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Astrologia, magia e hermetismo:
a recepção da tradição platônica e a sobrevivência de Hermes Trismegisto.
Jefferson de Albuquerque Mendes1
Resumo: Este trabalho pretende criar um panorama sobre o impacto dos escritos herméticos
na Primeira Época Moderna e mapear como as obras dos filósofos e eruditos dessa época
estavam em consonância com as preceitos mágicos e astrais, e principalmente, verificar como
a religião cristã moldava as intepretações sobre as práticas pagãs. Dessa forma, partindo da
tradição platônica e da inserção dos textos herméticos, se concebe a relação homem-universo
como um lugar de concatenação das práticas astrológicos-mágicos, da filosofia e da teologia.
Assim, a ideia é traçar, em linhas gerais, como se dá a relação do da doutrina do homem-
microcosmo com a recepção dos textos herméticos, permeados pelo regime analógico.
Palavras-chaves: Astrologia. Hermetismo. Homem. Magia. Primeira Época Moderna.
Abstract: This work intends to create a panorama on the impact of the hermetic writings in
the Early Modern Age and to map how the works of the philosophers and scholars of that
time were in consonance with the magical and astral precepts, and especially, to verify how
the christian religion molded the interpretations on the pagans practices. In this way, starting
from the platonic tradition and the insertion of hermetic texts, the relation between man and
the universe is conceived as a place of concatenation of astrological-magical practices, of
philosophy and theology. Thus, the idea is to outline, in general terms, how the relationship
between the doctrine of man-microcosm and the reception of hermetic texts permeated by the
analogical regime.
Key-words: Astrology. Hermetism. Man. Magic. Early Modern Age.
A sobrevivência e recepção dos escritos reunidos sob a alcunha Hermes Trismegisto,
por si só, nos renderia um trabalho de pesquisa único e imensamente exaustivo. Porém, a ideia
deste tópico nada mais é do que criar um panorama modesto sobre o impacto dos escritos
herméticos na primeira época moderna e mapear como as obras dos filósofos e eruditos
estavam em consonância com Trismegisto – seja pelo conhecimento profundo dos textos, ou
1 Mestrando, pela linha de pesquisa História e Crítica da Arte, no Programa de Pós-Graduação em Artes –
PPGARTES – da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Email: jeffersonamendes@hotmail.com.
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não. Por isso, nessas poucas páginas pretenderei colocar os principais elementos que estão por
trás do que os historiadores recorrem nomear Hermetismo.
A figura, ou melhor, o conceito por detrás de Hermes Trismegisto entendida e aceita
pelos magos eruditos europeus remonta praticamente ao mundo egípcio e sua conexão e
relação com os deuses e os elementos teológicos envoltos nessa relação. Porém, o que eles
acreditavam ser do advento da antiguidade clássica mais longínqua, na verdade era fruto do
debate que misturava os substratos do paganismo do primitivo cristianismo, religião que era
uma mistura de magia com a presença oriental e "versão gnóstica da filosofia grega e refúgio
de fatigados pagãos que buscavam respostas para a vida"2. Ou seja, de acordo com Frances
Yates, os principais textos herméticos, supostamente3, teriam sido escritos entre os séculos II
e III d.C por vários autores desconhecidos e, talvez, por gregos que tinham o conhecimento de
toda a cultura popular da época mesclando platonismo e estoicismo. Porém, a preocupação
maior aqui levantada não reside exatamente em datar o ponto de partida e sim, em verificar o
por que do nascimento desses textos. Em qual contexto histórico filosófico surgiram?
Novamente, Frances Yates, nos dá uma pequena pista do que estaria por detrás do surgimento
do hermetismo:
O mundo do século II estava farto da dialética grega, que não parecia levar a qualquer
resultado seguro. Platônicos, estoicos e epicuristas apenas repetiam as teorias de suas várias
escolas, sem fazer avanço nenhum, e as doutrinas haviam-se reduzido ao conteúdo dos livros
de textos, manuais que formavam a base da instrução filosófica do Império. No que diz
respeito à sua origem grega, a filosofia dos escritores herméticos é estereotipada, com suas
tinturas de platonismo, de neoplatonismo, de estoicismo e de outras escolas do pensamento
grego. Esse mundo do século II, todavia, buscava intensamente o conhecimento da realidade
e uma resposta aos problemas que não encontrava na educação normal. Voltou-se, pois, para
outros modos de buscar respostas, para os modos intuitivos, místicos e mágicos. Uma vez
que a razão aparentemente falhara, buscou cultivar o nous, a faculdade intuitiva do homem. 4
Ou seja, havia uma necessidade de alinhar o mundo terrestre com o cosmos, na
tentativa de criar uma relação entre as coisas que acontecia na terra e a movimentação dos
céus. As condições políticas que o império romano havia alcançado propiciava a interlocução
e o intercâmbio com o mais distante e mais oculto (a astrologia dos caldeus, a religião
2 YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 14.
3Não há, necessariamente, consenso na afirmativa dessas datas, por isso a suposição de Yates perante ao
nascimento dos textos herméticos. O surgimento desses textos remonta a mitologia do deus egípcio Tot
(mensageiro dos deuses), pela qual os gregos atribuíram-lhe o nome de Hermes. Os latinos, por sua vez, lhe
chamavam de Mercúrio, que na verdade, era o quinto Mercúrio - aquele que dera sabedoria e a capacidade de
leitura aos egípcios. Sob a égide de Hermes Trismegistos que se desenvolveu uma extensa literatura sobre
astrologia, magia, ciências ocultas; como também na confecção de talismãs e amuletos. Para mais ver em
YATES, Giordano Bruno e a Tradição Hermética. 4 ibid, p. 16.
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indiana, etc). Assim, no século II primordialmente, o Egito se torna referência no que
concerne ao emergente hermetismo. Os egípcios eram reverenciados; se percorria longas
distâncias para frequentar e se consultar com os sacerdotes egípcios nos templos no intuito de
desvendar os mistérios conhecidos nos sonhos e sua relação com o firmamento astral. A ideia
de que os filósofos gregos já tinham entrado em contato com os sacerdotes e toda a
cosmologia egípcia era recorrente. Havia uma ideia de pro-Egito imersa na cultura, tanto
erudita quanto popular, nos idos do século II d.C.
Há uma passagem atribuída a Hermes Trismegisto que Festugière, em seu
monumental livro, alia de forma considerável, a religião mágica egípcia com os escritos
herméticos. Nesse trecho Hermes dizia ao seu discípulo Asclépios:
nesse momento, cansados da vida, os homens não mais considerarão o mundo um objeto
digno de admiração e reverência. Esse todo, que tão boa coisa é, a melhor que pode haver no
passado, no presente e no futuro, estará em perigo de perecer; os homens o estimarão um
fardo, e daí em diante o Universo inteiro há de ser desprezado; essa incomparável obra de
Deus, essa construção gloriosa, essa criação que é toda boa e feita com infinitas diversidades
de forma, esse instrumento de Deus que, sem inveja, prodigaliza favores sobre sua obra, na
qual se reúne num todo, em harmônica diversidade, tudo o que existe digno de ser
reverenciado, louvado e amado.5
Por sinal, os dois textos atribuidos a Trismegisto que chegaram até nós são o
Asclepios6 – escrito na forma de diálogos entre mestre e discípulo – e o Corpus Hermeticum
7
– que Marsilio Ficino, ao traduzi-lo, o nomeia como Pimandro, que na verdade é o nome dos
primeiros dozes tratados. Retomando a pequena fala acima, fica claro a ideia ali condensada e
o quão ela se aproxima do modo ascéptico da religião egípcia, onde o elemento mágico se
constituia como um peculiar modo de conexão com os deuses, numa relação quase de causa e
efeito, pois as coisas que no mundo terrestre acontecem, são dimensões especulativas das
coisas do mundo cósmico.
Com isso, fica claro que, quando os textos herméticos chegam a Europa, a atruibuição
a Hermes Trismegisto como um sacerdote egipcio de grande sabedoria e tão antigo quanto o
bíblico Moisés8, e que condensaria em seus escritos todos os ensinamentos sobre a filosofia
5 FESTUGIÈRE. A.J. La Révélation d'Hermès Trismégiste. Paris: Les Belles Lettres, 2011, p. 328.
6 TRISMEGISTO. Corpus hermeticum. Tomo 2, Trattati XIII-XVIII. Asclepio; ed. Arthur D. Nock e André-Jean
Festugière, tr. André-Jean Festugière. Paris, Les Belles Lettres, 1946 7 Como referência sobre os escritos reunidos sob a alcunha Trismegisto, utilizarei a tradução feita por Festugière
reunidos na coletânea Corpus hermeticum. Para mais ver: TRISMEGISTO. Corpus hermeticum. Tomo 1,
Pimander. Trattati II-XII; ed. Arthur D. Nock e André-Jean Festugière, tr. André-Jean Festugière, 2e éd. Paris:
les Belles Lettres, 1946. 8 Para os eruditos da Idade Média e da Primeira época moderna, era de comum senso colocar Trismegisto na
mesma cronologia e genealogia de Moisés, para esses eruditos, Trismegisto era mais velho que os filósofos
gregos.
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antiga e magia. Os próprios resquícios que o texto carrega de platonismo e filosofia grega
provém dos ensinamentos filosóficos já um pouco desgatados no início do século II d.C. De
outro lado, a confirmação de Trismegisto como um indivíduo real também constava nos
escritos dos Padres da Igreja, e de acordo com Yates, principalmente em Lactâncio e Santo
Agostinho.
Lactâncio9 cita, por diversas vezes, os escritos de Trismegisto achando que estes
seriam aliados profícuos na sua empreitada em utilizar os saberes pagãos como base para o
desenvolvimento do cristianismo. O que o leva, talvez, a utilizar estes textos herméticos como
instrumental teológico reside numa espécie de confluência e um pouco, digamos,
coincidência: Lactâncio verifou que havia nos textos herméticos várias passagens onde se
emprega o nome "Pai" e até, para se referir ao demiurgo, Hermes utilizara a expressão "Filho
de Deus"10
. Tanto que para o Asclepios, Lactâncio associou esse escrito a uma espécie de
profecia sobre a vinda do filho de Deus para o mundo dos homens. Não somente no
Asclépios, mas no Pimandro, os escritores herméticos empregam a expressão "filho de Deus",
o que dá a Lactâncio mais indícios das relações entre os textos herméticos e a teologia cristã.
Assim, Lactâncio "considera Hermes Trismegisto um dos mais importantes videntes e
profetas gentios que previram o advento do cristianismo, por ter falado do Filho de Deus e da
Palavra".11
Lactâncio não deixara nenhum texto expondo algum tipo de reprovação aos escritos de
Trismegistos, mesmo quando fazia qualquer tipo de condenação não o associava e sim, aos
magos que se utilizavam das imagens para evocar os demônios, que, na verdade, eram anjos
decaídos. Por isso, segundo Yates, Lactâncio será na Primeira Época Moderna o padre
favorito dos eruditos e filósofos herméticos que queriam aliar hermetismo aos seus escritos e
ainda sim permanecerem cristãos.
Ao contrário de Lactâncio, Agostinho deferiu severas críticas a Trismegisto, talvez do
fato que, diferentemente de Lactâncio que utilizara os manuscritos herméticos em grego,
Agostinho, utilizara as traduções latinas – que devem datar da mesma época que Agostinho,
ou seja, o século IV – as mesmas que chegaram até nós e que eram atribuídas a um tal de
Apuleio de Madura12
, por onde Agostinho desferiu suas críticas. Esses ataques estão no seu
9
As citações de Hermes por Lactâncio se encontram, em sua maioria, em seus Institutos. Para mais, ver:
LACTÂNCIO. Institutions Divines. Monat, P. ed. et trad., 3 vols., Paris: Éditions du Cerf, 1986. 10
YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 19. 11
ibid., p. 20. 12
A autoria da tradução latina, como se sabe, não é mais atribuída a Apuleio de Madura. O que se tem de comum
acordo, é que se trata de um indivíduo educado na cultura greco-romana e que buscou o ocultismo as chaves e
respostas para o mundo.
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De Civitate Dei13
, onde se refere a passagem que Trismegisto elucida sobre a crença nos
rituais egípcios pela qual se reanimava as estátuas dos deuses por meio da magia. Ou seja, o
que Agostinho critica é o caráter idolatra da magia, principalmente, na parte onde Agostinho
ataca Apuleio (o considerando como tradutor dos Asclépio) por esse se dirigir aos espíritos ou
daemons14
.
Mesmo assim, Agostinho tem Trismegisto com um profeta do advento do
cristianismo, porém lhe destitui de toda glória por acreditar que, ao reverenciar a presciência
do futuro dada pelos demônios, Trismegisto rompia, de vez, com os preceitos do cristianismo.
Sobre o léxico utilizado nos textos herméticos que remetem ao "filho de Deus", por exemplo,
Frances Yates relata que "Agostinho nada diz, em absoluto, sobre a menção do ‘Filho de
Deus’, e toda a sua visão do assunto talvez seja, em parte, uma réplica à glorificação feita de
Hermes como profeta gentio, por Lactâncio"15
.
Durante a Idade Média, o nome de Trismegisto circulava com certa desenvoltura,
apesar das proscrições da igreja no tocante a magia. Seu nome sempre esteve ligado no que
concerne aos assuntos como alquimia, confecções de talismãs, magia, e principalmente, no
tocante as imagens mágicas. Havia um amalgama, por partes dos eruditos medievais, entre a
Hermética filosófica e a Hermética prática16
. Um exemplo basilar seria a importância da
astrologia helênica na Hermética filosófica. A doutrina dos decanos desenvolvidos pela
cultura egípcia fora absolvida pela astrologia helênica de forma que mesmo nos manuscritos
que compõem o Asclépio17
há uma passagem inteira que relata a importância dos trinta e seis
decanos para o zodíaco, e para a astrologia vigente - que era uma mistura da astrologia
13
AGOSTINHO. De Civitate Dei. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, livro VIII, xxiii-xxvi. 765-785. 14
YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 21. 15
ibid., p. 23. 16
Cabe aqui uma inflexão mais detida no que concerne a própria construção do hermetismo: a priori, podemos
dividir a literatura hermética em duas partes. Uma açambarcar os textos aqui apresentados como os Asclépios e o
próprio Corpus hermeticum; a outra parte reúne os textos que tratam das práticas astrológicas, alquímicas e
mágicas. Apesar de divididas, essas duas literaturas se relacionam entre si, de forma, que, de forma alguma,
podemos delimitar precisamente uma separação. O próprio Festugière, em suas revelações, (ver FESTUGIÈRE,
A. J. La Révélation d’Hermès Trismégiste, 4 vols., 1944-1949. Paris: les Belles Lettres, 2011.) consagra o
primeiro tomo a astrologia e as ciências ocultas, como uma forma de estabelecer os parâmetros do hermetismo
prático, para aí sim adentrar no hermetismo de cunho filosófico. Para ambas, os eflúvios dos fluxos astrais
tinham uma assertiva nos modos de vida dos indivíduos na terra. No mundo terrestre "todo objeto do mundo
material estaria repleto de simpatias ocultas provindas das estrelas, das quais dependeria". (YATES, op. cit.,
p.58). Para isso, o mago que quisesse apreender algum elemento astrológico, deveria ter todo o conhecimento
que a literatura hermética filosófica disponibilizava. O mago seria, então, aquele que saberia unir, de forma
prazerosa, os dois tipos de ensinamentos e aí, conseguir adentrar nesse sistema regido pelos fluxos astrais e
subtrair dele o instrumental e as forças necessárias para poder lidar com as simpatias das coisas terrestres, e
assim determinar os parâmetros necessários para empreender o incognoscível. 17
Esses deuses egípcios, que seriam chamados, pelos helênicos, de decanos eram uma forma concreta que os
egípcios encontraram de divinização. Eles – os egípcios - não somente sacralizaram o tempo, em sua forma
abstrata; mais sim conseguiram dimensionar para cada hora do dia um deus em específico. Todos eles tinham
suas próprias imagens que eram reverenciadas.
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helênica com a tradição oriental sobre os astros18
. Assim, de fato, "a Hermética filosófica se
inscreve no mesmo quadro de referências da Hermética prática, dos tratados de astrologia e
alquimia, das listas de plantas, animais, pedras e outras coisas"19
.
Tendo como base os dados acima citados, podemos, de certa forma, nos confrontar
com a recepção desses manuscritos na primeira época moderna. Apesar de estritamente
proscrita pela igreja medieval, a magia ainda era praticada, porém de forma tímida, ou
melhor, não dita. Nenhum filósofo ou qualquer outro erudito da Idade Média, ousara a
mencionar os atributos da magia em seus escritos; poderiam estar ali camuflados, porém
nunca enunciado. Foi preciso "a magia da Renascença, reformada e erudita, que sempre
repelira qualquer conexão com a velha magia, ignorante e perversa, ou negra, era com
frequência adotada por algum estimado filósofo da Renascença".20
Antes e nos atermos aos estudos de caso, de como os eruditos lidaram com o saber
astrológico e sua relação com o indivíduo, cabem algumas considerações sobre os problemas
de ordem analógica que esses eruditos colocaram no cerne do debate. Já é de comum
conhecimento a sobrevivência e Platão (e Aristóteles) na Europa a partir de meados do século
XII. Dentre esses dois filósofos, foi Aristóteles que transmitira uma metafísica da verdadeira
natureza, em gênero e espécie, que existe no mundo exterior daquele que a pensa. O que isso
nos importa aqui, será a capacidade que os eruditos souberam descrever as coisas, partindo do
conceito aristotélico de natureza, e principalmente, descrever os princípios que regem as
relações entre as coisas.
Os neoplatônicos enriquecerem toda ontologia aristotélica de forma surpreendente. A
principal questão colocada por eles se encontra na capacidade de hierarquização natural da
realidade, ou seja, os seres são organizados de acordo e em função dos níveis de perfeição, e
de compreensão da existência que possuem. Um cristão que flerta com neoplatonismo, tem
em deus a instância mais justa, a melhor, e o mais inteligível dentre todas as coisas. Então,
partindo sempre de Deus, todas as coisas organizadas abaixo dessa hierarquia celeste, serão
sempre menos boas, mais inferiores e assim sucessivamente. Assim, se estabelece um lugar de
participação com Deus – de uma forma mais ou menos perfeita, de acordo com a
hierarquização das coisas. Isso, de certa forma, revela a riqueza dos conceitos que estão por
detrás da relação entre as coisas reais e Deus, e, nos revela que não se trata de um efeito de
reflexo das coisas e sim uma estrutura muito bem engendrada que possibilita, por exemplo, a
18
Ver: BOUCHÉ-LECLERCQ, A. L'astrologie grecque. Paris: Ed. E. Lerous. 1899. 19
YATES, op. cit., p.60. 20
YATES, op. cit., p.30.
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capacidade do homem como medida para todas as coisas. Essa será uma lição que os
neoplatônicos souberam muito bem apreender.
Ashworth coloca em linhas gerais como as teorias neoplatônicas foram modificadas e
readaptadas pela doutrina da criação e da revelação de Deus em seu filho, Jesus Cristo:
Na teologia cristã, as grandes linhas das teorias neoplatônicas se viram modificadas pela
doutrina da criação e pela crença em Deus que se revelou em Jesus Cristo. De um lado,
Deus, transcende toda a realidade criada e todo o conhecimento possível. Ele está
infinitamente afastado de suas criaturas. Diferentemente de suas criaturas, Deus é
inteiramente simples: não há distinção em si mesmo. Tudo o que ele é, é em sua essência, e
sua essência equivale a sua existência. De um outro lado, como substância, participamos das
perfeições de Deus, e como cristãos, temos um certo conhecimento dele.21
Em seu texto, Hermetisme et Renassaince, Eugene Garin faz um apanhado analítico
sobre os processos históricos e antropológicos que estavam por trás das filosofias que eruditos
e filósofos desenvolveram e que viriam a se tornar os cânones conhecidos por nós. Na maioria
dos textos em que Garin traz, havia uma relação unívoca no que concerne a analogia das
correspondências entre as palavras e as coisas, e não somente isso, mas também é evidente
como nesses textos a teoria das correspondências tinha o homem como centro de irradiação
do saber. Como dito no final do tópico anterior, a hierarquização das coisas preconizava um
paralelismo entre a terra e o cosmos, na busca de uma harmonia universal que se conjugava
com o divino. Esse cosmos seria então, um grande quadro onde as coisas eram refletidas umas
às outras, sempre entre si.
O homem, por sua vez, enquanto produto de uma forma originária e divina, seria
imagem do ser Divino, e por isso, sua inteligência, estaria de acordo com a de Deus. Com
isso, o homem seria aquele, por excelência, que estaria apto a criar similitudes do ato divino.
Ainda sobre os textos platônicos e herméticos, Garin identifica no manual de magia intitulado
Picatrix, uma "exposição de pressupostos teóricos e de práticas operatórias, entre hermetismo
especulativo, com nuances platonizantes, e magia, entre teurgia e teosofia oriental"22
. Ele
chegara a Europa via Espanha, e traduzido para o espanhol a mando de Alfonso o Sábio e
somente traduzido para o latim na segunda metade do século XIV23
.
Portanto, se o homem é a vontade divina, e Deus, para todos os efeitos, é todas as
coisas, então só restaria o homem, através de seu intelecto, ter o poder para se transformar em
todas as coisas. Somente a doutrina do homem-microcosmo disponibilizaria o instrumental
21
ASHWORTH, E.J. Les théories de l'analogie du XIIe au XVI
e siècle. Paris: Vrin, 2008, p. 17.
22 GARIN, Eugenio. Hermétisme et Renaissance. Traduit de l’italien par Bertrand Schefer. Paris : Editions Allia,
2016, p. 49. 23
ibid, p. 29.
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necessário para que este tipo de analogia das proporcionalidades fosse capaz de existir. Mas
esse pensar estaria submetido por uma interpretação platônica esotérica do mundo até segunda
metade do século XV. Estabelecendo concordâncias analógicas entre palavras e coisas, a
representação do homem-microcosmo figura a diferenciação entre o visível e o ininteligível,
em signos também visíveis e ininteligíveis. De acordo com Jean Céard, o aspecto analógico
do homem-microcosmo se dá, pois, a analogia tem uma função heurística que está inscrita na
estrutura do mundo e o utilizar para compreender as nuances desse mundo remonta ao ato
criador por excelência. Para isso ele traz a filosofia aristotélica24
_ como suporte para
estabelecer as relações entre o microcosmo e a analogia. Céard escreve:
Em que esteja ao alcance as perfeições do Todo, e que represente o grande corpus do
universo, com suas quatros qualidades, são consideradas também o corpo do mundo. E tudo
isso se dá por grandes nomes, e de tal variedade e ligações das partes que, de todas as obras
de Deus, o corpo do homem é a mais perfeita, compreendendo em si a harmonia das coisas
contrárias das quais acomodadas segundo suas funções, fazem seu acordo entre o mais belo e
excelente que se possa deseja.25
Esse trecho, em grande medida, pode nos dizer muito sobre as estruturas analógicas
que o mundo suporta, por exemplo, a linha tênue entre o regime analógico do homem-
microcosmo, com os escritos que compõem os Asclépio - principalmente no sexto capítulo.
No que concerne o homem, ele é o intermediário, aquilo que se constitui fundamentalmente a
partir da copula, ou seja, da união das palavras e das coisas. Ele é, em certa medida, o nexus
do Todo26
. Aqui Trismegisto sobrevive fortemente pelos neoplatônicos.
O homem é um pequeno mundo, um pequeno cosmos, da qual o grande cosmos reflete
ponto por ponto. Dentro desse escopo, a imagem tem lugar privilegiado pois será nela que as
ressonâncias astrológicas serão providas de sentido. A grande correspondência entre o grande
e o pequeno mundo será situada nos corpos celestes.
As relações entre o pequeno e o grande mundo, o macrocosmo e o microcosmo, as
correspondências entre o universo e o homem são processos de tentativas de orientação pelo
cosmos que datam desde a antiguidade. Podemos encontrar essa disposição conceitual sobre
24
“O que é último dentro da ordem da análise, é primeiro dentro da ordem da gênese”. ARISTOTELES. Etica a
Nicomaco. 2.ed. Editora Universidade de Brasilia. 1985 25
Tradução do autor. Original francês: En quoy sont comprises les perfections de ce Tout, que represente le
grand corps de l'univers, avec ses quatre qualités, considerées aussi bien au corps du monde. Et tout cecy est en
si grand nombre, et telle varieté et liaisons de parties, que, toutes les ouvres de Dieu, le corps de l'homme est le
plus parfait, comprenant em soy l'harmonie des choses contraires, lesquelles accommodée selon leur office, font
leur accord le plus beau et excellent qu'on sçauroir desirer. CÉARD, Jean. "'In homine nihil non'. La doctrine de
l'homme microcosme et l'analogie à la Renaissance."In: MICHEL, Ch. (org) Le Démon de l'analogie. Analogie,
pensée e invention d'Aristote au XX siècle. Paris: Garnier, 2017. p. 66. 26
ibid, p. 67.
1108
os temas da harmonia entre homem e universo, o homem como reflexo do firmamento em
diversos textos e autores dos mais diversos campos de estudos e crenças: desde o hermetismo
até textos em comentários bíblicos.
Há uma passagem instigante em Isidoro de Sevilha que retrata bem a linha de
raciocinio aqui defendida: “Se é verdade que em grego ‘mundo’ quer dizer ‘cosmos’, e o
homem, a sua vez, ‘microcosmo’, quer dizer ‘pequeno mundo’”27
. Isso revela, de fato, o quão
os homens da antiguidade relacionavam a criação e vida aos ditames e movimentos do
cosmos. Relacionar o nível terrestre com o nível cósmico se colocava como função primordial
para compreensão do incognoscível, do homem e daquilo que está a sua volta. Não é à toa que
os estoicos, grandes observadores dos astros, desenvolveram o conceito de sympatheia
universal, onde havia uma correspondência entre os astros e todas as categorias terrestres,
sejam elas animais, vegetais ou, mesmo, minerais. Havia uma prescrição precisa dessas
correspondências entre cada categoria, e era essa estrutura que permitiria a harmonia das
coisas no mundo, pois, somente o regime analógico permitiria essa ideia de sympatheia dos
estoicos.
Na introdução da Iatromatemática de Hermes Trismegisto a Amon o Egípcio, é
desenvolvido um sentido sistemático onde os astros, os corpos celestes são responsáveis
diretamente pelas partes do corpo humano; assim se cria uma conexão cosmológica entre o
individuo e o cosmos, na medida em que aquilo que afeta o corpo – para o bem ou para o mal
– tem uma relação unívoca e intrínseca com o estado dos astros. Assim surge o conceito de
melothesia, na vontade e na capacidade do homem em mensurar os aspectos medicinais pelos
astros, ou seja, tentativa de correspondência harmônica entre o alto e o baixo. Uma longa
tradição médica astrológica se formará a partir desses conceitos.
Os sábios dizem, ó Amom, que o homem é um universo, por que ele é feito, em sua
constituição, a semelhança do universo. Na verdade, dentro da geração da semente humana,
dentro de todas as partes que constituem o corpo humano, são misturados os raios dos sete
astros, tudo como no ato de nascimento sob a disposição dos dozes signos. Diz-se que Áries
é a cabeça enquanto que as faculdades perceptivas que são da cabeça são atribuídas aos sete
astros errantes: o olho direito ao sol, o esquerdo a Lua, as orelhas a Saturno, o cérebro a
Júpiter, a língua e a boca a Mercúrio, o olfato e o paladar a Vênus e tudo que venha ser
sanguíneo a Marte28
.
27
DE SÉVILHA, Isidoro. De natura rerum, IX, 2 (Ed. francesa. DE SÉVILLE, Isidore. Traité de la nature, éd. J.
FONTAINE, Bordeaux, Féret et Fils 1960.) 28
BEZZA, G. La iatromatematica di Ermete Trismegisto ad Ammone egizio, in: BEZZA, G. Arcana Mundi.
Antologia del pensiero astrologico antico, vol. I, Milão: Rizzoli, 1995, p. 695.
1109
A relação macrocosmo e microcosmo se dá, diretamente, através dos planetas e os
signos do Zodíaco e se exacerba sob uma forma astrológica. Como cada signo é senhor de
cada parte do corpo, o estudo médico-cosmológico permite diagnosticar as predisposições
patológicas de cada homem. Assim, a partir dessa análise é possível receitar medicamentos
diversos de acordo com o alinhamento dos planetas e suas regências sob cada casa zodiacal.
Cada momento da vida das pessoas necessitava de um determinado direcionamento do
cosmos para o seu corpo.
No mundo cristão, a ideia do homem, criatura das mais perfeitas, converge em si todos
os aspectos do mundo, é recorrente. Essa proximidade entre as coisas no mundo e o homem,
dentro do escopo cristão se revela como um ato de amor de Deus. A iconografia da visão da
beata de Hildegarda sobre a concepção do mundo, é um exemplo crucial para entendermos a
inserção da doutrina do homem microcosmo da idade Média e Primeira Época Moderna. De
acordo com Fritz Saxl, ela assimila o conteúdo da cosmologia pagã e da astrologia29
revestindo-as, através de sua fé incondicional em Cristo, em uma história sobre a criação
divina do mundo. Portanto, a concepção do homem enquanto microcosmo já exercia um certo
fascínio no medievo, porém, ainda as imagens cosmológicas eram simples representações
simbólicas do trânsito dos influxos que iam do homem ao universo e sua relação do Deus.
Essa situação muda a partir do século XIV, quando os filósofos e eruditos, partindo da
tradição platônica e da inserção dos textos herméticos, irão conceber a relação homem-
universo como um lugar de concatenação das práticas astrológicos-mágicos, da filosofia e da
teologia. O homem, portanto, será aquele capaz de açambarcar as similitudes do mundo e pô-
las em relação direta com os signos astrais que o circunda.
Antes de começarmos a delinear o impacto e as relações que Ficino estabelecera com
a astrologia e como, sob o prisma cosmológico, a figura do homem – enquanto microcosmo –
exerceu uma certa centralidade nos seus escritos (um homem que refletia a polaridade própria
que o autor vivenciava: entre os imperativos da teologia cristã e as prerrogativas herméticas e
astrológicas que apreendera em seus estudos.); é necessário frisarmos num ponto de imensa
importância que, digamos, irá direcionar e moldar a forma como Ficino constrói todo o seu
arcabouço conceitual.
Em meados de 1460, um monge que trabalhara para Cosimo de Médici, trouxe de suas
andanças pela Macedônia um manuscrito em grego para Florença. Esse manuscrito continha
29
SAXL, Fritz. La fede negli astri.Torino: Bollati Boringhieri, 2016, p.53.
1110
uma cópia do Corpus hermeticum porém não completo30
. Nesse momento já se encontravam
os escritos de Platão, todos reunidos, para serem traduzidos: essa função, incumbida por
Cosimo, foi dada a Marsilio Ficino. Porém, com a descoberta e chegada dos manuscritos de
Trismegisto na Florença dos Médici foi vista com bons olhos e, em certa medida, com alguma
euforia. Cosimo, já um tanto debilitado, ordena que Ficino traduza o Corpus hermiticum antes
mesmo dos textos platônicos: este fato, por si só, já demonstra uma grande disposição dos
indivíduos letrados da Itália do século XV para com os escritos herméticos recém-chegados31
.
Ficino dera o nome de Pimandro à tradução dos textos, sendo que Pimandro era, na
verdade, o nome dado ao primeiro capítulo dentre os quatorze que tinha em mãos. Nos
deteremos um instante em seu argumentum – como o próprio Ficino nomeia – ou seja, na sua
dedicatória a Cosimo. Ficino situa Hermes no espaço e tempo como contemporâneo de
Moises, ou seja, aqui ele deturpa, mesmo que de forma mínima, a genealogia constituída por
Agostinho sobre as origens de Trismegisto. E o próprio Ficino continua tomando a genealogia
agostiniana como preceito, traz tanto Cicero e Lactâncio como aqueles que contribuíram para
a constituição da persona Trismegisto. Todos estão de comum acordo de que se trata de um
sacerdote egípcio de grande sabedoria, talvez o mais sábio de todos os sacerdotes e grande
filósofo que apreendera os grandes mistérios do mundo, e "como sacerdote, pela santidade de
sua vida e pela prática dos cultos divinos; e, pela majestosa dignidade, como administrador de
leis — razões pelas quais é devidamente chamado Termaximus, ou Três Vezes Grande"32
.
Um pouco mais adiante, no prefácio, Ficino constitui o que seria a genealogia dos
saberes herméticos. O interessante nesse dado é que sua genealogia termina em Platão, o que
diz muito sobre como o platonismo moldou sua própria construção de saber. Assim sendo,
essa genealogia se apresenta da seguinte maneira: Zoroastro, Mercúrio (Hermes) Trismegisto,
30
Esse manuscrito continha apenas quatorze dos quinze tratados que compunham a coleção. Ver em YATES,
Giordano Bruno e a Tradição Hermética, pp.24-25. Ver também em GARIN, Hermétisme et Renaissance, pp.
11-19. 31
Um fato de grande importância e que merecem algumas linhas, são os fatos que antecedem a chegada desses
manuscritos. A inclusão de Gemisto Pleton e tantos outros bizantinos nos Concilio de Florença, digamos,
moldará a forma e o interesse ela qual Cosimo e tantos outros indivíduos terão pelos escritos filosóficos gregos.
Tanto Ficino quanto Cosimo já tinha um certo conhecimento sobre os textos herméticos, já tinham tido contato
com o Asclépio, e sabiam também que Trismegisto era mais antigo Platão. Garin comenta um pouco sobre como
o clima cultural florentino era favorável aos textos herméticos, isso, sem sombra de dúvidas, se dava pelo
fascínio pelo Egito na época: "a fascinação pelo Egito antigo, a aura de mistérios, a ideia de uma revelação muito
antiga e, enfim, os temas mágicos, um clima de atenção e o lugar privilegiado acordado pelo homem". Tradução
do autor. GARIN, Eugenio. Hermétisme et Renaissance. Traduit de l’italien par Bertrand Schefer. Paris: Editions
Allia, 2016, p. 13. Original: "la fascination pour l'Égypte ancienne, le halo de mystère, l'idée d'une très ancienne
révélation et, enfin, les thèmes magiques, um climat d'atttente et la place privilégiée accordée à l'homme".) Sobre
Gemisto e os bizantinos nos concilio de Florença ver: MCMANUS, Stuart. Byzantines in the Florentine polis:
Ideology, Statecraft and Ritual during the Council of Florence. Journal of the Oxford University History Society.
2009;6 :1-23. 32
YATES, Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 26.
1111
Orfeu, Aglaofemo, Pitágoras, Platão. Essa estrutura evidencia a importância que Ficino dá a
Trismegisto como origo (origem) do saber e culmina até Platão. Há uma necessidade,
segundo Yates, por parte de Ficino em seu desvincular da proscrição que Agostinho faz no
que concerne ao Asclépio, sendo assim, Ficino favorece o discurso de Lactâncio quando quer
convencer e ratificar sobre a importância dos saberes, não só herméticos, mas astrológicos,
alquímicos, no esclarecimento sobre a iluminação divina.
Ficino termina seu prefácio num tom conciliador, porém um tanto temeroso, sobre o
Corpus hermeticum, o que o leva a definir esses escritos como prisca teologica, ou seja, como
teologia antiga. O que nos importa, partindo desse ponto, é quão essas traduções
perambularam e tiveram diversas edições, contribuindo assim para a difusão dos textos
herméticos na Europa:
Foi impresso pela primeira vez em 1471, e teve dezesseis edições que alcançaram o fim do
século XVI, sem contar aquelas em que aparece impresso com outras obras. Foi impressa em
Florença, em 1548, uma tradução italiana de Tommaso Benci. Em 1505, Lefèvre d'Etaples
reuniu num só volume o Pimandro de Ficino e a tradução do Asclépio, do pseudo-Apuleio.33
Todas essas conjunturas – o deslocamento do Concilio de Ferrara para Florença, a
chegada dos manuscritos herméticos e platônicos, e a tradução, por parte de Ficino do
Pimandro – cria um clima para o desenrolar entre as doutrinas astrológicas-mágicas da época
medieval latina e as posições helenísticas que foram renovadas pelas fontes gregas. Esses
diversos enfrentamentos e confrontos entre os variados temas, em certa medida,
desenvolverão novas sínteses que ora florescerão ou se dissiparão em crises.
De fato, sob o terreno particular do hermetismo, as disposições teológicas e
astrológico-magicas que ele proporciona – e das quais Ficino se utilizará para defender suas
posições sobre uma medicina com fortes elementos astrais – se situa dentro de um alto nível
de conhecimento sobre o mundo, ou seja, sobre o conhecimento da unidade do todo, sua
identificação com este todo e, principalmente, as diversas operações no todo que possibilitam
"o conhecimento se identificar com a ação"34
. E que, vale-nos lembrar todo esse processo de
efervescente sobrevivência do hermetismo não pode ser evocado sem antes nos deter num
importante ponto que são as correspondências entre o macrocosmo e o microcosmo – nos idos
dos séculos XII e XIII e que perpassará toda a Primeira época moderna – aliadas a uma
33
ibid., p. 29. 34
Tradução do autor. GARIN, Eugenio. Hermétisme et Renaissance. Traduit de l’italien par Bertrand Schefer.
Paris: Editions Allia, 2016, p. 35. Origrinal francês: "(...) la conaissance s'identifiant avec l'action".
1112
curiosidade pelos fenômenos naturais; assim, o uso da magia e da astrologia estarão sob o
signo de Hermes que circulava sob diversas formas.
E o que, sempre, devemos levar em consideração e ter mente e a qualidade axiomática
do quadro de referências cosmológicos que tanto os textos herméticos quanto os textos de
natureza astrológico-magico apresentam. O que isso, realmente, diz sobre o mundo terrestre?
Nunca devemos esquecer que, às vezes, mesmo não sendo tacitamente declarado, a relação é
sempre astral. O mundo dos homens é regido pelos Sete planetas – aqui se inclui o Sol e a Lua
na qualidade de planetas – e pelas estrelas, e a lei pela qual vive é, no fundo, sempre uma lei
de ordem astrológica.
De fato, não há como desvincular os saberes astrais do hermetismo – seja a Hermética
filosófica ou mesmo a Hermética prática. Uma detida rápida no Asclépio35
nos mostrará como
ordem de criação e revelação do mundo para os homens, passa diretamente pelo entendimento
e compreensão dos ditames astrais, do firmamento. De fato, não temos nenhum comentário de
Ficino sobre o Asclépio, apenas algumas poucas linhas, que estão reunidas em seu
argumentum: "Das muitas obras de Hermes Trismegisto, duas são divinas. Uma é a obra
sobre a Vontade Divina, e a outra, sobre o Poder e Sabedoria de Deus. A primeira delas é
chamada Asclépio, e a segunda, Pimandro".36
A propósito da astrologia, a obra de Ficino mantém um tom, segundo Kristeller,
"ambíguo e cheio de contradições"37
, isso por que num prazo curto de tempo temos a
publicação da primeira tradução de grande relevo feita por Ficino: o Corpus hermeticum,
35
Em linhas gerais, o Asclépio trata da mais da gênese do mundo egípcio, enquanto predição e formação do
homem do que a gênese enquanto criação mundo. De fato, no Asclépio há a passagem onde fala da criação de
um "segundo Deus" pelas mãos de Deus, o Todo; e o nome a que se referem, nos manuscritos, a esse segundo
deus é "Filho de Deus" - o que para os Padres e filósofos cristãos tomarão isso como um tom de presságio. Ou
seja, no Asclépio já estava escrito a vinda do filho de Deus ao mundo dos homens, a vinda de Jesus Cristo. Aqui
Trismegisto profetizara o cristianismo. "Da Vontade de Deus, que em si recebeu a Palavra… E o nous-Deus,
existindo como luz e vida, trouxe à luz um segundo nous-Demiurgo, que, sendo o deus do fogo e do sopro,
formou os Governadores, em número de sete, que envolvem com seus círculos o mundo sensível". (YATES,
Frances. Giordano Bruno e a Tradição Hermética. São Paulo: Cultrix, 1964, p. 35) Porém, mesmo com a criação
de Deus-filho, Deus-todo carecia de algo que pudesse contemplar seus feitos, e assim crio o homem. Yates, de grande ajuda, elenca a importância dos astros e da astrologia para o hermetismo na sua
criação: "O soberano do céu é Júpiter, que, por intermédio do céu, distribui a vida para todos os seres.
(Possivelmente, a primitiva afirmação, segundo a qual o sopro ou Spirit us mantém a vida de todos os seres do
mundo, relaciona-se com esta supremacia de Júpiter, o deus do Ar.) Júpiter é o intermediário entre o céu e a
terra. O Sol ou a Luz, pois é por intermédio do Sistema Solar que se difunde a luz para todos. O Sol ilumina as
outras estrelas, não tanto pela força de sua luz como pela sua divindade e santidade. Deve ser tido como um
segundo deus. O mundo vive, e nele todas as coisas são vivas, com o Sol a governar tudo o que vive." (ibid., p.
48-49) 36
"E multis denique Mercurii libris, duo cunt diune praecipue, unus de Voluntate diuina, alter de Potestate, &
Sapientia Dei. Ille Asclepius, hic Pimander inscribitur." FICINO, Marsilio. Opera omnia, Basileia, 1576, p.
1863. 37
KRISTELLER, P. O. Supplementum Ficinianum Marsilii Ficini Florentini : philosophi platonici Upuscula
inedita et dispersa, Florence: Leonis S. Olschki, 1937, vol. II, pp. 11.
1113
impresso em 1471. De outro lado, temos em 1477 a incompleta Disputatio contra iudicium
astrologorum38
, e por fim, em 1489, temos a publicação de um de seus escritos mais
importantes, De vita libri tres39
, sendo o terceiro livro De Vita Coelitus Comparanda, repleto
de referências astrológicos-mágicos. A Disputatio se insere como uma obra de combate, não
tão ferrenho, contra a prática da astrologia divinatória; enquanto que o De vita pressupõe a
união dos preceitos astrais com a prática medicinal. Porém, entre a publicação desses dois
escritos se situa uma carta40
, provavelmente escrita por Ficino no fim de 1477 ou no início de
1478, onde a dimensão astrológica assume uma variável não vista em nenhum dos escritos
citados acima. O intuito, nessas poucas páginas será de demonstrar, como a reação de Ficino
para com a astrologia se transmuta entre uma ideia de validação medicinal da astrologia, mas,
ao mesmo tempo, se percebe um enorme eco das tradições herméticas e das práticas mágicas
e sua validade no mundo terrestre.
Como estrutura que perpassa a obra de Ficino, ideia de microcosmo/macrocosmo e o
regime das analogias no mundo são de imensa importância para tentarmos compreender sua
visão de homem.
Os textos herméticos constituíram para Ficino um ponto de referência constante, um
testemunho privilegiado da prisca theologia, um documento admirável que manifesta
arcana mysteria, digno de ser colocado por Lattanzio entre as Sibilas e os Profetas (inter
Sybillas et Prophetas). E então exactamente nesta perspectiva que ele encontra a
confirmação e o fundamento metafísico e teológico da astrologia e da magia. [...] Nessas
páginas - se referindo ao De vita – a astrologia inseria-se num contexto que lhe aparecia em
tudo correspondente não só à tradição cristã, mas à sua visão do homem, e da sua dignidade
e centralidade no cosmos.41
Garin, nessas poucas palavras, insere a filosofia ficiniana, através do impacto dos
textos herméticos, numa conjuntura na qual a relação entre o homem e o cosmos é uma das
chaves principais para compreendermos os escritos do filho do médico Diotifeci d'Agnolo di
Giusto. Nos detenhamos um instante em suas Disputatios: a questão que paira é como
podemos explicar uma obra desse tom, dentro do escopo ficiniano? Como prescindir uma
obra de caráter acusador, porém não tanto, dentro do corpus teórico de Ficino? Mais uma vez
Garin nos lança uma luz em meio ao caos: para ele, Ficino nunca levara muito a sério sua
investida contra a astrologia, de fato, o que o autor de uma obra como a Theologia platonica
38
Para as Disputatios ver: KRISTELLER, P. O. Supplementum ficinianum, Florence, 1937, vol. II, pp. 11-76. 39
Para uma versão moderna dos escritos veja: FICINO, Marsilio. Les trois livres de la vie, Paris, Guy Le Fevre
de la Broderie ; Paris, Fayard, Corpus des Œuvres de philosophie en langue française, 2000. 40
FICINO, Marsilio. Scritti sull’astrologia, O. P. FARACOVI (éd.), Milan, Rizzoli 2012, p. 229-231. 41
GARIN, Eugene. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI. Lisboa:
Editorial Estampa, 1987, p. 87.
1114
deixara são mais proscrições, ou mesmo, pequenas objeções. O que estava em jogo, era seu
combate aos "sucessos materialistas e ateus da astrologia"42
; Ficino estava mais preocupado
em os astros "entre os diversos níveis da realidade, as estrelas, decidindo o destino na
qualidade de corpos celestes, assumem uma hegemonia assegurando uma prioridade ao nível
corpóreo, material."43
Os ataques aos astrólogos também são encontrados na Theologia platonica, onde ele
defende, de um lado, a ideia de intermediação dos astros e, por outro lado, a distinção destes e
a primazia de uns sobre outros. Porém, há uma passagem que não podemos deixar que nos
escape, pois será nela que encontraremos um outro lócus importantíssimo para pensarmos das
concepções astrológicas permeados pela similuto mundis, ou seja, pelas analogias construídas
no mundo. Para construir essa ideia, evidentemente, Ficino dá lugar ao seu Platão para
configurar a ordenação dos corpos celeste no firmamento.
Por quantas estrelas há, outras tantas multidões existem de heróis, de demónios e de almas,
àquelas submetidas. Sob Saturno os saturninos; sob Júpiter os jupiterianos; sob Marte os
marcianos, e assim por diante, analogamente [...]. Ele – Platão - crê que tudo está em tudo,
mas na terra de maneira terrestre [modo terreno], na água de modo aquático, e de forma
semelhante no ar e no fogo. Assim como no céu segundo a natureza celeste, na Lua segundo
a natureza lunar, e nas outras esferas analogamente, de maneira que qualquer esfera seja todo
o mundo, a seu modo e segundo a própria qualidade.44
Evidentemente, Ficino descreve, até certo ponto, a condição análoga do homem no
seio do cosmos, o indivíduo no seio do ser que é ligado a tudo no universo. A essa ideia do
homem microcosmo ele retornará, propriamente, no décimo terceiro livro de sua Theologia,
onde ele afirmará a independência da alma perante ao corpo e sus ligação direta com a alma
das estrelas e com todas as almas astrais. Nessa obra, Ficino se mantém fiel aos preceitos
herméticos, como também com as ideias da animação universal, ou seja, a harmonia do
mundo que se desenvolve e, somente é possível pelas similitudes que estão no mundo
(convenientia, aemulatio, analogia e simpatia).
O céu, para Ficino, não fornece mais do que signos, que se refratam no nosso céu
interior – correspondências macrocosmo-microcosmo – os astros indicam e não são a causa.
Aqui sob esta tese podemos observar claramente uma ideia que Ficino fora buscar em Plotino,
especificadamente, nas Eneadas II e III. Essas ideias alimentaram profundamente Ficino
quando escrevia sua Disputatio contra iudicium astrologorum, e que, na verdade, iria compor
uma obra que trataria de Plotino. Fica claro, quando nos aproximamos de um trecho escrito
42
idem. 43
idem. 44
ibid., p. 89.
1115
por Plotino, o impacto dessa obra na teoria astrológica ficiniana: "os astros que são uma parte
importante do céu, colaboram no universo; esses seres magníficos servem também de signos,
ou seja, eles pressagiam tudo que chega no mundo sensível".45
E isso se evidenciará mais nitidamente numa carta que Ficino escrevera a Lorenzo di
Pierfrancesco de Médici, se baseando nas técnicas dos horóscopos, onde ele trata das
qualidades inerentes do rapaz. Nesta carta, Ficino funda num bom exemplo e de uma rara
eficácia sobre as boas maneiras de compreender e de praticar a astrologia. O conteúdo trata
basicamente de temas que envolvem a genetlíaca, ou seja, a análise do tema astral do
nascimento. Em linhas gerais, ele se baseia nas disposições humanas como inerentes aos
planetas, através de suas qualidades, sendo positivas ou negativas. Assim Ficino começa a
carta interrogando-se sobre as qualidades dos planetas para o indivíduo: a Lua que remete ao
movimento contínuo dos corpos e das almas; Marte indicando a prontidão; Saturno, ao
contrário, remetendo a lentidão; o sol como Deus; Júpiter, a lei; Mercúrio, a razão; e por fim,
Vênus, a humanidade (humanitas)46
.
Assim após se deter longamente sobre a questão dos atributos da humanidade em
Vênus, Ficino estabelece uma ligação astrológica entre os hábitos humanos e os planetas, de
forma a criar um arcabouço necessário para decifrar os aspectos positivos da Lua com os
planetas benéficos (Vênus e Júpiter) e a conjunção dos aspectos lunares com os planetas
benéficos (Marte e Saturno). Não há espaço para o fatalismo cósmico de origem estoica na
literatura ficiniana, e principalmente, nessa carta endereçada a um jovem de 14-15 anos.
Ficino sempre alia os acontecimentos pré-fixados pelos planetas com as predisposições da
vontade própria, do livre arbítrio e a responsabilidade moral e religiosa do indivíduo.
Assim como os astrólogos considerem afortunados aqueles cujo destino tenha
favoravelmente disposto os corpos celestes no nascimento, assim também os teólogos se
julgam felizes por tê-los também dispostos por si mesmos. [...]. Vamos então, jovem rapaz,
arma-te e modere o céu com minha ajuda. Que sua Lua, quer dizer, o movimento continuo
dos corpos e da alma, esquiva com a excessiva rapidez de Marte como da lentidão de
Saturno; ou ainda, considere, cada questão particular no momento oportuno e cômodo; não
te apresses ou muito mesmo se tarde mais que o necessário. Que essa Lua que é em ti o olhar
junto a continuação do Sol, Deus mesmo, da qual ela recebe sempre os raios benéficos; e
venere, acima de tudo, o que tu recebeste para qual tu és digno de honra. Olhe também para
Júpiter, quer dizer as leis divinas e humanas, que não devem ser jamais transgredidas:
propague as leis, sobre as quais tudo repousa, não era de fato o que se perdeu. Dirija seu
olhar através de Mercúrio, quer dizer o discernimento, a razão e a ciência, e não empreenda
45
Tradução do autor. Trecho original francês: "Les astres qui sont des parties importantes du ciel, collaborent à
l’univers ; ces êtres magnifiques servent aussi de signes ; ils présagent tout ce qui arrive dans le monde sensible".
PLOTINO, Deuxième ennéade, trad. Emile Bréhier, intro. J. LAURENT, Paris, Les Belles Lettres 1998, p. 60-
61. 46
FICINO, Marsilio. Scritti sull’astrologia, O. P. FARACOVI (éd.), Milan, Rizzoli 2012, p. 230.
1116
nada sem ter consultado, previamente, as pessoas prudentes; não digas ou faças nada cuja
não possa fornecer as razões plausíveis. Tenha por cego e mudo um homem que é privado
das ciências e das letras. Fixe, enfim, seus olhares sobre Vênus mesmo, quer dizer sobre a
humanidade.47
Portanto, para Ficino, a admissão da astrologia não interfere, de forma alguma, na
questão da liberdade dos indivíduos – que devem, aliados aos preceitos astrais, se instruir nas
prerrogativas morais e cristãs - pois nas relações estabelecidas com o firmamento não se
detecta quaisquer tipos de imposições dos astros e estrelas, mas apenas "uma correspondência
expressiva de um ritmo unitário mais profundo"48
.
Todavia, será no terceiro livro do De vita, o De vita coelitus comparanda [Da vida
obtida pelo céu onde Ficino assume uma posição, claramente, de viés mágico-astrológica.
Aqui, Ficino acentua todo o seu conhecimento sobre o hermetismo como também resgata a
teoria da harmonia do mundo que esboçara na sua Theologia platonica. No De vita, o cosmos
aparece como um grande organismo, e, através do impacto dos planetas e astros, como se
estabelece as correspondências e harmonias entre as esferas mais elevadas e o indivíduo.
Ficino somente reconhece o poder de signo das conjunções planetárias e das constelações o
que tem a ver com a sua não crença no determinismo astral. Ou seja, ao mesmo tempo em que
condena, por exemplo, a astrologia judiciária (astrologia divinatória) ele constrói um esquema
cosmológico, para basear sua prática medicinal e também pratica a confecção de horóscopos.
E fica claro que, Ficino se utiliza dos preceitos da melothesia para compor sua astrologia de
ordem medicinal, além disso, é importante frisar como o impacto dos influxos astrais são
determinantes em sua obra. Quando, por exemplo, se tem que operar ou mesmo recitar algum
remédio ou elixir e mesmo, saber quais partes do corpo os planetas e, principalmente, os
signos zodiacais governam se torna função vital para compreender o próprio homem e sua
47
Tradução do autor. FICINO, Marsilio. Scritti sull’astrologia, O. P. FARACOVI (éd.), Milan, Rizzoli 2012, p.
230-231. Trecho original: “Autant les astrologues estiment fortuné celui dont le destin a favorablement disposé
les corps célestes à la naissance, autant les théologiens jugent heureux qui les a disposés pour soi aussi bien. [...]
Allons donc, généreux jeune homme, arme-toi et modère ainsi le ciel avec mon aide. Que ta Lune, c’est-à-dire le
mouvement continu du corps et de l’ame, esquive tant l’excessive rapidité de Mars que la lenteur de Saturne; ou
encore, considère chaque question particulière au moment opportun et commode ; ne te hate point ni ne tarde
plus qu’il ne faut. Que cette Lune qui est en toi regarde ensuite conti- nuellement le Soleil, Dieu même, duquel
elle reçoit toujours des rayons bénéfiques ; et en tout vénère par-dessus tout celui dont tu as reçu ce par quoi tu
es digne d’honneur. Regarde aussi Jupiter, c’est-à-dire les lois divines et humaines, qui ne doivent jamais être
transgressées: s’écarter des lois, sur lesquelles tout repose, ne serait en fait que se perdre. Tourne ton regard vers
Mercure, c’est-à-dire le discernement, la raison et la science, et n’entreprend rien sans avoir consulté au
préalable des personnes prudentes; ne dis ni ne fais rien dont tu ne puisses fournir des raisons plausibles. Tiens
pour aveugle et muet un homme privé de sciences et de lettres. Fixe enfin tes regards sur Vénus même, c’est-à-
dire sur l’humanité." 48
GARIN, Eugene. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI. Lisboa:
Editorial Estampa, 1987, p. 93.
1117
inserção no mundo astral. Assim, num trecho do De vita coelitus comparanda, Ficino é bem
enfático em relatar a melothesia com a utilização dos planetas nos tratamentos medicinais.
A isto, é preciso lembrar que Áries comanda [praeesse] a cabeça; Touro, o pescoço;
Gêmeos, os braços e espáduas; Câncer, o peito, os pulmões, o estômago e os bíceps; Leão, o
coração, o estômago, o fígado, o dorso e as costas; Virgem, os intestinos e o final do
estômago; Libra, os rins, as coxas e as nádegas; Escorpião, as genitálias, a vulva e o útero;
Sagitário, a coxa e a virilha; Capricórnio, os joelhos; Aquário, as pernas e as canelas; Peixes,
os pés49
.
Para Ficino o ordenamento do firmamento, com suas esferas e astros, é a projeção
visível da realidade que se modifica em nós. Andre Chastel bem coloca que "Marte, Júpiter,
Saturno, Mercúrio, Vênus, representam certas forças físicas que são a prontidão, a legalidade,
a lentidão, a razão, a habilidade, a humanidade"50
. Non tam probo quam narro51
, ou seja,
Ficino quer demonstrar no De vita, e em especial no De vita coelitus comparanda que a
astrologia é uma espécie de tradução em linguagem da vida dos astros. Assim, ele utilizará
"todas as imagens astrais, as visíveis como as constelações, as invisíveis e apenas
imagináveis, (...) as potências celestes são capturadas pelo simulacro que as imita, e exercem
a sua eficácia através do espírito"52
.
É partindo dessa ideia de harmonia do cosmo que Ficino justificará sua crença e
prática da magia e da astrologia. E com isso, Ficino poderá, por exemplo estabelecer as
relações análogas entre o céu e a unidade, ou seja, será pela regulação analógica do cosmos -
instância macrocósmica – que tudo pode se reduzir e ter uma correspondência no nível
terrestre - instância microcósmica. O homem seria, para Ficino, o lugar privilegiado onde
acontecem as correspondências astrológicos-mágicos. O homem-microcosmo teria assim, que
se moldar pelas imagens, ao macrocosmo, quer dizer, na construção das correspondências no
mundo, são pelas palavras e ainda mais pelas imagens que as analogias podem ser
concebidas; então homem e cosmos pactuariam da mesma essência, e o motivo desse pacto
são as concepções pelas imagens que o homem concebe o firmamento. Não é à toa que Ficino
monta uma espécie de grande mapa cosmológico através de imagens de notável perfeição e
precisão estética e técnica.
49
VIEGAS, Rafael; OLIVIERI, Gustavo; FERRONI, Angélica. Dossiê Melothesia I, Marsilio Ficino, De Vita
Triplici III, 9-10. In: Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, vol. III, Nº 1, 2015, RidEM, pp. 87-94. 50
CHASTEL, Andre. Marsile Ficin et l'art. Genebra: Libraire Droz S. A. 1996, p. 172. 51
Do latim: Não apenas provo como narro. (Tradução do autor) 52
GARIN, Eugene. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI. Lisboa:
Editorial Estampa, 1987, p. 94.
1118
"Vemos que as coisas compostas alcançam a vida quando a perfeita mistura parece ter
quebrado todos os contrastes precedentes"53
. Esse trecho resume bem a concepção ficiniana
da perfeita união de arte e magia; pois somente com o pleno entendimento das concepções
mágicas e suas operações, o homem conseguirá mensurar a harmonia da vida. Devemos
compreender toda a discussão em torno dos pressupostos astrológicos-mágicos em Ficino
como uma aplicação sistemática das teorias astrológicas na decifração de temas que diziam
muito sobre sua personalidade: o interesse pela sobrevivência do hermetismo, o platonismo, o
casamento perfeito entre os pressupostos pagãos e a teologia cristã, a crítica do fatalismo
astral. Para Ficino, somente o único que conseguir decifrar suas verdadeiras inclinações -
função que a astrologia poderá contribuir – vai perceber e evitar, na melhor das hipóteses,
qualquer condicionamento externo54
.
Referências bibliográficas
ABU MA'SCHAR. Introductorium maius, ed. R. Lemay, Napoli, 1995–1996, 9 vols. AGOSTINHO. De Civitate Dei. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. AGRIPPA, Cornelius. De occulta philosophia. (Três volumes). Ed. Lyon. 1555. ARISTOTELES. Etica a Nicomaco. 2.ed. Editora Universidade de Brasilia. 1985 ASHWORTH, E.J. Les théories de l'analogie du XII
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53
Tradução do autor. GARIN, Eugene. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao
século XVI. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 95. Original: "sculpet [...] formam quandam mundi totius
archetypam siplacebit in aere, quam deinde opportune in argenti lamina imprimat aurata [...]". 54
Esse tema Ficino desenvolve no De vita coelitus comparanda, XXIII. FICINO, Marsilio. Les trois livres de la
vie, Paris, Guy Le Fevre de la Broderie ; Paris, Fayard, Corpus des Œuvres de philosophie en langue française
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