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Texto: Alegrias de um pai ou o relampejar do
tempo.
Autor: Luiz gonzaga pinheiro
Música: La vie en rose
Receber a cópia do discurso que meu filho faria por ocasião de sua formatura em medicina foi uma das maiores alegrias que senti. Eu o vi pequeno, o
tomei nos braços, ministrei-lhe lições importantes. Ele fez o
restante da caminhada. Lembro-me dos pirulitos, dos
bicos de pão, dos desenhos que fazíamos riscando o chão da
nossa casa.
Lembro-me também do primeiro dia na escola, do
sarampo que o maltratou, dos cabelos cacheados que ele
tinha e que eu mesmo cortava; até da velha bicicleta que ele
parecia adorar, recordo, embora não a tenha
conservado. Seus dentes de leite, eu os guardei em uma
caixinha que ainda está comigo.
Se isso tudo aconteceu ontem, como pode esse menino me aparecer agora com um bisturi na
mão atendendo àqueles enfermos todos? Quando ele nasceu eu o entreguei ao doutor
Bezerra de Menezes: Tome-o, doutor Bezerra! Ajude-me a criá-lo, foi o que disse. Sei que o
senhor tem bastante trabalho, mas conseguirá um tempo para orientá-lo quando em vez.
E o doutor Bezerra nunca o abandonou.
Sinto falta das chuvas que não nos molharam, dos filmes que só depois dele crescido foram feitos,
das cantigas de roda que nunca cantamos. Mas em meu coração fizemos todas as brincadeiras e
traquinagens a que tínhamos direito. Pulamos muros, roubamos frutas, nadamos em lagoas e
subimos em árvores. Só nunca maltratamos passarinhos, porque os amamos.
E ele foi crescendo com aquele jeito de poeta tímido, de herói escondido pelo blusão da humildade, de criança que adora livros,
até que, de repente, me apareceu com aquele discurso digno de Neruda ou do meu velho amigo
Manuel Bandeira.
O tempo relampejara e tingira meus cabelos com alguma prata, e meu Espírito, envolvido
com livros e reuniões não notara aquelas transformações. As imagens dos meus filhos,
Victor Emmanuel e Lívia parecem ter coagulado no tempo da infância. É a maneira como gosto
de vê-los.
Mas o tempo, esse devorador de imagens, foi substituindo as fotos antigas por outras
belíssimas, de homem e mulher fortes, de pessoas generosas e responsáveis, de corações sensíveis e mãos operosas.Intimamente agradeci a Deuspor jamais ter me enganado a respeito deles.
Enganei-me com outras coisas, com eles, jamais.
Quando eu era criança julgava que amigos eram aqueles que me ensinavam a faltar às
aulas. Hoje sei que eram os futuros mendigos. Pensei também que os que pulavam cercas comigo eram salteadores. Com o tempo os
reconheci como saltimbancos; mágicos que se tornavam invisíveis diante do dono da chácara.
Imaginava que os homens que contavam vantagens entre um trago e outro no
botequim do meu pai eram mentirosos. Eram poetas do cotidiano. Quando eu era
criança ensinaram-me a ter medo de Deus. Que bobagem! Foi preciso descobrir que Ele
era diferente do meu pai para começar a amá-lo.
Ninguém me ensinou a arte de navegar corações. Aprendi isso escrevendo poemas e canções.
Eles encontraram, cada um a seu modo, essa importante maneira de tratar a vida e às pessoas. O discurso do meu filho serve para qualquer médico, em qualquer lugar deste
planeta tão belo e maltratado. Quem me dera que todos tivessem tal sensibilidade.
“Éramos tão jovens tentando domar o futuro
com nossos atos e um sonho nascia em nós,
apontando os rumos da vida profissional, luzindo os caminhos da nossa existência. ‘Existirmos, a que será que se destina’?
Hoje, diante da concretização desse sonho, sentimo-nos de volta ao começo. Mas
ele ainda nos impulsiona a seguir em frente, pois se transformou em estrada, viagem em
busca do horizonte das realizações.
É preciso semear o sonho com as mãos no
trabalho para germinar realidade. Assim
transformamos a dor e a morte de muitos
em esperança e vida, para que possam,
igualmente, semear seus sonhos. Desse
modo, ao longo de tantos outros anos,
veremos que o horizonte-sonho nunca é
alcançado, só se expande. Veremos que o
sonho torna-se antigo, jamais velho.
Nossos sonhos se eternizam nos anseios de nossos irmãos, tornando-nos humanos, fazendo-nos instrumentos de perpetuação
da segurança e da beleza da vida. Dessa forma, ao final desse ciclo terreno, a morte, o sonho nos levará de volta a um começo, por ter se tornado maior que nossa própria vida: a vida se vai, mas os frutos do trabalho, semeados por este sonho,
permanecem para fazer a realidade que melhorará a vida de outros.
Ainda somos tão jovens, porém lúcidos
para entender que seremos eternos alunos
da vida, aprendendo com ela para nos
tornarmos professores de nós mesmos;
arquitetos de sonhos; engenheiros do amanhã;
médicos de nossos anseios; filósofos de nossa
existência. Eis no que nos tornamos.
Hoje, celebrando um final, comemoramos
um recomeçar. Realizamos parte de um
desejo que não é só nosso, mas de toda
humanidade desde sempre, perpetuando-se
num ciclo, como uma semente. Nossa alegria
maior não é a de sermos médicos ou
historiadores, mas de ser alguém que possa
semear esperanças de um futuro melhor.
Existirmos, a isso se destina nossa vida.
Para extrair da vida o milagre do trabalho.
Avante! Para isso existimos: para forjar
através do trabalho o milagre da vida”.
Dito isso, meu filho sentou-se ao lado dos seus amigos,
enquanto eu o olhava pela imensa e transparente janela do
infinito. Cenas assim são recorrentes, por isso acho que
o verei sempre através de cada enfermo que encontrar, inclusive, a mim mesmo.
Formatação: O caçador de imagens
Do livro: A pequena flor do campo