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Teologia, Cristianismo, Ciências da Religião
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A QUESTÃO ÀRABE-ISRAELENSE:
CONSIDERAÇÕES TEOLÓGICAS E EXEGÉTICAS DA INTERPRETAÇÃO
FUNDAMENTALISTA
Rev. Padre Jorge Aquino1
Antes de iniciar cremos ser mister deixar claro que esta breve reflexão é
realizada por quem está “dentro” de uma perspectiva cristã. Isto significa que
leitores “de fora” desta perspectiva podem ter um certo estranhamento em alguns
momentos. Gostaria, no entanto, de contar com a paciência e com a compreensão
destes leitores, vez que, acreditamos ser impossível falar de um tema sem um
topos já estabelecido, ou seja, a partir de lugar nenhum.
Creio ser impossível não perceber que a relação entre setores
evangélicos brasileiros e a nação de Israel está beirando a esfera da adoração. Já
há pastores celebrado com roupas típicas do judaísmo e usando as mesmas
trombetas para, acreditem, celebrar as mesmas festas. Há plásticos com a
bandeira de Israel em boa parte dos automóveis dirigidos por evangélicos e já não
são poucos os templos onde se pode encontrar a bandeira de Israel ocupando
uma posição de destaque. O que está acontecendo? Por que essa relação quase
idolátrica com os filhos de Israel? Há conseqüência, nesta postura de veneração,
para uma espécie de legitimação das atrocidades cometidas por Israel ante os
palestinos? Neste texto pretendo explicar como surgiu esta relação e porque os
“evangélicos” neo-fundamentalistas assumem uma postura tão acrítica diante de
tudo o que a política externa de Israel realiza.
1 O prof. Jorge Aquino é Graduado, Especialista e Mestre em Teologia, graduando e Especialista em Direito e Licenciado e Mestre em Filosofia. É sacerdote anglicano e foi professor de Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica, História do Direito e Hermenêutica Jurídica em várias faculdades, na graduação e na pós-graduação, em Natal-RN. Atuou também, como vice-presidente do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular.
Seguramente, aquele que deseja discutir seriamente o futuro da
humanidade no século XXI terá que aprender a discutir – ao lado das questões
que envolvem o aquecimento global, a fome no mundo, o vírus ebola, etc. – as
questões que envolvem o Oriente Médio. Simplesmente não se pode mais pensar
o novo século e o nosso futuro tratando com tanta irresponsabilidade estas
questões. Uma peculiaridade deste conflito foi exposta por Edgar Morin quando
disse que:
O Oriente Medo não é apenas um lugar do conflito israelense-árabe ou judaico-islâmico, é também o local onde se enfrentam os antagonismos fundamentais do globo: os hiper-desenvolvidos contra os menos desenvolvidos os países jovens contra os países velhos, o Oriente contra o Ocidente, o secular contra o religioso, as religiões entre elas (MORIN & BAUDRILLARD, 2004, p. 13).
Simplesmente não podemos mais pensar o futuro de nosso planeta sem
refletir sobre o papel do Estado de Israel e sua relação com os Países árabes,
principalmente depois do terrível genocídio perpetrado no fim de 2008 contra a
faixa de Gaza e que se repete ano após ano. E agora em que o Irã resolveu que
também quer entrar para o seleto grupo de países que possuem tecnologia
nuclear? Qual o papel que os Estados Unidos vão desempenhar no futuro? Como
a presidência de Barack Obama vai influir no tratamento que os Estados Unidos
dará ao Oriente Médio? Qual será a reação da União Européia em um novo
desenho mundial? As nações árabes finalmente serão capazes de criar um novo
bloco de poder? Estas questões são comuns entre os políticos, sociólogos e
historiadores. Não pretendo respondê-las. O que me preocupa está na base disso
tudo. Explico: O conflito na terra santa pode ser examinado a partir de uma série
de pontos de vista. Há possibilidades políticas, históricas, sociais, filosóficas,
econômicas, etc. em todas elas, contudo, em maior ou menor grau, acabam por
serem influenciadas por aspectos teológicos e religiosos que subjazem na mente
dos estudiosos e dos atores principais2. Em resumo, parto do pressuposto de que
2 Edgar Morin, apesar de ser extremamente crítico da política externa de Israel, admite que “existe essa idéia de que, por direito divino ou por direito histórico, toda Palestina é dos judeus” (MORIN, 2004, p. 17).
2
as posturas teológicas acabam por servir de amalgama no ideário de muitos dos
envolvidos e dos pesquisadores, e tende fortalecer o uma posição sobre este
tema.
Meu propósito, com este texto é, apresentar a postura mais comum entre
os religiosos que costumam tomar posição firme sobre este conflito (os
evangélicos neo-fundamentalistas) e oferecer uma crítica exegética a seus
argumentos. Sobre como identificar este segmento religioso usarei a diferenciação
clássica que tem sido usada dentro dos estudos da ciência da religião.
Trabalharemos, portanto, com a legitimação da posse feita pelo discurso
evangélico-fundamentalista-premilenista-dispensacionalista que permeou o sul
dos Estados Unidos, migrou com os missionários até o Brasil durante o século XX,
e hoje representa a leitura hegemônica entre os evangélicos brasileiros.
I. Identificando os atores
A primeira tarefa que precisa ser feita é decifrar o que significa a
expressão “evangélico-fundamentalista-premilenista-dispensacionalista”. Quando
falamos em evangélico, estamos nos referindo a uma posição que se tornou
comum nos Estados Unidos em meados do século XIX e que apregoava a
existência de um “novo nascimento” espiritual que ocorreria quando o indivíduo
tivesse uma experiência com Deus, em Jesus Cristo. Tornou-se comum encontrar
na literatura especializada a expressão born again (nascidos de novo) para
descrever os membros deste grupo.
Com respeito ao fundamentalismo, também é possível afirmar que este
é um movimento profundamente ligado com o ambiente e com a teologia
americana. Este nome, que hodiernamente tem a conotação de “devoção
militante”, foi usado no início do século XX por um grupo de pessoas que resistiam
às posturas ligadas ao liberalismo teológico e a tendência de questionar ou
modificar a crença ortodoxa do cristianismo. De acordo com Van A. Harvey, “o
nome é derivado de uma série de tratados publicados entre 1912-14 intitulados
The Fundamentals e que desejavam definir e defender o essencial na doutrina
protestante” (HARVEY, 1964, p. 123). Este movimento se tornou majoritário
3
principalmente no sul dos Estados Unidos na região conhecida como Bible belt
(cinturão da Bíblia). De acordo com esse movimento, as cinco principais doutrinas
que seriam o fundamento do cristianismo seriam (1) a inspiração e infalibilidade da
Bíblia, (2) a doutrina da Santíssima trindade, (3) o nascimento virginal e a
divindade de Cristo, (4) a teoria substitutiva da redenção, (5) a ressurreição
corporal, a ascensão e a segunda vinda de Cristo.
Embora se possa dizer que no início se tratava de um movimento
religioso, hoje o fundamentalismo está mais relacionado a uma atitude religiosa
ultraconservadora e a uma ideologia3. É uma atitude e uma postura religiosa que
assume uma impermeabilidade que torna impossível um diálogo com a realidade
social que a cerca. De fato ele falhou em desenvolver uma visão de mundo que
fosse afirmativa e que conectasse suas convicções com os grandes problemas do
mundo. Sua postura resumiu-se a ser, apenas, a de uma negação da
modernidade. O fundamentalismo também se revela como uma ideologia à
medida em que legitima e corrobora as atitudes do governo americano no que
tange, especificamente, à sua política internacional com a convicção de que os
EUA são um instrumento de Deus para a cristianização do mundo e a difusão da
democracia. Esta é a conhecida doutrina do “destino manifesto” da nação
americana.
Ora, se os judeus são o povo de Deus, nada mais correto do que legitimar
e dar sustentação às suas aspirações. Bernard Ramm no verbete que trata sobre
o fundamentalismo, no seu Diccionario de teologia Contemporanea, diz que “um
fundamentalista tem sido definido como alguém que está essencialmente de
acordo com a escatologia de Scofield sobre o dispensacionalismo e o
premilenismo” (RAMM, 1975, p. 61). Uma vez que o fundamentalismo do início do
século XX afirmava basicamente o mesmo que o evangelicalismo também
defendia e, considerando a radicalização ocorrida com o movimento
fundamentalismo, há autores, com os quais concordo, que preferem fundir os dois
3 Karem Armstrong (2001, p. 11), citando Martin Marty e Scott Appleby, nos diz que todos os fundamentalistas obedecem a determinados padrões e que tem a tendência de formar uma espiritualidade combativa para reagir e enfrentar a algum tipo de crise que costuma nascer na esfera política e social mas que tem algum rebatimento na esfera simbólica do grupo.
4
nomes no que chamaremos, de agora em diante, simplesmente de neo-
fundamentalismo.
O premilenismo, por sua vez, foi uma corrente da escatologia4 que surgiu
no segundo século do cristianismo. Sua crença principal se baseia em uma
interpretação literal de Apocalipse 20: 2-6 e na afirmação de que haverá um
Milênio, ou seja, um período de mil anos, no que o Diabo será aprisionado e Jesus
estabelecerá seu Reino sobre a terra. O centro deste Reino de Mil anos será a
cidade de Jerusalém na qual, os sacrifícios mencionados no Antigo Testamento,
serão retomados. Sua segunda vinda, portanto, será premilenial porque ocorrerá
antes deste milênio.
Quanto ao dispensacionalismo ele é a crença que afirma a existência de
sete dispensações na história da humanidade. De acordo com o maior divulgador
do dispensacionalismo moderno, C. Schofield, uma dispensação “é um período de
tempo durante o qual o homem é provado a respeito de sua obediência para com
uma determinada revelação da vontade de Deus” (citado por OLSON, 1979, p.
23). Um dispensacionalista seria, então, nas palavras de William Cox,
Alguém que acredita que Deus dividiu em sete períodos distintos. O dispensacionalista acredita que Deus tem diferentes formas de testar o homem em cada uma das chamadas dispensações ou período de tempo. Ele também acredita que a salvação do homem dependerá de sua obediência nestes testes (COX, 1967, p. 1).
Com base nisso, podemos concluir com Olson que o estudo das
dispensações “revela os vários métodos usados por Deus em Suas revelações
com as diferentes classes de povo através dos vários períodos determinados por
Ele a fim de lograr o Seu propósito” (OLSON, 1979, p. 13). Uma vez que todos os
dispensacionalistas são premilenistas (embora nem todos os premilenistas sejam
dispensacionalistas) usaremos apenas a palavra dispensacionalismo para nos
referir a estes dois grupos.
4 Escatologia é o estudo dos eventos que deverão ocorrer no fim dos dias. Este estudo se divide em escatologia pessoal, que estuda a morte e o que ocorre depois dela; e escatologia geral, que trata do juízo final, do inferno, céu, e outros temas relacionados com este.
5
A união destes quatro elementos religiosos acabou ocorrendo em um
momento muito especial na história, logo após a Segunda Guerra Mundial. Este é
o momento em que as nações vencedoras dividem o espólio da guerra e se vêem
como formadoras de dois grandes blocos de países. De um lado temos a OTAM e
do outro o Pacto de Varsóvia. Têm-se início aquilo que se convencionou chamar
de Guerra Fria. Ao lado de todos os outros tipos de produção cultural, a teologia
também se viu ligada a este instante. Imediatamente se percebeu que esta
postura teológica, oriunda dos Estados Unidos, serviu como uma luva para
legitimar o Estado de Israel como um instrumento de Deus para impedir a ação
das forças satânicas, associadas ao comunismo ateu ou ao islamismo.
Um exemplo de como esta postura neo-fundamentalista-
dispensacionalista pode ser muito bem servir como instrumento de validação de
uma ideologia, está resumida em um texto escrito pelo Dr. Wim Malgo, criador da
obra missionária conhecida como Chamada da Meia-Noite. Para este pastor: “Em
Israel, Deus centralizou (negrito dele) a História da Humanidade, pois ele estava
em Israel e entre esse povo, reconciliando o mundo consigo mesmo por meio de
Jesus Cristo. Por isso, somente Israel tem o direito de possuir essa terra”
(MALGO, 1979, p. 13). Mais à frente ele assevera peremptoriamente: “A palavra
de Deus é a prova de que Israel deve ficar na terra de Israel e não em outro
lugar” (negrito dele) (MALGO, 1979, p. 15).
Como podemos ver na citação acima, o cerne da argumentação neo-
fundamentalista-dispensacionalista deve ser buscado nas Sagradas Escrituras.
Toda a tese dispensacionalista acredita ter um sólido fundamento bíblico e
compreende que ela deve ser lida e interpretada de uma forma bastante peculiar,
ou seja, literalmente. É justamente em função desta necessidade de buscar nas
Escrituras um fundamento para sua crença – o que em si é louvável e desejável -
que nossa abordagem se dará maiormente nesse campo. Esta forma peculiar de
interpretar a Bíblia utilizada pelos fundamentalistas já é destacada por Schaly ao
dizer que:
De acordo com o sistema Pré-milenista Dispensacionalista (...) todas as profecias do Velho Testamento ignoram
6
completamente a Igreja Cristã, e só podem ser literalmente aplicáveis ao povo de Israel; as que não se cumpriram terão que se cumprir ainda com Israel, (...) Para o Dispensacionalismo, a Igreja não é a culminação do plano de Deus para a humanidade, mas um parêntesis misterioso, introduzido por Deus, inesperadamente, por causa da rejeição, da parte dos judeus, de Jesus como Messias, na sua primeira vinda, parêntesis este que, segundo eles, será removido com o arrebatamento da Igreja, quando, então, entrará novamente a operar o plano original de Deus para com o povo judeu (SCHALY, 1984, p. 12).
Por mais estranho que pareça para a maioria dos cristãos modernos, é
exatamente isso que os dispensacionalistas defendem. Esta crença é chamada de
doutrina da posposição. Ou seja, com a rejeição de Jesus como Messias, os
judeus frustraram o plano original de Deus em estabelecer o Milênio, ou seja, um
império judaico mundial no qual Jesus será o imperador e Jerusalém será a capital
das nações. Esta rejeição, que não fazia parte do plano original, fez com que Ele,
para remediar a situação, criasse a Igreja, ou a Dispensação da graça e
“empurrasse” o Reino para o futuro (posposição). Quando a Igreja for retirada da
terra (arrebatada) Deus voltará a tratar com os judeus e todas as profecias vétero-
testamentárias com respeito aos judeus, finalmente se cumprirão.
II. Uma questão de hermenêutica
Antes de prosseguirmos, julgamos necessário tecer algumas
considerações sobre o tipo de hermenêutica adotada pelos seguidores da
postura neo-fundamentalista-dispensacionalista. Conforme vimos acima, o centro
da atitude hermenêutica deste grupo está na interpretação literal do texto. Hal
Lindsey, um dos mais conhecidos defensores do dispensacionalismo do século
XX, referindo-se a forma adequada de interpretar a Bíblia, citando David L.
Cooper, diz o seguinte:
Quando o sentido claro da escritura faz sentido comum, não se procure outro; portanto, tome-se cada palavra no seu sentido primário, ordinário, costumeiro e literal, a não ser que os fatos do contexto imediato, estudados à luz de passagens correlatas
7
e de verdades axiomáticas e fundamentais, indiquem claramente outra coisa (LINDSEY, 1973, p. 46).
Ora, um estudo aprofundado dos argumentos bíblicos apresentados pelos
neo-fundamentalistas-dispensacionalistas que supostamente dá fundamento a
uma posse judaica da terra da Palestina carece, em muito, de uma visão que
considere o contexto imediato e remoto das passagens citadas.
Sabemos que Deus, em muitos textos no Antigo Testamento prometeu
uma porção de terra a Abraão e a seus descendentes. Em Gênesis 12:5 lemos
que Abraão e boa parte de sua família partiram para “a terra de Canaã” e que, no
verso 7 Deus lhe aparece e diz: “É à tua posteridade que eu darei esta terra”.
Conforme nos diz a própria Escritura, o cumprimento desta promessa ocorreu nos
dias de Josué. Senão vejamos (Josué 21: 43): “Assim, pois, deu Iahweh aos filhos
de Israel toda a terra que havia jurado dar a seus pais. tomaram posse dela e nela
se estabeleceram”. Esta leitura é confirmada em Neemias 9: 7, 8, que diz o
seguinte:
Tu és Iahweh, ó Deus,Tu escolheste Abraão,O tiraste de Ur na CaldéiaE lhe deste o nome de Abraão.Achando seu coração fiel diante de ti,Fizeste aliança com ele,Para dar-lhe a terra do cananeu,Do heteu e do amorreu,Do ferezeu, do jebuseu e do gereseu,A ela e a sua posteridade.E cumpriste as tuas promessas,Pois tu és justo.
Existiu também a promessa de Deus em dar a Abraão uma terra, em
função de uma aliança com ele, descrita em Gênesis 15:18 que diz: “à tua
posteridade darei esta terra, do Rio do Egito até o Grande Rio, o rio Eufrates”.
Esta promessa também foi cumprida nos dias do rei Salomão. Em II Crônicas 9:26
encontramos algumas considerações sobre o tamanho do reinado de Salomão. Lá
se diz que ele: “estendeu seu domínio sobre todos os reis, desde o Rio até o país
8
dos filisteus e até a fronteira com o Egito”. Mais uma vez a Bíblia nos diz que Deus
já cumpriu sua promessa feita a Abraão.
Mas o que dizer do texto de Gênesis 17:8 que diz que a posse sobre a
terra de Canaã será uma “possessão perpétua” para todos os descendentes de
Abraão? Uma leitura mais cuidadosa deste texto e de outros correlatos deverá
resolver a dificuldade. A condicionalidade desta promessa está muito clara,
primeiro, porque há uma clara correlação entre o que diz o verso 8 “A ti, e à tua
raça depois de ti, darei a terra em que habitas”, e o que diz o verso 9: “quanto a ti,
observarás a minha aliança, tu e tua raça depois de ti, de geração em geração”.
Há, portanto, uma condição: a observação da aliança feita entre Deus e Abraão.
Vejamos, agora, o que diz o texto de I Reis 9: 6,7:
Porém, se vós e vossos filhos me abandonardes, não observando os mandamentos e os estatutos que vos prescrevi e indo servir a outros deuses e prestar-lhes homenagem, então erradicarei Israel da terra que lhe dei; rejeitarei para longe de mim este Templo que consagrei a meu Nome e Israel será objeto de escárnio e de risos entre todos os povos.
Depois, porque os fatos posteriores, conforme registrado nas Escrituras,
dizem que Israel desobedeceu a Deus e quebrou a aliança que ele havia feito com
o pai Abraão. Em conseqüência, foi invadido pelos assírios e levado ao cativeiro
na Babilônia.
Mas, alguém poderia retrucar, havia uma outra promessa feita por Deus
aos israelitas em caso de quebra da aliança, que garantiria o retorno à terra. É
verdade. Este texto se encontra em Deuteronômio 30: 1-5. Lá Deus diz o seguinte:
Quando se cumprirem em ti todas estas palavras – a bênção e a maldição que eu te propus -, se as meditares em teu coração, em meio a todas as nações para onde Iahweh teu Deus te houver expulsado, e quando te converteres a Iahweh teu Deus, obedecendo à sua voz conforme tudo o que hoje te ordeno, tu e teus filhos, com todo o teu coração e com toda a tua alma, então Iahweh teu Deus mudará a tua sorte para melhor e se compadecerá de ti; Iahweh teu Deus voltará atrás e te reunirá de todos os povos entre os quais te havia dispersado. Ainda
9
que tivesses sido expulso para os confins do céu, de lá te reuniria Iahweh teu Deus, e de lá te tomaria para te reintroduzir na terra que os teus pais possuíram, para que a possuas; ele te fará feliz e te multiplicará mais ainda que os teus pais.
Duas considerações devem ser feitas sobre este texto. Primeiro que ele
também está condicionando a restauração de Israel a uma série de atitudes tais
como: “meditares em teu coração”, “te converteres a Iahweh”, “obedecendo à sua
voz conforme tudo o que hoje te ordeno, tu e teus filhos, com todo o teu coração e
com toda a tua alma”, só assim Deus mudará a sorte de Israel e se compadecerá
dele.
Em segundo lugar, este movimento de arrependimento e de retorno já
aconteceu. Ele ocorreu sob a liderança espiritual de homens como Esdras e
Neemias que fizeram com que o povo retornasse à terra de Canaã.
Isto significa que, desconsiderar deliberadamente o contexto destas
passagens e aplicá-las aos nossos dias, dizendo que elas se referiam ao
movimento Sionista e à formação do Estado de Israel em 1948, é uma
irresponsabilidade e uma aberração exegética, uma vez que todos os judeus
rejeitam Jesus como Messias.
Deus, é importante que se diga, cumpriu todas as suas promessas
concernentes à terra feitas ao povo da antiga aliança. Seus descendentes, porém,
rejeitaram a revelação de Deus em Jesus e assistiram os outros povos –
conhecidos como gentios - serem chamado de povo de Deus. Nas palavras de
João o Evangelista, Jesus “veio para o que era seu e os seus não o receberam.
Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem filhos de Deus: aos que
crêem em seu nome” (João 1: 11, 12).
É surpreendente ver como os fundamentalistas tentam se basear na
Bíblia para demonstrar que o ato da ONU que criou a Nação de Israel em 1948, foi
uma ação de Deus em cumprimento a profecias feitas no Antigo testamento. Um
exemplo disso é o texto de Davi Bay no qual ele diz que: “quando examinamos o
processo do nascimento de Israel, desde o primeiro Congresso Sionista em 1897
até seu nascimento em 1948, você pode ver como esse nascimento cumpriu a
10
profecia referida das dores do parto”. (David Bay in
http://www.espada.eti.br/n1408.asp acessado em 16 de novembro de 2006) Um
outro exemplo de texto presente na Internet e que também reflete a mesma crença
e aquele no qual Julio Severo afirma que:
Contrariando todas as expectativas humanas, ele trouxe a restauração nacional da nação de Israel em 1948, conforme Ezequiel 37, “ressuscitando” um povo que estava virtualmente morto e enterrado nos escombros da história, espalhado pelas nações, perseguido e odiado (http://juliosevero.blogspot.com/2005/12/o-que-todo-cristo-precisa-saber-sobre.html acessado em 16 de novembro de 2006).
Qualquer tipo de oposição a esta interpretação é associado a uma ação
do Diabo e à luta contra a vontade de Deus. A tese amilenista5 é vista como uma
excrescência que merece a punição do Deus onipotente que sempre cumpre a
sua vontade. Aliás, há uma citação na internet que é muito forte. Vejamo-la:
O maior exemplo da onipotência de Deus prevalecendo sobre a rebelião de Satanás é o renascimento da nação de Israel, exatamente como predito. Satanás detesta Israel, pois Israel é o povo escolhido de Deus. Se Satanás tivesse liberdade de ação, teria movido céus e terra para impedir que Israel voltasse à sua terra como uma nação, em 1948. Na verdade, ele tentou impedir que isso acontecesse, quando usou Adolf Hitler poderosamente para tentar exterminar todos os judeus. No entanto, ele falhou, e Israel voltou à sua terra, como Deus tinha predito! (anônimo http://www.espada.eti.br/n1015.asp acessado em 16 de novembro de 2006).
Do que lemos acima parece que qualquer pessoa que questione o
comportamento dos israelitas tem que ser sumariamente identificado com o anti-
semitismo, o que é um absurdo. O texto clássico que é invocado como
fundamento para estas ultimas citações acerca do renascimento da nação judaica,
5 Os chamados “amilenistas” não negam o Reino de Deus, como aparentemente o nome parece indicar. Eles apenas rejeitam a interpretação literal da Bíblia e a associação do Reino à um sonho imperialista centralizado acalentado pelos israelitas.
11
é o que é encontrado no livro do profeta Ezequiel. Vejamos toda a passagem
antes de comentá-la:
A palavra de Iahweh me foi dirigida nestes termos: E tu, filho do homem, toma uma acha de lenha e escreve sobre ela: “Judá e os filhos de Israel que estão com ele”. Em seguida tomarás outra acha de lenha e escreverás sobre ela: “José (acha de Efraim) e toda a casa de Israel que está com ele”. Aproxima-as uma da outra, de modo que forme uma só acha de lenha; que elas formem uma só na tua mão. Ora, quando os filhos do teu povo te perguntarem: “Não nos explicarás o que queres dizer com isso?” Tu lhes dirás: Assim diz o Senhor Iahweh: Eu vou tomar a acha de lenha que é José (a qual está na mão de Efraim), e as tribos de Israel que estão com ele, e as ajuntarei à acha de lenha que é Judá, e farei delas uma só acha de lenha, de modo que sejam uma só acha em minha mão. As achas de lenha sobre as quais escreveste estarão em tua mão diante dos teus olhos. Dize-lhes: Assim diz o Senhor Iahweh: Eis que vou tomar os filhos de Israel dentre as nações, para as quais foram levados, e reuni-lo-ei de todos os povos e os reconduzirei para a sua terra, e farei deles uma só nação na terra, nos montes de Israel, e haverá um só rei para todos eles. Já não constituirão duas nações, nem tornarão a dividir-se em dois reinos. Não voltarão a contaminar-se com seus ídolos imundos, com as suas abominações e com todas as suas transgressões. Hei de salvá-los das suas apostasias com que pecaram e hei de purificá-los, para que sejam o meu povo e eu seja o seu Deus. O meu servo Davi será rei sobre eles, e haverá um só pastor para todos, e andarão de acordo com as minhas normas e guardarão os meus estatutos e os praticarão. Habitarão na terra que dei ao meu servo Jacó, terra em que habitaram os vossos pais. Nela habitarão eles, os seus filhos e os filhos de seus filhos para sempre, e Davi, o meu servo, será o seu príncipe para sempre. Concluirei com eles uma aliança de paz, a qual será uma aliança eterna. Estabelecê-los-ei e os multiplicarei, e porei o meu santuário no meio deles para sempre. A minha habitação estará no meio deles: eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. Assim saberão as nações que eu sou Iahweh, aquele que santifica Israel, quando o meu santuário estiver no meio deles para sempre (EZEQUIEL 37: 15-28).
Com este texto diante dos olhos é necessário tecer algumas
considerações que esclareçam o sentido e aponte a sua correta interpretação.
Antes de qualquer coisa, precisamos compreender que, com base no que vemos
12
no Novo Testamento e diante da prática comum à Patrística6, somos incentivados
a interpretar o Antigo Testamento a partir do evento Cristo, ou seja, com os olhos
daqueles que estão comprometidos com Jesus. Esta prática foi radicalizada por
Lutero, para quem Cristo serviria de chave hermenêutica para interpretar o Antigo
Testamento.
Além do mais, recentes incursões na hermenêutica nos orientam a ver
que o significado que deve ser buscado nas as passagens do Antigo testamento
podem ter três tipos ou estágios de cumprimentos: o C1 que seria o cumprimento
no contexto original do profeta, o C2 que seria o cumprimento na primeira vinda de
Cristo e o C3 que faz referência à segunda vinda de Cristo ou à parousia. Seria
como observar uma pedra caindo sobre um lago de águas tranqüilas e ver a
criação de círculos concêntricos ao redor do lugar onde a pedra caiu. Colin
Chapman, que foi ministro anglicano durante anos Egito, nos diz, sobre o C1 da
passagem de Ezequiel 37, que “algumas destas palavras encontraram seu
imediato cumprimento no retorno dos judeus do exílio na Babilônia para
Jerusalém, que teve início em 537 a.C” (CHAPMAN, 1986, p. 242).
Na esfera do C2, há no texto uma nítida referência a um período em que
haverá “um só pastor para todos” (Ez 37:24) e que também haverá “uma só
nação” (37: 22) na terra. Este texto, incontestavelmente, encontra eco nas
palavras de Jesus que se apresentou aos judeus como “o Bom pastor” que reúne
todas as suas ovelhas em seu redil. (João 10: 11, 14, 16) Pelo que encontramos
no Evangelho, sabemos que João acreditava que Jesus não havia morrido apenas
pelos judeus, “mas também para congregar na unidade todos os filhos de Deus
dispersos” (João 11: 52).
A promessa encontrada em Ezequiel, e que dizia respeito acerca de um
Rei davídico que reinaria sobre seu povo para sempre (Ez 37: 22, 24, 25) é muito
claramente recepcionada pela igreja como tendo seu cumprimento espiritual na
pessoa de Jesus. É assim que o anjo anuncia a chegada de Jesus a Maria: “Ele
será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono
de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não
6 A “patrística” é o período de tempo que compreende o período que se seguiu imediatamente à morte dos Apóstolos até o século VIII. Neste período os grandes teólogos e bispos eram chamados de “pais” da Igreja.
13
terá fim”. (Lucas 1: 32-33) Ora, uma vez que o reino davídico está, via de regra,
associado à terra (Ez 37: 22, 25), então nos é forçoso aceitar que a promessa que
falava que seu povo viveria na terra “para sempre” (Ez 37: 25) deve também ser
interpretada como fazendo referência à Jesus e à sua Igreja. Exemplos dessa
associação nos é dada por Chapman quando diz:
Jesus falou de sua morte como a inauguração de um novo pacto (Lucas 22: 20), e o escritor de Hebreus relaciona o “pacto eterno” (Ezequiel 37: 26) com este pacto. (Hebreus 13: 20) João vê Jesus como o novo templo em que a glória de Deus tem sido revelada. (João 1: 14; 2: 26) Pedro descreve todos os crentes cristãos como a “nação santa” (I Pedro 3: 9), e como o cumprimento das promessas de Deus feitas ao Israel “santo” (Ezequiel 37: 28) (CHAMPAN, 1986, p. 243).
Tudo o que foi colocado acima nos impede de recortar,
irresponsavelmente, o texto que fala da terra de Israel e apreciá-lo isoladamente,
buscando algum tipo de cumprimento literal tardio que vá além daquele
naturalmente apontado (VIº século a.C.) por ele, ou ainda, que vá além da
interpretação que os autores do Novo Testamento fizeram, quando o aplicaram ao
Reino de Cristo e à Igreja. Qualquer interpretação que vá além do sentido mais
simples e usual do texto é uma imposição e uma violência sobre ele, além de uma
atitude desonesta diante das regras de interpretação bíblica.
III. Um novo povo
Um outro dado importante é que é absolutamente impossível ler todo o
Novo Testamento sem perceber que lá encontramos uma crença comum entre
seus escritores onde existe uma permuta entre o Israel do Antigo Testamento e a
Igreja do Novo Testamento. Esta permuta ocorreu, diz os evangelistas, em função
da rejeição de Israel em receber Jesus como o Cristo, ou seja, como o Messias.
Um dos textos mais esclarecedores desse assunto é Mateus 21: 33-43.
Lá vemos uma parábola onde Jesus descreve um homem que plantou uma vinha,
a arrendou a alguns trabalhadores e se ausentou. Na época da colheita, o dono da
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vinha enviou seus servos aos vinhateiros para receber seus frutos. Eles, porém,
agarraram, espancaram um e mataram um terceiro dos enviados. O dono da vinha
enviou outros servos, e estes foram tratados da mesma forma. Então ele resolveu
enviar o seu próprio filho pensando que a este os vinhateiros iriam respeitar. No
entanto eles o agarraram, lançaram fora e o mataram. Pois bem, quando vier o
dono da vinha, pergunta Jesus, o que fará com os vinhateiros? Depois de ouvir a
resposta dos ouvintes Jesus completa:
Nunca lestes nas Escrituras: “A Pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; pelo Senhor foi feito isso e é maravilhoso aos nossos olhos”? Por isso vos afirmo que o Reino de Deus vos será tirado e confiado a um povo que produza seus frutos (Mateus 21: 42, 43).
Há muitos textos no Novo Testamento que nos permite observar melhor
esta substituição anunciada por Jesus. Nos serviremos apenas de três classes de
textos para exemplificá-la: os que chamam os cristão de Filhos de Abrão, os que
chamam os cristãos de Israel, e os que chamam os cristãos de Judeus.
Sobre o primeiro grupo de textos, sabemos que a Bíblia afirma que os
Israelitas são chamados de “filhos de Abraão”. Para comprovar isso basta ver
textos como II Crônicas 20: 7 que diz: “não és tu que és nosso Deus, que, diante
de Israel, teu povo, desalojaste os habitantes desta terra? Não a deste à raça de
Abraão, a qual amarás para sempre?”; ou o Salmo 105: 6 que diz: “Descendência
de Abraão, seu servo, filhos de Jacó, seu escolhido”; e finalmente Isaías 41: 8
onde lemos: “E tu, Israel, meu servo, Jacó, a quem escolhi, descendência de
Abraão, meu amigo”.
Também há, contudo, outros textos que dizem que os Israelitas
desobedientes não são filhos de Abraão. Dentre estes textos, podemos citar São
João 8: 39 que diz: “Responderam-lhe: ‘nosso pai Abraão’. Disse-lhes Jesus: ‘Se
sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão’”; Em outro texto, Romanos 9: 6
e 7, está escrito: “E não é que a palavra de Deus tenha falhado, pois nem todos os
que descendem de Israel são Israel, como nem todos os descendentes de Abraão
são seus filhos, mas de Isaac sairá a descendência que terá o teu nome”. O ultimo
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texto é Gálatas 4: 25, 30. Aqui vemos que “(porque o Sinai está na Arábia), e ela
corresponde á Jerusalém de agora, que de fato é escrava com seus filhos. (...)
Mas que diz a Escritura? Expulsa a serva e o filho dela, pois o filho da serva não
herdará com o filho da livre”.
E há, finalmente os que afirmam serem os cristãos os verdadeiros filhos
de Abraão. Basta ver Romanos 4: 11, 16; Gálatas 3: 7, 29 e 4: 23, 28, 31. O
primeiro texto diz claramente:
E (Abraão) recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que ele tinha quando incircunciso. Assim ele se tornou pai de todos aqueles que crêem, sem serem circuncidados, para que a eles também seja atribuída a justiça, (...) Por conseguinte, a herança vem pela fé, para que seja gratuita e para que a promessa fique garantida a toda a descendência, não só à descendência segundo a Lei, mas também à descendência segundo a fé de Abraão, que é o pai de todos nós” (ROMANOS 4: 11, 16).
O segundo texto, presente na carta de Paulo aos Gálatas, seguindo no
mesmo diapasão, diz: “Sabei, portanto, que os que são pela fé são filhos de
Abraão. (...) E se vós sois de Cristo, então sois descendentes de Abraão,
herdeiros segundo a promessa” (GALATAS 3: 7, 29). E o capítulo 4 do mesmo
livro reza: “Mas o da serva nasceu segundo a carne; o da livre, em virtude da
promessa. (...) Ora, vós, irmãos, como Isaac, sois filhos da promessa. (...)
Portanto, irmãos, não somos filhos de uma serva, mas da livre” (GÁLATAS 4: 23,
28, 31). A conclusão nos parece clara: os cristãos de hoje, seja qual for a
nacionalidade, são os verdadeiros filhos de Abraão, ou seja, eles são o
cumprimento da promessa que Deus fez a Abraão.
Há um segundo grupo de textos, que associam os cristãos com o
verdadeiro Israel. Senão vejamos: Não há dúvida que no Antigo testamento Israel
é usualmente chamado de Israel. Mas há textos na Bíblia onde se diz que os
israelitas desobedientes não são israelitas. Exemplos destes textos são Números
15: 30, 31; Deuteronômio 18: 19; Atos 3: 23 e Romanos 9:6. vejamos cada um
especificamente. O primeiro texto, Números 15: 30, 31, diz: “Aquele, porém, que
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procede deliberadamente, quer seja nativo, quer estrangeiro, comete ultraje contra
Iahweh. Tal indivíduo será exterminado do meio do meu povo: desprezou a
palavra de Iahweh e violou o seu mandamento. Este indivíduo deverá ser
eliminado, pois sua culpa está nele mesmo”. O segundo texto diz: “caso haja
alguém que não ouça as minhas palavras, que este profeta pronunciar em meu
nome, eu próprio irei acertar contas com ele”. Em Atos 3: 23 o Apóstolo Pedro
repede o que está escrito em Deuteronômio em um sermão dirigido aos líderes
judeus conclamando-os ao arrependimento e a conversão. E, finalmente Romanos
9:6, 7 diz: “e não é que a palavra de Deus tenha falado, pois nem todos os que
descendem de Israel são Israel, como nem todos os descendentes de Abraão são
filhos, mas de Isaac sairá a descendência que terá seu nome”.
Há, no entanto, claras referências no Novo Testamento que nos
autorizam a afirmar que os cristãos são chamados de Israel. João 11: 50-53, por
exemplo, registrando as palavras de Caifás, diz:
“Não compreendeis que é de vosso interesse que um só homem morra pelo povo e não pereça a nação toda?” Não dizia isso por si mesmo, mas sendo Sumo Sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus iria morrer pela nação – e não só pela nação, mas também para congregar na unidade todos os filhos de Deus dispersos. Então, a partir desse dia, resolveram matá-lo. Jesus, por isso, não andava em público, entre os judeus, mas retirou-se para a região próxima do deserto, para a cidade chamada Efraim, e aí permaneceu com os seus discípulos.
Em outras palavras, na mente do escritor sacro, enquanto Caifás
planejava matar Jesus para poupar a nação frente aos romanos, Deus intentava
salvar aos verdadeiros israelitas com sua morte.
Outro texto é I Coríntios 10:1. Aqui Paulo nos diz: “Não quero que
ignoreis, irmãos, que os nossos pais estiveram todos sob a nuvem, todos
atravessaram o mar”. Esta referência é expressamente feita com relação aos
israelitas que passaram o mar vermelho sob a direção espiritual de Moisés.
Apesar disso, contudo, Paulo escreve a uma igreja gentílica, na cidade mais
pecaminosa do mundo conhecido de então, e os inclui como “filhos” dos mesmos
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israelitas que atravessaram o mar. Porque Paulo faria isso se não acreditasse que
os cristãos são também israelitas?
O texto de Gálatas 6: 15, 16 é muito mais revelador. Aqui Paulo diz: “de
resto, nem a circuncisão é alguma coisa, nem a incircuncisão, mas a nova
criatura. E a todos os que pautam sua conduta por essa norma, paz e misericórdia
sobre eles e sobre o Israel de Deus”. Neste texto, no qual Paulo faz uma clara
citação do Salmo 125: 5, ele modifica o pensamento do salmista para contrastar
os que confiam na circuncisão dos que confiam em cristo. Sobre a expressão
Israel de Deus, alguns poderiam interpretá-la como uma referência aos israelitas
fies a Deus, distinguindo-os dos israelitas como um todo. Outros preferem
interpretá-la como uma referência aos cristãos. Mas, uma vez que “Israel” parace
referir-se aos mesmos que “pautam sua conduta por essa norma”, esta segunda
interpretação nos parece mais acertada. Sobre esta interpretação diz Donald
Guthrie: “sem dúvida Paulo introduz esta referência a Israel não somente porque a
ecoa do Salmo, mas também por querer assegurar aos gálatas que não perderão
os benefícios de fazerem parte do verdadeiro Israel ao recusarem a circuncisão”
(GUTHRIE, 1984, p. 196).
Com Efésios 2: 12, 19 encerramos o grupo de textos nos quais vemos
que os cristãos são, também chamados de israelitas. Aqui ouvimos o Apóstolo aos
gentios dizer aos efésios: “lembrai-vos de que naquele tempo estáveis sem Cristo,
excluídos da cidadania em Israel e estranhos às alianças da promessa, sem
esperança e sem Deus no mundo” (...) “Portanto, já que não sois e adventícios,
mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus”. Será que há alguma
palavra obscura em Paulo? Ele nos diz claramente que estar em Cristo é o mesmo
que possuir a cidadania israelita e está ligado à aliança e às promessas.
No que diz respeito ao último grupo de textos, os que apresentam a
Igreja como substituição dos Judeus. Creio não ser necessário provar que os
judeus são judeus. Mas há textos na Bíblia que dizem que os judeus
desobedientes não são judeus e que os cristãos é que são os verdadeiros judeus.
Senão vejamos. Em Romanos 2:28, 29 Paulo diz: “Pois o verdadeiro judeu não é
aquele que como tal aparece externamente, nem é verdadeira circuncisão a que é
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visível na carne: mas é judeu aquele que o é no interior e a verdadeira circuncisão
é a do coração, segundo o espírito e não segundo a letra: aí está quem recebe
louvor, não dos homens, mas de Deus”. Parece-nos claro que Paulo está
comparando duas formas de circuncisão, a da carne e a do espírito. Pela primeira
as pessoas se tornam judeus, ou seja, passam a pertencer a uma nação; pela
segunda, as pessoas se tornam cristãos. A opinião dos exegetas deste texto não é
muito diferente. Geoffrey Wilson, por exemplo, diz:
Passando este veredicto esmagador sobre a bancarrota espiritual do judaísmo, o apóstolo inverte completamente a idéia que o judeu fazia de si mesmo. Pois o judeu se gloriava de seu nascimento, confiava em ritos externos e, como todos os que se contentam com as aparências exteriores, esperavam o louvor dos homens (Mat. 6: 5; João 5: 44). Negando a validade desta confiança, Paulo faz um jogo com a palavra “judeu”, que significa “louvor”, “cujo louvor não provém dos homens, mas de Deus”. Além disso, a significação espiritual da circuncisão era ensinada claramente pelos profetas (Deut. 10: 16; 30: 6; Jer. 4:4; 9: 26). Portanto, a verdadeira circuncisão é a do coração que é renovado pelo Espírito Santo (WILSON, 1981 p. 35).
O ministro anglicano John Stott (2000, p. 106), comenta estes versículos
e diz que um resumo do que Paulo expôs, pode ser reduzido a quatro verdades:
(1) a essência do que é ser um verdadeiro judeu não está visível aos olhos ou
exterior; (2) a verdadeira circuncisão não ocorre na carne, mas no coração; (3) ela
é realizada pelo Espírito Santo e não pelo cumprimento da lei; e, (4) a sua
aprovação provém de deus e não dos seres humanos. Ou seja, toda leitura literal
dos textos bíblicos podem levar a conclusões desagradáveis. É importante olhar
para o que diz toda e Escritura e, comparando Escritura com Escritura, sob a
direção do seu autor, aceitar o que ela nos ensina.
Conclusão
Para concluir este texto, devemos deixar claro algumas verdades: 1) As
Escrituras do Antigo Testamento dizem que Deus deu a terra à Abraão e aos seus
descendentes; 2) Esta doação foi condicionada à manutenção do pacto celebrado
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entre Deus e Abraão; 3) As Escrituras do Antigo e do Novo Testamento também
registram que os Judeus quebraram este pacto diversas vezes, e a mais
significativa ocorreu quanto rejeitaram o Messias prometido; 4) Todas as
promessas de volta à terra se cumpriram no passado, antes de Cristo; 5) No Novo
Pacto, o Reino foi, não apenas estendido à todas as nações do mundo, mas
também relido como algo de natureza eminentemente espiritual e não político; 6)
Nenhuma passagem bíblica pode, portanto, ser honestamente utilizada para
justificar o domínio atual de Israel sobre a terra da Palestina ou o bombardeio da
faixa de Gaza. Este conflito deve, portanto, sair da esfera da teologia e da
interpretação bíblica e se dar na esfera da política, do direito internacional e do
bom-senso.
O que gostaríamos é que os intelectuais judeus, que já desenvolveram
um enorme papel em nossa história ocidental7, deveriam abandonar uma postura
obtusa e capitanear, ao lado de pensadores palestinos e árabes, um grande
debate para por termo a esta vergonha que vitima, diuturnamente, mulheres e
crianças indefesas na Palestina. Enfim, para refletir e resolver definitivamente este
conflito que, como um câncer, produziu metástase no mundo inteiro.
7 Segundo Morin, e ele diz isso com muita tristeza, “os intelectuais judeus tinham uma tendência ao universalismo, na medida em que ascendiam a uma existência no seio das nações. Eles também sabiam que as formas extremas de nacionalismo eram anti-semitas. Esses intelectuais eram abertos ao sofrimento dos outros. Muitos intelectuais judeus, antes de Israel, defendiam a causa dos negros nos Estados Unidos. Hoje, há um fechamento e uma segregação. Os intelectuais judeus foram comunistas, maoístas, trotskistas, de esquerda, por causas universalistas, mesmo se o universalismo deles fosse abstrato. Mas o que se passa agora é o fechamento, o judeucentrismo. (...) com o fim das grandes esperanças...muitos desses intelectuais foram se refugiar na religião, num retorno à identidade israelense-judaica” (MORIN, 2004, p. 27, 28).
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Referências bibliográficas
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LINDSEY, Hal & CARLSON, C.C. A agonia do grande planeta terra. Sl:
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Obra Missionária Chamada da meia-noite, 1979
MORIN, Edgar & BAUDRILLARD, Jean A violência no mundo. Rio de
Janeiro: Anima, 2004
OLSON, Lawrence O Plano divino através dos séculos. Rio de Janeiro:
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RAMM, Bernard Diccionario de teologia contemporanea. El Paso: Casa
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SCHALY, Harald O Pré-milenismo dispensacionalista à luz do
amilenismo. Rio de Janeiro: JUERP, 1984
STOTT, John Romanos. São Paulo: ABU Editora, 2000
WILSON, Geoffrey Romanos: um resumo do pensametno reformado. São
Paulo: Publicações Evangélicas selecionadas, 1981
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