agradeo todos os dias pelo presente.Santiago, distribuindo a ateno entre a fala do amigo e a apreciao das mulheres que desfilavam com seus mais e biqunis, tornou animado:- Voc um homem de sorte. Nunca quis se casar, mas sempre quis ter um filho. Como anda a sua pequena?Nelson, achando graa nas palavras do amigo, respondeu:- Pequena? Ela uma mulher!- Voc bonito. Mal completou cinqenta anos. Tem um corpo de fazer inveja a muitos jovens. solteiro porque quer. Muitas mulheres na cidade suspirampor voc,inclusive algumas casadas.- Santiago, voc no existe! J lhe falei o que penso sobre o casamento. A histria com Carla diferente, amor de pai pra filha. Desde o dia em quea acolhi nohospital tive vontade de proteg-la como se fosse minha filha. Nunca tive outra inteno.- No sei como. Ela to bonita, um mulhero, e voc a v como filha? Bem, pelo menos eu tenho a chance de um dia poder namor-la.- Voc no! - atalhou Nelson, bem-humorado. - Voc o terror das mulheres. Nunca deixarei voc chegar perto de Carla.- Estou brincando. Falo isso para provoc-lo. Nunca vi uma histria dessas antes. Voc mal conheceu a moa e ficou cheio de amores. S pode ser coisa devidas passadas.- Qualquer explicao sensata seria melhor do que essas besteiras que voc diz.Irritado, Nelson perguntou:- Voc continua se metendo com essas crendices? Logo voc, um homem srio, culto, mdico conceituado.- E o que tem de mais nisso? Existem muitos livros, muito material de gente sria que comprovou os fatos, provando que a reencarnao existe.- Num pas como esse, onde todo mundo recorre a santos e espritos para seus intentos, difcil acreditar que haja algo srio.- Pois h, Nelson. Eu tenho certeza de que a presena de Carla na sua vida no foi por acaso. Ainda vou descobrir a ligao de vocs.- Isso ridculo, no passa de coincidncia. Prefiro enxergar a vida assim. Essa idia de Deus me assusta. Os homens tripudiam sobre o Seu nome para fazerfortuna,matar, julgar, guerrear. Veja a guerra terrvel que travaram em Israel ano passado. Prefiro estar longe de tudo isso. A vida isso que est aqui em voltade ns.Por isso prefiro aproveitar e cuidar da minha pequena, sem Deus no meio da gente.Santiago, admirado com as palavras do amigo, contemplou-o emocionado. Gostava muito de Nelson, trabalhavam juntos havia mais de dez anos. Embora Santiago fosse dezanos mais novo que ele, tinham afinidades, eram compadres. Querendo ter certeza quanto ao sentimento que Nelson nutria pela garota, insistiu, curioso:- No h nem um pouquinho de desejo sexual por Carla?Nelson remexeu-se na cadeira. S de ouvir tal pergunta seu peito apertou-se. Procurando segurar uma lgrima que teimava em cair pela face, disse ao amigo:- No sei explicar... como se ela fosse minha filha, entende? um sentimento muito forte. No d para confundir com outra coisa.- Mas fique sabendo que a cidade j est destilando o veneno.Nelson, sorvendo outro gole de cerveja, olhou para o amigo, meneando a cabea de um lado para o outro. Com ar compenetrado e franzindo o cenho, continuou:- S porque sou solteiro? Eu nem moro sozinho! Vilma est na minha vida desde que eu me conheo por gente. Quando meus pais morreram, ela continuou a viverl emcasa. Ignorou os comentrios maldosos de certas pessoas e permaneceu comigo. Sem ela eu no poderia exercer minha profisso.- Sempre ouvi dizer que atrs de um grande homem h sempre uma grande mulher. No seu caso, atrs de um grande mdico, h uma grande governanta.Nelson desatou a rir.- Muito engraado de sua parte. Voc, Vilma e Carla so a minha famlia. Por que haveria de me casar? No vejo motivo. Assim que Carla estiver melhor,viajaremos.- Pelo jeito, vai lev-la a Londres.- onde nove em cada dez jovens querem ir. Londres tornou-se a capital da contracultura. No posso negar isso a minha filha. Na hora certa vou contratar umadvogadoe providenciar os papis. Ela precisar de um passaporte, mesmo que seja falso.- Calma, no brinque com isso. Imagine arrumar-lhe um passaporte falso numa poca onde anda sumindo um monte de gente.- verdade. Na hora certa, arrumo os papis. Mudando de assunto, Santiago inquiriu:- Ela est bem melhor, no est?- Tirando as crises noturnas, diria que vai tudo bem.- Como vo os pesadelos dela, Nelson? Ainda so assustadores?- Melhorou um pouco. Ela j no acorda to assustada como no comeo. Vilma tem tido muita pacincia. Toro para que isso logo acabe.Querendo satisfazer a curiosidade, Santiago perguntou, em tom malicioso:- At hoje voc no me disse o porqu de cham-la de Carla. o nome de algum amor do passado?Nelson, revirando os olhos para o alto e pendendo negativamente a cabea, objetou:-Ora, homem, deixe de besteiras! No tenho tempo para perder com amores do passado. Ela tem cara de Carla, s isso. Por que voc quer tanta explicao?Deixe-meem paz um pouco. - E estapeando as costas do amigo, Nelson considerou: - Por que no vai conversar com alguma gatinha do clube? Aproveite e depois me traga maisuma cerveja, e de preferncia bem gelada.- Est certo. Vou paquerar um pouco. Faz bem para o esprito. Volto logo.Santiago levantou-se. Animado, foi circulando pelo ptio prximo piscina do clube.Nelson recostou-se na cadeira. Com os olhos perdidos num ponto indefinido, deixou-se envolver pela memria.- Lembro-me como se fosse hoje. Aquela garota em estado de choque...Os pensamentos de Nelson viajavam no tempo, trs anos atrs.Ele, um renomado cirurgio em sua cidade, fora chamado s pressas para um caso grave de acidente, ocorrido em estrada prxima. Chegando ao hospital, nada puderafazer. O acidente fora seguido por um incndio, o que dificultara o reconhecimento dos dois corpos. O nico documento salvo no incndio era a identidade deuma mulher,cujo nome era Leonor Baptista. Para se chegar identidade do rapaz, restara polcia checar a placa do carro. Acionando os rgos competentes, chegaramao proprietrio:Rogrio Ramalho.Tadeu, mais um mdico e um dentista da famlia de Rogrio fizeram o reconhecimento dos corpos. Chamaram tambm o advogado que assessorava juridicamente aslojasdo pai de Rogrio para ajudar nos trmites legais.O estado danificado dos corpos s permitira fazer uma constatao atravs da arcada dentria. O dentista da famlia reconhecera ser aquele corpo o deRogrio.Tadeu no tinha idia de como localizar o dentista de Leonor. Diante do choque emocional, solicitara o mais rpido possvel liberao do corpo dacunhada.Nelson, seguindo a tica mdica, argumentara, solicitando o envio do corpo para autpsia no Rio, onde oficialmente atestariam o bito.- Doutor, eu sei que necessrio fazer autpsia, mas no h dvidas. Eu sei que se trata de minha cunhada. Ela e o namorado saram do Rio ontem. Acarcaa deum Fusca, a placa do carro a dele. E, alm do mais, o dentista da famlia confirmou a arcada dentria. Por favor, livre nossa famlia de trmites desnecessrios.- Calma, Sr. Tadeu. Eu sei que se trata de uma hora muito difcil, mas infelizmente h certos procedimentos. Mesmo no tendo recursos, vamos enviar o corpode suacunhada para autpsia.- Mas eu sei que se trata de Leonor. A polcia encontrou o documento de identidade parcialmente destrudo, mas l consta seu nome. Por favor, poupe-nos deespera.Queremos acabar o mais rpido com tudo isso. Deixe-nos providenciar o funeral. O Dr. Rezende, mdico da famlia de Rogrio, vai assinar os bitos. Trouxemostambmo Dr. Castro, advogado das empresas do pai de Rogrio para ajudar. Estamos procurando fazer tudo dentro da lei, mas queremos que tudo seja rpido para pouparasfamlias, que nesta hora esto inconsolveis. No se preocupe.Nelson, depois de longa conversa com o Dr. Rezende e com o Dr. Castro, liberara os corpos.Dois dias depois do acidente, novamente Nelson fora chamado para uma emergncia. Tratava-se de uma garota, encontrada desfalecida prximo rodovia que davaacessoquela cidade.Com escoriaes por todo o corpo e pequenas fraturas, a moa encontrava-se em estado de semi-inconscincia.Uma jovem e eficiente enfermeira disse-lhe:- Dr. Nelson, ela se encontra na sala de emergncia. Dr. Santiago est em cirurgia. Desculpe cham-lo h essa hora.- Esse o meu dever. Fez bem em chamar-me. Chegando enfermaria, Nelson fora tomado por uma forte emoo. Precisara amparar-se na maca; o ar faltara-lhe.Ao cruzarseus olhos sobre o corpo inerte da moa, lgrimas comearam a descer pelo seu rosto. Sentira dificuldade em segurar o pranto. O estaria acontecendo com ele?Um mistode medo, saudade e amor brotara do seu peito, sem explicao lgica.Procurando disfarar a sbita emoo, perguntara aos dois enfermeiros que a assistiam:-J conseguiram localizar algum parente ou algum documento?- Nada, Dr. Nelson. No h nada em seus bolsos. Tambm no foi encontrado nada prximo ao corpo, l na estrada. Provavelmente ela deve ter sido roubada.Est bemvestida. Notamos tambm que ela tem mos suaves e delicadas, portanto no deve ser roceira, mas de boa famlia.Nelson tornara a olh-la. Novamente a emoo voltara forte. Ficara muito impressionado. Ser que estava ficando velho? Via casos como esse todos os diasno prontosocorro. Por que aquela moa lhe despertava tantas emoes?Com os pensamentos tumultuados, pedira aos enfermeiros, aps os procedimentos de praxe no socorro, que deixassem sala. Ficara a ss com a garota. Contemplara-apor longo tempo. No conseguira impedir que duas furtivas lgrimas escapassem de seus olhos.- Dr. Nelson, h outra emergncia chegando - informou-lhe um assistente, tirando-o de seu aparente estado de choque.-J vou. Pea ao plantonista que v tomando as providncias necessrias.Feito isso, Nelson instintivamente beijara delicadamente a face da garota. Sentira uma sensao agradvel na sala, como uma leve brisa a envolver-lhe o corpo.Conforme o tempo fora passando, Nelson afeioara-se cada vez mais garota. Dias depois, ela acordara. Nelson fora correndo ao hospital, perante a possibilidadede saber quem era ela.- Doutor... O que estou fazendo aqui... Sinto-me to cansada... To vazia...Nelson, tomando-lhe delicadamente as mos, perguntara:- Diga-me, querida, qual o seu nome?- Meu nome... Meu nome... ...Lgrimas de desespero comearam a escorrer pelo rosto da moa. Balanando nervosamente a cabea de um lado para outro ela comeara a gritar:- Eu no lembro o meu nome! Como isso pode ser possvel?Por mais que Nelson tentasse acalm-la, no pde. O desespero de no conseguir lembrar o prprio nome aterrorizara a pobre moa. Remexera-se violentamentena cama,sendo somente acalmada por fortes sedativos.Percebendo que se tr