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Sandra de Jesus Marques Coelho
Pensar e sentir em Rousseau: a questão da subjectividade universal
Sandra de Jesus Marques Coelho
Tese de Doutoramento em Filosofia
na especialidade de Filosofia Moral e Política
Março de 2018
Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau
de Doutor em Filosofia, realizada sob a orientação científica de Professor Doutor
Diogo Pires Aurélio.
A Rousseau,
ODEN ROUSSEAU
Wie eng begränzt ist unsereTageszeit.
Du warst und sahst und stauntest, schon Abend ists,
Nun schlafe, wo unendlich ferne
Ziehen vorüber der Völker Jahre.
Und mancher siehet über die eigne Zeit
Ihm zeigt ein Gott ins Freie, doch sehnend stehst
Am Ufer du, ein Ärgerniβ den
Deinen, ein Schatten, und liebst sie nimmer,
Und jene, die du nennst, die Verheiβenen,
Wo sind die Neuen, daβ du an Freundeshand
Erwarmst, wo nahn sie, daβ du einmal Einsame Rede, vernehmlich seiest?
Klanglos ists, armer Mann, in der Halle dir,
Und gleich den Unbegrabenen, irrest du
Unstät und suchest Ruh und niemand
Weiβ den beschiedenen Weg zu weisen.
Sei denn zufrieden! Der Baum entwächst
Dem heimatlichen Boden, aber es sinken ihm
Die liebenden, die jugendlichen Arme, und trauernd neigt er sein Haupt.
Des Lebens Überfluβ, das Unendliche,
Das um ihn und dämmert, er faβt es nie.
Doch lebts in ihm und gegenwärtig,
Wärmend und wirkend, die Frucht entquillt ihm.
Du hast gelebt! Auch dir, auch dir
Erfreuet die ferne Sonne dein Haupt,
Und Strahlen aus der schönern Zeit.Es Haben die Boten dein Herz gefunden.
Vernommen hast du sie, verstanden die Sprache der Fremdlinge,
Gedeutet ihre Seele! Dem Sehenden war
Der Wink genug, und Winkel sind
Von Alters her die Sprache der GötteR
Und wunderbar, als hätte von Anbeginn
Des Menschen Geist das Werden und Wirken all,
Des Lebens Weise schon erfahren.
Kennt er im ersten ZeichenVollendetes schon,
Und fliegt, der Kühne Geist, wie Adler den
Gewittern, weissagend seinen
Kommenden Göttern voraus,
HÖLDERLIN
(Sämtliche, werke, 2, 1, Zweiter Band, Verleg W. Kohlhammer, Stutgart, 1951)
Aos meus pais,
Edmundo Coelho e Laura Coelho
e
Ao meu filho,
Sérgio
Sem o vosso amor, carinho, apoio e motivação constantes em todo este processo,
a concretização deste projecto nunca teria sido possível. Qualquer mérito eventualmente
reconhecido neste trabalho é tanto meu, como de cada um de vós.
Obrigada por existirem e enriquecerem a minha Vida, dando-lhe a todo o
momento redobrado sentido e pleno significado!
AGRADECIMENTOS
Institucionais:
Uma palavra de maior apreço e de profunda gratidão vai para o meu orientador,
Professor Doutor Diogo Pires Aurélio, incansável na sua disponibilidade e incentivo ao
longo de todo o processo desta investigação, e que, com imediata prontidão e apoio
exímio, acompanhou desde logo a elaboração e a defesa pública do Trabalho Final de
Curso em Março de 2013, não mais deixando de acompanhar todo o processo da minha
investigação, desde então.
Uma palavra de agradecimento a cada um dos Professores do ano curricular,
dirigida em especial à Professora Doutora Maria Filomena Molder, pelas suas aulas
inesquecíveis, por me ter dado a conhecer Wittgenstein, autor com que inaugurei este
curso, bem ainda pelo incentivo e motivação iniciais, que me acompanharam ao longo
da investigação.
Uma palavra de agradecimento dirigida às diversas organizações dos
colóquios/seminários em que participei, a aceitação dos meus papers e a oportunidade
de partilhar ideias, no âmbito do pensamento de Rousseau. Agradeço, em especial, o
convite para participar com a minha comunicação “Identidade, alteridade e interacção
social: o contributo de Rousseau”, no Ciclo de Conferências/Curso de formação
Filosofia, Consciência e Crise Social, desenvolvido em parceria com o Centro de
Formação António Sérgio e com o Centro de Estudos de Filosofia da Faculdade de
Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, nos dias 29 e 30 de Janeiro de
2016, no Auditório da UCP de Lisboa.
Também uma palavra de agradecimento dirigida aos investigadores
internacionais cuja disponibilidade foi inesperada e preciosa, dos quais destaco:
- Professor Doutor Tanguy L’Aminot (Université Paris-Sorbonne), com quem
mantive correspondência ao longo destes anos e de quem recebi preciosas indicações
bibliográficas;
- GIP (Grupo Internacional de Pesquisa Jean-Jacques Rousseau), na pessoa da
Professora Doutora Jacira de Freitas (Universidade Federal de São Paulo). Este Grupo
foi facultando informação actualizada do que sobre Rousseau se ia fazendo no País-
irmão.
Finalmente, à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, o meu sincero agradecimento pela oportunidade.
Pessoais:
Aos meus Pais e ao meu Filho, agradeço todo o apoio e paciência,
compreendendo a minha falta de tempo para com eles estar, como me mereceriam! Aos
meus Pais, em particular, agradeço o apoio económico, sem o qual a concretização deste
desafio não teria sido possível. Serão sempre insuficientes as palavras de gratidão que
lhes possa dirigir.
Também uma palavra de índole pessoal, muito além de institucional, de grande
apreço e de profunda gratidão dirigida ao Professor Doutor Diogo Pires Aurélio, pelas
muitas sessões de trabalho, nas quais não faltaram palavras de incentivo e motivação,
nos momentos de menos alento. Foi para mim um imenso privilégio ter tido um
orientador pelo qual sinto uma profunda admiração, tanto ao nível intelectual e
científico, como ao nível pessoal, pela pessoa que é.
À Luísa Cristóvão agradeço a amizade, o apoio e a motivação na recta final da
investigação.
Uma palavra de apreço pessoal e de agradecimento dirigida à Biblioteca
Municipal de Montemor-o-Novo (Almeida Faria), local onde iniciei e dei por findada a
redacção.
Finalmente, uma palavra de agradecimento aos meus alunos. Ao longo destes
anos de investigação, encontrei-me sempre a leccionar, tendo abdicado do estatuto de
trabalhador-estudante para não prejudicar de modo o trabalho nas Escolas, por onde fui
desempenhando a minha função docente. Agradeço a todos os meus alunos que, em
contexto de sala de aula, fizeram com que não me arrependesse da minha opção de os
ter sempre considerado prioritários. A minha gratidão vai para cada um deles,
individualmente, com quem trabalhei nestes últimos anos, mas alarga-se a cada um do
universo de milhares de alunos que por mim passaram em mais de duas décadas de
prática docente (cerca de 180 por ano lectivo) e que, ano após ano, reforçam o meu
amor e dedicação ao ensino, não obstante as conhecidas dificuldades e o difícil contexto
em que actualmente se encontram a educação e o ensino. A todos eles tentei e tento dia-
a-dia transmitir que aprender e procurar continuamente melhor pensar e bem viver
consigo mesmo e com os outros é o grande apanágio da Filosofia. Que este meu
trabalho confirme na prática as palavras e atitudes diárias por mim a eles dirigidas.
Pensar e sentir em Rousseau: a questão da subjectividade universal
Sandra Marques Coelho
RESUMO
O objectivo crucial da nossa investigação é o de compreender a questão da
subjectividade universal em Rousseau (1712-1778), partindo da inextricável relação entre
o pensar e o sentir, subjacente à sua obra. Para isso, debruçamo-nos sobre os seguintes
textos: os discursos da década de 50 (Discours sur les sciences et les arts; Discours sur
l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes), os textos de inícios da
década de 60 (Essai sur l’origine des langues; Du Contrat Social; Émile, com especial
enfoque na “Profession de foi du vicaire Savoyard”), de finais da década de 60 (Les
Confessions) e, finalmente, a obra inacabada dos finais dos anos 70 (Les Rêveries du
promeneur solitaire).
Visamos mostrar como a relação simbiótica entre o pensar e o sentir não dita
somente o sentido estilístico do autor, constituindo, sobretudo, um elemento essencial e
integrante da subjectividade rousseauniana e dos seus traços distintivos – a sua
universalidade específica, a relação identidade versus alteridade e, finalmente, a trilogia
das teses (ideias/sentimentos) que se apresentam à consciência, a saber: a dialéctica
ser/parecer (estátua de Glauco), a distinção entre estado de natureza (homem natural) e
estado de civilização (homem civil) e a evitabilidade do (ab)uso do mal –. Só o eu,
indagando pela sua identidade, numa introspecção pensada e sentida, consegue ir ao
encontro daquela trilogia. Por exemplo, pensar o estado de natureza é também senti-lo em
nós, no resgate emocional da própria razão. Procuramos dar a ver como este exercício de
subjectividade só se dá, segundo Rousseau, em plena alteridade, na interacção social,
fazendo-se repercutir no modo de ser e estar, quer na vida individual, quer na história
colectiva dos homens.
Neste contexto, intentamos compreender a visão que Rousseau apresenta da
natureza do género humano com vista à aferição da felicidade que lhe convém. Para isso,
é preciso compreender que observação Rousseau dirige aos homens, “esquecendo todos
os tempos e todos os lugares”, privilegiando os princípios e não os factos e recorrendo
mais à imaginação e à conjectura do que à memória.
Finalmente, procuramos dar a ver o carácter prospectivo da questão, recorrendo
a exemplos concretos dos nossos dias, nos quais a estátua de Glauco está seguramente
menos nítida e mais disforme do que no tempo de Rousseau. Neste sentido, procuramos
mostrar como, à distância de trezentos anos, a questão da subjectividade universal
rousseauniana se apresenta, não só como pertinente, mas também como imperiosa para
a compreensão do homem contemporâneo sob, por exemplo, a questão da
hipermodernidade e da realidade virtual. No estádio mais avançado da civilização, e em
plena alteridade, veremos, com Rousseau, a necessidade redobrada de o homem
contemporâneo rever a sua identidade. Recorreremos, neste ponto, ao homem
hipermoderno (Lipovetsky) e internético (Sfez e Lévy), mostrando como estas figuras
retomam, sob novos revestimentos, a questão da subjectividade universal de Rousseau.
PALAVRAS-CHAVE: sentir, pensar, subjectividade, universalidade,
identidade e alteridade.
Thinking and feeling in Rousseau: the question of universal subjectivity
Sandra Marques Coelho
ABSTRACT
The key objective of our research is to understand the issue of universal
subjectivity in Rousseau (1712-1778), based on the inextricable relationship between
thinking and feeling, that underlies his work. For this, the following texts were studied:
the speeches of the 50’s (Discours sur les sciences et les arts; Discours sur l'origine et
les fondements de l'inégalité parmi les hommes), several texts from the beginning of the
60’s (Essai sur l'origine des langues, Du Contrat Social, Émile, with special focus on
“Profession de foi du vicaire Savoyard”), from the late 60's (Les Confessions), and
finally, the unfinished work of the late 70s (Les Rêveries du promeneur solitaire).
We aim to show how the symbiotic relationship between thinking and feeling
besides dictating a stylistic sense of the author, constitutes, above all, an essential
element of Rousseau's subjectivity and its distinctive features – its specific universality,
the relationship identity versus otherness and finally, the trilogy of theses (ideas/
feelings) that are presented to consciousness, namely: the dialectic being/seeming
(statue of Glauco), the distinction between the state of nature (natural man) and state of
civilization (civil man) and preventability of the (ab)use of evil –. Only the self, asking
for their own identity, in a thought out and felt introspection can meet that trilogy. For
example, thinking of the state of nature is also to felt it in us, at an emotional rescue of
reason itself. We try to show how this exercise of subjectivity only occurs, according to
Rousseau, in full otherness, in the social interaction, making an impact on the way of
being and living either in individual life or in the collective history of mankind.
In this context, an attempt was made to understand the vision that Rousseau
assumes for the nature of the human race in order to measure the happiness that suits it.
For this, one must understand the statement of Rousseau, "forgetting all times and all
places", focusing on principles and not on the facts, using more imagination and
conjecture than memory.
Finally, we try to give a prospective view of the above mentioned issue, using
factual examples of our days, in which the Glauco’s statue is certainly less clear and
more misshapen than in Rousseau's time. In this sense, we aim to show how, at a
distance of three hundred years, Rousseau's question of the universal subjectivity
appears not only relevant, but also imperative for understanding the contemporary man
concerning, for example, the issue of hypermodernity and virtual reality. In the most
advanced stage of civilization, and in full otherness, we shall see, with Rousseau, the
increasing need for contemporary man to revise their identity. At this point we will
mention the hypermodern man (Lipovetsky) and the digital man (Sfez and Lévy),
showing how these figures resume, under new clothing, Rousseau’s issue of universal
subjectivity.
KEYWORDS: feeling, thinking, subjectivity, universality, identity and otherness.
ÍNDICE
Introdução ----------------------------------------------------------------------------------------- 1
Capítulo I – O horizonte da definição da subjectividade universal rousseauniana ----------
I. 1. Pensar e sentir no contexto geral da obra de Rousseau --------------------------------- 26
I. 2. Uma subjectividade filosófico-literária -------------------------------------------------- 44
I. 3. Uma questão para além dos tempos e dos lugares --------------------------------------- 61
Capítulo II – Os traços distintivos da questão da subjectividade rousseauniana-------------
II. 1. A universalidade da subjectividade ------------------------------------------------------ 73
II. 2. Identidade versus alteridade ------------------------------------------------------------- 95
II. 3. A trilogia da subjectividade universal que se apresenta à consciência ------------- 113
Capítulo III – Os elementos da trilogia da subjectividade universal ---------------------------
III. 1. A dialéctica ser/parecer --------------------------------------------------------------- 123
III. 2. A distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização
(homem civil) ---------------------------------------------------------------------------------- 137
III. 3. A evitabilidade do (ab)uso do mal --------------------------------------------------- 150
Capítulo IV – A observação da natureza humana, com vista à felicidade que lhe
convém-----------------------------------------------------------------------------------------------
IV. 1. A observação: requisitos e alertas --------------------------------------------------- 164
IV. 2. O papel e a função da memória e da imaginação no processo de
observação -------------------------------------------------------------------------------------- 179
IV. 3. A conquista adiada da felicidade, na vida e na história dos homens -------------- 192
Capítulo V – A reflexão que se dirige aos homens “esquecendo todos os tempos e
lugares” ----------------------------------------------------------------------------------------------
V. 1. O sentido prospectivo da reflexão de Rousseau ------------------------------------- 208
V. 2. A subjectividade universal rousseauniana e o homem contemporâneo -----------------
V. 2. 1. O exemplo do homem hipermoderno ----------------------------------------------- 225
V. 2. 2. O exemplo do homem internético ---------------------------------------------------- 242
Conclusão - ------------------------------------------------------------------------------------- 260
Bibliografia ------------------------------------------------------------------------------------- 279
Índice de nomes ------------------------------------------------------------------------------- 304
Índice de assuntos ----------------------------------------------------------------------------- 313
Anexos ------------------------------------------------------------------------------------------------
Entrevista a Tanguy L’Aminot ------------------------------------------------------------------- i
ABREVIATURAS
As principais obras de Rousseau são identificadas pelas seguintes iniciais:
-C (Les Confessions – redigido entre 1765-1767, publicado postumamente em
1782);
-CS (Du Contrat Social – 1762);
-D1 (Discours sur les sciences et les arts – resposta à questão da Académie de
Dijon: «Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mœurs»-
1750);
-D2 (Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes-
resposta à questão da Académie de Dijon: «Quelle est l’origine de l’inégalité parmi les
hommes, et si elle est autorisée par la loi naturelle» – 1755);
-É (Émile ou de l’éducation – 1762); (Émile) Manuscrit Favre, 1ª versão –
1759);
-EL (Essai sur l’origine des langues – redigido em 17611*?, publicado
postumamente em 1781);
-PF (Profession de foi du vicaire Savoyard – livre IV do Émile);
-R (Les Rêveries du promeneur solitaire – texto inacabado, redigido entre 1776-
1778, publicado postumamente em 1782).
*Ao contrário dos outros textos de Rousseau, a data do Essai é controversa. Os investigadores referem
diferentes datas, entre 1754 e 1761. Certo é que, em Setembro de 1761, tal como atesta a maioria das
biografias, já estaria, a pedido de Rousseau, sob a apreciação de M. de Malesherbes.
REFERÊNCIAS
As referências bibliográficas obedecem às seguintes opções:
a) No que respeita aos textos de Rousseau, adoptámos a edição das obras
completas da Pléiade. Actualizámos a ortografia original da edição adoptada
dos textos de Rousseau, pelo que, a título de exemplo, substituimos «tems»
por «temps», e o mesmo em relação aos tempos verbais – e.g.: em vez de
«seroit», adoptamos «serait». Passamos as palavras de Rousseau escritas
originalmente em maiúscula para minúscula, exceptuando os excertos em
que nos parece importante destacar alguns conceitos, de acordo com o
contexto da citação. Em todas as citações de entrada a cada sub-capítulo,
apresenta-se o original dos excertos citados, obviando-se a sua tradução
imediata, mas que será usada no contexto do respectivo sub-capítulo.
b) As citações que apresentamos no corpo do texto encontram-se em português,
apresentando-se o original nas respectivas notas de rodapé, quando as
mesmas se encontrem em destaque, no caso das de Rousseau, e quando se
considera oportuno, no caso das de comentadores. As traduções são da nossa
responsabilidade, embora nos textos de Rousseau se recorra pontualmente a
algumas traduções portuguesas, identificadas na respectiva secção
bibliográfica. Quando nos servimos de traduções (francês, inglês ou
espanhol) de textos originais (por exemplo, do alemão ou do latim),
apresentamo-las em português, no corpo do texto, e transcrevemo-las, na sua
maioria, na respectiva nota de rodapé, obviando naturalmente a repetição do
excerto utilizado no corpo do texto, quando a tradução utilizada se encontra
já em português.
c) Para evitar uma maior sobrecarga de notas de rodapé, ocasionalmente e
quando nos parecer dispensável, não apresentamos o original do excerto
citado de Rousseau, apresentando somente a sigla da obra correspondente e a
paginação respectiva, no próprio corpo do texto. Em nota de rodapé,
aquando da apresentação dos textos originais de Rousseau, identificaremos a
sigla da obra citada, o livro e/ou capítulo respectivos, o volume da edição
Pléiade e a paginação respectiva, sem identificar o autor.
d) Nos artigos de língua inglesa consultados, optámos por não traduzir o
conceito “self”, mantendo o termo no original e em itálico.
1
INTRODUÇÃO
Qualquer estudo que se pretenda empreender sobre a obra de Rousseau não será
com toda a certeza tarefa fácil e ficará inevitavelmente longe de ser concluído. Se a
primeira constatação leva à exaltação de estarmos perante um imenso desafio, a segunda
é causadora da angústia e da sensação constante de inacabamento da tarefa a que o
investigador se propõe. Uma vez empreendida, a investigação torna-se incompleta e
sempre parcial, neste filósofo que uma vida inteira parece não ser suficiente para
conhecer a fundo. Perante uma tão densa e multifacetada obra, é preciso, pois,
responder a algumas questões prévias, sem uma resposta para as quais o leitor tende a
perder-se nos textos rousseaunianos. Assim:
1) Quais são os aspectos da obra de Rousseau a previamente ter em conta?
2) Como ler Rousseau?
3) Qual a temática da nossa investigação e qual o rumo que pretendemos tomar?
No que respeita à primeira interrogação, constatamos desde logo a dimensão e a
complexidade como aspectos a evidenciar na obra de Rousseau. Aspectos que exigem
uma reflexão, pois acarretam dificuldades acrescidas para quem pretenda estudar esta
obra e diante das quais se torna indispensável tomar posição. A sua dimensão deve-se
não tanto ao seu vastíssimo espólio (terá escrito seguramente mais de dez mil páginas),
mas essencialmente à sua multifacetada reflexão, a qual parte das artes e das ciências no
Discours de 1750, considerado o seu primeiro texto filosófico, passando pela educação,
pela moral, pela religião, pela política, pelo direito, pela música, pelo teatro, pela poesia,
pelo romance, até à exposição do seu eu nos tardios textos considerados
autobiográficos. Por seu lado, a complexidade da obra de Rousseau advém não apenas
da sua dimensão, mas também do modo de apresentação das ideias, através de uma
linguagem emocional, poética, que se expressa pela razão e pelo coração, plena de
metáforas, interjeições, repetições e contradições, que tendem a confundir o leitor.
A estes aspectos da obra de Rousseau acresce o facto de a mesma ter sido alvo
de inúmeras interpretações e de ter dado azo a muitos milhares de estudos e artigos,
resultantes de olhares distintos e, muitas vezes, incompatíveis entre si. Com efeito, a
dimensão e a complexidade da obra de Rousseau levaram a múltiplas e divergentes
2
interpretações1 e à necessidade da delimitação do seu estudo, assumida por estudiosos de
reconhecido mérito: se Derathé2 e Goldschmidt
3 privilegiaram a sua filosofia política,
Cassirer, conhecido neo-kantiano, dedicar-se-á sobretudo à questão antropológica e à
dimensão ético-moral rousseaunianas, enquanto Dédéyan4 explorará essencialmente a sua
sensibilidade literária. Starobinski será, porventura, o estudioso mais completo de
Rousseau, mas, por isso mesmo, também o mais complexo, que aposta na procura de
diferentes interpretações de uma mesma ideia ou imagem e, portanto, complexificadora
em si mesma, sucumbindo, muitas vezes, como afirma Michel Launay, a uma leitura
“psicologizante e psicanalítica”5. Todos eles se referem à presença incontestável do
sentimento na linguagem e pensamento rousseaunianos e também à questão da
subjectividade universal, ainda que não sob esta terminologia. Nenhum investigador fica
1 Estas divergências são tão notórias que chegamos mesmo a confrontar-nos com diferentes filósofos no
mesmo Rousseau. Apontemos alguns exemplos, tomando somente o pensamento político do autor. A
maioria dos intérpretes (exs. R. Derathé, H. Arendt, J. Habermas) vê claramente em Rousseau o grande
precursor da democracia. Em Portugal, destacamos a dissertação de doutoramento (publicada) de Manuel
João Matos, na qual são explorados os princípios filosófico-políticos cruciais no pensamento de Rousseau
que, segundo o autor, justificam e fundamentam a presença de uma lógica da democracia. Cf. MATOS,
Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, Lisboa, Edições Colibri, 2008. Contudo, tal como nos
alerta João Lopes Alves na introdução à tradução portuguesa do Manuscrit Favre (primeira versão) de Du
Contrat Social, alguns autores vêem em Rousseau um defensor de “autoritarismo político” ou, pelo
contrário, de “anarquismo”. Cf. ALVES, João Lopes, “Introdução”, in Jean-Jacques Rousseau, Contrato Social (1.ª Versão, Manuscrit Favre), trad. Manuel João Pires, Lisboa, Círculo de Leitores, 2009, p. 129.
Desta ala, destacamos a interpretação de Berlin, que defende acerrimamente um Rousseau anti-
democracia e anti-liberdade. Cf. BERLIN, Isaiah, Rousseau e Outros Cinco Inimigos da Liberdade, org. e
notas Henry Hardy, trad. Tiago Araújo, Lisboa, Gradiva, 2005. Outros autores, tais como Della Volpe,
reclamam uma ascendência rousseauniana para o marxismo, numa conhecida linha: Rousseau-Kant-
Hegel-Engels/Marx. Cf. DELLA VOLPE, Galvano, “O problema da liberdade igualitária”, in Rousseau e
Marx – a Liberdade Igualitária, trad. António José Pinto Ribeiro, Lisboa, Edições 70, 1982, pp. 39-54. O
universo de artigos e estudos acerca da filosofia política de Rousseau é ilimitado e muito conturbado. 2 Cf. DERATHÉ, Robert, Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son temps (1950), 2ª ed.,
Paris, PUF, 1979. Nesta obra complementar à sua dissertação de doutoramento (sobre o racionalismo de
Rousseau), Derathé aprofunda a temática política na obra rousseauniana, mostrando como, para o filósofo genebrino, o homem só acede à liberdade no seio do Estado, sob a obediência das leis. O autor reforça,
assim, o acordo entre a liberdade e a obediência no pensamento político de Rousseau, por meio da
soberania popular inalienável e através do conceito de vontade geral. Derathé destaca ainda a relação
entre a reflexão política de Rousseau e outras considerações políticas, salientando as de Pufendorf,
Hobbes e Barbeyrac. 3 As cerca de 800 páginas da obra de Goldschmidt são dedicadas ao Discours de 1755, sobretudo à sua
segunda parte, na qual descreve o estado de civilização. Cf. GOLDSCHMIDT, Victor, Anthropologie et
politique – les principes du système de Rousseau (1974), 2ª ed, Paris, Vrin, 1983. 4 Cf. DÉDÉYAN, Charles, Jean-Jacques Rousseau et la sensibilité littéraire à la fin du XVIII siècle,
Paris, Société d’Édition d’Enseignement Supérieur, 1966. O autor salienta o impacto da sensibilidade
literária de Rousseau no contexto da literatura ocidental.
5 “C’est là où le remède dans le mal de Jean Starobinski, psychologisant ou psychanalysant la lecture du texte de Rousseau, nous semble admirable et catastrice.” - LAUNAY, Michel, “Rousseau écrivain”, in
Rousseau after 200 years (1978), Proceedings of the Cambridge Bicentennial Colloquim, ed. R. A. Leigh,
Cambridge, Cambridge University Press, 1982, p. 209. A este propósito, veja-se o ensaio de Starobinski
com o título “La maladie de Rousseau”, dedicado exclusivamente à evolução da doença psicológica que,
segundo este autor, terá assolado Rousseau. Cf. STAROBINSKI, Jean, Jean-Jacques Rousseau – La
transparence et l’obstacle, Paris, Ed. Gallimard, 1971, pp. 430-444.
3
indiferente à incontestável presença do sentimento e do eu nos textos de Rousseau, nem
ao apelo à procura na singularidade mesma de uma razão que sente as ideias que, por sua
vez, importa aferir para a educação, moral e política e que, portanto, estão presentes na
tríade constituída pelos Discours, Émile e Du Contrat Social. Mas a maior parte vê a
questão da subjectividade intrinsecamente ligada às Confessions e às Rêveries, textos
privilegiados como canalizadores do estilo literário de Rousseau, alvo de diversas
dissertações na área da Teoria da Literatura e apontado como um dos mais importantes
factores que justificam a sua ligação ao romantismo. Há efectivamente uma tendência
generalizada dos investigadores na área da Literatura para fazer aliar a subjectividade (sob
o ponto de vista literário) aos textos das Confessions, Rêveries e, frequentemente, à
Profession de Foi, numa clara linha de divisão da obra de Rousseau entre textos
filosóficos e textos autobiográficos (literários). Os textos autobiográficos são também, e
não raras vezes, remetidos para um subjectivismo de índole sentimental e rejeitados como
textos filosóficos. Entre outros, José Óscar Marques contraria esta tendência e mostra
como os relatos autobiográficos de Rousseau alcançam “o nível universal característico
da filosofia”6, perspectiva que partilhamos e da qual pretendemos dar conta, mostrando
como estes textos retomam as ideias filosóficas cruciais dos textos anteriores.
Um outro aspecto importante da obra de Rousseau é a polémica acerca da sua
unidade7, perante a qual é também preciso tomar posição, pois daqui decorrem
consequências importantes para a nossa investigação. A sua obra é interpretada sob
olhares distintos; se há hoje quem defenda a sua unidade, também houve quem, como
6 MARQUES, José Óscar de Almeida, “Rousseau e a possibilidade de uma autobiografia filosófica”, in
AAVV, Reflexos de Rousseau (org. José Óscar de A. MARQUES), São Paulo, Humanitas, 2007, p. 153. Disponível em: http://www.unicamp.br/~jmarques/pesq/Autobiografia_filosofica.pdf (consultado em
7/6/2015). 7 As múltiplas sistematizações que incidem sobre o pensamento de Rousseau implicam a aceitação da
unidade da sua obra ou de, pelo menos, alguns dos seus textos. Cassirer é um bom exemplo da defesa da
unidade e coerência da vasta obra de Rousseau. Manifesta-o firmemente na conferência que dá em 22 de
Fevereiro de 1932 sobre “L’unité dans l’œuvre de Jean-Jacques Rousseau” e reitera essa defesa nas suas
obras – cf., e.g., a referência às ideias-chave que pautam a filosofia de Rousseau, nas suas diferentes
dimensões: “Rousseau’s religious philosophy is internally consistent with his philosophy of law and the
state and is determined by their main ideas […].” - CASSIRER, Ernst, Rousseau-Kant-Goethe (1945),
trad. James Gutmann, Paul Oskar Kristeller and John Herman Randall Jr., Princeton, Princeton University
Press, 1970, p. 54. Por sua vez, Goldschmidt defende que os princípios do sistema de Rousseau se
encontram já no Discours de 55, texto que, pelas ligações que estabelece com os textos ulteriores, justificará por si só a unidade da sua obra. Cf. GOLDSCHMIDT, Victor, “Les principes du système: le
discours sur l’inégalité”, in Anthropologie et politique – les principes du système de Rousseau, op. cit.,
pp. 105-228). Arthur M. Melzer é aqui também um autor de destaque, porquanto justifica a possibilidade
de sistematização do pensamento de Rousseau através do princípio da bondade natural do homem,
subjacente a toda a sua obra. Cf. MELZER, A., La bonté naturelle de l’homme – essai sur le système de
pensée de Rousseau, trad. Jean Mouchard, Paris, Éditions Belin, 1998.
4
Kant, a dividiu: “Nas suas obras sobre a Influence des Sciences e sobre a Inégalité des
hommes, ele [Rousseau] mostra muito justamente a contradição inevitável entre a
civilização e a natureza do género humano enquanto espécie física, onde cada indivíduo
deve realizar plenamente o seu destino; mas no Émile, no seu Contrat Social, e noutros
escritos, procura resolver um problema ainda mais difícil: o de saber como deve a
civilização progredir para desenvolver as disposições da humanidade, enquanto espécie
moral, no sentido da sua destinação, de tal forma que um não se opõe ao outro,
concebido como espécie natural”8 – eis a constatação da divisão entre um Rousseau de
diagnóstico nos Discours e um Rousseau de contributo nas obras Émile e Du Contrat
Social. Por nosso lado, encontramos demasiados pontos de contacto entre os textos da
década de 50 e os da década de 60, continuidades que justificam, em simultâneo, quer o
diagnóstico, quer o contributo naqueles primeiros textos. Com efeito, o contributo que
já se encontra, ainda que sob mero esboço, nas observações, primeira e exaustivamente
empreendidas nas respostas à Académie de Dijon, surge de modo mais desenvolvido em
Émile e em Du Contrat Social. As ligações entre os textos de Rousseau surgem quando
menos se espera, e se, a título de exemplo, o Essai surge, à primeira vista, como um
texto isolado acerca da origem e das limitações da linguagem convencional, percebe-se,
ao longo da sua leitura, a sua ligação incontestável aos Discours, e a ponte com o Du
Contrat Social é bem visível no seu último capítulo.9 Por sua vez, os textos da década
de 70 retomam as teses basilares já presentes nos Discours de 50 e desenvolvidas nos
textos da década de 60. Além disso, é o próprio Rousseau quem reivindica em vários e
repetidos momentos a unidade da sua obra, sobretudo na sua correspondência.
A obra de Rousseau tem sido também alvo de divisões internas sob diferentes
critérios. Por exemplo, retomando a distinção de Paul de Man entre textos que mostram
e textos que dizem, Custódia Martins distingue dois grandes grupos de textos,
8 É clara a separação kantiana entre o momento inicial de diagnóstico (nos Discours) do do contributo
posterior (nas obras Émile e Du Contrat Social): “Dans ses ouvrages sur l'Influence des Sciences et sur
l'Inégalité des hommes, il [Rousseau] montre très justement la contradiction inévitable entre la civilisation et
la nature du genre humain en tant qu'espèce physique, où chaque individu doit réaliser pleinement sa
destination; mais dans son Émile, dans son Contrat Social, et d'autres écrits, il cherche à resoudre un
problème encore plus difficile: celui de savoir comment la civilisation doit progresser pour développer les
dispositions de l'humanité en tant qu'espèce morale, conformément à leur destination, de façon que l'une ne
s'oppose plus à l'autre conçue comme espèce naturelle.” (KANT, Immanuel, Mutmaßlicher Anfang der Menschengeschichte, 1786, Trad. Fr. “Conjectures sur les débuts de l’histoire humaine”, in La
philosophie de l’histoire - anthologie, édition établie et traduite par Stéphane Piobetta, avertissement de
Jean Nabert, Paris, Aubier Montaigne, 1947, pp. 162-163). 9 “Je dis que toute langue avec laquelle on ne peut pas se faire entendre au peuple assemblé est une langue
servile; il est impossible qu’un peuple demeure libre et qu’il parle cette langue-là.” (EL, XX, OC V, p.
429).
5
defendendo que os escritos de Rousseau são reflexo dessa polaridade”10
, identificando
as Lettres à Malesherbes como estando situadas “no dizer(telling)”, [sendo textos] que
apontam para justificações: justificações do narrador, justificações para o leitor”11
.
Perante estes aspectos da obra de Rousseau, tornou-se necessário delimitar o
campo da nossa investigação, bem como os textos principais sobre os quais nos
debruçamos, numa assumida e clara perspectiva de unidade da sua obra, a saber, por
ordem cronológica: o Discours sur les sciences et les arts, resposta à questão da
Académie de Dijon – «Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer
les mœurs» –, o Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes,
resposta à questão da Académie de Dijon – «Quelle est l’origine de l’inégalité parmi les
hommes, et si elle est autorisée par la loi naturelle» –, o Du Contrat Social ou Principes
du Droit Politique, Émile ou de l’éducation (com especial enfoque no texto da Profession
de foi du vicaire Savoyard), o Essai sur l’origine des langues12
, Les Confessions e Les
Rêveries du promeneur solitaire. Para dar corpo à nossa indagação, fazemo-nos
acompanhar pelo conjunto dos textos já referidos, recorrendo ainda, com Rousseau, a
alguns dos seus interlocutores de maior relevo.13
Relativamente à segunda interrogação elencada, percebemos de imediato que o
modo como se lê a obra rousseauniana tem consequências para o estudo que sobre ela se
pretende fazer. Intentar compreender a relação que Rousseau estabelece com o leitor e
com as suas próprias obras, a partir dos seus prefácios, pareceu-nos o modo mais
pertinente e legítimo para delinear sentidos de leitura e saber se estes podem e devem ser
considerados comuns a textos aparentemente tão díspares. Assim, para aferirmos o nosso
modo de leitura, optámos por um prévio estudo comparativo dos seus prefácios, nos quais
10 MARTINS, Custódia Alexandra Almeida, “Rousseau e o seu discurso: variações entre o Eu e as
Justificações”, in Educação e Filosofia Uberlândia, v. 26, n. 51, Jan./Junho, 2012, p. 73. Também
disponível em: http://www.seeRufu.br/index.php/EducacaoFilosofia/article/view/17599/9708 (consultado
em 12/06/2012). 11 Ibid., p. 73. Neste artigo, a autora debruça-se sobre a natureza autobiográfica das cartas a Malesherbes,
a partir do que considera ser as quatros ideias/justificações que Rousseau expõe, em cada uma das cartas:
“a explicação da verdadeira natureza do seu gosto pela solidão, explicação dos seus gostos aparentemente
contraditórios, explicação da felicidade sentida nos retiros e, por último, a explicação por que razão os
seus colegas o acusavam de fugir às suas obrigações sociais.” (ibid, resumo, p. 71). 12 A polémica da data da redacção do Essai é conhecida. Vaughan, por exemplo, coloca a possibilidade de
este ter sido escrito antes ainda dos dois Discours, dada a análise sobre a música aí efectuada por Rousseau e originalmente destinada à Encyclopédie. 13 A lista dos interlocutores de Rousseau, com os quais o próprio dialoga ao longo das suas obras, é
imensa: Aristóteles, Buffon, Burlamaqui, Condillac, Descartes, Diderot, Grócio, Hobbes, Hume, Locke,
Malebranche, Montaigne, Montesquieu, Platão, Pope, Pufendorf, Santo Agostinho, Séneca, Sócrates,
Voltaire, entre outros.
6
Rousseau aponta para um determinado perfil de leitor, esclarecendo o modo como
gostaria de ser lido. Vulgarmente, o prefácio parece não ser ainda o próprio texto; é um
pré, onde, normalmente, o autor convida à leitura do que se segue, fornecendo linhas de
garantia de uma boa leitura. O prefácio antecipa o texto, mas não se confunde com o
corpo da obra que lhe sucede. Em Rousseau, o texto inicia-se aí, onde o prefácio inaugura.
Os seus prefácios surgem com uma invulgar densidade, fazendo deles não apenas
introduções às suas obras, interpelações directas ao leitor e ao modo como quer ser lido,
mas também como testemunhos directos das mesmas. Por exemplo, é sintomático e
deverá ser tido em conta o facto de a estátua de Glauco vir apenas descrita no prefácio ao
Discours de 55, apesar de ter uma importância extrema neste e em todos os textos de
Rousseau.
A leitura dos prefácios de Rousseau leva-nos à necessidade de adoptar um
procedimento metodológico propedêutico, que acompanha toda a nossa investigação: o do
diálogo a sós com o autor. Assim, não obstante a leitura alargada de estudiosos
consagrados da obra de Rousseau, procuramos chegar à nossa leitura, sem influência
directa dos seus intermediários, num exercício exegético que se prende com a fidelidade
que o autor exige ao leitor, nos seus prefácios. É preciso ler a obra de Rousseau,
procurando acompanhar os movimentos do seu autor, os modos do seu pensar e do seu
sentir, pois só assim surge ao leitor o carácter específico da sua subjectividade, na qual
todos os textos assentam.
No prefácio a Narcisse, Rousseau alerta para o facto de os seus acusadores
“desviarem habilmente os olhos dos seus leitores”14
. No mesmo sentido, afirma que “é
preciso lê-lo para o julgar”15
no prefácio ao Dictionnaire de Musique, facto que afirma
não ter sido cumprido por muitos dos seus acusadores contemporâneos. Na sua vasta
correspondência, defende-se dos maus leitores, vendo-se obrigado a apresentar razões e
argumentos, absolutamente dispensáveis caso o tivessem lido e bem. No prefácio ao Mon
Portrait, diz-nos que fala como pensa, que tem boas intenções e assume a presença de si
nos seus textos, remetendo toda a responsabilidade da leitura para o leitor.16
No prefácio
14 Narcisse ou l’amant de lui-même, OC II, p. 963. 15 Dictionnaire de Musique, OC V, p. 226. 16 “Lecteurs, je pense volontiers à moi-même et je parle comme je pense. Dispensez-vous donc de lire cette
préface, si vous n’aimez pas qu’on parle de soi. […] J’ai les intentions bonnes, mais il n’est pas toujours si
facile de bien faire qu’on pense […].” (“Mon Portrait”, in Fragments autobiographiques et documents
biographiques, OC I, p. 1120).
7
ao Émile, Rousseau reforça que pretende dirigir-se ao leitor e “falar-lhe como pensa”17
,
com a intenção de “se dirigir ao seu coração”18
. Uma das mais importantes exigências que
são feitas ao leitor é, pois, o requisito da leitura com a razão e com o coração,
reiteradamente referido ao longo dos seus textos.
Neste sentido, Rousseau procura utilizar uma linguagem não discursiva, não
designativa nem representativa, mas expressiva do sentimento. Com efeito, a linguagem
rousseauniana não pretende espelhar a razão nem centrar-se no estabelecimento da
relação da palavra com o referente, antes assentar na expressão, o mais autêntica
possível, do sentir. O escrito rousseauniano coincide com o que pensa sentindo e a sua
leitura deverá ir ao encontro deste ensejo do autor. Rousseau não concordaria, por isso,
com a leitura de Kant, patenteada no célebre desabafo em que afirma ter sido obrigado a
ler e reler Rousseau, no intuito de se afastar da sua beleza literária para o conseguir ler
com a razão. Pelo contrário, consideramos que é preciso assumir a beleza literária e a
presença do sentimento (que não é o mesmo do que sentimentalismo) de Rousseau, sem
as contornar nem evitar. Será essa a razão pela qual o leitor de Rousseau dificilmente
lhe fica indiferente, quer na adesão ou recusa intelectual das suas ideias, quer no
sentimento que estas lhe causam. A este propósito, Michel Launay defende a
impossibilidade de indiferença face aos textos de Rousseau e salienta “a atracção e a
repulsa exercida pelos textos de Rousseau sobre aqueles que o lêem, dividindo-os em
duas categorias: os que os amam e os que os detestam”19
.
Por último, respondamos à terceira interrogação, relativa à temática e ao rumo da
nossa investigação. A questão da subjectividade universal surge, para nós, da importância
fulcral que o pensar e o sentir ganham em Rousseau, na sua constante e paradoxal
ocorrência. A questão ganha ainda mais força com a aferição do que consideramos
constituir os traços distintivos da subjectividade em Rousseau: a especificidade da sua
universalidade, o modo como é tratado o par identidade versus alteridade e, finalmente, a
presença da trilogia das teses transversais aos textos que tomámos como referência, só
passível de alcance na subjectividade mesma do eu que pensa e sente. Neste último ponto,
referimo-nos à trilogia das teses inerentes à subjectividade universal rousseauniana: a
dialéctica ser/parecer, a distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de
civilização (homem civil) e, por último, a evitabilidade do (ab)uso do mal (esta última
17 É, préface, OC IV, p. 241. 18 Ibid., p. 243. 19 LAUNAY, Michel, “Rousseau écrivain”, in Rousseau after 200 years, op. cit., p. 221.
8
ligada à reflexão rousseauniana sobre a origem e a manifestação do mal). Consideramos
que estas teses constituem em simultâneo as três ideias/sentimentos-chave comuns aos
seus textos e sobre as quais se alicerça a questão da subjectividade universal
rousseauniana. Para além disso, funcionam como princípios filosóficos que orientam a
multifacetada reflexão de Rousseau, conferindo um sentido interno à sua obra, não
obstante os seus múltiplos movimentos, e apresentando-se, no seu conjunto, como
resultado de uma razão que pensa e que sente. Trilogia que funciona como princípio da
esfera moral, do plano político e da dimensão educativa, e também como princípio
subjacente à própria história de vida individual e à história colectiva dos homens.
Consideramos que aquelas ideias ou princípios resultam da procura do filósofo pelo
alcance universal a partir da singularidade mesma: é preciso que os homens vejam,
pensem e sintam em si o que são (já sempre em relação com o outro), o que lhes é natural
e como podem evitar o (ab)uso do mal, com vista a experienciarem a felicidade em
sociedade, na inevitabilidade do progresso civilizacional, tanto na educação, na moral
(Émile) e na política (Du Contrat Social), como na vida (Confessions e Rêveries). Pela
sua importância, a trilogia exige uma explanação exaustiva e exegética no capítulo da
nossa dissertação que lhe é exclusivamente dedicado (cap. III).
A questão da subjectividade universal implica, por um lado, a assumpção20
de
uma valorização do sujeito na reflexão sobre si mesmo, recusando a perspectiva
positivista da distinção entre sujeito e objecto e, por outro, a procura da universalidade
nessa mesma reflexão centrada no sujeito, sendo este último, em Rousseau,
simultaneamente singular e absoluto. Não pretendemos dar conta dos múltiplos e díspares
revestimentos que esta questão tem vindo a receber ao longo da História da Filosofia,
designadamente, Descartes (subjectividade racional), Kant (subjectividade
transcendental), Hegel (subjectividade dialéctica), Husserl (subjectividade
fenomenológica) e Heidegger (filosofia da subjectividade). Autores como Ricoeur
levarão a subjectividade para o campo da linguagem ao nível da interpretação, da
20 Adoptámos a grafia de José Marinho (“assumpção” ao invés de “assunção”), pois, apesar de se tratar de
termos homófonos, preferimos a primeira grafia. Ao longo da sua obra Teoria do ser e da Verdade, Marinho utiliza frequentemente o termo “assumpção” no sentido de objectivação do acto de assumir ou
de aceitar plena e inequivocamente algo. Logo na introdução, refere a “assumpção do Nada”.
(MARINHO, José, Teoria do ser e da Verdade, Lisboa, Guimarães Editores, 1961, p.11). Este conceito
assume particular importância para o autor, chegando a utilizá-lo mais do que uma vez numa só frase:
“[…] Assim, a autêntica verdade não resulta simplesmente de uma assumpção do espírito no homem, mas
da cumulativa e unívoca assumpção do espírito nele […].” (ibid., p. 166).
9
hermenêutica e da compreensão. Dilthey já tinha também distinguido as ciências naturais
das ciências sociais e humanas, imperando nestas últimas a subjectividade.
Rousseau levará a questão da subjectividade para outra dimensão, alicerçada numa
singular e absoluta introspecção, na indagação que o persegue pela natureza do género
humano e pela felicidade que lhe convém. A nossa dissertação visa mostrar como o seu
nome merece não só estar presente, como ainda em destaque, no elenco dos filósofos da
subjectividade e, em especial, da subjectividade universal.
Em face da vastíssima bibliografia existente, cujo levantamento tem vindo a ser
constantemente actualizado por Tanguy L’Aminot (leia-se a entrevista efectuada a este
autor, que apresentamos em anexo), são poucos os estudos que versam exclusivamente
sobre a subjectividade universal de Rousseau.21
Temos conhecimento de uma só tese que
versa exclusivamente sobre a questão da subjectividade rousseauniana.22
Por outro lado,
há um conjunto variadíssimo de estudos sobre a importância que o sentimento recebe na
sua obra, o que pode aproximar, mas não leva à mesma questão. Ultimamente, têm sido
produzidos no Brasil inúmeros artigos de autores de reconhecido mérito que invocam a
dimensão subjectiva da obra de Rousseau, porém sem contorno sistemático. Do
levantamento das dissertações de mestrado e de doutoramento acerca da obra de
Rousseau no Brasil, empreendido por Kawauche23
, resulta uma lista com 134 teses, das
quais a maioria versa sobre a filosofia educacional e política de Rousseau, além de
diversos estudos posteriores a 2000, verificando-se uma proliferação ainda mais
significativa de artigos desde 2008. Rousseau é também actual e amplamente estudado na
Ásia, nomeadamente na China e no Japão.
Na bibliografia dedicada a Rousseau, em Portugal, as áreas exploradas são,
sobretudo, a da filosofia política, na qual destacamos a dissertação de doutoramento de
Manuel João Matos (Os Princípios da Ciência Política e os fundamentos da
Democracia em Rousseau – Universidade Nova de Lisboa, 2003); a da educação e
21 O site http://rousseaustudies.free.fr contém uma bibliografia exaustiva de Rousseau, em actualização
permanente até 2013. Aí, constata-se a existência de meia dúzia de artigos sobre a questão da
subjectividade em Rousseau. Tanguy L'Aminot, com quem temos vindo a ter contacto via e-mail,
continua a reunir todas as publicações existentes no âmbito da vida, obra e pensamento de Rousseau e
encontra-se em vias de completar a publicação da Bibliographie mondiale des écrits sur Rousseau, em nove volumes. 22 Cf. LERMA JASSO, Héctor, La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau (1997), Pamplona, Ediciones
Universidad de Navarra, 2003. 23 Cf. KAWAUCHE, Thomaz, Religião e política em Rousseau, dissertação de Doutoramento em
Filosofia, Universidade de São Paulo, 2012. Disponível em www.fflch.usp.br/df/site (consultado em
2/05/2015).
10
pedagogia, na qual salientamos a dissertação de doutoramento de Custódia Alexandra
Almeida Martins (A Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Praxis, teoria e
Fundamentos”24
– Universidade do Minho, 2008) e a da teoria da literatura, na qual
relevamos a recente dissertação de doutoramento de Ana Margarida Fernandes (A
confessionalidade francesa e Bernardo Soares25
– Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, 2016), onde Rousseau é uma das palavras-chave, sendo considerado o maior
representante do género literário da confissão e o principal responsável pelo
romantismo.
Salientamos ainda a tese de Fernando Augusto Machado acerca da recepção de
Rousseau em Portugal26
(Rousseau em Portugal: da clandestinidade setecentista à
legalidade vintista – Universidade do Minho, 1999). Este autor mostra que nomes como
Teodoro de Almeida, Filinto Elísio, Manuel Maria B. du Bocage, Marquesa de Alorna,
Almeida Garrett foram de uma maneira ou de outra prosélitos da obra de Rousseau.
Nenhum dos outros textos27
sobre Rousseau de que temos conhecimento refere
especificamente a questão da subjectividade universal.
24 MARTINS, Custódia Alexandra Almeida, A Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Praxis, Teoria e
Fundamentos, Dissertação de Doutoramento, Universidade do Minho, 2008. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/9150/4/tese_final.pdf (consultado em 10/07/ 2016). 25 Cf. FERNANDES, Ana Margarida, A confessionalidade francesa e Bernardo Soares, Dissertação de
Doutoramento em Estudos de Literatura e de Cultura (Teoria da Literatura), Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 2016. Nesta dissertação, a investigadora faz importantes referências a Rousseau.
Disponível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/24292/1/ulsd072914_td_Ana_Fernandes.pdf
(consultado em 31/07/2016). 26 Cf. MACHADO, Fernando Augusto, Rousseau em Portugal: da clandestinidade setecentista à
legalidade vintista, Porto, Campo das Letras, 2000. 27 Cf. o universo de outros textos sobre Rousseau em português de Portugal de que temos conhecimento,
exceptuando as diversas dissertações de mestrado e/ou doutoramento (mesmo que tenham sido
publicadas) e os prefácios às traduções portuguesas das obras de Rousseau: AAVV, Jean-Jacques Rousseau: o Homem, a Obra, o Pensamento, Resumos das comunicações proferidas no Colóquio
Internacional sobre Rousseau, realizado na FLUL, nos dias 10, 11 e 12 de Dezembro de 2012; BARATA,
André, “Liberdade e vontade geral em Jean-Jacques Rousseau”, in Primeiras Vontades, Lisboa,
Documenta, 2012, pp. 29-53; ALVES, João Lopes: “Sinopse biográfica de J. J. Rousseau”, in
ROUSSEAU, Jean-Jacques, Contrato Social (1.ª Versão), op. cit., pp. 37-47; “A razão da política”,
in Rousseau, Hegel e Marx, Lisboa, Livros Horizonte, 1983, pp. 9-56; “Rousseau: um pacto de
liberdade”, in Ética & Contrato Social, Lisboa, Ed. Colibri, 2005, pp. 137-154; MARTINS, Custódia
Alexandra Almeida, “Rousseau e o seu discurso: variações entre o Eu e as Justificações”, in Educação e
Filosofia Uberlândia, op. cit., pp. 71-80; MATOS, Manuel João, Ensaio sobre o Mal em Rousseau,
Lisboa, Ed. Exlibris, 2016; MESQUITA, António Pedro, “Rousseau, Kant e António Sérgio: em torno do
conceito de Vontade Geral”, in Educação estética e utopia política, coordenação de Leonel Ribeiro dos
Santos, Lisboa, Edições Colibri, 1996, pp. 95-122; MOLDER, Maria Filomena, “A Representação Estética setecentista: o espectáculo” in Filosofia e Epistemologia II, Lisboa, Biblioteca de Filosofia 3, A
Regra do Jogo, 1979, pp. 237-266; OUTEIRINHO, Fátima, A recepção crítica da obra de J.-J. Rousseau
em Portugal, sep. de “Intercâmbio”, nº5, Porto, Instituto de Estudos Franceses da Universidade do Porto,
1994 e “As traduções das obras de Rousseau em Portugal: texto e paratexto” in Línguas e Literaturas,
Revista da Faculdade de Letras, Porto, XII, 1995, pp. 397-418, disponível em
http://leRletras.up.pt/uploads/ficheiros/2717.pdf (consultado em 17/10/2014); POMBO, Olga,
11
Nos diferentes artigos existentes acerca da subjectividade em Rousseau,
deparamo-nos com a ausência de uma justa homenagem ao filósofo genebrino. Não
cremos que tal omissão resulte de falta de visão dos comentadores, naturalmente, mas
do facto de cada um deles ter lido e trabalhado o pensamento de Rousseau numa
diferente área filosófica, dada a sua multifacetada reflexão, apontando mais para a
dimensão política e/ou moral e/ou pedagoga e/ou literária, fazendo diluir aí a questão da
subjectividade. Temos, por isso, o ensejo e a ambição assumida de fazer destacar
Rousseau como um filósofo da subjectividade28
, que deve ser referido e incluído, em
todo e qualquer estudo acerca desta questão, como filósofo principal e não secundário,
como tem sido. Por exemplo, na sua obra Subjectivity: Theories of the Self from Freud
to Haraway, Nick Mansfield dedica cada capítulo a diferentes filósofos (Freud, Lacan,
Foucault, Kristeva, Deleuze e Guattari), sem identificar a subjectividade rousseauniana
como uma das fontes fundamentais das diferentes teorias do self. Mesmo quando, na
mesma obra, recorre à tradição fenomenológica (Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty,
Lévinas, Derrida), Rousseau continuará ausente. Outro facto a destacar é a ausência de
referência privilegiada a Rousseau em obras sobre a subjectividade. Por exemplo, numa
obra com o sugestivo título Subjectivity29
, Donald Hall refere Rousseau uma única vez
e, apenas, no contexto da subjectividade feminista e nas influências que Rousseau teve
em Wollstonescraft. Por seu lado, Dalia Judovitz30
faz também uma referência
minimalista a Rousseau, no contexto das reinterpretações que a subjectividade sofre
“Biobibliografia de Rousseau” e “Convite à leitura de Rousseau”, disponível em
www.eduCfCul.pt/docentes./pombo/publica (consultado em 12/04/2012); POMBO, Olga e MELIN,
Nuno, Rousseau e as Ciências, Lisboa, CFCUL, 2013 (apesar de o título sugerir uma reflexão prioritária
sobre Rousseau, o filósofo é pouco visado nesta colectânea de ensaios, resultantes do Colóquio
internacional subordinado à temática “Rousseau e as Ciências”, realizado em 15-16 Nov. 2012); SENA, Jorge de, “As Confissões de Rousseau e o problema da sinceridade”, in ROUSSEAU, Jean-Jacques,
Confissões, vol. I, trad. Fernandes Lopes Graça, pref. Jorge de Sena, Lisboa, Relógio d’Água, 1988, pp.
7-15. 28 Ideia que tivémos já oportunidade de defender. Cf. MARQUES COELHO, Sandra, “Subjectividade
universal no pensamento de Rousseau: que consciência?”, in Phainomenon, Lisboa, ed. Centro de
Estudos de Filosofia da FLUL, 25, 2012, pp. 37-68. 29 “After Descartes, the idea of subjectivity was elaborated and reinterpreted in many different and often
contradictory terms. Thus Kant’s transcendental subject can be contrasted both with the empirical
subjectivity of British thinkers and with Rousseau’s extravagant return to the self. Moreover, the
explorations of subjectivity by the German Idealist thinkers, Fichte, Schelling and Hegel, based on the
pre-eminence of the I understood from a voluntarist perspective and an idealist interpretation of freedom
cannot be overlooked. Even Nietzsche, who is considered to be a critic of metaphysical thought, is designated by Heidegger as returning to subjectivity, if only in the guise of the will of power” (HALL,
Donald E., Subjectivity, New York, Routledge, 2004, pp. 2-3). Platão, Montaigne, Heidegger, Merleau-
Ponty, Husserl e também Derrida e Foucault serão ainda referenciados e alvo de reflexão por parte do
autor, mas até ao final do livro, não é possível ler-se nem mais uma palavra sobre Rousseau. 30 JUDOVITZ, Dalia, Subjectivity and Representation in Descartes – The Origins of Modernity,
Cambridge, Cambridge University Press, 1988, pp. 39-41.
12
após Descartes. Surpreende-nos que Rousseau seja tão insuficientemente tratado em
obras acerca da subjectividade e, ao sê-lo, raramente é em exclusividade, sendo tratado
lado a lado com outros autores.31
Charles Taylor destaca a dimensão filosófica da subjectividade de Rousseau,
identificando a mesma no ensejo rousseauniano da compreensão do homem e da sua
“self-transparency”32
. Na linha de Taylor, procuramos mostrar como e porque é que a
questão da subjectividade tem a ver com a indagação pela identidade e pela natureza
humanas, aliada ao propósito de Rousseau em ver, na aparência em que o homem vive
no estado de civilização, o que lhe é intrínseco, perceber o que lhe é natural,
compreender o seu estado de natureza. Contudo, por nosso lado, interessa-nos ainda
uma questão ulterior, a de saber como surge e se desenvolve a temática da
subjectividade universal nos textos de Rousseau, no contexto da relação inextricável
entre pensar e sentir, perguntando também pela sua pertinência nos nossos dias.
O que prioritariamente nos move nesta investigação é precisamente dar a ver a
indispensabilidade da presença de Rousseau nas listagens dos filósofos da
subjectividade, não só como comummente associada ao seu estilo literário ou à sua
filosofia moral e/ou política, como acontece frequentemente quando a referência à
subjectividade rousseauniana surge, mas, e sobretudo, mostrar como a subjectividade
universal é o traço mais crucial e unificador da sua obra, ainda que complexo e
problemático, independentemente da área sobre a qual cada um dos seus textos versa.
Também Timothy O’Hagan refere a complexidade do self na obra de Rousseau: “Para
Rousseau, o self [itálico nosso] é ainda o ponto de partida, e talvez o ponto de chegada
também, de todas as nossas reflexões. […] Assim, Rousseau é um dos primeiros e mais
poderosos críticos do mito da 'essência vítrea do homem', da ideia de que o eu é um
processo transparente, dada como auto-evidente. Em todos os escritos de Rousseau, – na
31 A questão da subjectividade rousseauniana é comummente tratada em relação e não em ou por si só.
Cf., a título de exemplo: ALVES PEREIRA, Vilmar, “Descartes e Rousseau: leituras antagónicas de
infância e subjectividade”, in Tubarão, Universidade do Sul de Santa Catarina, v. 4, n. 7, pp. 20-37,
Jan./Jun. 2011; JACKSON, John Edwin, Mémoire et subjectivité romantiques: Rousseau, Hölderlin,
Chateaubriand, Nerval, Coleridge, Baudelaire, Wagner, Paris, José Corti, 1999; PALLAVIDINI, R., “Le
strutture della soggettività sociale in Rousseau, Shaftesbury e la cultura britannica del ‘Sentimento’”, in
Filosofia, 48, 3, Septembre-Décembre 1997, pp. 427-464; SABBA, Gregor, “Time and the modern Self: Descartes, Rousseau, Beckett”, in Studium generale, Berlin, Heidelberg, N.Y., 24, 1971, pp. 308-325;
SETH, Vanita, “ ‘Constructing’ individuals and ‘creating’ history: subjectivity in Hobbes, Locke, and
Rousseau”, in Europe’s Indians: producing racial difference, 1500-1900, Durham [NC], Duke University
Press, 2010. 32 TAYLOR, Charles, Sources of the Self – The making of Modern Identity, Cambridge, Cambridge
University Press, 1989, p. 357.
13
educação, na filosofia moral, na antropologia, na política – o self desempenha um papel
explicativo central; mas esse papel é sempre problemático, sempre em questão”33
.
Reconhecer o eu e a identidade originária dos homens exigirá um árduo
exercício de subjectividade que, a bom termo, reconhecerá a identidade do eu particular
de cada homem, que não é, afinal, diferente da identidade universal dos homens. Foi
esse o seu desafio e é esse o seu maior legado: reconhecer o que somos a fim de melhor
agirmos política, moral e educacionalmente, tanto na vida colectiva e pública, como na
vida individual e privada (já sempre em sociedade), independentemente dos tempos
históricos e dos lugares geográficos. O ser humano não é intuitivo, não se dá na razão,
como pretenderam a Idade Moderna e as Luzes: para Rousseau, reconhecer a identidade
e a natureza humanas exige uma observação criteriosa, um esforço especulativo e
ficcional, a partir da realidade concreta e vivencial dos homens que reveste a estátua de
Glauco, a cada momento histórico. E, para o filósofo genebrino, como veremos, não há
questão da vida nem da história dos homens que dispense este conhecimento da
identidade humana, do eu que somos universalmente.
A questão da subjectividade universal merece uma reflexão prévia acerca dos
problemas filosóficos que a mesma levanta. O primeiro e mais premente problema tem a
ver precisamente com a sua própria nomenclatura: como é que se pode conciliar numa
mesma expressão/afirmação dois conceitos radicalmente opostos? Classicamente, o
plano do universal corresponderia ao plano objectivo e o plano do subjectivo não teria
outra correspondência senão com um plano individual e particular. A razão dominaria o
primeiro, e os sentidos o segundo. As ideias do mundo inteligível e os sentidos do
mundo sensível de Platão são bem exemplificativas dessas correspondências.
Subjectividade e universalidade são consideradas opostas, mas não apenas por se tratar
de uma questão de sensibilidade e racionalidade, pois uma subjectividade universal
deixaria de ser meramente subjectiva. A subjectividade que vemos reflectida na obra de
Rousseau é intrinsecamente inovadora face aos seus antecessores.
33 “For Rousseau, the self is still the starting point and perhaps the end point too, of all reflections. […] So Rousseau is one of the first and most powerful critics of the myth of ‘man’s glassy essence’, of the idea
that the self is a transparent, self-evident given. In all Rousseau’s writings, – on education, on moral
philosophy, on anthropology, on politics - the self plays a central explanatory role; but that role is always
problematic, always in question.” (O’HAGAN, Timothy, “preface”, in Jean-Jacques Rousseau and the
Sources of the Self, org. Timothy O’Hagan, Brookfield, Athenaeum Press Ltd., Avebury Series in
Philosophy, 1997, p. VII).
14
Uma nova e prévia questão se impõe: de que sujeito falamos quando nos
situamos no plano universal? As respostas surgem de modo diverso ao longo da História
da Filosofia, sobretudo a partir de Descartes, que introduz a figura da subjectividade
moderna. A questão é complexa. Que géneros de sujeitos existem? Muitos e diversos:
sujeito racional, sujeito transcendental, sujeito trans-individual, sujeito individual,
sujeito colectivo. Perguntar por qualquer um daqueles sujeitos implica, desde logo,
transformá-lo em objecto, o que, por sua vez, implica muitos e importantes factores a
compreender: os episódios de uma vida, a conduta moral, as acções e atitudes, a
memória das experiências empíricas, o conhecimento adquirido. Implica perguntar pelo
sujeito cognitivo e pelo sujeito sensitivo. E se, como Rousseau, perguntamos pelo
sujeito que pensa e sente, piora o cenário da demanda. O sujeito sofre variações
constantes, altera-se e é alterado, tem paixões, razões, ideias e sentimentos que oscilam
a cada instante. Não será, pois, tarefa fácil, e Rousseau sabe bem disso. Mas nem por
isso hesita. Não cremos exagerar quando afirmamos que toda a sua obra assenta no mais
profundo e rigoroso exercício de subjectividade, na demanda do eu particular que
protagoniza, transformando-o no eu universal para conseguir chegar aos princípios
filosóficos, políticos, antropológicos, sociais, ético-morais e educacionais, que melhor
promovam a felicidade do(s) ser(es) humano(s), já sempre na relação com o outro,
afastado do seu estado natural, mas reconhecendo-o.
Rousseau retoma a figura da subjectividade moderna, porém dá-lhe contornos
inovadores. Não se trata nem do sujeito racional, nem do sujeito sensitivo, nem tão-
pouco do sujeito individual ou do sujeito colectivo e, muito menos, do sujeito
transcendental. Trata-se do sujeito trans-individual e inter-subjectivo. Trata-se, numa
palavra, do sujeito universal. O sujeito rousseauniano continua a ser universal, mas a
universalidade filosófica deixa de pender, ora para as ideias dos racionalistas, ora para
as sensações dos empiristas. A relação entre a dimensão do pensar e a dimensão do
sentir recebem em Rousseau uma nova problematização: não se trata já de diferentes
planos, mas de uma correlação, muitas vezes, quase sempre, difícil de destrinçar. O
sujeito não deixa de ser individual, mas resgata a sua universalidade na sua natureza
mais íntima e singular. O sujeito é o que somos. A vida de cada um traz consigo esta
identidade originária e comum a todos, tornando universal a nossa subjectividade, sem
deixar de ser singular. O sujeito só se reconhece na irmandade da natureza comum que
15
tem com o outro. Mais, o sujeito necessita do outro para o seu reconhecimento como
sujeito.
O clássico espaço da subjectividade, associado à interioridade, privacidade e
intimidade dos homens, encontra-se, agora, no plano universal do sentimento que se
deixa fundir com o da ideia. A universalidade está presente, não só na ideia universal,
mas no mundo interno e particular de cada homem. E isto só acontece porque Rousseau
vê que existem ideias inerentes à subjectividade humana, ideias que são também
sentimentos, a saber: a dialéctica ser/parecer; o estado de natureza (homem natural) por
contraposição ao estado de civilização (homem civil) e a evitabilidade do (ab)uso34
do
mal.
A nossa investigação implica sentidos de questionamento e de reflexão, dos
quais intentamos dar conta, ao longo dos cinco capítulos que a constituem.
O capítulo I tem ainda um carácter introdutório, no qual pretendemos identificar
e explorar o horizonte da definição da nossa temática, bem como as referências
bibliográficas que mais nos influenciaram. Num primeiro momento, pretendemos dar a
ver a relação entre pensar e sentir (a partir da qual surge a questão da subjectividade
universal), no contexto geral da obra de Rousseau. Visamos mostrar como a relação
simbiótica entre o pensar e o sentir não é um mero recurso estilístico nem metodológico,
mas faz, antes, parte integrante do pensamento filosófico do autor. Com efeito, a
correlação entre pensar e sentir manifesta-se não só na forma e no estilo de escrita35
do
filósofo genebrino, mas também, e sobretudo, nas suas teses cruciais, no método e
objectivos da sua reflexão. Ao longo da sua obra, Rousseau fornece vários e reiterados
sinais que mostram não aceitar de bom grado o esforço de leitura para separar o
entendimento racional do sentimento. Aquela deve fazer-se pensando e sentindo.
34 Para Rousseau, a sociedade acarreta o fenómeno da perversão da natureza humana e, portanto, é um
mal em si mesma. Todavia, Rousseau alerta os homens para evitarem o uso abusivo desse mal de origem
social, pois a sua manifestação histórica não é necessariamente a história do mal. Sendo a origem social
do mal inevitável, o seu abuso pode ser evitado. É nesse sentido que usamos o termo “(ab)uso”. 35 De entre muitos outros autores, Starobinski destaca a correlação entre pensar e sentir na obra de
Rousseau: “[…] La leçon de Rousseau allait ici prendre une valeur décisive et trouver un accueil exalté.
L’œuvre de Rousseau, en effet, manifestait (à partir de la solitude, mais avec un extraordinaire pouvoir de
diffusion et de pénétration) l’alliance féconde entre les puissances de la réflexion et l’élan chaleureux de la passion. Je veux rappeler ici la séduction exercée par cette éloquence accusatrice, où l’idée et le
sentiment concourent étroitement: l’énoncé doctrinal prend la véhémence d’un appel, tandis que la
passion tend à se clarifier dans un discours rationnel de grande envergure […] Il procède de même dans
l’exposé de sa religion et de sa morale, où tout se fonde sur l’évidence du sentiment interne, faculté
antérieure à la raison, mais que la raison la plus rigoureuse ne saurait désavouer […].” - STAROBINSKI,
Jean, Les emblèmes de la raison (1973) Paris, Flammarion, 1979, p. 41.
16
Rousseau não investe apenas na conquista da confiança do leitor, procurando também a
sua adesão por meio do carácter e da personalidade que faz vincular às palavras, pela
força da expressão melodiosa36
da sua linguagem. Trata-se, sim, de utilizar a única
linguagem passível de traduzir o sentir da razão para que o leitor, também num
exercício de subjectividade, se veja ele mesmo possibilitado para aceder às ideias
universais. Os seus textos pretendem apresentar ideias e sentimentos, não representá-
los. Neste contexto, a interpelação constante ao leitor e a adopção do estilo maiêutico
não é inesperada. O apelo à introspecção, comum aos seus textos filosóficos, servirá o
propósito maiêutico, e a resposta de Rousseau ao “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates é
passível de ser encontrada somente no exercício de subjectividade.
No segundo momento deste capítulo, procuramos explanar a questão da
subjectividade do filósofo genebrino como sendo simultaneamente filosófica e literária,
demarcando-nos das interpretações unilateralmente empreendidas por alguns
comentadores que viram em Rousseau ou um filósofo, ou um escritor. Visamos mostrar
como a sua escrita pretende ser o exercício da sua própria filosofia, ou melhor, a sua
escrita está ao serviço da sua filosofia e, quase sempre, é a sua própria filosofia,
deixando-se confluir o “eu literário” com o “eu filosófico”. O sujeito que escreve é o
sujeito filosófico, por excelência, mas a sua filosofia exige ser escrita por um escritor. A
linguagem dos textos rousseaunianos procura fazer jus aos princípios filosóficos que o
filósofo defende: o filósofo-escritor pretende apresentar(-se), muito mais do que
representar(-se), colmatando pela escrita a crítica que empreende às letras desde o
Discours de 50 e que será exaustivamente explícita no Essai.
Finalmente, intentamos mostrar por que é que a questão da subjectividade
universal rousseauniana, na sua demanda pela natureza, condição e felicidade humanas,
está para além dos tempos e dos lugares.
O teor do capítulo II prende-se com a identificação e caracterização dos traços
distintivos da sua subjectividade, a saber: o carácter específico da sua universalidade, os
conceitos de identidade versus alteridade e, finalmente, o modo como a trilogia
rousseauniana – constituída pelas ideias, que são também sentimentos, da dialéctica
36 Por isso, não obstante a sua crítica às músicas modernas e, em especial, à música francesa, em vários
dos seus textos, a linguagem musical receberá um tratamento privilegiado por Rousseau, à semelhança de
tantos outros filósofos, como Nietzsche e Schopenhauer. A Música, melodiosa e não harmoniosa (veja-se
a distinção entre melodia e harmonia no cap. XIV do Essai sur l’origine des langues) expressa as paixões
e traduz a relação primordial com a Natureza, numa profunda e serena reconciliação embrionária, que é
preciso sentir.
17
ser/parecer (com especial enfoque na estátua de Glauco), da distinção entre estado de
natureza (homem natural) e estado de civilização (homem civil) e da evitabilidade do
(ab)uso do mal – se apresenta à consciência.
Por universalidade entendemos o objectivo primordial da obra de Rousseau,
segundo o qual se torna imperioso encontrar as ideias e os princípios universais que
fundamentam a compreensão da vida social dos homens, independentemente dos
tempos e lugares, e ainda os orientam nessa interacção social. É esse o objectivo comum
aos dois Discours (a compreensão do homem natural serve os homens de todos os
tempos e lugares), ao Essai (a origem das línguas tem como horizonte acautelar e alertar
para o (ab)uso da linguagem convencional, em qualquer tempo e em todas as
nacionalidades), ao Du Contrat Social (os princípios do direito político dirigem-se a
todos os cidadãos), ao Émile (o projecto destina-se a todos os jovens,
independentemente das circunstâncias históricas), às Confessions (a confissão é
individual e dirigida a Deus, mas a partilha da mesma como verdade fá-la universal,
intemporal e dirigida aos homens) e às Rêveries (a obra inacabada que pretende ser a
reflexão filosófica da sua vida e da sua própria obra literária, também numa verdade
partilhada com os homens). Rousseau não pretende a reflexão teórica e contemplativa
acerca da felicidade universal dos homens. Rousseau aposta na possibilidade de
realização dessa felicidade, na vivência social e histórica dos homens, sob as suas
diferentes dimensões. Ora, o reconhecimento da universalidade que importa ao género
humano e à sua felicidade só é passível de ocorrer na subjectividade mesma. Se a
preocupação pela universalidade e pela felicidade de todos os homens se mostra mais
evidente nos Discours, no Émile e em Du Contrat Social, não é menos notória essa
preocupação nas Confessions e nas Rêveries. Estes últimos textos, apresentados como
sendo da Verdade (Cf. C, p. 656 e R, p. 995), procuram, o primeiro pela autobiografia, o
segundo pela reflexão filosófica, apresentar o testemunho de um percurso subjectivo de
um homem que se observa e que se pensa sentindo, mostrando em simultâneo a sua
natureza e a do género humano, manifestando assim o carácter universal da sua própria
subjectividade. A subjectividade do eu rousseauniano coincide, assim, com a do género
humano e aponta para o que mais interessa ao homem, quer na sua vida privada, quer na
esfera pública: o seu ser, o que lhe é natural e o não (ab)uso do mal, ou seja, a trilogia
inscrita na subjectividade humana, cujo reconhecimento faz potenciar a felicidade
humana.
18
A compreensão do que é a subjectividade em Rousseau passa ainda por perceber
a relação entre identidade e alteridade, no contexto do seu pensamento. A fundamental
indagação rousseauniana pela condição humana37
e pela sua natureza dá-se no exercício
subjectivo de um eu que se auto-observa, numa absoluta e singular introspecção, no
intuito de resgatar o que interessa naturalmente ao homem e à sua felicidade. Este
exercício – que Rousseau pretende protagonizar e partilhar – só ocorre no seio da
sociedade e na interacção social e, portanto, no homem afastado já do seu estado
natural, em que o uso da razão já o fez tornar-se outro, vivendo em alteridade.
Ainda neste capítulo, procuramos explanar o papel fundamental da consciência,
no cerne da temática em reflexão, pois é a esta que se apresenta, em última análise, a
trilogia das ideias/sentimentos da subjectividade universal rousseauniana. Com efeito,
as três ideias/sentimentos encontram-se inscritas na subjectividade universal
rousseauniana, no seu conjunto e intrincadas entre si, manifestando-se à consciência,
perspectiva que pretendemos fundamentar recorrendo às inúmeras ligações entre os seus
textos.
No capítulo III visamos explanar cada uma das ideias/sentimentos da trilogia da
subjectividade universal rousseauniana e aferir de que modo estão presentes nos sete
textos de Rousseau que tomámos como referência, pertencentes a décadas distintas e,
aparentemente, versando sobre temas tão díspares como a moral, a política, a educação
e a vida do filósofo. Para isso, recorremos às palavras do próprio autor em cada um dos
seus escritos, no sentido de nos mantermos o mais possível fiéis ao filósofo-escritor.
A dialética ser/parecer, a primeira ideia/sentimento da trilogia, tem a sua
máxima expressão na estátua de Glauco do Discours de 55. Tal como a estátua que o
tempo, o mar e as tempestades desfiguraram tanto que deixou de se assemelhar ao deus
marinho, ficando apenas a parecer um animal feroz, também a alma humana, pela
socialização e civilização sofridas, ter-se-á distanciado da sua natureza. Descortinar este
estado primordial que já não aparece à primeira vista, “que não existe mais, que talvez
não tenha existido e que provavelmente jamais existirá” (D2, préface, p. 123) e que,
37 É sempre da condição humana que se trata, desde os Discours: “Notre véritable étude est celle de la
condition humaine. Celui d’entre nous qui sait le mieux supporter les biens et les maux de cette vie à mon
gré le mieux élevé: d’où il suit que la véritable éducation consiste moins en préceptes qu’en exercices.”
(É, livre I, OC IV, p. 252).
19
pelo contrário, está oculto, exige uma determinada observação. É preciso “soprar a
areia” (D2, préface, p. 127) para melhor ver a imagem, e é também preciso adoptar o
olhar não só da razão, como o do coração. Na verdade, não se trata de procurar um
tempo histórico, cronologicamente determinado, mas de uma opção metodológica na
qual o pensar deverá conseguir ver e sentir um estado hipotético-imaginário: o estado de
natureza.
A distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização
(homem civilizado e civil) decorre directamente da dialéctica ser-parecer e está, como a
primeira, relacionada com a problemática do mal. Ao longo da primeira parte do
Discours de 55, o homem natural é descrito como não possuindo nem vícios nem
virtudes, vivendo conforme o instinto, na simplicidade e em uniformidade com a
natureza. O homem natural “não é bom nem mau” (D2, I, p.152), “a sua imaginação não
lhe pinta nada, o seu coração nada lhe pede” (D2, I, p.144), vivendo em paz. Com a
piedade natural, em parceria com o princípio da conservação de si próprio, não fará
qualquer mal a outrem. Por oposição, o homem civilizado vive no estado de civilização,
aí onde conhece o amor-próprio, a desigualdade moral e política, o terror da morte e
o(s) mal(es) dos vícios, como o ciúme e o orgulho. No estado de civilização, o homem
compara-se com o outro, torna-se doente, vive na ordem do parecer, conhece a servidão
e dominação, possui “razão cultivada” (D2, I, p.138) e não mais deixará de querer o
progresso e o desenvolvimento. Esta visão do homem civilizado não serve, todavia, para
voltar ao passado38
, antes para alterar o presente e acautelar o futuro dos homens, nas
suas diferentes dimensões.
A evitabilidade do (ab)uso do mal encontra-se interligada com as anteriores. O
mal tem uma origem social e aparece já como resultado do processo histórico, como
aparência, característica dos povos policiados/civilizados que deixaram de viver na
essência do estado natural. Neste estado primordial, bastando-se a si próprio, recatado
na sua natureza, o homem não sabe o que é o mal. Descobri-lo-á quando, na relação
com o outro, estabelecida na organização social e política, no uso das ciências e das
artes, na linguagem convencional, não deixar já de querer sempre “parecer o que não é”
38 É sobejamente conhecida a resposta de Rousseau a Voltaire e à acusação que lhe faz, apontando-o
como o filósofo que pretende que os homens regressem ao passado. Rousseau defende-se, alegando ter
sido mal interpretado, e que não defende, de modo algum, o regresso a um passado selvagem, no qual os
homens não saberiam sequer o que é a sociedade. Pelo contrário, a sua reflexão bate-se pela civilização
ou, melhor dizendo, por uma melhor sociedade.
20
(D1, I, p. 8). O modo como a História se desenvolveu, descrita no Discours de 55,
mostra bem a perversão da natureza humana, mas sem que isso implique uma
condenação. É verdade que os males associados à interacção social não podem ser
erradicados. Todavia, Rousseau mostra a possibilidade de os homens poderem evitar o
seu uso e, mais ainda, o seu abuso. Para isso, é preciso que os homens exerçam a sua
subjectividade e reconheçam a trilogia aí inscrita. Na Profession de Foi, por exemplo,
Rousseau mostrará como, pensando e sentindo a imagem do estado natural, se
modificarão hábitos e acções e como se faz um homem virtuoso. A virtude não exigirá
mais a contemplação teorética dos gregos; pelo contrário, ser virtuoso exige práticas e
atitudes que resultam da consciência que ouve a voz da natureza, acessível a todos os
homens.
No capítulo IV pretendemos averiguar qual o método de observação da natureza
humana, com vista à felicidade que lhe convém e quais são as estratégias propostas por
Rousseau para o acesso à trilogia da subjectividade. Para isso, atentamos nos requisitos e
alertas da observação que Rousseau propõe já no Discours de 55, tornando-se também
necessário aferir qual o papel e a função da memória e da imaginação nesse processo. A
novidade da sua observação relaciona-se com o facto de o homem ser pensado a partir
dele mesmo, não em determinado tempo circunstancial e em certo lugar que ocupa na
história, mas encontrado na mais singular subjectividade de uma razão que se sente e que
sente as questões universais e intemporais do homem.
No final deste capítulo, equacionamos a importância do processo de observação
para a felicidade dos homens e pretendemos aferir que concepção tem Rousseau da
própria temática da felicidade. Segundo o filósofo, devem os homens observar a sua
natureza, compreender a sua condição e procurar melhor viver consigo e com os outros,
não obstante a conquista da felicidade ser uma inevitável conquista adiada. Com a
observação da natureza humana e os resultados que advêm dessa observação estarão os
homens mais próximos da possibilidade da sua felicidade.
Por último, no capítulo V, optamos por uma livre reflexão e pelo recurso a autores
da actualidade e, partindo do sentido prospectivo da questão da subjectividade universal
rousseauniana, pretendemos mostrar a sua pertinência nos dias de hoje. Ficaria
incompleta a nossa investigação, se não o fizéssemos. Tratando-se de uma questão
intemporal, torna-se necessário compreender o alcance da subjectividade universal
rousseauniana, reportando-a às sociedades contemporâneas. Segundo o autor, deverão
21
os homens, em todos os tempos e lugares, compreender e sentir o que lhes é natural e
próprio para que a história dos acontecimentos da humanidade e a história da vida de
cada um seja feita no sentido da felicidade que interessa. Colocamos a hipótese de saber
se a questão da subjectividade universal rousseauniana pode ser vista como um novo
paradigma de reflexão, socorrendo-nos do conceito de paradigma de Kuhn, no seu
sentido mais filosófico. Mas o nosso propósito principal é o de expôr o modo como se
aplica o exercício de subjectividade da indagação pela natureza humana, bem como os
seus resultados, ao caso concreto do homem contemporâneo, que se encontra sob a
alçada do incontestável avanço científico-tecnológico que caracteriza as sociedades
mais desenvolvidas. Neste contexto, avançamos também a hipótese de Rousseau poder
estar na vanguarda da ideia de uma ética da ciência, defendida por diversos autores a
partir da segunda metade do séc. XX.
Diante das múltiplas configurações existentes do homem contemporâneo,
recorremos tão-só às figuras do homem hipermoderno e internético, termos que
adoptamos de Lipovetsky e de Lucien Sfez, e que, a nosso ver, actualizam a figura do
homem civilizado de Rousseau. A cada uma das figuras dedicamos respectivamente o
segundo e o terceiro sub-capítulos deste derradeiro capítulo. E aí, não pretendemos
proceder a um estudo exaustivo acerca daqueles termos. Tal seria pretensioso, dada a
complexidade inerente aos mesmos. O nosso propósito cinge-se a somente esboçar a
relação entre a questão da subjectividade universal que Rousseau alerta como sendo
urgente para o homem civilizado e as figuras contemporâneas do homem hipermoderno
e do homem internético. Neste sentido, recorremos ao conceito de hipermodernidade de
Lipovetsky, bem como à metáfora de Frankenstein de Sfez. Por não se tratar de uma
relação óbvia, consideramos ser premente proceder desde já à apresentação daqueles
termos, ainda que de um modo meramente introdutório.
Entendemos o conceito de hipermodernidade de Lipovetsky como sendo
aplicado à cultura de excesso característica da sociedade contemporânea, que em muito
se aproxima da perspectiva rousseauniana de uma sociedade de aparência. Por
considerar que o pós-modernismo de Lyotard não caracteriza já a actualidade,
Lipovetsky propõe o conceito de hipermodernidade como sendo o que melhor
caracteriza a sociedade contemporânea, abrangendo os novos e actuais valores da lógica
da moda e da lógica consumista, as mutações da sociedade de consumo e a
comercialização dos modos de vida.
22
O excesso dos “hipers”39
que Lipovetsky e Charles (co-autor da obra Les temps
hypermodernes) vêem no mundo actual, o qual fazem corresponder a uma “civilização
de leveza”, vão ao encontro da contradição e do paradoxo rousseaunianos entre o
progresso civilizacional e o retrocesso da felicidade do género humano40
, que Rousseau
viu nas luzes do seu tempo. Com efeito, Lipovetsky e Charles identificam os efeitos
nefastos dos desenvolvimentos e progressos que as sociedades conheceram a partir do
século XX, no sentido da contradição rousseauniana entre o progresso da civilização
cada vez mais virada para o consumo e a distância da felicidade do género humano: “O
mundo do consumo parece imiscuir-se diariamente nas nossas vidas e alterar a nossa
relação com os objectos e com os seres, sem que, apesar disto e das críticas que se
formulam a seu respeito, se possa propor um contra-modelo credível. […] Constata-se,
necessariamente, que o seu império não pára de progredir: o princípio do livre serviço, a
busca de emoções e de prazeres, o cálculo utilitarista, a superficialidade das relações
parecem ter contaminado o conjunto do corpo social […]”41
.
Rousseau acusa a sociedade sua contemporânea de ser uma civilização da
aparência, por excelência, tendo resultado dos progressivos desenvolvimentos
civilizacionais que, segundo o filósofo genebrino, não seguiu o melhor caminho. Com
os novos revestimentos que não tinham lugar no século das luzes, a descrição
lipovetskyniana do homem contemporâneo é em muito semelhante à descrição
39 “Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpoder, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado,
hipertexto, o que é que já não é “hiper”? […] Ao clima de epílogo segue-se uma consciência de fuga para
a frente, de modernização desenfreada feita de mercantilização proliferante, de desregulações
económicas, de um furor tecnocientífico cujos efeitos trazem em si tantas promessas como perigos.” -
LIPOVETSKY, Gilles, “Tempo e contra tempo ou a Sociedade Hipermoderna”, in LIPOVETSKY, Gilles
e CHARLES, Sébastien, Les temps hypermodernes (2004), Tr. Port. Os tempos hipermodernos, trad. Luís Sarmento, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 55. 40 À maneira interrogativa característica de Rousseau, são assim identificados alguns paradoxos da
hipermodernidade: “Narciso maduro? Mas ele não pára de invadir os domínios da infância e da
adolescência como se recusasse assumir a sua idade adulta. Narciso responsável? Poderemos
verdadeiramente pensar nisto quando os comportamentos irresponsáveis se multiplicam, quando as
declarações de intenção não são seguidas do respectivo efeito? O que dizer das empresas que falam de
códigos de deontologia e que, ao mesmo tempo, fazem despedimentos em massa porque falsificaram os
seus números, dos armadores que invocam a importância do respeito ecológico ainda que as suas próprias
embarcações efectuem descargas selvagens, dos empresários que elogiam a qualidade dos seus produtos
ainda que entrem em colapso ao mínimo abalo sísmico, dos automobilistas que supostamente respeitam o
código de estrada e que falam ao telemóvel enquanto conduzem. Narciso eficiente? Talvez, mas ao preço
de perturbações psicossomáticas cada vez mais frequentes, de depressões e de esgotamentos manifestos. Narciso gestor? Pode duvidar-se quando se observa a espiral de endividamento das famílias. Narciso
flexível? Mas é a crispação que o caracteriza a nível social quando chega o momento do retrocesso de
certas vantagens adquiridas. A lógica pós-moderna da conquista social foi substituída por uma lógica
corporativista de defesa das vantagens sociais.” (CHARLES, Sébastien, “O Individualismo Paradoxal –
introdução ao pensamento de G. Lipovetsky”, in ibid, p. 29). 41 Ibid., p. 35.
23
rousseauniana do homem do seu tempo: o homem é, agora, “corroído pela inquietude; o
temor impôs-se ao prazer, a angústia à libertação […] a nível internacional, o terrorismo
e as suas devastações, a lógica neoliberal e os seus efeitos sobre o emprego; a nível
local, a poluição urbana, a violência nos subúrbios; a nível pessoal, tudo o que fragiliza
o equilíbrio pessoal e psíquico”42
. Em L’ère du vide – essais sur l’individualisme
contemporain, já Lipovetsky salientara que “quanto mais a cidade desenvolve as
possibilidades de encontros, mais sós se sentem os indivíduos; quanto mais livres e
emancipadas das coacções antigas as relações se tornam, mais rara se faz a possibilidade
de conhecer uma relação intensa. Por toda a parte encontramos a solidão, o vazio, a
dificuldade de sentir […]”43
e, lembrando Rousseau, Lipovetsky observa que “os
valores, a política, a própria arte são presa desta degradação irresistível”44
. O próprio
autor refere Rousseau como tendo sido o primeiro a criticar “o luxo e as comodidades
da vida, culpados da corrupção dos costumes e das virtudes cívicas”45
.
Ao homem hipermoderno e consumericus46
de Lipovetsky, como
reconfigurações do homem civil de Rousseau, acrescentamos o homem internético e a
metáfora de Frankenstein que Sfez defende relativamente à era virtual que, segundo este
autor, vive na indistinção entre o que é e o que parece ser (distinção tão cara a
Rousseau), causada pelo progresso informático. Segundo Sfez, o computador assume a
figura de um Frankenstein: o criador (homem) é dominado pela criatura (máquina) que
de produtor passou a produto. Através desta significativa metáfora de Frankenstein,
Sfez pretende mostrar que a tecnologia da representação se sobrepôs ao domínio
comunicacional e da expressão, indo ao encontro do sentido convencional e evolutivo
que Rousseau identificara na evolução das línguas, no seu Essai, e que seria preciso
travar. O tautismo será um neologismo criado pelo autor a partir da junção entre
autismo47
e tautologia e que mostrará como está indistinta a oposição entre a
42 Ibid., pp. 30-31. 43 LIPOVETSKY, Gilles, L’ère du vide – essais sur l’individualisme contemporain (1983), Tr. Port. A
Era do Vazio – Ensaio sobre o individualismo contemporâneo, trad. Miguel Serras Pereira e Ana Faria,
Lisboa, Relógio d’Água, 1989, p. 73. 44 Ibid., p. 152. 45 LIPOVETSKY, Gilles, Le bonheur paradoxal: essai sur la société d’hyperconsommation (2007), Tr.
Port. A Felicidade Paradoxal – Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsumo, tradução de Patrícia Xavier, Lisboa, Edições 70, 2010, p 135. 46 Em Le bonheur paradoxal, Lipovetsky dedica um capítulo à descrição do homo consumericus, que
consideramos constituir mais uma recapitulação do conceito rousseauniano de homem civil (enquanto
civilisé), mostrando até onde chegou a sua perfectibilidade. Cf. ibid., pp. 109-127. 47 Em relação ao autismo, o autor clarifica que se trata de “um bloqueio solipsista […]. Como se o
receptor em si mesmo não fosse mais do que uma esponja absorvente que aceita tal e qual o sinal eléctrico
24
representação e a expressão no mundo virtual: “Expressão e representação opõem-se,
pois, em toda a sua linha [e] opera-se hoje exactamente uma confusão. Doença. É o
mesmo numa doença a que chamo tautismo”48
, fonte de ilusão e não de realidade, de
interactividade e não de interacção. A máquina-computador absorve o internauta e este
torna-se solipsista, isolado do mundo. Abstraído da sua vida real, o homem passa a
sobreviver no mundo virtual. Sfez vê, portanto, no código internético a anulação da
expressão ante a representação, causadora de ilusão e de infelicidade do internauta.
A contrastar a atitude pessimista de Sfez, recorremos a Lévy, cujo optimismo em
relação ao mundo internético e virtual é assumido pelo próprio nas primeiras frases de
Ciberculture: “A aposta deste livro é reflectir sobre a cibercultura. Consideram-me
normalmente um optimista. E com razão. […] O meu optimismo consiste apenas em
reconhecer dois factos. Primeiro, que o desenvolvimento do ciberespaço é o resultado
de um movimento internacional de jovens ávidos de experimentarem em conjunto
outras formas de comunicação para além daquelas que lhes são propostas pelos meios
de comunicação clássicos. Segundo, que se abre hoje um novo espaço de comunidade
que não requer de nós senão que lhe exploremos as potencialidades mais positivas nos
planos económico, político, cultural e humano”49
.
Sfez não faz qualquer referência a Rousseau. Lévy também não. Ainda assim, é
nosso objectivo dar a ver o sentido prospectivo da questão da subjectividade universal
rousseauniana, tornando-a presente na consideração do homem internético. Nesse
sentido, propomo-nos trazer Rousseau ao debate Sfez/Lévy, mostrando como a
demanda da subjectividade universal pela natureza humana e pela felicidade que lhe
convém se afasta, quer da perspectiva pessimista de Sfez, quer da perspectiva optimista
de Lévy, patenteando, deste modo, uma peculiar fecundidade da questão.
Nas suas críticas comuns ao progresso tecnológico, intentamos mostrar, no
último capítulo, como tanto a abordagem do homem hipermoderno de Lipovetsky,
como a do homem internético de Sfez, remetem para a dialéctica ser/parecer, para a
distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização (homem
transmitido.” - SFEZ, Lucien, Critique de la Communication (1988), Tr. Port. Crítica da Comunicação, trad. Serafim Ferreira, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, p. 77. 48 Ibid., p. 75. O autor esclarece posteriormente que “O tautismo é a confusão dos dois géneros. Julga-se
estar na expressão imediata, espontânea, aí onde reina e domina a representação. Delírio. Creio exprimir o
mundo, esse mundo de máquinas que me representam e de facto se exprimem por mim.” (ibid., p. 75). 49 LÉVY, Pierre, Cyberculture (1997), Tr. Port. Cibercultura, trad. José Dias Ferreira, Lisboa, Instituto
Piaget, 2000, p. 11.
25
civil) e para a questão da evitabilidade do (ab)uso do mal, perspectivadas agora à luz
dos novos revestimentos que a estátua de Glauco recebeu. Verificamos que as questões
implícitas nestas configurações do homem contemporâneo retomam as preocupações de
um pensar que sente as questões mais inerentes à natureza humana e que, pelo seu
alcance universal, se mantêm inalteráveis na sua essência, apesar dos novos
revestimentos que vão recebendo ao longo da História. O que está em causa é ainda o
perigo da completa desnaturalização do homem. Procuramos, por isso, mostrar como a
reflexão acerca da hipermodernidade e da realidade virtual muito têm a ganhar com o
contributo de Rousseau, no que respeita à necessidade de exercitar cada vez mais a
subjectividade de uma razão que não renega a sua dimensão sensitiva e procura melhor
agir, de acordo com a sua natureza e com a trilogia da subjectividade universal que se
manifesta à consciência.
Numa palavra, a investigação que procuramos desenvolver nos cinco capítulos
que se seguem visa fundamentar em Rousseau uma completa filosofia da subjectividade
universal que, com os seus contornos específicos, originais e inovadores, consiste num
importante e indispensável legado, o qual não só pode, como deve ser importado para os
dias de hoje, na reflexão do homem contemporâneo, sob, por exemplo, a égide da
hipermodernidade e à luz da realidade virtual.
26
Capítulo I: O horizonte da definição da subjectividade universal
rousseauniana
I.1. Pensar e sentir no contexto geral da obra de Rousseau
“Ô bon jeune homme! Arrête, suspends ta lecture, je te vois trop ému. Je veux bien que le langage de
l’amour te plaise mais non pas qu’il t’égare. Sois homme sensible mais sois homme sage. Si tu n’es que
l’un des deux tu n’es rien.”
(ROUSSEAU, J.-J., “Profession de Foi”, in Émile ou d’éducation, livre IV, OC IV, 1969, p. 677).
A temática da subjectividade universal em Rousseau implica reflectir sobre o
papel que a razão tem no seu pensamento e qual a relação que se estabelece entre a
dimensão do pensar e a dimensão do sentir. Esta relação tem sido tratada por muitos
investigadores, que forneceram diferentes e importantes contributos, de que destacamos
apenas alguns, sem os quais, a nosso ver, a questão ficaria indevidamente
contextualizada e cientificamente desenquadrada. Derathé formula a pergunta que
importa – “É Rousseau um racionalista?50
– para, desde logo, apresentar os principais
representantes das duas alas da polémica na primeira metade do século XX,
relativamente à dimensão da razão e à do sentimento na obra de Rousseau: por um lado,
a defesa de um racionalismo, tanto na doutrina, como no método de Rousseau, que
admite um lugar para o sentimento e que não se afasta de Descartes, apresentando M. G.
Beaulavon como o seu mais entusiástico defensor; por outro, a defesa de uma
incontestável primazia do sentimento em detrimento da razão, por autores como Pierre-
Maurice Masson, Brunschvicg e V. Basch.
Derathé constata que é precisamente “estudando a religião de Jean-Jacques
Rousseau, que Pierre-Maurice Masson o considera um anti-racionalista e faz dele um
representante do puro sentimentalismo”51
. Curiosos desta afirmação, fomos ao encontro
de Masson e, uma vez relanceadas as 457 páginas da sua obra de 1915, La Religion de
Jean-Jacques Rousseau, dedicadas maioritariamente à Profession de Foi, constatámos
como este autor vê uma ligação directa entre a vida e a obra do filósofo genebrino, no que
50 DERATHÉ, Robert, Le Rationalisme de J.-J. Rousseau, Thèse complémentaire pour le Doctorat des Lettres présentée à la Faculté des Lettres de l’Université de Paris, Genève, Stakline Reprints, 1979, p.1.
Derathé propõe-se reflectir, precisamente, sobre a relação entre a razão e o sentimento na obra de
Rousseau e confrontá-la com as teorias históricas antecedentes, afastando-o dos jurisconsultos Pufendorf,
Barbeyrac e Burlamaqui, bem como do racionalismo de Descartes, e defendendo a proximidade com
Malebranche. 51 Ibid., p. 33.
27
respeita ao percurso do seu sentimento religioso, bem como destaca a necessidade
prioritária de o leitor apreender “o sentimento dos seus textos”, mais do que “a identidade
dos termos utilizados”52
. Masson refere e justifica o esforço inglório de Rousseau ao
procurar “introduzir nos seus sentimentos religiosos uma coordenação intelectual”53
.
Compreende-se a leitura de Masson, mas cremos que o esforço rousseauniano é bem
sucedido, porquanto Rousseau mostra claramente que é preciso fazer intervir a razão e o
sentimento nas suas reflexões em geral, e não só no que toca a questões religiosas. Na
polémica que identifica, Derathé inclina-se para a perspectiva de Beaulavon, mas
pretende completá-la e rectificá-la e, onde este autor viu um sentido unívoco da “razão
esclarecendo o sentimento”54
, aquele contrapõe um movimento duplo e simbiótico entre
razão e sentimento.
Os investigadores mais recentes continuam a não entrar em consenso no que
respeita à relação entre o pensamento e o sentimento na obra de Rousseau: comentadores
há que seguem a linha de Beaulavon55
, estabelecendo relações de proximidade filosófica
entre Rousseau e Descartes, por aquele ser “um filósofo preocupado em operar com um
método que o deixe em condições, tal como Descartes, de apreender ideias evidentes e
distintas”56
. O próprio filósofo refere ter lido Descartes (C, VI, p. 237) e assume por
momentos a proximidade com o filósofo racionalista, no que respeita à dúvida metódica:
“[…] reduzido a não saber mais o que pensar, cheguei ao mesmo ponto onde estais, com esta
diferença, que a minha incredulidade, fruto tardio de uma idade mais madura, se formara com mais
dificuldade, e deveria ser mais difícil de destruir. Encontrava-me nessas disposições de incerteza e de dúvida
que Descartes exige para a investigação da verdade”57.
52 MASSON, Pierre-Maurice, La Religion de Jean-Jacques Rousseau (1916) Genève, Slatkine Reprints,
1970, p. 444. 53 Ibid., p. 253. 54 DERATHÉ, Robert, Le Rationalisme de J.-J. Rousseau, op. cit., p. 7. 55 A propósito da influência do cartesianismo na Profession de Foi, leia-se BEAULAVON, G., “La
philosophie de Jean-Jacques Rousseau et l’esprit cartésien”, in Études sur Descartes, publication de la Revue
de Métaphysique et de Morale, Paris, 1937, pp. 325-352. Também Gouhier, aquando da sua análise das
Promenades, mostra como aí está presente o Discurso do Método (cf. GOUHIER, Henri, Les Méditations
métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau, Paris, Vrin, 1970, pp. 54-58). 56 ESPÍNDOLA, Arlei de, “O lugar dos sentimentos na ética de Jean-Jacques Rousseau”, in Filosofia,
Curitiba, PUCPR, v. 19, n. 25, pp. 345-360, Jul.-Dez. 2007, p. 349. Disponível em
http://www2.pucpRbr/reol/index.php/rf"dd1=1794&dd99=view (consultado em 4/08/2012). Apesar de o título deste artigo sugerir à partida um texto de defesa da primazia do sentir na ética rousseauniana, o seu
autor defende, principalmente, a importância que a razão recebe na reflexão de Rousseau. 57 “[…] réduit enfin à ne savoir plus que penser, je parvins au même point où vous êtes, avec cette
différence que mon incrédulité, fruit tardif d’un âge plus mûr, s’était formée avec plus de peine et devait
être plus difficile à détruire. J’étais dans ces dispositions d’incertitude et de doute que Descartes exige
pour la recherche de la vérité.” (É, livre IV, OC IV, p. 567).
28
Outros investigadores mais recentes da obra de Rousseau, dos quais destacamos
Lerma Jasso, defendem, na linha de Masson, a primazia do sentimento na reflexão
rousseauniana. Na sua dissertação sobre a subjectividade em Rousseau, Lerma Jasso
começa por registar, logo na introdução, que Rousseau “tende a afirmar a supremacia das
exigências íntimas do sentimento sobre o rigor da lógica; a imediatez da sensibilidade
sobre a mediatez da reflexão; a verdade dos sentidos sobre a verdade dos juízos”58
. E
acrescenta que, em Rousseau, “não é a razão a norma suprema da verdade, mas o
sentimento […], a razão da razão. Com tal anuência procura superar os filósofos, porque
ao seguir apenas a linha da intuição sensível, livra-se das armadilhas do juízo racional que
sempre esconde algum hábito mental pseudocientífico”59
.
Já Goldschmidt destaca, sobretudo no Émile60
, a presença do sensualismo, com
remissões para Condillac e Buffon, fazendo distanciar definitivamente Rousseau da
razão universal e abstracta de Descartes. Diversos comentadores salientam a
importância da dimensão do sentir na reflexão rousseauniana, estabelecendo uma
relação analógica entre a estátua de Condillac, meramente sensitiva e passiva às
sensações, e a criança descrita por Rousseau, que é maioritariamente afectada pelos
sentidos e pelas sensações exteriores.61
Para nós, o recurso à imaginação e a primazia
comum dada à dimensão do sentir constituem os principais traços da semelhança entre a
descrição do estado de natureza de Rousseau (a partir da estátua de Glauco) e a
descrição da estátua de Condillac, “uma estátua organizada interiormente como nós, e
58 “[…] tende a afirmar la supremacia de las exigências intimas del sentimento sobre el rigor de la lógica;
la inmediatez de la sensibilidad sobre la mediatez de la reflexion: la verdad de los sentidos sobre la
verdade del juízo.” (LERMA JASSO, Héctor, La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 15). 59 “[…] no es la razón la norma suprema de verdade, sino el sentimento […], la razón de la razón. Com
tal anuência busca superar a les philosophes porque, al seguir sólo la línea de la intuición sensible, se halla libre de las trampas del juicio racional que sempre esconde algun hábito mental pseudo-científico”
(ibid., p. 20). 60 Goldschmidt alerta também para a comparação com Condillac e Buffon: “Rousseau, dans la Profession
de Foi, acceptera l’essentiel de cette tradition, c’est-à-dire la distinction entre sensation et réflexion, celle-
ci se manifestant d’abord, comme chez Condillac, dans le pouvoir de comparer les sensations et de les
mettre en rapport. Mais il conçoit cette réflexion (sans parler, il est vrai, de «sens interne») comme une
« force de mon esprit » et, pour la désigner, lui associe le mot de «méditation» […] [nous devons]
concilier avec les découvertes de Locke, et que Rousseau cite longuement dans la première note de la
Préface, c’est-à-dire Buffon [et son] «sens intérieur».” (GOLDSCHMIDT, Victor, Anthropologie et
politique – les principes du système de Rousseau, op. cit., pp. 117-118). 61 “Tal como a estátua de Condillac, o homem-criança de Rousseau é definido somente por aquilo que
recebe pelos sentidos, ele não é outra coisa senão aquilo que sente. […] A adesão de Rousseau às teses sensualistas de Condillac prossegue, e não é difícil encontrar outras afirmações de Rousseau que parecem
ter sido extraídas directamente do Tratado das sensações.” (BEZERRA, Gustavo Cunha, “O sensualismo
de Rousseau e suas origens”, in A ordem da Natureza no pensamento filosófico e religioso de Jean-
Jaques Rousseau, sob a orientação do Prof. Dr. José Óscar de Almeida Marques, São Paulo, Campinas,
2014,p. 41. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000937876&opt=4
(consultado em 5/04/ 2015).
29
animada de um espírito privado de toda a espécie de ideias”62
com o intuito de
compreender “a ignorância na qual nascemos [e] um estado que não deixa marca
alguma atrás de si”63
.
Apesar da inegável influência que recebe de filósofos como Condillac e Locke,
Rousseau recusa, ainda assim, “um sensualismo sem limites”64
. Com efeito, não
obstante a importância que dá aos sentidos, Rousseau não defende a teoria empirista da
tábua rasa. Não é também um defensor acérrimo do empirismo lockiano, segundo o qual
as ideias provêm mais ou menos visivelmente das sensações e dos sentidos, incluindo os
valores do bem e do mal, aos quais Locke faz corresponder o prazer e a dor,
respectivamente. A relação estabelecida por Hume entre as impressões e as ideias
(como cópias enfraquecidas das impressões) também não convence Rousseau. Tal como
atesta Masson e as muitas aproximações que são feitas por outros autores,
nomeadamente Hendel65
, Rousseau recebe inegáveis influências de Malebranche, mas,
com a sua peculiar e singular visão, também se demarca deste. Tal como se demarca do
sensualismo condillaciano.66
Os defensores de um sensualismo rousseauniano recorrem sobretudo à
Profession de Foi e ilustram essa defesa com as respostas do vigário às questões acerca
do eu e do modo como profere juízos. Às questões “quem sou eu?” e “que direito tenho
eu de julgar as coisas e o que é que determina os meus juízos?” (PF, p. 570), o vigário
responde: “eu existo e tenho sentidos pelos quais sou afectado. Eis a primeira verdade
que me atinge e com a qual sou forçado a concordar” (PF, p. 570).
Rousseau mostra assim a importância que os sentidos e as sensações recebem no
ser humano, definindo a sua própria existência e o modo como conhece o mundo. Mas o
que Rousseau mais nos dá a ver é a relação inextricável entre sentir e pensar, quer na
reflexão acerca do mundo, quer na indagação pelo auto-conhecimento do homem, quer
ainda no acesso a Deus. Pensar Deus é sentir Deus e sentir Deus é pensá-lo. Só nesta
62 “[…] une statue organisée intérieurement comme nous, et animée d’un esprit privé de toute espèce
d’idées.” (CONDILLAC, É., Traité des Sensations (1754), Corpus des œuvres de Philosophie en Langue
Française, sous la direction de Michel Serres, Paris, Fayard, 1984, p. 11). 63 “ […] l’ignorance dans laquelle nous sommes nés: c’est un état qui ne laisse point de traces après lui.”
(ibid., p. 10). 64 ROUSSEL, Jean, J.-J. Rousseau en France après la révolution 1795-1830: lectures et légende, Paris,
Armand Colin, 1972, p. XXIX. 65 Cf. HENDEL, Ch.W., Jean-Jacques Rousseau: Moralist, New York, Bobbs-Merril, 1934. São várias as
aproximações estabelecidas entre Rousseau e Malebranche ao longo de toda esta obra. 66 A este propósito leia-se BEZERRA, Gustavo Cunha, “O sensualismo de Rousseau e suas origens”, in A
ordem da Natureza no pensamento filosófico e religioso de Jean-Jaques Rousseau, op. cit., pp. 37-44.
30
relação inextricável entre pensar e sentir, percebe o homem que Deus tanto escapa aos
sentidos como às questões que a razão empreende:
“O Ser incompreensível que abarca tudo, que dá o movimento ao mundo e forma todo o sistema
dos seres não é nem visível aos nossos olhos, nem palpável às nossas mãos; escapa a todos os nossos
sentidos. A obra mostra-se, mas o criador esconde-se. Não é pouca coisa saber enfim que ele existe, e
quando chegamos a isso, quando nos perguntamos: quem ele é? onde está? o nosso espírito confunde-se,
perde-se e já não sabemos o que pensar.”67
Não é, pois, possível captar a essência divina pela linguagem discursiva, nem
pela sensação, nem pelo entendimento. Será apenas no exercício de uma subjectividade
e na relação intrincada entre pensar e sentir, ouvindo a voz da consciência e o que a esta
se manifesta, que os homens terão naturalmente acesso a Deus, autor da natureza e, por
isso, também da natureza humana. A isto voltaremos mais tarde, no sub-capítulo II.3.
Os investigadores que defendem uma relação indestrinçável entre sentimento e
razão na obra de Rousseau fazem-no, quase sempre, sob o ponto de vista da política68
e/ou da moral.69
Não discordamos. Mas pretendemos ir mais longe, no sentido de mostrar
como essa relação dedálea entre sentir e pensar está presente, não só no estilo de escrita
do filósofo, como também, e sobretudo, constitui o alicerce essencial da sua obra,
configurando o teor que a questão da subjectividade universal recebe nos seus distintos
textos. O nosso ponto é este: se há momentos em que o sentir recebe um primado
incontestável, outros há em que Rousseau enaltecerá o papel da razão. No seu conjunto, a
leitura conclusiva dos textos que tomámos para a nossa análise diz-nos que aquilo que o
autor defende é uma relação inextricável entre pensar e sentir, visível nos pressupostos e
nas implicações da questão da subjectividade universal, como teremos oportunidade de
mostrar.
Em nenhum dos estudos sobre a relação entre pensar e sentir em Rousseau está
presente a clarificação dos termos dessa relação. E percebe-se porquê, pois o próprio
67 “L’Être incompréhensible qui embrasse tout, qui donne le mouvement au monde et forme tout le
système des êtres n’est ni visible à nos yeux ni palpable à nos mains; il échappe à tous nos sens.
L’ouvrage se montre, mais l’ouvrier se cache. Ce n’est pas une petite affaire de connaître enfin qu’il
existe, et quand nous sommes parvenus là, quand nous nous demandons: quel est-il, où est-il? Nôtre esprit
se confond, s’égare et nous ne savons plus que penser.” (É, livre IV, OC IV, p. 551). 68 Cf., a título de exemplo: MORANTE, Juan Carlos, La Articulation del sentimento y la razon en el pensamento politico de Rousseau, Comillas, Universidad Pontificia Comillas, 1998. 69 Cf., a título de exemplo: O’HAGAN, Timothy, “La morale sensitive de Jean-Jacques Rousseau”, in
Revue de théologie et de philosophie, 125, 4, 1993, pp. 343-57; FERREIRA DA SILVA, Genildo, “Moral
e sentimento em Jean-Jacques Rousseau”, in Reflexos de Rousseau (ed. José Óscar de Almeida
MARQUES), São Paulo, Humanitas, 2007, pp. 47-68; AAVV, Le Vocabulaire du sentiment dans l’œuvre
de Rousseau (éd. Michel GILOT et Jean SGARD), Paris, Champion, 1980.
31
filósofo não os clarifica. Vejamos: se, por um lado, Rousseau usa diferentes termos, quer
no que respeita ao plano do sentir (sentidos, sensações, sensibilidade, sentimentos), quer
no que concerne ao plano do pensar (razão, entendimento, razão cultivada, inteligência,
juízos, pensamentos), globalmente, ao pensar associa a razão; ao sentir, o coração. E é
assim que deve ser compreendido: o sentir (do coração) precisa do pensar (da razão) e o
mesmo acontece de modo inverso.
Não obstante o facto de constatarmos a aparente primazia do sentir (coração) em
alguns dos seus textos, como, por exemplo, a Profession de Foi70
, e, pelo contrário, a
supremacia quase evidente do pensar (razão) em textos como o Du Contrat Social, é a
relação inextricável entre ambas as dimensões que ganha forma nos seus diferentes textos.
Nessa relação assentam as ideias e/ou princípios filosóficos comuns às suas diversas
indagações, sejam morais, políticas, educacionais ou autobiográficas. Por exemplo, a ideia
de que o homem sentiu antes de pensar surge repetida em diferentes textos e em
consonância com a descrição rousseauniana do estado de natureza, no qual o homem não
possui ainda a razão desenvolvida:
“Não começámos por raciocinar, mas por sentir.”71;
“Existir, para nós, é sentir; a nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior à nossa inteligência,
e tivemos sentimentos antes das ideias.”72;
“Senti antes de pensar; é a sorte comum da humanidade.”73
Afastado do estado natural, no qual acedia naturalmente aos sentimentos da
piedade (pitié naturelle) e do amor de si mesmo (amour de soi-même), o homem, já no
estado civilizacional, vivencia outros sentimentos (e.g. orgulho, inveja, amor-próprio).
Estes sentimentos resultam da perfectibilidade e da invasão do sentir pelo pensar (que
dará origem à “razão cultivada”), a tal ponto que não deixarão mais de estar presentes em
simultâneo as duas dimensões, a do sentir e a do pensar. O que significa que não se trata
de ressalvar as eventuais diferenças de estilo literário entre a Profession de Foi e o Du
Contrat Social ou entre as Confessions e os Discours, salientando uns como mais
sentimentais e emotivos e outros como mais racionais, como alguns comentadores
fizeram exaustivamente.
70 PF, OC IV, pp. 565-691. Terá sido, sobretudo, por este texto, que a obra Émile foi condenada à fogueira. 71 “On ne commença pas par raisonner mais par sentir.” (EL, II, OC V, p. 380). 72 “Exister, pour nous, c’est sentir; notre sensibilité est incontestablement antérieur à notre intelligence, et
nous avons eu des sentiments avant des idées.” (PF, OC IV, p. 600). 73 “Je sentis avant de penser; c’est le sort commun de l’humanité” (C, livre I, OC I, p. 8).
32
É unânime entre os investigadores que a Profession de Foi é o texto em que
Rousseau mais valoriza o sentimento, sendo, também por isso, o texto mais citado pelos
autores que defendem a primazia do sentir em Rousseau. Por nosso lado, consideramos
que é neste texto que surge mais exaustivamente assumida a urgência de um novo género
de pensar, que exige a relação entre a razão e o coração. Na Profession de Foi, esse novo
modo de pensar surge em reacção às múltiplas religiões e consequentes modos de ver um
mesmo Deus, que as revelações, os milagres e os dogmas constantes nos livros sagrados
contradizem e confundem:
“[…] onde estão esses prodígios? Nos livros. E quem fez esses livros? Os homens. E quem viu
esses prodígios? Os homens que os atestam […] Sempre testemunhos humanos? Sempre homens que me
transmitem o que outros homens transmitiram! Quantos homens entre mim e Deus!”74
Deus é, afinal, uma verdade tão-só de atestação interior, no recolhimento autêntico
de cada um, sem contradição e sem pretensão cognitiva. O apelo ao sentir não é uma
estratégia linguística com o mero intuito de captar a adesão do leitor. É o próprio
resultado de uma razão que se dá a sentir e de uma reflexão que na subjectividade mesma
procura encontrar a universalidade. Rousseau declara explicitamente a importância da
aliança entre razão e sentir no exercício de pensar, conquanto, aparentemente, valorize
apenas a dimensão do sentir:
“Que Descartes nos diga qual a lei física que faz girar seus turbilhões; que Newton nos mostre a
mão que lança os planetas sobre a tangente das suas órbitas.”75
Ora, a mão de Deus não pode ser descrita nem argumentada, apenas vista. E ver
Deus é senti-lo, um sentir que exige um duplo olhar, o da razão e o do coração, reunidos
numa só visão:
“[…] se a terra gira, creio sentir uma mão que a faz girar.”76;
“[…] creio, pois, que o mundo é governado por uma vontade poderosa e sábia, vejo-o, ou antes,
sinto-o.”77
74 “[…] où sont ces prodiges? Dans des livres. Et qui a fait ces livres? Des hommes. Et qui a vu ces
prodiges? Des hommes qui les attestent. […] Toujours des témoignages humains? Toujours des hommes
qui me rapportent ce que d’autres hommes ont rapporté! Que d’hommes entre Dieu et moi!” (PF, OC IV, p. 610). 75 “Que Descartes nous dise quelle loi physique a fait tourner ses tourbillons; que Newton nous montre la
main qui lança les planètes sur la tangente de leurs orbites.” (ibid., p. 576). 76 “[…] si la terre tourne, je crois sentir une main qui la fait tourner.” (ibid., p. 575). 77 “Je crois donc que le monde est gouverné par une volonté puissante et sage; je le vois, ou plutôt je le
sens […].” (ibid., pp. 580-581).
33
Rousseau retoma, assim, a relação inextricável entre pensar e sentir, que o tempo
das Luzes não viu, num século que Rousseau acusa de pretender “materializar todas as
operações da alma e destituir os sentimentos de qualquer moralidade” (EL, XV, p. 419).
No Essai, o autor refere o cariz moral das sensações e dos sentidos, à excepção do
paladar:
“Só conheço um sentido em cujas sensações não se mistura nada de moral. É o paladar. Também a
gulodice só é vício dominante naqueles que nada sentem. Até os cantos, quando só são agradáveis e nada
dizem, também cansam, pois não é tanto o ouvido que leva o prazer ao coração quanto este que o conduz até
ao ouvido.”78
É ainda na Profession de Foi que Rousseau avança com novos conceitos em
relação aos Discours – os conceitos de virtude e de consciência –, mostrando, assim, e
mais uma vez, a relação inextricável entre pensar e sentir, contrariando a frequente
menção deste texto como sendo aquele de maior referência do sentimento
rousseauniano.
Vejamos: se os conceitos de virtude e consciência são apenas sentimentos
naturais, por que motivo não são referidos na primeira parte do Discours de 55, aquando
da descrição do estado de natureza, lado a lado com os sentimentos e paixões naturais
da piedade natural e com o amor de si mesmo? Se são tão-somente ideias da razão,
porquê então o apelo constante àqueles conceitos morais como respeitando a ordem da
natureza? Estamos perante um enigma incontornável, uma contradição que Rousseau
não pretendeu resolver, ou antes, à maneira aristotélica, perante uma aporia temática
que é preciso perceber? Arriscamos a última alternativa. A resolução da aporia passa
por perceber que esses novos conceitos só serão passíveis de efectiva compreensão se
compreendidos pelo diferente modo de pensar que Rousseau exige àquele que o
pretende compreender. Os conceitos de virtude e consciência são em simultâneo
sentimentos e ideias, pois são apresentados como sendo potencialmente inatos na
natureza humana, mas cujo espoletamento necessita de orientação educacional e,
portanto, surgem efectiva e integralmente apenas em sociedade.
Ao leitor é, assim, exigido o firme abandono das definições precisas que a
linguagem e a razão visam alcançar, bem como as dicotomias tão comummente
78 “Je ne connais qu’un sens aux affections duquel rien de moral ne se mêle. C’est le goût. […] Aussi la
gourmandise n’est-elle jamais le vice dominant que des gents qui ne sentent rien. Les chants mêmes qui
ne sont qu’agréables et ne disent rien lassent encore; car ce n’es pas tant l’oreille qui porte le plasir au
cœur que le cœur qui le porte à l’oreille.” (EL, XV, OC V, pp. 418-419).
34
atribuídas à natureza humana, de razão e coração, raciocínio e sentimento. Pretende-se
que o leitor alcance o que é exigido a Émile: o difícil equilíbrio entre a razão e o
coração, ou seja, a assumpção vivencial da inextricabilidade entre a dimensão do pensar
e a dimensão do sentir:
“Ó bom jovem! Pára, suspende a tua leitura, vejo-te demasiado comovido […]. Sê homem
sensível, mas sê homem sábio. Se só fores um dos dois, não és nada.”79
Repare-se que o testemunho só surge quando já foram ultrapassadas a idade da
natureza (prolongada até ao máximo) e a idade da razão de Émile. Já só na fase de
juventude estará apto a compreender o testemunho do vigário e o seu alcance religioso e
moral, impossível de ser alcançado por meio da razão ou do coração, separados um do
outro. Afinal, Deus escapa ao discurso, aos sentidos e à inteligência dos homens,
“esquiva-se tanto aos meus sentidos como ao meu entendimento” (PF, p. 581). Mas se a
razão se aliar aos sentidos, ouvir o coração e vice-versa, o homem acederá à
compreensão dos valores morais e/ou religiosos que convêm à natureza humana.
Na Profession de Foi, Rousseau pretende, mais uma vez, a simbiose e o
equilíbrio entre a razão argumentativa do raisoneur e o sentimento religioso do inspiré,
ambos parciais e limitados:
“Ponhamos por um momento esses dois homens discutindo e procuremos ver o que eles poderão
dizer um ao outro nesta aspereza da linguagem vulgar às duas partes.”80
O facto de a discussão (entre aqueles que vêem em Rousseau um racionalista e
os que, pelo contrário, nele vêem um sentimentalista) não ter um fim à vista deve-se ao
próprio. Imputamos tal facto a Rousseau, já que, com afirmações contraditórias, deu azo
a diferentes interpretações, como poderemos constatar nos excertos exemplificativos
que se seguem.
Em La Nouvelle Héloïse, Rousseau mostra-nos justamente as consequências de
sermos tomados de modo exclusivo pelo coração, enaltecendo a razão:
“[…] o coração engana-nos de mil maneiras e age por um princípio sempre suspeito, mas a razão
não tem outra finalidade a não ser o que é bem; as suas regras são seguras, claras, fáceis na conduta da vida,
e nunca se perde a não ser nas inúteis especulações que não são feitas para ela.”81
79 Cf. texto original da citação que serviu de entrada ao presente sub-capítulo. 80 “Mettons un moment ces deux hommes aux prises et cherchons ce qu’ils pourront se dire dans cette
âpreté de langage ordinaire au deux partis.” (PF, OC IV, p. 614). 81 “[…] le cœur nos trompe en mille manières et n’agit que par un principe toujours suspect; mais la raison
n’a d’autre fin que ce qui est bien; ses règles sont sûres, claires, faciles dans la conduite de la vie, et jamais
35
Pelo contrário, e como já vimos na Profession de Foi, afirma frequentemente
como é imperativa a entrega ao sentimento mais do que à razão:
“Não sou, pois, simplesmente um ser sensitivo e passivo, mas um ser activo e inteligente […] e
quanto menos eu pretender insinuar as minhas ideias nos juízos que uso, mais estou certo de me aproximar
da verdade; assim, a minha regra de me entregar ao sentimento, mais do que à razão, é confirmada pela
própria razão.”82
Ainda no Émile, Rousseau escreve o que pode ser (como já foi) entendido como
uma antecipação da filosofia de Kant83
, designadamente, da sua perspectiva face ao
conhecimento84
:
“Perceber é sentir; comparar é julgar; julgar e sentir não são a mesma coisa. Pela sensação, os
objectos oferecem-se a mim separados, isolados, tais como existem na natureza; pela comparação,
movimento-os, transporto-os, por assim dizer, coloco-os um sobre o outro para julgar sobre a sua diferença
ou sobre a sua similitude e […] suas relações […].”85
elle ne s’égare que dans d’inutiles spéculations qui ne sont pas faites pour elle.” (La Nouvelle Héloïse,
troisième partie, XX, OC II, p. 370). 82 “Je ne suis donc pas simplement un être sensitif et passif, mais un être actif et intelligent […] et que moins
je mets du mien dans les jugements que j’en porte, plus je suis sûr d’approcher de la vérité; ainsi ma règle de
me livrer au sentiment plus qu’à raison est confirmée par la raison même.” (PF, OC IV, p. 573). 83 A propósito da obra kantiana, saliente-se a profunda coerência entre as suas três Críticas e o método comum a todas elas, na leitura conjunta dos seguintes textos: “Doutrina Transcendental do Método”, in
Kritik der reinen Vernunft (1781),Tr. Port. Crítica da Razão Pura, trad. Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre F. Morujão, introd. e notas de Alexandre F. Morujão, Lisboa, Gulbenkian, 1985, pp. 573-673;
“Metodologia da Razão Pura Prática”, in Kritik der praktischen Vernunft (1788), Tr. Port. Crítica da
Razão Prática, trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 171-186; “Doutrina do método da
faculdade de juízo teleológica”, in Kritik der Urteilskraft (1790), Tr. Port. Crítica da Faculdade de Juízo,
trad., introd. e notas de António Marques e Valério Rohden, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1992, pp. 343-407. O filósofo identifica a natureza dupla e intermédia do homem, situada entre o
determinismo e a liberdade, uma vez que a natureza forneceu ao ser humano “duas disposições orientadas
para dois fins divergentes, a saber, a humanidade enquanto espécie animal e a humanidade enquanto
espécie moral.” (KANT, Immanuel, Die Mutmaßung über den Beginn der menschlichen, Tr. Fr. op. cit., p. 164). 84 A perspectiva crítica de Kant resulta da necessidade e dos consequentes resultados do auto-exame da
razão: “que [esta] empreenda a mais difícil das suas tarefas, a do conhecimento de si mesma e da
constituição de um tribunal que lhe assegure as pretensões legítimas e, em contrapartida, possa condenar-
lhe todas as pretensões infundadas.” (KANT, Immanuel, “prefácio da 1ª edição”, in Kritik der reinen
Vernunft, Tr. Port. op. cit., A XII, p. 5). Kant apresenta o conceito de fenómeno como sendo o resultado
da intuição espácio-temporal da sensibilidade e da formação dos conceitos do entendimento e o conceito
de númeno, que resulta da faculdade da razão. Só o fenómeno (constituinte do entendimento) é possível
de ser conhecido e pertence à “terra da Verdade” (ibid., B 295, p. 257); já o númeno (regulador da razão)
pode ser apenas pensado pela razão, fora da ilha, portanto, e já no mar do pensamento, no “largo e
proceloso oceano, verdadeiro domínio da aparência, onde muitos bancos de neblina e muitos gelos a
ponto de derreterem dão a ilusão de novas terras e constantemente ludibriam, com falazes esperanças, o navegante que sonha com descobertas, enredando-o em aventuras, de que nunca consegue desistir nem
jamais levar a cabo.” (ibid., A 236, p. 257). 85 “Apercevoir, c'est sentir; comparer, c'est juger: juger et sentir ne sont pas la même chose. Par la sensation,
les objets s'offrent à moi séparés, isolés, tels qu'ils sont dans la nature; par la comparaison, je les remue, je
les transporte pour ainsi dire, je les pose l'un sur l'autre pour prononcer sur leur différence ou sur leur
similitude et […] leurs rapports […].” (PF, OC IV, p. 571).
36
Segundo Rousseau, uma razão sem coração é vazia; um coração sem razão é cego.
Pensar implica sentir e sentir implica pensar. Contudo, qualquer semelhança com o ensejo
kantiano de ultrapassar a dicotomia empirismo/racionalismo com a sua proposta
intermediária do criticismo – “pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem
conceitos são cegas”86
– será apenas aparente. Para Rousseau, o pensar implica o
intercâmbio da razão com o coração, da sensação com a ideia, do pensamento com o
sentimento, diluindo as diferenças, chegando mesmo a anular qualquer distinção, em
matérias mais exigentes, como a dos valores morais e/ou religiosos. Rousseau também
considera que a razão tem de vencer. Mas a razão não tem de vencer os sentidos nem os
instintos, como em Kant. Pelo contrário, vence se e só se não abandonar os sentimentos.
O plano do sentir surge primeiro, porque já presente no homem natural, mas será
assumido pela razão, no homem civil, apesar de este excerto, ao distinguir razão sensitiva
de razão intelectual87
, poder dar a ideia oposta:
“Como tudo o que entra no entendimento humano vem pelos sentidos, a primeira razão do homem
é uma razão sensitiva; é ela que serve de base para a razão intelectual: os nossos primeiros mestres de
filosofia são os nossos pés, as nossas mãos, os nossos olhos. Substituir os livros por tudo isso não é
aprendermos a raciocinar […]; é aprendermos a muito acreditar e a nunca vir a saber.”88
A razão sensitiva surge aqui numa clara referência à infância e à educação natural
(que vai ao encontro da natureza humana) e não ao modo como os homens conhecem o
mundo, no sentido kantiano. Por outro lado, não defendemos a ideia de que Rousseau, a
ter tido a possibilidade de ler a obra do filósofo de Königsberg, viesse a ser um defensor
acérrimo do anti-Kantismo, reivindicando que é o sentir que deve vencer o pensar, tal
como afirmam alguns defensores do primado do sentir na obra de Rousseau.
É verdade que Rousseau interpela constantemente o leitor para o sentir do
coração, ao longo dos seus textos, e desde os Discours.89
No prefácio ao Émile,
86 KANT, Immanuel, Kritik der reinen Vernunft, Tr. Port. op. cit., B75/A51, p. 89. 87 A este propósito leia-se a interessante relação que Lerma Jasso estabelece entre a “razão sensitiva” (do
corpo) e a “razão intelectual” (do espírito) em Rousseau, que o autor faz respectivamente corresponder a
uma “subjectividade do sentimento” e a uma “subjectividade da razão.” Cf. LERMA HASSO, Héctor,
“Razón sensitiva y razón intelectual”, in La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau, op. cit., pp. 218-
221. 88 “Comme tout ce qui entre dans l'entendement humain y vient par les sens, la première raison de
l'homme est une raison sensitive; c'est elle qui sert de base à la raison intellectuelle: nos premiers maîtres de philosophie sont nos pieds, nos mains, nos yeux. Substituer des livres à tout cela, ce n’est pas nous
apprendre à raisonner […]; c’est nous apprendre à beaucoup croire, et à ne jamais rien savoir.” (É, livre
II, OC IV, p. 370). 89 E.g. de passagens de apelo explícito ao sentir:“ […] Quel que soit mon succès, il est un prix qui ne peut
me manquer: Je le trouverai dans le fond de mon cœur” (D1, préface, p. 5); “Qu’il serait doux de vivre
parmi nous, si la contenance extérieure était toujours l’image des dispositions du cœur […]” (ibid.,
37
Rousseau manifesta bem a sua preocupação em dirigir-se ao “coração humano” (É,
préface, p. 243). Já na Dédicace à la République de Genève com que inaugura o
Discours de 55, utiliza a palavra “coração” cinco vezes, quatro delas em maiúscula,
contabilidade e registo ortográfico que devem ser tidos em conta. Na Profession de Foi,
volta a lembrar:
“Já vos disse que não queria filosofar convosco, mas apenas auxiliar-vos a consultar o vosso
coração.”90
Mas não nos parece que essa constante interpelação ao leitor para o sentir do
coração deva ser vista como uma vitória do sentir face ao pensar. Além disso, não nos
podemos esquecer que o leitor contemporâneo de Rousseau, imbuído do espírito das
Lumières, teria tendência para valorizar a razão e seria preciso, pois, avivar-lhe a
dimensão sensitiva. Contudo, Rousseau visa alertar o leitor para algo mais, isto é, para um
novo modo de pensar que pretende partilhar com quem o lê, e do qual se sente justamente
protagonista: um pensar que sente. Isolados e distanciados um do outro, pensar e sentir
dão azo a uma razão incompleta e incongruente. E essa constatação é confirmada pela
própria razão, uma razão que já não está isolada, uma razão que já não sabe pensar senão
sentindo.
Os autores que defendem a primazia do sentir no pensamento de Rousseau vêem
também os sentimentos naturais como estando na base da moralidade do homem,
relacionando a defesa daquele primado com a tese rousseauniana segundo a qual o sentir é
anterior ao pensar. No entanto, essa justificação exclui a questão que, para nós, é mais
premente: a confiança de Rousseau na razão humana. Com efeito, a ideia rousseauniana
de que o sentir é anterior ao pensar não o faz nem um irracionalista nem um
sentimentalista. E porquê? Porque Rousseau vai muito mais além deste pressuposto: o
facto de sentirmos antes de pensarmos não faz com que o sentir receba uma maior
importância e uma primazia incontestável na sua obra, como, muitas vezes, tem sido
defendido. Embora criticando os filósofos das Luzes, que confiavam cegamente nas
première partie, p. 7); “[…] je vous conjure de rentrer tous au fond de votre cœur et de consulter la voix
secrète de votre conscience” (D2, Dédicace, p. 116);” De quoi s’agit-il donc entre vous que de faire de
bon cœur et avec une juste confiance ce que vous seriez toujours obligés de faire par un véritable intérêt, par devoir et pour la raison?” (ibid. p. 117); “Qu’il me soit permis de citer un exemple dont il devrait
rester de meilleures traces, et qui sera toujours présent à mon cœur” (ibid., p. 117); “[…] et continuez de
faire valoir, en toute occasion, les droits du cœur et de la nature au profit du devoir et de la vertu” (ibid.,
p. 120); “[…] dans cette vive effusion de mon cœur” (ibid., p. 120). 90 “Je vous ai déjà dit que je ne voulais pas philosopher avec vous, mais vous aider à consulter votre cœur.”
(PF, OC IV, p. 599).
38
capacidades da razão, Rousseau não deixa de partilhar com os pensadores iluministas esta
confiança na razão humana. Ou seja, a razão iluminada não é, para Rousseau, a razão
portadora dos conhecimentos filosóficos e/ou científicos dos livros e das ideias, mas a que
encontra o saber (sempre em relação ao homem) aliando o sentir ao pensar e vice-versa.
Há momentos desta relação em Rousseau que convidam à dissolução da distinção entre
pensar e sentir, momentos estes que podem criar algum desconforto a determinados
leitores. A distinção entre homem natural e homem civil é um desses momentos, que se
repete ao longo da obra do filósofo. Esta distinção – que permitirá reconhecer a identidade
originária do homem e ver o seu estado de natureza – recebe uma descrição exaustiva no
Discours de 55 e resulta da relação absolutamente imperiosa entre o sentir e o pensar, no
contexto dos textos rousseaunianos. Com efeito, aquela distinção não é nem só conceptual
nem só sensitiva, é simultaneamente uma ideia e um sentimento. Tal enunciado deve,
porém, prevenir a impressão de uma espécie de homologia entre ideias e sentimentos, que
Rousseau não chega a defender de modo definido. Quando dizemos que a distinção entre
homem natural e homem civil, bem como a dialéctica entre ser e parecer (a partir da
estátua de Glauco) e a evitabilidade do (ab)uso do mal são ideias/sentimentos, queremos
dizer que a sua compreensão efectiva exige que sejam pensadas e sentidas. Para além de
ainda ser necessário recorrer à imaginação e à conjectura para uma identificação precisa e
uma observação clara, mas da observação tratamos mais adiante.
As alas da discussão entre os defensores do primado da razão e os da primazia do
sentir na reflexão de Rousseau têm esquecido que o filósofo é assumidamente um homem
de paradoxos – “prefiro mais ser homem de paradoxos do que homem de preconceitos”
(É, II, p. 323) – e um autor exímio em contradições verbais. Cabe ao leitor a
responsabilidade de o compreender, perdoando os seus paradoxos.91
A nossa leitura dita
que há sentimentos, em Rousseau, que são também ideias e que estas ideias não são
passíveis de ser pensadas sem serem sentidas. Porque, com o desenvolvimento da razão, a
passagem do homem natural para o homem civilizado traz também o desenvolvimento do
sentir; não se trata já de sentir naturalmente, mas do sentir da civilização e, portanto, já
sempre com a razão cultivada. Os paradoxos não assustam o nosso filósofo. Aliás,
Rousseau sabe bem que, como a sua vida, os textos serão sempre paradoxais. O que o
filósofo não quer é ficar no pré-conceito. Ou melhor, já que não se pode regressar ao
estado pré-racional em que o homem natural vivia, o que Rousseau pretende é tomar os
91 “Lecteurs vulgaires, pardonnez-moi mes paradoxes […].” (É, livre II, OC IV, p. 323).
39
conceitos no seu todo e em todas as suas partes. Só assim perceberá, por exemplo, que a
razão contém em si a dimensão sensitiva e, inversamente, o sentir não está separado da
dimensão da razão. E confrontar-se-á com o facto (paradoxal, é certo), mas já sem ficar na
pré-compreensão dos conceitos, de que as ideias que se encontram na sua mais íntima
subjectividade são, também e afinal, sentimentos. É este o novo pensar que o homem em
sociedade deverá ter e para o qual deverá ser educado. Será esse o exemplo da educação
de Émile:
“Assim é Emile, tendo a maturidade da idade e da razão, e tal deve ser, a meu ver, o homem
nutrido na ordem da natureza, mas ensinado para a sociedade”92.
Ao reunir as duas dimensões, Rousseau antecipa a relação perspectivada,
sobretudo a partir do século XX, entre sentimentos, emoções e ideias, afastando-se do seu
próprio tempo, no qual a maioria dos filósofos respira ainda o legado recente das
correntes filosóficas do empirismo e do racionalismo. Estes davam, respectivamente,
primazia, ora aos sentidos e aos sentimentos, tão caros ao empirismo, preconizado por
autores como Hume, Locke e Berkeley, ora à razão privilegiada pelo racionalismo,
propalado por Descartes, Leibniz e Espinosa.
O que propõe, então, Rousseau? A proposta é firme: um pensar que sente e um
sentir que pensa, a partir do exercício de subjectividade, que o próprio almeja ilustrar. Só
neste exercício concomitante da razão e do coração poderá o homem aceder às ideias e
sentimentos que à consciência se apresentam, e que interessam tanto à filosofia como à
vida dos homens. No último parágrafo do Discours de 50, Rousseau antecipa o desafio ao
qual dedica os textos ulteriores, o desafio da indagação do homem sobre si mesmo e em si
mesmo, a fim de ouvir a consciência que fala a linguagem da virtude:
“Oh! Virtude! Ciência sublime das almas simples, serão precisos tantos tormentos e aparato para te
conhecer? Não estão os teus princípios gravados em todos os corações, e não lhe bastará [ao homem], para
apreender tuas leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da sua consciência no silêncio das paixões? Aí
está a verdadeira filosofia.”93
Só esta verdadeira filosofia levará a bom porto todos os projectos que se fizerem
sobre o homem, os homens, a sociedade. Assim, também ao Du Contrat Social, texto 92 “Tel est Emile ayant la maturité de l’âge et de la raison, et tel doit être à peu près selon moi l’homme nourri dans l’ordre de la nature mais élevé pour la société.” (É, Manuscrite Favre, IV- L’Age de Sagesse,
Fragments, 7, OC IV, p. 237). 93 “O vertu! Science sublime des âmes simples, faut-il donc tant des peines et d’appareil pour te
connaître? Tes principes ne sont-ils pas gravés dans tous les cœurs, et ne suffit-il [l’homme] pas pour
apprendre tes lois de rentrer en soi-même et d’écouter la voix de sa conscience dans le silence des
passions?” (D1, seconde partie, OC III, p. 30).
40
referido, algumas vezes, como sendo opositor da dessubjectivação política, não é alheio o
trânsito entre sentir e pensar. No teor próprio e específico desta obra, Rousseau procura
prioritariamente estabelecer os princípios do direito político, que possibilitem aos homens
uma organização legítima tendo em conta a passagem inevitável da liberdade natural para
a liberdade civil. Para isso, parte da família94
, o primeiro modelo das sociedades políticas:
o chefe é a imagem do pai, o povo é a imagem dos filhos” (CS, I, 2, p. 352) para avançar
posteriormente com os conceitos de vontade geral, de pacto/contrato social e soberania
popular.
Os conceitos de vontade geral, pacto/contrato social e soberania popular que vão
sendo apresentados em Du Contrat Social resultam da relação indestrinçável entre pensar
e sentir, ou melhor, de uma razão que pensa e sente. No livro IV desta obra, por exemplo,
é notório que o conceito de pacto social terá de ser entendido, o que quer dizer, pensado e
sentido, porquanto o cidadão não é fruto de dominação; pelo contrário, adere livremente,
pela razão e pelo coração, ao corpo social e político, fazendo voluntariamente parte do
todo. Não há lugar para a submissão, antes para a associação de cada homem ao todo
social e ao corpo político, pois “tendo nascido livre e dono de si próprio, ninguém o pode
submeter, seja qual for o pretexto” (CS, IV, 2, p. 440). O capítulo 6 do livro I de Du
Contrat Social consiste num testemunho exemplar da relação entre o pensar e o sentir,
mostrando como a organização política dos homens deve evitar o (ab)uso do mal social e,
pelo contrário, deve salvaguardar o sentimento de liberdade que é natural ao homem:
“´Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado
de toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedece, portanto, senão a si mesmo,
permanecendo assim tão livre quanto antes?` Tal é o problema fundamental para o qual o contrato social dá
a solução.”95
Rousseau mostra, assim, e mais uma vez, que só no exercício de subjectividade da
demanda pela sua natureza estará o homem apto a fazer voluntariamente parte de um
(novo) todo social, no qual assumirá a sua função de cidadão.
94 A família é referida por Rousseau em diferentes seus textos, como a primeira instituição social, como uma “pequena sociedade” (D2, II, p. 168), “a mais antiga das sociedades” (CS, I, 2, OC III, p. 352). 95 “´Trouver une forme d’association qui défend et protège de toute la forme commune la personne et les
biens de chaque associé, et par laquelle chacun s’unissant à tous n’obéisse pourtant qu’à lui-même et reste
aussi libre qu’auparavant?`Tel est le problème fondamental dont le contrat social donne la solution.”
(ibid., I, 6, OC III, p. 360).
41
A relação entre sentir e pensar está bem patente no esforço rousseauniano para
colmatar a evolução negativa da linguagem descrita no Essai e fazer resgatar o sentir de
uma linguagem que, de natural, passou a convencional, sendo esta última “mais pesada e
menos apaixonada, substitui[ndo] os sentimentos pelas ideias, não falando mais ao
coração, mas à razão” (EL, V, p. 384.). O esforço será levado ao extremo e protagonizado
pelo próprio filósofo, que jamais deixará de escrever sem se fazer acompanhar pela razão
e pelo coração.
Não raras vezes, as obras das Confessions e Rêveries são consideradas textos de
índole autobiográfica, de carácter pessoal e sentimental, sobretudo a primeira, chegando
mesmo a ser excluída, já o dissémos, do conjunto das suas obras filosóficas. Na verdade,
também nesta autobiografia são retomados os princípios da sua reflexão, princípios que
são as ideias/sentimentos inscritos na subjectividade universal, como teremos
oportunidade mais tarde.
O saber do homem pode levá-lo à sua felicidade. Não é um saber meramente
científico, nem só histórico, nem apenas psicológico ou artístico. Trata-se, antes, do saber
global e essencial que reside, afinal, em si, no interior do homem, que àquele terá acesso
apenas na relação inevitável entre pensar e sentir. Esta relação assume-se como um
princípio subjacente à reflexão rousseauniana, acarretando consequências nas suas
múltiplas dimensões, porquanto, afastando-se definitivamente da razão contemplativa dos
gregos, da razão universal de Descartes, da razão transcendental ou prática de Kant, da
dinâmica da razão hegeliana, e mesmo da razão que admite o sentimento como a de
alguns seus contemporâneos, nomeadamente Condillac, confere um contorno diferente à
própria racionalidade, tornando-a simultaneamente singular e absoluta, subjectiva e
objectiva, pessoal e universal, nas suas diferentes questões, quer sejam políticas ou
morais, quer sejam autobiográficas. Essa relação simbiótica entre pensar e sentir está
presente na procura pelo conhecimento da natureza do género humano e pelas ideias e
princípios universais, que não só fundamentam a compreensão da vida dos homens, como
ainda os orientam na sua interacção, sob as suas diferentes esferas e em toda a sua
história. A relação indestrinçável entre o pensar e o sentir serve o propósito de se dirigir,
desde o Discours de 50, a todos os homens, e não apenas aos homens do seu tempo.
Rousseau considera que a ideia de estado de natureza, a ideia de ser por contraste ao
parecer e a ideia de mal inerente ao estado de civilização são também sentimentos. Essas
ideias intrincadas no sentimento (e vice-versa) são intemporais e universais aos homens.
42
É neste contexto das relações de proximidade entre ideias e sentimentos, que
podemos ver definida a questão da dimensão subjectivo-universal. Esta relação que
Rousseau estabelece entre o plano do pensar e o plano do sentir desde os Discours ditará
o sentido da sua reflexão, da sua demanda, da sua escrita literária, do seu mundo
filosófico. Ou seja, para responder às questões que mais e sempre o preocupam – saber
como é a natureza humana e qual a felicidade que lhe convém (cf. D1, p. 3) –, torna-se
imprescindível adoptar um novo modo de pensar, um pensar que reivindica o sentir e um
sentir que já não está isolado da dimensão racional. Segundo Rousseau, é pelos
sentimentos “que conhecemos a conveniência ou a inconveniência que existe entre nós e
as coisas que devemos respeitar ou evitar” (PF, p. 599). O sujeito é, assim, chamado ao
seu espaço mais íntimo e subjectivo. Neste movimento de mergulho na sua
subjectividade, não pode o homem, no entanto, isolar-se dos demais. Tal já não lhe seria
possível, pois o resultado desse exercício de subjectividade é, precisamente, o
(re)encontro com a sua natureza, que o ligará conscientemente a todos os seres humanos.
O acesso à interioridade leva o homem ao reconhecimento da sua natureza, a partir da
distinção que surge, nesse exercício o mais absoluto de subjectividade, entre o seu estado
natural de outrora (se alguma vez existiu) e o seu estado actual de civilização. Mas não
fica por aí. Nesse exercício de demanda subjectiva de confronto de si, por si e em si, o
homem compreende e aceita o seu afastamento do estado natural, no qual o mal não
existia. Também, por isso, compreende que esse afastamento causado pelas faculdades da
perfectibilidade e da liberdade, com a ajuda de factores circunstanciais, não implica o
abandono da sua identidade originariamente sensitiva. Serão os sentimentos naturais que,
já não naturalmente, mas sob o jugo da civilização, servirão de base à moralidade, à
política, à educação, às ciências e às artes da sociedade que se quer feliz, ou melhor, mais
próxima da felicidade. Só aí, nesse exercício de subjectividade, o homem acede à
universalidade que o faz reconhecer e reencontrar o outro, sempre a partir da interacção
social, independentemente das circunstâncias histórico-políticas em que vive.
Este exercício de subjectividade que Rousseau propõe não é simples nem resulta
de uma intuição imediata. Pelo contrário, exige trabalho, cuidados e etapas, como
veremos ao longo do nosso texto, sobretudo nos capítulos III e IV. A exigência primeira
para o exercício rousseauniano de subjectividade é, como já vimos, a assumpção de um
novo modo de pensar, que contraria a maioria dos filósofos seus contemporâneos, bem
como as “vitórias” aclamadas pela Idade das Luzes, que via no desenvolvimento da razão,
43
por intermédio do progresso dos conhecimentos, a causa da conquista de um mundo
melhor.
A sua reflexão não assenta no princípio cartesiano do Cogito, ergo sum. Aliás,
Rousseau assume a clara demarcação da razão cartesiana e das suas ideias evidentes,
claras e distintas. Por meio do discurso do vigário saboiano, Rousseau reitera o que já
dissera outras vezes, em textos anteriores: a sua intenção em só “admitir como evidentes
todos [os conhecimentos] aos quais, na sinceridade do [s]eu coração, não poder[á]
recusar o [s]eu consentimento” (PF, p. 570). É assim que chega à “primeira verdade [:]
existo e tenho sentidos pelos quais sou afectado” (PF, p. 570). Mas não fica por aí. Os
sentidos são importantes, e o da visão será essencial à observação do homem, da sua
natureza. Contudo, essa observação não é exclusivamente sensitiva, também mental,
conjectural, imaginativa, racional e sentimental.
O conjunto dos seus textos mostra o princípio que, afinal, sempre o regeu: je suis
et je sens et je pense, donc je vais vivre. Rousseau não recorre a uma razão cartesiana
que procura os fundamentos da Mathesis Universalis, nem ao sujeito transcendental ou
à crítica kantiana da razão. O objectivo de Rousseau é outro: reflectir sobre a sociedade,
sentindo e pensando, “tomando os homens tais como são” (CS, I, p. 351), para saber
como podem estes e consequentemente aquela (melhores) virem a ser. Em Du Contrat
Social, Rousseau formula concretamente a questão que pretende explanar:
“Quero saber se, na ordem civil, pode existir alguma regra de administração legítima e certa,
tomando os homens tais como são e as leis tais como podem ser.”96
Toda a obra de Rousseau parte da natureza humana e da sua identidade mais
originária com vista à construção de uma sociedade de homens mais felizes. Observar
os homens tais como são para aferir como podem melhor ser constitui o cerne do
imenso desafio da questão da subjectividade universal rousseauniana.
Antes de avançarmos para a explanação desse desafio, torna-se necessário
perceber que subjectividade é esta que Rousseau partilha com o leitor: filosófica e/ou
literária?
96 “Je veux chercher si dans l’ordre civil il peut y avoir quelque règle d’administration légitime et sure, en
prenant les hommes tels qu’ils sont, et les lois telles qu’elles peuvent être.” (ibid., I, p. 351).
44
I.2. Uma subjectividade filosófico-literária
“J’ai écrit sur divers sujets, mais toujours dans les mêmes principes: toujours la même moral, la même
croyance, les mêmes maximes, et, si l’on veut, les mêmes opinions. Cependant on a porté des jugements
opposés de mes livres, ou plutôt, de l’auteur de mes livres, parce qu’on ma jugé sur les matières que j’ai
traitées, bien plus que sur mes sentiments. ”
(ROUSSEAU, J.-J., Lettre à Christophe de Beaumont, OC IV, 1969, p. 928).
Como em todas as questões relacionadas com a obra de Rousseau, também esta
não escapa à polémica: se uma boa parte dos comentadores a que tivémos acesso defende
na obra de Rousseau a presença maioritária de uma subjectividade filosófica97
, outros há
que defendem essencialmente uma subjectividade literária98
, e há ainda quem veja nos
escritos rousseaunianos a presença de uma subjectividade simultaneamente literária e
filosófica99
. Alguns autores referem ainda um subjectivismo rousseauniano (em vez de
subjectividade. Hannah Arendt, por exemplo, refere um “radical subjectivismo”100
na
consideração dupla da subjectividade rousseauniana, privada e social: “O primeiro
eloquente explorador da intimidade – e, até certo ponto, o seu teorizador – foi Jean-
Jacques Rousseau; e é significativo que ele seja o único grande autor ao qual ainda hoje
nos referimos pelo primeiro nome. A intimidade do coração, ao contrário da intimidade
da morada privada, não tem lugar objectivo e tangível no mundo. […] Para Rousseau,
tanto o íntimo como o social eram, antes, formas subjectivas da existência humana, e no
97 Héctor Lerma Jasso é autor do estudo mais exaustivo acerca da subjectividade rousseauniana de que
temos conhecimento, conforme sugere o título da sua dissertação: La subjectividad en Jean-Jacques
Rousseau. Como nós, também este autor considera haver uma teoria da subjectividade em Rousseau,
vendo no universo da sua obra literária uma subjectividade paradigmática, de contornos especificamente
rousseaunianos, que vão sendo apresentados ao longo do seu estudo. O autor relaciona o artista com o
filósofo, o projecto pessoal ao projecto político, chegando a referir a sua obra como uma biografia indirecta, mas destacando sempre o teor filosófico da questão da subjectividade rousseauniana. 98 Cf. e.g.: SAAD ROSSI, Vera Helena, “As múltiplas personas de Jean-Jacques Rousseau em Os
devaneios do caminhante solitário”, in Kalíope, São Paulo, ano 4, nº 7, Jan./Jun., 2008, pp. 101-111.
Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/kaliope/article/view/7457 (consultado em 12/10/2014).
Neste artigo, é analisado o simulacro do Eu, no contexto da narrativa das múltiplas pessoas que surgem
nas Rêveries, estabelecendo-se algumas ligações com as Confessions. A autora centra a sua reflexão nas
diferentes auto-denominações de Rousseau na sua narrativa literária (“J.-J.”; “Jean-Jacques”;
“Rousseau”), referindo-se a si próprio, ora na primeira, ora na terceira pessoa do singular. 99 Cf. e.g.: LURSON, Isabelle, La duplicité du littéraire et du philosophique: langage et subjectivité chez
Jean-Jacques Rousseau, Lille, Université de Lille 3, 2009. Debruçando-se sobre a questão da linguagem
rousseauniana, a autora estabelece relações entre a filosofia e o romance (sobretudo, a Nouvelle Héloïse)
mostrando como Rousseau explora o conceito de subjectividade ao levar o leitor à identificação com as personagens fictícias, cuja criação e descrição assentam nas diferenças entre homem natural e homem
civil, distinção crucial da sua filosofia. A autora apresenta a articulação entre linguagem, subjectividade e
verdade, comum aos textos filosóficos e aos textos de ficção romanesca de Rousseau, mostrando que
tanto o escritor como o legislador, tanto o romance como a lei, pretendem fabricar o cidadão. 100 ARENDT, Hannah, The Humain Condition (1958), Tr. Port. A condição humana, trad. Roberto
Raposo, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2001, p. 53.
45
seu caso, era como se Jean-Jacques se revoltasse contra um homem chamado
Rousseau”101
.
Num registo meramente linguístico, poder-se-ia tentar ler Rousseau sob um
processo mecânico, procedendo-se ao registo dos recursos estilísticos utilizados, dos
mecanismos linguísticos adoptados, da utilização dos modos e tempos verbais, dos
pronomes pessoais, da adjectivação, da descrição das suas personagens, do narrador,
dos espaços em que ocorrem as acções e/ou os pensamentos e/ou os sentimentos, etc,
etc. Mas seria isso ler Rousseau? A sua escrita exige muito mais do que uma análise
linguística. Ler Rousseau implica lê-lo filosoficamente. Não há outro modo. Mas,
dentro deste modo (o da leitura literário-filosófica ou, porque nos parece ainda mais
pertinente, o da leitura filosófico-literária), tem havido inúmeras e divergentes
interpretações. Salvo algumas ideias naturalmente repetidas, qualquer estudo acerca dos
textos de Rousseau resulta de uma leitura própria e única, mostra sempre algo de novo,
apropria-se de algo não visto até ali. Esta constatação mostra bem o denso universo da
obra rousseauniana, bem como a sua imensa complexidade e riqueza e, mais do que o
resto, o árduo desafio que se oferece a quem a pretenda ler. A riqueza literária da obra
de Rousseau resulta da riqueza da sua filosofia. O que pretendemos defender é que a
escrita coincide com a sua própria atitude e perspectiva filosóficas sobre o homem, a
sociedade e o mundo.
Rousseau leva o leitor para um mundo quase infinito (muitas vezes, indefinido) de
uma linguagem polissémica, complexa, às vezes estranha, paradoxal, de exaltação e de
lamento, de auto-elogio e de auto-comiseração, de glória e de arrependimento. Nos
diferentes pronomes pessoais que adopta, quer do singular, quer do plural (je, moi, on,
nous, toi), e em cada um dos seus escritos, o autor deambula entre o singular e o
universal, o abstracto e o concreto, o dado e o imaginado, o lembrado e o conjecturado.
No contexto da escrita rousseauniana, a compreensão de tão complexos hiatos,
contradições, metáforas e dúbias afirmações passa por apreender os traços filosóficos
que subjazem aos seus textos.
A acusação de um certo deslizamento para um tipo de escrita pouco científica,
assente numa exacerbada e recorrente menção ao coração (ao seu e ao do leitor), fazem
com que Rousseau seja por vezes considerado mais um escritor do que propriamente um
101 Ibid., p. 53.
46
filósofo. Enquanto escritor, são-lhe imputados reconhecidos méritos no que respeita à
inovação, originalidade e genialidade da sua escrita. A escrita de Rousseau não escapou
à análise de Derrida, que o reconhece como figura privilegiada e central na história do
logocentrismo102
. Também a sensibilidade da sua escrita é um facto inegável para os
estudiosos da sua filosofia. Charles Dédéyan é um dos autores que mais destaca a
sensibilidade literária rousseauniana, no modo como Rousseau vai manifestando “o seu
coração e o seu eu pré-românticos”103
, ao longo dos diferentes textos. O filósofo é uma
referência obrigatória do Romantismo, e terá influenciado autores como Fichte, Schiller,
Novalis e Goethe. A sua paixão pela natureza, a preferência pelo sentimento em
detrimento da razão, a visão de uma razão oposta à do iluminismo, a descrição dos
dramas e das contradições da condição humana, a sua veia poética e a valorização da
imaginação são frequentemente apontadas como traços pré-românticos.
O filósofo é um escritor, um excelente escritor, e é assim devidamente
reconhecido: “Jean-Jacques Rousseau é um dos mais lidos e estudados filósofos
modernos por muitas razões. Talvez a primeira seja a própria qualidade literária de seus
textos”104
. Com efeito, o “eu literário” confunde-se com o “eu filosófico”, no sentido em
que a escrita e a linguagem rousseaunianas procuram fazer jus aos princípios filosóficos
que defende. A sua escrita está ao serviço da sua filosofia. Mais ainda: a escrita
rousseauniana pretende ser o exercício da sua própria filosofia. Na verdade, o filósofo-
escritor pretende colmatar pelas letras a crítica105
que empreende às mesmas no
Discours de 50 e assume a tentativa de – a partir da linguagem convencional e da
representação, como refere no Essai, mas na impossibilidade de uma linguagem natural,
perdida no tempo em que a linguagem já fora apenas apresentação – resgatar a
102 DERRIDA, Jacques, De la grammatologie, Paris, Éditions de Minuit, 1967, p. 145. Derrida dedica a
segunda parte desta obra exclusivamente a Rousseau, na qual apresenta uma exaustiva análise do Essai
sur les langues, no que respeita à sua génese e estrutura. Cf. ibid., pp. 235-378. 103 DÉDÉYAN, Charles, Jean-Jacques Rousseau et la sensibilité littéraire à la fin du XVIII siècle, op.
cit., p. 411. Segundo o autor, a reflexão de Rousseau encontra-se integralmente centrada no eu, seja qual
for a temática, ou a obra rousseauniana em causa: “Que ce soit dans la Nouvelle Heloïse, dans les
Confessions, les Rêveries, les écrits polémiques, philosophiques ou didactiques, c’est toujours le moi de
Rousseau qui apparaît au premier plan”. (ibid., p. 360). 104 FONSECA JR, Gelson, “prefácio”, in Rousseau e as relações internacionais (colectânea de vários
textos políticos de Rousseau), trad. Sérgio Bah, São Paulo, Ed. Universidade de Brasília, 2003, p. IX. 105 O esforço em resgatar a expressão e a autenticidade da linguagem – que por ser convencional e normalizada, já é um mal – acompanhá-lo-á até ao fim dos seus dias. Starobinski refere este esforço
levado ao limite: “Et nous ne devons pas oublier que Rousseau en est venu à considérer son œuvre de
philosophe comme un mal dans lequel il s’est laissé entrainer, mal dont il doit, pour le reste de ses jours
subir les conséquences, mais en tentant de le réparer par de nouveaux écrits.” (STAROBINSKI, Jean,
“Sur la Pensée de Rousseau”, in Le remède dans le mal – critique et légitimation de l’artifice à l’âge des
lumières, Paris, Ed. Gallimard, 1989, p. 196).
47
expressão máxima do sentimento que importa ao homem. Acusado, por muitos, de ser
contraditório106
, Rousseau combaterá efectivamente os males da linguagem –
representação, aparência e distanciamento – na e com a sua própria linguagem. Para
isso, utilizará uma linguagem que se pretende menos distanciada, mais autêntica,
transmitindo a força e intensidade dos sentimentos evocados; uma linguagem escrita
que resulta o mais proximamente possível do desabafo da alma e do sentir do coração.
Rousseau considera que a língua tem como origem as paixões e não as necessidades
físicas que separam os homens:
“Não foi nem a fome nem a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que lhes arrancaram as
primeiras vozes.”107
Com a sua evolução, a linguagem serviu mais a separação do que a união entre
os homens. A primeira linguagem do homem, grito da natureza, foi cantada, sentida, a
sua língua foi originariamente musical, melodiosa, natural, voz e força anímica a um só
tempo. Com o distanciamento do ser, também o dizer surge como aparência e se tornou
um mal. Não será mais possível retirar-lhe esse carácter de convenção, quer na
oralidade, quer na escrita, pois quanto mais evoluída, codificada, mais afastada da
natureza e mais comprometida fica a força viva da sua expressão (EL, VII, p. 392),
sobretudo na linguagem escrita, que, em vez de fixar a “língua”, a altera, lhe muda as
palavras e o génio, “substitui a expressão pela exactidão” (EL, V, p. 388). Por isso, a
filosofia de Rousseau não pretende ser a de uma justificação e fundamentação racional
das suas teses, mas a de uma apresentação (de si e dos homens) e consequente partilha.
Assim, não obstante a complexidade e a riqueza do universo literário de
Rousseau, este não pode ser desvinculado do seu universo filosófico. Para ler Rousseau
e encontrar a sua “razão”, Kant, e não foi o único, viu-se obrigado a reduzir o escritor
em prol do enaltecimento do filósofo: “necessito ler e reler Rousseau até que não me
106 Rousseau foi criticado pelo facto de, durante toda a sua vida, recorrer paradoxalmente às letras que
tanto criticou no Discours sur les sciences et les arts, o seu primeiro texto eminentemente filosófico.
“Reconnaissons que la confusion dont s’enveloppent les termes (sciences, arts), la brutalité des
jugements, ne facilitent pas l’intelligence, l’accueil sympathique de sa pensée. L’empêchement provient aussi du flagrant désaccord que l’on constate entre la thèse qu’il soutient et les activités auxquelles il ne
se livre: homme de lettres, il attaque la littérature; amateur des spectacles, il dénonce les méfaits du
théâtre; adversaire des sciences et des arts, il concours pour un prix académique!” (BOUCHARDY,
François, “introduction”, in Discours sur les Sciences et les Arts, OC III, pp XXXVII-XXXVIII). 107 “Ce n’est ni la faim ni la soif, mais l’amour, la haine, la pitié, la colère qui leur ont arraché les
premières voix.” (EL, II, OC V, p. 380).
48
cative a beleza da expressão e eu possa analisá-lo todo somente com a razão”108
.
Contudo, o esforço da leitura kantiana não corresponde ao propósito da escrita filosófica
de Rousseau:
“Não sou um grande filósofo, e interessa-me pouco sê-lo. Mas tenho, às vezes, bom senso e amo
sempre a verdade. Não pretendo argumentar convosco, nem sequer tentar convencer-vos; basta-me expor-
vos o que eu penso na simplicidade do meu coração.”109
Rousseau não pretende convencer o leitor por meio da argumentação, mas
persuadir, chegando-lhe ao coração. A dimensão retórica tem, em Rousseau, uma
singular importância, não na negativa interpretação platónica, nem no benéfico sentido
aristotélico e nem ainda na reformulação da nova retórica de Perelmann. Não se trata
apenas de conquistar a confiança do leitor, afectando-o e procurando a sua adesão por
meio do carácter e da personalidade que faz vincular às palavras pela força da expressão
melodiosa. Trata-se antes da única linguagem passível de traduzir o sentir da razão, para
que o leitor, também num exercício de subjectividade, se veja possibilitado de aceder às
ideias universais. Neste contexto, a interpelação constante ao leitor e a adopção do
diálogo110
e do método maiêutico (as múltiplas referências de Rousseau a Sócrates são
sempre abonatórias) não são inesperadas, e a contabilidade sintomática das
interrogações que profere nas cerca de vinte páginas do Discours de 50 – 42 na primeira
e 26 na segunda parte –, não surpreende. O apelo à introspecção – e.g.: “procurai a
verdade em vós mesmos” (PF, p. 607) – servirá o propósito maiêutico.111
108 “Il me faut lire et relire Rousseau jusqu’à ce que la beauté de l'expression ne me trouble plus; alors
seulement, je puis le saisir avec raison.” - KANT, Immanuel, “Bemerkungen zur den Beobachtungen über
das Gefühl des Schönen und Erhabenen”, Kant's handschriftlicher Nachass, Band VII, herausgegeben von
der Preussischen Akademie der Wissenschaften (1764), Tr. Fr. “Extraits des remarques touchant les observations sur le sentiment du beau et du sublime”, in Observations sur le sentiment du Beau et du
Sublime, trad., introd. et notes par Roger Kempf, 2ª ed., Paris, Vrin, 1969, p. 65. Leia-se o excerto completo:
“La première impression qu'un lecteur qui ne lit pas seulement par vanité et pour passer le temps reçoit des
écrits de Jean-Jacques Rousseau, c’est qu’il se trouve devant une rare pénétration d'esprit, un noble élan de
génie et une âme toute pleine de sensibilité, à un tel degré que peut-être jamais aucun écrivain, en quelque
temps ou en quelque pays que ce soit, ne peut avoir possédé ensemble de pareils dons. L’impression qui suit
immédiatement celle-là, c'est celle de l'étonnement causé par les opinions singulières et paradoxales de
l'auteur. Elles sont tellement à l'encontre de ce qui est généralement admis, qu'on en vient aisément à le
soupçonner d'avoir cherché seulement en évidence ses extraordinaires talents et la magie de son éloquence,
d'avoir voulu taire l'homme original qui par une surprenante et engageante nouveauté d'idées dépasse tous
les rivaux en bon esprit.” (ibid., p. 65). Este excerto foi traduzido do alemão por V. Delbos, conforme nota
de edição que segue a transcrição: “Traduit par V. Delbos, La philosophie Pratique de Kant, p. 118.” 109 “Je ne suis pas un grand philosophe, et je me soucie peu de l´être. Mais j’ai quelquefois du bon sens et
j´aime toujours la vérité. Je ne veux pas argumenter avec vous, ni même tenter de vous convaincre; il me
suffit de vous exposer ce que je pense dans la simplicité de mon cœur.” (PF, OC IV, pp. 565-566). 110 “[…] la forme du dialogue m’ayant paru la plus propre […].” (“Du sujet et de la force de cet écrit”, in
Rousseau juge de Jean-Jacques, OC I, p. 6). 111 São inúmeros os investigadores que referem o estilo maiêutico de Rousseau.
49
Ao contrário do leitor que se esforça para diferenciar a escrita da filosofia
rousseauniana, assumir a densidade e a riqueza literárias da linguagem filosófica de
Rousseau é, para nós, condição necessária para a compreensão da questão da
subjectividade universal rousseauniana e da trilogia das ideias/sentimentos, basilares,
interligados entre si e subjacentes a todos os seus textos. Na apresentação de cada uma
das ideias/sentimentos da trilogia, Rousseau recorre constantemente a figuras e
metáforas, fazendo do seu texto um texto pictórico, cujas imagens serão correctamente
observadas pela visão conjunta da razão e do coração, isto é, pelo pensar aliado ao sentir
e vice-versa, e a cujo pleno sentido o leitor só terá acesso se as reconhecer em si
mesmo, fruto do seu próprio exercício subjectivo. Estas ideias/sentimentos estão
presentes, tanto nos escritos que remetem directamente para o estudo do género humano
e para a felicidade dos homens, como nos escritos que envolvem a sua própria vida,
exposta nos textos tardios e em alguma da sua vasta correspondência. Um relance sobre
os seus versos e sobre a sua dramaturgia confirma ainda o que dizemos. Narcisse, por
exemplo, personifica a figura do amor-próprio e o afastamento absoluto da sua natureza
e identidade originária. Imbuído cegamente pelo seu auto-centrismo, embriaga-se de si,
anula o outro e projecta-se em si mesmo. E eis a trilogia presente, ainda que na ausência
do seu reconhecimento: Narcisse não distingue o ser do parecer, não reconhece a sua
identidade nem o seu estado natural e o mal da vaidade esmaga-o por completo.112
Se a subjectividade já é própria da linguagem, como afirma Benveniste113
, em
Rousseau essa relação é exemplarmente reforçada. Concordamos, pois, com a relação
que Lerma Jasso estabelece entre aquelas: “[Rousseau] decide revelar ao mundo a sua
subjectividade, o seu coração. Estabelece assim uma nova metafísica do homem que
fundamenta, em pleno racionalismo iluminista, um humanismo que concede a primazia
ao sentimento, único capaz de mover a vontade. Porque a problematicidade da vida
112 Ao longo do nosso texto, optamos por evitar a sinalização das palavras em itálico. Todavia, nesta
afirmação, utilizamos o sinal gráfico de itálico de modo a facilitar a identificação dos elementos da
trilogia da subjectividade universal, aqui indirectamente referidos. 113 Benveniste relaciona a linguagem com a subjectividade do seguinte modo: “É na e pela linguagem que
o homem se constitui como sujeito […] a ‘subjectividade’ […] define-se, não pelo sentimento que cada
um tem de si mesmo (este sentimento, na medida em que podemos contar com ele, não é senão um
reflexo), mas pela unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que
assegura a permanência da consciência. Ora, esta ‘subjectividade’, em nosso entender, quer a definamos em fenomenologia, quer em psicologia, como se verá, não é senão a emergência no ser de uma
propriedade fundamental da linguagem. É ‘ego’ quem diz ego. Encontramos aqui o fundamento da
‘subjectividade’, que se determina pelo estatuto de ‘pessoa’. A consciência de si só é possível se se tomar
conhecimento de si por contraste. Eu só utilizo eu ao dirigir-me a alguém, que na minha alocução será um
tu.” - BENVENISTE, É., “L’homme dans la langue”, in Problèmes de linguistique générale II (1966), Tr.
Port. O homem na linguagem, trad. Isabel Maria Pascoal, 2ª ed., Lisboa, Ed. Vega, 1992, pp. 50-51.
50
humana, para Rousseau, não é de índole intelectual, mas ética, da vontade: reencontrar o
equilíbrio natural entre vontade e poder. (Mas – recorde-se –, essa vontade é, para o
comum dos homens, a vontade geral, expressão do poder absoluto do corpo político e
fonte única de verdade e moralidade)”114
. Discordamos do primado do sentir que este
autor vê na questão da subjectividade rousseauniana, como já tivemos oportunidade de
mostrar.
Se o exercício da subjectividade rousseauniana parece estar mais presente nos
Discours, no Essai, no Émile, nas Confessions e nas Rêveries, pelo carácter
introspectivo comum a todos eles, não o será menos em relação ao Du Contrat
Social115
, considerada por grande parte da bibliografia existente a obra na qual
Rousseau apresenta uma perspectiva subjectivada da política, desde logo pela analogia
entre o soberano, a vontade e a verdade do coração.116
Quando apresenta os diferentes tipos de sujeito – o sujeito gramatical, o sujeito
político-legal, o sujeito filosófico e o sujeito como pessoa humana –, Mansfield117
refere
Rousseau apenas em relação ao sujeito político-legal, remetendo para a proposta
rousseauniana do contrato social, e no modo como este pretende salvaguardar e conciliar
a liberdade e responsabilidade do eu individual e do eu social. O mesmo autor refere Kant
como o filósofo que mais representa o sujeito filosófico, por querer saber como o homem
conhece, age e julga (questões magistralmente expostas nas suas três Críticas, para além
de outros textos). Não discordando do destaque dado a Kant, defendemos, no entanto, que
a subjectividade rousseauniana é sobejamente abrangente para dar conta de todos os
114 “[Rousseau] se decide a develar al mundo su subjetividade, su corazón. Establece así una nueva
metafísica del hombre, que fundamenta, en medio del racionalismo ilustrado, un humanismo que concede
la primacía al sentimento, único capaz de mover la voluntad. Porque la problematicidad de la vida
humana, para Rousseau, no es de índole intelectual, sino ética, de la voluntad: reencontrar el equilíbrio
natural entre voluntad y poder (Pero – recuérdese – esa voluntad es, para el comum de los hombres, la
voluntad general, expresión del poder absoluto del cuerpo político y fuente única de veracidade y
moralidad).” (LERMA JASSO, Héctor, La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 212). 115 Veja-se, por exemplo, a relação estabelecida entre Du Contrat Social e o Émile no seguinte artigo:
CIRIZA, Alejandra, “A propósito de Jean-Jacques Rousseau: Contrato, educación y subjectividad”, in La
Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx, Buenos Aires, Eudeba, 2000, pp.77-109. Disponível em
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20100609020833/4cap3.pdf (consultado em 3/6/2015). 116 Leia-se, a este propósito: RIBEIRO, Renato Janine, “Volonté générale et vérité du coeur chez
Rousseau”, in Jean-Jacques Rousseau, politique et nation: Actes du IIe Colloque international de
Montmorency (org. Robert THIÉRY), Paris, Honoré Champion, 2001, pp. 305-313. Disponível em
http://www.renatojanine.pro.br/LEstrangeira/rousseau.html (consultado em 1/05/2014). 117 MANSFIELD, Nick, Subjectivity: Theories of the Self from Freud to Haraway, 2000. Disponível em
https://www.amazon.com/Subjectivity-Theories-Self-Freud-Haraway/dp/0814756514/ref=sr,2000
(consultado em 04/07/2016).
51
sujeitos, no contexto literário, político-legal, filosófico e humano (para usarmos a
nomenclatura de Mansfield).
Na leitura da vasta obra do filósofo (e não será necessário ler todos os seus
textos; dois ou três bastariam para perceber a sua complexidade) em que a presença da
subjectividade rousseauniana é incontestável, muitos investigadores procuraram saber
se haverá algo que os ligue e, se sim, como simplificar e reduzir tão variados textos a
um conjunto firme de ideias presentes nas mais de, seguramente, 10.000 páginas
escritas pelo filósofo. É possível agrupar os seus textos segundo um critério rigoroso e
fiel ao seu autor? Em caso afirmativo, como? É a obra de Rousseau sistematizável? E
será esta sistematização desejável?
Os textos de Rousseau são assistemáticos, como bem constatou Melzer, que
também identificou o hiato e uma “distorção radical entre o pensamento [sistemático] de
Rousseau e a apresentação [não sistemática] que lhe dá”118
. A investigação sobre os
textos rousseaunianos implica uma recensão crítica acerca de conceitos-chave e uma
aferição cuidada de eventuais princípios filosóficos comuns aos seus textos e que
sustentem em uníssono a sua filosofia. Os variados estudos existentes sobre a obra de
Rousseau mostram que os leitores-investigadores não se resignam a perder-se em tão
densa, complexa e paradoxal escrita. Pelo contrário, mostram que é possível encontrar
um espírito sistemático na sua escrita, assistemática por natureza: “Rousseau é um autor
diferente, [projectando] uma escrita inovadora no terreno da filosofia no século XVIII
[que] traz a marca da liberdade na expressão daquilo que ele conserva arraigado em seu
interior. [Rousseau] concede primazia no momento em que edifica [as] suas ideias à
espontaneidade e simultaneamente mostra-se reticente quanto ao espírito de sistema,
embora não rejeite o que se pode chamar espírito sistemático”119
. Rousseau não é um
pensador de sistema, a sua escrita não é ostensivamente sistemática; pelo contrário,
chega a ser aparentemente desorganizada, caótica, repetitiva, circular, contraditória. A
sua escrita tem, porém, um espírito sistemático, dado que assenta em ideias-chave,
reiteradas ao longo dos seus textos, que, longe de fazer da sua filosofia uma filosofia
sistemática, lhe confere, no entanto, um contorno sistemático, que é preciso ter em
118 “[…] La pensée de Rousseau est en effet exceptionnellement systématique – mais ses écrits sont
exceptionnellement non-systématiques. Cette distorsion radicale entre la pensée de Rousseau et la
présentation qu’il en donne a constitué la principale source de toutes [les] erreurs
d’interprétation.” (MELZER, Arthur, La bonté naturelle de l’homme – essai sur le système de pensée de
Rousseau, op. cit., p. 25). 119 ESPÍNDOLA, Arlei de, “O lugar dos sentimentos na ética de Jean-Jacques Rousseau”, op. cit. p. 357.
52
conta. Foi esta convicção de que há efectivamente um teor sistemático na escrita
rousseauniana que levou muitos intérpretes a defender a possibilidade de uma sua
sistematização. O que distingue uns dos outros é o modo como a dão a ver.
Por exemplo, Custódia Martins encontra essa possibilidade de sistematização, na
relação que vê estabelecida entre a vida e a obra do filósofo: “Se em Rousseau há
sistema, esse sistema é a sua vida, não uma construção abstracta. A sua obra, e o
significado que lhe pertence, não pode ser dissociada do momento em que foi
produzida. A relação entre a obra e o contexto biográfico em que ela é produzida é
absolutamente essencial para uma compreensão integral e plena”120
. Defensora de uma
ligação estreita entre a vida e a obra de Rousseau, Custódia Martins faz um
levantamento exaustivo dos textos de Rousseau, dividindo-os em quatro períodos121
,
120 MARTINS, Custódia Alexandra Almeida, A Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Praxis, Teoria e
Fundamentos, op. cit., p. 119. A autora apresenta deste modo os critérios da sua divisão da bibliografia de
Rousseau (de acordo com a sua biografia): “[…] Optámos, assim, por organizá-la de acordo com um
triplo critério: primeiro, o de um respeito pela fase da vida em que os textos foram produzidos; segundo, o
da ordenação categorial desses textos, dentro de cada uma dessas diferentes fases; terceiro, dentro de cada
divisão categorial, a data do ano em que foi concluída a redacção do texto em causa. Dividimo-la, então,
em quatro grandes períodos, como dissemos. Um primeiro período, que designamos por precoce, que vai
de 1728 a 1748. Um segundo período, nostálgico, que vai de 1749 a 1756. Um terceiro período, de
esperança, que vai de 1756 a 1762. E, por fim, um quarto período, de desencanto, que vai de 1763 e
1778.” (ibid., p. 119). 121 Na identificação dos textos cujos títulos enuncia na sua ortografia original, a autora agrupa-os por
géneros literários e por temas (a saber: bailados, pastorais, teatro, poesias; romances; contos; apólogos;
escritos sobre Música, Língua e Teatro, textos sobre Literatura; escritos sobre Educação e Moral, escritos
sobre Botânica; textos e fragmentos autobiográficos; escritos políticos; textos científicos, texto
históricos), rigor que aqui dispensamos para abreviar a simples enunciação dos textos pela autora, de que
aqui nos servimos para fazer constatar a dimensão, a riqueza e a complexidade do universo literário-
filosófico de Rousseau. O primeiro período elencado, ao qual a autora chamou Período Precoce (1728-
1748) diria respeito às seguintes obras: Le Verger de Madame la Baronne de Warens (1738); Épitre à M.
Bordes (1741); Épitre à Monsieur Parisot (1742); Vers à la louange des religieux de la Grand-
Chartreuse (1740); L’Allée de Silvie (1747); Sur l’éloquence (1735); Idée de la méthode dans la
composition d’un livre (1745); Un ménage de la rue Saint-Denis (1735); Sur les femmes (1735); Essai sur les évènements importants dont les femmes ont été la cause sécrète (1745); Les Muses galantes (1745);
Les Fêtes de Ramire (1745); Iphis (1740); Arlequin amoureux malgré Lui (1747); La Découverte du
nouveau monde (1741); Les Prisonniers de guerre (1743); Narcisse ou L’Amant de lui-même (1740); Sur
Dieu (1735); Prière (I) (1738-1739); Prière (II) (1738 -1739); Mémoire remis le 19 Avril 1742 à M.
Boudet (1742); Mémoire présenté a Monsieur de Mably sur l’éducation de M. son fils (1740); Projet pour
l’éducation de Monsieur de Sainte-Marie (s/d); Cours de géographie (1738) ; Réponse au mémoire
anonyme (1738); Chronologie universelle ou Histoire générale des tems depuis la création du monde
jusques à présent (1738); Projet concernant de nouveaux signes pour la musique (1742); Dissertation sur
la musique moderne (1743) e Lettre sur l’opéra italien et français (1745). Naquele que apelidou Período
Nostálgico, compreendido entre 1749 e 1756, são recenseados os seguintes textos: Discours sur les
sciences et les arts (1750); Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes
(1754); Discours sur l’économie politique (1754); Sur les richesses, suivi de deux fragments sur le gout (1756); Dictionnaire de musique (1764); Lettre à M. Grimm, au sujet des remarques ajoutées à sa lettre
sur Omphale (1752); Lettre d’un symphoniste de l’académie royale de musique à ses camarades de
l’orchestre (1753); Lettre sur la musique française (1753); L’Origine de la mélodie (1755); Examen de
deux principes avancés par M. Rameau (1755); Traité de sphère (1751); Fragments d’une histoire du
Valais (1756); La mort de Lucrèce (1754); Épitre à M. de L’Étang, Vicaire de Marcoussis (1749);
Imitation libre d’une chanson italienne de Métastase (1750); Le Devin du village (1752); Conseils a un
53
dedicando reflexões a todos eles, sob a perspectiva do que poderíamos denominar de
uma subjectividade literário-biográfico-filosófica.
Convenhamos que o próprio autor dá azo à leitura que não pode deixar de
associar a obra à sua vida, sobretudo nos textos das Confessions e das Rêveries. Sem
pretender fazer uma análise psicológica do autor, pois tal propósito está absolutamente
fora do âmbito da reflexão a que nos propomos, não podemos, no entanto, fechar os
olhos ao filósofo que insiste em dar a ver-se como homem, e à obra que também
procura dar a ver a sua vida. Os conceitos filosóficos continuam lá, mas sob o registo de
um diário. Por exemplo, esses textos, principalmente o das Confessions, mostram como
a felicidade é um tema essencial da sua obra, aqui na sua versão oposta, dando a ver
como as diferentes relações (que manteve com a esmagadora maioria daqueles com
quem privou) foram quase todas infelizes. O modo como se refere aos autores do
empreendimento comum que foi o Dictionnaire Encyclopédique, Diderot e D’Alembert,
é apenas um dos muitos exemplos de que não foi feliz nas suas relações. Entre outros,
os bilhetes trocados entre Rousseau e Diderot, transcritos na segunda parte das
Confessions, mostram bem a animosidade entre eles. Vale a pena transcrever parte
desses bilhetes, não tanto pela necessidade científica do investigador, mas mais pela
perplexidade que o modo invulgar e sarcástico com que os filósofos se tratam por
Curé (1749); Discours sur cette question: quelle est la vertu la plus nécessaire au héros (1751); Oraison
funèbre de S. A. S. Monseigneur le Duc D’Orléans (1752); Le Persiffleur (1749); Fragment biographique
(1755-56) e Fiction ou morceau allégorique sur la révélation (1756). No que considera ser o Período de
Esperança, de 1756 a 1762, são apresentados os seguintes textos: Lettre de J.J. Rousseau a M. de Voltaire
(1756); Lettres morales (1758); Notes sur «De L’Esprit» (1758); Émile ou De l’éducation (1761); Extrait
du projet de paix perpétuelle (1758-59); Jugement sur le projet de paix perpétuelle (1758); Que l’état de
guerre naît de l’état social (1758); Polysynodie de L’Abbé de Saint-Pierre (1758); Jugement sur la
polysynodie (1758); Du Contrat Social ou Principes du droit politique (1762); La Reine fantasque (1755-56); Les Amours de Claire et de Marcellin (1760); Le Petit savoyard ou La Vie de Claude Noyer (1756);
Le Lévite D’Éphraïm (1762), Pygmalion, scène lyrique (1762); Lettres à Sara (1757); Pensées d’un esprit
droit et sentiments d’un cœur vertueux (1757-58); Remarques sur les lettres sur les anglais et les français
de Beat de Muralt (1756-57); Remarques lexicologiques (1761); Prononciation (1761); Julie, ou La
Nouvelle Héloïse (1760); Mon portrait (1762); Art de jouir et autres fragments (1758-59); Lettres à
Malesherbes (1762); Essai sur l’origine des langues (1761) e Lettre à M. D’Alembert (1758). Finalmente,
no período de 1763 a 1778, que denominou Período de Desencanto, são referidos os seguintes textos:
Jean Jacques Rousseau, citoyen de Genève, a Christophe De Beaumont (1763); Émile et Sophie, ou Les
solitaires (1768); Lettre à M. de Franquières (1769); Lettres sur la botanique (1773); Histoire du
gouvernement de Genève (1764); Lettres écrites de la montagne (1764); Projet et constitution pour la
Corse (1765); Considérations sur le gouvernement de Pologne (1771); Vision de Pierre de la Montagne,
dit le voyant (1765); Les Consolations des misères de ma vie (1770); Les Confessions de J.J. Rousseau (1770); Déclaration destinée à un journal (1766); Note mémorative sur la maladie et la mort de M.
Deschamps (1768); Sentiment du public sur mon compte dans les divers états qui le composent (1768);
Quiconque sans urgente nécessité (1770); Discours prononcé ou Projeté pour introduire la lecture des
confessions (1770); Déclaration relative à différentes réimpressions de ses ouvrages (1774); Rousseau
juge de Jean Jaques – Dialogues (1776) e Les Rêveries du promeneur solitaire (1778). Cf. ibid., pp. 116-
254.
54
escrito desperta ao leitor, seja este ou não investigador. A propósito da ida de Madame
d’Épinay a Genebra, por se encontrar doente, Diderot propõe deste modo que Rousseau
a acompanhe:
“Encontrareis na vida outra ocasião para lhe provardes o vosso reconhecimento? Madame
d’Épinay parte para uma terra onde se encontrará como caída das nuvens. Encontra-se doente: necessitará
de divertimento e distracção. O Inverno! Vede, meu amigo. O estorvo da vossa saúde poderá ser mais
forte do que julgo. Estais, porém, hoje pior do que há um mês, ou do que estareis no começo da
Primavera? Daqui a três meses, faríeis a viagem mais comodamente do que hoje? Por mim, confesso que,
se não pudesse suportar a sege, pegaria num cajado e segui-la-ia. E, depois, não temeis que interpretem
mal o vosso procedimento? Sereis suspeito ou de ingratidão, ou de qualquer outro motivo secreto. Sei
bem que, no que quer que façais, tereis sempre o testemunho da vossa consciência, mas este testemunho
bastará, e será lícito desprezar até certo ponto o dos outros homens? De resto, meu amigo, é para me
desobrigar convosco e comigo que vos escrevo este bilhete. Se vos desagradar, lançai-o ao fogo, e que se
não volte a falar nele, como se nunca houvesse sido escrito. Saúdo-vos, amo-vos e abraço-vos.”122
Rousseau responde em tom irritado e com aparente maior animosidade:
“Meu querido amigo, não podeis saber nem a força das obrigações que posso ter com Madame
d’Épinay, nem a que ponto estas me têm sujeito, nem se ela tem realmente necessidade de mim na sua
viagem, nem se deseja que a acompanhe, nem se me é possível fazê-lo, nem as razões que eu possa ter
para me abster. […] Receais que interpretem mal a minha conduta; mas eu desafio um coração como o
vosso a que ouse pensar mal do meu. Talvez os outros falassem melhor de mim, se eu me parecesse mais
com eles. Que Deus me preserve de me fazer aprovar por eles! Que os maus me espiem e interpretem:
Rousseau não nasceu para os temer, nem Diderot para os escutar. Quereis, se o vosso bilhete me
desagradou, que o lance ao fogo, que não se volte a falar nele! Julgais que se esquece assim o que vem de
vós? Meu caro, ligais tanto também às minhas lágrimas, nos desgostos que me dais, como à minha vida e
à minha saúde nos cuidados que me exortais a tomar. Se pudésseis corrigir-vos disto, a vossa amizade ser-
me-ia mais doce, e eu teria menos a reclamar.”123
122 “Trouverez-vous une autre occasion dans votre vie de lui témoigner votre reconnaissance? Elle va
dans un pays où elle sera comme tombée des nues. Elle est malade: elle aura besoin d’amusement et de
distraction. L’hiver! Voyez, mon ami. L’objection de votre santé peut être beaucoup plus forte que je ne
la crois. Mais êtes-vous plus mal aujourd’hui que vous ne l’étiez il y a un mois, et que vous ne le serez au
commencement du printemps? Ferez-vous dans trois mois d’ici le voyage plus commodément
qu’aujourd’hui ? Pour moi, je vous avoue que si je ne pouvais supporter la chaise, je prendrais un bâton et
je la suivrais. Et puis ne craignez-vous point qu’on ne mésinterprète votre conduite? On vous
soupçonnera ou d’ingratitude, ou d’un autre motif secret. Je sais bien que, quoi que vous fassiez, vous
aurez toujours pour vous le témoignage de votre conscience, mais ce témoignage suffit-il seul, et est-il
permis de négliger jusqu’à certain point celui des autres hommes? Au reste, mon ami, c’est pour
m’acquitter avec vous et avec moi que je vous écris ce billet. S’il vous déplait, jetez-le au feu, et qu’il n’en soit non plus question que s’il n’eût jamais été écrit. Je vous salue, vous aime et vous embrasse.” (C,
livre IX, OC I, p. 476). 123 “Mon cher ami, vous ne pouvez savoir ni la force des obligations que je puis avoir à Mme d’Épinay, ni
jusqu’à quel point elles me lient, ni si elle a réellement besoin de moi dans son voyage, ni si elle désire
que je l’accompagne, ni s’il m’est possible de le faire, ni les raisons que je puis avoir de m’en abstenir.
[…] Vous craignez qu’on n’interprète mal ma conduite; mais je défie un cœur comme le vôtre d’oser mal
55
Não admira, portanto, que Rousseau seja por vezes considerado um escritor,
mais do que um filósofo. Mas é precisamente aqui que pretendemos marcar e defender o
nosso ponto: Rousseau é, antes de mais, um filósofo, quiçá um filósofo-escritor, mas
nunca um escritor-filósofo.
Catherine Kerbrat-Orecchioni124
identifica o núcleo da subjectividade na
linguagem como o conjunto dos traços de inscrição do sujeito que fala no enunciado,
ilustrando esta concepção com vários exemplos de autores e textos, ao longo da sua
obra. Ora, a obra de Rousseau constitui indubitavelmente uma fonte rica para este tipo
de investigação, porquanto, em todos os seus textos, estão presentes as características do
emissor de que fala a autora, nomeadamente a reflexividade (o emissor que faz de si o
primeiro receptor). Nas Rêveries, chega a afirmar que escreve mais para si do que para
os outros. Os muitos e diversos estudos, quer partam de uma perspectiva da unidade da
obra, ou de uma sua compreensão divisória, acabam por procurar, de algum modo,
compreender os desdobramentos do seu “eu” nos diferentes textos. Vejamos, a título de
exemplo, como David Gauthier refere construções de diferentes selfs, nas Confessions e
nas Rêveries, textos considerados próximos entre si: “[…] na primeira parte das
Confissões, e na última Promenade das Rêveries, temos o relato de Rousseau, pela sua
própria pessoa, de uma forma muito diferente, quer do Émile, quer do cidadão. E é este
self que eu quero considerar aqui. Tal como Émile e o cidadão, este self é também uma
construção […]. E vou perguntar se, ao construir Jean-Jacques, Rousseau considera ter
encontrado uma terceira via de fuga da dependência servil que constitui a sociedade
moderna”125
.
Tratando-se de uma subjectividade literário-filosófica, que compreensão
hermenêutica é possível e desejável fazer da obra de Rousseau? Na resposta a esta
penser du mien. D’autres, peut-être, parleraient mieux de moi si je leur ressemblais davantage. Que Dieu
me préserve de me faire approuver d’eux! Que les méchants m’épient et m’interprètent: Rousseau n’est
pas fait pour les craindre ni Diderot pour les écouter. Si votre billet m’a déplu, vous voulez que je le jette
au feu, et qu’il n’en soit plus question! Pensez-vous qu’on oublie ainsi ce qui vient de vous? Mon cher,
vous faites aussi bon marché de mes larmes, dans les peines que vous me donnez, que de ma vie et de ma
santé dans les soins que vous m’exhortez à prendre. Si vous pouviez vous corriger de cela, votre amitié
m’en serait plus douce, et j’en deviendrais moins à plaindre.” (ibid., pp. 477-478). 124 Cf. KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine, L’énonciation: De la subjectivité dans le langage, 4e
édition, Paris, Armand Colin, 2009. 125 “[…] in the first part of the Confessions, and in the last Promenade of the Rêveries, we have
Rousseau’s account, in his own person, of a very different from either Emile or the citizen. And it is that
self whom I want consider here. Like Emile and the citizen, this self is also a construction, and so I shall
speak of making Jean-Jacques. And I shall ask whether in making Jean-Jacques, Rousseau claims to find
a third way of escape from the slavish dependence that constitutes modern society.” (GAUTHIER, David,
“Making Jean-Jacques”, in AAVV, Jean-Jacques Rousseau and the Sources of the Self, op. cit., p. 3).
56
questão, não podemos deixar de destacar algumas referências e influências que
recebemos para a prática da nossa exegese hermenêutica dos textos rousseaunianos e
que consideramos ter relevância no modo como vemos neles a questão da
subjectividade universal.
Ricoeur define a hermenêutica como “a teoria das operações da compreensão na
sua relação com a interpretação dos textos”126
. Quando dizemos que é preciso ler
Rousseau com a razão e com o coração, não podemos negligenciar as operações de
compreensão ocorridas no leitor que sustenta uma determinada interpretação. Não se
trata de uma leitura ingénua, muito menos passiva, menos ainda aleatória e tão pouco
anárquica.127
Pelo contrário, pretendemos captar o sentido interno e unificante dos
textos que tomámos para análise. Valerá a pena retomar algumas notas da concepção
hermenêutica de Schleiermacher128
(que, curiosamente, alguns autores associam ao
kantismo129
) como suporte metodológico para a compreensão dos textos de Rousseau.
Nos Akademische Reden (1829) são referidos os filólogos Friedrich Ast e Friedrich
August Wolf; em relação ao primeiro, Schleiermacher destaca a referência ao círculo
hermenêutico (segundo o qual, a marca do espírito da totalidade de uma obra está nas
suas partes individuais, a parte é compreendida a partir do todo e o todo a partir da
126 RICOEUR, Paul, Du texte à l’action, Paris, Editions du Seuil, 1986, p. 75. 127 Leia-se a perspectiva de Tanguy L’Aminot a favor de uma leitura livre e “solta” dos textos de
Rousseau: “uma leitura que não parta de qualquer pressuposto nem pretenda fazer reduzir a inquietude e a
complexidade de um pensamento que permanece subversivo e que os filósofos nunca conseguirão
controlar.” Cf. L’AMINOT, Tanguy, “Pour une lecture anarchiste de Rousseau”. Disponível em
http://rousseaustudies.free.fr/articletanguylectureanarchisteJJRpdf (consultado em 7/12/2015). 128 Segundo o próprio, a tarefa da interpretação foi tomada anteriormente a si segundo duas perspectivas que pretenderá unir no seu projecto de uma hermenêutica geral: de um lado, uma filologia de carácter
instrumental dos textos clássicos, sobretudo, da antiguidade greco-latina e, por outro, a exegese dos
Textos Sagrados. O objectivo do autor é descortinar as operações comuns a esses dois ramos para uma
hermenêutica geral, tal como o próprio esclarece. Cf. SCHLEIERMACHER, Friedrich, Akademische
Reden (1829), Tr. Fr., Herméneutique, trad. e introd. Marianna Simon, pref. Jean Starobinski, Genève,
Labor et Fides, 1987, 1ºD, §4, p. 175. De referir que o autor se dedicou à tradução e à interpretação de
textos bíblicos e de textos platónicos, adoptando a tradução romântica, isto é, que “não se deve contentar
em transpor as palavras de uma língua para outra, mas ter como intenção essencial realizar a transferência
do espírito da obra na sua integridade.” (GUSDORF, Georges, Les origines de l’herméneutique, Paris,
Payot, 1988, p. 310). Schleiermacher deixa relevantes apontamentos, não tendo publicado qualquer obra. 129 A concepção da hermenêutica de Schleiermacher desenvolvida nos Discursos Académicos relativos
aos trabalhos de Wolf e Ast é, segundo Gueroult, “visivelmente inspirada na filosofia transcendental” (GUEROULT, Martial, Histoire de l’histoire de la philosophie, Paris Aubier, 1988, vol. II, §261, p. 484).
Ainda que sem referência directa à hermenêutica de Schleiermacher, também Ricoeur defende que o
kantismo, segundo uma determinada perspectiva, “constitui o horizonte filosófico mais próximo da
hermenêutica”, e que “é num clima kantiano que pode ser formado o projecto de relacionar as regras da
interpretação, não à diversidade dos textos e das coisas ditas nesses textos, mas à operação central que
unifica o diverso da interpretação.” (RICOEUR, Paul, Du texte à l’action, op. cit., pp. 78-79).
57
harmonia interna das partes130
) e ao conceito de compreensão como reprodução e
recriação e a referência aos três níveis de explicação (a hermenêutica de letra, a
hermenêutica do sentido e a hermenêutica do espírito131
); em relação ao segundo, que o
filósofo alemão considera mais completo do que o anterior, destaca o acréscimo da
“habilidade do estilo e a arte da compreensão”132
. Todavia, o autor critica os limites de
ambos: “um porque fala unicamente de escritores que trata de compreender”, limitando
o exercício hermenêutico ao texto escrito, fazendo excluir o texto oral, “o outro porque
limita o estranho [que é mister penetrar] ao que é redigido numa língua estrangeira 133
,
domínio que Schleiermacher considera restrito por não abarcar toda e qualquer língua,
incluindo a materna. O contributo de Schleiermacher recebe inegáveis influências do
romantismo e é para nós importante, porquanto este autor vê a hermenêutica como
sendo compatível, ora com um conjunto de regras e de mecanismos adoptados para a
compreensão, ora, sobretudo, com uma forma de arte134
, concepção que consideramos ir
ao encontro da exegese hermenêutica que é preciso e desejável fazer dos textos de
Rousseau. Ou seja, ler os textos de Rousseau e compreender a questão da subjectividade
universal só nos parece possível se, para além das tarefas inerentes ao trabalho de leitura
(anotações de comparação entre os textos, fichas de leitura, tradução, entre outras),
acrescentarmos a tentativa da captação do sentido da obra como um todo, a partir do
qual obteremos, depois, os seus detalhes, concedendo-lhes a consistência de que
necessitam e, para isso, não há dúvida que é preciso alguma arte. É verdade que
Schleiermacher refere uma “certeza divinatória que consiste em o intérprete se meter
quanto possível no estado de espírito total do escritor”135
e que, no limite, o leitor
deverá “compreender o autor melhor do que ele se deu conta de si mesmo”136
.
130 No Discurso pronunciado em Outubro de 1829 (2º D) é referida a ideia de Ast segundo a qual tudo o
que é singular não pode ser compreendido senão pelo todo, ideia que Schleiermacher desenvolvera já no
final do Discurso pronunciado em Agosto de 1829 (1º D). 131 SCHLEIERMACHER, Friedrich, Akademische Reden, Tr. Fr. op. cit., 2º D, §5, p. 207. 132 Ibid., 1º D, § 8, p. 184. 133 Cf. ibid., pp. 177-178. O interesse pela hermenêutica de Schleiermacher, que nos levou à leitura dos
seus textos, bem como o interesse pelas suas divergências em relação a Ast e a Wolf são largamente
devedores da nossa leitura de “Dois percursos de Schleiermacher”, in PALMER, Richard, Hermenêutica,
trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 83-89. 134 É esse o mérito que, segundo Gusford, Kimmerle lhe atribui: o de ter sido “o primeiro na história da hermenêutica a dirigir a atenção sobre o fenómeno da compreensão no seu conjunto, procurando
procedimentos regulares.” (GUSDORF, Georges, Les origines de l’herméneutique, op. cit., 320). Foi
Kimmerle quem examinou os documentos não publicados de Schleiermacher e reuniu por ordem
cronológica todos os seus escritos. 135 SCHLEIERMACHER, Friedrich, Akademische Reden, Tr. Fr. op. cit., 1º D, §7, p. 182. 136 Ibid., p. 189.
58
A influência assumida de Schleiermacher na nossa leitura dos textos de
Rousseau deve-se à sua ampla interpretação da própria hermenêutica, que não vemos
reduzida a um psicologismo hermenêutico, rótulo que lhe foi aplicado. Pelo contrário, a
visão que recebemos do hermeneuta é a de uma compreensão global do processo
hermenêutico que procura a primazia da compreensão sobre a explicação e que abre a
possibilidade de criar ligações e encadeamentos de ideias a partir dos textos que se
pretendem compreender, sem se ater apenas à fixação sobre a palavra escrita.
À excepção dos estudiosos que remetem a sua investigação para um texto
particular de Rousseau, circunscrevendo-a a uma análise pontual de determinado
conceito, todos os outros investigadores que se aventuram em mais do que um dos seus
escritos acabam por captar um ou mais sentidos comuns nos seus aparentemente tão
diferentes textos. No nosso caso, a temática da questão da subjectividade universal
surge como resultado de uma aferição hermenêutica de traços comuns aos seus textos,
sem que o autor enuncie ou refira uma única vez a questão da nossa investigação. Nesse
sentido, assumimos a perspectiva schleiermacheriana da compreensão do texto como
arte e como processo criativo, apesar de considerarmos abusiva a ideia de uma
compreensão “divinatória” acima do próprio autor. Na verdade, não pretendemos
compreender melhor Rousseau do que ele mesmo. Menos ainda temos a pretensão de
ficar acima dele. Intentamos tão-só respeitar o facto de Rousseau pretender ir além do
seu tempo. Rousseau exige ao leitor que o transporte para a sua vivência e para a época
em que o leitor vive e, sob esse ponto de vista, é exigido ao leitor que compreenda mais
além a sua obra, fazendo-a extrapolar o Século das Luzes. É preciso ler os seus textos,
acompanhando-o, respirando o seu carácter, acedendo à sua intenção, no exercício de
subjectividade para o qual o autor incita constantemente. A ideia da compreensão como
reprodução (ideia central da teoria hermenêutica do romantismo) assume em Rousseau
um carácter específico nesta arte de fazer jus ao deus Hermes. O filósofo almeja que o
compreendam na audácia imaginável de um eu que pretende ser o outro, numa singular
simpatia e comunhão entre o autor e o leitor, entre o interpretado e o intérprete. Porém,
não se trata de uma relação de identificação, ou sequer de reprodução; Rousseau exige a
partilha cúmplice com o leitor para uma efectiva compreensão dos seus textos.
Gadamer, por exemplo, não utiliza a palavra identificação para ilustrar a relação
entre o autor e o leitor, preferindo cautelosamente a expressão “operação de
59
equiparação”137
; já Gusdorf defenderá, na linha schleiermacheriana, que “o autor
obedece ao impulso criador que lhe permitiu fazer a obra, o seu movimento foi de
dentro para fora engendrando a manifestação [enquanto que] o intérprete, confrontado
com a obra manifesta, procede de fora para dentro, da manifestação à intenção”138
. Nas
suas múltiplas interpelações ao leitor, Rousseau quer ainda mais: que o leitor proceda ao
movimento subjectivo de introspecção, a partir da leitura dos seus textos, e que encontre
dentro de si o que Rousseau considera ter oferecido para fora: as ideias e sentimentos
nos seus textos.
Vimos como a literatura e a filosofia de Rousseau se deixam fundir. Empreender
uma leitura dos textos rousseaunianos é ainda mais difícil porquanto o núcleo fulcral e
comum aos mesmos é a própria subjectividade, fazendo com que o eu do leitor tenha de
ir ao encontro da “obscuridade do tu”139
(para usar a expressão de Gadamer), uma das
maiores dificuldades, não só do exercício hermenêutico, mas da psicologia, da história,
do homem. A subjectividade de Rousseau é literária sem que deixe de ser filosófica.
Mas também é filosófica sem deixar de ser literária. E nesta inegável dificuldade, os
ensinamentos de Schleiermacher ajudam-nos a encontrar o caminho.
Procuramos, assim, sustentar a questão filosófica da subjectividade universal
como a que mais confere coerência e unidade à sua obra, e na qual estão
inequivocamente reunidas a subjectividade filosófica e a subjectividade literária:
“Escrevi sobre diversos assuntos, mas sempre segundo os mesmos princípios: sempre a mesma
moral, a mesma crença, as mesmas máximas, e, se se quiser, as mesmas opiniões. No entanto, foram
feitos juízos contraditórios sobre os meus livros, ou, antes, sobre o autor de meus livros, porque fui
julgado pelos assuntos de que tratei muito mais do que pelos meus sentimentos.”140
A subjectividade filosófico-literária de Rousseau exige ao leitor que o leia,
rousseauniando, i.e., pensando e sentindo, sentindo e pensando o homem, a sociedade, a
vida, observando com o autor os efeitos nefastos das luzes do seu tempo no Discours de
50, debruçando-se com o autor sobre si mesmo, a ponto de ver o seu estado natural e a
genealogia do afastamento deste estado primordial no Discours de 55; acompanhando a
origem e a evolução da língua, no Essai; despertando para os valores morais e religiosos,
no Émile; compreendendo os princípios do direito político e reivindicando uma justa
137 GADAMER, Hans-Georg, Wahrheit und Methode (1960), Tr. Esp. Verdad y método, trad. Ana
Aparício e Rafael de Agapito, Salamanca, Ed Sígueme, 1977, p. 245. 138 GUSDORF, Georges, Les origines de l’herméneutique, op. cit., p. 328. 139 GADAMER, Hans-Georg, Wahrheit und Methode, Tr. Esp. op. cit. p. 245. 140 Veja-se a citação original que serviu de entrada ao presente sub-capítulo.
60
organização política, na qual ninguém está acima da lei, no Du Contrat Social;
vivenciando os episódios de uma vida, nas Confessions; caminhando, lado a lado com o
autor, nas Rêveries, usufruindo do sentimento da simples existência. A leitura deve, pois,
ser pausada e lenta, em contínuo gerúndio.
É verdade que o universo semântico de Rousseau é específico, como nos outros
filósofos. Mas o modo inimitável como expõe, confessa, narra, imagina, diz e desdiz, não
encaixa em nenhuma corrente filosófica partilhada com outros filósofos. Não há sequer,
não poderia haver, uma corrente filosófica rousseauniana ou rousseauista propriamente
dita. Não há nem houve rousseaunianos ou neo-rousseaunianos, como, por exemplo, há
e houve kantianos e neo-kantianos. O que há sobejamente são diversas equipas
interdisciplinares de estudiosos do pensamento de Rousseau, espalhados por todo o
mundo, que procuram compreender a sua tão vasta e complexa obra sem que, até hoje,
investigador algum tivesse conseguido uma compreensão efectiva e absoluta do
conjunto de todas as suas obras, entendidas como um sistema filosófico. Mas Rousseau
não quer também ser sistematizado ou rotulado e integrado numa determinada fase da
História da Filosofia. Rousseau quer o leitor a deambular, acompanhando-o nos
diferentes rumos que o seu “eu” tomou, ora reflectindo, ora projectando, ora
devaneando, sempre pensando e sentindo. O nosso propósito não é, pois, sistematizar o
pensamento de Rousseau, não conseguiríamos fazê-lo e, se o tentássemos, deixaríamos
de ser fiéis ao carácter próprio da escrita rousseauniana. No entanto, pretendemos dar a
ver o espírito sistemático da sua escrita assistemática, no que concerne à temática da
subjectividade universal e ao exercício da indagação pelo homem. Esse exercício de
demanda que consiste no mais útil, difícil e menos avançado estudo de todos os tempos:
“O mais útil e menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem
e ouso dizer que a única inscrição no Templo de Delfos contém um preceito mais importante e mais
difícil que todos os grandes livros dos moralistas.”141
Na sua multifacetada reflexão, são sempre os homens e a possibilidade da sua
felicidade que lhe interessam. Rousseau aposta, assim, toda uma vida na demanda pela
questão universal e intemporal, que atravessa séculos e continentes, uma questão para
além de todos os tempos e de todos os lugares.
141 “La plus utile et la moins avancée de toutes les connaissances humaines me paraître être celle de
l’homme et j’ose dire que la seule inscrit du Temple de Delphes contenait un précepte plus importante et
plus difficile que tous les gros livres des moralistes.” (D2, préface, OC III, p. 122)
61
I.3. Uma questão para além dos tempos e dos lugares
“Notre véritable étude est celle de la condition humaine.”
(ROUSSEAU, J.-J., Émile ou de l’éducation, livre I, OC IV, 1969, p. 252)
A questão da subjectividade universal rousseauniana reúne as características que
as boas questões da filosofia têm: universalidade, consistência, pertinência, interesse,
intemporalidade, autonomia, abrangência, polémica, radicalidade, profundidade. E só as
muito boas questões de fundo atravessam os tempos e os lugares.
Porque é que a questão da subjectividade universal rousseauniana está para além
dos tempos e dos lugares? Destacamos quatro principais ordens de razões. Em primeiro
lugar, porque o cerne da questão em análise encontra-se na demanda pela
natureza/condição do homem. Tratando-se de uma demanda universal, que tem
subsistido e persistido ao longo da evolução das sociedades, muito provavelmente,
subsistirá e persistirá enquanto houver homens e tempos e lugares de história. Em
segundo lugar, porque a questão acarreta uma determinada visão da história – a
responsabilidade humana pela mesma –, dirigindo-se, portanto, a todos os homens,
independentemente das suas circunstâncias históricas ou geográficas. Em terceiro lugar,
porque a subjectividade universal de Rousseau salvaguarda uma dimensão humana
extra-temporal e fora-de-lugar, que os homens não podem dispensar, em tempo algum,
sob pena de deixarem de ser efectivamente homens (humanos). Finalmente, em quarto
lugar, porque a questão da subjectividade universal rousseauniana implica também o
vivificar do sentimento de existência, imprescindível a todos os seres humanos (de
qualquer região e de qualquer tempo histórico).
A constatação da primeira razão enunciada é facilmente extraída dos textos de
Rousseau e sobejamente registada na bibliografia existente. Concordamos, pois, com
Derathé, quando afirma que “Rousseau leva ao estudo do homem todas as questões que
se coloca”142
. De modo mais ou menos evidente, os textos de Rousseau encontram-se
sempre ligados à natureza humana (identidade originária), à sua condição (viver em
sociedade é inevitável) e à consequente indagação pelo melhor modo de viver essa
condição social (sob o ponto de vista político, moral, educacional, no espaço privado e
no espaço público, conciliando o eu individual e o eu colectivo).
142 DERATHÉ, Robert, “L’homme selon Rousseau”, in AAVV, Pensée de Rousseau, Paris, Éditions du
Seuil, 1984, p. 109.
62
Rousseau vê no próprio homem o objecto a ser estudado por si e em si próprio,
debruçando-se sobre a natureza humana, num duplo e aparentemente contraditório
movimento que possibilitará o encontro do eu e do outro. Na árdua tarefa de enfrentar
uma questão que diz respeito aos homens do passado, do presente e aos que ainda não
nasceram, o filósofo confere um volte-face às reflexões que o antecederam. Segundo
Manuel João Matos, as reflexões antecedentes sobre a origem e a história do homem
partem “dos homens e não do Homem, do facto e não do direito, da história e não da
lógica da história, e então cai-se na ilusão comum dos filósofos, precipitando-se no
fluxo do tempo social, e reproduzindo a historialização da origem: pensa-se na origem e
reporta-se a génese”143
. Com efeito, a Rousseau é o homem que interessa e não os
homens desta ou daquela região:
“Oh Homem, qualquer que seja a tua região, quaisquer que sejam as tuas opiniões, escuta; eis
aqui está a tua história tal como eu julguei lê-la, não nos livros dos teus semelhantes, que são mentirosos,
mas na natureza, que nunca mente.”144
Nesta demanda pela natureza e genealogia da história humana, Rousseau
pretende recorrer às conjecturas, como sendo “os únicos meios que se pode ter para
descobrir a verdade.” (D2, I, p. 160). No prefácio ao Discours de 55, o filósofo anuncia
o seu interesse em “afastar os factos, porque não ligam à questão” (D2, I, p. 132). A
genealogia da descrição conjectural da passagem do homem natural ao homem civil não
surge da história dos factos, mas também não resulta de um esforço especulativo da
razão. Rousseau oferece uma genealogia conjectural145
e é recorrendo à imaginação,
mais do que à memória, que pretenderá dar a conhecer ao homem a sua própria natureza
originária: “Aqui está a tua história, tal como eu julguei lê-la […] Como tu mudaste o
que eras!” (D2, I, p. 133). Assim, se a passagem do estado natural ao estado de
civilização é o marco mais significativo da história, será a descrição do estado de
natureza a mais crucial para a compreensão da natureza do homem. O estado de
natureza é, contudo, hipotético, talvez até nem sequer tenha existido (D2, préface,
p.123), necessita do recurso da imaginação, implica ser observado, pensado e sentido,
no recolhimento do homem consigo mesmo.
143 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit., p. 129. 144 “O Homme, de quelque Contrée que tu sois, quelles que soient tes opinions, écoute; voici ton histoire
telle que j’ai cru la lire, non dans les livres de tes semblables qui sont menteurs, mais dans la nature qui ne
ment jamais.” (D2, première partie, OC III, p. 133). 145 Cf. as múltiplas passagens onde o filósofo refere esta reflexão conjectural no Discours de 55 (ibid.,
préface: pp. 123-127; première partie: pp. 132-133, 145, 160, 162-163; seconde partie: p. 183).
63
O self do homem encontra-se originariamente no estado de natureza, um estado
hipotético-sensitivo-imaginário, que resulta de um árduo processo de indagação
subjectivo-introspectiva e é fruto de um recurso ficcional e conjectural, que é preciso,
não só ver (pensar e sentir), como não perder de vista, a fim de possibilitar a devida
compreensão dos fundamentos da sociedade. Sociedade que é fruto da obra humana,
não da natureza nem de Deus. Pese embora a importância de outras consequências da
proposta rousseauniana da sociedade como criação humana, a maior e, por isso, a que
queremos aqui referir e, mais tarde, explorar é a da responsabilidade humana. Para
Rousseau, a história inicia-se efectivamente com a passagem do estado de natureza para
o estado de civilização, i.e., a inauguração da história dá-se no surgimento da sociedade,
obra do homem, o que levará a uma determinada visão da própria história, a segunda
ordem de razões para a justificação da ideia que pretendemos defender neste sub-
capítulo.
Desenvolvida sobretudo nos Discours, a relação estado de natureza-história é
uma dialéctica relativamente comum na história da filosofia contemporânea, mas
assume singular pertinência num autor como Rousseau, cuja ideia de estado de natureza
e o que este implica configuram uma espécie de a priori antropológico, a que tem de se
voltar, contra a pressão corruptora da história. O homem natural não faz história, não
reconhece qualquer tempo ou lugar, é o que é com a Natureza da qual faz parte, não
sabe o que é o bem, nem o mal, não tem quaisquer responsabilidades, nem consigo, nem
com os outros.
A tese da responsabilidade humana está ligada ao modo como Rousseau vê a
questão do mal, a sua origem social e manifestação na história, como resultado da
perfectibilidade humana. Ao contrário de Kant, Rousseau não se preocupou com as
catástrofes da natureza nem redigiu nenhum texto sobre o terramoto de Lisboa. Para o
filósofo, as catástrofes naturais são apenas circunstâncias exteriores (nem boas, nem
más em si146
) que influenciaram a passagem do homem natural para o homem civilizado
e o seu desenvolvimento. No Discours de 55 faz-se uma alusão à possibilidade de ter
eventualmente havido algum vulcão a expelir matérias metálicas, identificado como a
circunstância exterior que terá levado o homem “à ideia de imitar essa operação da
146 “Les associations d’hommes sont en grande partie l’ouvrage des accidents de la nature; les déluges
particuliers, les mers extravasées, les éruptions des volcans, les grands tremblements de terre, les
incendies allumés […] tout ce qui dût effrayer et disperser les sauvages habitants d’un pays dût ensuite les
rassembler pour réparer en commun les pertes communes.” (EL, IX, OC V, p. 402).
64
natureza” (D2, II, p. 172) e, portanto, à descoberta do ferro e da metalurgia. O mal só
surge nas mãos dos homens (É, Manuscrit Favre, p. 58) e resulta das faculdades da
perfectibilidade – a razão e a liberdade. Seria muito difícil, mesmo impossível, evitar o
decurso da história e a acção da perfectibilidade. Contudo, a história dos homens não
está condenada a uma história do mal. Como nos diz Starobinski, o homem que
Rousseau observa e descreve não está naturalmente condenado a viver no mal; para
Rousseau, não há nada que impeça o homem de refazer ou desfazer a história com vista
a encontrar a “transparência perdida”. Não é o homem nem o seu ser que estão
comprometidos, “mas apenas a sua situação histórica”147
. Por isso, Rousseau insistirá
em saber de que modo pode a história dos homens desenvolver-se, afastando-se dos
abusos nefastos do mal.
A responsabilidade humana pela sua História é, porventura, um dos maiores
contributos de Rousseau, a que não é alheia a sua inovadora concepção do homem, que
deixou de ser considerado um animal racional, social ou político, para passar a ser
sobretudo um animal de história, livre e perfectível, que jamais regressará ao seu estado
de natureza, mas de cuja compreensão se deverá fazer acompanhar. A história
desenrola-se no espaço e no tempo por meio da perfectibilidade e das faculdades da
razão e da liberdade, sem qualquer intervenção divina. Por isso, é indeterminada, sem
qualquer pré-destinação, e será sempre resultado da acção dos homens. Rousseau alerta
que, no seu eventual desenvolvimento no sentido do (ab)uso do mal, a história
corresponderá sempre à ocorrência do fenómeno de desnaturalização absoluta do
homem, por meio de um progresso inconsciente de inúmeras e ocasionais conquistas,
errantes e inconsequentes, cegas ao que interessa efectivamente à natureza dos homens.
O homem no seu estado natural é inocente e não sabe, por isso, o que é o mal; porém,
também não saberá reconhecer o bem. Não faz história. Não cria, não inventa, não
conhece a ilusão, mas também desconhece a desilusão. Não sabe e, por isso, também
não erra. O homem natural é a “unidade numérica [e] o inteiro absoluto” (É, I, p. 249).
Vive no plano do ser em unidade com a Natureza, mas não sabe que é. A história fá-lo-á
tornar-se cidadão, “a unidade fraccionária” (É, I, p. 249), cujo valor lhe é dado pela
relação com o corpo social. No desenvolvimento da história, alerta Rousseau, não
podem nem devem os homens esquecer os traços essenciais da sua natureza originária,
sob pena de se transformar numa história de irracionalidades, maldades, palco de
147 Cf. STAROBINSKI, Jean, J.-J. Rousseau, La transparence et l’obstacle, op. cit., p. 24.
65
banalidades, vaidades e orgulhos, vazia de sentido, fazendo infelizes os seus próprios
autores. O homem faz a sua própria história, no compromisso social, moral, religioso,
político, educacional e antropológico. No desenrolar do desenvolvimento histórico, o
seu maior desafio é compreender (sem esquecer) a sua natureza e o que convém à sua
felicidade para que, em sociedade, na civilização e no progresso, não mais possíveis de
eliminar, saiba o homem bem viver e evitar o abuso do mal.
Vejamos, neste sentido e a mero título de exemplo, o que nos diz no prefácio ao
Émile, a propósito das suas propostas educacionais:
“A facilidade maior ou menor de execução depende de mil circunstâncias, que não é possível
determinar senão através da aplicação particular do método, a este ou àquele país, sob esta ou aquela
condição.”148
Ou no Discours de 55, na incontestável ligação com o Du Contrat Social e com os
princípios (não factos) do direito político:
“[…] As pesquisas políticas e morais que dão lugar à importante questão que eu examino são, pois,
úteis de todas as maneiras, e a história hipotética dos governos é para o homem uma lição construtiva sob
todos os pontos de vista.”149
Os seus textos manifestam o sentido prospectivo das suas reflexões, dirigindo-se
aos homens para além dos tempos e dos lugares, tomando sempre a natureza humana
como ponto de partida. Por exemplo, os princípios políticos fundamentais em Du
Contrat Social não podem afastar-se do que convém à natureza humana:
“[…] que a igualdade de direito e a noção de justiça que ela produz, deriva da preferência que
cada um dá a si mesmo e, consequentemente, da natureza do homem, que a vontade geral para ser
verdadeiramente tal, deve, no seu objecto e na sua essência, partir de todos para se aplicar a todos, e que
perde a sua rectidão natural logo que tenda a qualquer objecto individual e determinado; porque, então,
julgando o que nos é estranho, não temos nenhum verdadeiro princípio de equidade que nos guie.” 150
148 “La facilité plus ou moins de l’exécution dépend de mille circonstances, qu’il est impossible de
déterminer autrement que dans une application particulière de la méthode à tel ou à tel pays, à telle ou à
telle condition.” (É, préface, OC IV, p. 243). 149 “[…] Les recherches politiques et morales auxquelles donne lieu l’importante question que j’examine
sont donc utiles de toutes manières, et l’histoire hypothétique des gouvernements, est pour l’homme une
leçon instructive à tous égards.” (D2, préface, OC III, p. 126). 150 “[…] Que l’égalité de droit et la notion de justice qu’elle produit dérive de la préférence que chacun se
donne et par conséquence de la nature de l’homme, que la volonté générale pour être vraiment telle doit dans son objet ainsi que dans son essence, qu’elle doit partir de tous pour s’appliquer à tous, et qu’elle
perd la rectitude naturelle lorsqu’elle tend à quelque objet individuel et détermine; parce qu’alors jugeant
de ce qui nous est étranger nous n’avons aucun vrai principe d’équité qui nous guide.” (CS, II, 4, OC III,
p. 373). Antes, no Discours de 55, já Rousseau questionara: “[…] Mais tant que nous ne connaîtrons
point l’homme naturel, c’est en vain que nous voudrons déterminer la loi qu’il a reçue ou celle qui
convient le mieux à sa constitution […].” (D2, préface, OC III, p. 125). O problema da desigualdade
66
Também no Émile, quer a religião natural, quer a educação natural assentam na
natureza humana, que é preciso não fazer desaparecer:
“[…] à medida que o homem se afasta do seu estado natural, multiplicam-se as suas
necessidades, alteram-se os seus gostos, o império da opinião perturba toda a ordem do mundo […] tudo
deve tomar novas formas que se curvam aos nossos caprichos e às nossas novas necessidades.”151
Apesar de parecer que é o Homem (na sua acepção teórica e conceptual) e não os
homens (numa prática efectiva da sua interacção social) a maior preocupação de
Rousseau, na verdade, as suas reflexões não são meros princípios teóricos, frutos de uma
reflexão essencialmente especulativa, como muitos comentadores defendem, e, muito
menos metafísica, como o próprio afirma desde o prefácio do Discours de 50.152
Pelo
contrário, a sua filosofia (nas suas múltiplas áreas: moral, religiosa, política, educacional,
antropológica) tem o objectivo prático da concretização das suas propostas religiosas,
morais, políticas, educacionais, antropológicas, e destina-se aos homens, nos diferentes
contextos históricos e geográficos em que vivem. O elo mais forte entre as reflexões
várias que faz sobre o homem é o seu objectivo comum: a construção de uma melhor
sociedade. Os seus textos traduzem assim o exercício da sua subjectividade pela demanda
do eu humano, passível de ser respondida por um nós. Rousseau quis, por meio de uma
introspecção subjectiva, perguntar pela natureza do género humano, mas não ficou por aí.
Do exercício de subjectividade que pretendeu partilhar com os demais resultaram
princípios e valores (morais, religiosos, políticos, educacionais, antropológicos) cuja
aplicação Rousseau deixa em aberto para os homens de todos os tempos e lugares.
Segundo o filósofo, esses princípios e valores visíveis em todos os textos, a serem
reconhecidos pelos homens, nas circunstâncias particulares de cada tempo e de cada
lugar, fá-los-iam querer concretizar os projectos neles implícitos e a história caracterizar-
se-ia pelo não (ab)uso do mal. E evitar o (ab)uso do mal é não deixar que ocorra o
distanciamento absoluto entre o homem e o seu estado de natureza, especificamente na
interacção social, na educação e na política, que tanto o Émile como o Du Contrat Social
pretendem exemplarmente salvaguardar.
política e civil e da igualdade universal apresentado por Rousseau não é, segundo Marx e Engels, por este
resolvido. Somente o socialismo científico estaria em condições de resolver com o seu método do
materialismo histórico. Cf. cap. III dos Apêndices, “Crítica marxista de Rousseau”, in DELLA VOLPE, Galvano, Rousseau e Marx – A Liberdade Igualitária, op. cit., pp. 109-119. 151 “[…] à mesure que l’homme s’éloigne de son état naturel ses besoins se multiplient, ses gouts
changent, l’empire de l’opinion bouleverse tout l’ordre du monde […] il faut que tout prend de nouvelles
formes pour se plier à nos caprices et à nos nouveaux besoins.” (É, Manuscrit Favre, OC IV, p. 56). 152 “ Il ne s’agit point dans ce Discours de ces subtilités métaphysiques qui ont gagné toutes les parties de
la littérature […].” (D1, préface, OC III, p. 5).
67
Não permitir que haja lugar para um corte umbilical definitivo com a natureza
embrionária do homem é paradoxalmente não deixar morrer e, pelo contrário, resgatar e
vivificar a dimensão humana dos homens. Rousseau mostra como o homem só se torna
humano quando sai do seu estado natural, distinguindo-se definitivamente dos outros
animais. O homem torna-se homem aí, na história da sua liberdade e da sua
perfectibilidade. É na história que o homem se tornará efectivamente humano. Mas só se,
precisamente, não abandonar a sua natureza. Poder-se-á dizer, e muitos disseram, que
Rousseau se contradiz e se perde nesta exaltação de uma natureza anterior ao surgimento
do homem propriamente dito. Mas o que Rousseau pretende é, no fundo, e num
protagonismo inegável, partilhar com os outros homens o exercício subjectivo que é
preciso empreender para que os homens, em sociedade, saibam fazer exaltar a sua
dimensão humana, sob pena de ficarem mais animais do que os próprios animais. A
guerra, a desigualdade, o ódio, a ambição não são naturais, mas criações sociais. Lembrar
a natureza humana não serve assim de nostalgia nem de tentativa quimérica de regressar a
um passado que não existe mais (que poderá até não ter existido), como nos diz na famosa
carta a Voltaire. Lembrar a natureza humana serve, sim, para que, na construção social,
percebam bem os homens que não tendo naturalmente em si nenhuma propensão para a
maldade, poderão avançar no sentido do bem e da felicidade. Se a natureza não dá nem o
bem nem o mal, mas a inocência, mais próxima de uma bondade originária, então cabe
aos homens fazerem-se homens, serem homens: humanos. Lutará, por isso, na sua obra
como na sua vida, pelo homem humano, pela humanidade do homem, que só assim será
feliz ou, pelo menos, estará mais perto da felicidade. Percebe que o seu século não foi
capaz de organizar a sociedade segundo os resultados e os princípios resultantes do
exercício da sua subjectividade. É verdade que se desilude com a segregação social e os
seus últimos dias são de completo descrédito e de desapontamento face à sociedade,
conforme alguns investigadores mostram, na articulação que fazem entre a sua obra e a
sua vida. Mas também é verdade e, para nós, uma das maiores e mais fecundas verdades
rousseaunianas, que a sua obra tem um sentido de futuro e de esperança e, nesse sentido, a
obra ultrapassou os limites e os desencantos da sua vida. O desencanto dirá respeito
apenas à sociedade do seu tempo, não se estende às sociedades futuras. Dirigindo-se aos
homens extra-temporal e extra-circunstanciadamente, esquecendo todos os tempos e
lugares, e reportando-se à natureza originária dos homens, Rousseau abre a porta à
possibilidade de uma sociedade de seres humanos felizes ou, pelo menos, e isso já é
68
muito, menos infelizes, numa história de não (ab)uso do mal. Uma sociedade não
desencantada. De homens humanos, que façam jus ao lugar mais alto que devem ocupar
“na ordem dos seres” (PF, p. 582).
A ideia de que Rousseau terá feito compreender o homem civil e as suas
características humanas a partir do homem natural, que não tinha ainda quaisquer
especificidades propriamente humanas, leva a que muitos investigadores vejam aí um
esforço rousseauniano para configurar uma determinada visão do humano, defendendo,
como Lerma Jasso, a existência de um humanismo rousseauniano.153
Na sua tese sobre a
subjectividade, este investigador afirma que Rousseau pretendeu “resgatar o homem, obra
da natureza (entidade ontológica, sem determinações especificamente humanas, inteiro
absoluto que só tem relação consigo mesmo). Este homem natural é o modelo para a
conversão e reforma do homem civil (entidade cultural, unidade fragmentária determinada
acidentalmente pela sua relação com o denominador comum imposto pelo corpo
social)”154
. Lerma Jasso destaca o “privilégio rousseauniano” de ter podido “construir um
humanismo que não parte do homem real, mas do imaginário homem natural”155
; para
este investigador, trata-se de um “humanismo divino”, justificado pelo “anseio
rousseauniano de chegar até à mão mesma que rege o universo; instalar-se – como um
novo soter – numa perspectiva quase divina desde a qual pode observar, julgar e salvar a
humanidade”156
. Lerma Jasso chega mesmo a afirmar que Rousseau pretende ser o único
a enunciar a verdade, tal como Cristo157
. Partindo de uma posição privilegiada em relação
aos outros homens, Rousseau pretende elevar-se a Cristo: “A cruz é o signo de mediação
e Rousseau quer realizar a redenção da subjectividade pela própria subjectividade, de
153 Cf. LERMA JASSO, Héctor, “El Humanismo de Rousseau” (cap. IV), in La subjectividad en Jean-
Jacques Rousseau, op. cit., pp. 173-211. 154 “[…] rescatar al hombre, obra de la naturaleza (entidad ontológica, sin determinaciones
especificamente humanas, entero absoluto que sólo tiene relación consigo mismo). Este hombre natural
es el dechado para la conversión y reforma del hombre civil (entidad cultural: unidad fraccionaria
determinada acidentalmente por su relación con el denominador común que le impone el cuerpo social)”.
(ibid., p. 175). 155 “[…] construir un humanismo que no parte del hombre real, sino del imaginario hombre natural.”
(ibid., p. 175). 156 “[…] el anhelo roussoniano de llegar asta la mano misma que rige el universo; instalarse – como un
nuevo soter – en una perspectiva quasi divina desde la cual puede observar, juzgar y salvar la
humanidade.” (ibid., p. 179). 157 Cf. ibid., p. 178.
69
modo imediato. Se Deus se revela na natureza, também se revela no mais íntimo da
natureza humana, isto é, na subjectividade”158
.
Todavia, a observação que Rousseau empreende (cujos requisitos e alertas
explanamos no cap. IV.1) não surge por meio da fé nem da oração nem de um espírito
divino pelo qual o homem possa estar imbuído, mas a partir da própria interacção social.
Muito mais importante do que a eventual analogia entre a revelação de Rousseau e a
revelação de Cristo é, para nós, a ideia da “possibilidade do humano”159
, uma ideia
constante ao longo dos textos, e que a educação de Émile deve desde logo salvaguardar.
Com efeito, a educação está orientada para humanizar o jovem, pois, afinal, trata-se de:
“[…] tirar proveito da sensibilidade nascente para lançar no coração do jovem adolescente as
primeiras sementes da humanidade.”160
À falta de ter sido concretizada na sociedade contemporânea de Rousseau, na
qual os homens, segundo o filósofo, se perderam enquanto cidadãos, não reconhecendo
a humanidade própria de ser homem, a possibilidade do humano (dos homens que não
se deixaram segregar totalmente pela sociedade) consistirá sempre numa esperança e
numa porta que Rousseau sabe que abriu.
Mostrando que o homem não se reduz ao cidadão, Rousseau refere o sentimento
de existência, imprescindível a todos os homens, e, assim, entramos na nossa quarta e
última ordem de razões que pretendem justificar o facto de a questão da subjectividade
universal rousseauniana estar não só para além de todos os tempos e lugares, mas
também (e sem contradição) em todos eles.
Para Rousseau, a questão da subjectividade é uma questão do homem no estado
civil e não do homem no seu estado natural. O ser do homem natural é puro, ontológico,
não se reconhece nem sente necessidade de se re-ver. Não há subjectividade se não
158 “La cruz es signo de mediación de la subjetividad por la subjetividad misma, de modo inmediato e
natural. Se Deus se revela en la naturaleza, también se revela en lo más íntimo de la naturaleza humana,
es decir, en la subjetividad.” (ibid., p. 178). 159 A expressão é de Custódia Martins. Referindo-se ao terceiro período da obra/vida de Rousseau, a
autora defende que: “O solitário é, não quem regressa a um passado absoluto e pré-histórico, tarefa
impossível, mas quem, através de um processo correspondente ao de uma aprendizagem, ao contrário do
cidadão, se pôde lembrar da sua natureza humana esquecida, obtida num tempo antes da história. Dito de
outra forma, o solitário é unicamente aquele que aprendeu a sê-lo. Ser solitário não significa, para Rousseau, abdicar da sociedade. Significa não reduzir o homem, enquanto cidadão, a uma função na
sociedade. O que não devemos é considerar que a sociedade, a relação institucionalmente medida com os
outros, feche em si toda a possibilidade do humano.” (MARTINS, Custódia Alexandra Almeida, A
Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Praxis, Teoria e Fundamentos, op. cit., p. 121). 160 “[…] c'est de profiter de la sensibilité naissante pour jeter dans le cœur du jeune adolescent les
premières semences de l'humanité […].” (É, livre IV, OC IV, p. 502).
70
houver sujeito. E, para Rousseau, o sujeito humano só surge com a saída do homem do
seu estado natural. Não concordamos, pois, com Lerma Jasso, quando vê no estado
natural do homem a presença de uma subjectividade cuja “essência é o sentimento da
própria existência”161
. Na verdade, o homem natural, ao não ter consciência da presença
do outro, não terá também uma verdadeira consciência de si. Se, como vimos
anteriormente, em I.1., o homem sente antes de pensar e, se existir é sentir, tal não quer
dizer que o homem natural, que essencialmente sente e que por esse sentimento existe,
possa aceder ao plano subjectivo e, muito menos, ao exercício da sua subjectividade. O
sentimento da existência dá-se também e, mais ainda, porque consciente, no estado de
civilização, sendo vivificante e revigorante para todo e qualquer homem.
Independentemente da nacionalidade e da cidadania, os homens de todo o mundo terão
acesso a este sentimento de existência, de estar vivo, de recusa de morrer em vida,
sentimento e pensamento acessíveis, ora por meio do contacto com a natureza, descrito
no texto das Rêveries, ora pela fruição da arte ou ainda através da acção virtuosa face ao
outro. Esse sentimento de existir é passível de ser vivenciado por todos nós, no contacto
com a natureza, mas também na fruição estética, como, por exemplo, por meio da
música162
, como nos diz Fernando Gil: “O sentimento de existir rousseauniano condensa
e ocupa o lugar da pertença e da permanência temporal […] A experiência de Rousseau
não é tão rara como a alguns parecerá, temo-la todos os dias ao ouvirmos
música[…]”163
. Na Profession de Foi, quando é apresentado o conceito de virtude e de
acção virtuosa, Rousseau destaca esse sentimento de existência no bem (co)existir, na
prática de acções virtuosas e no “prazer em fazer bem” (PF, p. 602).
Existir significa viver e viver significa saber (sentir/pensar/ver) que se vive. Os
momentos em que ocorre o sentimento de existência fundam em si o pensar e o sentir,
sem distinção: o que sinto coincide em completo com o que penso; penso que estou
vivo, sinto-me vivo. Quando, na cinquième promenade, Rousseau se regojiza de sentir
com prazer a sua existência, sem necessidade de pensar164
, não se trata já da imediatez
irreflectida e natural do homem-uno com a natureza, mas do homem (também cidadão)
que acede ao puro sentimento de existir em êxtase, numa aliança total e absoluta entre
161 LERMA JASSO, Héctor, La subjectividad en Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 173. 162 Como sabemos, a música é uma das artes preferidas de Rousseau, não obstante as suas inúmeras
críticas à música francesa. 163 Cf. GIL, Fernando, Modos de evidência, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, pp. 48-
49. 164 “[…] sentir avec plaisir mon existence, sans prendre la peine de penser.” (R, cinquième promenade, OC I,
p. 1045).
71
pensar e sentir, o homem que sabe que está a exercitar sem esforço e de modo aprazível
a sua subjectividade.165
O sentimento de existência é também o de coexistência, que se encontra apenas
no homem civil. Não obstante estar afastado de um estado natural que lhe seria sempre
mais vantajoso à partida, é o homem civil que tem possibilidade de aceder à sua
existência efectiva e aos sentimentos/pensamentos/sonhos/devaneios intrínsecos ao seu
viver:
“Viver não é respirar, mas agir, é fazer uso dos nossos órgãos, dos nossos sentidos, das nossas
faculdades, de todas as nossas partes que nos propiciam o sentimento de existência.”166
Não é o cidadão que se sente vivo e humano, mas o homem, que também é
cidadão. Pode agora, diferenciado, enquanto homem e enquanto cidadão, reaproximar-se
da natureza da qual terá feito já integralmente parte, em plena comunhão e unidade, no
seu estado natural. Pode, também, fazê-lo em moldes políticos e educacionais, não se
afastando em absoluto da sua natureza, como mostrou sempre ao longo dos seus textos e
que os seus contemporâneos não conseguiram concretizar.
E pode fazê-lo fisicamente. O contacto directo com a natureza – sentir a brisa do
vento, contemplar o pôr-do-sol, passear pelo campo, respirar a natureza – fá-lo-á sentir-se
vivo. A pintura literária com que brinda o leitor em Les rêveries du promeneur solitaire,
aquando dos seus passeios/caminhadas/devaneios, traduz uma profunda relação de
unidade com a natureza, relação muitas vezes considerada como um dos maiores marcos
do pré-romantismo. Mas, mais do que isso, traduz a distinção entre o espaço público de
dependência e de coexistência e o espaço privado de independência e de autonomia da
própria existência, em qualquer tempo e lugar:
“De que desfrutamos numa tal situação? De nada de exterior a nós, de nada a não ser de nós
mesmos e de nossa própria existência; enquanto este estado dura bastamo-nos a nós mesmos como Deus. O
165 Recorrendo à cinquième promenade, Fernando Gil apresenta esta mesma ideia: “A linguagem da
evidência decanta também os movimentos de orientação, desde dirigir-se para até reentrar dentro de si […]
A ideia cartesiana ou malebranchiana, o puro sentimento de existir de que fala Rousseau na Ve Rêverie tecem a mesma metáfora de uma intimidade a si que terá ainda outras fluorescências […] O puro sentimento
de existir é logicamente primeiro, embora se conquiste por uma ascensão ao originário que é ao mesmo
tempo descida em si.” (GIL, Fernando, Tratado da Evidência, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
2005, pp. 106-107). 166 “Vivre ce n’est pas respirer, c’est faire usage de nos organes, de nos sens, de nos facultés, de toutes les
parties de nous-même qui nous donnent le sentiment de notre existence.” (Émile, livre I, OC IV, p. 59).
72
sentimento de existência aliviado de qualquer outra afeição é por si mesmo um sentimento precioso de
contentamento e de paz.”167
Nas Rêveries, Rousseau partilha com o leitor o reencontro consigo mesmo, a
subjectividade universal levada ao limite, lembrando que há um eu universal, presente em
todos nós, que necessita de momentos de isolamento e de serenidade, de paz, um eu que
lembra o seu elo com a natureza, como a ligação de um filho a uma mãe. Rousseau
mostra-nos a necessidade de respirar simplesmente a vida, no seio da sociedade mesma,
por mais que esta seja nefasta e afastada da natureza humana e atreita ao uso e abuso dos
males sociais, como aquela que foi a do seu tempo.
O filósofo toma o “género humano por auditor” e serve o “homem em geral”,
“que convém a todas as nações” e “esquecendo os tempos e os lugares” (D2, I, p. 133).
Mas é a cada um dos homens e a todos os tempos e lugares que dirige a sua
subjectividade. O nosso propósito é o de a trazer aos nossos dias, na consideração
meramente exemplificativa do homem hipermoderno e internético. Mas colocar a
possibilidade da aproximação do exercício subjectivo de Rousseau aos nossos dias só é
viável devido à universalidade da subjectividade, a qual explicitamos no início do
próximo capítulo.
167 “De quoi jouit-on dans une pareille situation? De rien d’extérieur à soi-même et de sa propre existence,
tant que cet état dure on se suffit à soi-même, comme Dieu. Le sentiment de l’existence dépouillé de toute
autre affection est par lui-même un sentiment précieux de contentement et de paix […].” (R, cinquième
promenade, OC I., p. 1047).
73
Capítulo II – Os traços distintivos da questão da subjectividade
rousseauniana
II.1. A universalidade da subjectividade
“Je consultais les philosophes, je feuilletais leurs livres, j’examinais leurs divers opinions. Je les trouvais
tous fiers, affirmatifs, dogmatiques, même dans leur scepticisme prétendu […]. Chacun sait bien que son
système n’est pas mieux fondé que les autres; mais il le soutient parce qu’il est à lui. […] Les philosophes ne feraient que multiplier ceux qui me tourmentaient et n’en résoudraient aucun. Je pris donc un autre
guide, et je me dis: consultons la lumière intérieure […].”
(ROUSSEAU, J.-J., “Profession de Foi du Vicaire Savoyard”, in Émile ou de l´éducation, livre IV, OC
IV, 1969, pp. 568-569)
São as frequentes reiterações de ideias ao longo dos textos de Rousseau que
justificam a aferição de uma linha de pensamento muito mais consistente e coerente do
que à primeira vista possa parecer. Essa linha, dizemos nós, coincide com o exercício
constante de subjectividade e os traços gerais que a marcam são os que, ao mesmo
tempo, a distinguem de qualquer outra subjectividade filosófica: a sua universalidade, a
presença constante da antítese identidade versus alteridade e a trilogia das
ideias/sentimentos que a constituem e que se apresentam à consciência.
Se a presença da universalidade se mostra mais evidente nos Discours, no Émile
e em Du Contrat Social, pelo facto de todos esses textos se debruçarem explicitamente
sobre o género humano, não é menos certo que se revela também nas Confessions e nas
Rêveries, na apresentação de si mesmo e, portanto, na abordagem de um homem
individual. Tal constatação reforça o que consideramos ser o mais importante traço
distintivo da subjectividade rousseauniana, subjacente a todos os textos que tomámos
para a nossa análise: a sua universalidade. Com efeito, o sujeito, quer seja tomado como
género humano, nos escritos da década de 50 e 60, quer seja tomado na sua
singularidade, nos textos autobiográficos tardios, recebe um contorno universal que não
pode ser descurado. A universalidade da subjectividade surge, não só na trilogia das
ideias e/ou sentimentos, mas também nos conceitos e teses filosóficas que vão sendo
apresentados ao longo da obra rousseauniana e que recebem um tratamento específico de
acordo com o teor prioritário de cada texto. Do complexo conjunto de elementos que
caracteriza o universo semântico e filosófico dos textos de Rousseau, resultante do
exercício de subjectividade que vinca a sua obra, seleccionámos os que nos parecem
mostrar melhor a sua universalidade: a preocupação pelo género humano nos dois
Discours, a origem e a evolução das línguas no Essai, a “educação natural” no Émile, a
74
“religião natural” na Profession de Foi, a “vontade geral” em Du Contrat Social e ainda
o modo como confessa e devaneia, nas Confessions e Rêveries. Valerá a pena referir
cada um dos textos, fazendo alusão ao respectivo conteúdo global e explanando o modo
particular e específico como cada um apresenta determinados conceitos, de modo a
mostrar inequivocamente a presença da universalidade da subjectividade em cada um
deles.
Iniciemos, então, a nossa tarefa pelo primeiro. É no Discours de 50 que Rousseau
esclarece pela primeira vez como pretende compreender a natureza humana –
consultando-se a si próprio na introspecção e interioridade subjectiva – e, desse modo,
chegar à verdade que nenhum filósofo conseguiu antes dele:
“Consultei os filósofos, folheei os seus livros, examinei as suas diversas opiniões. Considerei-os
a todos orgulhosos, afirmativos, dogmáticos, mesmo no seu pretenso cepticismo […]. Cada um sabe bem
que o seu sistema não está melhor fundado do que os dos outros; mas mantém-no porque é seu. […] Os
filósofos não fizeram mais do que multiplicar as [dúvidas] que me atormentavam e não resolveram
nenhuma. Tomei, então, um outro guia e disse para mim mesmo: consultemos a luz interior […].”168
Repetirá a mesma ideia noutros textos, como em Les Rêveries du Promeneur
Solitaire:
“Este sentimento, alimentado pela educação desde a minha infância, e reforçado ao longo de
toda a minha vida pela longa série de misérias e infortúnios que a preencheu, levou-me sempre a procurar
conhecer a natureza e o destino do meu ser, com mais interesse e cuidado do que alguma vez observei em
algum outro homem. […] Querendo ser mais sábios do que outros, estudavam o universo para saber como
estava organizado, tal como teriam estudado qualquer máquina que tivessem visto, por mera curiosidade.
Estudavam a natureza para poderem falar dela sabiamente, mas não para se conhecerem; trabalhavam
para instruir os outros, mas não para se esclarecerem interiormente.”169
Como os outros filósofos, Rousseau quer saber a verdade. E quer dizê-la. O
objectivo de dar a ver a verdade é comum aos seus textos e di-lo de forma firme e directa
em todos os mencionados, assim como noutros, dos quais destacamos os Fragments
Politiques, texto de índole eminentemente política:
168 Veja-se a citação original que serviu de entrada ao presente sub-capítulo. 169 “Ce sentiment, nourri par l’éducation dès mon enfance et renforcé toute ma vie par ce long tissu de
misères et d’infortunes qui l’a remplie m’a fait chercher dans tous les temps à connaître la nature et la destination de mon être avec plus d’intérêt et de soin que je n’en ai trouvé dans aucun autre homme. […]
Voulant être plus savants que d’autres, ils étudiaient l’univers pour savoir comment il étroit arrange,
comme ils auraient étudié quelque machine qu’ils auraient aperçue, par pure curiosité. Ils étudiaient la
nature humaine pour en pouvoir parler savamment, mais non pas pour se connaître; ils travaillaient pour
instruire les autres, mais non pas pour s’éclairer en dedans.” (R, troisième promenade, OC I, pp. 1012-
1013).
75
“Quero dizer a verdade e di-la-ei no tom que mais lhe convém. Leitores pusilânimes que a sua
simplicidade repugna e a sua franqueza revolta, fechai meu livro, pois não é para vós que foi escrito.
Leitores satíricos que gostam da verdade que alimenta a malignidade da vossa alma, fechai e deitai fora o
meu livro, não encontraríeis aí o que procurais, e não tardaríeis muito a ver todo o horror que o autor tem
por vós.”170
Rousseau não quer uma verdade abstracta, nem metafísica, nem meramente
especulativa. Quer a verdade do conhecimento do homem, verdade intrínseca à
subjectividade humana com vista à felicidade que convém à sua natureza. Rousseau
considera que está em condições de dar a ver e partilhar os pressupostos e as
consequências do exercício de subjectividade que leva ao conhecimento do homem,
mostrando como este exercício é acessível e indispensável a todos. A verdade que
interessa só é passível de ser identificada e salvaguardada num exercício de
subjectividade assente na relação inextricável entre pensar e sentir que, por sua vez, dá a
ver o substrato comum a todas as diferenças entre os homens ou, o que quer dizer o
mesmo, dará a ver a verdade do género humano, que é só uma, pois “o falso é susceptível
de uma infinidade de combinações; a verdade, porém, só possui uma maneira de ser”
(D1, II, p. 18). A Rousseau interessa perceber qual é essa forma única e verdadeira de
ser e de estar na vida, na relação consigo mesmo e com os outros, quer no espaço
privado, quer em público.
Essa verdade não está nos livros dos filósofos, como também não está nos factos
do passado:
“Mas porquê procurar nos tempos distantes as evidências de uma verdade da qual temos sob os
nossos olhos testemunhos subsistentes?”171
São os próprios testemunhos vivenciais do seu tempo que mostram os infortúnios
da sociedade dos homens e a verdade da felicidade humana resulta da observação da
natureza universal dos homens.
A sociedade das Lumières manifesta bem as fragilidades e erros humanos que
levaram ao estado de infeliz progresso, sob todos os pontos de vista (social, moral,
educacional, político). As sociedades foram-se desenvolvendo e progredindo no sentido
170 “Je vais dire la vérité, et je la dirai du ton qui lui convient. Lecteurs pusillanimes que sa simplicité dégoute et que sa franchise révolte fermez mon livre, ce n’est point pour vous qu’il est écrit. Lecteurs
satiriques, qui n’aimez de la vérité que ce qui peut nourrir la malignité de votre âme, fermez et jetez mon
livre, vous n’y trouveriez point ce que vous cherchez, et vous ne tarderiez pas d’y voir toute l’horreur que
l’auteur a pour vous.” (Fragments politiques, “introduction”, OC III, p. 473). 171 “Mais pourquoi chercher dans des temps reculés des preuves d’une vérité dont nous avons sous nos yeux
des témoignages subsistants?” (D1, première partie, OC III, p. 11).
76
do afastamento da prática da virtude, não obstante as circunstâncias concretas de cada
tempo histórico e lugar geográfico:
“A elevação e a redução diária das águas oceânicas não foram mais regularmente submetidas ao
astro que nos ilumina durante a noite, do que o destino da moral e da probidade ao progresso das ciências e
da artes. Vimos a virtude fugir à medida que a sua luz se eleva sobre o nosso horizonte, e o mesmo
fenómeno é observado em todos os tempos e em todos os lugares.”172
Para Rousseau, nenhum filósofo conseguiu chegar à verdade que interessa aos
homens; não há uma única obra que a contenha. Caber-lhe-á a si protagonizar esse
grande feito. E aqui dá-se o seu maior embaraço, pois somente através da escrita (que
tanto critica aos filósofos) poderá o autor partilhar o seu exercício de subjectividade e a
verdade que deste resulta e que mais interessa aos homens: a de saber qual e como é a
natureza do género humano e que felicidade lhe convém. A verdade é, assim, a expressão
da subjectividade humana, do próprio e do género humano. Por isso, a função prioritária
dos textos rousseaunianos será a de, partindo da observação da natureza humana, com
vista à felicidade do género humano, independentemente dos tempos e lugares que ocupa,
dar a ver, não sem algumas dificuldades, como podem ser superados os malefícios sociais
(elencados e descritos mais exaustivamente nos Discours de 50 e de 55, bem como no
Essai, aqui especificamente no que respeita à linguagem convencional) que recaem sobre
os homens, quer enquanto cidadãos necessariamente enquadrados no corpo social (Du
Contrat Social), para o qual devem ser devidamente orientados (Émile), quer na vida
pessoal e particular de cada um, como mostrará nos textos das Confessions e das Rêveries,
nos quais procurará dar-se aos homens, enaltecendo a sua pintura natural, depurada das
maldades que sente ter(em-lhe) feito.
Em todos aqueles textos, a imagem do estado de natureza é a marca constante da
subjectividade e será dada a ver, pensar e sentir, lado a lado com as restantes
ideias/sentimentos da trilogia inscrita na subjectividade, pois aceder àquele estado é
reencontrar em si o homem natural (que é), distanciado do homem civil da sociedade (que
já não parece o que é), bem como reconhecer os males que é urgente minorar com vista a
evitar o seu (ab)uso. O facto de a trilogia estar acessível a todos de igual modo no
exercício de subjectividade mostra bem a sua universalidade. A Rousseau caberá orientar
172 “L’élévation et l’abaissement journalier des eaux de l’océan n’ont pas été plus régulièrement assujettis au
cours de l’astre qui nous éclaire durant la nuit, que le sort des mœurs et de la probité au progrès des sciences
et des arts. On a vu la vertu s’enfuir à mesure que leur lumière s’élevait sur notre horizon, et le même
phénomène s’est observé dans tous les temps e dans tous les lieus.” (ibid., p. 10).
77
o modo como deve ser efectuado esse exercício de subjectividade individual, mas com
sentido universal. E fá-lo, desde logo, através da estátua de Glauco referida no prefácio ao
Discours de 55, cuja compreensão levará o leitor a melhor ver a distinção entre o homem
natural/estado de natureza e o homem civil(izado)/estado (de) civil(ização), determinante
na aferição subjectiva da natureza e felicidade humanas. É ainda no Discours de 50 que
Rousseau inaugura a marca indelével da reflexão subjectiva com intenção universal, ao
proceder à descrição dos mal(es) da sociedade do seu tempo (sob o ponto de vista da
corrupção dos costumes) e ao registo da possibilidade de esses males poderem vir a ser
minorados (cf. D1, II, p. 26).
Uma vez que “não podemos reflectir sobre os costumes sem relembrar a imagem
da simplicidade dos primeiros tempos” (D1, II, p. 22), a resposta à primeira questão da
Academia assenta já no estado de natureza:
“Antes de a Arte ter formado as nossas maneiras e ter ensinado às nossas paixões a falar uma
linguagem apurada, os nossos hábitos eram rústicos, mas naturais; e a diferença dos nossos procedimentos
anunciava, à primeira vista, a dos caracteres. A natureza humana, no fundo, não era melhor; mas os homens
encontravam a sua segurança na facilidade de se penetrarem reciprocamente, e essa vantagem, cujo valor já
não sentimos, poupava-lhes muitos vícios.”173
Na resposta à posterior questão da Academia174
, no Discours de 55, o filósofo
descreve exaustivamente o estado de natureza e o estado de civilização, desenvolvendo a
questão dos fundamentos e da legitimidade da desigualdade social e política que, no
Discours anterior, tinha sido apenas referida como a “funesta desigualdade introduzida
entre os homens pela distinção dos talentos e pelo aviltamento das virtudes” (D1, II, p.
25). Se, na primeira parte do Discours de 55, o autor elenca a “questão da desigualdade
na maneira de viver, o excesso de ociosidade nuns, o excesso de trabalho noutros […],
os alimentos mais requintados dos ricos […], a má nutrição dos pobres […]” (D2, I, p.
138), na segunda parte, manifesta já a preocupação pela justiça e pelo carácter jurídico-
moral inerente à organização política: “da cultura das terras resulta necessariamente a
sua partilha e da propriedade […] as primeiras regras da justiça […]” (D2, II, p. 173),
que aprofundará em Du Contrat Social.
173 “Avant que l’Art eut façonné nos manières et appris à nos passions à parler un langage apprêté, nos
mœurs étaient rustiques, mais naturelles; et la différence des procédés annonçait au premier coup d’œil
celle des caractères. La nature humaine, au fond, n’était pas meilleure; mais les hommes trouvaient leur
sécurité dans la facilité de se pénétrer réciproquement, et cet avantage, dont nous ne sentons plus le prix,
leur épargnait bien des vices.” (ibid., p. 8). 174 “Quelle est l’origine de l’inégalité parmi les hommes, et si elle est autorisée par la loi naturelle [?]”
78
O Discours de 55 é fulcral na obra de Rousseau, porquanto é expressão do que de
melhor há sob o ponto de vista literário-filosófico da história das ideias, como ainda no
que concerne ao seu papel interno na obra global do filósofo, pois, ao proceder ao difícil
estudo da natureza humana, antecipa os princípios que orientarão tanto a educação de
Émile como o direito político em Du Contrat Social:
“Este mesmo estudo do homem original, das suas verdadeiras necessidades e dos princípios
fundamentais dos seus direitos, é ainda o único bom meio que pode ser utilizado para remover essas
multidões de dificuldades que surgem sobre a origem da desigualdade moral, os verdadeiros fundamentos
do corpo político, os direitos recíprocos dos seus membros, e sobre milhares de outras questões
semelhantes, tão importantes quanto mal esclarecidas.”175
O Discours de 55 aponta para muitas das questões que serão desenvolvidas
posteriormente nos outros textos, como, por exemplo, no Essai sur l’origine des
langues. Nos seus vinte capítulos, o Essai reitera e aprofunda alguns pontos ali
primeiramente referidos sobre a origem, a evolução e a diferenciação das línguas,
designadamente no que respeita à distinção entre as línguas dos povos do Norte e as
línguas dos povos do Sul176
; os primeiros povos são descritos como sendo “mais
industrializados” do que os segundos (cf. D2, I, p. 144). A propósito da formação da
língua dos povos do Norte, o Essai acrescenta que, neste caso, as causas foram mais as
necessidades do que propriamente as paixões:
“Nestes climas terríveis, nos quais durante nove meses do ano tudo está morto, onde o sol aquece
o ar durante poucas semanas, parecendo que o faz unicamente para dizer aos habitantes de que bens estão
privados e para lhes acentuar a miséria, nesses lugares em que a terra nada dá a não ser à custa de trabalho
e onde a fonte da vida parece estar muito mais nos braços do que no coração […]. Antes de se pensar em
viver feliz, tinha de se pensar em viver. A sociedade só se formou pela indústria, porquanto a necessidade
mútua unia muito mais os homens do que o teria feito o sentimento. Sempre presente, o perigo de perecer
não permitia que se limitassem à língua do gesto, e entre eles a primeira palavra não foi amai-me, mas
ajudai-me.”177
175 “Cette même étude de l’homme originel, de ses vrais besoins et des principes fondamentaux de ses
devoirs, est encore le seul bon moyen qu’on puisse employer pour lever ces foules de difficultés qui se
présentent sur l’origine de l’inégalité morale, sur les varis fondements du corps politique, sur les droits
réciproques de ses membres, et sur mille autre questions semblables, aussi importantes que mal
éclaircies.” (D2, préface, OC III, p. 126). 176 No capítulo que dedica à formação das línguas dos países meridionais, Rousseau destaca a renúncia pelos homens à “liberdade primitiva”, “isolada” e “pastoral” (“je n’imagine pas comment ils auraient
jamais renoncé à liberté primitive et quitté la vie isolée et pastorale”) em prol da submissão à
“escravatura”, aos “trabalhos” e às “misérias ligadas ao estado social” (pour s’imposer sans nécessité
l’esclavage, les travaux, les misères inséparables de l’état social”). Cf. EL, IX, OC V, pp. 400-401. 177 “Dans ces affreux climats où tout est mort durant neuf mois de l’année, où le soleil n’échauffe l’air
quelques semaines que pour apprendre aux habitants de quelles biens ils sont privés et prolonger leur
79
Preocupado com a separação entre os homens trazida e cada vez mais acentuada
pela linguagem convencional, que os foi afastando progressivamente da sua natureza,
Rousseau procurará suprir também os malefícios da linguagem convencional, oral e
escrita. Através da educação natural, Émile procurará atender e colmatar os problemas
da linguagem social, para a qual a criança terá de ser devidamente preparada,
precisamente para não vir a cair nos perigos de uma linguagem meramente
convencional, aprisionada e servil, que, como antecipa no Essai, não convém nem à
organização social, nem ao corpo político, expostos posteriormente em Du Contrat
Social:
“Existem línguas favoráveis à liberdade; são as línguas sonoras, prosódicas, harmoniosas, cujo
discurso se distingue de bem longe. As nossas são feitas para o burburinho dos sofás. Os nossos
pregadores atormentam-se, suam nos templos, sem que se saiba nada do que disseram. Depois de se
esgotarem a gritar durante uma hora, saem do púlpito meio-mortos. Certamente, não valia a pena
cansarem-se tanto.”178
Caberá à geração futura aprender a linguagem social sem por ela se deixar
aprisionar. Nesse sentido, Rousseau apresenta uma educação natural, compassada e
livre, contrária à educação convencional, artificial, impositiva, punitiva e submissa do
seu tempo. A obra resultará não tanto da sua experiência (entre muitos outros cargos
que desempenhou foi, como se sabe, professor de música e preceptor)179
, mas, mais uma
vez, do exercício de subjectividade que leva ao conhecimento da natureza humana e à
aferição da felicidade que importa. O objectivo é protagonizar uma nova educação do
género humano, com pressupostos inovadores em relação à educação tradicional e à do
seu tempo. Para Rousseau, é tempo de fazer um bom homem, de preparar o jovem para
a liberdade civil, de modo a não sucumbir aos malefícios da sociedade. É tempo,
portanto, de formar o homem de acordo com a sua natureza, para que saiba minorar os
males sociais, para que aja virtuosamente:
misère, dans ces lieux où la terre ne donne rien qu’à force de travail et où la source de la vie semble être
plus dans les bras que dans le cœur […]. Avant de songer à vivre heureux, il fallait songer à vivre. Le
besoin mutuel unissant les hommes bien mieux que le sentiment n’aurait fait, la société ne se forma que
par l’industrie, le continuel danger de périr ne permettait pas de se borner à la langue du geste, et le
premier mot ne fut pas chez eux, aimez-moi, mais aidez-moi.” (ibid., X, p. 408). 178 “Il y a des langues favorable à la liberté; ce sont les langues sonores, prosodiques, harmonieuses, dont
on distingue le discours de fort loin. Les nôtres sont faites pour le bourdonnement des divans. Nos predicateurs se tourmentent, se mettent en sueur dans les temples, sans qu’on ne sache rien de ce qu’ils
ont dit. Après s’être épuisés à crier pendant une heure, ils sortent de la chaire à demi morts. Assurément
ce n’était pas la peine de prendre tant de fatigue.” (ibid., XX, p. 428). 179 O interesse de Rousseau pela reflexão acerca da educação começou cedo e tê-lo-á levado à redacção
do Projet pour l’éducation de Monsieur de Sainte-Marie, apresentando aí algumas ideias que só serão
devidamente aprofundadas no Émile, duas décadas depois.
80
“Não considero uma instituição pública esses estabelecimentos a que chamam colégios. Não
conto com a educação do mundo, porque essa educação […] é apenas apropriada a fazer os homens
duplos e falsos, parecendo que se relacionam com os outros, mas que se relacionam apenas consigo
mesmos. Resta, pois, a educação doméstica ou a da natureza. Seria interessante examinar um homem por
si mesmo instruído e ver o que ele se tornaria para os outros. Pelo menos, a verdade, a solidez estariam no
seu carácter, seria um e mostrar-se-ia como é, sem dar importância à opinião; não desejaria parecer, mas
ser feliz; se porventura o duplo objectivo a que nos propomos pudesse reunir-se num só, ao remover as
contradições do homem, remover-se-ia um grande obstáculo à sua felicidade.”180
A volumosa obra de carácter eminentemente pedagógico procura assim educar
Émile (que representa, simultaneamente, cada homem e o género humano) para a
prática da virtude, que o levará à felicidade individual e colectiva, particular e universal.
Émile foi condenado à fogueira em Junho de 1762 (ano da sua publicação) e é referido
nas Confessions como sendo “o melhor” e “o mais importante” dos seus escritos (C, XI,
p. 573). Insurgindo-se contra os costumes da sociedade do seu tempo, a educação que
Rousseau propõe corresponde a diferentes fases da maturação da criança até à idade
adulta, expostas nos cinco livros da obra. A Idade da Natureza (até aos doze anos)
corresponde à educação sensorial, em que a vida da criança deve desenrolar-se
naturalmente no campo, longe da cidade e da corrupção dos costumes (nesta fase, a
educação negativa é a mais apropriada e segura); a Idade da Força (dos doze aos
dezasseis) será prioritariamente ocupada com o desenvolvimento das suas competências
manuais, e Émile deverá adquirir alguns conhecimentos, escolherá de forma criteriosa
um ofício, devendo manter-se afastado da ciência e da retórica; a Idade da Razão e das
Paixões (cerca dos dezasseis anos) corresponde à sua formação moral e religiosa e
antecederá a sua entrada efectiva na sociedade; finalmente, na Idade da Sabedoria e do
Casamento (dos vinte aos vinte e cinco anos) ficará apto a constituir família. O último
livro é precisamente dedicado a Sophie, que virá a ser a mulher de Émile. Sophie181
180 “Je n’envisage pas comme une institution publique ces établissements insensés qu’on appelle colléges.
Je ne compte pas non plus l’éducation du monde parce que cette éducation […] n’est propre qu’à faire des
hommes doubles et faux paraissant toujours rapporter tout aux autres et ne rapportant jamais rien qu’à eux
seuls. Reste donc l’éducation domestique ou celle de la nature. Il serait curieux d’examiner un homme
élevé pour lui et de voir ce qu’il deviendrait pour les autres. Au moins la vérité, la solidité seraient dans
son caractère, il serait un et se montrerait tel qu’il est, il ne donnerait rien à l’opinion, il ne voudrait pas
paraitre heureux mais l’être; si peut-être le double objet qu’on se propose pouvait se réunir en un seul, en
ôtant les contradictions de l’homme on ôterait un grand obstacle à son bonheur.” (É, Manuscrit Favre, livre IV, OC IV, p. 59). 181 É bem visível que, aqui, Rousseau não foi muito mais além do seu tempo e da função doméstica da
mulher, largamente criticada. Wollestonecraft, por exemplo, critica Rousseau por ter procurado não só
defender, como legitimar a subordinação das mulheres ao domínio masculino. Rousseau será o primeiro
visado no capítulo 5 da obra de 1792. Cf. WOLLESTONECRAFT, Mary, “Writers who have rendered
women objects of pity, bordering on contempt”, in A Vindication of the Rights of Woman with Strictures
81
ficará fora da vida política, sendo-lhe reservado o papel doméstico, não entrará em
disputas com Émile nem este com ela, pois os espaços diferentes que lhe estão
reservados serão complementares, não incompatíveis:
“Sophie deve ser mulher, assim como Émile é homem […] encontramos entre eles tantas
afinidades e tantas oposições, que talvez seja uma das maravilhas que a natureza fez, ter fabricado dois
seres tão parecidos constituindo-os tão diferentemente […]. Na união dos sexos, cada um deles concorre
igualmente para o objectivo comum, mas não da mesma maneira.”182
Segundo Rousseau, todas as fases da educação de Émile até à sua união com
Sophie são importantes, mas a que mais se destaca é incontestavelmente a fase da
puberdade, descrita no livro IV da obra. Após a educação da dimensão física e manual,
é preciso agora formar social, moral e religiosamente Émile. Se se pretende formar um
homem livre e sensato, que aja virtuosamente em sociedade, é preciso, em primeiro
lugar, bem compassar a educação, deixando a criança ser criança, prolongando ao
máximo a fase de desenvolvimento da sua natureza e mantendo-a afastada o mais
possível do ruído social e dos malefícios da sociedade. Dotando-a de inteligência prática
e de habilidades manuais, será, depois, já só na idade da razão e das paixões, que estará,
finalmente, apta a exercitar a sua subjectividade, exercício que deverá ser apenas
orientado e não comandado. O livro IV destaca-se de todos os outros e, no seu interior,
sobressai a Profession de Foi. Se se educou anteriormente o plano físico, de acordo com
a natureza, é agora tempo de educar a alma, de formar o homem moral, dotá-lo de
cidadania. Fruto da educação natural recebida anteriormente, será agora o momento de
receber orientações sociais, morais e religiosas, que lhe permitirão fazer parte do corpo
social e político, sem deixar de ser homem, mas aprendendo a ser um cidadão, num
novo plano de liberdade. É tempo de fazer o jovem Émile observar-se, ver-se, ouvir o
seu coração e a sua consciência, que falam a voz da natureza e ditam os princípios que
interessam. Émile será o bom, modesto e sensato homem, que sente compaixão pelo
outro; não sucumbe ao egoísmo social, é natural e verdadeiro, dialoga sempre
respeitosamente e, não sendo palavroso, profere as palavras certas num discurso sempre
útil:
on Political and Moral Subject (obra editada, pela primeira vez, em 1792), 2010, pp. 53-71. Disponível
em http://www.earlymoderntexts.com/assets/pdfs/wollstonecraft1792.pdf (consultado a 06/02/2017). 182 “Sophie doit être femme comme Émile est homme […] nous trouvons entre eux tant de rapports et tant
d’oppositions, que c’est peut-être une des merveilles de la nature d’avoir pu faire deux êtres si semblables
en les constituant si différemment. […]. Dans l’union des sexes chacun concourt également à l’objet
commun, mais non pas de la même manière.” (É, livre IV, OC IV, pp. 692-693).
82
“A sua maneira de se apresentar não é nem modesta nem pretensiosa, é natural e verdadeira; não
conhece nem o embaraço nem o fingimento e é no meio de um círculo o que ele é sozinho e sem
testemunhas. […] Fala pouco [e] só diz coisas úteis [e] nunca se sente tão à-vontade como quando
ninguém lhe presta atenção […] estando sempre calmo, não se deixa tomar pela falsa vergonha. Seja ou
não observado, faz sempre o seu melhor [e] aproveita os usos com uma facilidade que os escravos da
opinião não conseguem.”183
Émile representa o género humano e o género humano corresponde, assim, a um
conjunto ilimitado de “Émiles”. Como Du Contrat Social, também Émile está longe de
representar o regresso ao estado natural ou ao estado selvagem (este último supõe já
uma certa organização social). Pelo contrário, o objectivo é preparar o melhor possível a
entrada do jovem para a sociedade, após ter havido lugar ao desenvolvimento da
criança, de acordo com a sua individualidade, consoante o seu ritmo e aprendizagem,
em conformidade com os seus interesses, competências e aptidões naturais. Émile
fornece uma proposta educacional com pressupostos pedagógicos inovadores e
contrários ao seu tempo, no qual os homens fizeram da educação um processo de
agrilhoamento e de domínio, que os aproximou mais do mal do que da virtude, visíveis
nos actos que praticam em sociedade. As palavras que inauguram o Émile dizem muito
em relação a isso:
“Tudo está bem nas mãos do autor das coisas, tudo degenera nas mãos do homem. Este obriga
uma terra a nutrir as produções de outra, uma árvore a dar frutos de outra. Mistura e confunde os climas,
os elementos, as estações; mutila o seu cão, o seu cavalo, o seu escravo. Transtorna tudo, desfigura tudo:
ama a disformidade, os monstros. Não quer nada tal como o fez a natureza, nem mesmo o homem; tem de
ensiná-lo para si, como um cavalo de picadeiro; tem que moldá-lo a seu jeito como uma árvore do seu
jardim.”184
Rousseau recusa a erradicação da possibilidade da felicidade que convém à
natureza humana. Pelo contrário, considera ser possível minorar as consequências e os
efeitos negativos do progresso civilizacional que vê surgirem na sociedade do seu
183 “Sa manière de se présenter n’est ni modeste ni vaine, elle est naturelle et vraye; il ne connaît ni gêne
ni déguisement e il est au milieu d’un cercle ce qu’il est seul et sans témoin. […] Il parle peu [et] il ne dit
que des choses utiles [et] jamais il n’est plus à son aise que quand on ne prend pas garde à lui […]
qu’étant toujours tranquille, il ne se trouble point par la mauvaise honte. Soit qu’on le regarde ou non, il
fait toujours de son mieux ce qu’il fait [et] il saisit les usages avec une aisance que ne peuvent avoir les
esclaves de l’opinion.” (PF, OC IV, pp. 665-667). 184 “Tout est bien, sortant des mains de l’auteur des choses: tout dégénère entre les mains de l’homme. Il
force une terre à nourrir les productions d’une autre; un arbre à porter les fruits d’un autre. Il mêle et
confond les climats, les éléments, les saisons. Il mutile son chien, son cheval, son esclave. Il bouleverse
tout, il défigure tout: il aime la difformité, les monstres. Il ne veut rien tel que l’a fait la nature, pas même
l’homme; il le faut dresser pour lui comme un cheval de manège; il le faut contourner à sa mode comme
un arbre de son jardin.” (É, livre I, OC IV, p. 245).
83
tempo. Ora, a educação é fundamental para evitar este processo de degeneração absoluta
das coisas nas mãos dos homens:
“Tratam-se as plantas pela cultura e os homens pela educação. Se o homem nascesse grande e
forte, o seu tamanho e a sua força ser-lhe-iam inúteis até que os aprendesse a usar […]. Nascemos fracos,
precisamos de forças; nascemos desprovidos de tudo, temos necessidade de assistência; nascemos
estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos enquanto adultos é-
nos dado pela educação.”185
O filósofo destaca três mestres na educação dos homens: a natureza, os homens
e as coisas:
“Esta educação vem-nos ou da natureza, ou dos homens, ou das coisas. O desenvolvimento
interno das nossas faculdades e dos nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a
fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e o acervo da nossa própria existência sobre os
objectos que nos afectam é a educação das coisas.”186
A criança deve aprender com os três mestres, respeitando-se a si própria e
desenvolvendo-se inicialmente apenas segundo a sua natureza; depois, relacionando-se
com as coisas e, finalmente, estará apto a tornar-se adulto, um homem que melhor saiba
agir em sociedade. Os três mestres devem estar em sintonia, visando o mesmo
objectivo:
“Cada um de nós é, portanto, formado por três espécies de mestres. O aluno em quem as diversas
lições desses mestres se contrariam é mal formado e nunca estará de acordo consigo mesmo. Aquele em
quem todas visam os mesmos pontos e tendem para os mesmos fins, vai sozinho ao seu objectivo e vive
em consequência. Só esse é bem educado.”187
São muitas as ideias inovadoras de Rousseau no âmbito educacional,
nomeadamente o facto de reivindicar para a infância o espaço da infância, devolver à
criança a sua meninice, não lhe exigindo que seja um adulto em miniatura e, pelo
185 “On façonne les plantes par la culture, et les hommes par l’éducation. Si l’homme naissait grand et
fort, sa taille et sa force lui seraient inutiles jusqu’à ce qu’il eut appris à s’en servir […]. Nous naissons
faibles, nous avons besoin de forces; nous naissons dépourvus de tout, nous avons besoin d’assistance;
nous naissons stupides, nous avons besoin de jugement. Tout ce que nous n’avons pas à nôtre naissance
et dont nous avons besoin étant grands nous est donné par l’éducation.” (ibid., p. 246). 186 “Cette éducation nous vient de la nature, ou des hommes, ou des choses. Le développement interne de
nos facultés et de nos organes est l’éducation de la nature; l’usage qu’on nous apprend à faire de ce
développement est l’éducation des hommes; et l‘acquis de notre propre expérience sur les objets qui nos
affectent est l’éducation des choses.” (ibid., p. 247). 187 “Chacun de nous est donc formé par trois sortes de maîtres. Le disciple dans lequel leurs diverses
leçons se contrarient est mal élevé, et ne sera jamais d’accord avec lui-même. Celui dans lequel elles
tombent toutes sur les mêmes points et tendent aux mêmes fins va seul à son but et vit consequemment.
Celui-là seul est bien élevé.” (ibid., p. 247).
84
contrário, dando-lhe tempo e espaço para estar mais próximo da sua natureza. A fase da
aprendizagem social é adiada para os anos da puberdade, onde, mais do que em
qualquer outra fase e, como podemos constatar na Profession de Foi, o aprendiz é
valorizado como agente prioritário do seu próprio processo ensino-aprendizagem. Só
nessa fase avançada da sua idade estará apto a protagonizar o seu próprio exercício de
subjectividade, a observar-se bem, ver em si a natureza de todo o género humano, entrar
e virtuosamente viver em sociedade. A universalidade da subjectividade vê-se, assim,
bem mais expressiva na fase tardia da educação do jovem, pois só aí estará apto ao
exercício subjectivo que o levará a observar a sua natureza originária e a reconhecer a
necessidade de uma segunda natureza social.
Na Profession de Foi, considerado pelo próprio autor como uma “obra
indignadamente prostituída e profanada na geração presente, mas que pode um dia
provocar uma revolução entre os homens, se entre eles voltar a haver bom senso e boa-fé”
(R, 3e, p. 1018), a questão da universalidade surge directamente relacionada com a
formação religiosa. No texto que ocupa mais de cem páginas do livro IV do Émile,
Rousseau mostra-se irritado com a falta de universalidade na acepção de Deus,
considerando absolutamente inusitada a existência de diversas religiões e diferentes
modos de perspectivar um mesmo e único Deus. O problema de acesso a Deus só se
resolve quando o homem percebe que deve abster-se de procurar o entendimento e
deixa, consequentemente, de procurar a sua descrição por meio do discurso. Deve antes
ser pensado/sentido por cada um, no exercício de subjectividade que ouve a razão e o
coração, pois só na concomitância das duas dimensões se encontra a única linguagem
que é preciso entender e que se manifesta naturalmente ao homem. Mais uma vez, os
livros nada acrescentam:
“[…] a Europa está cheia de livros […]. Como pode o homem ter necessidade deles para
conhecer os seus deveres, e que meios foram utilizados para os conhecer antes de esses livros terem sido
feitos? Ou ele aprenderá os seus deveres por si mesmo, ou está dispensado de os saber.”188
Este modus operandi característico do pensar rousseauniano, que implica o
exercício de subjectividade individual de cada homem, permitirá chegar à
universalidade que interessa e à união com os outros homens. Neste caso em particular,
a religião natural retomará as ideias e sentimentos que melhor definem, configuram e
188 “[…] l’Europe est pleine des livres. […] Comment donc l’homme en aurait-il besoin pour connaître
ses devoirs et quels moyens avait-il de les connaître avant que ces livres fussent faits ? Où il apprendra
ces devoirs de lui-même ou il est dispensé de les savoir.” (PF, OC IV, p. 620).
85
promovem a prática da virtude na interacção social. Mas, para isso, o jovem não deverá
receber uma formação religiosa institucional. Os preceitos religiosos encontram-se em
si mesmo e, portanto, só um exercício de subjectividade bem orientado permitirá o seu
reconhecimento. Rousseau recusa a autoridade eclesiástica, por considerar que esta não
tem qualquer fundamento que a justifique, pois “a Igreja decide que a Igreja tem o
direito de decidir” (PF, p. 620). As diferentes religiões (cristianismo, judaísmo,
islamismo – cf. PF, p. 619) fornecem diferentes versões da esfera divina e estão “longe
de esclarecer as noções do grande Ser” (PF, p. 607). Mais uma vez, só o exercício de
subjectividade pode dar a conhecer a universalidade religiosa que interessa a todos,
estando os verdadeiros preceitos religiosos inscritos em cada homem. Para o filósofo,
não há intermediários legítimos entre Deus e os homens, tal como afirma no Émile,
anteriormente ao capítulo da Profession de Foi:
“[…] o que Deus quer que um homem faça, não o manda dizer por um outro homem, di-lo ele
mesmo, inscreve-o no fundo do seu coração.”189
Na Profession de Foi repetirá a mesma a ideia:
“Se ele [Deus] fala a todos os corações, porque é que então tão poucos o entendem? Eh! É
porque ele nos fala a linguagem da natureza, que todos fizemos por esquecer. A consciência é tímida, ama
o isolamento e a paz; o mundo e o ruído aterrorizam-na […].”190
O Émile e o Du Contrat Social traduzem a possibilidade de construir uma
melhor sociedade, fornecendo os princípios que evitarão o abuso dos males sociais,
éticos e políticos dos homens. Ora, para Rousseau, tal só é possível se houver lugar a
um cruzamento pacífico no interior da relação ela mesma conflituosa entre a
individualidade e a universalidade. Esse entendimento mútuo e pacífico dá-se no
exercício da subjectividade humana, no qual o homem percebe a sua natureza originária
e recebe a sua natureza social. O homem em sociedade não pode perder de vista a sua
natureza, ainda que nunca mais a recupere. É preciso atender às necessidades sociais
que a própria natureza humana demanda, isto é, a educação, a moral, a política e a
religião devem ter em conta o que é natural ao homem para que, na artificialidade
inevitável da sociedade, possa conviver bem com as leis, normas, direitos e deveres, que
estão ausentes e são absolutamente dispensáveis no seu estado de natureza. Por isso,
189 “[…] ce que Dieu veut qu’un homme fasse, il ne le lui fait pas dire par un autre homme, il le dit lui-
même, il écrit au fond de son cœur.” (É, livre IV, OC IV, p. 491). 190 “S’il [Dieu] parle à tous les cœurs, pourquoi donc y en a-t-il si peu qui l’entendent? Eh! C’est qu’il
nous parle la langue de la nature, que tout nous a fait oublier. La conscience est timide, elle aime la
retraite et la paix; le monde et le bruit l‘épouvantent […].” (PF, OC IV, p. 601).
86
Rousseau alerta para a necessidade de a organização política se basear na adesão livre
do homem ao corpo social. Em Du Contrat Social, o filósofo mostra a adesão do
homem à lei numa perspectiva de assentimento voluntário e livre, retirando-lhe o
carácter de mera obrigatoriedade submissa e dominada. A educação de Émile será, pois,
orientada para a liberdade civil, sob contorno moral, ou seja, para a cidadania e
consciência cívica, de modo a que cada ser humano compreenda que fazer parte de um
todo implica querer fazer parte desse todo e fazer o bem. Neste sentido, e numa visão
profundamente pioneira para o seu tempo, Rousseau vê a ligação indissociável entre a
moral, a educação e a política na prática da virtude e do bem, que, aliás, já tinha
registado no Discours de 50: “Na política, como na moral, é um grande mal não fazer o
bem” (D1, II, p. 18).
A obra Du Contrat Social é um texto de carácter jurídico, composto por quatro
livros, os quais, por sua vez, estão divididos em 9, 12, 18 e 9 capítulos, respectivamente.
Nesta obra, Rousseau avança com uma nova terminologia em relação às obras
anteriores: contrato social, corpo político, vontade geral, soberania popular, liberdade
civil, igualdade civil, direito político, cidadão, soberania e leis, formas de governo,
direito de voto, regulação de leis, relação entre o povo e o Estado. Também aqui
Rousseau contraria a tradição dos teóricos políticos que são referidos ao longo da obra,
nomeadamente, Bodin, Grócio, Hobbes, Locke e Pufendorf.191
Mais incisivo na crítica a
uns do que a outros, a sua referência serve para se demarcar da mesma e apresentar
novas propostas. Rousseau propõe reflectir sobre os princípios de uma organização
política que se afaste da sociedade do seu tempo, na qual os homens vivem
aprisionados, dominados, agrilhoados, sem liberdade, sem justiça e, portanto, numa
dependência submissa e de modo desigual:
“O homem nasce livre e em toda a parte está a ferros. […] Mas a ordem social é um direito
sagrado, que serve de base a todos os outros. Contudo, este direito não vem da natureza; está, portanto,
fundamentado em convenções. Importa saber quais são essas convenções.”192
Para alterar uma sociedade que vê dominada, submissa, politicamente arruinada,
Rousseau indaga os princípios do direito político, universais e resultantes do exercício
de subjectividade que vê o que convém ao homem socialmente integrado, longe do
191 Destes, Grócio é o mais criticado em toda a obra. 192 “L’homme est né libre, et partout il est dans les fers. […] Mais l'ordre social est un droit sacré, qui sert
de base à tous les autres. Cependant ce droit ne vient point de la nature; il est donc fondé sur des
conventions. Il s'agit de savoir quelles sont ces conventions.” (CS, I, 1, OC III, pp. 351-352).
87
estado de natureza. O texto de Du Contrat Social não dita a solução milagrosa, nem
fornece o quadro completo de uma sociedade de homens livres e felizes, mas fornece os
instrumentos e os princípios sobre os quais os homens poderão viver autonomamente
sob a dependência social. E é, por isso, frequentemente apontado como estando na
vanguarda dos ideais da democracia, antecipando questões que ultrapassam o seu
século, tais como a relação entre os estados e as nações, a globalização e a mundialização
das culturas e dos povos. Apesar da controvérsia existente acerca da sua filosofia
política, é maioritariamente considerado um revolucionário (surgindo desde logo como
uma importante referência na Revolução Francesa de 1789, a que não chegou a
assistir). O perfil revolucionário do filósofo é frequentemente exaltado193
; é curioso
que, na única referência que faz a Rousseau, nas suas Tendências Gerais da Filosofia
na segunda metade do séc. XIX, Antero de Quental exalte a “paixão revolucionária”194
de Rousseau. Della Volpe é um dos muitos autores que dá a ver o contributo de Rousseau
na separação dos poderes do estado na democracia.195
Rousseau é também uma
referência obrigatória em qualquer reflexão acerca da política e do direito, estando
incontestavelmente marcada a sua presença, desde logo, na redacção do artigo 1º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948: “Todos os
seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de
consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. O
contributo de Rousseau para a filosofia do direito e da política é incontestável. O
filósofo é frequentemente referido como um dos protagonistas do arranque da primeira
geração dos Direitos Humanos, ainda no séc. XVIII, patente na reivindicação de uma
soberania popular, dos seus direitos cívicos, bem como da liberdade face ao Estado. Na
segunda geração dos direitos humanos, Rousseau continua a estar presente na
reivindicação dos direitos sociais, económicos, culturais e garantes que o Estado deve
salvaguardar, patentes em diversas Constituições do início do século XX. E ainda na
terceira geração, já após o final da Segunda Guerra Mundial, Rousseau continua a ser
referido no que respeita à pessoa, à sua dignidade e humanidade, na Declaração de 48.
193 A relação da obra rousseauniana com a história das revoluções não é incomum. A este propósito, leia-
se a relação estabelecida entre Rousseau e a revolução de 1820: PINTO, Ana Margarida Ferreira, De
Rousseau ao imaginário da revolução de 1820, Lisboa, ed. Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de História da Cultura da UNL, 1988. 194 QUENTAL, Antero de, Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX, prefácio e
notas de Leonel Ribeiro dos Santos, Lisboa, Ulmeiro, 1982, p. 41. 195 Cf. “O problema da liberdade igualitária no desenvolvimento da moderna Democracia, ou seja: o
Rousseau vivo”, in DELLA VOLPE, Galvano, Rousseau e Marx – a Liberdade Igualitária, op. cit., pp.
39-54.
88
Segundo Rousseau, cabe repensar o todo social e o modo como poderá ser
legitimamente relacionada a liberdade do homem e a submissão à sociedade, os seus
interesses particulares e os interesses comuns, a sua vontade particular e a vontade
geral, a individualidade e a universalidade. Mais uma vez, será o exercício de
subjectividade a dar a ver a reconstituição necessária ao problema que, retomando o
homem natural, percebe que nunca ao homem seria possível retirar a liberdade, mas que
esta deverá ser pensada noutros moldes, na perspectiva do homem civil e civilizado, que
é, afinal, o cidadão. O problema já tinha sido bem exposto no Émile:
“Há duas espécies de dependências. A das coisas, que é a da natureza; a dos homens, que é a da
sociedade. A dependência das coisas, não tendo nenhuma moralidade, não é nociva à liberdade e não dá
origem a vícios. A dependência dos homens, sendo desordenada, origina-os todos, e é através dela que o
senhor e o escravo se depravam mutuamente. Se há qualquer meio de remediar esse mal na sociedade, é
substituir a lei ao homem e armar as vontades gerais de uma força real superior à acção de toda a vontade
particular. Se as leis das nações pudessem ter, como as da natureza, uma inflexibilidade que jamais
alguma força humana pudesse vencer, a dependência dos homens voltaria a ser então a das coisas; reunir-
se-iam, na República, todas as vantagens do estado natural às do estado civil; à liberdade que mantém o
homem isento de vícios juntar-se-ia a moralidade que o eleva à virtude.”196
Vemos assim já antecipadas no Émile as noções de vontade geral e soberania
popular, alicerces do contrato social, no qual o homem poderá agora viver na
dependência social do outro, mas sem se deixar aprisionar, pois não usufruir de
liberdade seria “renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade e mesmo
aos seus deveres” (CS, I, 4, p. 356). Será, pois, por alienação que procede ao pacto
social e fará parte integrante do todo social e do corpo político, ganhando uma nova
liberdade, a adequada ao seu novo estado:
“As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do acto que a menor
modificação torná-las-ia vãs e sem efeito; de modo que, embora talvez nunca tenham sido formalmente
enunciadas, elas são as mesmas em todo o lado, tacitamente admitidas e reconhecidas em todo o lado, de
modo que, sendo o pacto social violado, cada um recupera os seus primeiros direitos e retoma a sua
liberdade natural, perdendo a liberdade convencional em virtude daquela que renunciou. Estas cláusulas,
196 “Il y a deux sortes de dépendance. Celle des choses qui est de la nature; celle des hommes qui est de la
société. La dépendance des choses n'ayant aucune moralité ne nuit point à la liberté et n'engendre point de
vices. La dépendance des hommes étant désordonnée les engendre tous, et c'est par elle que le maître et
l'esclave se dépravent mutuellement. S'il y a quelque moyen de remédier à ce mal dans la société c'est de substituer la loi à l'homme, et d'armer les volontés générales d'une force réelle supérieure à l'action de
toute volonté particulière. Si les lois des nations pouvaient avoir comme celles de la nature une
inflexibilité que jamais aucune force humaine ne put vaincre, la dépendance des hommes deviendrait
alors celle des choses, on réunirait dans la République tous les avantages de l'état naturel à ceux de l'état
civil, on joindrait à la liberté qui maintient l'homme exempt de vices la moralité qui l'élève à la vertu.” (É,
livre II, OC IV, p. 311).
89
bem entendidas, reduzem-se todas a uma – a saber, a alienação total de cada associado com todos os seus
direitos a favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, entregando-se cada um por inteiro, a
condição é igual para todos e sendo a condição igual para todos, ninguém tem interesse em torná-la
onerosa aos outros.”197
Pelo assentimento voluntário, o homem faz parte integrante do corpo político,
deixa de haver relação servil entre senhores e escravos, todos concorrem para o bem
colectivo e cada um é simultaneamente soberano e súbdito:
“No momento, em vez da pessoa particular de cada contratante, este acto de combinação produz
um corpo moral e colectivo composto por tantos membros quanto os da assembleia de vozes, a qual
recebe deste mesmo acto a sua unidade, o seu eu comum, a sua vida e a sua vontade [tornando-se] pessoa
pública assim formada pela união de todas as outras. […] Em relação aos associados, tomam
colectivamente o nome de povo, e são denominados em particular cidadãos enquanto participantes da
autoridade soberana, e súbditos enquanto submetidos às leis do Estado.”198
Ao conciliar a vontade particular com a vontade geral, Rousseau concilia
também a dimensão individual com a dimensão social do homem, mas não esconde o
problema desta conciliação, uma vez que “cada indivíduo pode, como homem, ter uma
vontade particular contrária ou diferente da vontade geral que tem como cidadão” (CS,
I, 7, p. 363).
Na verdade, a vontade geral não é o mesmo que vontade universal; as duas
expressões não se confundem. Rousseau não refere a vontade universal, apenas a
vontade geral, recebendo esta um rigoroso contexto filosófico-político em Du Contrat
Social. Contudo, também o conceito da vontade geral resulta da observação da natureza
humana e da felicidade que lhe convém, traduzindo, juntamente com outros conceitos
(pacto social, soberania popular, cidadão, entre outros), o universo político que mais
convém ao homem do estado civilizado. Rousseau considera que os princípios que mais
197 “Les clauses de ce contrat sont tellement déterminées par la nature de l'acte, que la moindre
modification les rendrait vaines et de nul effet; en sorte que, bien qu'elles n'aient peut-être jamais été
formellement énoncées, elles sont partout les mêmes, partout tacitement admises et reconnues, jusqu'à ce
que, le pacte social étant violé, chacun rentre alors dans ses premiers droits, et reprenne sa liberté
naturelle, en perdant la liberté conventionnelle pour laquelle il y renonça. Ces clauses, bien entendues, se
réduisent toutes à une seule – savoir, l'aliénation totale de chaque associé avec tous ses droits à toute la
communauté: car, premièrement, chacun se donnant tout entier, la condition est égale pour tous; et la
condition étant égale pour tous, nul n'a intérêt de la rendre onéreuse aux autres.” (CS, I, 4, OC III, pp.
360-361). 198 “A l‘instant, au lieu de la personne particulière de chaque contractant, cet acte de association produit
un corps moral et collectif composé autant de membres que l’assemblé a de voix, lequel reçoit de ce
même acte son unité, son moi commun, sa vie et sa volonté [en se devient] personne publique qui se
forme ainsi par l’union de toutes les autres […] A l’égard des associés ils prennent collectivement le nom
de peuple, et s’appellent en particulier citoyens comme participants à l’autorité souveraine, et sujets
comme soumis aux lois de l’État.” (ibid., I, 6, pp. 361-362).
90
promoverão a felicidade dos homens, sob o ponto de vista político, indissociável do da
moral, estão inscritos na natureza humana, acessível a todos, por meio do exercício de
subjectividade. Quanto à sua aplicação prática, a Rousseau nada mais deve ser exigido,
pois não é príncipe nem legislador, como, aliás, faz questão de esclarecer (CS, I, p. 351).
O sucesso ou insucesso da aplicação dos seus princípios (educacionais, morais,
políticos) caberá a quem de direito, ou seja, aos poderes instituintes das sociedades
vindouras. Perante a sociedade de servidão do seu tempo, assim como face à recusa das
suas ideias pelos seus contemporâneos, será mais para aquelas que o seu contributo se
destina. Este carácter de inacabamento e de sentido de futuro vem reforçar mais ainda a
universalidade da sua subjectividade, característica do conjunto das suas obras,
incluindo as Confessions e as Rêveries, textos frequentemente considerados à parte.
Como podem as Rêveries e as Confessions, textos intimistas e considerados os
maiores exemplos do subjectivismo de Rousseau, ilustrar a universalidade da
subjectividade? É certo que estes textos são frequentemente remetidos para um
subjectivismo de índole sentimental e rejeitados como textos filosóficos. José Óscar
Marques contraria esta tendência e mostra como os relatos autobiográficos de Rousseau
alcançam a universalidade característica da filosofia199
, perspectiva que partilhamos. Com
efeito, os textos apresentam um testemunho pessoal, mas veiculam a subjectividade
universal, considerada por nós como a maior característica da sua filosofia.
Tal como nas obras anteriores, trata-se ainda de dizer a verdade, quer nas
Confessions, quer nas Rêveries:
“Eu disse a verdade. Se alguém tem conhecimento de coisas contrárias ao que acabo de expôr,
houvessem elas sido mil vezes provadas […]. Por mim, declaro-o abertamente e sem medo: quem quer
que, mesmo sem ter lido os meus escritos, examinar pelos seus próprios olhos a minha natureza, o meu
carácter, os meus costumes, as minhas inclinações, os meus prazeres, os meus hábitos e chegue à
conclusão de que sou um homem indigno, é ele mesmo um homem a eliminar.”200
199 Cf. MARQUES, José Óscar de Almeida, “Rousseau e a possibilidade de uma autobiografia filosófica”
in AAVV, Reflexos de Rousseau, op. cit., pp. 153-172.” 200 J’ai dit la vérité. Si quelqu’un sait des choses contraires à ce que je viens d’exposer, fussent-elles mille
fois prouvées […]. Pour moi je le déclare hautement et sans crainte: quiconque, même sans avoir lu mes
écrits, examinera par ses propres yeux mon naturel, mon caractère, mes mœurs, mes penchants, mes
plaisirs, mes habitudes et pourra me croire un malhonnête homme, est lui-même un homme à étouffer.” (C, livre XII, OC I, p. 656). Segundo Rousseau, estas foram as palavras ditas após a leitura do
seu escrito “à M. et Mme la Comtesse d’Egmont, à M. le Prince Pignatelli, à Mme la Marquise de
Mesnie, et à M. le Marquis de Juigné.” (ibid., p. 656). A terminar as suas Confessions, o filósofo diz
ainda que, após estas palavras, não obteve qualquer reacção do seu auditório, a não ser a de Madame de
Egmont que se terá mostrado comovida e terá até estremecido, mas para de imediato se refazer e manter
silenciosa, como todos os outros. Cf. ibid., p. 656.
91
Na quatrième promenade, dedicada à reflexão sobre a mentira e a verdade,
Rousseau define assim a verdade, procedendo à distinção entre a verdade geral e
abstracta e a verdade particular e concreta:
“A verdade geral e abstracta é o mais precioso de todos os bens. Sem ela, o homem é cego; ela é
a luz da razão. É por ela que o homem aprende a comportar-se, a ser o que deve ser, a fazer o que deve
fazer, a tender para a sua verdadeira finalidade. A verdade particular e individual nem sempre é um bem;
por vezes, é um mal, e, muito frequentemente, é uma coisa de pouca importância.”201
A aparente contradição deste excerto entre a supremacia aqui dada à verdade
geral e abstracta em face da verdade particular e individual que Rousseau também
enaltece várias vezes ao longo dos seus textos é, mais uma vez, e meramente, de índole
verbal e linguística202
, e não filosófica, pois Rousseau reúne as duas na sua própria
filosofia. A verdade geral do género humano engloba as verdades particulares dos
homens. A verdade geral é boa precisamente porque engloba as verdades particulares, e
esta tese vale tanto para a vida colectiva dos homens (sob o pacto social,
especificamente), como também para a própria vida relatada nos textos autobiográficos,
nos quais a verdade é geral, não obstante algumas eventuais inverdades relativas a
situações particulares descritas. Nestes casos, não se trata tanto de inverdades, antes de
episódios ornamentados pela memória que se socorre da imaginação.
Rousseau afirma que a verdade expressa nas Confessions e nas Rêveries não pode
ser posta em causa, uma vez que, resultando de um exercício autêntico de subjectividade,
não poderia assentar na falsidade ou na mentira. Tudo o que ali foi dito, tudo o que foi
relatado, contado, descrito e até imaginado ou acrescentado diz verdadeiramente respeito
à sua vida ou à sua forma de ser, estar, pensar e sentir, e estas não mentem. A verdade das
Confessions e das Rêveries é a mesma e reporta-se à descrição da sua pessoa, tal como é
“ao natural”, partilhando universalmente a natureza de um homem, que poderia ser outro,
que poderia ser o leitor que, sendo apenas um homem, contém em si toda a humanidade.
Pintando-se para se mostrar ao mundo, apresenta cores de um retrato privado e público,
ao mesmo tempo e sem contradição. Oferece o seu auto-retrato, que é também o seu
hetero-retrato, o resultado da visão de Rousseau sobre Jean-Jacques ou de Rousseau sobre
201 “La vérité générale et abstraite est le plus précieuse de tous les biens. Sans elle lʼhomme est aveugle;
elle est l’œil de la raison. Cʼest par elle que lʼhomme apprend à se conduire, à être ce quʼil doit être, à
faire ce quʼil doit faire, à tendre à sa véritable fin. La vérité particuliere et individuelle nʼest pas toujours
un bien, elle est quelquefois un mal, très-souvent une chose indifférente.” (R, quatrième promenade, OC
I, p. 1026). 202 Esta ideia é corroborada por um número significativo de investigadores da obra de Rousseau.
92
Rousseau, mas não de Jean-Jacques sobre Rousseau. Mesmo que, em alguns momentos,
esteja presente apenas o homem que teme a morte e as contas que sente ter de prestar a
Deus, é sempre o filósofo (que muitos apelidaram de filósofo-criador, de filósofo-artista,
de filósofo-escritor) quem prevalece, precisamente por assumir em tom confessional e
meramente pessoal o carácter universal da sua filosofia da subjectividade.
O texto das Confessions está dividido em doze livros, separados em duas partes
iguais, cada uma com seis livros. São tantos os relatos e as anedotas de uma vida errante
que daremos aqui apenas alguns (muito poucos, dado o imenso universo existente) de
exemplos203
: o nascimento e a morte da sua mãe, alguns episódios de infância, dos quais
se destacam o seu convívio com o primo Bernard; o ofício de gravador e a figura de um
patrão injusto e bruto (livre I); o momento em que conheceu Madame de Warens, o tempo
que passou em Turim, o primeiro despedimento (livre II); o gosto pela música, o estudo
para padre, o tempo que passou em Annecy e Lyon, (livre III); a fase em que esteve ao
serviço do coronel Godarg, as relações com as mulheres, o tempo que passou em
Friburgo, Lausana, lago de Genebra, Neuchâtel, Berna, Boudry, Paris, Lyon, Soleure, e
Chambéry (livre IV); a relação com os seus alunos (desempenha exclusivamente a
profissão de professor de música), o tempo passado em Besançon, Chambéry e no campo
(livre V); os estudos diversos, entre os quais astronomia e anatomia, o cargo de preceptor,
o tempo passado em Chambéry, Montpellier, Saint-Andéol (livre VI); a morte do seu pai,
o nascimento do primeiro e do segundo filho, a sua entrega na Roda, o cargo de secretário
de Madame Dupin e M. de Francueil, o tempo passado em Paris, Lyon, Veneza (onde
desempenha o cargo de secretário do embaixador de Montaigu, do qual acaba por se
demitir), Genebra (livre VII); a visita a Diderot na prisão de Vincennes e a inspiração para
a resposta à questão da Academia; o cargo de caixa e, posteriormente, de copista de
música, a abjuração do catolicismo e o regresso à igreja protestante, o tempo passado em
Paris, Genebra, Hermitage (livre VIII); a desilusão com os escritos do abade de Saint-
Pierre, o poema de Voltaire sobre o desastre de Lisboa, os relatos de subornos, traições,
desconfianças, o tempo passado em Hermitage, Saint-Lambert, Mont-Louis (livre IX); o
mau estado de saúde, a querela com Diderot e Grimm, a prisão do abade Morellet, o
tempo passado em Mont-Louis, castelo de Montmorency-Petit-Château (livre X); a
203 Servimo-nos do sumário das Confissões da tradução portuguesa que tomámos como referência, cujo
autor não é mencionado. Depreendemos que seja Fernando Lopes Graça, que traduziu a obra, mas poderá
ser também Jorge de Sena que a prefaciou. Cf. “Sumário das Confissões”, in ROUSSEAU, J.-J.,
Confissões, op. cit., vol. II, pp. 361-372.
93
doença grave, a Guerra dos Sete Anos, a suspeita de perseguição pelos jesuítas, a
suspensão da impressão de Émile, a querela com Hume, o tempo passado em Inglaterra,
Suíça, Berna e Yverdun (livre XI); a condenação de Émile à fogueira e a ordem de prisão
do seu autor, a Europa contra Rousseau, as Lettres écrites de la Montagne são queimadas
em praça pública em Paris, a amabilidade do Rei da Prússia, o apedrejamento da casa de
Rousseau pelo povo, o tempo passado em Motiers, ilha de Saint Pierre, França, Córsega,
Berlim, Bienne (livre XII). Em todos os livros das Confessions surgem, para além de
muitos outros relatos, inúmeras referências à redacção, publicação e/ou recepção das suas
obras, às críticas que recebeu, a vários episódios de doença do autor, às diferentes
relações que teve com as mulheres, às diversas querelas tidas com os diferentes patrões
que teve nos múltiplos cargos que desempenhou e às relações polémicas com muitos
outros com quem conviveu, que, para abreviar, não fizemos constar no elenco anterior.
O texto das Rêveries contém os registos diários (entre 76 e 78), que resultam das
caminhadas (passeios), imbuídos pela natureza que ama e da qual sente fazer parte. Neste
último texto, que deixa inacabado, Rousseau retoma as preocupações filosóficas com o
estilo literário, confessional e autobiográfico das Confessions. A vasta bibliografia sobre
esta obra aponta para um inovador uso positivo do termo Rêverie, associado
pejorativamente, na altura, a folie. Além disso, o termo surge semanticamente
enriquecido, ora tomando o significado de meditação, ora de caminhada, ora de êxtase,
ora de devaneio, ora de sonho. A 1e e a 2
e promenades pretendem mostrar ao leitor o
objectivo das suas Rêveries, como sendo o registo fiel e continuado do seu estado de
alma, de pensamento e sentimento, ao longo dos derradeiros anos da sua vida, que optou
por passar longe do ruído da cidade, perto da natureza, apelo que terá sido reforçado com
os males que a sociedade lhe fez. A 3e promenade debruça-se sobre a sua própria velhice
e a aprendizagem que fez durante toda a sua vida, no sentido de poder sair dela melhor do
que tinha entrado, reforçando os seus bons sentimentos e a prática da virtude. Através do
recurso às fábulas e a algumas situações anedóticas, a 4e promenade caracteriza-se pela
reflexão sobre a questão da sinceridade, da verdade, mentira e falsidade. A 5e promenade
caracteriza-se pela descrição do estado de felicidade e pelo elogio do “far niente”, da
ociosidade e tranquilidade dos dias que viveu na Ilha de Saint-Pierre, no meio do lago de
Bienne, na Suíça. A 6e promenade é dedicada à noção de liberdade (natural e civil) e à
importância da benevolência para com o outro. A 7e promenade destaca o seu amor pela
botânica e o quanto esta alimenta as suas reflexões e o conhecimento de si próprio, ao
94
qual dedicou os seus últimos tempos; a 8e promenade reúne o conjunto de apontamentos e
registos que os primeiros editores reuniram postumamente e dizem respeito aos
sentimentos de sofrimento, felicidade, mágoa, mas, sobretudo, à inocência do coração de
um homem que se vê ser bom. A 9e promenade inicia com uma referência à felicidade
como um estado não permanente, refere o seu amor pelas crianças, o abandono dos seus
filhos na Roda, aponta para a relação com os outros. A 10e promenade dá-se a um
“Domingo de Ramos”, inicia com a recordação do dia em que conheceu Madame de
Warens, comemorando o cinquentenário desse primeiro encontro, recordando aquele que
foi o mais intenso amor e até ao final desta caminhada inacabada será o único tema aí
explorado. Não chegou a concluir esta última obra, a pintura ficou inacabada, nesse dia 12
de Abril de 1778. Sendo as Rêveries consideradas pelo filósofo como um apêndice das
Confessions, talvez quisesse ter escrito doze (como o número de livros desta última obra)
e não dez, como teve de ser. O inacabamento das Rêveries é, muitas vezes, referido como
o inacabamento do seu auto-retrato. Mais anos que pudesse escrever e talvez a obra
continuasse inacabada. Porque a obra de Rousseau não está terminada, nem no seu registo
escrito, nem no seu projecto político, nem no seu projecto educacional ou moral.
Rousseau retira-se, é obrigado a retirar-se, a morte é inevitável. Não chega a pintar
totalmente o seu retrato, e é como se dissesse ao leitor que, à maneira
schleiermarcheriana, este tem a obrigação de terminar a sua obra, por tudo o que foi dito,
por todos os seus escritos, por toda uma vida partilhada e exposta, pela generosidade e
grandiosidade da sua filosofia assente numa subjectividade universal, cúmplice e
partilhada com o leitor.
As duas obras contêm inúmeras e exaustivas descrições de episódios, diálogos,
situações, paisagens, pessoas, sentimentos, pensamentos. Lêem-se de um fôlego e o leitor
vê-se a acompanhar todos os relatos das Confessions e todos os passeios reflexivos das
Rêveries, como se assim mesmo tivessem sido, como se ali também tivesse estado, como
se tomasse as dores, os sabores e os dissabores do autor. Com efeito, a comunhão entre o
autor e o leitor que estes textos exigem mostra que Rousseau pretende universalizar
mesmo a sua dimensão aparentemente mais pessoal e intimista. Rousseau procura dar a
ver a sua identidade, sob a alteridade dos anos, da vida, das experiências e de uma
sociedade que não o soube ver. Como nos outros textos, enfrenta mais um paradoxo que
surge no mais íntimo exercício de subjectividade e que pretende conciliar, mais uma
dicotomia que transforma em dialéctica: identidade versus alteridade.
95
II.2. Identidade versus alteridade
“[…] Il règne dans nos mœurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été
jetés dans un même moule […] On n’ose plus paraitre ce qu’on est […] Les soupçons, les ombrages, les
craintes, la froideur, la réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme
perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous devons aux lumières de notre siècle.”
(ROUSSEAU, J.-J., Discours sur les sciences et les arts, première partie, OC III, 1964, pp. 8-9)
A compreensão do que é a subjectividade universal em Rousseau passa por
perceber a relação entre identidade e alteridade. Perguntar pela natureza humana é
perguntar pelo que os homens são, procurar a sua identidade originária, no sentido de
aferir o que é natural ao homem e, ao mesmo tempo, auscultar o que convém à sua
natureza, já na aparência das vestes sociais. A crucial indagação rousseauniana pela
natureza e condição humanas dá-se no exercício subjectivo de um eu que se auto-
observa, numa absoluta e singular introspecção, no intuito de resgatar o que interessa
naturalmente ao homem e à sua felicidade. Mas este exercício de subjectividade – que
Rousseau pretende protagonizar e partilhar – só ocorre no seio da sociedade e na
interacção social e, portanto, no homem afastado já do seu estado natural, em que a
“razão cultivada” (D2, pp.138, 152) já o fez tornar-se outro, vivendo em alteridade. A
identidade corresponde ao reconhecimento do eu e do outro sob a alteridade da relação
social.
A metáfora da estátua de Glauco204
apresentada no prefácio ao Discours de 55 é
determinante para o reconhecimento da identidade humana que Rousseau propõe. Ao
mesmo tempo que ilustra a dialéctica ser-parecer, remetendo para a distinção entre
homem natural e homem civil, aquela metáfora remete simultaneamente para a relação
entre identidade e alteridade. Enquanto o ser corresponde ao estado de natureza, onde o
homem natural se encontra na sua genuína identidade, o parecer remeterá para o estado
de civilização, onde se acha o homem civil que, para além de estar sob a aparência
social, está também sob o jugo da alteridade. O desenvolvimento da história humana
corresponde ao afastamento do homem da sua própria identidade, tornando-o outro.
Deixando de ser uno com a natureza, o homem distancia-se de si mesmo, reconhecendo-
se apenas em relação ao outro, em alteridade. Importante e de extrema relevância na
reflexão de Rousseau é o facto de o homem ter acesso ao que é, precisamente já só
quando parece. No estado de natureza, sendo, não sabe o que é; o reconhecimento do
seu ser ser-lhe-á dado somente aquando da interacção com o outro e do reconhecimento 204 A metáfora de Glauco merecerá especial atenção no início do capítulo III (em III.1.).
96
do seu semelhante, sob a aparência e, portanto, sob a relação social. Sem a saída do
estado de natureza, nunca o homem teria necessidade de reconhecer a sua identidade.
Uno com a natureza, tal bastaria para ser, munido apenas dos sentimentos naturais, e.g.,
a piedade natural. A este propósito, diz-nos Diogo Pires Aurélio, no contexto da
distinção entre a perspectiva de Rousseau e a de Espinosa face ao estado de natureza:
“A identificação com o semelhante supõe a identificação do semelhante. A ideia de um
homem que ´vê os seus semelhantes apenas como veria animais de uma outra espécie`,
tal como Rousseau apresenta o homem no estado de natureza, seria impensável para
Espinosa. É a própria imaginação do semelhante que, ao implicar idêntica exposição às
mesmas afecções, se materializa numa identidade de afectos. Não há no mimetismo
afectivo espinosista qualquer vislumbre da compaixão ou pitié [de] Rousseau […]”205
.
Autores como Lévi-Strauss perceberam bem a inovação rousseauniana da
identidade através da alteridade, do conhecimento de si através da relação com o outro,
do reconhecimento de si na interacção social e as implicações que este reconhecimento
traz para as ciências do homem.
Mas é Charles Taylor quem vemos dar especial enfoque à identidade do género
humano proposta por Rousseau, destacando a função dos sentimentos inscritos na
natureza humana.206
Taylor refere que o sentimento de amor pela natureza e os
sentimentos naturais (que são também os mais nobres) são fulcrais para a compreensão do
homem e da sua “self-transparency”207
, ao mesmo tempo que são essenciais para o
cidadão virtuoso.208
Na linha de Taylor, consideramos que a questão da subjectividade
assenta no propósito de conhecer a natureza, dando especial ênfase ao reconhecimento
dos sentimentos naturais. Só numa introspecção cuidada e, ao mesmo tempo, atenta à
205 PIRES AURÉLIO, Diogo, Imaginação e Poder – Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa,
Lisboa, Edições Colibri, 2000, pp. 233-234. Referência da cit. de Rousseau no excerto transcrito: “[…]
chaque homme ne voyant guère ses semblables que comme il verrait des animaux d’une autre espèce
[…].” (D2, note 15, OC III, p. 219.) 206 “This new orientation to nature was not concerned directly with the virtues of simplicity or rusticity,
but rather with the sentiments which nature awakens in us. We return to nature, because it brings out
strong and noble feelings in us […]. Nature draws us because it is in some way attuned to our feelings, so
that it can reflect and intensify those we already feel or else awaken those which are dormant.”
(TAYLOR, Charles, Sources of the Self – The making of Modern Identity, op. cit., p. 297). Taylor dedica
o capítulo “The voice of Nature” exclusivamente a Rousseau. Cf. ibid., pp. 305-367. 207 Ibid., p. 357. 208 “The notion of citizen virtue, as we see it defined in Montesquieu and Rousseau, can’t be combined
with an atomist understanding of society[…] It establishes their identity, provides the matrix within they
can be the kinds of human beings they are, within which the noble ends of a life devoted to the public
good are first conceivable. These political structures can’t be seen simply as instruments, means to ends
which could be framed without them.” (ibid., p.196).
97
realidade social envolvente, deve o homem questionar a sua identidade e só assim
conseguirá obter a natureza originária que comporta a identidade humana, sem a
esgotar, uma vez que, para além das suas características naturais que já não possui (e.g.
os sentimentos naturais de piedade e amor de si mesmo), tem agora os sentimentos
sociais (e.g. os sentimentos de piedade/compaixão social e de amor-próprio). Com
efeito, só aí o homem perceberá que há uma dimensão natural e uma dimensão social a
ter em conta na sua identidade presente. Não se trata já de um eu cogitans cartesiano,
fundador de todos os conhecimentos humanos, mas de um eu que pensa e sente e age
consigo mesmo e com os outros. De um eu que reconhece em si a natureza originária e
os sentimentos naturais aos quais não tem já acesso, mas que o habilitarão a conhecer o
seu verdadeiro modo de ser social.
A questão da identidade versus alteridade surge, desde logo, no Discours de 50,
em relação à evolução das artes, letras e ciências, numa sociedade onde “já não se ousa
mais parecer o que se é” (D1, I, p. 8) e na qual os homens se afastaram de si mesmos.
Será ainda mais desenvolvida no Discours de 55, sobretudo na segunda parte, aquando
da descrição do homem civilizado e do estado de civilização, no qual tudo é já
convencional, nomeadamente a linguagem, referida nos Discours e cuja origem e
evolução é exaustivamente descrita no Essai sur l’origine des langues. Este Essai
pretende dar conta da pergunta pela origem, formação e evolução da língua. A origem
da língua é natural e deriva das paixões e não das necessidades:
“Pretende-se que os homens inventaram a palavra para exprimir as suas necessidades; tal opinião
parece-me insustentável. O efeito natural das primeiras necessidades consistiu em separar os homens e
não em aproximá-los. Era preciso que assim acontecesse para que a espécie acabasse por se expandir e a
terra se povoasse com rapidez; sem isso, o género humano ter-se-ia amontoado num canto do mundo e
tudo o resto ficaria deserto. Daí se conclui, com evidência, não se dever a origem das línguas às primeiras
necessidades dos homens; seria absurdo que da causa que os separa resultasse o meio que os une. De onde
vem, então, esta origem? Das necessidades morais, das paixões.”209
Com a passagem do homem natural ao homem civilizado, a linguagem do “grito
da natureza” deu origem à “linguagem convencional” (D2, I, pp.146-151). A passagem
209 “On prétend que les hommes inventérent la parole pour exprimer leurs besoins; cette oppinion me paraît insoutenable. L’effet naturel des prèmiers besoins fut d’écarter les hommes et non de les
rapprocher. Il le fallait ainsi pour que l’espèce vint à s’étendre et que la terre se peuplât promptement;
sans quoi le genre human se fût entassé dans un coin du monde, et tout le reste fût demeuré desert. De
cela seul il suit avec evidence que l’origine des langues n’est point düe aux premiers besoins; il serait
absurd que de la cause qui les écarte vint le moyen qui les unit. D’où peut donc venir cette origine? Des
besoins moraux, des passions.” (EL, II, OC V, p. 380).
98
foi morosa e complexa, passando por diferentes fases, designadamente a do canto aliado
à dança, a primeira linguagem resultante da domesticação dos homens, linguagem
descrita no Essai, mas já referida no Discours de 55:
“À medida que as ideias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração se exercitam, o
género humano continua a domesticar-se, as ligações estendem-se e os laços apertam-se. Adquire-se o
hábito de reunir diante das cabanas ou em torno de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros
filhos do amor e do ócio, tornam-se divertimento, ou antes, ocupação dos homens e das mulheres ociosos
e agrupados.”210
A ligação entre o Discours de 55 e o Essai é bem visível na reflexão que
Rousseau, partindo de Condillac, faz sobre a origem da língua211
, em que apresenta
algumas ideias que repetirá no Essai, e.g. a evolução do “grito de natureza” para as
“articulações de voz”, passando pelos “gestos”, pelas “inflexões de voz” e pelos “sons
imitativos” (D2, I, p. 148). A linguagem, de natural, passou a artificial; a linguagem
apresentada, autêntica e expressiva, deu lugar à linguagem representada, distanciada e
simbólica.212
A identidade da linguagem está, assim, também sob a alçada da alteridade.
Se fossem as necessidades naturais a origem da palavra oral, possivelmente
nunca a teríamos inventado. Bastar-nos-iam os gestos e os sons inarticulados, mas
expressivos das necessidades (EL, I, p. 378). A origem da linguagem resulta das
paixões, como aliás todas as criações humanas, pois “é através da sua actividade que a
nossa razão se aperfeiçoa” (D2, I, p. 143). Como todos os progressos humanos
apontados no Discours de 55, também o desenvolvimento das línguas descrito no Essai
se deve, pois, às necessidades sociais:
210 “À mesure que les idées et les sentiments se succèdent, que l’esprit et le cœur s’exercent, le genre
humain continue à s’apprivoiser, les liaisons s’étendent et les liens se resserrent. On s’accoutuma à
s’assembler devant les cabanes ou autour d’un grand arbre: le chante et la danse, vrais enfants de l’amour
et du loisir, devinrent l’amusement ou plutôt l’occupation des hommes et des femmes oisifs et attroupés.”
(D2, seconde partie, OC III, p. 169). 211 Cf. ibid., pp. 146-151. 212 Filomena Molder destaca a linguagem rousseauniana como uma linguagem de apresentação, e não de representação: “No Essai sur l’origine des langues, desenham-se os vários momentos da construção da
linguagem, num propósito claramente antropológico. Antes de ser representação, a linguagem foi
apresentação: essa primitiva indistinção entre ser e dizer tem raízes no pressuposto teórico e existencial
de um estado natural, onde a mais íntima ligação se estabelece entre o homem e a natureza, onde cada ser
se confundia com todos os seres […].” (MOLDER, Maria Filomena, “A Representação Estética
setecentista: o espectáculo”, in Filosofia e Epistemologia II, op. cit., p. 245).
99
“Tais progressos não são nem fortuitos nem arbitrários; prendem-se às vicissitudes das coisas.
As línguas formam-se naturalmente baseadas nas necessidades dos homens; mudam-se e alteram-se de
acordo com as mudanças dessas mesmas necessidades.”213
Rousseau descreve a primeira linguagem como sendo figurada e gestual. A ideia
é comum ao seu tempo: “No século dezoito, as teorias da origem da linguagem que
estavam na moda tinham um cariz biológico, especialmente em França, e, embora a
evolução não fosse ainda uma palavra-chave, todas elas pareciam concordar que a teoria
da linguagem teria de providenciar uma ponte entre um estado pré-linguístico do tipo
macaco e a linguagem humana moderna. Pensava-se que a linguagem primordial era
concreta – isto é, sem conceitos abstractos – e baseada em expressões faciais, gestos das
mãos e do corpo e vocalizações primitivas que tinham uma qualidade imitativa […]”214
.
Rousseau não foge à descrição exposta por Donald, mas avança com o desenvolvimento
das línguas e com a sua distinta formação nos povos do Sul e do Norte, como vimos no
sub-capítulo anterior. Mais ainda, avança com a ideia da perfectibilidade da própria
linguagem. A perfectibilidade não é estática, mas dinâmica. Desta forma, e, no que
respeita à linguagem humana, antecipa a teoria evolucionista de Darwin. As melhores
linguagens pertencerão aos povos que melhor evoluírem. Um povo livre conhecerá a
linguagem da liberdade.
Tal como Vico215
e Herder216
, Rousseau preocupa-se com a origem da
linguagem. Segundo Vico, a primeira língua foi a divina: “A primeira destas foi uma
linguagem mental divina [operando] através de actos religiosos mudos ou de cerimónias
de mergulho, de onde, na sua lei civil, os Romanos retiveram o actus ligitimi [actos
legais] com o qual celebravam todos os assuntos relativos à utilidade civil. Esta
linguagem é apropriada ao religioso, pela seguinte propriedade eterna: a de que é de
maior importância para eles serem reverenciados do que serem fundamentados, e foi
necessária nesses primeiros tempos uma vez que os gentios eram ainda incapazes de
213 “Ces progrès ne sont ni fortuits ni arbitraires, ils tiennent aux vicissitudes des choses. Les langues se
forment naturellement sur les besoins des hommes; elles changent et s’altèrent selon les changements de
ces mêmes besoins.” (EL, XX, OC V, p. 428). 214 DONALD, Merlin, Origens do pensamento moderno, trad. Carlos de Jesus, pref. Daniel Serrão,
revisão de Maria Isabel Antunes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pp. 39-40. 215 Tal como Rousseau, Vico defende que a evolução da linguagem acompanha a evolução (histórica) da humanidade. 216 Herder afirma ter-se esforçado por fundamentar com dados concretos a origem da linguagem,
preferindo não fornecer nenhuma hipótese para a Academia e, pelo contrário, “aplicar-se em juntar dados
seguros sobre a alma humana, sobre a organização humana, sobre a estrutura de línguas antigas ou
selvagens […].” - HERDER, J. G., Abhandlung über den ursprung der sprache (1770), Tr. Port. Ensaio
sobre a origem da linguagem, trad. José M. Justo, Lisboa, Edições Antígona, 1987, p. 169.
100
articular o discurso”217
. Quanto a Herder, ainda que Rousseau não se afaste da origem
natural da linguagem, é aquele quem se demarca deste: “De que serve uma hipótese se
apenas consegue ombrear ou comparar-se com outra? E como se pode encarar aquilo
que costuma ter forma de hipótese senão como romance filosófico… o romance
filosófico de Rousseau [?]”218
.
Rousseau não vê na linguagem convencional uma incontestável e benéfica
invenção, ao contrário de Hobbes: “[…] a mais nobre e útil de todas as invenções foi a da
linguagem, que consiste em nomes ou designações e nas suas conexões, pelas quais os
homens registam os seus pensamentos, os recordam, depois de passarem, e também os
usam entre si para a utilidade e conversa recíprocas, sem o que não haveria entre os
homens nem Estado, nem sociedade, nem contrato, nem paz, tal como não existem entre
os leões, os ursos e os lobos. […] E assim com o passar do tempo pôde ser encontrada
toda aquela linguagem para a qual ele descobriu uma utilidade, embora não fosse tão
abundante como aquela de que necessita o orador ou o filósofo”219
.
Como as outras invenções e criações humanas, também a linguagem poderá ser,
ou não, fecunda e virtuosa, um bem ou um mal, dependendo do uso que dela fizerem os
homens:
“A linguagem de convenção não pertence senão ao homem. Eis porque o homem faz dos
progressos tanto um bem como um mal, e a razão pela qual os animais não fazem.”220
Percebe-se bem a presença do par conceptual (identidade e alteridade) na
questão da linguagem. Eis porque Rousseau opta por uma linguagem que melhor veicule
217 Leia-se o excerto completo, no qual Vico expõe o que para ele são os três tipos de linguagens: “928. Three kinds of languages. 929. The first of these was a divine mental language [operating] through mute
religious acts or dive ceremonies, whence in their civil law the Romans retained the actus legitimi [lawful
acts] with which they celebrated all affairs to do with civil utility. This language is appropriate to
religious because of the following eternal property: that is of greater importance to them that they be
revered than reasoned; and it was necessary in those first times since the gentiles were as yet unable to
articulate speech. 930. The second was a language [operating] through heroes’s emblems, the speech of
[military] arms, which, as we point out earlier, survived in military discipline. 931. The third language is
that of articulate speech which is used by all nations today.” - VICO, Giambattista, Principi di scienza
nuova, d’intorno alla comune natura delle nacione (1725), Tr. Ing. “Principles of a new science
concerning the common nature of nations”, in Vico – selected writings (ed. Leon Pompa), trad. Leon
Pompa, Cambridge, Cambridge University Press, 1982, Book IV, section V, p. 253). 218 HERDER, J. G., Abhandlung über den ursprung der sprache (1770), Tr. Port. op. cit., p. 169. 219 HOBBES, Thomas, Leviathan, or the matter, form & power of a Common-Wealth ecclesiastical and
civil (1651), Tr. Port. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, trad. João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, pref. João Paulo Monteiro, 3ª edição, Lisboa, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2002, p. 43. 220 “La langue de convention n’appartient qu’à l’homme. Voilà pourquoi l’homme fait des progrès soit en
bien soit en mal, et pourquoi les animaux n’en font point.” (EL, I, OC V, p. 379).
101
a identidade do homem e eis também por que aposta numa escrita virtuosa e a coloca ao
serviço da sua filosofia, pretendendo salvaguardar a maior autenticidade possível numa
linguagem convencional à qual já não pode escapar. Aliás, vimos já que são muitos os
autores que, como Starobinski, referem que a obra de Rousseau traduz, no seu conjunto
e em cada uma das suas partes, esse esforço de se fazer expressar, o mais autêntica e
genuinamente possível, numa linguagem que, não podendo já deixar de ser
convencional, procura incessantemente aproximar-se o mais possível de uma
apresentação e expressão naturais, e é mesmo esse considerado o seu maior esforço, até
aos seus derradeiros dias.
A identidade originária do homem deverá estar subjacente à (nova) identidade
do homem que a sociedade faz emergir, o que implica a conciliação de oposições
aparentemente intransponíveis: entre a linguagem natural e a linguagem convencional,
entre o homem natural e o homem civilizado, entre o eu particular e o eu público, entre
o eu individual e o eu colectivo, entre a parte e o todo. A inevitável alteração que ocorre
na constituição do homem social deve ir ao encontro da sua identidade originária. Ainda
que seja outra, a nova identidade (social) deve ser empreendida de forma cuidada, de
modo a refortalecer o género humano:
“Aquele que ousa empreender a instituição de um povo, deve sentir-se em condição de mudar,
por assim dizer, a natureza humana; de transformar cada indivíduo que por si mesmo é um todo perfeito e
solitário, em uma parte de um todo maior, do qual esse indivíduo recebe de alguma forma a sua vida e o
seu ser; de alterar a constituição do homem para a refortalecer.”221
Alterar a natureza dos homens, dando-lhes uma outra constituição, implica a
conciliação dos opostos e o reconhecimento da necessidade da relação recíproca com o
outro:
“Numa palavra, é necessário que se destitua o homem de suas próprias forças para lhe dar outras
que lhe são estranhas e que possa usar sem a ajuda de outrem.”222
O conceito rousseauniano de soberania popular mostra bem a conciliação entre
planos opostos, no caso, entre o súbdito e o soberano na mesma figura do cidadão.
Rousseau não esconde as dificuldades na conciliação entre os planos opostos da
221 “Celui qui ose entreprendre d’instituer un peuple doit se sentir en état de changer, pour ainsi dire, la
nature humaine; de transformer chaque individu, qui par lui-même est un tout parfait et solitaire, en partie
d’un plus grand tout dont cet individu reçoive en quelque sorte sa vie et son être; d’altérer la constitution
de l’homme pour la renforcer.” (CS, II, 7, OC III, p. 381). 222 “Il faut, en un mot, qu’il ôte à l’homme ses forces propres pour lui en donner qui lui soient étrangères
et dont il puisse faire usage sans le secours d’autrui.” (ibid., pp. 381-382).
102
individualidade e da universalidade, da parte e do todo, da vontade particular e da
vontade colectiva, no que respeita ao homem e ao cidadão. O conflito entre a vontade
particular e a vontade geral pode dar-se ao ponto de o homem querer substituir o
interesse de todos pelo interesse de si mesmo, a vontade geral pela vontade particular,
ou pode ainda querer subverter os termos, disfarçá-los e camuflá-los. Não resolvendo o
problema, Rousseau dissolve-o, uma vez que, a dar-se a contradição real entre a vontade
particular e a vontade geral, tal significaria o fim do próprio corpo político:
“O seu [do homem] interesse particular pode falar-lhe de uma maneira completamente diferente
do interesse comum; a sua existência absoluta e naturalmente independente leva-o a considerar o que
deve à causa comum como uma contribuição gratuita, cuja perda será menos prejudicial para os outros do
que o pagamento ser caro para si, e olhando para a pessoa moral que constitui o Estado como um ser de
razão porque não é um homem, iria desfrutar dos direitos dos cidadãos sem querer cumprir os deveres do
sujeito; injustiça cujo progresso causaria a ruína do corpo político.” 223
São vários os paradoxos com que Rousseau se depara na procura da identidade do
homem que se encontra afastado da sua natureza originária e, portanto, sob alteridade:
natural-social; homem natural-homem civil; estado de natureza-estado de civilização;
individual-colectivo; relativo-absoluto; natureza-sociedade; soberano-súbdito. Rousseau
reconhece os paradoxos e investe na sua conciliação. Um dos maiores investimentos é o
Émile, mostrando que educar é exercitar a subjectividade para a construção da
identidade social do homem. O homem é o que é individual e socialmente, o homem é
agora não só homem, também cidadão. A educação deve promover a assumpção desta
identidade, não como sendo dupla e desagradável, não como sendo um mal
irremediável, mas como estando bem presente no homem social, no adulto bem
formado e bem-educado. Para isso, é preciso repensar a própria educação e começar por
indagar a natureza da criança, o que ela é, a sua identidade primeira, para que saiba
construir em si, mais tarde, a identidade do adulto e do cidadão:
“Não conhecemos a infância: quanto mais se seguem as falsas ideias que dela se têm, mais longe
se fica de a conhecer. Os mais sábios apegam-se ao que é importante que os homens saibam, sem
considerar o que as crianças são em estado de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem
pensar no que ela é antes de ser homem. Eis o estudo ao qual mais me dediquei, a fim de que, mesmo que
223 “Son [de l’homme] intérêt particulier peut lui parler tout autrement que l’intérêt commun; son
existence absolue et naturellement indépendante peut lui faire envisager ce qu’il doit à la cause commune
comme une contribution gratuite, dont la perte sera moins nuisible aux autres que le payement n’en est
onéreux pour lui, et regardant la personne morale qui constitue l’État comme un être de raison parce que
ce n’est pas un homme, il jouirait des droits du citoyen sans vouloir remplir les devoirs du sujet; injustice
dont le progrès causerait la ruine du corps politique.” (ibid., I, 7, p. 363).
103
o meu método fosse quimérico ou errado, pudesse tirar sempre proveito das minhas observações. Posso
ter visto muito mal o que é necessário fazer, mas creio ter estudado bem o assunto sobre o qual se deve
operar. Começai, pois, por melhor estudar os vossos educandos, pois é certo que não os conheceis. Ora, se
lerdes este livro sob esta perspectiva, não creio que não vos seja útil.”224
A educação visa a formação do homem e do cidadão e a construção da sua nova
e complexa identidade, tendo em conta, quer a sua dimensão “pública e comum”, quer a
sua dimensão “particular e doméstica”. Numa alusão abonatória já habitual a Platão,
Rousseau mostra como a formação individual está ligada à formação colectiva e como a
formação moral está ligada à formação política:
“Podemos instruir um homem para si mesmo ou para os outros. Portanto, há duas educações, a
da natureza e a da sociedade. Por uma formamos o homem, pela outra, o cidadão. São estas duas
educações semelhantes? Talvez sejam, mas isso não supõe o que está em questão. O que vemos desde já é
que desses dois diferentes objectos resultam duas formas gerais de instituição, uma pública e comum,
outra particular e doméstica. Se alguém quiser ter uma ideia justa da instituição pública, deve ler a
República de Platão. Este livro não é um livro político, como pensam aqueles que julgam os livros pelos
seus títulos, é o melhor tratado sobre a educação que jamais foi feito.”225
Rousseau percebe que a identidade do homem social não é a mesma identidade
do homem natural, que coincidia com a sua natureza originária. Com o Du Contrat
Social e com o Émile surge uma nova lógica: o indivíduo aderirá voluntariamente à
sociedade, quererá fazer parte dela e sentir-se-á mais livre do que no estado natural:
“[…] não sendo a autoridade soberana outra coisa que a vontade geral, veremos como cada
homem, obedecendo ao soberano, não obedece senão a si mesmo, e como se é mais livre no pacto social
do que no estado de natureza.”226
224 “On ne connaît point l'enfance: sur les fausses idées qu'on en a, plus on va, plus on s'égare. Les plus sages s'attachent à ce qu'il importe aux hommes de savoir, sans considérer ce que les enfants sont en état
d'apprendre. Ils cherchent toujours l'homme dans l'enfant, sans penser à ce qu'il est avant que d'être
homme. Voilà l'étude à laquelle je me suis le plus appliqué, afin que, quand toute ma méthode serait
chimérique et fausse, on pût toujours profiter de mes observations. Je puis avoir très mal vu ce qu'il faut
faire; mais je crois avoir bien vu le sujet sur lequel on doit opérer. Commencez donc par mieux étudier
vos élèves; car très assurément vous ne les connaissez point. Or, si vous lisez ce livre dans cette vue, je ne
le crois pas sans utilité pour vous.” (É, préface, OC IV, pp. 241-242). 225 “On peut élever un homme pour lui-même ou pour les autres; il y a donc deux éducations, celle de la
nature et celle de la société. Par l’une on formera l’homme et par l’autre le citoyen. Ces deux éducations
sont-elles semblables? Cela peut être mais il ne faut pas supposer ce qui est en question. Ce qu’on voit
d’abord, c’est que de ces deux différents objets viennent deux formes générales d’institution, l’une
publique et commune, l’autre particulière et domestique. Si l’on veut prendre une juste idée de l’institution publique il faut lire la République de Platon. Ce livre n’est point un ouvrage de politique
comme le pensent ceux qui ne jugent des livres que par leurs titres, c’est le plus beau traité d’éducation
qui jamais ait été fait.” (É, Manuscrit Favre, livre IV, OC IV, pp. 58-59). 226 “[…] l’autorité souveraine n’étant autre chose que la volonté générale, nous verrons comment chaque
homme obéissant au souverain n’obéit qu’à lui-même, et comment on est plus libre dans le pacte social
que dans l’état de nature.” (É, livre V, OC IV, p. 841).
104
A liberdade civil é, portanto, distinta da liberdade natural, uma vez que a adesão
à primeira implica o abandono da segunda, numa total entrega e absoluta alienação do
compromisso voluntário de aceitar a vontade geral como sendo a sua vontade particular.
Assim, sendo aquela a autoridade soberana, respeitá-la é o mesmo que respeitar-se a si
mesmo. A liberdade natural não pode ser reconhecida, mas a liberdade civil, sim. E só o
que pode ser reconhecido pelo homem social possui verdadeiramente identidade. Desta
forma, a passagem do estado de natureza para o estado de civilização corresponde à
passagem de uma identidade originária (que não é devidamente reconhecida pelo
homem natural, até porque não necessita desse reconhecimento) para uma identidade
social, passível de ser reconhecida e aceite pelos homens.
Nos textos das Confessions e das Rêveries, Rousseau empreende um processo
semelhante àquele efectuado no Discours de 55. Não se trata já da genealogia do género
humano, mas da reconstrução da sua própria identidade, reforçada mais ainda pela sua
infeliz relação com a sociedade. Rousseau considera que essa malfadada relação não se
deve a falhas da sua filosofia na demanda pela natureza e identidade originárias, mas
deve-se à própria sociedade do seu tempo, que não soube entender esse exercício de
subjectividade que teria facultado a cada homem e ao todo social uma maior felicidade:
“[…] nunca verão em mim senão o Jean-Jacques que eles criaram como o desejavam, para o
odiarem à sua vontade […] não fui feito para a sociedade civil, onde tudo é opressão, obrigação, dever
[…].”227
No texto das Rêveries, afirma que a resposta à questão délfica não é simples e
exige uma observação cuidada e atenta do homem por si mesmo: “ao contrário do que
pode parecer, o ‘conhece-te a ti mesmo’ do Templo de Delfos não é uma máxima tão
fácil de seguir”228
(R, 4e, p. 1024). A dificuldade do desafio aumenta nos textos
considerados autobiográficos. Trata-se agora de dar a conhecer a natureza e a verdadeira
identidade de Rousseau, num exercício de subjectividade que envolve o eu, a
consciência e a linguagem, e que se dá na superação da dicotomia entre o sujeito que
refere e o objecto referenciado. Trata-se de um difícil exercício do sujeito que observa e
analisa e que se assume ao mesmo tempo como o objecto dessa observação e dessa
227 “[…] ils ne verront jamais à ma place que le J.J. qu’ils se sont fait et qu’ils on fait selon leur cœur, pour le hair à leur aise. […] je n’ai jamais été vraiment pro
pre à la société civile, où tout est gêne, obligation, devoir […].” (R, sixième promenade, OC I., p. 1059). 228 Neste excerto, Rousseau refere-se explicitamente às Confessions: “[…] o conhece-te a ti mesmo do
Templo de Delfos não é uma máxima tão fácil de seguir como eu julgava nas Confessions” (“[…] le
connais-toi toi même du Temple de Delphos n’était pas une máxime si facile de suivre que je l’avois cru
dans mes Confessions.” (ibid., quatrième promenade, p. 1024).
105
análise. Trata-se do sujeito que se dá a ver, vendo-se a si mesmo, não num processo
solipsista, mas adoptando um método reflexivo-subjectivo num processo de construção
e de reconstrução, de identidade e de alteridade, de si para si, de si para os outros, a
partir da sua história de vida. Já não se trata do cidadão virtuoso de Du Contrat Social
nem do homem bem-educado do Émile; agora, Rousseau vira-se para si, debruçando-se
sobre si próprio e, ao partilhar a sua identidade, acaba por se reconstruir a si mesmo.
Serve-se da memória, como da imaginação, e torna público o acto privado de quem se
vê ao espelho. Na derradeira obra, Rousseau dedica exclusivamente o estudo a si mesmo,
como se, sentindo a vida a fugir, procurasse reatá-la e reconstruí-la desde os seus
começos, e, na sinceridade que a sua filosofia da subjectividade exige, propõe-se a
estudar-se a si mesmo (R, 1e, p. 999). A exposição minuciosa da sua pessoa corresponde à
justificação da sua filosofia, a que faltava, a do homem que pretendeu melhorar a
sociedade, partilhar a sua observação, mas que, apesar de alguns sucessos, foi ele próprio
injustamente mal observado por uma sociedade que não soube sê-lo e à qual Rousseau
reconhece não pertencer:
“O resultado que posso extrair de todas estas reflexões é que não fui feito para a sociedade civil,
onde tudo é opressão, obrigação, dever, e que o meu natural independente tornou-me sempre incapaz das
sujeições necessárias a quem quiser viver entre os homens.”229
Cumprindo, assim, a sua filosofia da subjectividade, Rousseau isola-se da
sociedade, mas não empreende a ruptura com os homens. Sabe que a linguagem
constitui o meio que possui para ser reconhecido e, se não for pelos seus
contemporâneos, pelo menos que seja pelos leitores futuros. A escolha da natureza
como o lar privilegiado dos últimos anos da sua vida afasta-o dos males sociais, acalma-
o, sossega-o, mas não o cala. O filósofo sabe que o seu silêncio alimentaria a má
observação que lhe fizeram e frustraria a possibilidade do reconhecimento que sabe
merecer. Resta-lhe dizer a verdade, a sua verdade, como tinha já dito nas Confessions:
“Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e esse homem
serei eu. Eu, sozinho.”230
229 “Le résultat que je puis tirer de toutes ces réflexions est que je n’ai jamais été vraiment propre à la
société civile où tout est gêne, obligation, devoir, et que mon naturel indépendant me rendit toujours
incapable des assujettissements nécessaires à qui veut vivre avec les hommes.” (ibid., sixième promenade,
p. 1059). 230 “Je veux montrer à mes semblables un homme dans toute la vérité de la nature; et cet homme ce sera
moi. Moi, seul.” (C, livre I, OC I, p.5).
106
Mas qual é a sua verdade? A sua verdade será a verdade da sua própria filosofia,
que tem como base a trilogia das ideias/sentimentos da subjectividade, da qual se faz
acompanhar ao longo da sua obra: trata-se de dar a ver o que é e não o que aos olhos da
sociedade parece ser; trata-se de resgatar a sua natureza, antes dos estragos que a
civilização lhe fez; trata-se ainda de se mostrar a si próprio e o modo como, apesar de
tudo, soube evitar o ab(uso) dos males sociais. São disso testemunhos os inúmeros
episódios relatados nas Confessions, desde a morte prematura da mãe, que torna o seu
nascimento o primeiro dos males que conhecerá (C, 1, p. 7), carregando também de
modo bem visível a contradição e o fardo do arrependimento do homem que abandona
os seus cinco filhos – “seria seguramente a coisa mais incrível do mundo que Héloïse e
Émile fossem obra de um homem que não amava as crianças” (R, 9e, p. 1088)
231. Não
julgamos a incontestável contradição deste facto vivencial nem pretendemos fazer dele
qualquer análise psicológica. Compreendamos antes o que tem de subjectivo e de
universal. Assim, dos muitos episódios relatados por Rousseau, destacamos apenas dois.
Salientamos os mesmos que a grande parte da bibliografia existente também faz
sobressair, i.e., os dois episódios bem marcantes da sua vida e da sua escrita e que dão
bem a ver como também nestas obras encontramos a subjectividade aliada à
universalidade, a saber: o de ter posto os filhos na Roda e o de ter amado Madame de
Warens como não amou mais ninguém, ambos descritos tanto nas Confessions como
nas Rêveries. Sem qualquer pretensão a uma análise psicanalítica, mas tão-só filosófica,
atentemos na descrição rousseauniana dos dois episódios.
Rousseau descreve em largas páginas os melhores tempos da sua vida, em que se
considerou verdadeiramente feliz, por conjugar o amor e a natureza (o amor por
231 Vale a pena ler todo o excerto: “Si j’ai fait quelque progrès dans la connaissance du cœur humain,
c’est le plaisir que j’avais à voir et observer les enfants qui m’a valu cette connaissance. Ce même plaisir
dans ma jeunesse y a mis une espèce d’obstacle, car je jouais avec les enfants si gaiement et de si bon
cœur que je ne songeais guère à les étudier. Mais quand en vieillissant j’ai vu que ma figure caduque les
inquiétait, je me suis abstenu de les importuner; et j’ai mieux aimé me priver d’un plaisir que de troubler
leur joie, et content alors de me satisfaire en regardant leurs jeux, et tous leurs petits manèges, j’ai trouvé le dédommagement de mon sacrifice dans les lumières que ces observations m’ont fait acquérir sur les
premiers et vrais mouvements de la nature, auxquels tous nos savants ne connaissent rien. J’ai consigné
dans mes écrits la preuve que je m’étais occupé de cette recherche trop soigneusement pour ne l’avoir pas
faite avec plaisir, et ce serait assurément la chose du monde la plus incroyable qu’Héloïse et l’Émile
fussent l’ouvrage d’un homme qui n’aimait pas les enfants.” (R, neuvième promenade, OC I, pp. 1087-
1088).
107
Madame de Warens, a quem chamava Mamã232
, foi vivenciado no campo, longe do
ruído da cidade):
“Começa aqui a breve felicidade da minha vida: chegam agora os tranquilos, mas rápidos
momentos que me dão direito a dizer que os vivi. […] Levantava-me com o sol, e era feliz; passeava, e
era feliz; via Mamã, e era feliz; deixava-a e era feliz; percorria os bosques, os outeiros, vagueava pelos
vales, lia, permanecia ocioso; trabalhava no jardim, colhia frutos, ajudava à lida da casa, e a felicidade
seguia-me por toda a parte: não estava em nenhuma coisa precisa, estava inteiramente em mim mesmo,
não podia abandonar-me um só momento”.233
Também nas Rêveries é relatado o tempo em que viveu no campo com Madame
de Warens como o tempo mais feliz da sua vida:
“Hoje, domingo de Ramos, faz exactamente cinquenta anos que conheci Madame de Warens.
[…] Não existe um só dia em que eu não me lembre com alegria e ternura dessa única e curta época da
minha vida em que fui plenamente eu próprio, sem mistura e sem obstáculos, e em que posso dizer que
vivi verdadeiramente. Posso dizer mais ou menos o que disse aquele chefe da legião pretoriana que, tendo
caído em desgraça no tempo de Vespasiano, foi acabar pacificamente os seus dias no campo: Passei na
terra setenta anos e só vivi sete. […] Todo o meu tempo era preenchido por atenções afectuosas ou por
ocupações campestres. Nada mais desejava senão a continuação de um estado tão ditoso, mas a minha
única pena era o receio de que não durasse muito tempo, e esse receio, nascido da dificuldade da nossa
situação, não deixava de ter fundamento. Por conseguinte, pensei em conceder a mim próprio, ao mesmo
tempo, diversões para essa inquietação e recursos que contrariassem o seu efeito. Pensei que uma
provisão de talentos seria o recurso mais seguro contra a miséria, e resolvi utilizar os meus lazeres para
me tornar apto, se fosse possível, a prestar um dia à melhor das mulheres a assistência que dela tinha
recebido.”234
232 Rousseau tratava Madame de Warens por “Mamã”, conforme hábito da Sabóia. O termo indica uma
proximidade e uma relação privilegiada e carinhosa com o outro, a quem se aplica. 233 “Ici commence le court bonheur de ma vie; ici viennent les paisibles, mais rapides moments qui m’ont
donné le droit de dire que j’ai vécu. […] Je me levais avec le soleil, et j’étais heureux; je me promenais, et
j’étais heureux; je voyais Maman, et j’étais heureux; je la quittais, et j’étais heureux; je parcourais les
bois, les coteaux, j’errais dans les vallons, je lisais, j’étais oisif; je travaillais au jardin, je cueillais les
fruits, j’aidais au ménage, et le bonheur me suivait partout: il n’était dans aucune chose assignable, il était
tout en moi-même, il ne pouvait me quitter un seul instant.” (C, livre VI, OC I, pp. 225-226). 234 “Aujourd’hui jour de Pâques fleuries, il y a précisément cinquante ans de ma première connaissance
avec Madame de Warens. […] Il n’y a pas de jour où je ne me rappelle avec joie et attendrissement cet
unique et court temps de ma vie où je fus moi pleinement, sans mélange et sans obstacle, et où je puis
véritablement dire avoir vécu. Je puis dire à-peu-près comme ce Préfet du Prétoire qui, disgracié sous
Vespasien, s’en alla finir paisiblement ses jours à la campagne: j’ai passé soixante et dix ans sur la terre et
j’en ai vécu sept. […] Tout mon temps était rempli par des soins affectueux ou par des occupations champêtres. Je ne désirais rien que la continuation d’un état si doux; ma seule peine était la crainte qu’il
ne durât pas long-tans, et cette crainte née de la gêne de notre situation n’était pas sans fondement. Des-
lors je songeai à me donner en même temps des diversions sur cette inquiétude, et des ressources pour en
prévenir l’effet. Je pensai qu’une provision de talents était la plus sûr ressource contre la misère, et je
résolus d’employer mes loisirs à me mettre en état, sʼil était possible, de rendre un jour à la meilleure des
femmes, l’assistance que j’en avais reçue.” (R, dixième promenade, OC I., pp. 1098-1099).
108
O fim do relacionamento com o amor da sua vida será vivenciado como se fosse
o fim da sua própria vida:
“Ó Mamã!, disse-lhe eu com o coração oprimido pela dor, como ousais comunicar-me tais
coisas? É esta a recompensa de uma afeição como a minha? Então conservaste-me tantas vezes a vida só
para me tirardes tudo o que ma tornava cara? Vou morrer […].”235
O facto de ter abandonado os seus filhos na Roda recebe também destaque nos
múltiplos relatos da sua vida, até porque foi bastante criticado pelo facto:
“Eu tinha posto os meus filhos na roda, e isso era o suficiente para me transformarem em pai
desnaturado e, a partir daí, ampliando e acarinhando essa ideia, extraiu-se pouco a pouco a consequência
evidente de que eu odiava as crianças […].”236
Neste excerto, relembra o episódio que repetiu por cinco vezes, o número
correspondente à quantidade dos seus filhos237
e aproveita para justificar e desculpar a
sua acção, alegando tratar-se de um hábito da terra ao qual sucumbiu:
“[…] confirmei a minha maneira de pensar à que via reinar entre pessoas amabilíssimas, e no
fundo honestíssimas pessoas, dizendo para comigo: ‘visto que é o uso da terra, como nela vivemos,
podemos segui-lo’. Eis o expediente que procurava. Decidi-me sem cerimónia e sem o menor escrúpulo, e
o único que tive de vencer foi o de Teresa, a quem foi extremamente difícil fazer adoptar aquele único
processo de salvar a sua honra. Como a mãe, que além disso receava uma nova complicação com
crianças, tinha vindo em meu auxílio, Teresa deixou-se convencer. Escolheu-se uma parteira prudente e
segura, chamada Mademoiselle Gouin, que vivia no monte de Saint-Eustache, para lhe confiar o depósito,
e, na altura devida, Teresa foi levada pela mãe para casa de Gouin para aí dar à luz. Fui lá várias vezes e
levei-lhe um monograma que tinha mandado fazer em duplicado em dois cartões, pondo-se um nas
fraldas da criança, e esta foi depositada pela parteira na roda, na forma habitual. No ano seguinte, o
mesmo inconveniente e o mesmo expediente, salvo o monograma, que se descurou. Nem mais reflexão da
minha parte, nem mais aprovação da parte da mãe: esta obedecia gemendo. Ver-se-ão gradualmente todas
as vicissitudes que este fatal procedimento provocou na minha maneira de pensar, assim como no meu
destino. Quanto ao presente, fiquemo-nos nesta primeira época. As suas consequências, tão cruéis como
imprevistas, por demais me forçarão a voltar ao assunto.”238
235 “Ah, Maman, lui dis-je le cœur serre de douleur, qu'osez-vous m'apprendre? Quel prix d'un
attachement pareil au mien? Ne m'avez-vous tant de fois conservée la vie que pour m'ôter tout ce qui me
la rendait chère? J'en mourrai […].” (C, livre VI, OC I, pp. 262-263). 236 “J'avais mis mes enfants aux enfants-trouvés, c'en était assez pour m'avoir travesti en père dénaturé et
de la en étendant et caressant cette idée on en avait peu à peu tiré la conséquence évidente que je haïssais
les enfants […].” (R, neuvième promenade, OC I., p. 1086). 237 Há autores que põem em causa a paternidade de Rousseau. A eventual não veracidade do facto não
altera em nada este ponto (nem os outros) da nossa investigação. 238 “[…] je formai ma façon de penser sur celle que je voyais en règne chez des gens très aimables, et
dans le fond très honnêtes gens, et je me dis: ‘Puisque c’est l’usage du pays, quand on y vit on peut le
suivre.’ Voilà l’expédient que je cherchais. Je m’y déterminai gaillardement sans le moindre scrupule, et
le seul que j’eus à vaincre fut celui de Thérèse, à qui j’eus toutes les peines du monde de faire adopter cet
109
Quando lhe perguntam se tem filhos, não esconde a vergonha da falsa resposta:
“Respondi corado até às orelhas, que não tinha tido essa felicidade. Ela sorriu maliciosamente,
olhando para os presentes: nada daquilo era muito obscuro, mesmo para mim. Antes de mais, é claro que
a resposta não foi aquela que gostaria de ter dado, mesmo que tivesse a intenção de iludir, porque, na
disposição em que via a pessoa que me fez a pergunta, estava bem certo de que a minha negação não
mudaria em nada a sua opinião sobre o assunto. A minha resposta negativa era esperada, fora mesmo
provocada para ter o prazer de me obrigar a mentir.”239
A sua ligação com as crianças foi-se tornando pior com a idade e, não obstante
as suas justificações, é bem visível um certo arrependimento nas palavras de Rousseau:
“[…] sentir-me-ia muito mais à-vontade perante um monarca da Ásia do que perante um garoto
[…] Um outro inconveniente mantém-me hoje mais afastado das crianças […]. As crianças não gostam
da velhice, o aspecto da natureza quebrada é odiável aos seus olhos e a sua visível repugnância aflige-me;
prefiro abster-me de as acariciar a causar-lhes embaraço ou aversão. Este motivo, que só toca as almas
verdadeiramente amorosas, é nulo para os nossos sábios e sábias.”240
Duas páginas apenas após o excerto anterior, o filósofo faz questão de reafirmar
a sua afeição pelas crianças:
“Olho e vejo um garoto de cinco ou seis anos que me apertava os joelhos com toda a força e que
olhava para mim com um ar tão familiar e tão meigo que o meu coração se comoveu e eu disse para mim:
unique moyen de sauver son honneur. Sa mère, qui de plus craignait un nouvel embarras de marmaille,
étant venue à mon secours, elle se laissa vaincre. On choisit une sage-femme prudente et sûr appelée Mlle
Gouin, qui demeurait à la pointe Saint-Eustache, pour lui confier ce dépôt, et quand le temps fut venu,
Thérèse fut menée par sa mère chez la Gouin pour y faire ses couches. J’allai l’y voir plusieurs fois, et je
lui portai un chiffre que j’avais fait à double sur deux cartes, dont un fut mise dans les langes de l’enfant, et il fut déposé par la sage-femme au bureau des Enfants-Trouvés, dans la forme ordinaire. L’année
suivante, même inconvénient et même expédient, au chiffre près qui fut négligé. Pas plus de réflexion de
ma part, pas plus d’approbation de celle de la mère: elle obéit en gémissant. On verra successivement
toutes les vicissitudes que cette fatale conduite a produites dans ma façon de penser, ainsi que dans ma
destinée. Quant à présent, tenons-nous à cette première époque. Ses suites, aussi cruelles qu’imprévues,
ne me forceront que trop d’y revenir.” (C, livre III, OC I, pp. 343- 345). 239 “[…] Je répondis en rougissant jusqu’aux yeux que je n’avais pas eu ce bonheur. Elle sourit
malignement en regardant la compagnie: tout cela nʼétait pas bien obscure, même pour moi. Il est clair
d’abord que cette réponse n’est point celle que j’aurais voulu faire, quand même j’aurais eu l’intention
d’en imposer; car dans la disposition où je voyais celle qui me faisait la question j’étais bien sûr que ma
négative ne changerait rien à son opinion sur ce point. On s’attendait à cette négative, on la provoquait
même pour jouir du plaisir de m’avoir fait mentir.” (R, quatrième promenade, OC I, p. 1034). 240 “[…] je serais bien plus à mon aise devant un monarque d’Asie que devant un bambin […]. Un autre
inconvénient me tient maintenant plus éloigné d’eux […]. Les enfants n’aiment pas la vieillesse, l’aspect
de la nature défaillante est hideux à leurs yeux, leur répugnance que j’aperçois me navre, et j’aime mieux
m’abstenir de les caresser que de leur donner de la gêne ou du dégout. Ce motif qui n’agit que sur des
âmes vraiment aimantes, est nul pour tous nos docteurs et doctoresses.” (ibid., neuvième promenade, p.
1087).
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seria assim que eu teria sido tratado pelos meus. Peguei na criança, beijei-a várias vezes numa espécie de
arrebatamento e depois continuei o meu caminho.”241
Mas o que Rousseau pretende é repôr a verdade e esclarecer o seu amor pelas
crianças, ao mesmo tempo que sabe ter de justificar bem o facto de ter abandonado os
seus filhos na Roda:
“Compreendo que a censura por ter posto os meus filhos na roda tenha facilmente degenerado,
distorcendo um pouco os factos, na de eu ser um pai desnaturado e odiar as crianças. No entanto, é certo
que foi o receio de um destino mil vezes pior e quase inevitável, na falta de qualquer outro caminho, que
me manteve determinado a tomar essa decisão. Se eu tivesse sido mais indiferente em relação ao que eles
viriam a ser, e não tendo a possibilidade de os criar eu próprio, teria sido necessário, na minha situação,
deixar que a mãe os criasse, estragando-os com mimos, e que a sua família fizesse deles uns monstros.
Ainda estremeço ao pensar nisso. O que Maomé fez de Séide242 nada é em comparação com o que fariam
dos meus filhos, e as ciladas que posteriormente me armaram a esse respeito confirmam que esse projecto
existia. Na verdade, estava muito longe de prever esses atrozes conluios, mas sabia que a educação menos
perigosa ainda era a dos meninos da Roda243 e, por isso, os pus lá. Fá-lo-ia de novo com muito menos
dúvidas, se tivesse agora de o fazer, sabendo bem que nenhum pai é mais terno do que eu teria sido para
eles, se o hábito tivesse ajudado a natureza.”244
Transcritos alguns excertos relativos aos dois episódios que seleccionámos,
impõem-se as questões. De que modo estão presentes nestes relatos a subjectividade e a
universalidade? Melhor, de que forma estamos perante uma universalidade da
subjectividade? Melhor ainda, como podemos perspectivar aqui a questão da
subjectividade universal? Em primeiro lugar, consideramos que tanto as Confessions,
como as Rêveries, são obras filosóficas, mais do que textos autobiográficos ou obras-
241 “Je regarde et je vois un petit enfant de cinq à six ans qui serrait mes genoux de toute sa force en me
regardant d'un air si familier et si caressant que mes entrailles s'émurent et je me disais, c'est ainsi que
j'aurais été traité des miens. Je pris l'enfant dans mes bras, je le baisai plusieurs fois dans une espèce de transport et puis je continuai mon chemin.” (ibid., p. 1089). 242 Rousseau refere-se à personagem Séide da tragédia Maomé, de Voltaire, redigida em 1742. 243 À falta de uma melhor tradução para “enfants-trouvés”, e porque os termos que encontrámos em
diferentes traduções – “crianças-encontradas”, “crianças-abandonadas”; “asilo dos enjeitados” – não nos
parecem ser os mais apropriados, considerámos por bem traduzir por “meninos da Roda”, como, aliás, é o
mais frequentemente adoptado. 244 “Je comprends que le reproche d’avoir mis mes enfants aux enfants-trouvés a facilement dégénéré,
avec un peu de tournure, en celui d’être un père dénaturé et de haïr les enfants. Cependant il est sûr que
c'est la crainte d'une destinée pour eux mille fois pire et presque inévitable par toute autre voie qui m'a le
plus déterminé dans cette démarche. Plus indifférent sur ce qu'ils deviendraient et hors d'état de les élever
moi-même il aurait fallu dans ma situation les laisser élever par leur mère qui les aurait gâtés et par sa
famille qui en aurait fait des monstres Je frémis encore dʼy penser. Ce que Mahomet fit de Seide n’est rien auprès de ce qu’on aurait fait d’eux à mon égard, et les pièges qu’on m’a tendus là-dessus dans la
suite, me confirment assez que le projet en avait été formé. A la vérité j’étais bien éloigné de prévoir alors
ces trames atroces: mais je savais que l’éducation pour eux la moins périlleuse était celle des enfants-
trouvés; et je les y mis. Je le ferais encore, avec bien moins de doute aussi, si la chose était à faire, et je
sais bien que nul père n’est plus tendre que je l’aurais été pour eux, pour peu que lʼhabitude eût aidé la
nature.” (R, neuvième promenade, OC I, p. 1087).
111
primas literárias. É verdade que os relatos aí constantes dizem respeito à vida, mas
manifestam bem o exercício de subjectividade do filósofo sobre essa mesma vida.
Trata-se de um eu que auto-observa a história e as estórias da sua vida, aplicando os
traços distintivos da sua subjectividade filosófica: subjectividade e universalidade,
identidade versus alteridade e a trilogia das ideias/sentimentos que identificámos como
constituintes da subjectividade universal rousseauniana. É certo que a questão da
sinceridade e o problema da verdade destes textos são colocados em causa por muitos
investigadores da obra de Rousseau. Para nós, trata-se da verdade filosófica, da verdade
do exercício de subjectividade assumida agora pela sua própria vida, não obstante os
artifícios, os acrescentos e os ornamentos que o filósofo assume constantemente fazer
sobrepor. A verdade é a verdade da sua subjectividade filosófica. Rousseau mostra-se ao
natural, depurando-se das vestes sociais e dos ornamentos que a sociedade lhe impôs,
pretende retomar-se fora da alçada de uma sociedade que não soube sê-lo,
resguardando-se dos homens do seu tempo que não souberam aprender a lição de
Glauco, que não souberam compreender a distinção entre o estado de natureza e o
estado de civilização, e, por isso, também, não puderam evitar os ab(usos) do mal.
Caberia, pois, a Rousseau, que viu o que os outros não viram, subtrair-se a uma
sociedade ultrajante, falsa, redutora e injusta, mostrando-se justa e naturalmente,
fazendo jus à sua própria filosofia. Independentemente do problema da sinceridade,
enfrentar-se a si próprio, espelhar a sua própria imagem, recriando-a e, muitas vezes,
criando-a é, subscrevendo Jorge de Sena, “uma confusão saudável e positiva – que nos
cumpre agradecer a Rousseau”245
. Os relatos dos últimos anos são, afinal, o confronto
prático com a sua subjectividade universal, que ficou longe de ser compreendida pelo
seu tempo. Por isso, a sua última obra é escrita a partir de si próprio, para que outros
saibam ver e compreender os resultados do exercício de subjectividade filosófica, que
partilhou nas obras anteriores (indevidamente compreendidas pelos seus
contemporâneos), e no qual investiu toda a sua vida. Nestas últimas obras, sobra-se a si
próprio e de si próprio se alimenta: “reduzido apenas a mim próprio, alimento-me, é
verdade, da minha própria substância […]” (R, 8e, p. 1075).
Quando descreve o amor por Madame de Warens ou quando se refere aos filhos
que abandonou na Roda, Rousseau vai mais longe do que à primeira vista possa parecer.
245 SENA, Jorge de, “As Confissões de Rousseau e o problema da sinceridade”, in ROUSSEAU, Jean-
Jacques, Confissões, vol. I, op. cit., p. 13.
112
O primeiro episódio não mostra só o universo de um apaixonado e o segundo não
pretende apenas justificar o acto displicente de um pai que abandona os seus filhos.
Ambos mostram o primado que o filósofo dá ao amor246
. Mas não se trata apenas do
amor do homem pela mulher, do amor do pai pelos filhos. Trata-se do amor pelos
homens, subjacente ao Discours de 50 e de 55, do amor pela efectiva comunicação entre
os homens, patente no Essai. Trata-se da constatação filosófica de que é o amor o
grande motor da organização social e política, presente no Du Contrat Social, bem
visível neste excerto: “Para se comandar homens é preciso fazer leis que possam ser
amadas, de forma que para cumprir o que se deve baste acreditar que se deve fazê-
lo”247
. Trata-se do amor pelas crianças e pelos jovens, pressuposto do Émile, do amor
pelos seus semelhantes a quem se mostra inteira e naturalmente, objectivo das
Confessions e das Rêveries. Nesse sentido, há até quem defenda que Rousseau vê no
amor o cumprimento do self ao qual dedicou os seus últimos dias: “[…] essa condição
de solidão não é realmente a verdade de Rousseau. A sua natureza, como a de Julie, é a
de um amante. Lembrando estes idílios na ilha de St. Peter, Rousseau pode ter passado
além da demanda incessante, ‘aidez-moi’, mas apenas no final, para o devolver à sua
demanda mais profunda, ‘aimez-moi’ ”248
.
Rousseau diz-nos, em Idée de la méthode dans la composition d’un livre, que
“quando compomos um livro […] o dever do autor é o de explicar desde logo o
sentimento comum […]”249
. Este sentimento referido pelo autor tem um duplo sentido:
por um lado, diz respeito ao sentimento que pretende ser comum com o leitor, por outro
refere-se ao sentimento comum da própria obra, tomada no seu conjunto. Ora, as
Confessions e as Rêveries estão não só interligadas entre si, mas também ligadas com os
restantes textos da obra de Rousseau. O sentimento comum que pede ao leitor é o
sentimento que Rousseau não viu nos seus leitores contemporâneos e que se baseia no
amor pelo outro: a compaixão. O leitor deverá ler a obra como se fora ele mesmo ali
246 Veja-se, por exemplo, a leitura de Lancelin e Lemonnier, que fazem do amor o tema principal da obra
de Rousseau. Cf. LANCELIN, Aude; LEMONNIER, Marie, “Jean-Jacques Rousseau: vida e morte do
romantismo”, in Os filósofos e o amor – amar, de Sócrates a Simone de Beauvoir, pref. Eduardo
Lourenço, trad. Carlos Vaz Marques, Lisboa, Edições Tinta-da-China, MMX, pp. 79-108. 247 Discours sur l’économie politique, OC III, pp. 251-252. 248 “But this condition of solitude is not Rousseau’s real truth. His nature, like Julie’s, is that of a lover.
Remembering this idylls on the island of St Peter, Rousseau may have passed beyond the incessant
demand, aidez-moi’, but only in the end to return him to the deeper demand, ‘aimez-moi’”. (GAUTHIER,
David, “Making Jean-Jacques”, in Jean-Jacques Rousseau and the Sources of the Self, op. cit., p. 14). 249 “Quand on entreprend un Livre […] le devoir d’un auteur est d’expliquer d’abord le sentiment
commun […].” (Idée de la méthode dans la composition d’un livre, OC II, p. 1243).
113
exposto, pondo-se no lugar do outro, do seu autor. Será exigido ao leitor, mais uma vez
e, como em todos os outros textos, um exercício de subjectividade, agora aparentemente
mais cúmplice, mas cuja cumplicidade tinha já sido exigida em todos os outros textos
do filósofo. É assim que, alimentando-se dos “sentimentos para os quais nasceu” (R, 8e,
p. 1081), Rousseau procurará partilhar a sua natureza, sem os vícios da civilização,
almejando sair melhor da vida do que quando nela entrou (R, 3e, p. 1023). E fá-lo num
profundo exercício de subjectividade no qual traz para o relato da sua vida a trilogia das
ideias/sentimentos que se apresenta à sua consciência.
II.3. A trilogia da subjectividade universal que se apresenta à consciência
“Conscience, conscience! Instinct divin, immortelle et céleste voix, guide assuré d’un être ignorant et
borné, mais intelligent et libre; juge infaillible du bien et du mal, qui rend l’homme semblable à Dieu ; c’est toi qui fais l’excellence de sa nature et la moralité de ses actions; sans toi je ne sens rien en moi qui
m’élève au-dessus des bêtes, que le triste privilège de m’égarer d’erreurs en erreurs à l’aide d’un
entendement sans règle, et d’une raison sans principe.”
(ROUSSEAU, J.-J., “Profession de Foi du Vicaire de Savoyard”, in Émile ou de l’éducation, livre IV,
OC IV, pp. 600-601).
É tempo de clarificar dois pontos da questão em análise. São eles: a identificação
justificada dos elementos que constituem a trilogia da subjectividade universal e a função
da consciência na sua compreensão.
A trilogia desdobra-se em: dialéctica ser-parecer (estátua de Glauco), distinção
entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização (homem civil) e a
questão da evitabilidade do (ab)uso do mal. A identificação de tal desdobramento deve-
se a duas razões principais. A primeira razão tem a ver com o facto de constatarmos que
as três ideias (também sentimentos) constituem o núcleo fulcral da temática da
subjectividade universal, sendo transversais à sua reflexão, constituindo o denominador
comum a todos os textos que tomámos como referência e que significativamente
pertencem a décadas distintas e a temáticas aparentemente muito diferentes. Em todos
esses textos, a trilogia dita o mesmo sentido. Trata-se sempre de observar a natureza
humana a partir da aparência social e civilizacional e sob os revestimentos culturais que a
história e o progresso vão tendo, ao mesmo tempo que se procura reflectir o modo como
poderemos evitar o (ab)uso do mal. E Rousseau fá-lo, tendo em conta os homens (nos
Discours, no Essai, no Émile e em Du Contrat Social) e ele próprio (nas Confessions e
nas Rêveries). A segunda razão relaciona-se com o facto de aqueles três elementos
114
estarem intrinsecamente relacionados entre si, como veremos, melhor do que agora, no
capítulo III. O plano do ser corresponde ao estado de natureza (homem natural) e à prática
da virtude (bem) por contraposição ao parecer, que remeterá para o estado de civilização
(homem civil) e para o mal. Retomando sempre os sentimentos naturais que identificara
nos Discours – e.g., amor a si mesmo, piedade, bondade originária –, é verdade que
Rousseau acrescenta, noutros escritos, como por exemplo na Profession de Foi, novos
conceitos a pensar e a sentir (Deus, consciência, virtude, vontade, juízo, poder de querer).
Não obstante o universo semântico específico em cada obra, encontramos, mais ou menos
directamente, a presença da trilogia da subjectividade universal nos diferentes escritos, e
que configura, mais do que qualquer outra, a unidade e a lógica interna dos diferentes
textos250
que constituem a obra de Rousseau.
A trilogia da subjectividade universal surge desde logo no Discours de 50 no
elenco do(s) mal(es) dos homens em sociedade, afastados do seu estado de natureza, aqui
especificamente em relação às ciências, às letras e às artes, cujo restabelecimento levou
aos malefícios do “cortejo dos vícios” (D1, I, p. 8), designadamente, “o luxo”, “a
ociosidade” e “a vaidade” (D1, II, p. 19), bem visíveis nos costumes de uma sociedade
que não “parece” o que “é” (cf. D1, I, p. 8). As ciências nascem do vício da ociosidade e
“se são vãs no objecto a que se propõem, são ainda mais perigosas nos efeitos que
produzem” (D1, II, p. 18); “outros males piores seguem as letras e as artes” (D1, II, p.
19). É ainda no Discours de 50 que podemos também encontrar a questão da
evitabilidade do (ab)uso do mal (referida por alguma bibliografia como a tese do
remédio do mal), que afasta o pessimismo derrotista, que tantas vezes é atribuído ao
filósofo:
“Confesso, entretanto, que o mal não é tão grande como poderia tornar-se. A providência eterna,
colocando ao lado de diversas plantas nocivas outras salutares, e na substância de muitos animais
malfeitores o remédio para as suas feridas, ensinou aos soberanos, que são seus ministros, a imitar-lhe a
sabedoria. […] ninguém busca remédios para males que não existem.”251
250 Cada um dos seus textos terá uma terminologia própria – por exemplo, a vontade geral, a ideia de
contrato social e a passagem da liberdade natural para a liberdade civil só receberão um tratamento específico e um universo semântico próprio em Du Contrat Social. 251 “Je l’avoue, cependant; le mal n’est pas aussi grand qu’il aurait pu le devenir. La prévoyance éternelle,
en plaçant à côté de diverses plantes nuisibles des simples salutaires, et dans la substance de plusieurs
animaux malfaisants le remède à leurs blaissures, a enseigné aux souverains qui sont ses ministres à
imiter sa sagesse. […] l’on ne cherche point des remèdes à des maux qui n’existent pas.” (D1, seconde
partie, pp. 26-27).
115
No seu último texto, aquando da remissão para o relato que empreende na
Profession de Foi, Rousseau refere a importância dos princípios expostos no testemunho
do vigário, que não mais o abandonaram:
“Desde então, tranquilo nos princípios que adoptara, após uma meditação tão longa e tão reflectida,
fiz deles a regra imutável da minha conduta e da minha fé. [Trata-se dos] princípios fundamentais adoptados
pela minha razão, confirmados pelo meu coração, todos eles portadores da marca do íntimo assentimento no
silêncio das paixões. Em matérias que transcendem tanto o entendimento humano, uma objecção que eu não
possa resolver bastará para derrubar toda uma doutrina tão sólida, tão bem encadeada, e formada com tanta
meditação e cuidado, tão adequada à minha razão, ao meu coração, a todo o meu ser, e reforçada pelo
consentimento íntimo que, a meu ver, falta a todas as outras? Não, não há argumentações vãs que destruam
o entendimento que sinto existir entre a minha natureza imortal e a constituição deste mundo e a ordem
física que neste vejo reinar. Na ordem moral que lhe corresponde e cujo sistema é o resultado das minhas
pesquisas, encontro os apoios de que necessito para suportar as vicissitudes da minha vida. Em qualquer
outro sistema, viveria sem recursos e morreria sem esperança. Seria a mais infeliz das criaturas. Este é, pois,
o que basta para me tornar feliz, a despeito da sorte e dos homens.”252
Na Profession de Foi, Rousseau refere os artigos de fé, previamente tinha já
afirmado estar em condições de “poder resumir todas as reflexões precedentes em duas
ou três máximas precisas, claras e fáceis de compreender” (É, IV, p. 506) e já tinham
também sido referidas algumas máximas, como esta terceira: “a piedade que temos pelo
mal de outrem não se mede pela quantidade desse mal, mas pelo sentimento que
emprestamos àqueles que o sofrem.” (É, IV, p. 508). Aqui constata-se bem a presença
da distinção entre o estado de natureza (ser) e o estado de civilização (parecer), mais
especificamente, entre o sentimento de piedade natural e de piedade social, bem como o
modo virtuoso que deve estar subjacente nesta última, no sentido da evitabilidade do
(ab)uso do mal. E eis de novo a trilogia.
A trilogia constitui o denominador comum de todas as obras. É a base da nova
terminologia que vai surgindo ao longo de cada texto, sendo a partir dela que surgem
252 “Depuis lors reste tranquille dans les principes que j’avais adoptés après une méditation si longue et si
réfléchie, j’en ai fait la règle immuable de ma conduite et de ma foi. [Ce sont des] principes
fondamentaux adoptés par ma raison, confirmés par mon cœur, et qui tous portent le sceau de
l’assentiment intérieur dans le silence des passions. Dans des matières si supérieures à l’entendement
humain une objection que je ne puis résoudre renversera-t-elle tout un corps de doctrine si solide, si bien
liée et formée avec tant de méditation et de soin, si bien appropriée à ma raison, à mon cœur, à tout mon
être et renforcée de l’assentiment intérieur que je sens manquer à toutes les autres? Non, de vaines argumentations ne détruiront jamais la convenance que j’aperçois entre ma nature immortelle et la
constitution de ce monde et l’ordre physique que j’y vois régner. J’y trouve dans l’ordre moral
correspondant et dont le système est le résultat de mes recherches les appuis dont j’ai besoin pour
supporter les misères de ma vie. Dans tout autre système je vivrais sans ressource et je mourrais sans
espoir. Je serais la plus malheureuse des créatures. Tenons-nous en donc à celui qui seul suffit pour me
rendre heureux en dépit de la fortune et des hommes.” (R, troisième promenade, OC I, pp. 1018-1019).
116
todas as outras ideias e/ou sentimentos e todos os resultados do exercício de
subjectividade universal rousseauniana. São as primeiras verdades, ou, se se preferir, os
primeiros princípios, não exclusivamente racionais, nem somente sensitivos, mas
igualmente racionais e sensitivos. Só o coração aliado à razão e a razão aliada ao
coração poderão reconhecer aqueles princípios que, “na sinceridade do seu coração, não
possa recusar o [seu] consentimento”, e tomar “como verdadeiros todos os que [lhe]
pareçam ter uma ligação necessária com os primeiros” (PF, p. 570). Não é nosso
propósito fazer o levantamento exaustivo das máximas, dos artigos de fé e dos
princípios que vão sendo enunciados ao longo das obras de Rousseau. Mas importa
destacar que todos eles reconduzem à trilogia das ideias/sentimentos da subjectividade
universal, assente na aliança inextricável entre o seu pensar e o seu sentir. As
ideias/sentimentos da trilogia que Rousseau não chega a identificar explicitamente nem
a sistematizar inequivocamente servem de alicerce à sua filosofia política, moral,
educacional, estando bem patentes no Émile e em Du Contrat Social e, não estando
identificados num momento preciso das Rêveries e das Confessions, vão também sendo
abordados ao longo destes textos, no que se refere à sua apresentação, à descrição da
sua vida e da sua pessoa, aos sentimentos naturais que o afastaram do mal da sociedade,
numa procura persistente pela prática da virtude, de acordo com a sua consciência, a
qual “conservou a sua original integridade” (R, 4e, p. 1025).
O segundo ponto que queremos explanar diz respeito à consciência e à sua função
na compreensão da trilogia das ideias/sentimentos. Como tem o homem acesso às
ideias/sentimentos da consciência? Como se manifestam? E como se dá o seu
reconhecimento? É preciso educar a consciência? A resposta a uma daquelas questões
implica responder às restantes.
É através do exercício de subjectividade de carácter universal que o homem de
Rousseau aceita e compreende o que lhe é natural e artificial e perceberá, pela razão e
pelo sentimento, a sua inalienável e universal consciência virtuosa, indo ao encontro da
trilogia que interessa. A trilogia das ideias/sentimentos manifesta-se à consciência e é
intuída. Mas não se trata de um processo fenomenológico nem de uma intuição à letra.
Não é uma intuição pura, e também não é nem exclusivamente sensível nem
exclusivamente racional. Ela é “visual”. Uma visão que requer um duplo olhar: o da
razão e o do coração. Para isso, é preciso educar a consciência para que aprenda a ver.
Independentemente das épocas históricas, o olhar da criança, mas, sobretudo, o do
117
jovem
deverá ser treinado para o reconhecimento das ideias/sentimentos que se
apresentam à consciência. Esta aprendizagem inicia-se desde cedo, todavia só ocorrerá
com todo o seu esplendor na fase da puberdade (livro IV do Émile), quando a razão já
está desenvolvida, após se ter prolongado o mais possível as fases de crescimento
anteriores. Se os primeiros três livros do Émile se dedicam, sobretudo, à educação da
criança que, à semelhança do homem natural, não tem ainda acesso efectivo ao
raciocínio, nem à esfera moral, o livro IV dedicar-se-á à educação moral e da alma,
também religiosa, na “idade crítica”, em que “se determina para toda a vida [o carácter],
seja para o bem seja para o mal” (PF, p. 630). Na fase da puberdade, o educador deve,
no entanto, encontrar uma consciência tranquila, que durante os primeiros anos de vida
da criança se manteve afastada do ruído social para que o jovem possa contemplar a sua
sublime presença (aqui sim, à boa maneira kantiana) em todo o seu esplendor e fazer
bom uso dela. O modo como se desenvolve a paidéia é fundamental neste processo, o
educador orienta, mas é o educando quem deverá saber observar a consciência e os seus
conteúdos. Não se trata, portanto, de preceitos, mas de exercitar a subjectividade e a
visão dupla da razão e do coração. A educação visará orientar o jovem para a intuição
do que à consciência atenta se manifesta: a) o ser que verdadeiramente somos sob as
múltiplas aparências (dialéctica ser-parecer); b) o que nos serve naturalmente e que
deverá ser salvaguardado em sociedade, na inevitável relação com o outro (distinção
entre estado de natureza-homem natural e estado de civilização-homem civil) e c)
reconhecer o mal e evitar o seu (ab)uso (a questão da evitabilidade do mal).
A nosso ver, a consciência é o conceito mais polissémico de todos os conceitos
rousseaunianos. Se, por um lado, é uma espécie de “instinto moral” (R, 4e, p. 1028),
aliado à natureza divina, como também viu Burlamaqui, mais do que Pufendorf ou
Barbeyrac253
, por outro, só surge na ordem do humano e, portanto, em sociedade; se, por
sua vez, como em Malebranche, é um sentimento interior, por outro necessita da razão.
Se, por seu turno, a consciência é moral, por outro, é também antropológica, histórica,
política, religiosa, cultural e social. Se, por um lado, é individual, por outro assenta na
natureza humana, que é universal. A consciência é a voz da natureza. Só ela distingue o
ser do parecer e ouve os sentimentos naturais que se manifestam a partir da experiência
vivencial e irremediavelmente social do homem. A consciência rousseauniana surge no
253 A este propósito, veja-se a análise comparativa que Derathé empreende entre a teoria da consciência
de Rousseau e as de Burlamaqui, Pufendorf e Barbeyrac. Cf. DERATHÉ, Robert, “La raison et la
conscience”, in Le rationalisme de Jean-Jacques Rousseau, op. cit., pp. 74-138.
118
plano da vivência, da experiência concreta dos homens que, atentos e observadores,
conseguem identificar as causas do mal social e reconhecer o que é próprio à sua
natureza e à sua felicidade.
Na Profession de Foi, Rousseau define assim a consciência:
“Consciência, consciência! Instinto divino, imortal e celeste voz, guia seguro de um ser
ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal. Que torna o homem
semelhante a Deus; és tu que fazes a excelência da sua natureza e a moralidade das suas acções; sem ti,
não sinto nada em mim que me eleve acima dos animais, que não seja o triste privilégio de me perder, de
erro em erro, com a ajuda de um entendimento sem regras e de uma razão sem princípios.”254
Do excerto acima, vemos como a consciência é considerada por Rousseau como
um “instinto”, um “guia”, um “juiz”, como um sentimento que distancia o homem dos
animais, mas também como razão que aproxima o homem de Deus. Como em
Malebranche, a consciência não é uma faculdade da razão iluminada. Rousseau
acrescenta: a “consciência não se desenvolve e não age senão com as luzes do homem”,
mas é também o “amor, desenvolvido e tornado activo”255
. Inata e sem se confundir
com a razão, a consciência só se activa verdadeiramente com a mesma razão, mas se
esta não se socorrer do coração, não será o que deve ser. A consciência pensa, sente,
julga, consente e nega, mas bem ouvida a sua voz, o homem realiza a sua própria
natureza, mesmo em sociedade.
Ao contrário da ética formal da razão prática de Kant, em que a linguagem da
consciência é a de uma razão formal que recusa os instintos e os desejos, respeitando a
lei moral (sob a forma de imperativo categórico) e em que a boa vontade é a vontade
autónoma (e não heterónoma), Rousseau defende uma ampla consciência que reúne em
si as paixões, os instintos, a razão e o sentimento, a natureza e a liberdade. Por isso, o
homem natural não tem sequer acesso à consciência. Como o animal, o homem natural
não é dotado de consciência, não tem nem bem nem mal, não é ainda um ser moral nem
racional, apesar das suas características distintivas dos outros animais surgirem ainda na
relação autêntica de uniformidade com a natureza (cf. PF, p. 582): “[…] vejo um animal
menos forte do que uns, menos ágil que outros […], mas organizado mais
vantajosamente do que todos” (D2, p. 134-135). A consciência rousseauniana aponta
para o exercício subjectivo da indagação pela natureza e identidade do homem e esse só
254 Veja-se o texto original da citação que serviu de entrada a este sub-capítulo. 255 Cf. Lettre à Christophe de Beaumont, OC IV, p. 936.
119
se dá em sociedade. Por isso, o seu fim é também universal, pois a trilogia dos seus
conteúdos é passível de ser obtida e compreendida por todos os humanos, por e em si
próprios, ouvindo a (sua) voz natural. O que é pedido a Émile não é o cumprimento de
regras sociais ou deveres normativos que a razão determina, mas que veja, na sua
subjectividade mesma, o que se manifesta à consciência. Émile não tem de receber
instruções exteriores nem de procurar os conteúdos da consciência nos livros (como dirá
também Kant) mas, sim, de ouvir, por meio da razão e do sentimento, a voz da natureza,
intuindo, pela dupla visão, a trilogia que à consciência se apresenta. Se atentarmos no
facto de Émile representar o género humano e, se percebermos que a virtude é um
conceito que resulta da perfectibilidade da razão a partir dos sentimentos naturais,
compreenderemos que a consciência é acessível a todos, no exercício da subjectividade
de cada um que, por introspecção e intuição, acede à universalidade que interessa. A
consciência fala a linguagem da natureza e, por isso, também aí são reconhecidos
valores cruciais da esfera da moralidade, como o amor, a virtude e a piedade.
Émile corresponde ao projecto educacional, capaz de fazer um homem bom e
virtuoso que evita conscientemente o mal, recusando “o abuso das [suas] faculdades”
(PF, p. 587). A educação de Émile presta este serviço: o de orientar o reconhecimento da
consciência e do que tem para nos dizer e para nos dar a intuir: a trilogia das
ideias/sentimentos que se lhe apresenta e cujo reconhecimento leva invariavelmente ao
bem e à prática da virtude. Essa intuição, todavia, não é fácil nem imediata, deve e precisa
ser educada, dada a nossa condição e a infinita distância que vai da ordem do humano à
ordem do divino, no que respeita à capacidade intuitiva:
“[…] a suprema inteligência não precisa de raciocinar; para ela não há nem premissas nem
consequências, não há sequer proposição; é puramente intuitiva, vê igualmente tudo o que é e tudo o que
pode ser, todas as verdades não são para ele senão uma única ideia, como todos os lugares um único
ponto e todos os tempos um só momento. O poder humano age através de meios, o poder divino age por
si mesmo. Deus pode porque quer, a sua vontade faz o seu poder […] a bondade no homem é o amor dos
seus semelhantes, e a bondade de Deus é o amor da ordem […]. Deus é justo […] a injustiça dos homens
é obra deles e não a sua: a desordem moral que depõe contra a providência, aos olhos dos filósofos, não
faz mais do que demonstrá-la aos meus.”256
256 “[…] la suprême intelligence n’a pas besoin de raisonner; il n’y a pour elle ni prémisses, ni
conséquences, il n’y a pas même de proposition; elle est purement intuitive, elle voit également tout ce
qui est et tout ce qui peut être, toutes les vérités ne sont pour elle qu’une seule idée comme tous les lieux
un seul point et tous les temps un seul moment. La puissance humaine agit par des moyens, la puissance
divine agit par elle-même: Dieu peut parce qu’il veut, sa volonté fait son pouvoir. […] la bonté dans
l’homme est l’amour de ses semblables, et la bonté de Dieu est l’amour de l’ordre […]. Dieu est juste
120
A Profession de Foi dá a ver o homem que aceita e compreende o que lhe é
natural e sagrado e que perceberá, pelo juízo e pela vontade, pela razão e pelo
sentimento, a sua inalienável e universal consciência moral, na sua subjectividade. A
proposta é a de uma religião natural, pois só assim se entende a voz de Deus que, pela
consciência, fala a linguagem da natureza, na qual estão inscritos todos os conceitos que
são também os sentimentos que importa identificar. A consciência apresentada na
Profession de Foi tem um inalienável carácter moral, que, já o vimos, não se restringe à
esfera da moralidade, no contexto do conjunto dos seus textos. Nesse texto em
particular, a consciência recebe um carácter religioso e deverá ser entendida no contexto
da sua religião natural, no qual são retomados os sentimentos naturais, como o da
piedade natural e o amor de si mesmo. Com a sociedade, a piedade natural deixa de
existir na sua forma original, mas persiste, sob esse revestimento social, quando, e.g., se
chora nos espectáculos, comovidos com a dor da vítima (cf. D2, p. 155). Assim, temos
“piedade pelos desafortunados, [pois] quando somos testemunhas do seu mal, sofremo-
lo” (PF, p. 597). Em sociedade, o amor de si mesmo também não sobrevive e dará
origem ao amor-próprio, mas pode ser resgatado pelo sentimento naturalmente religioso
(que Rousseau faz ligar à consciência), isto é, pelo “amor ao autor do seu ser, amor que
se confunde com este amor de si mesmo” (PF, p. 636).
A relação entre a consciência e a virtude é intrínseca. No final do Discours de
50, já Rousseau tinha estabelecido a relação entre consciência e virtude, embora aí não
sejam dadas, nem a uma, nem a outra, as considerações que receberão posteriormente
no Émile. A propósito da virtude, diz-nos Rousseau:
“Eis a verdadeira filosofia, saibamos contentar-nos com ela; e, sem invejar a glória desses
homens célebres que se imortalizam na república das letras, tratemos de pôr entre eles e nós esta distinção
gloriosa que se notava outrora entre dois grandes povos: que um sabia dizer bem, e o outro bem-fazer.”257
A virtude e a consciência moral parecem ter, simultaneamente, uma dimensão
natural e social, sem que haja contradição, pois, na verdade, não teriam surgido se o
homem não actualizasse, em sociedade e em relação com o outro, as características
naturais, que possui em potência. Deus, ao criar a natureza, não deixou de lhe atribuir a
[…]; l’injustice des hommes est leur oeuvre et non pas la sienne: le desordre moral qui dépose contre la
providence aux yeux des philosophes ne fait que la démontrer aux miens.” (PF, OC IV, p. 593). 257 “Voilà la véritable philosophie, sachons nous en contenter; et sans envier la gloire de ces hommes
célébres qui s’immortalisent dans la République des Lettres, tâchons de metre en eux et nous cette
distinction glorieuse qu’on remarquait jadis entre deux grands peuples, que l’un savoit bien dire, et l’autre
bien faire.” (D1, seconde partie, p. 30).
121
propensão para a bondade, mas sem a razão e sem o uso do seu livre-arbítrio, nunca o
homem teria assim acedido ao universo moral e, por isso, também ao bem. A
consciência moral e a virtude não são, no entanto, uma simples conquista da razão,
resultam antes de um apurado processo de aperfeiçoamento, da razão e do sentir. São,
também, por esse motivo, os conceitos morais mais elaborados e elevados. A virtude
assume a função de fazer bem e está aliada à felicidade que surge como recompensa
pela sua prática: “Sejamos bons primeiramente, e depois seremos felizes” (PF, p. 589).
Ser virtuoso implica fazer o bem, quer dizer, não se conhece a virtude senão na sua
prática:
“Ter prazer em fazer bem é o prémio por ter bem feito, e este prémio não se obtém antes de o
termos merecido. Nada é mais amável do que a virtude, mas é preciso usufrui-la para a considerar como
tal.” 258
A consciência moral e a virtude surgem, assim, como universais, mas que
derivam da subjectividade. Na verdade, se atentarmos ao facto de Émile representar o
género humano, e se percebermos que a virtude e a consciência moral são conceitos que
resultam da perfectibilidade da razão a partir dos sentimentos naturais,
compreenderemos que a moral de Rousseau, acessível a todos, se encontra na
subjectividade de cada um que, por introspecção, acede à universalidade que interessa.
Ao contrário da piedade natural e do amor de si mesmo, que são sentimentos naturais,
concomitantes no estado de natureza, quer a consciência, quer a virtude resultam da
perfectibilidade da razão. O animal, como o homem natural, não é virtuoso nem dotado
de consciência moral, não tem nem bem nem mal, não é ainda moral nem racional.
A consciência está ao nível da apresentação e não da representação. Com efeito,
a representação é o denominador comum dos males enunciados nos Discours (em que a
aparência é sinónimo de representação) e no Essai (onde a linguagem é fortemente
criticada pela sua representação e simbologia inerente).
Se, por vezes, Rousseau dá primazia ao sentir, por outras, como vimos, é a razão
que é enaltecida. A consciência reúne o sentir ao pensar, a razão ao coração, a natureza
humana à natureza divina, sendo o conceito mais elaborado da esfera da moralidade, da
filosofia e da acção dos homens. Rousseau refere várias vezes ao longo da sua obra a
necessidade do reconhecimento da voz da consciência. A consciência exige que o
258 “Se plaire à bien faire est le prix d’avoir bien fait, et ce prix ne s’obtient qu’après l’avoir mérité. Rien
n’est plus aimable que la vertu, mais il en faut jouir pour la trouver telle.” (PF, OC IV, p. 602).
122
homem se conheça a si mesmo, se indague e se procure. Na verdade, saber ouvi-la e
compreender o que tem para nos dar não é privilégio exclusivo dos sábios, antes
corresponde à arte de viver virtuosamente, acessível a todos os seres humanos. Assente
na natureza humana universal, a consciência não é tão individual quanto possa parecer,
pois quem a reconhece agirá para si e para os outros sempre de modo universal,
respeitando a natureza e a condição humana. O nível da moralidade das acções dos
homens dependerá da compreensão e formação da sua consciência. Ela dita, pois, as
acções dos homens, a sua origem, os seus efeitos e consequências, que a história vai
mostrando. Não obstante o teor moral que a consciência tem no Émile, esta é
extrapolada e alargada, no contexto global da obra de Rousseau, à política, à educação,
à história, à vida individual e colectiva dos homens. A ética rousseauniana não pode,
por isso, ser confundida com a ética deontológica de Kant nem com a ética
consequencialista, teleológica ou utilitarista de Mill ou Bentham. A ética de Rousseau é
subjectiva, universal, deontológica e consequencialista, individual e colectiva, racional e
sensitiva. Os homens fazem-se seres morais e o caminho será melhor ou pior, consoante
o cumprimento fiel perante o que dita a consciência.
Encontrar sentidos numa obra a que Rousseau faz questão de não dar sentido
sistemático algum, recusando-se a logicizar, esquematizar ou sistematizar qualquer uma
das suas teses filosóficas (como tão bem fez Kant, por exemplo) é o maior desafio que se
impõe ao leitor. A escrita rousseauniana incita à reflexão pensada e sentida, à imaginação
e à observação dos conceitos, termos e ideias e/ou sentimentos que vão sendo
reiteradamente apresentados, mas sem nunca fornecer uma tipificação explícita dos
mesmos. É assim que vemos surgir, numa leitura de assumida influência
schleiermacheriana, o que consideramos ser a visão simultaneamente de fundo e global do
conjunto dos seus textos, identificada por nós como a questão da subjectividade universal
rousseauniana. É essa a questão que consideramos ser a mais fundamental tese filosófica
da totalidade dos seus escritos, presente em cada uma das partes, e que vemos assomar
constantemente ao longo daqueles, desde o Discours de 50 até às Rêveries, estas redigidas
quase três décadas depois daquele. Da questão da subjectividade universal rousseauniana
destacamos a trilogia das ideias/sentimentos que à consciência se apresentam. A cada
uma das ideias/sentimentos dedicaremos o respectivo sub-capítulo do capítulo seguinte.
123
Capítulo III – Os elementos da trilogia da subjectividade universal
III.1. A dialéctica ser/parecer
“[…] Semblant à la statue de Glaucos que le temps, la mer et les orages avaient tellement défigurée,
qu’elle ressemblait moins à un Dieu qu’à une Bête féroce, l’âme humaine altérée au sein de la société par
mille causes sans cesse renaissances, par l’acquisition d’une multitude de connaissances et d’erreurs,
par les changements arrivés à la constitution des Corps, et par le choc continuel des passions, a, pour
ainsi dire, changé d’apparence au point d’être presque méconnaissable; et l’on n’y retrouve plus, au lieu
d’un être agissant toujours par des principes certains et invariables, au lieu de cette céleste et
majestueuse simplicité dont son Auteur l’avait empreinte, que le difforme contraste de la passion qui croit raisonner et de l’entendement en délire […]”
(ROUSSEAU, J.-J., “préface”, in Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les
hommes, OC III, 1964, p. 122)
A dialéctica serparecer, a primeira ideia/sentimento da trilogia que
identificamos, surge na procura da natureza do género humano. No Discours de 55 (que
terá sido o texto preferido de Diderot – C,8, p.389), Rousseau parte da estátua de
Glauco, inspirado certamente por Platão. Com efeito, o filósofo da Antiguidade Grega
já assim descrevera a alma humana: “Nós vimo-la seguramente num estado comparável
ao de Glauco marinho. Quem o vir, não reconhecerá facilmente a sua natureza
primitiva, devido ao facto de, das partes antigas do seu corpo, umas se terem quebrado,
outras estarem gastas, e todas deterioradas pelas ondas, ao passo que outras se
sobrepuseram nela – conchas, algas ou seixos –, de tal modo que se assemelha mais a
qualquer animal do que ao seu antigo aspecto natural. É assim também que nós vemos a
alma, abatida por milhentos vícios”259
.
Como a estátua de Glauco, também a natureza humana se vê oculta e
desfigurada sob os múltiplos revestimentos sociais que a história tem vindo a
acrescentar. Descortinar o estado primitivo que já não aparece e que, pelo contrário, está
oculto é o árduo e difícil desafio rousseauniano:
“[…] não é ligeira a empresa de distinguir o que há de originário e de artificial na natureza actual
do homem, e de conhecer bem um estado que não existe mais, que talvez não tenha existido e que
provavelmente jamais existirá do qual é, portanto, necessário ter dele noções justas para bem julgar o
nosso estado presente.”260
259 PLATÃO, Πολιτεία (380 a.c.), Tr. Port. A República, Livro X, 611d, trad. Maria Helena da Rocha
Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 480. 260 “[…] ce n’est pas une légère entreprise de démêler ce qu’il y a d’originaire et d’artificiel dans la nature
actuelle de l’homme, et de bien connaître un état qui n’existe plus, qui n’a peut-être point existé, qui
probablement n’existera jamais, et dont il est pourtant nécessaire d’avoir des notions justes pour bien
juger de notre état présent.” (D2, préface, OC III, p. 123).
124
Perceber o que é natural ao homem, partindo dos revestimentos artificiais que
este deu a si mesmo, cuja evolução não cessou nem cessará mais, é o objectivo de
Rousseau:
“[…] sem o estudo sério do homem, das suas faculdades naturais e dos seus desenvolvimentos
sucessivos, não se conseguirá chegar ao ponto de fazer estas distinções, e de separar, na actual
constituição das coisas, o que fez a vontade divina do que a arte humana pretendeu fazer.”261
Revelar o que é a natureza humana já sob a aparência das vestes sociais implica
uma criteriosa observação, assente numa dupla visão, da razão e do sentimento. Com
efeito, distinguir o que é natural do que é artificial no homem requer uma tomada de
precauções, quer em relação àquele que vê, quer em relação à imagem que é vista:
“[…] as instituições humanas parecem à primeira vista fundadas sobre montes de areia
movediça: não é senão examinando-as de perto, não é senão depois de ter tirado a poeira e a areia que
rodeiam o edifício, que se percebe a base inabalável sobre a qual se construiu, e que se aprende a respeitar
os seus fundamentos.”262
A observação da natureza humana coincide com a observação da estátua de
Glauco e será a resposta à inscrição délfica, procurando a distinção entre o que é e o que
parece no homem, tal como Gouhier afirma: “A inscrição do Templo de Delfos deve a
sua significação filosófica à consciência que distingue nela o ‘ser’ e o ‘parecer’, ou
melhor, ‘ser’ e ‘se parecer’. Toda a filosofia do ‘conhece-te a ti mesmo’ é um convite a
procurar o que esconde o homem de si mesmo para o levar a conhecer-se tal como ele
é”263
. A minuciosa observação exigida não é, pois, uma observação imediata nem
intuitiva, requer método e recursos adequados. É necessário recorrer à imaginação e à
conjectura264
, ao pensar e ao sentir. É preciso afastar o que confunde e não deixa ver a
natureza humana no estado de civilização. E para bem observar o homem, seja qual for
o tempo ou lugar em que situe, torna-se necessário recorrer à sua genealogia, porque
261 “[…] sans l’étude sérieuse de l’homme, de ses facultés naturelles, et des leurs développements
successifs, on ne viendra jamais à bout de faire ces distinctions, et de séparer dans l’actuelle constitution
des choses, ce qu’a fait la volonté divine d’avec ce que l’art humain a prétendu faire.” (ibid., p. 127). 262 “[…] les établissements humains paraissent au premier coup d’œil fondés sur des monceaux de sable
mouvant: ce n’est qu’en les examinant de prés, ce n’est qu’après avoir écarté la poussière et le sable qui
environnent l’édifice, qu’on aperçoit la base inébranlable sur laquelle il est élevé, et qu’on apprend à en
respecter les fondements.” (ibid., p. 127). 263 “L’Inscription du Temple de Delphes doit sa signification philosophique à la conscience qui distingue en elle ‘être’ et ‘paraitre’, ou plutôt ‘être’ et ‘se paraitre’. Toute philosophie du ‘connais-toi’ est une
invitation à chercher ce qui cache l’homme à lui-même pour l’amener à se connaître tel qu’il est.”
(GOUHIER, Henri, Les Méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 12). 264 No Discours de 55, Rousseau refere por diversas vezes a reflexão conjectural, ficcional e hipotética da
história dos homens, facto que não deve ser descurado. Cf. ibid., pp. 123-124, 125-127,132-133, 145,
160, 162-163 e 183.
125
aquilo que, afinal, se opõe à natureza do homem é a sua própria história: “O ‘conhece-te
a ti mesmo’ socrático implica uma dificuldade de se conhecer que encontra a sua
explicação na história: o homem tornou-se outro; uma vez mais, tornar-se opõe-se a ser;
mas este tornar-se é aqui o do homem e opõe-se ao ser do homem: por outras palavras, é
a história que se opõe à natureza”265
.
Na genealogia que empreende, sobretudo na segunda parte do Discours de 55
(apresentada no Essai de modo muito mais resumido, e tomada como referência
constante nos outros textos), Rousseau recorre muito mais à imaginação e à conjectura
do que à cronologia histórica, pretendendo mesmo “afastar os factos, porque não ligam
à questão” (D2, I, p. 132). A observação da natureza humana não é imediata nem
evidente. Pelo contrário, à falta de uma auto-evidenciação da natureza humana, é
necessária a reconstrução imagética e conjectural da história humana: “Rousseau
encontra a injunção socrática do conhecimento de si mesmo (tal é, acima de tudo, a
lição da estátua de Glauco), e compreende-a como o conhecimento da alma, mas recusa
que se possa ver a alma com um olhar interior, pois falta-nos o órgão da sua visão
interna. Se falta a evidência de um espelho interior, cabe à filosofia da história construí-
lo no Discurso sobre a Desigualdade”266
. Rousseau vê-se, assim, impelido a narrar a
genealogia dos homens e a evolução das sociedades, dando especial enfoque ao
momento em que o ser dos homens se transforma em parecer, aquando da passagem do
estado de natureza para o estado de civilização. Será, precisamente, após esse processo
inicial de alteridade, que os homens poderão ter acesso à sua natureza e identidade
originária, já sob a aparência social, na relação e na dependência do outro, já com a
razão cultivada e afastados, portanto, da simplicidade e inocência naturais, bem como
da unidade com a natureza.
A distinção entre o que o homem é o que o homem parece ser não é, pois, tarefa
de pouca monta. Paradoxalmente, a identidade só é passível de ser reconhecida na
alteridade mesma, o estado natural do homem só pode ser observado no seu estado de
civilização. Saber o que o homem é implica um difícil exercício de subjectividade em e
sobre si mesmo. É em si que o homem encontrará o ser universal de todos os homens.
265 “Le ‘connais-toi’ socratique suppose une difficulté de se connaître qui trouve son explication dans
l’histoire: l’homme est devenu autre qu’il est; une fois encore, devenir s’oppose à être; mais le devenir est
ici celui de l’homme et il s’oppose à l’être de l’homme: en d’autres termes, c’est l’histoire qui s’oppose à
la nature.” (GOUHIER, Henri, Les Méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 12). 266 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit. p. 35.
126
No que diz respeito ao mito de Glauco, têm surgido diferentes leituras. Na
defesa de uma bifurcação rousseauniana no recurso a Glauco, Starobinski apresenta
duas versões distintas, sem optar por nenhuma delas. Por um lado, defende que
Rousseau afirma que a alma humana degenerou, que está desfigurada, atingindo uma
alteração abissal da sua essência, sendo a sua bondade originária absolutamente
irreconhecível; por outro, alega tratar-se não de uma deformação, nem de desfiguração,
mas de uma ocultação, na qual a natureza primitiva persiste oculta, rodeada de véus
sobrepostos, escondida sob artifícios, mas intacta267
. É verdade que a estátua de Glauco
está oculta e desfigurada. Não sendo exactamente os mesmos, estes termos não se
contradizem no pensamento rousseauniano. Há paradoxo, mas não há contradição.
Como a natureza humana, a estátua de Glauco está oculta, sendo necessária a sua
(des)ocultação. Tornar visível o que está oculto implica ao mesmo tempo alcançar a
figura primordial que antecipa a desfiguração empreendida pela história dos homens, a
partir do momento em que o homem passou do estado de natureza para o estado de
civilização. A história implicou a passagem do ser ao parecer, da natureza à sociedade,
perdendo de vista aquele estado primeiro que, no entanto, é preciso observar para que se
proceda à aferição dos princípios que convêm à educação, à política e à interacção entre
os homens, organizados em sociedade. O processo é, assim, duplo: a (des)ocultação é
possível, trazendo à consciência a figura do estado de natureza, que, como a estátua de
Glauco, está também desfigurada pelos revestimentos sociais a que foi sujeita,
encontrando-se cada vez mais oculta e escondida com os sucessivos desenvolvimentos
da história humana. Tratando-se de um estado que talvez nem tenha existido, mas que é
preciso fazer existir, será a imaginação e a ficção conjectural a mostrar esse estado
originário, que antecedeu qualquer desfiguração e que, por isso, está, também, oculto. A
genealogia conjectural empreendida por Rousseau corresponde precisamente à evolução
do próprio processo de desfiguração, que, no Essai, remeterá para a questão da
linguagem (origem e evolução) e, nos textos das Confessions e das Rêveries, para a
história (pintada e, também, imaginada) da sua própria vida.
Seja como for, mais do que procurar múltiplas interpretações sobre a estátua de
Glauco na reflexão rousseauniana, como vimos Starobinski fazer exaustivamente,
importa compreender por que é que Rousseau recorreu àquela. A nosso ver, trata-se de
uma opção metodológica, que implica uma determinada observação do homem, que lhe
267 Cf. STAROBINSKI, Jean, Jean- Jacques Rousseau. La transparence et l’obstacle, op. cit., p. 27.
127
permitirá obter com êxito o conhecimento da natureza humana, seja qual for a fase da
história em que ele vive.
O recurso à estátua de Glauco, na demanda pela natureza humana, considerando-
a como deformada ou oculta (Rousseau assume indistintamente as duas considerações)
procura cumprir dois objectivos: em primeiro lugar, obter o auto-conhecimento do
homem e, portanto, a resposta à questão da identidade délfico-socrática; em segundo
lugar, recorrer àquela imagem torna-se mais eficiente para que o leitor compreenda a
dialéctica ser/parecer, presente na história dos homens, independentemente do tempo e
do lugar em que se encontram inscritos.
O que somos? Rousseau responde que não somos o que parecemos. Perguntar o
que o homem é é interpelar a sua natureza, o que lhe é natural, a sua identidade
originária, antes de receber as marcas da civilização e antes da sua identidade social. A
réplica à inscrição délfica é absolutamente necessária, pois da resposta obtida advirão
consequências cruciais para a vida dos homens em sociedade, uma vez que, só sabendo
o que o homem é, e, por conseguinte, sabendo o que convém à sua natureza, podem os
homens melhor determinar os princípios que devem reger as sociedades humanas.
É esse o mote com que inaugura o prefácio ao Discours de 55:
“Vejo, ainda, o assunto deste Discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia
possa propor e, infelizmente para nós, uma das mais espinhosas a que possam responder os filósofos; pois
como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por os conhecer a eles
mesmos?”268
O conhecimento dos homens pelos homens é exigido no ditame socrático; não
existe verdadeira sabedoria sem o conhecimento de si mesmo. Rousseau defende,
portanto, uma relação directa entre a consciência do não saber, o conhecimento de si
mesmo e a “arte de viver”, como já vimos anteriormente.269
Logo nas primeiras páginas, o Émile retomará o mesmo preceito:
268 “Aussi je regarde le sujet de ce Discours comme une des questions les plus intéressantes que la
philosophie puisse proposer, et malheureusement pour nous comme une des plus épineuses que les
philosophes puissent résoudre: car comment connaître la source de l’inégalité parmi les hommes, si l’on
ne commence par les connaître eux-mêmes?” (D2, préface, OC III, p. 122). 269 Cf. II.3. A trilogia da subjectividade universal que se apresenta à consciência, pp. 113-122.
128
“O nosso verdadeiro estudo é o da condição humana. Aquele dentre nós que melhor sabe
suportar os bens e os males dessa vida é, a meu ver, o mais elevado […].”270
O recurso a Glauco permite-nos aceder à resposta que Rousseau dá à demanda
délfica, por meio da dialéctica dos planos do ser e do parecer, correspondentes ao estado
da natureza e ao estado da civilização, respectivamente. Toda a primeira parte do
Discours de 55 contém a descrição exaustiva do homem natural. Partindo da estátua de
Glauco, na impossibilidade de recursos históricos ou científicos e no impedimento da
memória, é no exercício de subjectividade, no recolhimento consigo mesmo, e ouvindo
a voz da consciência, que Rousseau consegue aceder à natureza universal do género
humano.
O exercício de subjectividade que o recurso à estátua de Glauco implica é tanto
mais importante quanto nos dá a ver as implicações inerentes à observação do estado de
natureza, nomeadamente, a questão da inocência originária do homem, que afasta
radicalmente a hipótese de o homem ser naturalmente mau:
“[A] nossa ordem social [é] totalmente contrária à natureza que nada destrói […]. Segui esta
contradição nas suas consequências e vi que explicava sozinha todos os vícios dos homens e todos os
males da sociedade. Donde concluí que não era de modo nenhum necessário supor o homem mau por
natureza, quando se podia marcar a origem e o processo da sua maldade.”271
A dialéctica ser/parecer trazida pela estátua de Glauco está, assim, intimamente
ligada não só à distinção entre homem natural e homem civil (social), como à questão
do mal e à inevitabilidade do seu (ab)uso. Com efeito, a observação272
da natureza
humana assenta na dialéctica constante entre o que os homens são e o que parecem,
presente no exercício subjectivo da distinção entre o que é natural e o que se tornou
artificial, mas Rousseau não fica por aí. O filósofo vê ainda a impossibilidade de
regressar à inocência e bondade originárias, ao mesmo tempo que contempla também a
necessidade imperiosa de evitar o (ab)uso do mal.
270 “Notre véritable étude est celle de la condition humaine. Celui d’entre nous qui sait le mieux supporter
les biens et les maux de cette vie est à mon gré le mieux élevé […].” (É, livre I, OC IV, p. 252). 271 “ [La] notre ordre social [c’est] de tout point contraire à la nature que rien ne détruit […]. Je suivis
cette contradiction dans ses conséquences, et je vis qu’elle expliquait seule tous les vices des hommes et tous les maux de la société. D’où je conclus qu’il n’était point nécessaire de supposer l’homme méchant
par sa nature, lorsqu’on pouvait marquer l’origine et le progrès de sa méchanceté.” (Lettre à Christophe
de Beaumont, OC IV, pp. 966-967). 272 Dada a incontestável relevância da questão da observação da natureza humana, no contexto da questão da
subjectividade universal rousseauniana, dedicamos àquela todo o capítulo IV (cf. IV. A observação da
natureza humana, com vista à felicidade que lhe convém, pp. 164-207).
129
A estátua de Glauco revela-se a imagem mais eficiente para que o leitor
compreenda a presença constante da dialéctica entre ser e parecer, presente na história
dos homens, em qualquer das suas fases. Ao mostrar que é possível aceder ao Glauco
original, Rousseau mostra a possibilidade do acesso à natureza humana, no qual o ser se
dá a ver no plano do parecer. É assim estabelecida uma dialéctica entre os dois estados
do homem: a do ser (oculto e escondido, a que corresponde o estado de natureza), e a do
parecer (claramente visível na interacção social, em que o ser não é mais, por estar
oculto em cada homem e desfigurado pela civilização). Ser e parecer são “duas coisas
completamente diferentes” (D2, II, p. 174), mas que é preciso pôr em dialéctica para
melhor aceder à natureza humana e à sua identidade originária. A dialéctica ser/parecer
permitirá compreender a inter-relação constante que é necessário estabelecer entre o
estado de natureza (ser) e o estado de civilização (parecer): este último resulta da
desfiguração do primeiro e o primeiro só é visível a partir do segundo, isto é, a partir do
desenvolvimento e do progresso dos homens, seja qual for a sua aparência. O parecer
vai mudando de rosto, sendo a sua primeira alteração o momento em que é introduzida a
noção de propriedade, tal como nos alerta Manuel João Matos: “O ‘ter’ torna-se o valor
dominante da sociedade e cria o laço essencial entre a riqueza e o poder”273
. Depois
dessa primeira grande alteração, muitas outras se lhe seguiram. Rousseau não assistiu
aos sucessivos desenvolvimentos ocorridos nos últimos séculos. Não viu (nem poderia
ver) os novos contornos da aparência, nomeadamente o processo de globalização ou a
realidade internética e virtual. Mas viu e alertou para a necessidade de não se perder de
vista, em tempo e em lugar algum, o que é natural ao homem e o que (não) convém à
sua natureza. Independentemente dos contornos da aparência que as sociedades vão
construindo, o que o homem é só se dá a ver num jogo de forças entre o ser e o parecer,
no qual, no fim das contas, deverá aquele ficar sempre salvaguardado (na
impossibilidade de ser restituído), ensejo rousseauniano que é comum aos oito textos
que do filósofo escolhemos para reflexão.
A identificação da dialéctica ser/parecer surge logo no Discours de 50, no qual
acusa a sociedade de “não ousar mais parecer o que é” (D1, I pp. 8-9), sendo
desenvolvida somente no Discours ulterior, no qual Rousseau não só retoma a distinção
como elenca os malefícios que da mesma decorrem: “[…] desta distinção surgiram o
fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu cortejo.”
273 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit., p. 79.
130
(D2, II, p. 174). O(s) mal(es) nomeia(m)-se de diferentes modos274
, como, por exemplo,
vício, orgulho, luxo, mas sempre sob o signo da aparência, desde logo na crítica
empreendida aos efeitos e consequências das ciências, letras e artes nos costumes da
sociedade do seu tempo, no Discours de 50: se algum estrangeiro, “habitante de alguma
região afastada”, viesse estudar os costumes europeus, “desde a aurora até ao pôr-do-
sol”, “adivinharia exactamente nos nossos costumes o contrário do que eles são” (D1, I,
p. 9).
Se a questão da dialéctica ser/parecer recebe no Discours de 55 a sua
problematização mais específica, não deixará de estar presente em todos os outros
textos que tomámos como referência. No Essai, a distinção entre ser e parecer encontra-
se na passagem da linguagem natural para a linguagem convencional. Não será mais
possível retirar-lhe esse carácter de convenção, quer na oralidade quer na escrita.
Quanto mais evoluída, codificada, mais afastada fica da natureza e mais comprometida
fica a força viva da sua expressão (EL, V, p. 392). A linguagem escrita e a sua evolução
recebem no Essai a crítica mais exacerbada, já que em vez de fixar a “língua”, altera-a,
muda-lhe as palavras, o génio – “substitui a expressão pela exactidão”, pois “tomamos
os sentimentos quando falamos e as suas ideias quando escrevemos” (EL, V, p. 388).
Perde-se o acento, e a acentuação inventada só tem sentido visual (e.g.: “ou”/”où” – EL,
cap. VII, p. 391), nunca conseguindo fazer reflexo da energia e da força da oralidade.
Nas suas múltiplas reflexões sobre a linguagem, é constante a referência à representação
como a colossal limitação da linguagem que, afastada da sua origem/natureza, sofreu,
como todos os progressos humanos, uma alteridade negativa.
Já em Du Contrat Social (de modo incontestavelmente mais desenvolvido do
que no Discours de 55) a liberdade natural (plano do ser) dá lugar à liberdade civil
(plano do parecer), o homem da natureza (ser) dá lugar ao homem das instituições
(parecer). A questão é saber como podem e devem estar conciliados o plano do ser
natural com o plano do parecer social e civil do homem. Émile servirá o mesmo
propósito. Quer os princípios políticos de Du Contrat Social, quer a educação proposta
do Émile, pretendem “conciliar os direitos da natureza com as nossas leis sociais” (PF,
p. 640). No entanto, Rousseau dá a ver claramente as dificuldades existentes, pois que a
sociedade exige do homem a sua incontornável e inevitável desnaturalização:
274 Starobinski elenca os males da civilização. Cf. STAROBINSKI, Jean, “Les maux de la civilisation”, in
Le remède dans le mal – critique et légitimation de l’artifice à l’âge des lumières, op. cit., pp. 166-171.
131
“As boas instituições sociais são as que melhor sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua
existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidade comum, de sorte que cada
particular não se julgue mais como tal, e sim como uma parte da unidade. Um cidadão de Roma não era
nem Caio nem Lúcio; era romano […].”275
Se, por um lado, a legislação política corresponde ao mais alto nível da
desnaturalização do homem, que já nada tem a ver com o homem natural, ao contrário
do que defende Hobbes276
, por outro, corresponde à mais alta perfeição que uma
sociedade pode atingir em termos organizacionais:
“É necessário, numa palavra, que se prive o homem das suas próprias forças para lhe dar as que
lhe são estranhas e que ele não possa usá-las sem a ajuda de outros. Quanto mais estiverem estas forças
naturais mortas e destruídas, mais as aquisições são grandes e duráveis, mais também a instituição é forte
e perfeita: de modo que, se cada cidadão não é nada, e não pode nada, a não ser por meio dos outros, e
que a força adquirida pelo todo é igual ou superior à soma das forças naturais de todos os indivíduos,
podemos dizer que a legislação está no mais alto ponto de perfeição que possa atingir.”277
As relações estabelecidas entre os homens na sociedade têm de ser legisladas. A
liberdade civil implica a própria legislação. A relação com o outro não pode ser livre
nem arbitrária. O direito natural é definitivamente substituído pelo direito político-
jurídico. No estabelecimento dos princípios do direito político em Du Contrat Social,
seja na concepção do pacto social, seja na da vontade geral, Rousseau reconhece a
necessidade incontornável de fazer nascer um novo homem que reconheça o outro e a
este se associe livre e voluntariamente numa sociedade organizada politicamente. É
275 “Les bonnes institutions sociales sont celles qui savent le mieux dénaturer l’homme, lui ôter son
existence absolue pour lui en donner une relative, et transporter le moi dans l’unité commune; en sorte
que chaque particulier ne se croie plus un, mais partie de l’unité, et ne soit plus sensible que dans le tout.
Un citoyen de Rome n’était ni Caius ni Lucius; c’était un romain […].” (É, livre I, OC IV, p. 249). 276 “Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal artificial. […] E
a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra de natureza, o
Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim
Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural,
para cuja proteção e defesa foi projetado. E no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e
movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos, juntas
artificiais; a recompensa e o castigo (pelos quais, ligados ao trono da sabedoria, todas as juntas e
membros são levados a cumprir o seu dever) são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a
riqueza e prosperidade de todos os membros individuais são a força; Salus Populi (a segurança do povo) é
o seu objetivo; os conselheiros, através dos quais todas as coisas que necessita saber lhe são sugeridas,
são a memória; a justiça e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a
doença; e a guerra civil é a morte.” (HOBBES, Thomas, Leviathan,Tr. Port. op. cit., p. 23). 277 “Il faut, en un mot, qu’il ôte à l’homme ses forces propres pour lui en donner qui lui soient étrangères
et dont il ne puisse faire usage sans le secours d’autrui. Plus ces forces naturelles sont mortes et anéanties,
plus les acquises sont grandes et durables, plus aussi l’institution est solide et parfaite: en sorte que si
chaque citoyen n’est rien, ne peut rien, que par tous les autres, et que la force acquise par le tout soit égale
ou supérieur à la somme des forces naturelles de tous les individus, on peut dire que la législation est au
plus haut point de perfection qu’elle puisse atteindre.” (CS, II, 7, OC III, pp. 381-382).
132
assim que surge a figura do cidadão e o pacto social corresponde à associação livre
entre os homens, sendo esta associação civil “o acto do mundo mais voluntário” (CS, II,
4, p. 440). A vontade geral (que Rousseau considera indestrutível, imediatamente
evindenciado no título do primeiro capítulo do livro IV de Du Contrat Social)
representa o compromisso individual e voluntário de cada homem particular e
individual em fazer parte do todo colectivo e social:
“[…] quem recusar obedecer à vontade geral será obrigado a isso por todo o corpo: o que não
significa outra coisa senão que será forçado a ser livre; porque é essa a condição que, dando cada cidadão
à Pátria, o preserva de toda a dependência pessoal; condição que faz o artifício e o jogo da máquina
política […].”278
No plano social e político, a liberdade natural é substituída pela liberdade civil,
uma liberdade criada numa sociedade onde os homens se submetem livremente e pela
vontade (e não à força ou sob coacção) ao todo social, pois “todo o homem, tendo
nascido livre e senhor de si, não pode submeter-se a ninguém sem o seu consentimento,
sob qualquer que seja o pretexto […]” (CS, IV, 2, p. 440).
A propriedade inaugura a história da desigualdade, afastando o homem do seu
estado natural, no qual a propriedade não tem lugar – “o direito de propriedade difere
daquele que resulta da Lei natural” (D2, II, p.174). No resumo conclusivo que apresenta
já na parte final do Discours de 55, Rousseau mostra como a resposta à questão da
Académie de Dijon é absolutamente negativa. A desigualdade social e moral entre os
homens não é legitimada pela sua natureza nem pelo direito natural, mas somente pela
sociedade e pelo direito positivo:
“Tratei de expôr a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das
sociedades políticas, na medida em que estas coisas podem deduzir-se da natureza do homem sómente
pelas luzes da razão, e independentemente dos dogmas sagrados que dão à autoridade soberana a sanção
do direito divino. Segue-se desta exposição que a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza,
tira a sua força e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do
espírito humano, e torna-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis.
Segue-se ainda que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao
direito natural, todas as vezes que não concorra na mesma proporção com a desigualdade física, distinção
278 “[…] quiconque refusera d’obéir à la volonté générale y sera contraint par tout le corps: ce qui ne
signifie autre chose sinon qu’on le forcera d’être libre; car tel est la condition qui donnant chaque citoyen
à la Patrie le garantit de toute dépendance personnelle; condition qui fait l’artifice et le jeu de la machine
politique […].” (ibid., I, 7, p. 364).
133
que determina suficientemente o que se deve pensar a este respeito da espécie de desigualdade que reina
entre os povos civilizados […].”279
O estado natural do homem não está nem pode já estar presente no homem
social. Por outro lado, e sem contradição, o que convém à natureza humana pode e deve
estar salvaguardado neste. É preciso que o estado de natureza se torne o referente
principal do estado de civilização:
“Se me alonguei tanto tempo sobre a suposição desta condição primitiva, é porque havendo
velhos erros e preconceitos inveterados a destruir, julguei dever cavar até à raiz, e mostrar no quadro do
verdadeiro estado de natureza quanto a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta
realidade e influência como pretendem os nossos escritores.”280
Na impossibilidade da construção de uma sociedade perfeita, Rousseau investe
na procura daqueles que poderão ser os melhores princípios políticos. Não se trata
apenas de constatar a figura do cidadão, mas de formar o melhor cidadão e, para isso, é
preciso educar os homens. Deste modo, a educação é colocada lado a lado com a
política. Por isso, o filósofo defende uma educação natural, salvaguardando o plano do
ser, (É, II, p. 325), por contraposição à educação convencional, assente no plano do
parecer. A educação negativa dos primeiros anos corrobora o objectivo: a criança não
deve ser obrigada a afastar-se artificialmente de si mesma, a idade da natureza deve ser,
não só naturalmente vivenciada, como também prolongada até aos doze anos. Quer a
política, quer a educação, precisam “usar de muita arte para impedir o homem social de
ser totalmente artificial” (PF, p. 640). Rousseau vangloria-se de possuir essa arte e
procura responder àquele árduo desafio, não obstante a impossibilidade da sua
reconstituição e das dificuldades que se apresentam, quer à organização política, que
deverá salvaguardar os princípios naturais dos homens (assumidos nos conceitos de
liberdade civil, pacto social, vontade geral e soberania popular), quer à educação, que
279 “J’ai tâché de exposer l’origine et le progrès de l’inégalité, l’établissement et l’abus des sociétés
politiques, autant que ces choses peuvent se déduire de la nature de l’homme par les seules lumières de la
raison, et indépendamment de dogmes sacrés qui donnent à l’autorité souveraine la sanction du droit
divin. Il suit de cet exposé que l’inégalité étant presque nulle dans l’état de nature, tire sa force et son
accroissement du développement de nos facultés et des progrès de l’esprit humain, et devient enfin stable
et légitime par l’établissement de la propriété et des lois. Il suit encore que l’inégalité morale, autorisée
par le seul droit positif, est contraire au droit naturel, toutes les fois qu’elle ne concourt pas en même
proportion avec l’inégalité physique; distinction qui détermine suffisamment ce qu’on doit penser à cet
égard de la sorte d’ inégalité qui règne parmi tous les peuples policés […].” (D2, seconde partie, OC III, pp. 193-194). 280 “Si je me suis étendu si longtemps sur la supposition de cette condition primitive, c’est qu’ayant
d’anciennes erreurs et des préjugés invétérés à détruire, j’ai cru devoir creuser jusqu’à la racine, et
montrer dans le tableau du véritable état de nature combien l’inégalité, même naturelle, est loin d’avoir
dans cet état autant de réalité et d’influence que le prétendent nos écrivains.” (ibid., première partie, p.
160).
134
deverá atender à natureza dos homens, tanto quanto possível (o testemunho do vigário
destaca-se como o maior exemplo dessa possibilidade).
Longe da figura do cidadão, já nos textos das Confessions e das Rêveries
canaliza a reflexão para si próprio. Nestes escritos, Rousseau pretende apresentar-se
como é, subtraindo-se a si próprio ao que a sociedade pretende que ele pareça, no intuito
de se apresentar ao natural. E fá-lo em moldes distintos, mas assentes no sentido comum
da auto-reflexão (Rêveries) e do auto-retrato (Confessions). Tal como a estátua de
Glauco, também ele próprio se vê desfigurado por uma sociedade que não o
compreendeu e o tornou num monstro que sabe não ser. Sob a aparência que a
sociedade lhe impôs, Rousseau procura até aos seus derradeiros dias o seu verdadeiro
ser, a sua identidade mais originária, que está intimamente ligada à natureza,
embrionária e sua constituinte. Procurará, por isso, pintar-se ao natural, apresentando-se
como um homem único e singular, resgatando-se da própria sociedade:
“Eis o único retrato de homem, pintado exactamente ao natural e em toda a sua verdade, que
existe e que provavelmente jamais terá existido.”281
No início da première promenade das Rêveries, Rousseau repete o ensejo de se
dar a ver, destacando a desilusão com a sociedade e a solidão em que se encontra:
“Eis-me, então, sozinho no mundo, sem ter outro irmão, próximo, amigo ou sociedade a não ser eu
mesmo. O mais sociável e o mais amante dos homens foi proscrito por um acordo unânime. Eles procuraram
refinamentos para a minha alma sensível, e quebraram violentamente todos os laços que me vinculavam a
eles.” 282
Rousseau procura agora dar a ver o seu ser, mostrando-se naturalmente, fora da
alçada dos males sociais, continuando a ver-se obrigado a recorrer à imaginação e à
conjectura, na falta da memória:
“Eu formo um empreendimento de que não há exemplo, e cuja execução jamais terá algum
imitador. Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza; e este homem
serei eu. Eu mesmo. […] Eu digo o bem e o mal com a mesma franqueza. Nada calei de mau, nada
acrescentei de bom, e, se me aconteceu empregar qualquer insignificante adorno, foi tão-somente para tapar
281 “Voici le seul portrait d’homme, peint exactement d’après nature et dans tout sa vérité, qui existe et qui
probablement existera jamais.” (C, OC I, p. 3). 282 “Me voici donc seul sur la terre, n’ayant plus de frère, de prochains, d’ami, de société que moi-même. Le
plus sociable et le plus aimant des humains on a été proscrit par un accord unanime. Ils ont cherché dans les
raffinements à mon âme sensible, et ils ont brisé violemment tous les liens qui m’attachaient à eux.” (R,
première promenade, OC I, p. 995).
135
uma lacuna motivada pela minha falta de memória; posso ter tomado como verdadeiro o que sabia havê-lo
podido ser, nunca o que sabia ser falso.”283
E aqui Rousseau encontra grandes e, aparentemente, intransponíveis
dificuldades: como serão possíveis a sua auto-pintura e o seu efectivo auto-retrato,
quando ele próprio já se encontra também desfigurado pela relação social? Como
apresentar naturalmente o que já não é natural? Mais, o auto-retrato implica a relação
consigo mesmo, que seja o outro de si mesmo, o que dificulta ainda mais a tarefa a que
se propõe. Rousseau não deixa, no entanto, de concretizar a oportunidade de se
apresentar ao natural, assumindo por completo esta tarefa de tão grande envergadura. É
assim que confronta a complexidade e multiplicidade dos seus “eus”: o eu pessoal, o eu
público, o eu individual, o eu colectivo. E apresenta-se ora como Rousseau, ora como
Jean-Jacques, ora ainda como J.-J.. Se às vezes os separa, outras vezes confunde-os,
outras ainda anula essas diferentes nomeações pessoais, como se não existissem, como
se nunca tivessem existido. Rousseau vê-se impelido a chegar ao seu eu mais recôndito,
acabando por confrontar-se com uma multiplicidade de “eus”. Assumindo-se como o
próprio Glauco, Rousseau vê ainda mais dificultado o seu desafio. A tarefa de narrar a
sua própria vida e de se confrontar apenas e só consigo mesmo acaba por ser ainda mais
complexa do que narrar a genealogia dos homens e descrever a natureza humana.
A estátua de Glauco apresentada no prefácio ao Discours de 55 não surgirá
explicitamente em mais nenhum outro texto de Rousseau. No entanto, será reiterada e
implicitamente retomada na resposta à inscrição délfica, que é preciso ver/pensar/sentir,
assumida nos textos de Rousseau que tomámos como referência. A estátua de Glauco
permitirá a Rousseau dar a ver que o ser só se dá no parecer e já só no plano do parecer
é permitido ao homem aceder ao seu originário ser. Este acesso é imprescindível a todos
os homens de todos os tempos e de todos os lugares. Na verdade, a estátua de Glauco
persiste nas diferentes sociedades correspondentes às diversas fases da história humana
e continua a ser alvo de reflexão, mesmo que sob outra nomenclatura. O recurso
283 “Je forme une entreprise qui n’eut jamais d’exemple, et dont l’exécution n’aura point d’imitateur. Je
veux montrer à mes semblables un homme dans toute la vérité de la nature; et cet homme, ce sera moi.
Moi seul. […] J’ai dit le bien et le mal avec la même franchise. Je n’ai rien tu de mauvais, rien ajouté de
bon, et s’il m’est arrivé d’employer quelque ornement indifférent, ce n’a jamais été que pour remplir un
vide occasionné par mon défaut de mémoire; j’ai pu supposer vrai ce que je savais avoir pu l’être, jamais
ce que je savais être faux.” (C, livre I, OC I, p. 5).
136
rousseauniano à estátua de Glauco continua a ser alvo de interpretações filosóficas de
índole social, política e ética.284
O exercício subjectivo que recorre à metáfora de Glauco antecipa, por exemplo,
o recurso ficcional do véu de ignorância utilizado por John Rawls, em A Theory of
Justice. Com efeito, o véu de ignorância que pretende captar a imparcialidade
imprescindível aos princípios da justiça (da igual liberdade e da diferença) de Rawls,
nos quais os homens se encontram despidos dos seus interesses particulares e cargos
sociais, parece ser também mais uma recapitulação da igual natureza dos homens. A
obra de 1970 muito deve a Rousseau: “Partimos da ideia de que os sujeitos que
estabelecem uma forma de cooperação em sociedade, escolhem em conjunto, num acto
comum, os princípios que devem orientar a atribuição de direitos e deveres básicos e a
divisão dos benefícios da vida em sociedade. […] Os princípios da justiça são
escolhidos a coberto de um véu de ignorância”285
.
A preocupação pelo bem comum é visível, dado que a vontade geral implica a
aceitação do todo:
“Quando o povo suficientemente informado delibera, se os cidadãos não tiverem nenhuma
comunicação entre si, da variedade de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral, e todas as
vezes a deliberação seria boa. Mas, quando se fazem intrigas, associações parciais às expensas do todo, a
vontade de cada uma dessas associações torna-se geral em relação aos seus membros, e particular em
relação ao Estado […].”286
Também a preocupação pela paz é antecipada por Rousseau. Não obstante a
aparente resignação relativamente à eventual guerra entre os Estados, Rousseau antecipa
em vários momentos da sua obra a preocupação pela relação pacífica entre os homens:
“A guerra não é, pois, uma relação de homem com homem, mas uma relação de Estado com
Estado, na qual os indivíduos são inimigos só por acidente, não como homens, nem mesmo como
cidadãos, mas como soldados; não como membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim, cada
284 Leia-se a este propósito: HECKLE, Patricia, The Statue of Glaucus: Rousseau’s Modern Quest for
Authenticity, New York, Peter Lang Publishing Co., 1992. Recorrendo, sobretudo, ao conceito de
autenticidade, a autora justifica ao longo da obra a tese segundo a qual a filosofia de Rousseau consiste na
primeira tentativa, inscrita na tradição ocidental, de responder às novas tensões da ética moderna. 285 RAWLS, John, A Theory of Justice (1970), Tr. Port. Uma teoria da Justiça, trad. Carlos Pinto Correia, Lisboa, Ed. Presença, 1993, pp. 33-34. 286 “Si, quand le peuple suffisamment informé délibéré, les citoyens n'avaient aucune communication
entre eux, du grand nombre de petites différences résulterait toujours la volonté générale, et la
délibération serait toujours bonne. Mais quand il se fait des brigues, des associations partielles aux
dépends de la grande, la volonté de chacune de ces associations devient générale par rapport à ses
membres, et particulière par rapport à l’État […].” (CS, II, 3, OC III, p. 371).
137
Estado pode unicamente ter por inimigos outros Estados, e não homens, uma vez que entre coisas de
naturezas distintas não pode fixar-se qualquer relação verdadeira.”287
Rousseau deseja um mundo fraterno, e preconiza a ideia do mundo como uma
casa comum dos homens, a ideia da natureza como a mãe. Vislumbrar a identidade do
homem requer o olhar global e inclusivo da própria alteridade. O que cada um é, é-o
com os outros. Não é, pois, de estranhar que Rousseau recuse a visão de qualquer que
seja o auto-centrismo, seja racial (etnocentrismo), seja continental (e.g. eurocentrismo):
“Quando se quer estudar os homens deve olhar-se para perto de si; mas para estudar o homem, é
preciso aprender a olhar mais longe; devemos primeiro observar as diferenças para descobrir as
propriedades.”288
A questão da identidade do ser humano está presente, de uma forma ou de outra,
nas diferentes dimensões da realidade humana, das quais Rousseau destacou a política, a
religião, a moral e a educação. Mas a questão da identidade rousseauniana não fica
devidamente esclarecida sem percebermos a distinção entre o estado de natureza e o
estado de civilização.
III.2. A distinção entre estado de natureza (homem natural) e estado de civilização
(homem civil)
“L’homme naturel est tout pour lui: il est l’unité numérique, l’entier absolu qui n’a de rapport qu’à lui-
même ou à son semblable. L’homme civil n’est qu’une unité fractionnaire qui tient au dénominateur, et
dont la valeur est dans son rapport avec l’entier, qui est le corps social.”
(ROUSSEAU, J.-J., Émile ou de l’éducation, livre I, OC IV, 1969, p. 249)
Dois esclarecimentos prévios à explanação desta distinção são indispensáveis: o
primeiro respeita à nomenclatura dos termos da distinção e ao âmbito operatório de cada
um deles; o segundo reporta-se à relação que se vê estabelecida entre os dois conceitos.
287 “La guerre n’est donc point une relation d’homme à homme, mais une relation d’État à État, dans
laquelle les particuliers ne sont ennemis qu’accidentellement, non point comme hommes, ni même
comme citoyens, mais comme soldats; non point comme membres de la patrie, mais comme ses défenseurs. Enfin, chaque État ne peut avoir pour enemies que d’autres États et non pas des hommes,
attend qu’entre choses de diverses natures on ne peut fixer aucun vrai rapport.” (ibid, I, 4, p. 357). 288 “Quand on veut étudier les hommes il faut regarder près de soi; mais pour étudier l'homme il faut
apprendre à porter sa vue au loin; il faut d'abord observer les différences pour découvrir les propriétés.”
(EL, VIII, OC V, p. 394).
138
Em relação ao primeiro ponto, é importante esclarecer que, quer no homem
natural, quer no homem civilizado, há diferentes estágios de desenvolvimento da
natureza humana e de civilização, respectivamente. Por vezes, Rousseau refere o
homem natural, na sua bestialidade mesma, outras refere povos selvagens,
nomeadamente o caraíba, no Discours de 55 (D2, I, p. 144), e os povos selvagens da
América, numa nota de rodapé no Discours de 50, na qual faz uma referência pouco
abonatória a Montaigne:
“Não ouso falar dessas nações felizes que nem de nome conhecem os vícios que tanto nos custa a
reprimir, desses selvagens da América cuja simples e natural polícia Montaigne não hesita em preferir,
não só às leis de Platão, mas mesmo a tudo o que a filosofia jamais poderá imaginar de mais perfeito para
o governo dos povos. Cita uma quantidade de exemplos impressionantes, para quem os saiba admirar:
mas quê!, diz ele, eles não vestem calças.”289
Para a nossa reflexão, interessa-nos a exploração dos dois conceitos na sua
precisão e rigor, sem recorrer aos diferentes estádios do desenvolvimento histórico de
cada um. E pensamos que Rousseau pretenderia isso do seu leitor. Assim, tomamos
também indistintamente as expressões “homem civil” e “homem civilizado”,
correspondentes ao estado de civilização, já desenvolvido e já sob organização política,
por contraste com o homem natural, o qual desconhece a civilização, a interacção social,
as instituições, a organização política, a linguagem convencional, o desenvolvimento
dos conhecimentos, das ciências e das artes.
Em relação ao segundo ponto enunciado, convém esclarecer que, não obstante a
radical oposição entre os dois estados, não vemos o estado de natureza como um estado
infra-moral e infra-racional290
, como é frequentemente considerado, antes um estado
289 “Je n’ose parler de ces nations heureuses qui ne connaissent pas même de nom les vices que nous
avons tant de peine à réprimer, de ces sauvages de l’Amérique dont Montaigne ne balance point à préférer
la simple et naturelle police, non seulement aux lois de Platon, mais même à tout ce que la philosophie
pourra jamais imaginer de plus parfait pour le gouvernement des peuples. Il en cite quantité d’exemples
frappants pour qui les saurait admirer: Mais quoi! dit-il, ils ne portent point de chausses.” (D1, première
partie, OC III, nota 2, pp.11-12). 290 Ao referirem o estado de natureza, alguns autores, como Manuel João Matos, utilizam os termos
infra-moral e infra-racional. Preferimos, contudo, os termos pré-moral e pré-racional, uma vez que o
estado de natureza não é um estado de oposição vertical nem de imediata submissão hierárquica face ao
estado civil, mas, antes, um estado prévio que antecipa horizontalmente este último. A razão não se
encontra desenvolvida no estado de natureza, mas encontra-se em potência (adoptando a terminologia
aristotélica), que as faculdades da liberdade e da perfectibilidade actualizarão.
139
pré-racional e pré-moral e, nesse sentido, deve ser também entendido como “estado pré-
social”291
e pré-civilizacional.
A passagem do estado de natureza para o estado civilizado foi lenta e
extremamente morosa, resultando do que a pefectibilidade e liberdade foram
actualizando. O homem é autor de inúmeros inventos e responsável por
desenvolvimentos sem conta, mas não são propriamente estes que interessam a
Rousseau. Interessa-lhe, sobretudo, perceber a passagem do estado de natureza ao
estado de civilização e, já dentro deste estado, importa-lhe dar a ver como os sucessivos
desenvolvimentos têm sido contrários à natureza humana, afastando cada vez mais os
homens daquilo que são:
“Não me deterei a descrever a invenção sucessiva das outras artes, o progresso das línguas, a
prova e o emprego dos talentos, a desigualdade das fortunas, o uso e o abuso das riquezas, nem todos os
detalhes que se lhes seguem, e que todos podem facilmente perceber. Limitar-me-ei tão-somente a
relancear a vista pelo género humano nessa nova ordem de coisas […].”292
Na identificação do desfasamento entre o que o homem é e o que parece ser, não
vem, pois, a propósito a descrição exaustiva e minuciosa dos seus feitos ao longo dos
séculos:
“Percorri, como um traço, multidões de séculos, forçado pelo tempo que se escoa, pela
abundância das coisas que tenho a dizer e pelo progresso quase insensível dos começos; porque quanto
mais lentamente sucedem os eventos, mais rapidamente se descrevem.”293
Tanto a descrição que Rousseau empreende do estado de natureza
(correspondente ao homem natural), como a do estado de civilização (correspondente ao
homem civil) são essenciais para a compreensão de toda a sua obra. Apesar de algumas
semelhanças com outros autores294
, Rousseau confere-lhes traços originais e inovadores,
291 VERÍSSIMO SERRÃO, Adriana, A humanidade da Razão – Ludwig Feuerbach e o Projecto de uma
Antropologia Integral, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 217. 292 “Je ne m’arrêterai pas à décrire l’invention successive des autres arts, le progrès des langues, l’épreuve
et l’emploi des talents, l’inégalité des fortunes, l’usage ou l’abus des richesses, ni tous les détails qui
suivent ceux-ci, et que chacun peut aisément suppléer. Je me bornerai seulement à jeter un coup d’œil sur
le genre humain place dans ce nouvel ordre de choses […].” (D2, seconde partie, OC III, p. 174). 293 “Je parcours comme un trait des multitudes de siècles, force par le temps qui s’écoule, par l’abondance
des choses que j’ai dire, et par le progrès presque insensible des commencements; car plus les événements
étaient lents à se succéder, plus ils sont prompts à décrire.” (ibid., p. 167). 294 Veja-se, por exemplo, a semelhança em alguns pontos entre a descrição rousseauniana e esta passagem
de Hobbes, autor do qual Rousseau se demarcará, no que respeita precisamente à consideração
hobbesiana do estado de natureza como o estado de guerra de todos contra todos: “A natureza fez os
homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um
homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando
se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente
140
sem imitação. Ao primeiro termo da distinção consagra Rousseau toda a primeira parte
do Discours de 55, e ao segundo termo dedicará toda a segunda parte do mesmo
Discours, inaugurada com a introdução da ideia de propriedade, com a qual faz o
homem entrar definitivamente no estado civilizacional. Dada a relevância desta
distinção em todos os textos ulteriores, atentemos, pois, na descrição dos dois estados
neste Discours.
Num tempo longínquo – que talvez nem sequer tenha existido –, o homem não
tinha passado nem futuro e, fazendo parte da natureza que lhe era absolutamente
familiar, não sentia necessidade de pensar:
“O espectáculo da Natureza torna-se-lhe indiferente à força de se lhe tornar familiar. É sempre a
mesma ordem, são sempre as mesmas revoluções, não tem o espírito de se admirar das maiores
maravilhas; não é nele que se deve procurar a Filosofia de que o homem tem necessidade, para saber
observar uma vez o que viu todos os dias. A sua alma, que nada agita, entrega-se ao único sentimento da
sua existência actual, sem nenhuma ideia do que está para vir, por mais próximo que possa estar e os seus
projectos limitados como as suas vistas, estendem-se até ao fim do dia.”295
É sem dúvida no Discours de 55 que surgem as mais completas descrições
rousseaunianas do estado de natureza e do homem natural, tal como podemos constatar
neste excerto, particularmente dedicado ao homem selvagem:
“Concluamos que, errando nas florestas, sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e
sem ligações, sem nenhuma necessidade dos seus semelhantes, tal como sem nenhum desejo de os
prejudicar, talvez mesmo sem jamais reconhecer algum individualmente, o homem selvagem, sujeito a
poucas paixões e bastando-se a si próprio, não tinha mais senão os sentimentos e as luzes próprias a este
considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não
possa igualmente aspirar. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo
mesmo perigo. Quanto às faculdades do espírito (pondo de lado as artes que dependem das palavas, e
especialmente aquela capacidade para proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se chama
ciência; a qual muito poucos têm, e apenas numas poucas coisas, pois não é uma faculdade nativa,
nascida connosco, e não pode ser conseguida – como a prudência – ao mesmo tempo que se está
procurando alguma outra coisa) encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade
de força. Porque a prudência nada mais é do que a experiência, que um tempo igual igualmente oferece a
todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam. O que talvez possa tornar inaceitável essa
igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens
supõem possuir em maior grau do que vulgo; quer dizer, em maior grau do que todos menos eles
próprios, e alguns outros que, devido à fama ou devido a concordarem com eles, merecem a sua
aprovação […].” (HOBBES, Thomas, Leviathan, Tr. Port., op. cit., cap. XIII, p.109). 295 “Le spectacle de la Nature lui devient indifférent, à force de lui devenir familier. C’est toujours le
même ordre, ce sont toujours les mêmes revolutions, il n’a pas l’esprit de s’étonner des plus grandes
merveilles; et ce n’est pas chez lui qu’il faut chercher la Philosophie don’t l’homme a besoin, pour savoir
observer une fois ce qu’il a vu tous les jours. Son âme, que rien n’agite, se livre au seul sentiment de son
existence actuelle, sans aucune idée de l’avenir, quelque prochain qu’il puisse être, et ses projets bornés
comme ses vues, s’étendent à peine jusqu’à la fin de la journée.” (D2, première partie, OC III, p. 144).
141
estado, não sentia senão as suas verdadeiras necessidades, não olhava senão para o que acreditava ter
interesse em ver e a sua inteligência não fazia mais progressos do que a sua vaidade. […] Não havia
educação nem progresso, as gerações multiplicavam-se inutilmente […]; a espécie estava já velha e o
homem permanecia sempre criança.”296
Os homens no estado de natureza “não tinham qualquer espécie de relação
moral, nem de deveres conhecidos, não podiam ser nem bons nem maus e não tinham
nem vícios nem virtudes” (D2, I, p.152). O homem natural vive “conforme ao instinto”
(D2, I, p. 152), na “simplicidade” e “uniformidade” (D2, I, pp. 135, 160), na “liberdade
natural” (D2, I, pp.141-142; II, p. 179) e pela “lei natural” (D2, préface, p. 125), “a sua
imaginação não lhe pinta nada; o seu coração nada lhe pede” (D2, I, p.144). O seu corpo
é “o único instrumento que conhece” (D2, I, p. 135) e a desigualdade sensível tem uma
influência praticamente nula. Vive na “calma das paixões” (D2, I, pp. 143, 154), encara
a morte como simples extinção e a sua linguagem não é mais do que “grito da natureza”
(D2, I, p. 148). Com o amor de si mesmo e com a piedade natural, em parceria com o
princípio da conservação de si próprio, não fará qualquer mal a outrem.
A piedade é o primeiro sentimento natural apresentado e é definida como:
“[uma] disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males […] virtude tanto mais
universal e tanto mais útil ao homem que ela precede nele o uso de toda a reflexão e tão natural que
mesmo os animais dão dela, às vezes, sinais sensíveis.”297
A piedade liga-se internamente à conservação da espécie, ao moderar o amor de
si mesmo presente em cada homem:
“É então bem certo que a piedade é um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a
actividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva
sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer: é ela que, no estado de natureza, toma lugar de leis,
de costumes e de virtude com essa vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz
[…].”298
296 “Concluons qu’errant dans les forêts sans industrie, sans parole, sans domicile, sans guerre, et sans
liaisons, sans nul besoin de ses semblables, comme sans nul désir de leur nuire, peut-être même sans
jamais en reconnaître aucun individuellement, l’homme sauvage sujet à peu de passions, et se suffisant à
lui-même, n’avait que les sentiments et les lumières propres à cet état, qu’il ne sentait que ses vrais
besoins, ne regardait que ce qu’il croyait avoir intérêt de voir, et que son intelligence ne faisait pas plus de
progrès que sa vanité. […] il n’y avait ni éducation ni progrès, les générations se multipliaient inutilement
[…] l’espèce était déjà vieille, et l’homme restait toujours enfant.” (D2, ibid., OC III, pp. 159-160). 297 “[une] disposition convenable à des êtres aussi faibles, et sujets à autant de maux […] vertu d’autant
plus universelle et d’autant plus utile à l’homme, qu’elle précède en lui l’usage de toute réflexion et si
naturelle que les bêtes mêmes en donnent quelquefois des signes sensibles […].” (ibid., p. 154). 298 “Il est donc bien certain que la pitié est un sentiment naturel, qui modérant dans chaque individu
l’activité de l’amour de soi-même, concourt à la conservation mutuelle de toute l’espèce. C’est elle, qui
nous porte sans réflexion au secours de ceux que nous voyons souffrir: c’est elle qui, dans l’état de nature,
142
Referindo-se ao sentimento natural da piedade (pitié), Diogo Pires Aurélio
resume a relação que Rousseau estabelece entre aquele sentimento natural, o amor de si
mesmo e a conservação da espécie: a piedade é um “sentimento natural destinado a
conter eventuais excessos do amor de si mesmo, ou instinto de conservação, e que
levaria o homem, perante o sofrimento alheio, a colocar-se no lugar do outro”299
. O
homem natural “está impedido pela piedade natural de fazer mal a quem quer que seja”
(D2, p. 171). A piedade mantém-se no estado civilizado, e.g., quando choramos nos
espectáculos:
“[…] que os costumes mais depravados ainda têm dificuldade em destruir, uma vez que vemos
todos os dias nos nossos espectáculos, enternecer e chorar perante as desgraças de um infortunado
[…].”300
Por seu lado, o amor de si mesmo (amour-de-soi-même) é definido como sendo
uma “paixão primitiva, inata, anterior a qualquer outra e da qual todas as outras não são
senão modificações.” (PF, p. 491). No estado de civilização dará origem ao amor-
próprio, pois “é a razão que engendra o amor-próprio” (D2, I, p. 156). Todavia, a
criança, que não tem ainda a razão desenvolvida nem cultivada nos seus primeiros anos,
conhece o amor de si mesmo: “O primeiro sentimento de uma criança é o de se amar a si
mesma, e o segundo que deriva do primeiro é o de amar aqueles que lhe são próximos”
(É, IV, p. 492). Por meio do testemunho do vigário saboiano, Rousseau alertará de modo
exemplar para o facto de a razão precisar de respeitar os sentimentos naturais da piedade e
do amor de si mesmo que darão origem à prática da virtude.
Na sua descrição e com os sentimentos naturais que lhe estão associados, o
estado de natureza301
surge como resultado de um recurso imaginário e ficcional (trata-
se de uma ficção criada pela imaginação), hipotético e conjectural (trata-se de uma
hipótese conjectural, pois não se sabe sequer se terá existido). O estado de natureza não
corresponde a nenhum período da história humana e, se correspondesse, seria à pré-
história humana, literalmente. Trata-se de um estado que é preciso não perder de vista
tient lieu de lois, de mœurs, et de vertu, avec cet avantage que nul n’est tenté de désobéir à sa douce voix
[…]” (ibid., p. 156). 299 PIRES AURÉLIO, Diogo, Imaginação e Poder – Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa, op. cit., p. 234. 300 “[…] que les mœurs les plus dépravées ont encore peine à détruire, puisqu’on voit tous les jours dans
nos spectacles s’attendre et pleurer aux malheurs d’une infortune […]” (D2, première partie, OC III, p.
155). 301 Rousseau dedica todo o cap. II dos seus Fragments Politiques ao estado de natureza, reiterando as suas
principais características. Cf. Fragments Politiques, “De L’État de Nature”, OC III, pp. 475-481.
143
(nem da razão pensante nem do coração sensível e sensitivo) para melhor compreender
os fundamentos da sociedade e, sobretudo, para compreender que a sociedade é obra
humana, não da natureza nem de Deus.
Pelo contrário, o homem civil vive no estado de civilização, aí onde conhece o
amor-próprio, a “desigualdade moral e política”302
, o “terror da morte” (D2, I, p.143) e
o(s) mal(es) dos vícios como o “ciúme” (D2, I, p.158) e o “orgulho” (D2, II, p.166). No
estado de civilização, “compara-se com o outro” (D2, I, p. 158; II pp. 169-170), vive na
ordem do parecer (D2, II, p. 174), conhece a “servidão” e “dominação” (D2, II, p.161),
comunica por meio de uma linguagem convencional303
, possui “razão cultivada” (D2, I,
pp.138,152). Com a propriedade surge a funesta desigualdade e a sociedade civil. A
desigualdade é moral e política, e o homem não deixará mais de querer progresso e
desenvolvimento (D2, II, pp.164, 168) na sociedade (D2, I, p.152) e na história (D2, II,
pp. 166-167).
O homem civil submete-se às suas próprias instituições e está condenado à
escravatura:
“O homem civil nasce, vive e morre na escravatura […] enquanto mantiver a figura humana, está
acorrentado pelas nossas instituições.”304
No estado civil, o homem conhece a liberdade civil (D2, II, p. 177), a
necessidade de organização política e de governo (D2, II, p. 184), as formas de governo
(monarquia, aristocracia e democracia – D2, II, pp. 186-187), os graus de desigualdade
rico/pobre, poderoso/fraco e senhor/escravo – D2, II, p. 187) e as espécies de
desigualdade (riqueza, nobreza ou posição, poder e mérito pessoal – D2, II, p. 189).
Neste estado de civilização, “nascem as desavenças, a antipatia, o ódio” (É, livre IV, p.
494) e todos os sentimentos nefastos criados pela sociedade. O pior de todos será o
“amor-próprio”, esse sentimento surgido em sociedade, que se alimenta da vaidade, da
altivez e do orgulho, e que, por isso, já nada tem a ver com o sentimento natural do
amor de si mesmo.
302 Cf. D2: première partie – pp. 126-127, 131, 138; seconde partie – pp. 169,194. 303 Cf. ibid., pp. 146-151. No Discours de 55, Rousseau empreende uma breve descrição da linguagem
convencional, que será posteriormente desenvolvida no Essai sur l’origine des langues. 304 “L’homme civil naît, vit et meurt dans l’esclavage: à sa naissance on le coud dans un maillot; à sa mort
on le cloue dans une bière: tant qu’il garde la figure humaine il est enchaîné par nos institutions.” (É, livre
I, OC IV, p. 253).
144
As duas mais completas descrições do amor de si mesmo e do amor-próprio
surgem, não só no Discours de 55, mas também no Émile, no âmbito da distinção que
Rousseau faz questão de destacar. Vejamos as duas passagens, isoladamente.
No Discours de 55, a distinção é feita a partir da dissemelhança entre o homem
natural (ao qual corresponde o amor de si mesmo) e o homem civilizado, que vive em
sociedade (amor-próprio):
“É preciso não confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, duas paixões muito diferentes
pela sua natureza e pelos seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo o
animal a zelar pela sua própria conservação e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela
piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e
nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que qualquer outro, que inspira
aos homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte de honra. […].”305
No Émile, os dois conceitos são distinguidos, sob o ponto de vista moral: o amor
de si mesmo tende ao bem; o amor-próprio inclina-se para o mal:
“Eis como as paixões suaves e afectuosas nascem do amor de si, e como as paixões odiosas e
irascíveis nascem do amor-próprio. Assim, o que torna o homem essencialmente bom é o facto de ter
poucas necessidades e de se comparar pouco com os outros; o que o torna essencialmente mau é o facto
de ter muitas necessidades e de se submeter à opinião. Sobre este princípio, é fácil ver como se podem
dirigir tanto para o bem como para o mal todas as paixões das crianças e dos homens. É verdade que não
podendo viver sempre sozinhos, dificilmente viverão sempre bons: esta mesma dificuldade aumentará
necessariamente com as suas relações, e é nisso, sobretudo, que os perigos da sociedade nos tornam a arte
e os cuidados mais indispensáveis para prevenir no coração humano a depravação que nasce das suas
novas necessidades.”306
A questão é que, segundo Rousseau, o facto de os sentimentos naturais terem sido
transformados em diferentes sentimentos sociais não implica que os percamos de vez e
305 “Il ne fond pas confondre l’amour-propre et l’amour de soi-même; deux passions très différentes par
leur nature et par leur ses effets. L’amour de soi-même est un sentiment naturel qui porte tout animal à
veiller à sa propre conservation et qui, dirigé dans l’homme par la raison et modifié par la pitié, produit
l’humanité et la vertu. L’amour-propre n’est qu’un sentiment relatif, factice, et né dans la société, qui
porte chaque individu à faire plus de cas de soi que de tout autre, qui inspire aux hommes tous les maux
qu’ils se font mutuellement, et qui est la véritable source de l’honneur. […] (D2, OC III, nota XV, p.
219). Esta nota contém a mais extensa distinção entre l’amour-propre e l’amour de soi-même. 306 “Voilà comment les passions douces et affectueuses naissent de l’amour-de-soi et comment les
passions haineuses et irascibles naissent de l’amour-propre. Ainsi ce qui rend l’homme essentiellement
bon est d’avoir peu de besoins et de peu se comparer aux autres; ce qui le rend essentiellement méchant est d’avoir beaucoup de besoins et de tenir beaucoup l’opinion. Sur ce principe, il est aisé de voir
comment on peut diriger au bien ou au mal toutes les passions des enfants et des hommes. Il est vrai que
ne pouvant vivre toujours seuls, ils vivront difficilement toujours bons: cette difficulté même augmentera
nécessairement avec leurs relations, et c’est en ceci surtout que les dangers de la société nous rend l’art et
les soins plus indispensables pour prévenir dans le cœur humain la dépravation qui naît de ses nouveaux
besoins.” (É, livre IV, OC IV, p. 493).
145
para sempre. Isso só acontece se, precisamente, aliarmos o sentir à razão e vice-versa,
pois só esta aliança permitirá reconhecer a sua identidade originária. Apenas nesse
reconhecimento teremos acesso àqueles sentimentos inerentes à natureza humana que,
não sendo mais nossos, não podem, contudo, deixar de servir de alicerce às nossas acções,
à nossa consciência, à nossa sociedade e ao modo como a estabelecemos: política,
religiosa, moral e educacionalmente. Só compreenderemos o estado de natureza se o
pensarmos e sentirmos em simultâneo. Com efeito, sempre que Rousseau refere o homem
natural ou o estado de natureza (ser), por contraposição ao homem civil e ao estado de
civilização (parecer) e/ou quando refere a questão da evitabilidade do (ab)uso do mal, fá-
lo com a concomitância das duas dimensões.
Pelo modo como empreende a distinção entre homem natural e homem civil,
Rousseau rompe com a tradição dos teóricos do direito natural, entre os quais Bodin e
Pufendorf 307
, criticando-os por empregarem, “para o estabelecimento das sociedades[,]
luzes […] que só se desenvolveram no seio da própria sociedade” (D2, préface, p. 124)
e por daí terem erroneamente partido nas suas reflexões, pois “os filósofos que
examinaram os fundamentos da sociedade sentiram todos a necessidade de remontar até
ao estado de natureza, mas nenhum deles aí chegou” (D2, I, p. 132). Com a demarcação
rousseauniana, deixa-se de transportar para o homem natural as características do
homem civil – os dois estádios não se confundem.
Rousseau é acutilante nas críticas que dirige a filósofos de incontestável
grandeza, e que, na verdade, não têm lugar menor do que ele próprio na História da
Filosofia. Por exemplo, veja-se a crítica à observação do estado de natureza de Hobbes:
“Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a sua razão, como
pretendem os nossos jurisconsultos, impede-os também de abusar das suas faculdades, como pretende ele
mesmo; de modo que podemos dizer que os selvagens não são maus precisamente porque não sabem o
que é serem bons […].”308
307 A demarcação com os teóricos do direito natural não é a ausência de reflexão sobre o estado de
natureza por aqueles, mas o modo como a fazem. Pufendorf é um dos visados: “Ce que nous appellons ici
de l’État de Nature, n’eſt pas la condition que la Nature ſe propoſe principalement comme la plus parfaite
& la plus convenable au Genre Humain, mais celle où l’on conçoit que chacun le trouve par la naiſſance,
en faiſant abſtraction des toutes les inventions & de tous les établiſſements ou purement humains, ou
inſpirez à l’Homme para la Divinité, qui changent la face de la Vie Humaine […].” - PUFENDORF,
Samuel, Le Droit de la nature et des Gens (1732), trad. Jean Barbayrac, Tome second, Caen, Centre de
Philosophie politique et juridique de l’Université de Caen, 1987, Livre II (“De l’État de Nature”), Chap.
II, p. 149. Manteve-se a ortografia original. 308 “Hobbes n’a pas vu que la même cause qui empêche les sauvages d’user de leur raison, comme le
prétendent nos jurisconsultes, les empêche en même temps d’abuser de leurs facultés, comme il le prétend
146
Ao contrário de Hobbes e Pufendorf309
, Rousseau defende que o estado de
natureza corresponde à inocência humana, à bondade original que é anterior aos valores
morais do bem e do mal, enfim, ao homem pré-racional e pré-moral. É neste sentido que
deve ser entendida a afirmação segundo a qual “o homem é naturalmente bom”310
. Por
bondade pretende o autor dizer inocência natural – contrariamente a Hobbes, entre
outros, que viu no estado de natureza a primazia da caoticidade (resultante de leis
naturais incertas) e selvajaria (dada a natureza egoísta e agressiva do homem),
respectivamente – pois que, no estado natural, o homem não é nem bom, nem mau.
Como o mal, a haver algum bem, será sempre fruto da acção humana.
Para além do homem natural e do homem civil, autores há que defendem um
terceiro homem na obra de Rousseau, apontando os textos das Confessions e das
Rêveries como os escritos principais de apresentação desta terceira figura. Por exemplo,
Custódia Martins refere a recriação de um novo homem, na figura do solitário,
destacando o carácter autobiográfico da obra rousseauniana. Para isso, começa por
demarcar-se da tese do naturalismo rousseauniano defendida por O’Hagan, asserção
que, segundo a autora, o impede de ver uma terceira figura, para além do homem natural
e do homem civil, que consiga conciliar os conflitos internos da condição humana.311
A
recriação do homem na figura do solitário é apontada como a terceira possibilidade da
figura que faltava ao homem: “A recriação do Homem terá de ser feita, pois, em
Rousseau, nestes termos. Mais especificamente, como? Quanto a nós, através da figura
do solitário, a qual não se confunde nem só com o homem natural, nem só com o civil.
Rousseau recria o humano na figura do solitário. O que quer dizer, em última análise,
lui-même; de sorte qu’on pourrait dire que les sauvages ne sont pas méchants, précisément, parce qu’ils
ne savent pas ce que c’est qu’être bons […].” (D2, première partie, OC III, p. 154). 309 Para além de Hobbes, também Pufendorf refere o estado de guerra: “C’eſt même l’état propre &
primitif de la Nature Humaine conſidérée comme telle, puis qu’il vient d’un principe qui diſtingue les
Hommes d’avec les Bètes; au lieu que la guerre eſt produite par un principe commun à tous les Animaux
[…].” - PUFENDORF, Samuel, Le Droit de la nature et des Gens (1732), op. cit., Livre VIII, Chap. VI
(“Du droit de la Guerre”), p. 454. Manteve-se a ortografia original. 310 Lettre de J.-J. Rousseau à Monsieur Philopolis, OC III, p. 236. De salientar que Philopolis é o
pseudónimo do metafísico C. Bonnet, conhecido discípulo de Leibniz. 311 “[…] O’Hagan realiza um primeiro movimento interpretativo que, correctamente, coloca o ser humano
numa linha de continuidade com os outros animais, porém salvaguardando a sua diferença específica […]
em nosso entender, é igualmente necessário operar um segundo movimento interpretativo que dê
continuidade ao primeiro: na tentativa de mostrar a diferença específica do ser humano é importante nunca perder de vista a sua natureza geral. É preciso não criar uma separação irrecuperável entre estes
dois planos. Nesse caso, as tensões e conflitos internos a que O’Hagan se refere só se verificam se for de
todo impossível conciliar o Homem natural, em que as características da preservação e da compaixão são
mais evidentes, com o Homem civil ou cidadão […] com o livre arbítrio e a perfectibilidade […]”.
(MARTINS, Custódia, A Pedagogia de Jean-Jacques Rousseau: Práxis, Teoria e Fundamentos, op. cit.,
pp. 119-120).
147
que esse homem é o próprio Rousseau, como espécie de universal concreto […]”312
. Na
mesma linha, outros autores defendem uma construção de um novo self, nestas últimas
obras, por, de algum modo, ter “falhado” a construção de um novo homem e do
cidadão, nas obras anteriores do Émile e do Du Contrat Social. Para nós, e,
independentemente da pertinência de uma terceira configuração de homem em
Rousseau, parece-nos claro que também esta derivará da dissemelhança primeira entre
homem natural e homem civil, distinção crucial na obra rousseauniana, que responde à
demanda da natureza humana, e que é transversal a todos os seus textos.
À distinção entre homem natural e homem civil acrescenta Rousseau a
diferenciação entre o homem e o animal, que não é subsidiária, mas complementar
àquela. O homem foi já um mero animal, não obstante algumas diferenças iniciais
dignas de nota:
“[…] vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil que outros, mas sem dúvida mais
vantajosamente organizado do que todos: vejo-o saciando-se sob um carvalho, matando a sede no
primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto, e eis as suas
necessidades satisfeitas.” 313
Os critérios de demarcação entre o homem e o animal são, desde logo,
apresentados na primeira parte do Discours de 55 e surpreendem: ao contrário da
tradição filosófica, não será “tanto o entendimento que faz entre os animais a distinção
específica do homem mas a sua qualidade de agente livre.” (D2, I, p. 141). O animal é
apresentado como tendo “ideias porque tem os sentidos [e] combina mesmo as suas
ideias até um certo ponto” (D2, I, p. 141). Os animais têm ideias particulares, mas não
gerais (o macaco que vai à árvore não tem a ideia geral da fruta que procura – cf. D2, I,
p. 149).
Apesar de algumas diferenças iniciais com os outros animais, designadamente, o
facto de “encontra[r] a sua subsistência mais facilmente que os outros” (D2, I, p. 135), o
homem selvagem (homme sauvage) que se encontra no mais originário estado de
natureza, encontra-se, na verdade, a par dos animais:
312 Ibid., p. 120. 313 “[…] je vois un animal moins fort que les uns, moins agile que les autres, mais à tout prendre, organisé
le plus avantageusement de tous: je le vois se rassasiant sous un chêne, se désaltérant au premier ruisseau,
trouvant son lit au pied du même arbre qui lui a fourni son repas, et voilà ses besoins satisfaits.” (D2,
première partie, OC III, pp.134-135).
148
“[…] entregue pela natureza apenas ao seu instinto […] começará, pois, pelas funções puramente
animais: perceber e sentir será o seu primeiro estado, que lhe será comum com todos os animais.”314
Esta inédita aproximação do homem ao animal marca inesperadas
reminiscências rousseaunianas em autores como Peter Singer. Nas teses singerianas
sobre a ética ambiental, especificamente no que diz respeito à questão da
considerabilidade moral, está presente a inovação que Rousseau empreendeu sobre a
distinção entre homem e animal, ambos entendidos como seres que percebem e sentem
(cf. D2, I, p. 141). Essa aproximação ineditamente estabelecida entre o animal e o
homem (natural) aponta no sentido da inclusão do animal no mundo humano do
conceito singeriano de senciência.315
É mesmo de salientar a indelével defesa de
Rousseau pelos direitos dos animais, numa altura em que raros eram aqueles que nisso
pensavam:
“Todos os animais desconfiam do homem, e têm razão: porém, uma vez seguros de que lhes não
queremos fazer mal, a sua confiança torna-se tão grande que é preciso ser-se mais bárbaro para se abusar
dela.”316
O homem distingue-se do animal pela sua liberdade:
“[...] Eu não vejo em qualquer animal senão uma máquina engenhosa à qual a natureza deu o
sentido de se voltar para si mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o que a tende destruí-la ou
a perturbá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com esta diferença de que a
natureza por si só faz tudo nas operações da besta, ao passo que o homem contribui para as suas próprias,
como um agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro por um acto de liberdade […].”317
Ao contrário dos animais, o homem tem a liberdade que se manifesta no poder
de querer (puissance de vouloir) e de escolher (puissance de choisir):
314 “[…] livré par la nature au seul instinct commencera donc par les fonctions purement animales:
apercevoir et sentir sera son premier état, qui lui sera commun avec tous les animaux.” (ibid., pp. 142-
143). 315 Com efeito, Singer alarga a comunidade moral aos seres sencientes, segundo o critério da capacidade
de sentir dor e prazer: “[…] há muitos seres sencientes e capazes de sentir prazer e dor que não são
racionais nem autoconscientes e que, portanto, não são pessoas.” - SINGER, Peter, Practical Ethics
(1979), Tr. Port. Ética Prática, trad. Álvaro Augusto Fernandes, Lisboa, Gradiva, 2002, p. 121. 316 “Tous les animaux se défient de l'homme et n'ont pas tort; mais sont-ils sûrs une fois qu'il ne leur veut
pas nuire, leur confiance devient si grande qu'il faut être plus que barbare pour en abuser.” (C., livre VI,
p. 240). 317 “[…] Je ne vois dans tout animal qu’une machine ingénieuse, à qui la nature a donné de sens pour se
remonter elle-même, et pour se garantir, jusqu’à un certain point, de tout ce qui tend à la détruire, ou à la
déranger. J’apperçois précisement les mêmes choses dans la machine humaine, avec cette différence que
la nature seule fait tout dans les operations de la bête, au-lieu que l’homme concourt aux siennes, en
qualité d’agent libre. L’un choisit ou rejette par instinct, et l’autre par un acte de liberté […].” (D2,
première partie, OC III, p. 141).
149
“[…] é sobretudo na consciência desta liberdade que se mostra a espiritualidade da sua alma:
porque a Física explica de alguma maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das ideias, mas no
poder de querer, ou até de escolher, e no sentimento desse poder, não encontramos senão actos puramente
espirituais, dos quais nada se pode explicar pelas leis da Mecânica.”318
A liberdade encontra-se lado a lado com outra característica específica e
distintiva do homem, a perfectibilidade (perfectibilité), assim definida:
“[…] faculdade de se aperfeiçoar [que], com a ajuda das circunstâncias, desenvolve
sucessivamente todas as outras, e reside entre nós tanto na espécie como no indivíduo, ao passo que um
animal é, no fim de alguns meses, o que será toda a vida, e a sua espécie, ao fim de mil anos, o que era no
primeiro desses mil anos.” 319
Segundo Millet, surge assim uma nova definição de homem: “Não que Rousseau
rejeite as proposições clássicas: o homem é um animal racional; o homem é um animal
social. Mas mostra que razão e sociabilidade são adquiridas e adquiridas pelo homem.
As definições clássicas estabelecem-se não sobre o princípio mas sobre o fim do homem
e mesmo sobre o que ele deve ser. Rousseau introdu-las […] como propriedades
históricas, isto é, criadas pelo homem. E isto porque, antes de ser animal racional ou
animal social, o homem é ser do virtual”320
.
Esta distinção rousseauniana é tão mais importante quanto faz surgir uma
inovadora concepção de homem cuja característica específica e distintiva dos animais
deixa de ser a racionalidade. Com efeito, a reivindicação pelo sentir inerente à natureza
humana, que é preciso não esquecer no estado actual em que cada homem vive,
pressupõe que não é a razão que nos distingue dos animais, antes o modo como fazemos
a história e como utilizamos as faculdades da perfectibilidade e da liberdade. O que nos
distingue é o modo como pensamos, agimos e sentimos. Neste contexto, a ligação à
problemática do mal em Rousseau é inevitável. Não interessará saber quando, mas
como se deu a evolução do homem natural para o homem civil e de que modo se instala
o mal que os homens deverão saber minorar por meio do pensar, do sentir e da acção.
Sendo antropológico e social, o mal tem causas que o espoletam. Foram as faculdades,
318 “[…] c’est surtout dans la conscience de cette liberté que se montre la spiritualité de son âme: car la
Physique explique en quelque manière le mécanisme de sens et la formation des idées; mais dans la
puissance de vouloir ou plutôt de choisir, et dans le sentiment de cette puissance on ne trouve que des actes purement spirituels, dont on n’explique rien par les lois de Mécanique.” (ibid., p. 142). 319 “[…] faculté qui, à l’aide des circonstances, développe successivement toutes les autres, et réside
parmi nous tant dans l’espèce, que dans l’individu, au lieu qu’un animal est, au bout de quelques mois, ce
qu’il sera toute sa vie, et son espèce, au bout de mille ans, ce qu’elle était la première année de ces mille
ans.” (ibid., p. 142). 320 MILLET, Louis, La pensée de Rousseau, Paris, Bordas, 1966, p. 41.
150
sobretudo as da perfectibilidade e da liberdade, que, com a ajuda de factores exteriores e
circunstanciais, fizeram sair o homem da sua animalidade para a civilização. Por isso, é
imprescindível que a história dos homens tenha sempre em conta a sua natureza. O que
nos distingue efectivamente dos outros animais é a nossa história e a imputabilidade que
nos pertence enquanto autores da mesma. A história foi e é o afastamento do homem em
relação à sua natureza, originariamente boa (leia-se inocente). É preciso, pois, perceber
como surge a terceira ideia/sentimento da trilogia da subjectividade universal: o mal e a
evitabilidade do seu (ab)uso.
III.3. A evitabilidade do (ab)uso do mal
“Tout est bien, sortant des mains de l’auteur des choses: tout dégénéré entre les mains de l’homme.”
(ROUSSEAU, J.-J., Émile, livre I, OC IV, 1969, p. 245).
“Et quaerebam, unde malum, et male quaerebam et in ipsa inquisitione mea non uidebam malum […] sic
creaturam tuam finitam te infinito plenam putabam et dicebam: ‘ecce deus et ecce quae creauit deus, et
bonus deus atque his ualidisseme longissimeque praestantior; sed tamen bonus bona creauit : et ecce
quomodo ambit atque implet ea? ubi ergo malum et unde et qua huc inrepsit? quae radix eius et quod
semen eius? an omnino non est? […] unde est malum?’ ”
(AUGUSTINI, S. Aureli, Confessionum, libri VII, C4-5, 7).
A temática do mal é por si só complexa e difícil: “Não é possível definir o mal
sem cometer o erro lógico de já se o referir na definição. Como o bem, como o ser, o
mal deixa-se apenas parafrasear, não é reconduzível a uma noção de maior extensão: é
ele a noção mais larga, e, por isso, é indefinível. Mas podemos marcar âmbitos diversos
dentro do mal […]”321
. O conteúdo desta afirmação de Fernando Gil é ainda mais
vigoroso num autor como Rousseau, no qual a questão do mal está sempre presente, de
modos bem distintos. O cuidado no tratamento deste tema, já por si difícil, é redobrado
no contexto da obra rousseauniana.
Questionemos, em primeiro lugar, o principal género de mal que preocupa
Rousseau. Que mal inquieta Rousseau? A noção do mal recua a Heraclito e aos seus
opostos, e tem sido classificada em diferentes géneros: mal metafísico, mal moral, mal
natural. A resposta do autor é outra: trata-se do mal antropológico, a sua origem é social
e manifesta-se na história, no plano ético-político.
321 GIL, Fernando, Acentos, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, p. 307.
151
A alternativa do mal metafísico é posta de lado, desde o Discours de 50, o seu
primeiro texto filosófico, e o problema da sua origem “é subtraído à esfera metafísica e
transposto para o plano ético e político: nem Deus, nem a natureza são responsáveis
pelo mal”322
. No prefácio ao Discours de 50, o autor é firme na recusa de “subtilezas
metafísicas” (D1, p. 5), referindo-so explicitamente à reflexão dos aspectos morais e
metafísicos do homem já só no Discours de 55.323
No Discours de 50, o mal aparece já
como resultado do processo histórico, como aparência, característica dos povos
policiados/civilizados que deixaram de viver na essência do estado natural, “na
simplicidade dos primeiros tempos” (D1, II, p.22). Neste estado natural, os homens
viviam em si e por si, na autenticidade e mesmidade da sua boa natureza, sem o
reconhecimento do outro que acarretaria a necessidade da relação social. Bastando-se a
si próprio, recatado na sua natureza, o homem não sabe o que é o mal. Descobri-lo-á
quando, na relação com o outro, estabelecida na organização social e política (D2), no
uso das ciências e das artes (D1), na linguagem convencional (EL), enfim, na
“urbanidade” (D1, I, p. 9), não deixará já de querer sempre parecer o que não é. O que
Rousseau recusa, à partida, é o mal como uma imperfeição da natureza originária do
homem, como privatio, privação ou ausência de bem ou ainda como fruto do livre-
arbítrio, presente envenenado de Deus. O mal será sempre da ordem do humano, da
realidade que este efectiva, do que a sua perfectibilidade concretiza. Surge apenas nas
mãos dos homens e resulta das suas acções, ao longo do seu desenvolvimento histórico.
O mal só surge na história dos homens. Pelos homens. E esta simples ideia afastá-lo-á
definitivamente da tradição filosófica, e muito especificamente de Santo Agostinho324
,
322 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit., p. 42. 323 Será já no Discours de 55 que a sua reflexão se debruçará no homem metafísico e moral: “Je n’ai
consideré jusqu’ici que l’homme physique; tachons de le regarder maintenant par le côté méthaphysique
et moral.” (D2, première partie, OC III, p. 141). 324 “Por vezes afirma-se que Santo Agostinho atribuiu à humanidade a responsabilidade do mal. Parece
mais exacto dizer que deu à humanidade a culpa do mal, o que não é o mesmo” (NEIMAN, Susan, O Mal
no Pensamento Moderno – Uma história alternativa da Filosofia, tradução de Vítor Matos, Lisboa,
Gradiva, 2005, p. 59). Santo Agostinho é interlocutor privilegiado de Rousseau, cuja importância não
podemos deixar de sublinhar. Apontamos aqui apenas alguns pontos de contacto e de disparidade entre os
dois filósofos, a saber: 1. Proximidades – o mal e o estilo confessional em ambos os autores; o paraíso
em Santo Agostinho e o estado de natureza em Rousseau; consequências da influência platónica na
reflexão acerca do mal, nos autores: a estátua de Glauco e a reminiscência agostiniana. 2. Diferenças e/ou
rupturas – a origem do mal: o mal como privação, não-ser e desvio de Deus em Santo Agostinho e a origem social do mal e manifestação na história; o problema da origem e consequências do mal: a queda
original em Santo Agostinho e a história dos homens em Rousseau; a culpa agostiniana e a
responsabilidade rousseauniana; a redenção pela fé em Santo Agostinho e o remédio no mal em
Rousseau; a distinta função de Deus no contexto da problemática do mal nos nossos autores: Deus e fé
em Santo Agostinho e Deus e consciência em Rousseau; o livre-arbítrio agostiniano e a liberdade
rousseauniana na educação moral e política no Émile; conceitos-chave: em Rousseau: Deus, homem,
152
pois, apesar de também considerar a liberdade humana como uma das maiores dádivas
de Deus, Rousseau responsabiliza, mas não culpa o homem pelo uso que dela fez. É
verdade que a relação entre a história do mal e a história dos homens é estabelecida por
Santo Agostinho e retomada por Rousseau, mas o que pretendemos defender é que há
precisamente uma diferença radical na fundamentação daquela relação: o primeiro culpa
o homem, o segundo responsabiliza o homem.
Reflectir o problema do mal, sobretudo no que à sua origem diz respeito, implica
chamar a debate Santo Agostinho, tanto mais que, ao lado das diferenças bem visíveis
entre o pensamento agostiniano e a reflexão rousseauniana, persistem proximidades que
não podem nem devem ser descuradas.325
Tal como o filósofo genebrino, também
Agostinho de Hipona (354-430) não se deixa reenviar facilmente para uma das etapas
da História da Filosofia. Nascido ainda no período da filosofia antiga, é considerado um
filósofo medieval, cristão, e o seu pensamento apresenta características que levam os
seus comentadores a reivindicá-lo como um antecipador da filosofia moderna. Tal como
Rousseau, filósofo das luzes (e das contra-luzes), Santo Agostinho recebe uma forte
influência platónica, nomeadamente no princípio do autoconhecimento, que o fará, após
a demarcação do maniqueísmo, procurar, em si e por si, a resposta às questões que o
inquietavam, o problema da origem do mal em particular. Santo Agostinho facilita o
trabalho de quem o pretende estudar, por, nas suas Confessiones, dar conta do seu
percurso. Veja-se, a este propósito, a menção à influência helenística, em Confessionum
Libri VII, quando refere os “muitos e numerosos argumentos” que leu em “alguns livros
platónicos”326
, ou ainda quando, na obra De beata vita, afirma ter lido, numa
determinada fase, “alguns livros de Platão”327
. O próprio filósofo refere ainda “erros”
que acabou por detectar na perspectiva maniqueísta do mal: “Ainda então me parecia
que não éramos nós que pecávamos […]. A minha soberba deleitava-se com não ter as
responsabilidades da culpa. Quando procedia mal, não confessava a minha
história, sociedade, dialéctica ser/parecer, liberdade, educação, vontade, responsabilidade e remédio no
mal; em Santo Agostinho: Deus, homem, livre-arbítrio, vontade, pecado, culpa, fé e redenção. 325 Por exemplo, tal como Rousseau, também Santo Agostinho produziu uma obra enciclopédica – terá
escrito “aproximadamente 100 livros e tratados [existindo ainda] cerca de 250 cartas e por volta de 500
sermões, incluindo aqueles que constavam de comentários sobre os Salmos.” (MATTHEWS, Gareth B.,
“A vida e as ideias de um filósofo adiante do seu tempo”. Disponível em http://www.zahaRcom.br/doc/t1055.pdf (consultado a 12/7/2013). 326 SANTO AGOSTINHO, Confessiones (397-398), Tr. Port. Confissões, trad. J. Oliveira Santos e A.
Ambrósio de Pina, Braga, Livraria Apostolado da Imprensa, 1990, livro VII, p. 167. 327 “Foi então que li algumas obras de Platão […]”, in SANTO AGOSTINHO, De beata vita (386-387),
Tr. Port. Diálogo sobre a Felicidade, edição bilingue, trad., introd. e notas Mário A. Santiago de
Carvalho, Lisboa, Edições 70, 2010, p. 27.
153
culpabilidade, para que me pudésseis curar a alma, já que Vos tinha ofendido, mas
gostava de a desculpar e de acusar uma outra que estava comigo e que não era eu. […]
Era este pecado tanto mais difícil de cura, quanto menos pecador eu me julgava”328
. A
dualidade ontológica do bem e do mal e a luta entre o reino das trevas e o reino da luz
não satisfaziam já o filósofo e, passados nove anos sob a égide maniqueísta, dali se
demarca, afastando-se, como se sabe, do bispo maniqueísta Fausto e abraçando, mais
tarde, a fé cristã. Com efeito, no universo maniqueísta, não há espaço para a liberdade
humana, muito menos para a responsabilidade. É ainda nas Confessiones que Santo
Agostinho regista que as questões que então se lhe colocavam só mais tarde, afastando-
se também dos Académicos, e já no De libero arbitrio, no diálogo com Evódio, viriam a
ter resposta. Note-se que a tolerância religiosa de Rousseau (a religião natural contém
“os elementos de todas as religiões” (PF, p. 609) se manifesta também em Santo
Agostinho. Étienne Gilson, reconhecida autoridade na investigação do pensamento
agostiniano, expõe a amplitude da tolerância religiosa da filosofia agostiniana
mostrando como, na obra De Civitate Dei, Santo Agostinho não discrimina os não
cristãos.329
O estilo confessional de ambos os filósofos que, consequentemente, escrevem na
primeira pessoa, longe de ser visto como uma insignificante coincidência, deve ter
preponderância no facto de que, em ambos, a reflexão se faz a partir de introspecção e
de procura interior pela Verdade e que, por tal razão, só desse modo se pode expor aos
leitores. Vejamos, apenas num mero coup d’oeil, como, especificamente em relação ao
problema do mal, se aproximam e se distanciam os dois filósofos. O mal é considerado
por Santo Agostinho como privação, não-ser e desvio de Deus. O mal não tem estatuto
ontológico, uma vez que pertence à esfera do não-ser. Tudo o que existe, e porque foi
criado por Deus, é bom. Há, no entanto, vários graus de bem, de acordo com a
participação no Ser. O mal surge do desvio do livre-arbítrio do homem e corresponde à
corrupção do bem: “[…] Vi claramente que todas as coisas que se corrompem são boas:
– não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam corromper
se não fossem boas. Com efeito, se não fossem boas, seriam incorruptíveis, e se não
tivessem nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse. […] se são privadas de
todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem são boas. Portanto,
328 SANTO AGOSTINHO, Confessiones, Tr. Port. op. cit., p. 123. 329 Cf. GILSON, Étienne, A Filosofia Na Idade Média, trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Ed. Martins
Fontes, 1995, pp. 156 e sgts.
154
todas as coisas que existem são boas e aquele mal que eu procurava não é uma
substância, pois se fosse substância seria um bem”330
. É ainda no esclarecedor
Confessionum Libri VII que Santo Agostinho clarifica que, apesar de não haver total
equidade da bondade em todas as coisas, tomadas no seu conjunto, todas elas são boas,
por resultarem do desígnio divino: “[…] porque as não criastes [as coisas] todas iguais,
por esta razão, todas elas, ainda que boas em particular, tomadas conjuntamente são
muito boas”331
. Em Rousseau, vimos já que o mal se desdobra em “males”, recebendo
vários nomes, tendo como denominadores comuns a representação, a aparência e o
distanciamento do estado de natureza. O mal existe, enquanto manifestação histórica e
social, sendo sempre fruto da obra humana. Quanto ao problema da origem e
consequências do mal, vejamos: para Rousseau, o mal tem origem social e manifesta-se
na história; para Santo Agostinho, o mal surge na queda original e a responsabilidade
dos homens assenta na culpa. Deus não é o autor do mal, conforme responde a Evódio,
no diálogo do De libero arbitrio: “Mas se tu sabes, ou acreditas, que Deus é bom – e
não é lícito pensar de outra maneira –, Ele não faz o mal. Por outro lado, se declaramos
que Deus é justo – com efeito, negá-lo é um sacrilégio –, assim como premeia os bons,
da mesma forma também castiga os maus; […] Por conseguinte, se ninguém sofre
castigos injustamente – o que é necessário acreditar, na medida em que acreditamos que
a providência divina rege este universo –, de modo algum Deus é o autor daquele
primeiro género de males, mas sim do segundo”332
. Ambos vêem na liberdade e no
livre-arbítrio a possibilidade do mal, defendendo, assim, a responsabilidade humana
pelo mal. Mas o pecado original no paraíso de Santo Agostinho, e a consequente queda,
não têm lugar na história do homem que saiu do estado de natureza de Rousseau.
Rousseau substitui a teologia agostiniana pela história dos homens. A responsabilidade
dos homens pelo mal é comum, mas enquanto Santo Agostinho reforça a culpa e a
consequente redenção pela fé, Rousseau atribui a plena e dupla responsabilidade aos
homens, pela causa e pelo remédio. Se o mal é obra dos homens, a sua erradicação
também, e nesta tomada de consciência da responsabilidade rousseauniana não há
espaço para a culpa, tão-só para a responsabilidade. Por último, é de salientar a distinta
função de Deus no contexto da problemática do mal nos dois autores. Em Rousseau, o
encontro com Deus é crucial para a prática do bem e da virtude – “Elevo e fatigo em
330 SANTO AGOSTINHO, Confessiones, Tr. Port. op. cit., livro VII, pp. 171-172. 331 SANTO AGOSTINHO, Confessiones, Tr. Port. op. cit., livro VII, p. 172. 332 SANTO AGOSTINHO, De libero arbitrio, Tr. Port. Diálogo sobre o livre-arbítrio, ed. bilingue, trad.
e introd. Paula Oliveira e Silva, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, p. 81.
155
vão o meu espírito ao conceber a sua essência […] quando oiço dizer que a minha alma
é espiritual e que Deus é um espírito, indigno-me contra este aviltamento da essência
divina, como se Deus e a minha alma fossem da mesma natureza! Como se Deus não
fosse o único ser absoluto, o único verdadeiramente activo, sentindo, pensando,
querendo por si mesmo, e do qual recebemos o pensamento, a actividade, a vontade, a
liberdade, o ser. Só somos livres porque ele quer que o sejamos […]” (PF, pp. 592-
593). A consciência é, para Rousseau, um instinto natural com o qual Deus nos dotou;
se a ouvirmos atentamente, seremos bons, virtuosos e, por isso, e só depois disso,
seremos felizes. Mas saber ouvir a consciência não é um acto fácil, uma vez que apenas
em sociedade e em relação com o outro, dela damos conta e é precisamente aí também,
na relação social, que a mesma consciência se forma efectivamente. Em Santo
Agostinho, Deus tem um papel preponderante e indispensável à vida dos homens. Tal
como nos diz em De Civitate Dei, só respeitando a ordem divina pode o homem viver
em paz: “A paz do homem mortal com Deus é a obediência ordenada na fé sob a eterna
lei”333
. Só o encontro com Deus e o acto de fé são essenciais à felicidade que importa –
“[…] quem já encontrou Deus e tem-n’O favorável, é feliz; quem procura Deus, tem-
n’O favorável mas ainda não é feliz; pelo contrário, quem se afasta de Deus, por vícios e
pecados, não só não é feliz como não vive com o favor de Deus”334
.
A queda ou redenção não tem em Rousseau qualquer sentido teológico. O mal
surge nas mãos do homem, sem que isso implique uma condenação ou seja
necessariamente uma perversão da sua natureza. Mas não é convincente dizer-se que
Rousseau não vê o homem pervertido. Rousseau refere de várias maneiras o estado da
humanidade, que faz corresponder à ideia de corrupção e a um obscurecimento da sua
origem. O problema de Rousseau parece ser, antes, como explicar essa perversão sem
recorrer ao pecado original. O Discours de 55 constitui a sua resposta ao problema, a
qual terá profunda influência em Kant, que escreve, a este propósito, o ensaio sobre os
inícios da história humana (Die Mutmaßung über den Beginn der menschlichen).
É precisamente no Discours de 55 que Rousseau enuncia e identifica
definitivamente a origem social do mal, aquando do reconhecimento do outro e na
relação social, bem como o cortejo dos males que se lhe seguiram:
333 SANTO AGOSTINHO De Civitate Dei (413-426), Tr. Port. A Cidade de Deus, 2ª ed., trad. J. Dias
Pereira, Lisboa, Gulbenkian, 1995, Vol.III (Livros XVI a XXI), Livro XIX, cap. XIII, p. 1915. 334 SANTO AGOSTINHO, De beata vita, Tr. Port. op. cit., p. 67.
156
“Cada um começa a olhar os outros e a querer ser ele mesmo olhado, e a estima pública teve um
preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro, o mais eloquente
torna-se o mais considerado, e esse foi oprimeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo
tempo: destas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, do outro, a vergonha
e a inveja e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos à
felicidade e à inocência.”335
Estava, assim, identificada a causa antropológica e a origem social do mal e a
sua manifestação e desenvolvimento na história humana. Susan Neiman sublinha o
ponto fulcral: “Para Rousseau, tanto o problema do mal como a sua solução dependem
da ideia de que o mal se desenvolveu ao longo do tempo. […] A história era a categoria
certa a apresentar [pois] deixa espaço entre a fatalidade e o acidental […]. Se a
introdução do mal foi uma fatalidade, podemos ser salvos por um milagre [e] se foi um
acidente, então o mundo onde tem importância não faz sentido. A história, pelo
contrário, é dinâmica [e] se o mal foi introduzido no mundo, então também pode ser
erradicado […]”336
. A consequência da introdução do factor antropológico-histórico na
problematização do mal é, assim, a possibilidade da sua solução na própria história, pela
qual só os homens são responsáveis. Embora Starobinski, recorrendo a Cassirer337
, dê a
ver em Rousseau uma teodiceia desculpabilizante do homem e de Deus, a
desculpabilização em relação ao homem é apenas parcial; se não se pode imputar a
existência do mal à natureza humana, pode e deve-se atribuir a sua ocorrência à acção e
à história dos homens, resultado da sua liberdade de escolha:
“Se o homem é activo e livre, age por si mesmo; tudo o que ele faz livremente não entra no
sistema ordenado da providência, e não lhe pode ser imputado. Ela não deseja o mal que o homem faz
abusando da liberdade que ela lhe dá, mas não o impede de o fazer [porque] não o pode impedir sem
incomodar a sua liberdade, fazendo um mal ainda maior degradando a sua natureza.”338
335 “Chacun commença à regarder les autres et à vouloir être regardé soi-même, et l’estime publique eut
un prix. Celui qui chantait ou dansait le mieux; le plus beau, le plus fort, le plus adroit ou le plus éloquent
devint le plus considéré, et ce fut là le premier pas vers l’inégalité, et vers le vice en même temps: de ces
premières préférences naquirent d’un côté la vanité et le mépris, de l’autre la honte et l’envie; et la
fermentation causée par ces nouveaux levains produisit enfin des composés funestes au bonheur et à
l’innocence.” (D2, seconde partie, OC III, pp.169-170). 336 NEIMAN, Susan, O Mal no Pensamento Moderno, op. cit., pp. 60-61. 337 “Cassirer l’a bien montré: les postulats de Rousseau permettent de résoudre le problème de la théodicée, sans imputer l’origine du mal ni à Dieu ni à l’homme pécheur.” - STAROBINSKI, Jean, Jean-
Jacques Rousseau – La transparence et l’obstacle, op. cit., p. 33. 338 “Si l’homme est actif et libre, il agit de lui-même; tout ce qu’il fait librement n’entre point dans le
système ordonnée de la providence, et ne peut lui être imputé. Elle ne veut point le mal que fait l’homme
en abusant de la liberté qu’elle lui donne, mais elle ne l’empêche pas de lui faire [parce q’] elle ne pût
l’empêcher sans gêner sa liberté, et faire un mal plus grand en dégradant sa nature.” (PF, OC IV, p. 587).
157
Rousseau refere a importância da responsabilidade humana, mas exclui a noção
de culpa. Para Rousseau, não há “um fundamento transcendente que justifique a origem
do mal como nas teodiceias tradicionais, nem é justificável como um desígnio incógnito
da Providência na ordem geral do Universo”339
. O mal não é analisado do ponto de vista
sensorial nem vivencial, como o é no contexto do empirismo de Hume.340
A perspectiva
rousseauniana em face do mal é, assim, única, não se deixando confundir com nenhuma
das concepções tradicionais, quer sobre a origem, quer sobre o desenvolvimento do
mal.341
Tal como o mal metafísico, o mal natural não tem relevância no pensamento
rousseauniano. Fenómenos naturais como a morte não têm qualquer relevância em si e
não contêm qualquer mal, a não ser no estado civilizado, quando o homem lhe atribui
significado – o bom selvagem não teme a morte nem a velhice (D2, p. 137). Rousseau
não dedica tempo algum à reflexão sobre catástrofes naturais, como Kant fez em relação
ao grande terramoto de Lisboa, em 1755. As catástrofes naturais são apenas
circunstâncias exteriores (nem boas, nem más em si) que, muitas vezes, contribuíram
para a evolução do homem natural para homem civilizado, não determinando a sua
actividade.
Também as características que a natureza conferiu aos humanos, liberdade e
perfectibilidade, estão desprovidas do mal. Mas do uso, sobretudo, da perfectibilidade,
“propriedade suprema da natureza humana”, surge, como Millet sublinhou, “a dualidade
do bem e do mal”342
. A perfectibilidade não é sinónimo de aperfeiçoamento, pode ser
negativa ou positiva, e, para Rousseau, tem vindo a ser negativa. Os efeitos e
consequências do mal humano têm sido evidentes, tal como afirma no Discours de 50,
no que respeita aos efeitos corruptos das ciências, das letras e das artes343
na sociedade
339 MATOS, Manuel João, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit. p. 103. 340 Veja-se em particular a abordagem empírica do mal na Dissertação sobre as Paixões. Cf. HUME,
David, “Dissertação sobre as Paixões”, in Tratados Filosóficos II – Dissertação sobre as Paixões;
Investigação sobre os princípios da Moral (1751), trad. João Paulo Monteiro e Pedro Galvão, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, pp. 9-14. 341 A este propósito, leia-se: MATOS, Manuel João, Ensaio sobre o mal em Rousseau, Lisboa, Edições
Exlibris, 2016. A obra é exclusivamente dedicada ao problema do mal em Rousseau, dividindo-se em
duas partes, a primeira versa sobre o desenvolvimento do mal ao longo da obra rousseauniana,
enfatizando a sua ligação com a temática da liberdade e da educação; a segunda respeita à hermenêutica, genealogia e manifestação do mal rousseauniano. Cf. MATOS, Manuel João “O mal, a Liberdade e a
Educação” e “Rousseau e a genealogia do mal”, in ibid., pp. 27-98 e pp. 99-202, respectivamente. 342 MILLET, Louis, La pensée de Rousseau, op. cit., p. 67. 343 “Peuples, sachez donc une fois que la nature a voulu vous préserver de la science, comme une mère
arrache une arme dangereuse des mains de son enfant; que tous les secrets qu’elle vous cache sont autant
de maux dont elle vous garantit, et que la peine que vous trouvez à vous instruire n’est pas le moindre de
158
sua contemporânea. Ao longo do seu desenvolvimento, aquelas foram corrompendo,
não só os costumes dos povos, como a relação entre os homens, atingindo a sua máxima
corrupção com as luzes do seu século (D1, I, pp. 8-9).
O mal moral está também presente em Rousseau. Mas a sua perspectiva é, mais
uma vez, única. Rousseau não necessita da distinção entre as boas e as más acções, seja
em relação às consequências, como defendem as éticas utilitaristas, seja em relação à
intenção, como pretende a ética deontológica de Kant. É o sentido da actividade
histórica que o ocupa, o rumo do progresso. O mal é real, resulta da história dos
homens, diz-se de muitas maneiras e apresenta-se sob múltiplos rostos ao longo da
história. Tendo sido a civilização resultado do afastamento da essência humana,
qualquer acção em sociedade tende a ser má, quer pelo princípio, quer pelo efeito que
produz. O mal surgiu na civilização, quando o homem deixou o instinto e o simples
existir, para dar lugar ao agir e à moralidade. A haver alguma concepção moral do mal
nestes primeiros escritos (os comentadores referirão sempre outros textos tardios para
esta questão), ela estará precisamente neste ponto: com o reconhecimento do outro, dá-
se a interacção, começa a acção livre e responsável e, assim, o mal é também moral.
Descortinada a sua dimensão antropológica, histórica, ética e política, as
questões acerca do mal em Rousseau só agora começam: se o mal surge na história,
quando surgiu? Se é antropológico, qual a sua causa específica? Que razões justificam a
sua existência? O que existe no homem que espolete a existência do mal? É o mal
inevitável? É o mal irrevogável? Há necessidade do mal?
Em primeiro lugar, o mal surge na história, mas a preocupação rousseauniana
pela sua origem não é, como vimos, cronológica. Rousseau não possui recursos
científicos para determinar o momento em que se dá a passagem do estado natural para
o estado civilizado. E mesmo que os tivesse, cremos que não os utilizaria, uma vez que
aquele estado é essencialmente uma estratégia metodológica para bem analisar o (seu)
tempo presente. Não interessará saber quando, mas como se deu a evolução do homem.
Sendo antropológico, o mal tem causas que o espoletam. São as faculdades, sobretudo
as da perfectibilidade e da liberdade, que fazem o homem sair da sua animalidade para a
ses bienfaits” (D1, première partie, p. 15); “Où il n’y a nul effet, il n’y a point de cause à chercher: mais
ici l’effet est certain, la dépravation réelle, et nos âmes se sont corrompues à mesure que nos Sciences et
nos Arts se sont avances à la perfection” (ibid., seconde partie, p. 19); “Si nos sciences sont vaines, dans
l’objet qu’elles se proposent, elles sont encore plus dangereuses par les effets qu’elles produisent” (ibid.,
p. 18); “C’est un grand mal que l’abus du temps. D’autres maux pires encore suivent les Lettres et les
Arts. Tel est le luxe, né comme eux de l’oisiveté et de la vanité des hommes.” (ibid., p. 19).
159
civilização. Estas faculdades, aliadas a factores exteriores, conduzem a um
desenvolvimento específico e circunstancial em cada povo. A evolução das línguas no
Essai, por exemplo, é acompanhada por uma série de circunstâncias exteriores e
naturais que actuaram, de modo diferente, entre os povos do Norte (com condições
climatéricas mais adversas) e os do Sul (cujas condições levaram a uma língua
inicialmente mais suave). Essas circunstâncias influenciaram e influenciam o
desenvolvimento da história humana, ideia reforçada no Essai.344
Na carta a
Philopolis345
, é reforçada a ideia de que as circunstâncias e factores naturais não são
sinónimo de mal e podem, como fortes condicionantes (mas não determinantes), ora
acelerar, ora atrasar o progresso e os desenvolvimentos humanos.
A razão principal para a existência do mal é o facto de haver uma imensa
tendência para a socialização. Mas a socialização não deixa de ser necessária – sendo,
no entanto, salvaguardada por Rousseau a sua evitabilidade como resultado natural das
suas faculdades e circunstâncias, e este é um dos grandes paradoxos rousseaunianos.
Repetindo diversas vezes que o homem não é naturalmente social, não esteve nunca em
causa, pelo menos nos textos que trabalhámos, demonstrar como e se poderíamos não
viver em sociedade.
Ao contrário de Leibniz, não foi Deus quem escolheu o menor dos males e
originou o melhor dos mundos possíveis. Surgindo pelo homem, é o homem também
que terá de fazer cessar o mal que ele próprio criou, se quiser uma vida melhor. Para
minimizar os efeitos da origem social do mal é preciso, portanto, não fazer mal (“faire
mal”, D2, préface, p. 126), ou seja, é preciso não praticar o (ab)uso do mal. Rousseau
fá-lo com a sua única arma disponível: a sua palavra escrita. Seria um grande mal não
usar bem a sua linguagem. Combate os malefícios das letras (das ciências e das artes) no
Discours de 50 com os próprios textos e, por isso, é acusado de contraditório. Através
desse mesmo mal que é a palavra, sob a representação e convenção que o alfabeto
inevitavelmente carrega (EL, V, pp. 385-86), Rousseau procura suplantar o mal da
própria língua, reforçando a força e a intensidade da expressão, na comunicação das
344 “Les associations d’hommes sont en grande partie l’ouvrage des accidents de la nature; les déluges
particuliers, les mers extravasées, les éruptions des volcans, les grands tremblements de terre, les incendies allumés […] tout ce qui dût effrayer et disperser les sauvages habitants d’un pays dût ensuite les
rassembler pour réparer en commun les pertes communes.” (EL, IX, OCV, p. 402). 345 “[…] L’état de veilleuse découle de la seule nature de l’homme et que celui de société découle de la
nature du genre humaine […] à l’aide de certaines circonstances extérieures qui pouvaient être ou n’être
pas, ou du mois arriver plus tôt ou plus tard, et par conséquent accélérer ou ralentir le progrès.” (Lettre de
J. J. Rousseau à Monsieur Philopolis, OC III, p. 232).
160
suas ideias. Com os seus textos, Rousseau procura, assim, ultrapassar as limitações do
signo e descerrar tanto quanto possível a expressividade e a autenticidade,
características das primeiras vozes-cantos. O paradoxo do homem que critica as letras e
continua a escrever até ao fim da sua vida deve ser desfeito e tomado como assumpção
pessoal da tese do remédio no mal, tal como já referimos no capítulo anterior. Quando
escreve a Voltaire que o que pretende não é o regresso ao passado, no qual andámos de
gatas, enceta caminho para um futuro construído a partir do diagnóstico do presente. A
conhecida carta a Voltaire esclarecia também que as causas mesmas que fizeram o mal
seriam necessárias ao impedimento do contágio e da sua proliferação. Aí, Rousseau
refere o remédio para o contágio, não para a cura mesma. Mas esta relação entre o mal e
o remédio também não é clara: ou o remédio é ineficaz para a cura e só atenua os efeitos
dos males, ou é preventivo e, assim, protege do mal. Starobinski faz, a este propósito, a
distinção entre o modelo alopático e o modelo homeopático; no primeiro, o remédio
teria de vir do exterior do próprio mal – o bem, ou fazer bem, representaria o seu
remédio; o segundo pressupõe que, levando o mal ao extremo, este tornar-se-ia no seu
próprio remédio, por excesso. O modelo homeopático supõe a necessidade de um
progresso do próprio mal como condição à sua remediação. A revolução surge, assim,
como um possível remédio, sempre provisório.346
Certo é que Rousseau defende o
combate do mal e alerta para a responsabilidade e para a responsabilização dos homens
nesse combate. Mas nem sempre esse registo é idêntico, como, aliás, seria de esperar
deste filósofo dos paradoxos. Por vezes, adianta-nos que nada há a fazer, que o mal se
instalou e a crítica aos malefícios do homem civilizado é cerrada e acérrima, fazendo-
nos crer que o mal se instaurou de vez e que veio efectivamente para ficar (e vencer).
Outras vezes, aponta-nos para a possibilidade do remédio no mal e afirma que a cura
implica a retoma do que em nós há de natural.
Ainda no que respeita ao mal moral, o Émile e, em especial, o testemunho do
vigário saboiano merecem um tratamento singular e de destaque, pois é naquela obra e
naquele capítulo que se encontra o universo moral rousseauniano, indispensável à
compreensão da questão da evitabilidade do (ab)uso do mal. É verdade que o universo
semântico da Profession de Foi aponta para o sentimento religioso, mas o que está em
causa é, no contexto do Émile, a educação para evitar o (ab)uso do mal e, portanto, para
346 Starobinski analisa diferentes passagens dos textos rousseaunianos que confirmam aquelas duas
leituras. Cf. STAROBINSKI, Jean, Le remède dans le mal – critique et legitimation de l’artifice à l’âge
des lumières, op. cit., pp. 171-178.
161
o bem e para a virtude. E fá-lo na sua assumida e dinâmica relação simbiótica em que,
ora a razão orienta o sentimento, ora o sentimento orienta a razão, o que mostra, mais
uma vez, a aliança desejavelmente intransponível entre as duas dimensões na obra de
Rousseau. Neste texto, o filósofo apresenta e pretende dar a ver o alcance subjectivo da
universalidade dos conceitos de Deus, virtude, consciência, vontade, juízo e poder de
julgar, novos conceitos apresentados só agora, ainda ausentes nos Discours. Quer o
leitor, quer Émile devem ouvir o testemunho do vigário, exercitando alternadamente o
sentir da razão e a razão do sentir para que, com a ajuda da paisagem pastoril
envolvente, possam ver bem quais os valores que importam à educação moral e
religiosa.
Na Profession de Foi, Rousseau reflecte sobre a questão do mal, não tratando já
tanto da sua manifestação histórica nem da sua origem social, identificadas e descritas
sobretudo no Discours de 55, mas de auscultar o mal como assente na actividade ético-
moral do homem, resultando das faculdades da perfectibilidade (a razão e a liberdade),
bem como da sua dupla natureza, constituída por “moral e conhecimento, por um lado,
sentidos e paixões, por outro” (PF, p. 583). O mal é agora identificado na prática do
homem que, não ouvindo a consciência (a qual apela sempre à prática da virtude), não
pratica a probidade e opta pelo mal. No contexto da complexa semântica rousseauniana
da Profession de Foi, o bem e o mal moral não são também facilmente definíveis: “ O
bem e o mal são conceitos incomensuravelmente mais complexos do que meras
abstracções lógicas […] A oposição diametral entre o bem e o mal que Rousseau
estabelece corresponde a um estádio de pensamento infinitamente mais complexo do
que a simples dicotomia de conceitos: em todo o caso, a oposição não é de todo
científica, pelo que não é explicável simplesmente em termos de “lógica formal” pura.
Eles lidam com variáveis que escapam ao determinismo lógico e radicam no “poder de
julgar”, inerente à manifestação da autonomia da vontade e, como tal, têm uma
causalidade própria que não pode ser explicada pelas leis de causalidade do
pensamento”347
.
O mal pode ser evitado por meio da educação natural que assenta no
desenvolvimento tardio das faculdades humanas, ainda em potência na criança como no
homem natural, e, portanto, pela condução natural dos princípios inerentes ao homem,
na sua inevitável transição para a sociabilidade. O Émile corresponderá ao projecto
347 MATOS, João Manuel, Rousseau e a Lógica da Democracia, op. cit., pp. 117-118.
162
educacional, capaz de fazer um bom e virtuoso homem que evita conscientemente a
prática do mal, ou seja, que evita o (ab)uso do mal, recusando “o abuso das [suas]
faculdades” (PF, p. 587). Ora, a aprendizagem deste “evitar o mal” exige uma educação
natural dos homens (por oposição à educação convencional) para o seu próprio
reconhecimento. Este reconhecimento só pode ocorrer na fase da puberdade, após se ter
prolongado o mais possível as anteriores fases de crescimento. Se os primeiros três
livros do Émile se dedicam, sobretudo, à educação da criança que, à semelhança do
homem natural, não tem ainda acesso efectivo ao raciocínio nem à esfera moral, o livro
IV dedicar-se-á à educação moral e da alma, também religiosa, na “idade crítica”, em
que “se determina para toda a vida [o carácter], seja para o bem seja para o mal” (PF, p.
630). Ao contrário dos animais, o homem acede ao bem e ao mal pelo modo como age
no mundo, em relação consigo mesmo e com os outros, tornando-se, assim, um ser
moral. Não se trata de uma rivalidade entre o mal e o bem, como pretenderam os
maniqueístas, mas de fazer e praticar o bem e não o mal. Para se ser bom ou virtuoso,
Rousseau defenderá que é necessário a prática da virtude, mais do que o seu
conhecimento ou contemplação, como defendiam os gregos. É pela prática e pela acção
que o homem se definirá moralmente. Rousseau contesta e critica o modo como se
fizeram educar os homens do seu tempo e a sociedade em que vivem: “pela desordem
da primeira idade”, são hoje “vis e covardes nos seus próprios vícios, têm almas
pequeninas”, “incapazes de sentimentos grandes e nobres; não têm simplicidade nem
vigor”, são “vilmente maldosos, só são vãos, tratantes, falsos” (PF, p. 665).
Sendo “o abuso das nossas faculdades [o] que nos torna infelizes e maus.” (PF,
p. 587) cabe aos homens darem a moralidade às suas acções, no estado civil em que se
encontram, uma vez que é o estado que marca o primeiro mal da história, mas é também
e, paradoxalmente, o estado que permite aos homens a prática do bem e da virtude:
“Esta passagem do estado de natureza para o estado civil produz no homem uma mudança muito
notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça, e dando às suas ações a moralidade que
anteriormente não tinham. Só agora é que a voz do dever sucede ao impulso físico e o direito ao apetite, o
homem, que até então tinha olhado apenas para si mesmo, vê-se forçado a agir sobre outros princípios e
consultar a sua razão antes de ouvir as suas inclinações. Embora nesse estado se veja privado de muitas
vantagens que derivam da natureza […], as suas faculdades são exercidas e desenvolvidas, as suas ideias
estendem-se, os seus sentimentos enobrecem-se, toda a sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos
desta nova condição degradarão muitas vezes abaixo daquela de onde saiu, deve ele abençoar
163
continuamente o momento feliz que rasgou para sempre, e que, de um animal estúpido e limitado fez um
ser inteligente e um homem.”348
A tese do mal como facta homini e a consequente responsabilidade humana é
porventura um dos maiores contributos de Rousseau e resulta também da nova
concepção do homem que deixou de ser considerado um animal racional, social ou
político, para passar a ser sobretudo um animal da história, que jamais regressará ao seu
estado de natureza mas de cuja compreensão se deverá fazer acompanhar. O homem faz
a sua própria história, no compromisso moral, educacional, político e religioso, e o seu
maior desafio é compreender a sua natureza: o que importa à felicidade do género
humano para que, em sociedade, na civilização e no progresso, não mais possíveis de
eliminar, o homem saiba viver bem e evitar o (ab)uso do mal. Com a trilogia da
subjectividade universal, Rousseau identifica o ser e a natureza humana, assim como a
aparência e os males do homem civil que não convêm à sua natureza. Essa identificação
que Rousseau coloca no caminho de uma possível felicidade exige uma determinada
observação, com requisitos específicos e alertas a ter em conta, temática à qual
dedicamos o próximo capítulo.
348 “Ce passage de l’état de nature à l’état civil produit dans l’homme un changement très remarquable, en
substituant dans sa conduite la justice à l’instinct, et donnant à ses actions la moralité qui leur manquait
auparavant. C’est alors seulement que la voix du devoir succédant à l’impulsion physique et le droit à
l’appétit, l’homme, qui jusque-là n’avait regardé que lui-même, se voit forcé d’agir sur d’autres principes, et de consulter sa raison avant d’écouter ses penchants. Quoiqu’il se prive dans cet état de plusieurs avantages
qu’il tient de la nature […], ses facultés s’exercent et se développent, ses idées s’étendent, ses sentiments
s’ennoblissent, son âme tout entière s’élève à tel point, que si les abus de cette nouvelle condition ne le
dégradaient souvent au-dessous de celle dont il est sorti, il devrait bénir sans cesse l’instant heureux qui l’en
arracha pour jamais, et qui, d’un animal stupide et borné, fit un être intelligent et un homme.” (CS, I, 8, OC
III, p. 364).
164
Capítulo IV: A observação da natureza humana, com vista à felicidade
que lhe convém
IV.1. A observação: requisitos e alertas
[…] lecteurs, je pense volontiers à moi-même et je parle comme je pense […] J’ai les intentions bonnes,
mais il n’est pas toujours si facile de bien faire qu’on pense. Je conçois un nouveau genre de service à
rendre aux hommes: c’est de leur offrir l’image fidèle de l’un d’entre eux afin qu’ils apprennent à se connaître. […] Je suis observateur et non moraliste.”
(ROUSSEAU, J.-J., “Mon Portrait”, OC I, 1959, p. 1120)
Rousseau confere à observação um papel de superior destaque no contexto da
sua obra, cuja originalidade é destacada pelo próprio: “não vejo [itálico nosso] como os
outros homens” (É, préface, p. 242). No início do Émile, o autor refere a obra como um
conjunto de “reflexões e observações” (É, p. 241) e o termo “observações” surge
sobejamente repetido em cada um dos seus textos. Rousseau não se reconhece sábio
nem filósofo. Assume-se tão-só como um observador. Um observador que não
moraliza, antes observa os males da sociedade, o estado de natureza, a genealogia da
sua passagem para o estado de civilização, com vista à reflexão sobre a felicidade que
convém aos homens. E assume-se também como um observador que se auto-observa.
O processo da observação rousseauniana exige ele mesmo uma auto-observação
prévia. É preciso o olhar, o saber atentar, para melhor ver, e nisto nada diz de inovador.
Locke, por exemplo, também sabe que os olhos constituem um órgão essencial para a
reflexão e que é preciso arte e esforço para se ver bem: “O entendimento, tal como os
olhos, embora nos permita ver e compreender todas as outras coisas, não se apercebe a
si próprio; e é precisa muita arte e esforço para colocá-lo à distância que lhe permita
constituir-se um objecto para si mesmo.”349
Tal como Locke, mas muito diferentemente deste, Rousseau considera que, pese
embora as dificuldades da observação, cabe ao homem enfrentar o desafio dessa
imprescindível tarefa, se pretende ser mais feliz em sociedade:
349 LOCKE, John, An Essay concerning Human Understanding (1690), Tr. Port. Ensaio sobre o
entendimento humano, introd., notas e coordenação da trad. Eduardo Abranches de Soveral, revisão da
trad. Gualter Cunha e Ana Luísa Amaral, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, vol. I, p. 21.
165
“Que ser aqui em baixo, sem ser o homem, sabe observar todos os outros, medir, calcular, prever
os seus movimentos, os seus efeitos, e atingir, por assim dizer, o sentimento da existência comum ao da
sua existência individual?”350
A preocupação pela observação manifesta-se desde logo na especificidade do
perfil que Rousseau considera adequado ao leitor, que deverá estar atento, se pretende
observar e compreender adequada e fielmente os seus textos:
“Aviso o leitor que este capítulo deve ser lido pausadamente, e que eu não sei a arte de ser claro
para quem não quer estar atento.”351
Rousseau alerta frequentemente o leitor para a necessidade de fixar a atenção em
determinados pontos, de modo a acompanhar a reflexão em curso. Entre muitos outros,
constate-se este exemplo:
“Mas, deixando de parte as considerações políticas, regressemos ao direito, e fixemos os
princípios sobre este ponto importante. O direito que o pacto social dá ao soberano sobre os indivíduos
não passa de todo, como já disse, os limites da utilidade pública.”352
O modo como se apresenta diz muito sobre a forma como o filósofo observa e vê
a natureza humana e a sociedade, como se observa a si e aos outros e como se vê
destacado dos demais:
“Leitores, lembrai-vos sempre que aquele que vos fala não é nem um sábio nem um filósofo,
mas um homem simples, amigo da verdade, sem partido, sem sistema, um solitário que vivendo pouco
entre os homens tem menos oportunidade de se deixar imbuir pelos seus preconceitos, e mais tempo para
reflectir sobre o que o impressiona quando se encontra entre eles. Os meus raciocínios são menos
fundados em princípios do que em factos e eu acredito não poder melhor colocar-vos aptos a julgar senão
trazendo-vos muitas vezes alguns exemplos das observações que se me sugerem.”353
350 “Quel être ici-bas, hors l’homme sait observer tous les autres mesurer, calculer, prévoir leurs
mouvements, leurs effets, et joindre, pour ainsi dire, le sentiment de l’existence commun à celui de son
existence individuelle?” (PF, OC IV, p. 582). 351 “J’avertis le lecteur que ce chapitre doit être lu posément, et que je ne sais pas l’art d’être clair pour qui
ne veut pas être attentif.” (CS, III, 1, OC III, p. 395). 352 “Mais, laissant à part les considérations politiques, revenons au droit, et fixons les principes sur ce
point important. Le droit que le pacte social donne au souverain sur les sujets ne passe point, comme je
l'ai dit, les bornes de l'utilité publique.” (ibid., IV, 7, p. 467). 353 “Lecteurs souvenez-vous toujours que celui qui vous parle n’est ni un savant ni un philosophe, mais un
homme simple, ami de la vérité, sans parti, sans système, un solitaire qui vivant peu avec les hommes a
moins d’occasion de s’emboire de leurs préjugés, et plus de temps pour réfléchir sur ce qui le frappe
quand il commerce avec eux. Mes raisonnements sont moins fondés sur des principes que sur des faits et
je crois ne pouvoir mieux vous mettre à portée d’en juger que de vous rapporter souvent quelque exemple
des observations qui me les suggèrent.” (É, Manuscrit Favre, OC IV, p. 115).
166
A observação que empreende, quer da sociedade, quer de si próprio, visa
invariavelmente a justiça e a verdade:
“Tenho, pois, de prevenir os que quiserem encetar esta leitura de que, prosseguindo-a, nada os
pode precaver contra o aborrecimento, a não ser o desejo de acabar de conhecer um homem, e o amor
sincero da justiça e da verdade.”354
No processo de observação, o filósofo encontra-se duplamente isolado: por um
lado, o seu isolamento traduz-se num modo de observar, que não foi experienciado por
nenhum outro antes dele; por outro, afastar-se da sociedade permitir-lhe-á observar
devidamente a interacção social e os fundamentos e princípios sobre os quais assenta,
isto é, para obter uma visão sólida e profícua, tem de isolar-se, não pode imiscuir-se no
todo social. É necessário procurar um ponto de vista diferente, único, o verdadeiro, uma
descolagem do olhar social, que é baço e desfocado. Rousseau sabe que o ponto de vista
geral da e sobre a sociedade não é fidedigno; até ele escapou à visão de todos. Cabe-lhe,
pois, deixar o testemunho do seu olhar diferente, único e singular, ao longo da sua obra:
“Sinto o meu coração e conheço os homens. Não sou feito como nenhum daqueles que eu já vi;
ouso crer não ser feito como nenhum outro que existe. Se não serei melhor, pelo menos serei diferente. Se
a natureza fez bem ou mal em quebrar o molde em que ela me lançou, isso não se pode ajuizar senão
depois de me ter lido.”355
Na sua última e inacabada obra, é também referido por várias vezes o ponto de
vista solitário de quem, entre os homens ou afastado deles, procura observá-los e
conhecê-los:
“[…] sempre pensei que antes de se instruir os outros seria necessário começar por saber o
suficiente para si próprio, e de todos os estudos que na minha vida tentei fazer entre os homens, não há
nenhum que não tivesse podido fazer numa ilha deserta para onde tivesse sido desterrado para o resto dos
meus dias.”356
354 J’avertis donc ceux qui voudront commencer cette lecture, que rien, en la poursuivant, ne peut les
garantir de l’ennui, si ce n’est le désir d’achever de connaître un homme, et l’amour sincère de la justice
et de la vérité.” (C, livre VII, OC I, p. 279). 355 “Je sens mon cœur et je connais les hommes. Je ne suis fait comme aucun de ceux que j’ai vus; j’ose
croire n’être fait comme aucun de ceux qui existent. Si je ne vaux pas mieux, au moins je suis autre. Si la nature a bien ou mal fait de briser le moule dans lequel elle m’a jeté, c’est ce dont on ne peut juger
qu’après m’avoir lu.” (ibid., livre I, p. 5). 356 “[…] j’ai toujours cru qu’avant d’instruire les autres il fallait commencer par savoir assez pour soi, et
de toutes les études que j’ai tâché de faire en ma vie au milieu des hommes, il n’y en a guère que je
n’eusse faites également seul dans une Isle déserte où j’aurais été confiné pour le reste de mes jours.” (R,
troisième promenade, OC I, p. 1013).
167
O isolamento social chega a dar-se fisicamente e o refúgio na natureza tornar-se-
á mesmo, nos últimos anos da sua vida, a opção que lhe surge inevitável, perante o
descontentamento causado por uma sociedade com a qual nada se identifica, que não o
compreendeu e, perseguindo-o, não o soube observar. A questão da observação, que
perpassa pelos seus diferentes textos, revelar-se-á a sua maior frustração, não em
relação ao sucesso da sua própria observação, do qual não duvida, mas relativamente ao
modo como foi injustamente observado. Rousseau sabe que da boa observação
resultarão benefícios e da má resultarão malefícios. O filósofo afirma por várias vezes
que, no seu caso, do modo como foi observado resultaram somente malefícios. Os
homens não souberam observar devidamente Jean-Jacques Rousseau e, por conseguinte,
não conseguiram ver nem o homem nem o filósofo. Na esperança de um dia vir a ser
bem observado, deixa o seu próprio testemunho:
“Eu teria amado os homens, apesar do que são. Ao deixarem de o ser, mais não fizeram do que
furtar-se à minha afeição. Ei-los, pois, estranhos, desconhecidos, em suma, inexistentes para mim, já que
assim o quiseram. Mas eu, desligado deles, o que sou eu afinal? Eis o que me falta indagar. Infelizmente,
antes dessa pesquisa, tenho de analisar a minha situação. É uma ideia pela qual tenho forçosamente de
passar para, partindo deles, chegar até mim.”357
Os homens observaram-no mal por falta de visão, mas sobretudo por obstinação,
e até por maldade, o que o leva a recolher-se e a isolar-se, salvaguardando-se dos
malefícios sociais e procurando reconstituir o homem que sabe não ser o mesmo
daquele que os outros dizem que é:
“[…] Se os homens teimam em ver-me outro do que sou, e se a minha aparência reforça a sua
injustiça, para me não verem torna-se necessário fugir-lhes, mas não eclipsar-me no meio deles. Eles é
que devem esconder-se da minha vista, ocultar-me as suas manobras, fugir da luz do dia, enterrar-se na
terra como toupeiras. Quanto a mim, se pudessem ver-me, tanto melhor, mas isso é-lhes impossível;
nunca verão em mim senão o J.J. que eles criaram como quiseram, para o odiarem à sua vontade. Erraria,
portanto, se me deixasse afectar pela maneira como eles me vêem: não devo preocupar-me com isso, já
que não sou eu quem eles vêem.”358
357 “J’aurais aimé les hommes en dépit d’eux-mêmes. Ils n’ont pu qu’en cessant de l’être se dérober à
mon affection. Les voilà donc étrangers, inconnus, nuls enfin pour moi puisqu’ils l’ont voulu. Mais moi,
détaché d’eux et de tout, que suis-je moi-même? Voilà ce qui me reste à chercher. Malheureusement cette
recherche doit être précédée d’un coup-d’œil sur ma position. C’est une idée par laquelle il faut nécessairement que je passe, pour arriver d’eux à moi.” (ibid., première promenade, p. 995). 358 “[…] Si les hommes s’obstinent à me voir tout autre que je ne suis, et que mon aspect irrite leur
injustice, pour leur ôter cette vue il faut les fuir, mais non pas m’éclipser au milieu d’eux. C’est à eux de
se cacher devant moi, de me dérober leurs manœuvres, de fuir la lumière du jour, de s’enfoncer en terre
comme des taupes. Pour moi qu’ils me voient sʼils peuvent, tant mieux, mais cela leur est impossible; ils
ne verront jamais à ma place que le J. J. qu’ils se sont fait, et qu’ils ont fait selon leur cœur pour le haïr à
168
Mas de que observação se trata? Quais são os requisitos que Rousseau propõe
para essa observação? E que alertas se impõem ao observador?
Em primeiro lugar, e como resposta à primeira questão: trata-se da observação
da natureza humana. Para isso, é preciso observar o homem no seu estado natural.
Tratando-se de um estado não visível a olho nu, a sua observação implica o recurso à
imaginação e dá-se no exercício subjectivo e introspectivo que vê a natureza originária e
universal do homem, isto é, o homem no seu estado natural. Gouhier dá conta da
dificuldade da observação deste estado: “Trata-se de conhecer um estado dito de
natureza, que praticamente escapa à observação: ele não pode ser visto, uma vez que não
é o estado presente, nem previsto, uma vez que o estado presente não o projecta como
sendo um futuro provável, nem ressuscitado na forma de uma lembrança, uma vez que
nada parece provar que alguma vez tenha existido”359
.
No que respeita à segunda e à terceira questão, é preciso, antes de mais,
diferenciar os instrumentos necessários à observação (requisitos) dos cuidados na
utilização desses instrumentos (alertas). Por requisitos consideramos os recursos
metodológicos indispensáveis à boa observação, a saber: a adopção da visão dupla (da
razão e do coração), a intervenção de uma consciência orientada (educada) e o recurso à
imaginação – a este último requisito dedicamos o próximo sub-capítulo. Por alertas
entendemos as tomadas de atenção que Rousseau faz questão de ressalvar,
designadamente no que toca às regras da observação e ao direccionamento correcto do
olhar, de modo a salvaguardar a proficuidade e eficácia da mesma com vista às gerações
futuras.
Centremo-nos primeiramente nos requisitos da observação que Rousseau
privilegia. Vimos já que a observação rousseauniana resulta da visão dupla do pensar e
do sentir, da razão e do coração. A ausência ou o excesso de um ou de outro não permite
a boa visibilidade.
Se apenas sinto, nada vejo:
leur aise. J’aurais donc tort de m’affecter de la façon dont ils me voient: je n’y dois prendre aucun intérêt
véritable, car ce n’est pas moi qu’ils voient ainsi.” (ibid., sixième promenade, pp. 1058-1059). 359 GOUHIER, Henry, Les méditations méthaphysiques de Rousseau, op. cit., p. 13 - “Il s’agit donc de
connaître un état dit de nature qui, pratiquement échappe à toute observation: il ne peut être vu, puisqu’il
n’est pas l’ ‘état présent’, ni prévu, puisque l’‘état présent’ ne le projette pas comme un à-venir probable, ni
ressuscité à la façon d’un souvenir, puisque rien ne semble prouver qu’il ait jadis été vécu.”
169
“O sentimento invade a minha alma mais rápido que o relâmpago, mas em vez de me esclarecer
queima-me e cega-me. Sinto tudo mas não vejo nada […].”360
Se é verdade que Rousseau vê a dimensão do sentir como aquela que é
predominante no estado de natureza, no qual o homem não tem a razão desenvolvida e,
portanto, como sendo anterior ao pensar, é também certo que o filósofo mostra como as
sensações e os sentimentos estão interligados com as ideias próprias do estado de
civilização. Estas implicam ser sentidas e aqueles são assumidos por estas, chegando até
a confundir-se com elas.
Pensam-se os sentimentos:
“Os sentimentos que acabais de me expôr […]. Levo os vossos discursos no meu coração,
preciso meditá-los […].”361
Sentem-se os pensamentos:
“[…] as minhas ideias quase não são mais do que sensações e a esfera do meu entendimento não
vai além dos objectos pelos quais estou imediatamente cercado […].”362
Rousseau sabe que haverá momentos nos quais predomina a dimensão sensitiva,
outros em que se destaca a dimensão racional. Mas o que o filósofo genebrino propõe é
ainda algo maior e mais complexo: que o pensar inclua a dimensão sensitiva, que o
sentir seja consonante com o pensar. No que respeita à observação da natureza humana,
a qual sustentará toda a sua reflexão, Rousseau mostra bem como é necessário o
concurso das duas dimensões. Só a aliança entre o pensar e o sentir permitirá a visão
plena da natureza humana, que nem a história dos factos, nem os dados científicos,
permitem obter.
O segundo requisito fundamental para a boa observação é o usufruto da
consciência. Mas não basta ter a consciência, não basta também ouvi-la, até porque
todos os homens a têm e nenhum conseguiu ver bem a natureza humana. É preciso
saber ouvi-la e deixar-se guiar por ela. No exercício introspectivo, aliado à dupla visão
360 “Le sentiment plus prompt que l’éclair vient remplir mon âme, mais au lieu de m’éclairer il me brule et
m’éblouît. Je sens tous et je ne vois rien.” (C, livre III, OC I, p. 113). O autor refere-se aqui explicitamente ao sentimento em relação a Madame de Warens, que o cega por completo,
impossibilitando-o de pensar. 361 “Les sentiments que vous venez de m’exposer […]. J’emporte vos discours dans mon cœur, il faut que
je les médite.” (PF, OC IV, p. 606). 362 “Mes idées ne sont presque plus que des sensations, et la sphère de mon entendement ne passe pas les
objets dont je suis immédiatement entouré […].” (R, septième promenade, OC I, p. 1066).
170
da razão e do coração, manifestar-se-á nesta mesma a trilogia que importa e que resulta,
no seu conjunto, da observação da natureza humana.
Esta observação empreendida por Rousseau pode ser experienciada por todos os
homens, desde que, como ele, recolhidos na subjectividade, saibam reconhecer, por
meio da visão dupla, a trilogia que se apresenta à consciência, partindo da realidade
envolvente, e que os levará a aproximar-se da felicidade, afastando-os do (ab)uso do
mal. Tal como a estátua que o tempo, o mar e as tempestades desfiguraram tanto que
deixou de se assemelhar ao deus marinho, ficando apenas a parecer um animal feroz,
também a alma humana, pela socialização e civilização sofridas, ter-se-á distanciado da
sua natureza. À maneira socrática, Rousseau pretende despertar as consciências que se
habituam à inacção ou se atormentam com o ruído social. Uma consciência inactiva e
atormentada pela sociedade não reconhece a trilogia que se lhe apresenta.
Pelo contrário, uma consciência apta a reconhecer a trilogia da subjectividade
universal é aquela que, centrando-se em si mesma, e não se dispersando com a
interacção social, ouve a sua própria voz, que fala a linguagem da natureza e
compreende a sua autoria divina. É deste despertar da consciência que trata o Émile. O
testemunho de fé do vigário363
dá-se num momento de suspensão e dúvida, no qual se
encontraria o aprendiz Émile e, chegado o tempo da maturidade, está pronto a receber
orientações para saber ouvir a voz celeste da consciência. Não é por acaso que a
Profession de Foi decorre no meio da paisagem, pois é preciso, antes de mais, dirigir o
olhar de Émile para a natureza que, tal como a consciência, tem origem divina364
:
“Vede o espectáculo da natureza, ouvi a voz interior. Deus não disse já tudo aos nossos olhos, à
nossa consciência, ao nosso entendimento? Que mais nos poderão dizer os homens?”365
Ouvir a consciência corresponde a ouvir a linguagem de Deus. Não se trata de
aceitar um Deus de uma qualquer religião civil. Trata-se da religião natural que
363 Starobinski salienta o facto de a Profession de Foi ocorrer no contacto directo com a Natureza, perante
uma bela paisagem, do alto da colina, possibilitando deste modo a contemplação da obra de Deus que
reforçará a “lição verbal” que importa. Cf. STAROBINSKI, Jean-Jacques Rousseau. La transparence et
l’obstacle, op. cit., p. 176. 364 A propósito da importância do olhar rousseauniano virado para a natureza, leia-se: BEZERRA,
Gustavo Cunha, A ordem da Natureza no pensamento filosófico e religioso de Jean-Jacques Rousseau
(sob a orientação de Prof. Dr. José Óscar de Almeida Marques), São Paulo, Campinas, 2014. Disponível em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000937876 (consultado em 21/1/2016).
Nesta dissertação, o autor discute a presença do olhar rousseauniano dirigido à natureza, sobretudo no
contexto da Profession de Foi e procura mostrar que, ao voltar-se para a natureza, Rousseau encontra na
ordem aí existente o fundamento do seu pensamento filosófico e religioso. 365 “Voyez le spectacle de la nature, écoutez la voix intérieur. Dieu n’a-t-il pas tout dit à nos yeux, à notre
conscience, à notre jugement ? Qu’est-ce que les hommes nous diront de plus ?” (PF, OC IV, p. 607).
171
reconhece o Ser da Natureza, responsável pela criação e manutenção da ordem una do
Universo, Ser que se sente no coração e se pensa com as ideias de inteligência, poder,
vontade, bondade:
“Não vos esqueçais que eu não procuro ensinar o meu sentimento, apenas o exponho. Que a
matéria seja eterna ou criada, que tenha ou não um princípio passivo, certo é sempre que o todo é um todo
e anuncia uma inteligência única; porque não vemos nada que não esteja ordenado no mesmo sistema, e
que não concorra para o mesmo fim, a saber: a conservação do todo na ordem estabelecida. A esse Ser
que quer e pode, esse Ser activo por ele mesmo, esse Ser, enfim, qualquer que ele seja, que move o
universo e ordena todas as coisas, chamo-lhe Deus. Junto a esse nome as ideias de inteligência, de poder,
de vontade que reuni, e a da bondade, que delas se segue necessariamente […].”366
Deus é “sumamente bondoso”, “sumamente justo” (PF, p. 588), o único capaz
da máxima virtude. Está infinitamente além do homem; é a consciência que fala a sua
linguagem.
A imaginação é o terceiro e não menos importante recurso para uma boa
observação da natureza humana. A observação do estado de natureza é feita a partir do
estado de civilização, mas não fica por aí. O olhar é de longo alcance, tem de ser dirigido
até ao estado de natureza, e não havendo possibilidade de acesso empírico ou concreto a
ele, por não constituir nem um facto científico nem um dado histórico, o alcance desta
visão será somente possível por meio do recurso à imaginação. Observar a estátua de
Glauco e, por conseguinte, a natureza humana a partir da civilização, mas afastando-se
dela, implica regras e cuidados para que não se confundam os dois estados nem se remeta
para o estado de natureza qualquer que seja a característica que pertence já só ao estado
de civilização.
É pelo modo de ver e de observar a natureza humana, recorrendo à imaginação,
(e pela consequente descrição que dali resulta) que Rousseau mais diz destacar-se dos
filósofos. Estes, por não terem tido em conta os requisitos necessários à observação, e
por não terem dado a devida relevância à imaginação, não terão conseguido chegar ao
366 “Souvenez-vous toujours que je n’enseigne point mon sentiment, je l’expose. Que la matière soit éternelle ou créée, qu’il y ait un principe passif ou qu’il n’y en ait point, toujours est-il certain que le tout
est un tout, et annonce une intelligence unique ; car je ne vois rien qui ne soit ordonné dans le même
système et qui ne concoure à la même fin, savoir la conservation du tout dans l’ordre établi. Cet Être qui
veut et qui peut, cet Être actif par lui-même, cet Être, enfin, quel qu’il soit, qui meut l’univers et ordonne
toutes choses, je l’appelle Dieu. Je joins à ce nom les idées d’intelligence, de puissance, de volonté que
j’ai rassemblées, et celle de bonté qui en est une suite nécessaire […].” (ibid., p. 581).
172
genuíno e primeiro estado de natureza, ficando-se pelos povos selvagens, o que não é o
mesmo:
“Daí surgiram os primeiros deveres da civilidade, mesmo entre os Selvagens […] e foi por não
terem distinguido suficientemente as ideias e notado como esses povos já estavam longe do primeiro
estado de natureza, que muitos se apressaram a concluir que o homem é naturalmente cruel e tem
necessidade de polícia para abrandá-lo, enquanto nada é tão doce quanto ele no seu estado original
[…].”367
Da observação rousseauniana da natureza humana resultam sérias consequências
que marcam e configuram toda a sua obra e pensamento, nas diferentes questões
inerentes à temática da felicidade humana, sejam políticas, éticas, educacionais ou
sociais. Fixemo-nos na temática política e vejamos como a observação rousseauniana da
natureza humana está na base das suas respostas a questões fundamentais, demarcando-
se definitivamente de outros filósofos. Centremo-nos em algumas dessas questões,
contrapondo Rousseau a Aristóteles, Hobbes e Locke. Com que fundamento decidem os
homens viver numa sociedade política? Por que razões abandonam os homens o seu
estado de natureza para darem lugar ao estado de civilização? O que os leva a
submeterem-se ao Estado? O que leva os homens à saída do estado apolítico da natureza
e ao ingresso no estado político e civil da civilização? Qual é a origem e quais são as
finalidades do Estado?
Para Rousseau, a resposta a todas estas questões depende do modo como se
observa a natureza humana e como se processa a passagem do estado de natureza para o
estado civilizado. No que respeita a esta passagem e à origem do Estado, Rousseau
discorda da perspectiva naturalista de Aristóteles e, apesar de ser um contratualista,
demarca-se também das perspectivas de outros contratualistas, nomeadamente de
Hobbes e Locke.
É sabido que, para Aristóteles, o ser humano tem uma tendência natural para a
associação e para o estabelecimento de normas de convivência e, assim, a Cidade368
,
reguladora da vida dos homens em comunidade, resultaria da própria natureza humana.
367 “De là sortent les premiers devoirs de la civilité, même parmi les Sauvages […] et c’est faute d’avoir suffisamment distingué les idées, et remarqué combien ces peuples étaient déjà loin du premier état de
Nature, que plusieurs se sont hâtés de conclure que l’homme est naturellement cruel et qu’il a besoin de
police pour l’adoucir, tandis que rien n’est si doux que lui dans son état primitif […].” (D2, seconde
partie, OC III, p. 170). 368 Aristóteles não conhece a figura do Estado, que terá lugar apenas no séc. XVII, mas, sim, a da Cidade,
enquanto comunidade social e politicamente organizada.
173
Na sua obra Política (Πολιτικά), Aristóteles diz-nos que a cidade é “uma daquelas
coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um ser vivo
político”369
. Assim, deverá o homem cumprir a sua tendência natural, até porque todos
os homens visam o bem e, nesse sentido, visam “a comunidade mais elevada de todas e
que engloba todas as outras [e que] visará o maior de todos os bens […] chamada
‘cidade’, aquela que toma a forma de uma comunidade de cidadãos”370
. A perspectiva
aristotélica da política resulta, como em Rousseau, de um modo de observação (dirigida
para o processo natural de associação de um homem a outro), que esclarece com o
leitor: “Neste, como noutros domínios, obteremos a melhor apreciação das coisas se
olharmos para o seu processo natural, desde o princípio”371
. Contudo, a observação
aristotélica, ao contrário da de Rousseau, resultará da perspectiva do homem como
animal político.
Hobbes e Locke observarão a natureza humana de outro modo. Ambos
consideram que o Estado não tem uma origem natural, mas contratual, uma vez que
surge do contrato que se estabelece voluntariamente entre os cidadãos. Rousseau não
discorda, mas a sua observação dita contornos distintos, como sabemos.
No caso de Hobbes, já o referimos anteriormente, a passagem do estado de
natureza para o estado civil resulta da necessidade de um poder comum, que garanta a
segurança e a paz sem o qual os homens viveriam na irremediável instabilidade de uma
“guerra de todos os homens contra todos os homens”372
, pois, movido por uma natureza
agressiva e egoísta, o homem é o lobo do homem (homo homini lupus373
). Ora, esta
observação da natureza humana nada tem em comum com a de Rousseau, que vê a
bondade originária, a inocência e a paz como os traços naturais característicos do
homem.
Já Locke observa o estado de natureza de modo diferente, vendo aí um estado
aprazível onde cada homem vive em igualdade e liberdade, devendo apenas respeitar a
lei natural. Locke formula a questão que importa: “[…] por que razão [o homem]
renunciará à sua liberdade? Por que razão cederá o seu império e se submeterá ao
369 ARISTÓTELES, Πολιτικά Tr. Port. Política, ed. bilingue, trad. António Campelo Amaral e Carlos
Gomes, Lisboa, Ed. Veja, 1998, 1253ª3, p. 53. 370 Ibid., 1252ª5, p. 49. 371 Ibid., 1252a25, p. 51. 372 HOBBES, Thomas, Leviathan, Tr. Port. op. cit., cap. XIII, p. 112. 373 Hobbes terá adoptado a expressão de Plauto.
174
domínio e ao controlo de outro poder qualquer? […]”374
. E na resposta a estas questões,
enuncia os três aspectos inexistentes no estado de natureza, que só o estado civil
fornece: “Em primeiro lugar, carece de um sistema de direito estabelecido com firmeza
e conhecido por todos […] Em segundo lugar, no estado de natureza não existe um juiz
conhecido e imparcial [pois] nesse estado cada homem é, simultaneamente, intérprete e
executor da lei da natureza […] Em terceiro lugar, no estado de natureza raramente
existe um poder capaz de apoiar e de suster as sentenças justas, bem como de as
executar devidamente […]”375
. As carências do estado de natureza só podem, pois, ser
colmatadas pelas características do estado civil, numa sociedade organizada
politicamente. Rousseau demarca-se também da observação lockiana da natureza
humana e do modo como aquele vê a passagem do estado de natureza para o estado civil
baseada na incerteza respeitante à aplicação arbitrária da lei natural.
A acusação rousseauniana a qualquer destes filósofos é a de não terem recorrido
à imaginação, que os levaria a não confundir o estado de natureza com o estado de
civilização e a não cometer o erro de transportar, para o primeiro estado, características
que só pertencem a este último. Rousseau contrapõe uma nova observação: a
observação da natureza humana que se desenrola a partir da estátua de Glauco e, em
particular, do estado de natureza. Uma observação que exige e implica os seguintes
instrumentos ou recursos que temos vindo a apresentar: um ver que é simultaneamente
um pensar e um sentir, ou seja, a adopção da visão dupla da razão e do coração; uma
consciência orientada (educada) para se ouvir a si mesma e o recurso à imaginação. É
pensando e sentindo, ouvindo a consciência, conjecturando e ficcionando, que Rousseau
chega ao estado que talvez nunca tenha existido.
Centremo-nos agora nos alertas. Em diferentes textos, o filósofo alerta para a
importância das regras da observação a ter em conta. Em Émile, o autor faz a ponte com o
Du Contrat Social, no qual serão apresentados os princípios do direito político, assumidos
como a escala da observação. Quanto mais justos forem os princípios políticos, isto é,
quanto mais convierem à natureza do género humano, tanto mais justa e feliz será a
sociedade. Neste sentido, é preciso, mais uma vez, remontar ao originário estado de
natureza. Só na observação deste estado se perceberá o que é natural ao homem e o que
melhor lhe convém: se é a liberdade ou a escravatura; se é a igualdade ou a desigualdade;
374 LOCKE, John, Second Treaty of Government (1689), Tr. Port. Segundo Tratado do Governo, trad.
Carlos E. Pacheco Amaral, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 143. 375 Ibid., pp. 143-145.
175
se é a independência ou a associação; se é o direito natural ou o direito político. E para
isso é preciso criar regras para a observação:
“Antes de observar, é necessário fazer regras para as suas observações: é necessário fazer-se uma
escala para a ela referir as medidas que se tomam. Os nossos princípios do direito político são esta escala. As
nossas medidas são as leis políticas de cada país. Os nossos elementos são claros, simples, tomados
imediatamente na natureza das coisas. Eles formar-se-ão a partir dos assuntos discutidos entre nós e não os
converteremos em princípios senão quando estiverem suficientemente resolvidos. Por exemplo, remontando
primeiro ao estado de natureza, examinaremos se os homens nascem escravos ou livres, associados ou
independentes, se eles se reúnem voluntariamente ou pela força; se alguma vez a força que os reúne pode
formar um direito permanente, pelo qual essa força anterior obriga, mesmo quando é suplantada por uma
outra […].”376
A observação da natureza humana terá de ser correcta, pois será nesta que
assentarão todas as restantes observações (sociais, políticas, morais, educacionais). É
preciso, diz Rousseau, tomar precauções, quer em relação àquele que vê, quer em relação
à imagem que é vista:
“[…] os estabelecimentos humanos parecem, à primeira vista, fundados sobre pequenos montes de
areia movediços: não é senão examinando-os de perto, não é senão depois de ter tirado a poeira e a areia que
rodeiam o edifício, que se percebe a base inabalável sobre a qual foi elevado, e que se aprende a respeitar os
seus fundamentos.”377
Para além do vasto alcance da observação rousseauniana, o filósofo ressalva ainda
a importância do reconhecimento claro do objecto a observar. Para que a observação
resulte num conjunto de dados fidedignos a ter em conta é preciso clarificar de antemão
qual vai ser o alvo de observação. A observação regrada distingue o que se pode
efectivamente observar daquilo que apenas se pode perspectivar, sem que se opte pelo
investimento na observação ambiciosa que vai além das limitações da vista que observa,
como, por exemplo, na reflexão sobre o Estado:
376 “Avant d’observer, il faut se faire des règles pour ses observations: il faut se faire une échelle pour y
rapporter les mesures qu’on prend. Nos principes du droit politique sont cette échelle. Nos mesures sont
les lois politiques de chaque pays. Nos éléments sont clairs, simples, pris immédiatement dans la nature
des choses. Ils se formeront des questions discutées entre nous, et que nous ne convertirons en principes
que quand elles seront suffisamment résolues. Par exemple, remontant d’abord à l’état de nature, nous
examinerons si les hommes naissent esclaves ou libres, associes ou indépendants, s’ils se réunissent
volontairement ou par force; si jamais la force qui les réunit peut former un droit permanent, par lequel cette force antérieure oblige, même quand elle est surmontée par une autre […].” (É, livre V, OC IV, p.
837). 377 “[…] les établissements humains paraissent au premier coup d’œil fondés sur de monceaux de sable
mouvant: ce n’est qu’en les examinant de près, ce n’est qu’après avoir écarté la poussière et le sable qui
environnent l’édifice, qu’on aperçoit la base inébranlable sur laquelle il est élevé, et qu’on apprend à en
respecter les fondements.” (D2, préface, OC III, p. 127).
176
“Após ter enunciado os princípios do direito político e procurado fundar o Estado sobre a sua
base, restaria apoiá-lo pelas suas relações externas: o que compreenderia o direito das gentes, o comércio,
o direito da guerra e as conquistas, direito público, as ligas, as negociações, os tratados, etc. Mas tudo isso
forma um novo assunto vasto demais para a minha curta vista […].”378
O segundo alerta respeita ao direccionamento correcto do olhar capaz de
salvaguardar a proficuidade e a eficácia da observação. Não se observa o estado de
natureza sem ser a partir do estado de civilização nem se observa devidamente o estado
de civilização sem se considerar o estado de natureza. Todavia, na observação de um e
de outro, o observador não pode confundir os dois. O olhar deve ser dirigido para o que
o homem é para saber o que ele deve ser. Do mesmo modo, é preciso olhar o horizonte
do que deve ser para compreender o que é:
“O direito político está ainda por nascer […]. O único moderno capaz de criar esta grande e
inútil ciência teria sido o ilustre Montesquieu. Mas ele não teve a intenção de tratar do direito positivo dos
governos estabelecidos; e nada no mundo é mais diferente do que estes dois estudos. Aquele, portanto,
que quer julgar de forma sã os governos tais como eles existem é obrigado a reunir ambos; é necessário
saber o que deve ser para bem julgar o que é.”379
Rousseau dá também importância ao direccionamento do olhar no que diz
respeito ao esclarecimento e delimitação das próprias questões a reflectir. Por exemplo,
o Discours 50 começa por identificar desde logo a questão da Académie de Dijon,
acrescentando a disjunção exclusiva que faltava, para uma melhor
identificação/visualização da questão em análise e cuja resposta determinará o caminho
da reflexão: “o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar ou380
corromper os costumes[?]”381
.
Também no Discours de 55, Rousseau investe no mesmo sentido:
378 “Après avoir posé les vrais principes du droit politique et tâché de fonder l’État sur sa base, il resterait
à l’appuyer par ses relations externes; ce qui comprendrait le droit des gens, le commerce, le droit de la
guerre et les conquêtes, le droit public, les ligues, les négociations, les traités, etc. Mais tout cela forme
un nouvel objet trop vaste pour ma courte vue […].” (CS, IV, 9, “conclusion”, OC III, p. 470). 379 “Le droit politique est encore à naître […]. Le seul moderne en état de créer cette grande et inutile
science eut été l’illustre Montesquieu. Mais il n’eut garde de traiter des principes du droit positif des
gouvernements établis, et rien au monde n’est plus différent que ces deux études. Celui pourtant qui veut juger sainement des gouvernements tels qu’ils existent est obligé de les réunir toutes deux; il faut savoir
ce qui doit être pour bien juger ce qui est.” (É, livre V, OC IV, pp. 836-837). Os itálicos da última
afirmação são nossos. 380 Optámos pelo itálico, de modo a enfatizar a disjunção. 381 “Le rétablissement des Sciences et des Arts a-t-‘il contribué à épurer ou à corrompre les Mœurs [?]
Voilà ce qu’il s’agit d’examiner.” (D1, préface, OC III, p.5).
177
“Comecei por alguns raciocínios, arrisquei algumas conjecturas, menos na esperança de resolver
a questão do que na intenção de a esclarecer e de a reduzir ao seu verdadeiro estado.”382
Circunscrever o âmbito da questão com rigor torna-a profícua e eficaz. Mais
importante do que a resolução dos problemas do seu tempo é o esclarecimento da sua
observação. Se a observação for bem conduzida, atenta e completa, os resultados da
mesma abrirão caminho para a sua resolução, ainda que aqueles não constituam em si
mesmos uma solução final dos problemas.
A observação implica seleccionar a questão que se pretende esclarecer e observar,
bem como circunscrever o âmbito da questão escolhida. Relativamente à observação do
homem que, nascendo livre, se encontra a ferros e aprisionado às especificidades do
estado de civilização, Rousseau enuncia a questão que importa à aferição dos princípios
do direito político:
“Aquele que se crê dono dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles. Como é que esta
mudança se deu? Ignoro-o. O que é que a torna legítima? Creio poder resolver esta questão. Se eu
considerasse tão-somente a força e o efeito que dela deriva, diria: enquanto um povo é constrangido a
obedecer e obedece, faz bem; mal possa sacudir o jugo e o sacode, faz ainda melhor, porque, recuperando
a sua liberdade pelo mesmo direito que lha havia arrebatado, ou ele tem fundamento para a retomar, ou
não havia fundamento para lha tirar.”383
O autor investe na observação da natureza humana, de modo a ver e dar a ver o
homem desnudado das vestes sociais, independentemente das circunstâncias históricas e
geográficas, para o conseguir compreender e proceder aos ajustes e alterações que
deverá ter em conta, enquanto membro da sociedade, enquadrado na organização social
e política. Rousseau propõe-se fazê-lo e pretende colmatar esta lacuna que impede os
homens de se reconhecerem na sua universal e idêntica natureza e de empreenderem
instituições sociais, políticas e culturais, a partir do indispensável reconhecimento da
sua natureza.
Na observação do estado de natureza, o filósofo deixa, assim, de parte todos os
livros científicos, dispensa as perspectivas dos que já a procuraram observar, e adopta a
382 “J’ai commencé quelques raisonnements; j’ai hasarde quelques conjectures, moins dans l’espoir de
résoudre la question que dans l’intention de l’éclairer et de la réduire à son véritable état.” (D2, préface,
OC III p.123). 383 “Tel se croit le maître des autres, qui ne laisse pas d’être plus esclave qu’eux. Comment ce
changement s’est-il fait? Je l’ignore. Qu’est-ce qui peut le rendre légitime? Je crois pouvoir résoudre cette
question. Si je ne considérais que la force, et l’effet qui en dérive, je dirais; tant qu’un Peuple est
contrainte d’obéir et qu’il obéit, il fait bien, sitôt qu’il peut secouer le joug et qu’il le secoue, il fait encore
mieux; car, recouvrant sa liberté par le même droit qui la lui a ravie, ou il est fondé à la reprendre, ou l’on
ne l’était point à la lui ôter.” (CS, I, 1, OC III, pp. 351-352).
178
sua própria visão, dupla, mas una, que pensa e sente em uníssono, recorrendo ainda à
imaginação para conseguir ouvir a voz da consciência que fala a linguagem divina da
natureza.
Como sabemos, a primeira parte do Discours de 55 contém a descrição exaustiva
do homem natural. Já aí, na impossibilidade de recursos históricos ou científicos, no
impedimento da memória, é pensando com a imaginação e pelo sentimento que
Rousseau consegue chegar ao estado de natureza, esse estado hipotético-sensitivo-
imaginário que será ainda preciso ver/pensar/sentir em inúmeras passagens de Émile e
que persiste como alicerce de Du Contrat Social.
Nos textos autobiográficos, será ainda a imaginação que, mais do que a
memória, o levará a descrever tão exaustivamente episódios da sua vida, numa tentativa
levada ao limite de restituição do seu “eu” que é também o “outro” a ver e a ver-se. As
Confessions e as Rêveries mostram autobiograficamente o que o Discours de 55
mostrara genealogicamente e todos aqueles textos servem o mesmo método filosófico: o
da reflexão conjectural, pois o passado não se reconstrói a partir da reprodução
memorativa dos factos vivenciados, reconstruindo-se muito mais pela imaginação,
ficção e conjectura.
Contudo, e mais uma vez, Rousseau não fornece claras indicações de como deve
ser feito o recurso à imaginação, ou melhor, não dá forma sistemática a esta operação.
Mas, mais uma vez também, parece-nos ser possível, numa hermenêutica de inspiração
schleiermacheriana, dar a ver como é que a intervenção da imaginação ocorre no
processo de observação da natureza humana. Do mesmo modo, interessa-nos perceber
como e se pode essa observação conjectural e ficcional ficar registada na memória
individual e colectiva dos homens, de modo a promover uma melhoria na sua interacção
social.
Rousseau pretende aferir qual e como é a natureza originária do homem,
dedicando-se à observação do estado de natureza, esse estado que talvez nunca tenha
existido, mas que é preciso lembrar e imaginar. É precisamente sobre o papel e a função
da memória e da imaginação no processo de observação que versa o próximo sub-
capítulo.
179
IV.2. O papel e a função da memória e da imaginação no processo de observação
“Les philosophes qui ont examiné les fondements de la société, ont tous senti la nécessité de remonter
jusqu’à l’état de Nature, mais aucun d’eux n’y est arrivé.”
(ROUSSEAU, J.-J., Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, première
partie, OC III, 1964, p. 132)
Não sendo o estado de natureza visível ao olho humano, e consistindo num estado
que pode até não ter existido, torna-se evidente a importância dos recursos, instrumentos e
estratégias a utilizar nessa observação. A imaginação tem um papel fundamental neste
processo. A observação não pode basear-se em factos históricos, dado os “testemunhos
incertos da história” (D2, I, p. 144); pelo contrário, trata-se de observar um estado
conjectural, ficcional, a simultaneamente pensar, sentir e imaginar.
A descrição do estado de natureza resulta do trabalho da imaginação, e não de
uma memória colectiva da história dos homens, impossibilitados da recordação de um
passado cuja existência foi incerta. Gouhier refere aquele estado como uma hipótese de
trabalho: “O estado de natureza do qual o conhecimento do homem actual requer noções
correctas não está nem à frente nem atrás de nós; não é o nome nem de uma história
inicial nem de uma época pré-histórica; não pertence à série de eventos que, mesmo
velados, tecem, tecerão ou teceram a realidade histórica: é simplesmente extra-histórico.
Como tal, não é resultado de uma narrativa, mas constitui uma hipótese de trabalho
[…]”384
.
Concordamos com Gouhier, aceitando que o estado de natureza constitui uma
hipótese de trabalho, no sentido em que consiste no suporte das reflexões rousseaunianas,
nas suas diferentes áreas, como já tivemos oportunidade de ver. Mas não é extra-histórico,
uma vez que, mesmo sem provas de ter existido, o estado de natureza resulta de uma
genealogia regressiva que, não sendo literalmente histórica, tem em conta a realidade
civilizacional actual em cada momento. É preciso, em cada época, despir os homens das
suas vestes sociais e civilizacionais para que se chegue ao estado de natureza. Esse
desnudamento é circunstanciado, não é idêntico em todos os lugares e tempos históricos.
Remontar ao estado de natureza corresponde invariavelmente à descrição das
384 “L’état de nature dont la connaissance de l’homme présente requiert des ‘notions justes’ n’est ni devant
nous ni derrière nous; il n’est le nom ni d’une histoire anticipée ni d’une époque préhistorique; il
n’appartient pas à la série des faits qui, même voilés, tissent ou tisseront ou ont tissé la réalité historique: il
est, tout simplement, extra-historique. Comme tel il ne relève pas d’un récit mais constitue une hypothèse de
travail. […].” (GOUHIER, Henry, Les méditations méthaphysiques de Rousseau, op. cit., p. 13).
180
características do estado pré-moral e pré-racional, estado que antecede o estado de
civilização. O que varia é o processo de despir a estátua de Glauco, processo distinto de
tempo para tempo e de lugar para lugar, uma vez que os seus ornamentos correspondem
ao estado de evolução civilizacional de cada época. Para aceder à imagem do estado de
natureza em pleno séc. XXI, teríamos de, por exemplo, afastar de Glauco todos os novos
revestimentos resultantes do desenvolvimento tecnológico; seria preciso desnudar o
homem dos computadores, das máquinas, da realidade internética que o envolve e cujo ar
já respira como se fosse naturalmente seu.
Rousseau não nos diz expressamente, nem num só momento, quais são os
instrumentos e os recursos a ter em conta no processo de observação, mas vai dizendo,
ao longo dos seus textos, que para ver o estado de natureza é necessária, para além da
razão e do coração, do pensar e do sentir, a imaginação385
e a memória, tendo aquela um
papel predominante sobre esta última. A observação implica ainda um movimento duplo:
trata-se, por um lado, de um olhar introspectivo que se pretende ver a si mesmo e, por
outro, de “lembrar” um passado, recordação necessária para a compreensão do presente,
bem como para a perspectivação do futuro. Um passado ao qual não se acede
factualmente, mas que resulta do que a memória aliada à imaginação criadora consegue
reproduzir. E o que é reproduzido é a verdade que importa, quer individual, na recriação
de diversas situações de uma vida, quer no relato da genealogia dos homens, na descrição
do estado de natureza e da sua passagem e evolução para e no estado de civilização. E
tanto num caso, como no outro, trata-se de salvaguardar a universalidade e a verdade que
importa.
Dirão os objectivistas que a verdade sobre algo que não pode ser objectivado não é
considerada verdade. Acerca da possibilidade do conhecimento da natureza humana,
dirão também que o observador que se observa a si mesmo não é capaz de uma
observação objectiva. O problema da sinceridade foi já amplamente discutido no que
respeita sobretudo aos textos das Confessions e das Rêveries. Jorge de Sena ressalva no
prefácio à tradução portuguesa daquela primeira obra que “para confessar-se, a pessoa
divide-se em duas, e uma delas mente”386
. O mesmo autor distingue sinceridade de
385 A propósito da relação entre a observação e imaginação no pensamento rousseauniano, leia-se esta
interessante reflexão sobre a presença da imaginação no processo de observação: KUNTZ, Rolf Nelson,
“Observação e imaginação na teoria de Rousseau”, in Discurso, São Paulo, n. 3, pp. 67-78, 1972. Disponível
in: http://www.fflch.usp.br/df/site/publicacoes/discurso/pdf/D03_Observacao_e_Imaginacao.pdf (consultado
em 23/06/2017). 386 SENA, Jorge de, “prefácio”, in ROUSSEAU, J.-J., Confissões, vol. I, op. cit., p. 15.
181
confessionismo e ainda sinceridade (distinguindo aqui sinceridade estética de sinceridade
humana e individual) de honestidade, considerando que “o importante não é a impossível
sinceridade, mas a honestidade de propósitos”387
. A questão da sinceridade não é a mesma
que a da honestidade e nenhuma destas é o mesmo que verdade. O facto de Rousseau
proceder assumidamente a acréscimos nos seus relatos, recorrendo à imaginação e à
conjectura, nada põe em risco a verdade, uma vez que conta o que sabe e nada afirma sem
que considere ser verdade:
“O filósofo não se atribuirá como saber a verdade: ele procura-a; examina, argumenta, estende os
nossos pontos de vista, instrui-nos mesmo enganando-se; propõe as suas dúvidas como dúvidas, as suas
conjecturas como conjecturas, e não afirma nada que não saiba.”388
Rousseau mostra como a “chamada ‘verdade’ nem sempre é a que se supõe, ou
não é fácil de encontrar, nem, quando encontrada, fácil de dizer”389
. O papel da memória
é o de limitar a imaginação. A imaginação complementa a memória. A função comum a
ambas é precisamente a de, não só encontrar a verdade da natureza humana, como ainda
ajudar a dizê-la:
“Escrevi as minhas Confessions já velho e enfastiado com os vãos prazeres da vida que
superficialmente conhecera, mas cujo vazio o meu coração sentira. Escrevi-as de memória; esta memória
falhava-me muitas vezes ou não me fornecia senão recordações imperfeitas, e eu preenchia as lacunas
com pormenores que imaginava para complementar essas recordações, mas que nunca lhes eram
contrários. Gostava de me alongar sobre os momentos felizes da minha vida, embelezando-os por vezes
com ornamentos que provinham de ternas saudades. Dizia as coisas que tinha esquecido como me parecia
que deviam ter acontecido, como talvez tivessem acontecido, nunca ao contrário das minhas recordações.
Às vezes, conferia à verdade encantos que lhe eram estranhos, mas jamais coloquei a mentira no lugar da
verdade para dissimular os meus vícios ou para me arrogar virtudes.”390
387 Ibid., p. 12 388 “Le philosophe ne se donnera pas pour savoir la vérité: il la cherche; il examine, il discute, il étend nos
vues, il nous instruit même en se trompant; il propose ses doutes pour des doutes, ses conjectures pour des
conjectures, et n’affirme que ce qu’il sait.” (“De l’imitation théatrale”, in Appendices, OCV, p.1204). 389 SENA, Jorge de, “prefácio”, op. cit., p. 12. 390 “J’écrivais mes Confessions déjà vieux, et dégouté des vains plaisirs de la vie que j’avais tous
effleurés, et dont mon cœur avait bien senti le vide. Je les écrivais de mémoire; cette mémoire me
manquait souvent ou ne me fournissait que des souvenirs imparfaits et j’en remplissais les lacunes par des
détails que j’imaginais en supplément de ces souvenirs, mais qui ne leur étaient jamais contraires. J’aimais m’étendre sur les moments heureux de ma vie, et je les embellissais quelquefois des ornements
que de tendres regrets venaient me fournir. Je disais les choses que j’avais oubliées comme il me semblait
qu’elles avoient dû être, comme elles avoient été peut-être en effet, jamais au contraire de ce que je me
rappelais qu’elles avoient été. Je prêtais quelquefois à la vérité des charmes étrangers, mais jamais je n’ai
mis le mensonge à la place pour pallier mes vices, ou pour m’arroger des vertus.” (R, quatrième
promenade, OC I, pp. 1035-1036).
182
Mas como define Rousseau uma e outra? Quanto à memória, encontramos uma
boa referência sobre a mesma no Manuscrit Favre do Émile. Aqui, a memória é
apontada como sendo mais viva nas crianças, as quais mais facilmente tornam o
passado presente sem, contudo, estarem aptas a utilizá-la na sua potencialidade
preventiva e correctiva:
“Sendo a memória uma faculdade que as crianças têm em toda a sua força, tudo o que se lhes
reporta ao passado é-lhes também presente, e mais do que em nós. Confrontadas a ler o futuro, elas não
saberão prever as consequências das coisas, e quando desrespeitam os seus compromissos não fazem nada
em razão da sua idade.”391
O excerto anterior remete-nos para a importância da memória, não só em relação
ao passado, mas, principalmente, em relação ao futuro. Na verdade, a observação que
Rousseau empreende da natureza humana e da sua própria vida recorre à memória, que,
aliada à imaginação, procura restituir um passado, não tanto para o trazer para o
presente, mas para fazer a diferença no futuro. Não se trata de uma memória preenchida
com dados precisos da história dos homens, nem exclusivamente preenchida com
estórias concretas da sua vida, mas antes de uma memória introspectiva que, num
exercício de subjectividade, indaga pelo conhecimento da natureza humana e pelo auto-
conhecimento do próprio Jean-Jacques Rousseau, nos textos tardios. Nesse processo,
vimos já a importância que o autor dá à visão.
A publicação da Lettre sur les aveugles à l’usage de ceux qui voient de Diderot
marcou profundamente Rousseau. No final do livro II das Confessions, a Lettre é
referida como a causa principal da detenção de Diderot, contra a qual Rousseau se
insurgiu firmemente:
“Este empreendimento da Enciclopédia foi interrompido pela sua prisão.392 Os Pensamentos
Filosóficos tinham-lhe valido alguns desgostos que não tiveram consequências. Não foi o mesmo com a
Carta sobre os Cegos, que nada de repreensível continha, a não ser algumas características pessoais, que
chocaram Madame Dupré de Saint-Maur e M. de Réaumur, e graças aos quais o meteram na Torre de
Vincennes. Nada poderá jamais descrever as angústias que me causou a desgraça do meu amigo. A minha
funesta imaginação, que exagera sempre o mal, exasperou-se. Acreditei que ele ficasse aí para o resto da
vida. Quase que me transtornava o juízo. Escrevi a Madame de Pompadour, para lhe suplicar que o
391 “La mémoire étant une faculté que les enfants ont dans toute sa force, tout ce qui se rapporte au passé
leur est aussi présent et plus qu’à nous. Mais hors d’état de lire dans l’avenir, ils ne sauraient prévoir les
conséquences des choses et quand ils violent leurs engagements ils ne font rien contre la raison de leur
âge.” (É, Manuscrit Favre, OC IV, p. 110). 392 Rousseau refere-se à detenção de Diderot, no ano que antecede a publicação do Discours de 50, no
Verão de 1749.
183
mandasse soltar, ou conseguir que me encarcerassem com ele. Não obtive nenhuma resposta à minha
carta: era muito pouco razoável para ser eficaz, e não me gabo de que ela houvesse contribuído para a
suavização operada algum tempo depois no cativeiro do pobre Diderot. Mas se tivesse durado mais algum
tempo com o mesmo rigor, creio que teria morrido de desespero ao pé daquela infeliz Torre. De resto, se
a minha carta produziu pouco efeito, eu também não me vangloriei, porque só a raríssimas pessoas falei
dela, e nunca ao próprio Diderot.”393
É bem conhecida a inspiração recebida durante o caminho para a prisão de
Vincennes, no intuito de visitar o amigo Diderot. Leia-se esta passagem extraída da
primeira das quatro cartas a Malesherbes, que relata a clarividência com que foi
privilegiado, sobretudo numa pausa, debaixo de uma árvore (fazendo lembrar o
momento da grande inspiração cartesiana), que determinou o sentido comum da
redacção dos Discours de 50 e de 55, bem como do Émile:
“Oh Senhor, se alguma vez pudesse escrever uma quarta parte do que vi e senti debaixo daquela
árvore, com que claridade teria mostrado todas as contradições do sistema social, com que força teria
exposto todos os abusos das instituições, com que facilidade teria demonstrado que o homem é bom por
natureza e que só por essas instituições se torna mau. Tudo o que pude reter daquela profusão de grandes
verdades que num quarto de hora me iluminaram debaixo dessa árvore ficou bem dispersado nos meus
três escritos principais, a saber: o primeiro discurso, o outro sobre a desigualdade e o tratado sobre a
educação, aquelas três obras são inseparáveis e formam no seu conjunto um mesmo todo.”394
Mas vejamos o que Rousseau escreve em relação à Lettre sur les aveugles.
Enquanto Diderot chama a atenção para os cegos, que não vêem por ausência de visão,
causada por uma disfuncionalidade físico-biológica que impede a função do órgão e o
393 “Cette entreprise de l’Encyclopédie fut interrompue par sa détention. Les Pensées Philosophiques lui
avaient attiré quelques chagrins qui n’eurent point de suite. Il n’en fut pas de même de la Lettre sur les
Aveugles, qui n’avait rien de répréhensible que quelques traits personnels, dont Mme Dupré de Saint-Maur et M. de Réaumur furent choqués, et pour lesquels il fut mis au Donjon de Vincennes. Rien ne
peindra jamais les angoisses que me fit sentir le malheur de mon ami. Ma funeste imagination, qui porte
toujours le mal au pis, s’effaroucha. Je le crus là pour le reste de sa vie. La tête faillit à m’en tourner.
J’écrivis à Mme de Pompadour pour la conjurer de le faire relâcher, ou d’obtenir qu’on m’enfermât avec
lui. Je n’eus aucune réponse à ma lettre: elle était trop peu raisonnable pour être efficace, et je ne me flatte
pas qu’elle ait contribué aux adoucissements qu’on mit quelque temps après à la captivité du pauvre
Diderot. Mais si elle eût duré quelque temps encore avec la même rigueur, je crois que je serais mort de
désespoir au pied de ce malheureux Donjon. Au reste, si ma lettre a produit peu d’effet, je ne m’en suis
pas, non plus, beaucoup fait valoir; car je n’en parlai qu’à très peu de gens, et jamais à Diderot lui-
même.” (C, livre VII, OC I, p. 348) 394 “Oh Monsieur si j’avais jamais pû écrire le quart de ce que j’ai vû et senti sous cet arbre, avec quelle
clarté j’aurais fait voir toutes les contradictions du système social, avec quelle force j’aurais exposé tous les abus de nos institutions, avec quelle simplicité j’aurais démontré que l’homme est bon naturellement
et que c’est par ces institutions seules que les hommes deviennent méchants. Tout ce que j’ai pu retenir de
ces foules de grandes vérités qui dans un quart d’heure m’illuminèrent sous cette arbre, a été bien
faiblement épars dans les trois principaux de mes écrits, savoir ce premier discours, celui sur l’inégalité,
et le traité de l’éducation, lesquels trois ouvrages sont inséparables et forment ensemble un même
tout.” (Deuxième Lettre à Malesherbes, OC I, pp. 1135-1136).
184
sentido da visão, Rousseau, sem o contradizer, reforça os perigos da cegueira dos que,
podendo ver, não vêem. Diderot aponta os sentidos como a marca indelével de qualquer
memória, sendo, no caso do cego, o sentido da visão substituído pelo do tacto: “[…] o
cego de nascença, não podendo colorir, nem, por conseguinte, figurar como nós o
entendemos, não tem memória senão de sensações oriundas do tacto, que reporta a
diferentes pontos, lugares ou distâncias, e com as quais compõe as figuras”395
. Privado
da recordação do que já viu, precisamente porque não chegou a ver, o cego não possui a
memória da cor, estando também impossibilitado de imaginar figuras coloridas: “o cego
reporta tudo à extremidade dos seus dedos [combinando] pontos palpáveis [e não
coloridos], ou, para falar com maior exactidão, sensações do tacto de que tem memória
[…] ele não imagina, pois, para imaginar, é preciso colorir um fundo e destacar desse
fundo pontos, atribuindo-lhes cores diferentes da do fundo”396
. Mas a vidência é
possível, tanto em quem pode ver, como no cego, pois resulta do sentido interno e da
faculdade de sentir, que ambos possuem, até de um modo mais forte por quem se
encontra privado de visão, desde a nascença: “Não conheço nada que melhor demonstre
a realidade do sentido interno do que essa faculdade, fraca em nós, mas forte nos cegos
de nascença, de sentir e de recordar a sensação dos corpos, mesmo quando ausentes e
que já não agem sobre eles. Não podemos fazer com que um cego de nascença entenda
como é que a imaginação nos pinta os objectos ausentes como se estivessem presentes;
mas podemos, em contrapartida, reconhecer em nós a faculdade de sentir na
extremidade de um dedo um corpo que já não esteja em contacto, tal como nos cegos de
nascença”397
.
Tal como Diderot, Rousseau aponta as sensações, mas, sobretudo, os
sentimentos como os mais marcantes conteúdos da memória. Quando Rousseau retoma
a obra das Confessions, após dois anos de interregno, inicia o livro sétimo, a partir do
qual fará incluir excertos da correspondência que se encontra nas suas mãos398
, referida
395 DIDEROT, Denis, Lettre sur les aveugles à l’usage de ceux qui voient (1749), Tr. Port. Carta sobre os
cegos para uso daqueles que vêem, pref., trad. e notas Luís Manuel A. V. Bernardo, Lisboa, Ed. Nova
Vega, 2007, p. 43. 396 Ibid., p. 44. 397 Ibid., p. 45. 398 Leia-se o excerto correspondente: “Il y a cependant, et très heureusement, un intervalle de six à sept ans dont j’ai des renseignements sûr dans un recueil transcrit de lettres dont les originaux sont dans les
mains de M. du Peyrou. Ce recueil, qui finit en 1760, comprend tout le temps de mon séjour à
l’Hermitage et de ma grande brouillerie avec mes soi-disant amis: époque mémorable dans ma vie et qui
fut la source de tous mes autres malheurs. À l’égard des lettres originales plus récentes qui peuvent me
rester, et qui sont en très petit nombre, au lieu de les transcrire à la suite du recueil, trop volumineux pour
que je puisse espérer de les soustraire à la vigilance de mes argus, je les transcrirai dans cet écrit même,
185
como o único auxiliar físico da sua memória. É também aí que Rousseau nos diz que a
sua memória é mais influenciada pelo sentimento do que por quaisquer outros factores,
provas, testemunhos ou registos concretos, mesmo que os houvesse:
“A minha memória, que unicamente me recorda objectos agradáveis, é o feliz contrapeso da
minha imaginação que só me faz prever cruéis destinos. Tendo passado a outras mãos todos os papéis que
havia juntado para me compensarem a memória e guiar-me neste cometimento, nunca mais voltarão às
minhas. Não tenho senão um guia fiel com o qual posso contar: é a cadeia dos sentimentos que
assinalaram a sucessão do meu ser, e graças a eles, a dos acontecimentos que foram a sua causa ou efeito.
Esqueço facilmente as minhas aflições; mas não posso esquecer os meus erros, e ainda menos esqueço os
meus bons sentimentos. A sua recordação é-me por demais cara para jamais se apagar no meu coração.
Posso cometer omissões nos factos, transposições, erros de datas; não posso, porém, enganar-me a
respeito do que senti, nem a respeito daquilo que os meus sentimentos me levaram a fazer; e é disto que
principalmente se trata. O objectivo próprio das minhas confissões é fazer conhecer exactamente o meu
íntimo em todas as situações da minha vida. É a história da minha alma que eu prometi, e para a escrever
fielmente, não necessito de outras memórias: basta-me entrar dentro de mim, como tenho feito até
aqui.”399
As Confessions reúnem o que parece não poder ser reunido: mundo ficcional e
mundo real, memória e imaginação, retrospectiva e perspectiva. Trata-se de reconstruir
um passado, que se encontra retido na memória do presente, cujo protagonista mergulha
em si mesmo, escavando-se até ao limite, vendo e dando a ver. No excerto
lorsqu’elles me paraitront fournir quelque éclaircissement soit à mon avantage, soit à ma charge: car je
n’ai pas peur que le lecteur oublie jamais que je fais mes confessions pour croire que je fais mon
apologie; mais il ne doit pas s’attendre non plus que je taise la vérité lorsqu’elle parle en ma faveur”; “Há,
no entanto, e muito felizmente, um período de seis a sete anos de que tenho informações seguras num
caderno com traslados de cartas cujos originais estão nas mãos de Monsieur du Peyrou. Este caderno, que
acaba em 1760, compreende todo o tempo da minha estada em Hermitage e da minha desavença com os
meus pretensos amigos: época memorável da minha vida, e que foi a origem das minhas restantes
desgraças. Com respeito às cartas originais que me possam restar, e que são em pequeno número, longe de as transcrever no seguimento do caderno, demasiado volumoso para que possa esperar subtraí-las à
vigilância dos meus Argos, transcrevê-las-ei neste próprio escrito, quando me parecerem fornecer
qualquer esclarecimento, quer em meu benefício, quer em meu prejuízo: porque eu não receio que o leitor
esqueça alguma vez que faço as minhas confissões, para crer que faço a minha apologia; mas também não
deve esperar que eu cale a verdade quando esta falar a favor de mim.” (C, livre VII, OC I, pp. 278-279). 399 “Ma mémoire, qui me retrace uniquement les objets agréables, est l’heureux contrepoids de mon
imagination effarouchée, qui ne me fait prévoir que de cruels avenirs. Tous les papiers que j’avais
rassemblés pour suppléer à ma mémoire et me guider dans cette entreprise, passés en d’autres mains, ne
rentreront plus dans les miennes. Je n’ai qu’un guide fidèle sur lequel je puisse compter, c’est la chaîne
des sentiments qui ont marqué la succession de mon être, et par eux celle des évènements qui en ont été la
cause ou l’effet. J’oublie aisément mes malheurs; mais je ne puis oublier mes fautes, et j’oublie encore
moins mes bons sentiments. Leur souvenir m’est trop cher pour s’effacer jamais de mon cœur. Je puis faire des omissions dans les faits, des transpositions, des erreurs de dates; mais je ne puis me tromper sur
ce que j’ai senti, ni sur ce que mes sentiments m’ont fait faire; et voilà de quoi principalement il s’agit.
L’objet propre de mes confessions est de faire connaître exactement mon intérieur dans toutes les
situations de ma vie. C’est l’histoire de mon âme que j’ai promise, et pour l’écrire fidèlement je n’ai pas
besoin d’autres mémoires: il me suffit, comme j’ai fait jusqu’ici, de rentrer au-dedans de moi.” (ibid., p.
278).
186
anteriormente citado, Rousseau refere-se à memória como o contrapeso da imaginação:
enquanto a primeira reporta à felicidade, a segunda antecede a infelicidade. Contudo,
esta relação surge isolada no contexto da sua obra e contraria o espírito do seu
pensamento, porquanto a memória e a imaginação complementar-se-ão com vista à
felicidade, tanto por meio da reconstituição de uma vida e da confissão da sua alma (tal
como Rousseau reiteradamente afirma), como na reconstrução conjectural da genealogia
dos homens.
Trata-se de recordar para melhorar, quer dizer, trata-se do carácter correctivo e
prospectivo da observação que recorre à memória e à imaginação para conhecer os
homens em geral e o homem em particular, com vista a torná-lo(s) melhor(es). Este
objectivo manifesta-se, tanto no relato da alma de Rousseau que, partindo das suas
experiências vivenciais e imaginando os seus pormenores, pretende sair melhor e mais
feliz desta vida que tanto o desapontou (R, 3e, 1023), como na reconstrução imagética
do estado de natureza, o qual talvez nem tenha existido, mas que servirá para melhorar o
estado de civilização. E tanto num como no outro processo, são os sentimentos que
acompanham e ditam o caminho. Esses sentimentos que, próximos da natureza humana,
não erram. A reconstrução do estado de natureza implica o mergulho em si, isto é, um
exercício de subjectividade, no qual os homens se observam e (re)conhecem, no
confronto com o seu estado natural tão distinto do estado de civilização. Tal como, na
reconstrução da sua vida, Rousseau se vê e se conhece na mais íntima subjectividade,
resgatando-se de uma sociedade que acusa de não o ter sabido ver, cujo desfecho será a
reconciliação com a natureza, que considera nunca o ter abandonado, nem na obra, nem
na vida.
A interioridade, a subjectividade e os sentimentos são as medidas da sua
memória. Ao dar ênfase ao sentimento como o grande motor da memória, Rousseau
partilha do sensualismo de Condillac que, no segundo capítulo da primeira parte do seu
Traité des sensations, referindo-se à recordação do odor que a estátua recebeu de um
determinado corpo odorífico, apresenta a memória como uma maneira de sentir: “Há,
portanto, nela duas formas de sentir, que não se distinguem a não ser porque uma se
refere a uma sensação actual, e a outra a uma sensação que já não existe, mas cuja
impressão ainda perdura. Ignorando que há objectos que actuam sobre ela, ignorando
mesmo que tem um corpo; ela geralmente não distingue a recordação de uma sensação
de uma sensação actual, senão apenas ao sentir vagamente o que era, e sentir vivamente
187
o que é”400
. Para Condillac, a estátua é passiva, quando experimenta uma sensação no
momento causada por determinado objecto, e activa, ao recordar uma sensação, sendo a
memória a sua causa. Condillac refere ainda que “o sentimento de uma sensação actual
[poderá] ser bem menos vivo do que a recordação de uma sensação que já não é
mais”401
. Não obstante a originalidade e inovação da confissão e da reconstrução
imagética e imaginária do passado na obra de Rousseau, a memória rousseauniana tem
pontos de contacto com a memória condillaciana. Movida pelos sentimentos (Condillac
destaca os de prazer e dor, de contentamento e descontentamento), a memória não deixa
de ser pensada: “a memória é, pois, um conjunto de ideias, que forma uma espécie de
cadeia”402
. Ora, em Rousseau, a memória é pensada e sentida; os pensamentos têm por
base os sentimentos e os sentimentos oriundos das situações concretas ou imaginárias
dão origem a pensamentos, mas, mais do que isso, os sentimentos e os pensamentos
chegam a confundir-se e a fundir-se, numa obra cuja base de escrita e de reflexão é a
relação inextricável entre a dimensão do pensar e a do sentir. Neste processo, a
imaginação complementa a lacuna da memória e fornece as imagens necessárias à
observação, sendo a do estado de natureza a imagem essencial para a observação da
natureza humana.
Rousseau alia de tal modo a memória à imaginação, que faz parecer uma
confusão saudável entre as duas, demarcando-se de outros filósofos que se esforçaram
por as distinguir. Hobbes, por exemplo, distingue a memória da imaginação, mas tem
nisso dificuldades: “[…] tal como à distância no espaço os objectos para que olhamos
nos aparecem minúsculos e indistintos nos seus pormenores e as vozes se tornam fracas
e inarticuladas, assim também, depois de uma grande distância no tempo, a nossa
imaginação do passado é fraca e perdemos, por exemplo, muitas circunstâncias das
acções. Esta sensação diminuída, quando queremos exprimir a própria coisa (isto é, a
própria fantasia), denomina-se imaginação, como já disse anteriormente; mas, quando
400 “Il y a donc en elle deux manières de sentir, qui ne diffèrent, que parce que l’une se rapporte à une
sensation actuelle, et l’autre à une sensation qui n’est plus, mais dont l’impression dure encore. Ignorant
qu’il y a des objets qui agissent sur elle, ignorant même qu’elle a un organe; elle ne distingue
ordinairement le souvenir d’une sensation d’avec une sensation actuelle, que comme sentir faiblement ce
qu’elle a été, et sentir vivement ce qu’elle est.” (CONDILLAC, E., Traité des Sensations, op. cit., p. 19). 401 Leia-se o excerto completo: “Je dis ordinairement, parce que le souvenir ne sera pas toujours un
sentiment faible, ni la sensation un sentiment vif. Car toutes les fois que la mémoire lui retracera ces
manières d’être avec beaucoup de force, et que l’organe au contraire ne recevra que de légères
impressions; alors le sentiment d’une sensation actuelle sera bien moins vif, que le souvenir d’une
sensation qui n’est plus.” (ibid., pp. 19-20). 402 “La mémoire est donc une suite d’idées, qui forment une espèce de chaîne.” (ibid., p. 24).
188
queremos exprimir a diminuição e significar que a sensação é evanescente, antiga e
passada, denomina-se memória; são uma e a mesma coisa, que por razões várias, têm
nomes diferentes”403
. Hobbes distingue ainda a imaginação simples da imaginação
composta404
: “Muita memória, ou a memória de muitas coisas, chama-se experiência. A
imaginação diz respeito apenas àquelas coisas que foram anteriormente percebidas pela
sensação, ou de uma só vez, ou por partes em várias vezes. A primeira (que consiste em
imaginar o objecto na sua totalidade, tal como ele se apresentou na sensação) é a
imaginação simples, como quando imaginamos um homem, ou um cavalo que vimos
antes; a outra é composta, como quando a partir da visão de um homem num
determinado momento, e de um cavalo em outro momento, concebemos no nosso
espírito um centauro”405
.
Também Hume distingue memória de imaginação: “Constatamos pela
experiência que, quando uma impressão esteve presente na mente, volta lá a aparecer
sob a forma de ideia, podendo isto acontecer de duas maneiras diferentes: ou ela, no seu
novo aparecimento, conserva um grau considerável da vivacidade primitiva, sendo algo
intermédio entre impressão e ideia; ou perde totalmente essa privacidade e é uma ideia
perfeita. As faculdades mediante as quais repetimos as nossas impressões de cada uma
destas maneiras chamam-se respectivamente MEMÓRIA e IMAGINAÇÃO”406
. Sendo
Hume um empirista que considera as ideias como sendo cópias imperfeitas das
impressões e aquelas menos vivas e nítidas do que estas, é natural que defenda que “as
ideias da memória são muito mais vivazes e mais fortes do que as da imaginação”407
.
Hume vê a imaginação como a percepção mais “ténue e apagada e não é sem
dificuldade que a mente a pode conservar, por tempo considerável, firme e
uniforme”408
e a memória, mais próxima da impressão e da sensação, é considerada a
403 HOBBES, Thomas, Leviathan, Tr. Port. op. cit., p. 32. 404 Acrescenta Hobbes: “Existem também outras imagens que surgem nos homens (ainda que em estado
de vigília) devido a uma forte impressão feita na sensação, como acontece quando, depois de olharmos
fixamente para o Sol, permanece diante dos nossos olhos uma imagem do Sol, que se conserva durante
muito tempo depois; ou quando, depois de atentar longa e fixamente para figuras geométricas, o homem
(ainda que em estado de vigília) tem no escuro as imagens de linhas e ângulos diante dos seus olhos. Este
tipo de fantasia não tem qualquer nome especial, por ser uma coisa que não aparece comummente no
discurso dos homens.” (ibid., p. 33). 405 Ibid., pp. 32-33. 406 HUME, David, A Treatise of Human Nature (1739-40), Tr. Port. Tratado da Natureza Humana, trad.
Serafim da Silva Fontes, prefácio e revisão técnica da tradução de João Paulo Monteiro, 2001, Livro I,
Parte 1, secção III, p. 37. 407 Ibid., p. 37. 408 Ibid., p. 37.
189
faculdade que “pinta os seus objectos com cores mais nítidas”409
do que as da
imaginação.
No contexto global da obra de Rousseau, a imaginação recebe um duplo sentido:
retrospectivo e perspectivo/prospectivo. Na impossibilidade de desfazer totalmente os
males sociais, cabe retrospectivamente imaginar a sua origem e como foram aqueles
estabelecidos e justificados. Para, perspectiva e prospectivamente, e por meio das
faculdades desenvolvidas no estado de civilização, e perante a contradição constatada
entre a natureza humana e as instituições sociais, poderem os homens proceder aos
reajustamentos necessários à construção de uma sociedade melhor, identificados no
Émile e em Du Contrat Social.
O conceito de imaginação sofre diversas alterações ao longo dos textos de
Rousseau, quer no seu significado, quer no grau de importância atribuído. Há momentos
em que o papel da imaginação é enaltecido, como se pode constatar na terceira carta a
Malesherbes:
“A minha imaginação não deixaria por muito tempo a terra deserta [...]. Eu logo a povoava de
seres segundo o meu coração [...]. Eu formava uma sociedade encantadora da qual não me sentia
indigno.”410
Noutros momentos, como nas Rêveries, a imaginação é nefasta e é preciso
silenciá-la:
“Tinha até receio de que, nos meus devaneios, a minha imaginação aterrorizada com as minhas
infelicidades, acabasse por voltar a sua actividade para esse lado, e que a contínua sensação dos meus
sofrimentos, ao oprimir-me aos poucos o coração, me fizesse sucumbir sob o seu peso. Nesse estado, um
instinto, que me é natural, fazendo-me expulsar, impôs silêncio à minha imaginação, e fixando a minha
atenção sobre os objectos que me rodeavam, levou-me a observar pormenorizadamente o espectáculo da
natureza que, até então, não contemplara senão como uma massa e no seu conjunto.”411
Este silêncio da imaginação não é fortuito. Pelo contrário, a necessidade de calar o
imaginário resulta da incompatibilidade levada ao limite entre Rousseau e a sociedade.
409 Ibid., p. 37. 410 “Mon imagination ne laissait pas longtemps déserte la terre […]. Je la peuplais bientôt d’êtres selon
mon cœur […]. Je m’en formais une société charmante dont je ne me sentais pas indigne.” (Troisième
Lettre à Malesherbes, OCI, pp. 1140). 411 “J’avais même à craindre dans mes rêveries que mon imagination effarouchée par mes malheurs ne
tournât enfin de ce côté son activité, et que le continuel sentiment de mes peines me resserrant le cœur par
degrés, ne m’accablât enfin de leur poids. Dans cet état, un instinct qui m’est naturel, me faisant fuir toute
idée attristante, imposa silence à mon imagination, et fixant mon attention sur les objets qui
m’environnaient, me fit pour la première fois détailler le spectacle de la nature, que je n’avais guère
contemplé jusquʼàlors qu’en masse, et dans son ensemble.” (R, septième promenade, OC I, p. 1062).
190
No reconhecimento do estado de ruptura com os homens que tanto o desiludiram não
será mais preciso imaginar, nem sequer pensar. Rejeitando o sofrimento e a dor de uma
sociedade que acusa de não o ter compreendido, o filósofo decide isolar-se, dedicando-
se apenas à contemplação da natureza, entregando-se exclusivamente à sensação e à
impressão dos objectos que o rodeiam, tal como reforça ainda na terceira carta a
Malesherbes:
“[Com] o coração contente, descansava agradavelmente à minha volta, entregando-me à
impressão dos objectos, mas sem pensar, sem imaginar, sem fazer mais do que sentir a calma e a
felicidade da minha situação.”412
Neste “retorno a nós mesmos a que a adversidade nos força” (R, 8e, p. 1075),
Rousseau diz bastar-se a si mesmo, dispensando a imaginação, pois esta já nada
acrescenta aos “seus últimos lazeres” (R, 7e, p. 1061):
“[…] O que me falta hoje para ser o mais infortunado dos homens? Nada além do que os homens
puderam fazer para o conseguir. Pois bem, neste estado deplorável, não trocaria o meu ser e o meu
destino pelo mais afortunado de entre eles, e prefiro ainda mais ser eu próprio, em toda a minha miséria, a
ser uma dessas pessoas, com toda a sua prosperidade. Reduzido apenas a mim próprio, alimento-me, é
verdade, da minha própria substância, mas ela não se esgota; basto-me a mim mesmo, embora rumine,
por assim dizer, no vazio, e a minha imaginação esgotada e as minhas ideias extintas já não forneçam
alimento ao meu coração.”413
Desiludido com a sociedade e obrigado a abandoná-la por já nada haver em
comum com os outros homens, Rousseau afirma que só lhe resta a sensação do
momento, aquela que dispensa qualquer memória ou imaginação:
“Fugindo dos homens, procurando a solidão, deixando de imaginar e ainda mais de pensar, mas
dotado de um temperamento vivo que me afasta da apatia lânguida e melancólica, comecei a ocupar-me
de tudo o que me rodeava, dando preferência, por instinto natural, aos objectos mais agradáveis.”414
412 “[Avec] le cœur, je me reposais agréablement au retour, en me livrant à l’impression des objets mais
sans penser, sans imaginer, sans rien faire autre chose que sentir le calme et le bonheur de ma situation.”
(Troisième Lettre a Malesherbes, OC I, pp. 1141). 413 “[…] Que me manque-t-il aujourd’hui pour être le plus infortuné des mortels? Rien de tout ce que les
hommes ont pu mettre du leur pour cela. Eh bien! Dans cet état déplorable, je ne changerais pas encore
d’être et de destinée contre le plus fortuné d’entre eux, et j’aime encore mieux être moi dans toute ma
misère, que d’être aucun de ces gens-là dans toute leur prospérité. Réduit à moi seul, je me nourris, il est
vrai, de ma propre substance, mais elle ne s’épuise pas; je me suffis à moi-même, quoique je rumine, pour ainsi dire, à vide, et que mon imagination tarie, et mes idées éteintes ne fournissent plus d’aliments à mon
cœur.” (R, huitième promenade, OC I, p. 1075). 414 “Fuyant les hommes, cherchant la solitude, n’imaginant plus, pensant encore moins, et cependant doué
d’un tempérament vif qui m’éloigne de l’apathie languissante et mélancolique, je commençai de
m’occuper de tout ce qui m’entourait, et par un instinct fort naturel, je donnai la préférence aux objets les
plus agréables.” (ibid., septième promenade, p. 1066).
191
Voltando-se para a natureza, procura agora aquele primeiro sentir embrionário,
aquele que possuía, antes de crescer e conhecer a sociedade, tal qual o homem natural
antes de dar lugar ao homem civilizado. Sendo uma faculdade humana, a imaginação
não desaparece por completo, mas é também ela direccionada para a sensação do
momento. E o momento é de ser e estar inteiramente com a natureza:
“Vagueava, indolente, pelas florestas e montanhas sem ousar pensar, com medo de avivar as
minhas dores. A minha imaginação, que recusa os motivos de sofrimento, deixava os meus sentidos
entregar-se às impressões, ligeiras mas doces, causadas pelos objectos à minha volta.”415
A memória e a imaginação desempenham o mesmo papel: o de servir e dizer a
verdade da natureza humana, bem ainda a verdade de uma vida individual, a de
Rousseau; a primeira tem a função de preencher e atestar com os registos possíveis,
quer a genealogia, quer a vida do filósofo; a segunda faz acrescentar o que os sentidos,
as sensações e os sentimentos não fornecem. Ambas servem uma linguagem que se
pretende universal, assente no exercício de subjectividade da indagação pelo
conhecimento do homem.
No seu duplo carácter, retrospectivo e prospectivo, a memória e a imaginação
ditam o mesmo sentido: contribuir para a possibilidade de uma sociedade feliz. Ora,
Rousseau sabe que uma sociedade feliz é constituída por homens felizes. Lembrar o
estado de natureza implica imaginá-lo, e imaginá-lo implica pensar e sentir a tendência
natural do homem para a felicidade.
Não são raras as afirmações como esta: “Rousseau é o clássico que mostra que,
para o mundo dos homens, não há soluções permanentes”416
. Rousseau compreendeu
bem a dinâmica da história e a sede insaciável da perfectibilidade humana, incapaz de
travar o progresso. Veremos como a perspectiva rousseauniana de felicidade abre
caminho para a sua possibilidade, pese embora o facto de ela mesma consistir numa
conquista inevitavelmente adiada.
415 “J’errais nonchalamment dans les bois et dans les montagnes, n’osant penser de peur d’attiser mes
douleurs. Mon imagination qui se refuse aux objets de peine laissait mes sens se livrer aux impressions
légères mais douces des objets environnants.” (ibid., septième promenade, p.1063). 416 FONSECA JR., Gelson, Rousseau e as relações internacionais, op. cit., p. LXIX.
192
IV. 3. A conquista adiada da felicidade, na vida e na história dos homens
“Vous voyez que je n’aspire pas à nous rétablir dans notre bêtise, quoique je regrette beaucoup, pour ma
part, le peu que j’en ai perdu. À vôtre égard, Monsieur, ce retour serait un miracle, si grand à la fois et si
nuisible, qu’il n’appartiendrait qu’à Dieu de le faire et qu’au Diable de le voir. Ne tentez donc pas de
retomber à quatre pattes; personne au monde n’y réussirait moins que vous […].”
(ROUSSEAU, Jean-Jacques, Réponse à Voltaire, OC III, 1964, p. 226).
Como em todos os conceitos abordados, Rousseau atribui também ao conceito
de felicidade uma notável amplitude filosófica, para não referirmos a já esperada
complexidade semântica. Poderíamos fazer distinguir ou aproximar, conforme fosse o
caso, a perspectiva rousseauniana da felicidade de diferentes perspectivas: a felicidade
como o bem da alma virtuosa de Sócrates e de Platão, a eudaimonia de Aristóteles e
Epicuro, a felicidade como fim último de São Tomás de Aquino, a felicidade como
prazer duradouro de Locke e de Leibniz, a felicidade inconcebível de Schopenhauer, a
felicidade como a “religião da humanidade” de Comte, a maximização da felicidade de
Mill e Bentham, a felicidade religiosa de Kierkegaard, a felicidade política de Marx e a
felicidade livre de Nietzsche são apenas algumas acepções sobre a felicidade, de uma
lista imensa, na prática incomensurável, da História da Filosofia. Ou, ainda, comparar a
felicidade de Rousseau com perspectivas mais recentes, que consideram a felicidade
como um estado de consciência de acordo com os valores e a personalidade de cada
indivíduo, como, por exemplo, a de Ayn Rand.
Entre inúmeras definições da felicidade, tomemos, somente, a que Russell
fornece, por nos parecer condensar alguns traços da felicidade rousseauniana, mesmo
que deles não se desse conta: “Toda a infelicidade resulta duma desintegração ou falta
de integração; há desintegração no Eu por falta de coordenação entre o consciente e o
inconsciente; há falta de integração entre o Eu e a sociedade quando os dois não estão
unidos pela força dos interesses e afeições objectivos. O homem feliz é aquele que não
sofre de nenhuma destas faltas de unidade, cuja personalidade não está dividida contra
si própria nem em conflito com o mundo. Um tal homem sente-se cidadão do universo,
goza livremente o espectáculo que ele lhe oferece e as alegrias que lhe permite sem se
perturbar com o sentimento da morte, porque realmente não se sente separado daqueles
que vieram depois dele. É nessa união profunda e instintiva com a corrente da vida que
se podem encontrar as alegrias mais intensas”417
. No seu livro sobre a felicidade,
417 RUSSELL, Bertrand, The conquest of Happiness (1930), Tr. Port. A conquista da Felicidade, trad.
José António Machado, 5ª ed., Guimarães, Guimarães Editores, s/d., p. 198.
193
Russell assume uma perspectiva que vai na direcção da de Rousseau, contando com os
avanços da psicanálise que o filósofo não conheceu, nomeadamente, a distinção entre
“consciente e inconsciente”, mas cuja dinâmica de disputa e reconciliação está presente
no seu trabalho, pensamento, sentimento e escrita. Rousseau sente-se também “cidadão
do universo”, ou melhor, da natureza, com quem mantém uma relação intimista,
gozando “livremente o seu espectáculo”. Não há dúvida de que a felicidade de Rousseau
está também ligada à necessidade de integração entre “o Eu e a sociedade” que tentou
preservar até ao limite, bem ainda ligada às gerações vindouras para as quais dirige a
sua obra, e “realmente não se sente separado daqueles que vieram depois dele”418
.
Mas centremo-nos em Rousseau. No estado de natureza, o homem não tem a ideia
de passado. Nem mesmo de futuro. Vive no instante presente, integrado harmoniosamente
com a natureza, sem anseios nem memórias. Vivendo cada momento, dispensando
recordações passadas ou projectos futuros, vive a felicidade sem a reconhecer,
reconduzida ao puro prazer de quem simplesmente sacia a sede ou a fome. É-se feliz sem
se aperceber que assim se seja. A questão da felicidade é, pois, uma questão que pertence
ao estado de civilização, no qual o homem deve reconhecer a felicidade que interessa à
natureza do género humano e, para isso, torna-se necessário observar o seu estado natural.
Contudo, tal como Rousseau afirma no excerto que serve de entrada a este sub-capítulo,
observar o estado de natureza não corresponde, em momento algum, a um regresso ao
passado. Pelo contrário, a reflexão rousseauniana tem um sentido prospectivo, que é
preciso destacar, não só pela pertinência que continua a ter em pleno século XXI (que
teremos oportunidade de abordar no próximo capítulo), como pela real possibilidade da
felicidade humana que a sua reflexão implica.
É no prefácio do Discours de 50 que o filósofo enuncia pela primeira vez o
propósito de reflectir sobre “verdades que dizem respeito à felicidade do género humano”
(D1, préface, p. 3) e é precisamente aí que Rousseau inicia a caracterização do estado de
natureza (ser) e do estado de civilização (parecer) com vista a aferir o que é necessário à
felicidade humana, sobretudo num tempo de Luzes que, paradoxalmente, não promoveu
homens mais felizes. A observação do estado de natureza permite perceber que toda e
qualquer regra social resulta de uma convenção entre os homens e não da sua natureza.
Trata-se de reconhecer o afastamento entre o plano do parecer (sociedade, civilização) e
418 Tratando-se de citar novamente algumas expressões do excerto anteriormente citado, não vimos
necessidade de apresentar de novo a referência bibliográfica.
194
o plano do ser (natureza), mas, também, e sobretudo, de fazer conciliar os dois planos,
numa organização social que melhor vá ao encontro da felicidade dos homens, como
podemos constatar neste excerto da Dedicace à la République de Genève, que antecede
o Discours de 55:
“[…] como poderia eu meditar sobre a igualdade que a natureza estabeleceu entre os homens e
sobre a desigualdade que eles instituíram, sem pensar na profunda sabedoria com a qual uma e outra,
felizmente combinadas neste Estado, concorrem da maneira que mais aproxima da lei natural e a mais
favorável à sociedade, à manutenção da ordem pública e à felicidade dos particulares? […]. Se eu tivesse
que escolher o lugar do meu nascimento, teria escolhido uma sociedade de uma grandeza delimitada pela
extensão das faculdades humanas, isto é, pela possibilidade de ser bem governada […]. Gostaria de viver
e morrer livre, isto é, de tal modo submetido às leis que nem eu nem ninguém pudéssemos sacudir o seu
honroso jugo […]. Gostaria, portanto, que ninguém no Estado se dissesse acima da lei […].”419
Rousseau observa a sociedade do seu tempo, deparando-se com uma
insustentável desigualdade social e com um povo mal governado, cuja lei não é igual
para todos. Observa uma sociedade aprisionada, sem liberdade nem igualdade, e sem
qualquer horizonte de felicidade. É preciso, pois, questionar como pode e deve ser
moldada uma sociedade que promova a felicidade dos homens e vá ao encontro do que
à sua natureza convém. É neste sentido que é colocada a questão de saber qual das duas,
se a igualdade ou a desigualdade, está mais próxima da lei natural, de modo a aferir qual
é a que mais convém ao homem e à sociedade. Reflectir sobre essa questão implica a
observação, como vimos, do estado de natureza e a sua passagem para o estado de
civilização, marcada, sobretudo, pela prática da comparação com o outro, quando “os
homens se começaram a apreciar mutuamente, e a ideia de consideração se formou no
seu espírito [e] cada um pretendeu ter direito a ela” (D2, II, p. 170). A desigualdade
social é reforçada no momento em que se introduz a propriedade, uma vez que “é
impossível conceber a ideia de propriedade fora da mão-de-obra” (D2, II, p. 173), em
que “o mais forte fazia mais trabalho; o mais destro tirava melhor partido do seu [e]
419 “[…] comment pourrais-je méditer sur l’égalité que la nature a mise entre les hommes et sur l’inégalité
qu’ils ont instituée, sans penser à la profonde sagesse avec laquelle l’une et l’autre, heureusement
combinées dans cet État, concourent de la manière la plus approchante de la loi naturelle et la plus favorable à la société, au maintien de l’ordre public et au bonheur des particuliers? […]. Si j’avais eu à
choisir le lieu de ma naissance, j'aurais choisi une société d'une grandeur bornée par l'étendue des facultés
humaines, c’est-à-dire la possibilité d’être bien gouvernée […]. Si j’aurais voulu vivre et mourir libre,
c’est-à-dire tellement soumis aux lois que ni moi ni personne n’en pût secouer l’honorable joug […].
J’aurais donc voulu que personne dans l’État n’eût pu se dire au-dessus de la loi […].” (D2, Dédicace à la
République de Genève, OC III, pp. 111-112).
195
trabalhando o mesmo, um ganhava muito, enquanto o outro mal podia viver” (D2, II, p.
174).
O homem no estado de civilização torna-se “doente” (D2, I, pp. 137-139), que o
mesmo é dizer infeliz, e, por consequência, necessita de “remédios” (D2, I, p. 138) que
promovam a felicidade. A sociedade obriga a que cada um se vista para o outro, que
cada indivíduo seja parte e tenha necessidade do todo social, que viva para todos e todos
para ele. É este homem, o da sociedade e da civilização, que Rousseau quer ver feliz:
“Assim, o homem apropria-se de tudo, mas aquilo que mais lhe importa apropriar-se é mesmo o
homem, porque desde que cada um precisa de todos, tornou-se necessária uma respectiva disposição que
forma cada indivíduo para todos os outros e todos os outros para ele. Naturalmente, cada um olha apenas
para si mesmo e o homem da sociedade deve sempre cuidar dos outros. Este homem já não é o homem da
natureza, é o homem privado, o homem doméstico, o homem que os homens vestiram para eles.”420
Mas o que entende Rousseau por felicidade? A sua mais completa definição
encontra-se no início da 9e promenade:
“A felicidade é um estado permanente que não parece ter sido feito, aqui na terra, para o homem.
Na terra, tudo vive num fluxo contínuo que não permite a nada tomar uma forma constante. Tudo muda à
nossa volta. Nós próprios também mudamos e ninguém pode estar certo de amar amanhã aquilo que ama
hoje. Assim, todos os nossos projectos de felicidade nesta vida são quimeras. Aproveitemos a alegria do
espírito quando a possuímos; evitemos afastá-la por nossa culpa, mas não façamos projectos para a
conservar, porque esses projectos são meras loucuras. Vi poucos homens felizes, talvez nenhum; mas vi
muitas vezes corações contentes e de todos os objectos que me impressionaram, foi esse o que mais me
contentou. Creio que se trata de uma consequência natural do poder das sensações sobre os meus
sentimentos internos. A felicidade não tem sinais exteriores; para a conhecer tornar-se-ia necessário ler no
coração do homem feliz; mas a alegria lê-se nos olhos, no porte, no sotaque, no modo de andar, e parece
comunicar-se a quem dela se apercebe.”421
420 “Ainsi l’homme s’approprie tout mais ce qu’il lui importe le plus de s’approprier c’est l’homme même
car depuis que chacun a besoin de tous il faut une disposition respective qui forme chaque individu pour
tous les autres et tous les autres pour lui. Naturellement chacun ne regarde que lui-même et l’homme de la
société doit toujours s’occuper d’autrui. Cet homme n’est donc plus l’homme de la nature, c’est l’homme
privé, l’homme domestique, l’homme que les hommes ont dressé pour eux.” (É, Manuscrit Favre, OC IV,
p. 56). 421 “Le bonheur est un état permanent qui ne semble pas fait ici-bas pour lʼhomme. Tout est sur la terre
dans un flux continuel qui ne permet à rien dʼy prendre une forme constante. Tout change autour de nous.
Nous changeons nous-mêmes, et nul ne peut s’assurer qu’il aimera demain ce qu’il aime aujourd’hui. Ainsi tous nos projets de félicité pour cette vie sont des chimères. Profitons du contentement d’esprit
quand il vient, gardons-nous de l’éloigner par notre faute, mais ne faisons pas des projets pour
l’enchaîner, car ces projets-là sont de pures folies. J’ai peu vu dʼhommes heureux, peut-être point: mais
j’ai souvent vu des cœurs contents, et de tous les objets qui m’ont frappé, c’est celui qui m’a le plus
contenté moi-même. Je crois que c’est une suite naturelle du pouvoir des sensations sur mes sentiments
internes. Le bonheur n’a point d’enseigne extérieure; pour le connaître il faudrait lire dans le cœur de
196
A definição apresentada contém algumas ideias a reter: não há lugar para um
estado de felicidade permanente, dado que a vida dos homens se encontra em constante
mudança; a felicidade é, portanto, momentânea e, não sendo possível conservá-la,
corresponde a uma conquista adiada, pois qualquer que seja o seu projecto, não deixa de
ser uma quimera, mítica e imaginada; a felicidade não tem sinais exteriores, mas vê-se nos
“corações contentes”; finalmente, a felicidade é considerada um sentimento que fica
registado na memória. Se a esta definição acrescentarmos outros dados dos seus textos,
designadamente a relação entre a felicidade e a virtude veiculada no Émile, somos levados
a considerar a questão sob diferentes pontos, a saber:
a) A relação entre a felicidade e a memória, o tempo e a imaginação;
b) A felicidade como prática da virtude;
c) A felicidade como aspiração humana;
d) A dimensão individual e a dimensão social da felicidade;
e) A distinção entre felicidade e prazer;
f) A felicidade como uma conquista adiada.
Fundamentemos as alíneas anteriores com as palavras do próprio autor, no que
respeita à temática da felicidade, no âmbito dos diferentes significados que Rousseau lhe
atribui.
A relação que Rousseau estabelece entre a felicidade e a memória tem o mesmo
sentido condillaciano. A consideração rousseauniana da memória faz incluir nela os
sentimentos de contentamento (felicidade) e de descontentamento (infelicidade),
conforme a sensação e a experiência que a causou, tal como em Condillac:
“Ela [a estátua] conserva, pois, na sua memória as ideias de contentamento e de
descontentamento, comuns a múltiplos modos de ser: e só tem de considerar as suas sensações sob estes
dois aspectos, para deles fazer duas classes, onde aprenderá a distinguir as suas variações, na proporção
em que se exercitará mais.”422
lʼhomme heureux; mais le contentement se lit dans les yeux, dans le maintien, dans l’accent, dans la
démarche, et semble se communiquer à celui qui l’aperçoit.” (R, neuvième promenade, OC I, p. 1085). 422 “Elle [statue] conserve donc dans sa mémoire les idées de contentement et de mécontentement,
communes à plusieurs manières d’être: et elle n’a plus qu’à considérer ses sensations sous ces deux
rapports, pour en faire deux classes, où elle apprendra à distinguer des nuances, à proportion qu’elle s’y
exercera davantage.” (CONDILLAC, E., Traité des Sensations, op. cit., p. 41).
197
Os textos das Confessions e das Rêveries dizem muito sobre o modo como
Rousseau vê a felicidade. Lembramos que estes textos, considerados frequentemente
autobiográficos e meramente literários, constituem, a nosso ver, parte integrante do seu
pensamento filosófico, pelo que não devem ser reportados apenas à sua vida particular,
mas, essencialmente, à sua dimensão universal, característica fundamental da reflexão
filosófica.
A relação que Rousseau estabelece entre a felicidade e a memória, o tempo e a
imaginação vê-se naqueles textos. Ao recordar, a memória reaviva a felicidade,
imaginando-a, reportada ao tempo em que a experienciou. Por exemplo, a felicidade que
caracterizou durante algum tempo o amor por Madame de Warens é recordada e
reavivada pela memória e pela imaginação. As palavras não chegam para exprimir a
intensidade do estado feliz que descreve e que pretende partilhar com o leitor:
“Ainda se tudo isto consistisse em factos, em acções, em palavras, eu poderia de qualquer
maneira descrevê-lo, exprimi-lo; como dizer, porém, o que não era dito, nem feito, nem sequer pensado,
mas gozado, mas sentido, sem que eu possa apontar outro objecto da minha felicidade, além deste
próximo sentimento? […] a felicidade seguia-me por toda a parte; não existia em coisa nenhuma precisa,
estava inteiramente em mim mesmo, não podia abandonar-me um só momento.”423
Como Condillac, Rousseau vê as ideias e sentimentos de contentamento e prazer
associados à de felicidade, e as de descontentamento e dor associadas à infelicidade, e
todas como conteúdos da memória, que não actua sem a imaginação. Quando recorda
momentos felizes, Rousseau sente felicidade; ao lembrar episódios que lhe causaram
infelicidade, esta é também reforçada e reavivada na memória.
O excerto que se segue revela bem como a sensação da infelicidade fica retida
na memória e influencia a imaginação no relato das Confessions, sobretudo na segunda
parte da obra, redigida com menos prazer e maior dor:
“Escrevi a primeira424 com prazer, com satisfação, à minha vontade, em Wooton ou no castelo de
Trye; todas as recordações que tinha de relembrar eram para mim outros tantos gostos. Voltava
incessantemente ao trabalho com um novo prazer, e podia compor as minhas descrições sem
constrangimento até ficar contente com elas. Hoje, a minha memória e a minha cabeça enfraquecidas
423 “Encore si tout cela consistait en faits, en actions, en paroles, je pourrais le décrire et le rendre en
quelque façon; mais comment dire ce qui n’était ni dit, ni fait, ni pensé même, mais gouté, mais senti,
sans que je puisse énoncer d’autre objet de mon bonheur que ce sentiment même? […] le bonheur me
suivait partout: il n’était dans aucune chose assignable, il était tout en moi-même, il ne pouvait me quitter
un seul instant.” (C, livre VI, OC I, pp. 225-226). 424 Rousseau refere-se à primeira parte das Confessions, à qual correspondem os primeiros seis livros.
198
tornam-me quase incapaz de qualquer trabalho; só à força e com o coração oprimido pela angústia é que
me dedico a este. Só me oferece desgraças, traições perfídias, recordações tristes e pungentes. Por tudo do
mundo desejaria poder enterrar na noite dos tempos o que tenho a dizer […].”425
Ao contrário da preferência condillaciana pelo olfacto, a visão é o sentido
privilegiado em Rousseau e remete, como sabemos, para a dupla dimensão do sentir e
do pensar. Se o objecto que causa uma sensação de descontentamento desaparecer do
seu horizonte visual, desaparecerá com ele essa sensação, e não haverá lugar para o
sentimento de infelicidade. Cessar de ver retrospectivamente o passado e deixar de
perspectivar o futuro, não ver o outro (que lhe causa mal e infelicidade) implica não
pensar (no destino) e não sentir (sofrimento):
“Esta acção dos meus sentidos sobre o meu coração faz o único tormento da minha vida. Nos
lugares em que não vejo ninguém, não penso no meu destino, deixo de o sentir, deixo de sofrer. Sinto-me
feliz e contente sem qualquer distracção, sem qualquer obstáculo. Mas raramente escapo a qualquer
ataque sensível, e quando menos penso, um gesto, um olhar sinistro de que me apercebo, uma palavra
envenenada que oiço, um mal-entendido que encontro bastam-me para me transtornar. Tudo o que posso
fazer em semelhante caso é esquecer o mais rapidamente e fugir. A perturbação do meu coração
desaparece com o objecto que a causou, e volto a estar mais calmo, mal fico só.”426
A memória intensifica ou reduz o próprio tempo, aumenta-o ou diminui-o, de
acordo com o sentimento de felicidade ou infelicidade que acompanha a recordação das
experiências e episódios passados e dos sentimentos que, na altura, lhe causaram. Por
exemplo, na última página que deixou escrita das Rêveries, Rousseau refere o tempo em
que viveu com Madame de Warens no campo, já caracterizado anteriormente nas
Confessions como tempo de eternidade e de felicidade:
425 “J’écrivais la première avec plaisir, avec complaisance, à mon aise à Wooton, ou dans le château de
Trye; tous les souvenirs que j’avais à me rappeler étaient autant de nouvelles jouissances. J’y revenais
sans cesse avec un nouveau plaisir, et je pouvais tourner mes descriptions sans gêne jusqu’à ce que j’en
fusse content. Aujourd’hui, ma mémoire et ma tête affaiblies me rendent presque incapable de tout
travail; je ne m’occupe de celui-ci que par force et le cœur serré de détresse. Il ne m’offre que malheurs,
trahisons, perfidies, que souvenirs attristants et déchirants. Je voudrais pour tous au monde pouvoir
ensevelir dans la nuit des temps ce que j’ai à dire […].” (C., livre VII, p. 279). 426 “Cette action de mes sens sur mon cœur fait le seul tourment de ma vie. Les lieux où je ne vois personne, je ne pense plus à ma destinée, je ne la sens plus, je ne souffre plus. Je suis heureux et content
sans diversion, sans obstacle. Mais s’échappe rarement à quelque atteinte sensible, et lorsque j’y pense le
moins, un geste, un regard sinistre que j’aperçois, un mot envenimé que j’entends, un malveillant que je
rencontre suffit pour me bouleverser. Tout ce que je puis faire en pareil cas est d’oublier bien vite et de
fuir. Le trouble de mon cœur disparait avec l’objet qui l’a causé, et je rentre dans le calme aussitôt que je
suis seul.” (R, huitième promenade, OC I, p. 1082).
199
“Convenci a Mamã a vivermos no campo. Uma casa isolada na encosta de um vale foi o nosso
refúgio e foi aí que, no espaço de quatro ou cinco anos, vivi um século de vida e uma felicidade pura e
plena que cobre com o seu encanto tudo o que o meu destino tem de horrível.”427
Também a ilha de Saint Pierre é referida como o local onde foi mais feliz e
onde, por isso, o tempo se intensificou e pareceu andar mais rápido:
“Não me deixaram passar naquela ilha mais de dois meses, mas por mim teria lá ficado dois
anos, dois séculos, e toda a eternidade, sem me fartar um só momento […].”428
Afastado daquele que considera o maior dos seus males – a sociedade do seu
tempo –, e decidido a não forçar a memória para que o recorde, Rousseau afirma
pretender agora usufruir dos sentimentos que a natureza lhe deu e entregar a imaginação
ao momento presente, como se não houvesse amanhã, como se não tivesse havido ontem,
como se suspendesse o tempo:
“[…] o meu coração alimenta-se com os sentimentos para os quais nasceu e que eu saboreio com
os seres imaginários que os produzem, e que os partilham, como se estes seres existissem realmente.
Existem para mim, que os criei, e não temo que me atraiçoam nem que me abandonem. Durarão tanto
como os meus infortúnios e bastarão para mos fazer esquecer.”429
Na maioria dos seus diferentes textos, Rousseau enfrenta os três tempos do tempo:
recorda, imagina e observa um estado que já não existe (e que talvez nem tenha existido),
analisa um tempo presente e projecta um tempo futuro. Os textos dos últimos anos
traduzem a intenção de reduzir o tempo a um só tempo, o do momento presente, o de ser
feliz, o de suspender o próprio tempo, abdicando da memória e da imaginação. É o tempo
de usufruir do espectáculo da natureza e do precioso “far niente” (R, 5e, p. 1042), como
se não tivesse havido passado, como se não viesse a haver futuro. Depois da ruptura
assumida com a sociedade, e fiel ao seu pensamento filosófico, Rousseau procura
reconciliar-se com a natureza-mãe, promotora de felicidade, tese que expõe desde o
Discours de 50. E aí procurará viver, até que a morte o interrompa, como se estivesse no
estado natural, como se fosse possível o afastamento do próprio estado de civilização,
427 “J’engageai Maman à vivre à la campagne. Une maison isolée au penchant d’un vallon fut notre asile,
et c’est là que dans l’espace de quatre ou cinq ans j’ai joui d’un siècle de vie, et d’un bonheur pur et plein
qui couvre de son charme tout ce que mon sort présent a d’affreux.” (ibid., dixième promenade, p. 1099). 428 “On ne m’a laissé passer guère que deux mois dans cette Isle, mais j’y aurais passé deux ans, deux siècles et toute l’éternité sans m’y ennuyer un moment […]” (ibid., cinquième promenade, p. 1041). 429 “[…] mon cœur se nourrit encore des sentiments pour lesquels il était né, et j’en jouis avec des êtres
imaginaires qui les produisent, et qui les partagent, comme si ces êtres existaient réellement. Ils existent
pour moi qui les ai créés, et je ne crains ni qu’ils me trahissent ni qu’ils m’abandonnent. Ils dureront
autant que mes malheurs mêmes et suffiront pour me les faire oublier.” (ibid., huitième promenade, p.
1081).
200
sem a consciência do bem ou da felicidade, sem o reconhecimento do mal ou da
infelicidade:
“Doravante, é-me indiferente que os meus contemporâneos me façam bem ou mal, e façam o que
fizerem, nunca serão nada para mim. Ainda contava com o futuro, e esperava que uma geração melhor,
que examinasse com mais atenção as opiniões que esta formulou a meu respeito e a maneira como se
comportou comigo, distinguisse facilmente a fraude daqueles que a dirigem e me visse finalmente como
sou. Foi essa esperança que me levou a escrever os meus Dialogues, e que me sugeriu mil tentativas
loucas para os fazer passar à posteridade. Essa esperança, ainda que remota, mantinha a minha alma numa
agitação igual àquela que sentia quando ainda procurava no mundo um coração justo, e as minhas
esperanças, que procurava em vão rechaçar, tornavam-me igualmente joguete dos homens. Nos meus
Dialogues, disse como fundamentava esse anseio. Enganava-me. Felizmente, senti-o suficientemente a
tempo para ainda encontrar, antes da minha última hora, um período de quietude plena e de repouso
absoluto.”430
Não obstante a felicidade natural (chamemos-lhe assim) para a qual apelam os
últimos textos, Rousseau investe em todos os outros na promoção da felicidade humana,
isto é, nas condições de possibilidade para uma sociedade feliz. Mas como pode o homem
ser feliz? O homem é feliz pela prática da virtude, e entramos, assim, no segundo item
enunciado em relação à concepção rousseauniana da felicidade. À semelhança de Platão,
o autor faz remeter a questão da felicidade para a questão da virtude. Para além do já
referido recurso a Glauco da República, no Discours de 55, veja-se o recurso a Proteu
de Íon, a propósito da virtude, na Profession de Foi:
“Nada é mais amável do que a virtude, mas é preciso usufrui-la para a considerar como tal.
Quando a desejamos abraçar, tal como o Proteu da fábula, ela toma primeiro mil formas assustadoras, e
não se mostra mais sob a sua senão àqueles que não a deixaram ir.”431
Rousseau defende a relação intrínseca entre a felicidade e a prática da virtude.
Não se é virtuoso por se ser feliz, é-se feliz por se ser virtuoso. O homem virtuoso é o
430 “Qu’ils me fassent désormais du bien ou du mal tout m’est indifférent de leur part, et quoi qu’ils
fassent, mes contemporains ne seront jamais rien pour moi. Mais je comptais encore sur l’avenir, et
j’espérais qu’une génération meilleure, examinant mieux et les jugements portés par celle-ci sur mon
compte et sa conduite avec moi, démêlerait aisément l’artifice de ceux qui la dirigent et me verrait encore
tel que je suis. C’est cet espoir qui m’a fait écrire mes Dialogues, et qui m’a suggéré mille folles
tentatives pour les faire passer à la postérité. Cet espoir, quoiqu’éloigner, tenait mon âme dans la même
agitation que quand je cherchais encore dans le siècle un cœur juste, & mes espérances que j’avais beau
jeter au loin me rendaient également le jouet des hommes dʼaujourdʼhui. J’ai dit dans mes Dialogues sur quoi je fondais cette attente. Je me trompais. Je l’ai senti par bonheur assez à tems pour trouver encore
avant ma dernière heure un intervalle de pleine quiétude et de repos absolu.” (ibid., première promenade,
p. 998). 431 “Rien n’est plus aimable que la vertu, mais il en faut jouir pour la trouver telle. Quand on la veut
embrasser, semblable au Protée de la fable elle prend d’abord mille formes effrayantes, et ne se montre
enfin sous la sienne qu’à ceux qui n’ont point lâché prise.” (PF, OC IV, p. 602).
201
homem que sabe fazer cruzar o sentimento com a inteligência (pensamento), agindo em
relação ao todo e de acordo com o centro divino, como se não só fizesse rigorosamente
parte desse todo, mas também soubesse o seu lugar no interior da circunferência:
“Há uma qualquer ordem moral em tudo onde há sentimento e inteligência. A diferença é que o
bom ordena-se em relação ao todo e o mau ordena o todo em relação a si. Este faz-se o centro de todas as
coisas, o outro mede o seu raio e mantém-se na circunferência. Portanto, está ordenado em relação ao
centro comum que é Deus, e em relação a todos os círculos concêntricos que são as criaturas.”432
O homem é autor e responsável pelas suas acções; se Deus deu a “moralidade
que as enobrece” e o “direito à virtude” (PF, p. 587), é ao homem que cabe fazer
conciliar o bem, a vontade, a liberdade e a responsabilidade na sua acção. Se pratica o
mal, então é responsável por essa prática de desordem:
“Não me deu ele a consciência para amar o bem, a razão para o conhecer, a liberdade para o
escolher? Se eu faço o mal, não tenho desculpa; faço-o porque quero; pedir-lhe para mudar a minha
vontade é pedir-lhe o que ele me pede; é querer que ele faça a minha obra, e que eu fique com o salário;
não estar contente com o meu estado, é não querer mais ser homem, é querer outra coisa do que aquilo
que se é, é querer a desordem e o mal.”433
No Juízo Final, cada homem é avaliado pela prática da virtude desinteressada e
pura. A preocupação em ser bem considerado aos olhos de Deus é bem marcante ao
longo da sua obra, sobretudo no Émile, nas Confessions e nas Rêveries. Rousseau
assume-se como virtuoso; quando agiu, fê-lo virtuosamente e, segundo o próprio, a sua
eventual inacção deve-se mais aos homens do que a ele mesmo:
“Dizia para mim mesmo, suspirando: que fiz eu na terra? Fui feito para viver e vou morrer sem
ter vivido. Pelo menos, não foi por minha culpa, e levarei ao Autor do meu ser, senão a oferta das boas
acções que não me deixaram fazer, pelo menos um tributo de boas intenções frustradas, de sentimentos
sãos mas cujos efeitos se perderam, de uma paciência que resiste ao desprezo dos homens.”434
432 “Il y a quelque ordre moral par tout où il y a sentiment et intelligence. La différence est que le bon
s’ordonne par rapport au tout e que le méchant ordonne le tout par rapport à lui. Celui-ci se fait le centre
de toutes, l’autre mesure son rayon et se tient à la circonférence. Alors, il est ordonné par rapport au
centre commun qui est Dieu, et par rapport à tous les cercles concentriques qui sont les créatures.” (ibid.,
p. 602). 433 “Ne m’a-t-il pas donné la conscience pour aimer le bien, la raison pour le connaître, la liberté pour le
choisir? Si je fais le mal, je n’ai point d’excuse; je le fais parce que je le veux; lui demander de changer ma volonté, c’est lui demander ce qu’il me demande; c’est vouloir qu’il fasse mon œuvre, et que j’en
recueille le salaire; n’être pas content de mon état, c’est ne vouloir plus être homme, c’est vouloir autre
chose que ce qui est, c’est vouloir le désordre et le mal.” (ibid., p. 605). 434 “Je me disais en soupirant: qu’ai-je fait ici-bas? J’étais fait pour vivre, et je meurs sans avoir vécu. Au
moins ce n’a pas été ma faute, et je porterai à lʼAuteur de mon être, sinon l’offrande des bonnes œuvres
qu’on ne m’a pas laissé faire, du moins un tribut de bonnes intentions frustrées, de sentiments sains mais
202
No final da sixième promenade, repete a mesma ideia, reforçando que o facto de
não ter chegado a agir em certos momentos se deveu às circunstâncias, aos homens e a
uma sociedade que se encontra aprisionada:
“Enquanto posso agir livremente, sou bom e não pratico senão o bem; mas, logo que sinto o
jugo, quer da fatalidade, quer dos homens, torno-me rebelde, ou antes, insubmisso, e passo a ser nulo.
Quando é preciso fazer o contrário da minha vontade, não o faço, aconteça o que acontecer; também não
faço a minha vontade, porque sou fraco. Abstenho-me de agir: é que toda a minha fraqueza se manifesta
perante a acção, toda a minha força é negativa, e todos os meus pecados são de omissão, raramente de
comissão.”435
Como Platão, Rousseau defende que o homem bom, justo e virtuoso é feliz. Mas
Rousseau acrescenta que esse homem é feliz se a sociedade também o for, ou, pelo
menos, se estiver alicerçada em princípios justos e virtuosos. O seu próprio testemunho
assim o mostra; apesar de se considerar como um incontestável amante da verdade e da
justiça, apesar de se ver ele mesmo como bom e virtuoso, não pode ser feliz numa
sociedade ela mesma infeliz. Resta-lhe, diz-nos, resguardar-se da sociedade que o
persegue, não deixando contaminar-se e, centrando-se em si mesmo, procurar sair do
mundo mais virtuoso do que aí entrou:
“Sentir-me-ei feliz se, graças aos meus progressos sobre mim próprio, aprender a sair da vida não
melhor, porque isso não é possível, mas mais virtuoso do que era quando nela entrei.”436
Tal como enunciado no terceiro ponto, a felicidade rousseauniana é também
vista como uma aspiração natural do homem:
“É preciso ser feliz, querido Emílio: é a finalidade de todo o ser sensível; é o primeiro desejo que a
natureza nos imprimiu, e o único que jamais nos deixa.”437
Rousseau considera que nenhum homem seu contemporâneo aspira
verdadeiramente a ser feliz. Émile é o exemplo da orientação que deve ser dada à
criança e ao jovem para o reconhecimento efectivo, já na fase adulta, dessa natural
rendus sans effet et d’une patience à l’épreuve des mépris des hommes.” (R, deuxième promenade, OC I.,
p. 1004). 435 “Tant que j’agis librement je suis bon, et je ne fais que du bien; mais sitôt que je sens le joug, soit de la
nécessité soit des hommes je deviens rebelle ou plutôt rétif, alors je suis nul. Lorsqu’il faut faire le
contraire de ma volonté, je ne le fais point, quoi il arrive; je ne fais pas non plus ma volonté même, parce
que je suis faible. Je m’abstiens d’agir: car toute ma faiblesse est pour l’action, toute ma force est négative, et tous mes péchés sont d’omission, rarement de commission.” (ibid., sixième promenade, p.
1059). 436 “Heureux si par mes progrès sur moi-même, j’apprends à sortir de la vie, mon meilleur, car cela n’est
pas possible, mais plus vertueux que je n’y suis cela entré.” (ibid, troisième promenade, p. 1023). 437 “Il faut être heureux, cher Émile: c'est la fin de tout être sensible; c'est le premier désir que nous
imprima la nature, et le seul qui ne nous quitte jamais.” (É, livre V, OC IV, p. 814).
203
aspiração a querer ser feliz. Mas é também necessário querer ver os outros felizes. E
também aqui é preciso saber ver a natureza do coração humano, cujos sentimentos de
compaixão e de piedade apenas surgem perante o “mal de outrem” (PF, p. 508).
Aqueles sentimentos surgem facilmente em relação ao sofrimento dos outros, mas o
impulso da inveja tende a sair vitorioso em face da constatação da felicidade alheia.
Rousseau mostra-nos que é preciso ser maior e melhor e querer ver, como ele, “corações
felizes”:
“Senhor de satisfazer os meus desejos, podendo fazer tudo sem o perigo de ser enganado por
ninguém, que teria eu desejado para o futuro? Uma única coisa: ver todos os corações contentes. […].”438
O homem que observa correctamente a sua natureza reconhece que a
cumplicidade com a natureza é imensa e universal, promotora de momentos felizes. O
contacto com a natureza promove a felicidade, mas não é uma mera felicidade
particular. A natureza é a mãe comum de todos os homens; soubessem todos ver a
natureza e a sociedade seria melhor.
Segundo a perspectiva rousseauniana, a felicidade contém duas dimensões: uma
dimensão individual, a do homem, e uma dimensão colectiva e social, a do cidadão. No
entanto, a dimensão individual da felicidade pode tornar-se incompatível com a
dimensão social, como aconteceu no seu caso (e em qualquer outro que, eventualmente,
se lhe assemelhe). Não lhe sendo sequer possível vislumbrar qualquer aproximação real
ao que entende por felicidade social (educacional, política, cultural), sobejamente
tratada ao longo da sua obra, e na qual sempre investiu, Rousseau procura a felicidade
individual:
“Todos os acontecimentos do destino, todas as máquinas dos homens pouca influência têm sobre
um homem assim constituído. Para me sentir afectado por penas duradouras, seria necessário que a
impressão se renovasse a cada instante. Porque os intervalos, por mais curtos que sejam, bastam para que
eu regresse a mim mesmo. Eu sou o que os homens querem que eu seja, enquanto podem agir sobre os
meus sentidos; mas, ao primeiro momento de descanso, torno a ser o que a natureza quis; é este, façam o
que fizerem, o meu estado mais constante e aquele que, apesar do destino, me proporciona a felicidade
pela qual me sinto constituído. Descrevi este estado num dos meus devaneios; agrada-me tanto que nada
mais desejo senão que seja duradouro e nada mais temo do que vê-lo perturbado. O mal que os homens
me fizeram não me atinge de forma alguma; o único medo do que me possam fazer é capaz ainda de me
438 “Maître de contenter mes désirs, pouvant tout sans pouvoir être trompé par personne, qu’aurais-je pu
désirer avec quelque suite? Une seule chose: c’eut été de voir tous les cœurs contents.” (R, sixième
promenade, OC I, p. 1058).
204
agitar; porém, certo como estou de que já não possuem mais nenhum poder para me atormentarem
permanentemente, rio-me de todas as suas intrigas e tiro prazer de mim mesmo, a despeito deles.”439
A maior preocupação da obra de Rousseau é com a felicidade colectiva, que
implica por si própria a felicidade individual, e as razões do seu refúgio têm a ver com a
sociedade do seu tempo, que considera ter sido incapaz de ser e de querer ser feliz
colectivamente:
“Enquanto os homens foram meus irmãos, fazia projectos de felicidade terrena; como tais
projectos se referiam sempre ao todo, só a felicidade pública podia fazer-me feliz e nunca a ideia de uma
felicidade particular tocou o meu coração, a não ser quando vi que os meus irmãos não procuravam a sua
senão no meu infortúnio. Para não os odiar foi necessário fugir-lhes; refugiando-me então na mãe comum,
procurei nos braços dela esquivar-me aos golpes dos seus filhos, tornei-me solitário ou, como eles dizem,
insociável e misantropo, porque a solidão mais selvagem me parece preferível ao convívio com os
maldosos, que só se alimentam de traições e de ódio.”440
Reconhecendo que há uma dimensão individual e particular e uma dimensão
social e colectiva da felicidade que convém à natureza humana, a obra de Rousseau
avança nos dois sentidos, como vimos nos capítulos anteriores, mostrando que uma
implica a outra. Uma sociedade feliz é constituída por homens felizes e homens felizes
fazem uma sociedade feliz. Mas ser feliz não é o mesmo que sentir mero prazer, e assim
entramos no quinto ponto enunciado.
A felicidade é um projecto bem mais ambicioso do que o mero prazer. O que
Rousseau almeja não é uma sociedade prazerosa, mas feliz. Na obra rousseauniana, o
prazer é considerado momentâneo e qualitativamente inferior à felicidade, tal como
afirma Luc Vincenti: “[…] a felicidade está mais perto da paz do que o prazer da paz; de
439 “Tous les évènements de la fortune, toutes les machines des hommes ont peu de prise sur un homme
ainsi constitué. Pour m’affecter de peines durables, il faudrait que l’impression se renouvelât à chaque
instant. Car les intervalles quelques courts qu’ils soient, suffisent pour me rendre à moi-même. Je suis ce
qu’il plaît aux hommes tant qu’ils peuvent agir sur mes sens, mais au premier instant de relâche, je
redeviens ce que la nature a voulu; c’est-là, quoi qu’on puisse faire, mon état le plus constant, et celui par
lequel, en dépit de la destinée, je goûte un bonheur pour lequel je me sens constitué. J’ai décrit cet état
dans une de mes rêveries; il me convient si bien que je ne désire autre chose que sa durée, et ne crains que
de le voir troublé. Le mal que m’ont fait les hommes ne me touche en aucune sorte; la crainte seule de
celui qu’ils peuvent me faire encore est capable de m’agiter; mais certain qu’ils n’ont plus de nouvelle
prise par laquelle ils puissent m’affecter d’un sentiment permanent, je me ris de toutes leurs trames, et je
jouis de moi-même en dépit d’eux.” (ibid., huitième promenade, p. 1084). 440 “Tant que les hommes furent mes frères je me faisais des projets de félicité terrestre; ces projets étant toujours relatifs au tout, je ne pouvais être heureux que de la félicité publique, et jamais l’idée d’un
bonheur particulier n’a touché mon cœur que quand j’ai vu mes frères ne chercher le leur que dans ma
misère. Alors pour ne les pas haïr il a bien fallu les fuir; alors me réfugiant chez la mère commune, j’ai
cherché dans ses bras à me soustraire aux atteintes de ses enfants, je suis devenu solitaire, ou, comme ils
disent, insociable et misanthrope, parce que la plus sauvage solitude me parait préférable à la société des
méchants qui ne se nourrit que de trahisons et de haine.” (ibid., septième promenade, p. 1066).
205
uma paz certamente ligada à satisfação, mas também pode muito bem ser
apaziguamento ou ausência de desordem, e aí encontraremos os aspectos estóicos e
epicuristas da obra de Rousseau”441
. Mais do que identificar a eventual influência do
epicurismo e do estoicismo, importa destacar a concepção rousseauniana da felicidade
como uma conquista adiada. A condição humana não se coaduna com a felicidade
absoluta, mas é responsável por uma história que se aproxime ou distancie mais da
felicidade. Subscrevemos, pois, a leitura de Todorov, centrada nas considerações de
Rousseau sobre a felicidade humana e a via para alcançá-la na modernidade, sob o
ponto de vista sócio-educativo-político.442
A obra de Rousseau investe na aproximação dos homens e da sua história à
felicidade que convém à sua natureza e condição. Tal como em todas as outras questões,
as questões de índole política são perspectivadas por Rousseau no sentido da felicidade
dos homens, não apenas do seu presente, mas sobretudo das sociedades vindouras. O
grande contributo do Discours de 55 para as gerações futuras vem magistralmente
exposto nas últimas palavras do Discours de 55:
“Tratei de expôr a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das
sociedades políticas, tanto quanto essas coisas podem ser deduzidas da natureza do homem apenas pelas
luzes da razão, e independentemente dos dogmas sagrados que dão à autoridade soberana a sanção do direito
divino. Segue-se do exposto que a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, retira a sua força
e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano,
tornando-se, enfim, estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Segue-se ainda que
a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural todas as
vezes que não concorre na mesma proporção com a desigualdade física; distinção que determina
suficientemente o que se deve pensar, nessa perspectiva, da espécie de desigualdade que reina entre todos
os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei da natureza, seja qual for a maneira como a
definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, e que um
punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falte o necessário.”443
441 “[…] le bonheur est plus proche de la paix que du plaisir, d’une paix certes liée à la satisfaction, mais
qui peut aussi bien n’être qu’apaisement ou absence de trouble, et nous retrouverions là les aspects
stoïciens et épicuriens de l’œuvre rousseauiste.” – VINCENTI, Luc, “L’idée de bonheur dans la pensée de
Rousseau”, in Le bonheur (dir. A. SCHNELL), Paris, Vrin, 2006, p. 79. Neste artigo, o autor distingue a
felicidade colectiva (dando ênfase ao contexto político) da felicidade do sábio, que, apesar de parecer ser
particular é, afinal, universal. 442 Todorov mostra como pode o homem alcançar a felicidade sob o ponto de vista cívico, político e
moral. Cf. TODOROV, T., “Le citoyen” e “L’individu moral”, in Frêle Bonheur: Essai sur Rousseau,
Paris, Hachette, 1985, pp. 30-42 e 73-87, respectivamente. 443 “J’ai tâché d’exposer l’origine et le progrès de l’inégalité, l’établissement et l’abus des sociétés
politiques, autant que ces choses peuvent se déduire de la nature de l’homme par les seules lumières de la
raison, et indépendamment des dogmes sacrés qui donnent à l’autorité souveraine la sanction du droit
206
Vê-se bem neste excerto a relação intrínseca entre a observação da natureza
humana e as suas considerações políticas, no sentido da construção de uma sociedade
próxima da felicidade dos homens. A “história hipotética dos governos [que] é, para o
homem, uma lição instrutiva sob todos os olhares444
” (D2, préface, p. 127) é
apresentada no Discours de 55, explorada em Du Contrat Social e tida em conta no
Émile, obras ao longo das quais Rousseau fornece os princípios do direito político e da
educação que promovem a possibilidade da felicidade entre os homens. E Rousseau
conhece bem os obstáculos e limites de todas as formas de governo, e, dentro destas,
considera que a democracia será a que melhor convém à natureza humana. Mas uma
democracia absoluta é impossível no terreno humano: “Se existisse um povo de Deuses,
governar-se-ia Democraticamente” (C.S., III, 4, p. 406). A democracia surge, assim, não
tanto como um sistema político exacto e real, mas mais como um conjunto de princípios
de justiça e liberdade que deverão nortear a sociedade. Os princípios democráticos que
Rousseau identifica resultam da observação da natureza humana e investem, assim e
claramente, no objectivo da felicidade dos homens. E o mesmo se passa com os princípios
educacionais que apresenta no Émile:
“Mostro o objectivo a que devemos propor-nos; não digo que não possamos alcançá-lo, mas sim
que aquele que mais se aproximar dele será o mais bem-sucedido […].”445
Tal como em Du Contrat Social, no que respeita à possibilidade do uso do
interesse particular e, portanto, da vontade particular que se insurge contra a vontade
geral, também na educação, poderá haver quem a negue e a rejeite. Mas aí, tanto num
caso como no outro, dá-se a própria derrocada do corpo político e da sociedade de
homens educados. Nem os princípios da educação, nem os princípios da política de
Rousseau pretendem ser a solução milagrosa para os males sociais do seu tempo.
Rousseau apresenta os princípios que resultaram do estudo da natureza humana e da
felicidade que lhe convém, mas já nada pode dizer sobre o modo como serão aplicados
divin. Il suit de cet exposé que l’inégalité étant presque nulle dans l’état de nature, tire sa force et son
accroissement du développement de nos facultés et des progrès de l’ésprit humain, et devient enfin stable
et légitime par l’établissement de la propriété et des lois. Il suit encore que l’inégalité morale, autorisée
par le seul droit positif, est contraire au droit naturel, toutes les fois qu’elle ne concourt pas en même
proportion avec l’inégalité physique; distinction qui détermine suffisamment ce qu’on doit penser à cet
égard de la sorte d’inégalité qui règne parmi tous les peuples policés; puisqu’il est manifestement contre la loi de la nature, de quelque manière qu’on la définisse, qu’en enfant commande à un vieillard, qu’on
imbécile conduise un homme sage, et qu’une poignée de gens regorge de superfluités, tandis que la
multitude affamé manque du nécessaire.” (D2, seconde partie, OC III, pp. 193-194). 444 O autor utiliza “égards” que traduzimos por “olhares”, no sentido de “pontos de vista/perspectivas”. 445 “Je montre le but qu’il faut qu’on se propose; je ne dis pas qu’on y puisse arriver; mais je dis que celui
qui en approchera davantage aura le mieux réussi […].” (É, livre II, OC IV, p. 325).
207
pelos homens. O que nos mostra é que a possibilidade da felicidade, na vida e na
história dos homens, resulta da observação da natureza humana.
O estado permanente da felicidade não é possível ao homem; pela sua própria
natureza e condição, aquele estado configurará uma conquista adiada. Um adiamento que
é, ainda assim, essencial, uma vez que, enquanto se adia, perspectiva-se a sua
possibilidade. Rousseau abre caminho à realização da felicidade humana, e o legado que
nos deixa relativamente a esse caminho é, ainda hoje, e talvez mais até do que antes,
chamado a debate, incidindo em questões que estão fora do alcance das Luzes do seu
século. Por exemplo, o sentido prospectivo da reflexão rousseauniana alcança questões
eminentemente contemporâneas, como a da realidade virtual e a da hipermodernidade,
que importa explanar. É esse o desafio a que nos propomos no próximo e último
capítulo.
208
Capítulo V: A reflexão que se dirige aos homens “esquecendo todos os
tempos e lugares”
V.1. O sentido prospectivo da reflexão de Rousseau
“Il y aura dans tous les temps des hommes faits pour être subjugués par les opinions de leur siècle, de leur
pays, de leur société […]. Il ne faut point écrire pour de tels lecteurs, quand on veut vivre au-delà de son
siècle.”
(ROUSSEAU, J.-J., “préface”, in Discours sur les Sciences et les Arts, OC III, 1964, p. 5).
Se nos capítulos anteriores procurámos prioritariamente fundamentar a questão
da subjectividade universal rousseauniana, recorrendo às palavras do próprio Rousseau,
interessa-nos sobretudo agora auscultar o seu sentido prospectivo e a sua pertinência na
reflexão sobre o homem contemporâneo, recorrendo mais às palavras de outros autores
do que às do próprio, ainda que nos façamos sempre acompanhar pelo filósofo. E não o
fazemos subsidiariamente (remetendo este capítulo para um eventual anexo), mas como
uma demanda final e integrante da nossa investigação: a de saber se e como se dá o
contributo da subjectividade universal rousseauniana para o homem dos nossos dias.
Sendo a questão polivalente e bastante abrangente, uma vez que o “homem dos dias de
hoje” corresponde a um vasto âmbito de reflexão em face dos diversos movimentos
filosóficos da contemporaneidade, considerámos por bem reduzi-la à questão do
progresso científico-tecnológico e, posteriormente, à consideração do homem
contemporâneo, no contexto da hipermodernidade e da realidade internética, traços
característicos das sociedades ditas mais civilizadas/desenvolvidas do mundo de hoje.
Contudo, e antes de avançarmos para a relação entre a questão da subjectividade
universal rousseauniana e o homem hipermoderno e internético (nos dois últimos sub-
capítulos), propomo-nos para já cumprir um duplo propósito. Em primeiro lugar,
propomo-nos averiguar se a questão da subjectividade universal, como a temos vindo a
considerar e a fundamentar, poderá ser considerada um paradigma de reflexão, e aferir da
sua pertinência para a reflexão sobre o homem do terceiro milénio. Em segundo lugar,
pretendemos dar a ver o exacto contributo rousseauniano para as sociedades, que hoje
vivem sob a alçada de um avançado progresso científico-tecnológico nunca antes visto.
Tanto em relação ao primeiro, como em relação ao segundo propósito, fazemo-lo a título
209
de um simples esboço, e como um mero apontamento ilustrativo, muito resumido, de
justa homenagem ao imenso legado de Rousseau.446
Com Kuhn, retomámos o significado de paradigma. Este autor refere-se aos
paradigmas como conquistas científicas universalmente aceites, de modo provisório, pela
comunidade científica, paradigmas que se fazem substituir, ao longo da história da ciência
– o autor dá o exemplo do paradigma da astronomia ptolemaica, substituída pelo da
coperniciana, o paradigma da dinâmica aristotélica, que deu lugar ao da newtoniana, entre
outras. Contudo, o conceito de paradigma possui um complexo universo semântico447
,
surgindo com diferentes significados, “desde uma realização científica concreta”, até “um
conjunto característico de crenças e preconceitos”, “este último incluindo conjuntamente
compromissos instrumentais, teóricos e metafísicos”448
. Não pretendemos evidentemente
considerar a noção kuhniana de paradigma, abordada como um conjunto de técnicas e
conhecimentos partilhados por uma comunidade científica (ciência normal), e que a dado
passo será substituído por outro, após determinada revolução científica, perante a crise do
paradigma anterior (ciência extraordinária). Na nossa hipótese, não tomamos os critérios
padronizados449
que Kuhn afirma deverem ser tomados em conta na avaliação da
adequação de uma determinada teoria, e que levará a comunidade científica a fazer
substituir uma teoria vigente por uma outra rival. A hipótese que abordamos a partir da
noção de paradigma não respeita, portanto, à ciência, nem poderia, até porque a História
446 Ao longo dos capítulos anteriores, tivemos oportunidade de mencionar alguns dos maiores contributos
da reflexão rousseauniana, nomeadamente no que respeita à política (e.g. aos princípios da democracia), à
educação (e.g. inovações pedagógicas, no que respeita à criança e ao direito de ser efectivamente criança), à
ética (nomeadamente, à ética ambiental), entre outros. 447 É o próprio autor quem dá conta da polissemia encontrada por comentadores no seu conceito de
paradigma, tendo sido já aferidos “vinte e dois usos diferentes.” (KUHN, Thomas, The Essential Tension, Chicago, University of Chicago Press, 1977, p. 294). 448 “[…] from ‘a concrete scientific achievement’ (p. 11) to a ‘characteristic set of beliefs and
preconceptions’ (p. 17), the latter including instrumental, theoretical, and metaphysical commitements
together (pp. 39-42).” (ibid., p. 294). As páginas indicadas pelo próprio autor entre parêntesis referem-se
à obra Sctructure of Scientific Revolutions. 449 Kuhn apresenta mais do que numa obra os critérios adoptados na avaliação das teorias científicas, a
saber: exactidão, consistência, simplicidade, alcance e fecundidade. Ora, tais critérios de índole
eminentemente científica não cabem no contexto do pensamento rousseauniano. Querer aproximar a
exactidão de Rousseau, como, aliás, de qualquer outro filósofo, da exactidão científica resulta um pouco
forçado. No entanto, do ponto de vista exclusivamente filosófico, verificamos que alguns daqueles
critérios poderão ser aplicados no âmbito da questão da subjectividade universal, tal como a temos vindo a
apresentar. Senão vejamos: a questão da subjectividade universal toma lugar de destaque e de exacta importância (exactidão que não se confunde com a exactidão científica) no contexto da reflexão de
Rousseau; a questão é consistente, na medida em que assenta em sólidas interligações entre os seus
elementos (e.g. identidade e alteridade; universalidade e subjectividade, as interligações entre os elementos
da trilogia); não sendo simplista, a questão caracteriza-se por alguns elementos “simples”, como é a sua
trilogia e, quanto ao alcance e à fecundidade da questão, estes são por demais evidentes, facto que
procuramos reforçar neste derradeiro capítulo.
210
da Filosofia não se faz por meio de paradigmas, pelo que procede de uma nossa
transposição livre da concepção kuhniana mais filosófica do conceito. Esse sentido mais
filosófico de paradigma é sustentado pelo próprio autor: “[...] o termo ‘paradigma’ é
usado em dois sentidos diferentes. Por um lado, significa a inteira constelação de
crenças, valores, técnicas e assim por diante, partilhada pelos membros de uma dada
comunidade; por outro, denota um tipo de elemento nessa constelação, as soluções-
puzzle concretas que, aplicadas enquanto modelos ou exemplos, podem substituir regras
explícitas enquanto base para a solução dos restantes puzzles da ciência normal [...].
Filosoficamente, pelo menos, este segundo sentido de ‘paradigma’ é o mais profundo
dos dois”450
.
Numa transposição assumidamente livre deste conceito kuhniano
apresentado no excerto anterior para a reflexão rousseauniana, substituímos o termo
“solução” por “reflexão”, “puzzles” por “questões” e o conceito de “ciência normal”
pelo de “sociedade”. Assim, propomos a hipótese da questão da subjectividade
universal rousseauniana como paradigma, no sentido de consistir numa base para a
reflexão de questões relativas aos homens e à sociedade. Tal paradigma não se apresenta
como uma “solução” para todos os problemas e dificuldades intrínsecas à realidade
humana, mas pode vantajosamente servir de base à reflexão do homem contemporâneo,
no que respeita aos efeitos do progresso científico-tecnológico sobre a sua vivência, nos
termos da hipermodernidade em que vive, da qual destacamos a questão internética.
Nos dois sentidos apresentados por Kuhn, o paradigma é apresentado como uma
Weltanschauung, uma visão do mundo, mas é sobretudo ao segundo sentido que nos
reportamos para a nossa reflexão, considerado por Kuhn como o mais profundo e a
receber maior atenção filosófica: “Seja qual for o seu número, os usos de ‘paradigma’ no
livro dividem-se em dois conjuntos, que exigem nomes diferentes e discussões separadas.
Um sentido de ‘paradigma’ é global, abarcando todos os empenhamentos partilhados por
um grupo científico; o outro isola um género particularmente importante de
450 “[…] the term “paradigm” is used in two different senses. On the one hand, it stands for the entire constellation of beliefs, values, techniques, and so on shared by the members of a given community. On
the other, it denotes one sort of element in that constellation, the concrete puzzle-solutions which,
employed as models or examples, can replace explicit rules as a basis for the solution of the remaining
puzzles of normal science […]. Philosophically, at least, this second sense of “paradigm” is the deeper of
the two.” (KUHN, Thomas, “Postscript-1969”, in The Structure of Scientific Revolutions, 2ª ed., Chicago,
University of Chicago Press, 1970, p. 175).
211
empenhamento, e é assim um subconjunto do primeiro [e] exige urgentemente uma maior
atenção filosófica”451
.
Formulemos, portanto, a hipótese da consideração da questão da subjectividade
universal rousseauniana como um género paradigmático de reflexão, que mais do que
transportar uma visão global do mundo (enquanto “constelação de crenças, valores,
técnicas”), no primeiro sentido kuhniano, acarreta um modelo específico e
paradigmático de uma visão do homem, tomada como base para a reflexão de enigmas
(puzzles), e, no segundo sentido, já não enquanto aplicado à ciência (normal), mas
enquanto aplicado à vida dos homens em sociedade. Não estando no nosso intuito
explorar a hipótese da questão da subjectividade universal rousseauniana como um
paradigma, mas tão-só apresentá-la, convém ainda referir que, a partir do segundo
sentido kuhniano (não literalmente adoptado), perspectivamo-la como a possibilidade
de constituir um modelo específico e paradigmático de visão do homem, ao qual a
reflexão de algumas questões relativas a sociedades de tempos e lugares diferentes
poderão recorrer e ficar enriquecidas. Não se trata, portanto, da hipótese de uma visão
global e totalitária, capaz de tudo abarcar e compreender, mas de um modelo particular de
reflexão a ter em conta naquelas temáticas que remetem para a indagação da natureza
humana e para a aferição da felicidade que lhe convém, como é o caso da questão do
progresso científico-tecnológico, do homem hipermoderno e do homem internético.
Que a subjectividade universal rousseauniana é uma subjectividade paradigmática,
com os traços específicos que a caracterizam, sobre isso parece não haver grandes
dúvidas. A subjectividade tal qual é apresentada e partilhada por Rousseau é ela mesma
paradigmática, nos pontos e traços específicos que a mesma comporta: a relação
inextricável entre pensar e sentir, a consideração dos pares identidade/alteridade e
subjectividade/universalidade; a trilogia da subjectividade e a consciência à qual se
apresenta. Que a mesma consiste num paradigma de reflexão, essa não é já uma
consideração consensual. Mais consensual é o facto de a observação rousseauniana da
natureza humana corresponder a uma visão paradigmática do homem.
451 “Whatever their number, the usages of ‘paradigm’ in the book divide into two sets which require both
different names and separate discussion. One sense of ‘paradigm’ is global, embracing all the shared
commitments of a scientific group; the other isolate a particularly important sort of commitment and is thus a subject of the first [and] urgently needs philosophical attention.” (KUHN, Thomas, The Essential
Tension, op. cit., p. 294).
212
Mas que visão paradigmática é essa? Lerma Jasso refere uma subjectividade
paradigmática, que o investigador fundamenta com o que considera ser o humanismo
rousseauniano452
, humanismo que se manifesta nas reflexões políticas, morais e
estéticas. O autor destaca a observação da natureza humana como o alicerce do
humanismo rousseauniano. Não discordamos da sua tese, contudo vemos a questão da
subjectividade rousseauniana de outro modo. Aliás, a nossa resposta foi sendo dada, ao
longo do texto, sem que se chegasse a fazer a pergunta se a subjectividade universal de
Rousseau é uma subjectividade paradigmática. Recorrendo às reflexões constantes em
cada um dos capítulos anteriores, verificamos que a questão da subjectividade universal
de Rousseau assenta em pontos definidos que, no seu conjunto, sustentam uma
determinada visão do homem. Do exercício subjectivo e universal de indagação da
natureza originária do homem – cuja observação assenta na relação indestrinçável entre
pensar e sentir, capaz de reconhecer a trilogia das ideias/sentimentos que se apresenta à
consciência – resulta uma determinada visão da sociedade e do homem, a visão
rousseauniana, ou talvez se lhe deva chamar o paradigma de Rousseau. Uma visão que
carrega em si um caminho para os homens, independentemente do lugar e do tempo em
que vivem. Não se trata de uma visão do mundo, de um conjunto de crenças, máximas
ou princípios, nem de uma codificação universal da moral, ou da política, ou da
educação. Trata-se de uma visão do homem que tem em conta a sua universalidade, ao
mesmo tempo que salvaguarda a sua individualidade, sem recorrer à receita dogmática,
e sem levar a uma ideologia totalitarista. Uma visão do homem a ter em conta em
diferentes puzzles da realidade humana.
Além disso, a relação inextricável entre pensar e sentir na qual a subjectividade de
Rousseau assenta é ela mesma paradigmática. Não há dúvida que é difícil fundamentar
esta relação em Rousseau. O autor não chega a fazê-lo e o que nos dá são referências
múltiplas, díspares, mesmo contraditórias, em relação ao pensar e ao sentir, bem como
relativamente à razão e ao coração. Todavia, essa dificuldade resulta também da inédita
reflexão que Rousseau cunha nos seus textos. Como se nos dissesse sem pouca ironia:
pensar implica sentir, sentir implica pensar, e perceber esta relação só é possível pensando
e sentindo. Se lhe perguntássemos quais as razões, argumentos e fundamentos desta
relação, possivelmente responder-nos-ia como Santo Agostinho, no conhecido livro XI
452 Cf. LERMA JASSO, Héctor, “Una subjetividad paradigmática” (Cap. III), in La subjectividad en
Jean-Jacques Rousseau, op. cit., pp. 125-172.
213
das Confissões, em relação ao tempo. Qualquer coisa como: sei o que é a relação entre
sentir e pensar, mas se me perguntam o que é, não sei dizer. Esta relação que tão insólita
pareceu aos seus contemporâneos recebeu desenvolvimentos posteriores, que fazem
cruzar a tese filosófica segundo a qual existe uma relação simbiótica e íntima entre pensar
e sentir com os dados da ciência que a comprova, nomeadamente demonstrando a base
emocional e sentimental da razão. Como, por exemplo, faz Damásio453
, ao retomar (sem
fazer referência a Rousseau) a tese rousseauniana segundo a qual a razão se
desenvolveu a partir do sentir e, que, primeiramente, sentimos e só depois pensamos:
“Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento.
E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos
ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos
na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas
e operações do ser.”454
A subjectividade universal rousseauniana supõe a base sentimental da razão,
lado a lado com a tese inversa, segundo a qual os sentimentos, pelo menos aqueles
(quase todos) que surgem em sociedade, se encontram indissociáveis da razão, não
obstante a ausência de conhecimentos científicos ao nível neurobiológico das Lumières.
A observação da estátua de Glauco, quer dizer, o acesso à natureza humana ou ao
homem no seu estado natural só se faz, como vimos anteriormente, na concomitância
453 Não é uma leitura consensual a que Damásio faz de Descartes. Independentemente da polémica crítica damasiana ao pensamento cartesiano, faz para nós sentido mencionar este autor, pela presença que nas
suas ideias vemos de Rousseau. Recusando a divisão do homem em res cogitans e res extensa e a
perspectiva racionalista de Descartes, o autor investe na defesa de uma base sentimental e emocional da
razão. Apesar da total ausência de remissões a Rousseau ao longo dos seus livros (enquanto, por
contraste, são inúmeras as referências a outros filósofos), consideramos ser possível ver nas principais
propostas de Damásio algumas reminiscências rousseaunianas. E.g.: “[…] Os sentimentos têm sempre
uma palavra a dizer sobre o modo de funcionamento do resto do cérebro e da cognição. A sua influência é
imensa.” (DAMÁSIO, António, O Erro de Descartes, trad. Dora Vicente e Georgina Segurado, 15ª ed.,
Lisboa, Publicações Europa-América, 1994, p. 173). O autor defende explicitamente a ligação entre os
sentimentos e, por exemplo, a ideia e o sentido de responsabilidade. Cf. ibid., p. 206. 454 Ibid., p. 254. Vale a pena atentar na ideia de sentimento de fundo proposta por este autor: “[…] Chamo-lhe sentimento de fundo (background) porque têm origem em estados corporais de “fundo” e não
em estados emocionais […] o sentimento da própria vida, a sensação de existir. […] não são demasiado
positivos nem demasiado negativos […] Quando sentimos felicidade, cólera ou outra emoção, o
sentimento de fundo foi suplantado por um sentimento emocional. O sentimento de fundo é a nossa
imagem da paisagem do corpo quando esta não se encontra agitada pela emoção. […] Defendo que sem
eles o âmago da nossa representação do self seria destruído.” (ibid., pp. 164-165).
214
dos planos do pensar e do sentir. Neste contexto, não é demais lembrar que também os
elementos da trilogia são ideias e sentimentos, ideias a sentir, sentimentos a pensar.
Considerada como um paradigma, um paradigma assente na relação
indestrinçável entre a dimensão do pensar e a dimensão do sentir, interessa-nos perceber
de que modo a questão da subjectividade universal rousseauniana permite compreender
o homem contemporâneo, sob a alçada do incontestável e incessante progresso
científico-tecnológico. Importa-nos particularmente explorar esta temática, pois além de
ser uma das mais fulcrais das sociedades vigentes, está intimamente ligada à
hipermodernidade e à realidade internética, configurações da realidade actual às quais
dedicamos posteriormente uma breve reflexão. Ademais, quer a questão do progresso
científico-tecnológico, quer a hipermodernidade, quer ainda a realidade internética
retomam todas elas os diferentes pontos da subjectividade universal, como veremos.
Centremo-nos, para já, na questão do progresso científico-tecnológico. Com
efeito, o homem vive hoje no maior e mais rápido desenvolvimento das ciências, técnicas
e tecnologias alguma vez vivenciado. Esse desenvolvimento acentuado é apanágio dos
nossos dias e bandeira em punho das sociedades mais desenvolvidas. Todavia, o hiato que
Rousseau viu entre as ciências e a felicidade humana no seu tempo parece manter-se nos
dias de hoje: o extraordinário progresso científico dos séculos que do filósofo nos
separam parece não ter promovido homens mais felizes. Não obstante os novos
conhecimentos ao nível da astrofísica, microfísica, biologia molecular, genética, e os
sofisticados progressos tecnológicos que aparentemente oferecem maior bem-estar e
comodidades várias, existem diferentes estudos que mostram uma preocupante inércia e
uma contraditória insatisfação generalizada. Aqui, o contributo de Rousseau é duplo: por
um lado, mostra que a resignação não é resposta para qualquer situação menos boa em
que uma sociedade se encontre, visto que os males das sociedades humanas são efeito de
causa humana, podendo, pois, ser evitados e controlados pelos homens; por outro lado,
mostrando que não é a ciência (nem a tecnologia) que é má e que apenas os seus efeitos o
podem ser, evidencia a necessidade de repensar a própria ciência. Diz-nos Rousseau, logo
no Discours de 50:
“Se as nossas ciências são em vão, no objecto que elas propõem, elas são ainda mais perigosas
pelos efeitos que produzem [...]. Onde não há efeito, não há motivo para procurar: mas aqui o efeito é
215
certo, a depravação real, e as nossas almas corrompem-se à medida que as nossas ciências e as nossas
artes progrediram para a perfeição.”455
Rousseau pretende mais fazer travar os efeitos do desenvolvimento científico
(agora, também tecnológico) do que anular as causas em si mesmas. Deste modo,
alertando para os seus efeitos na vida e nas relações humanas, mostra a necessidade de
fazer aplicar a tese da responsabilidade humana, inerente à sua reflexão sobre a questão
do mal. Melzer resume deste modo o contributo de Rousseau: “A interpretação
rousseauniana do problema humano reduz tudo à dimensão horizontal, aos outros
homens. Todos os males da vida humana resultam da dependência pessoal e da opressão,
não da baixeza e de alegadas falhas do homem, ou da sua queda do alto de uma perfeição
maior, seja natural ou divina. Ora, um problema puramente horizontal requer
precisamente soluções horizontais”456
. Mostrando que os problemas humanos têm
soluções humanas, e que, no caso específico, os efeitos das ciências podem equivaler a
alguns desses problemas, Rousseau antecipa algumas conclusões que só surgirão
fundamentadas no século XX, e que dão origem à reflexão sobre a ciência, nos moldes
que o filósofo antevira.
Consideramos que os vectores que assomam na temática da subjectividade
universal rousseauniana muito têm a dizer sobre o impacto do progresso científico-
tecnológico, na vida do homem contemporâneo. Por vectores entendemos sentidos de
perspectivação, que se encontram no cerne da questão da subjectividade universal, quer
dizer, na demanda rousseauniana pela natureza humana. São eles: o reconhecimento da
interligação entre as diferentes esferas da sociedade; a concepção da felicidade como
não sendo restrita à individualidade; e, finalmente, a tese da responsabilidade humana,
subjacente à terceira ideia/sentimento da trilogia, intimamente relacionada com as
restantes ideias/sentimentos da mesma trilogia.
Vejamos quais são e como são estes vectores directa ou indirectamente
chamados a debate para a reflexão sobre a(s) ciência(s), desde os finais do segundo
455 “Si nos sciences sont vaines, dans l’objet qu’elles se proposent, elles sont encore plus dangereuses par
les effets qu’elles produisent […] Où il n’y a nul effet, il n’y a point de cause à chercher: mais ici l’effet
est certain, la dépravation réelle, et nos âmes se sont corrompus à mesure que nos sciences et nos arts se
sont avancées à la perfection.” (D1, seconde partie, OC III, pp. 18-19). 456 “[…] L’interprétation rousseauiste du problème humain réduit tout à la dimension horizontale, aux
autres hommes. Tous les maux de la vie humaine résultent de la dépendance personnelle et de
l’oppression, non de la bassesse et des insuffisances présumées de l’homme ou de sa chute du haut d’une
perfection supérieure, qu’elle soit naturelle ou divine. Or, un problème purement horizontal ne requiert
précisément que des solutions horizontales.” (MELZER, A., La bonté naturelle de l’homme – essai sur le
système de pensée de Rousseau, op. cit., p. 194).
216
milénio, no que respeita à perspectiva de uma sociedade cada vez mais complexa, bem
como aos alertas para as responsabilidades sociais dos cientistas, para uma ciência
socialmente integrada, ou, dito de outra forma, para uma ciência com consciência.
O primeiro vector aponta no sentido de pensar a sociedade na sua complexidade.
As diferentes vertentes e esferas sociais interligam-se e trazem consequências de umas
para as outras. O cruzamento entre as reflexões rousseaunianas, as políticas e as
educacionais, mostra que o filósofo tem bem presente a ideia de interacção que é
preciso estabelecer entre as diferentes esferas de uma sociedade; pensar o plano político
implica pensar o plano da educação, assim como pensar a ciência implica pensar os seus
efeitos na sociedade. E isto diz muito sobre os avanços que a reflexão sobre a ciência
tem vindo a receber, ao mesmo tempo que ocorre a evolução dos conhecimentos da
ciência, e, especificamente, dos eventos tecnológicos.
Considerando a felicidade como não se restringindo à esfera individual, o
segundo vector relaciona-se com o reconhecimento das ideias/sentimentos da trilogia da
subjectividade que se apresenta à consciência e aponta para a questão dos efeitos e das
consequências do progresso científico-tecnológico, causas de maior ou menor
(in)felicidade. A primeira ideia/sentimento, a dialéctica ser/parecer, mostra que é
preciso reflectir sobre os ornamentos civilizacionais que envolvem a estátua de Glauco,
onde metaforicamente se encontra a natureza humana, sempre revestida de novos e
diferentes contornos, dos quais destacamos os mais recentes progressos científicos,
patentes nas novas tecnologias. A segunda ideia/sentimento da trilogia mostra que, em
todos os tempos e lugares, é imperioso atentar na distinção entre estado de natureza e
estado de civilização, isto é, pensar e sentir o que o homem é e o que parece. Uma
sociedade em constante mutação e sob um incessante desenvolvimento científico-
tecnológico é uma sociedade cada vez mais afastada da natureza, pelo que urge trazer à
luz a natureza originária e universal dos homens e a felicidade que lhe convém.
O terceiro vector dita o sentido da tese da responsabilidade humana,
directamente relacionado com a questão da evitabilidade do (ab)uso do mal. Das três
ideias/sentimentos da trilogia, é porventura a que traz maiores consequências para a
nossa questão. Sendo o mal exclusivamente humano, tudo o que o homem faz resulta da
sua responsabilidade, tendo também a responsabilidade de fazer minorar, quando e
quanto possível, os males que ele próprio vai criando ao longo da história, isto é,
colmatar os efeitos nefastos que o progresso (e.g. científico-tecnológico) acarreta.
217
Nas suas entrelinhas, vemos o reconhecimento rousseauniano da necessidade de
uma reflexão sobre a Ciência457
(que, nos finais do séc. XX, recebeu o nome de Science of
Science), bem como da tese da responsabilização social do cientista, defendida por
autores como Morin e Bernal.458
Vejamos as semelhanças entre autores como Bernal e Morin, que destacam a
contradição entre o progresso do conhecimento científico e o progresso da ignorância
sobre o homem, e a crítica que Rousseau empreende à evolução das artes e das ciências,
no Discours de 50, crítica que surge repetida noutros textos, como tivemos oportunidade
de ver anteriormente. Bernal refere que “o poderio que a ciência nos conferiu parece
mais imediatamente capaz de apagar do nosso planeta a civilização e até a vida, que de
assegurar-nos um progresso ininterrupto nas artes da paz”459
. Morin diz-nos: “[…]
sabemos agora que a vida se organiza em função de um código genético que se encontra
no ácido desoxirribonucleico. Mas onde nasceu esta informação codificada? Como se
produziu? Qual é o sentido da evolução, se existe algum? Qual é o sentido da nossa
existência? E qual é a natureza deste espírito com o qual nós pensamos tudo isto? Por
outras palavras: correlativamente com um progresso dos conhecimentos, há um progresso
da incerteza e, diria mesmo, um progresso da ignorância”460
. Vemos como, subjacente à
categoria ética da responsabilidade na esfera científica, está a tese rousseauniana da
responsabilidade humana, tese que se prende directamente com a terceira ideia/
sentimento da trilogia que identificámos. Com efeito, pode facilmente constatar-se que a
tese da responsabilidade social do cientista, circunstancialmente surgida apenas na
segunda metade do século passado, poderia ter resultado do exercício subjectivo
457 A este propósito, não podemos deixar de referir a obra de Mariano Gago, publicada no início da
década de 90, cuja reflexão muito contribuiu para a reflexão sobre a ciência em Portugal. O autor
chamava a atenção para o isolamento da ciência nacional, não só em relação à sociedade, à cidadania e à
educação, mas também face aos restantes países. O isolamento “exprime-se em várias frentes: a frente do
isolamento do país em relação ao estrangeiro, aos grandes movimentos internacionais da cultura científica
ou à prática quotidiana de contribuir para o aperfeiçoamento das ciências e das técnicas; a frente do
isolamento da actividade científica na cultura e na sociedade, o seu enraizamento débil na cidadania, nas
escolhas sociais e políticas, no ensino […].” (MARIANO GAGO, José, Manifesto para a ciência em
Portugal, Lisboa, Gradiva, 1990, p. 39). 458 Já desde há algumas décadas que autores como Bernal e Morin trabalham na definição de
responsabilidades sociais, históricas e culturais da ciência e do investigador científico. 459 BERNAL, J. D., Science in History (1954), Tr. Port. Ciência na História, trad. António Neves Pedro, Lisboa, Horizonte, 1976, vol. I, p. 9. Numa obra cuja segunda parte é exclusivamente dedicada às origens
da ciência com enfoque especial na ciência do mundo antigo (a Idade do Ferro e os primórdios da ciência
grega), é a primeira parte que mais nos interessa e que reflecte “as interacções entre a ciência e a
sociedade”, que é precisamente o título do último sub-capítulo da primeira parte. (ibid., pp. 7-53). 460 MORIN, Edgar, Science avec Conscience (1982), Tr. Port. Ciência com Consciência, trad. Maria
Gabriela de Bragança, Lisboa, Europa-América, 1982, p. 52.
218
rousseauniano da demanda pelo que o homem é sem a ciência e sem a tecnologia, a fim
de aferir como pode melhor ser e viver precisamente com a ciência e a tecnologia.
Morin usa a expressão “ciência com consciência” para referir uma ciência de
responsabilidade, uma ética do investigador, um código deontológico do cientista. A
reflexão sobre os efeitos da ciência impôs-se desde o último século e com ela a
responsabilização social do cientista, “uma maior consciência da ciência”, “da sua
posição na sociedade” e “da sua função social”461
. Com a responsabilização social do
cientista e com a convicção de que a investigação científica deve ser pensada
socialmente462
vem à luz também a convicção de que a ciência não se faz
isoladamente463
, e que não está fora da esfera social, como não pode estar longe da
política, nem da educação, esferas cuja interligação surge exemplarmente estabelecida
nos textos rousseaunianos, como tivemos oportunidade de mostrar ao longo do nosso
texto. A ideia de uma ciência da ciência está em consonância com a ideia pioneira de
Rousseau acerca das interacções particulares, internas e intrínsecas à interacção social:
“Uma ciência da ciência exige que se conceba o conhecimento de todo o conhecimento
no seu enraizamento a um tempo cerebral, espiritual, noológico, cultural, social e
histórico”464
. Com o desenfreado desenvolvimento das técnicas e das tecnologias, o
terceiro milénio parece ir ao encontro da necessidade de os homens ouvirem a sua
consciência, de modo a evitar os efeitos negativos da utilização abusiva das técnicas e
das tecnologias que os rodeiam. Rousseau mostrara já que, se, por um lado, essa tomada
de consciência é individual, por outro, tem um carácter colectivo e universal, como
vimos anteriormente.465
Dada a complexidade da realidade social, a consciência é
também cultural, política, educacional, e o reconhecimento dos seus conteúdos e da
trilogia que se lhe apresenta apela à prática e à acção virtuosa, em prol da sociedade, do
bem comum e da felicidade dos homens. Estas palavras de Morin poderiam bem ser de
Rousseau: “Enquanto o conhecimento científico for cego para o papel que desempenha
461 BERNAL, J. D., “After twenty-five years”, in AAVV, The Science of Science (ed. by Maurice
GOLDSCHMITH and Alan MACKAY), London, Souvenir Press Ltd., 1964. 462 Trata-se de pensar a ciência já não de modo elitista nem isolado da sociedade, mas enquanto parte
integrante da mesma, na mobilização dos seus recursos naturais e humanos, nos seus objectivos e efeitos.
(cf. COBLANS, Herbert, “The communication of Information”, in AAVV, The Science of Science, op.
cit., p. 93). 463 Bernal refere explicitamente a necessidade de esclarecer “a função da ciência na sociedade, a
militarização da ciência, as relações da ciência com o governo […], o lugar da ciência na educação e na
cultura em geral.” (BERNAL, J. D., Science in History, Tr. Port. op. cit., p. 7). 464 MORIN, Edgar, Science avec Conscience, Tr. Port. op. cit., p. 46 465 Cf. o carácter duplo da consciência em II. 3. A trilogia da subjectividade universal que se apresenta à
consciência, pp. 113-122.
219
na sociedade e o lugar que ocupa na sociedade, continuará a fornecer ao poder meios de
morte e de opressão. Embora insuficiente, a consciência deste papel torna-se necessária
para fazer frutificar os seus benefícios e as suas possibilidades de libertação.”466
Na verdade, parece-nos que Rousseau poderá estar na vanguarda de um
movimento que, com Morin, recebe a nomenclatura de paradigma da complexidade467
:
“chamo paradigma da complexidade ao conjunto dos princípios de inteligibilidade que,
ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do
universo (físico, biológico, antropossocial)”468
. Ainda que Rousseau não tenha ido tão
longe, a visão que tem da sociedade e das próprias ciências, dando importância máxima
à natureza e à felicidade humanas como sustentáculos do seu habitat social, incluindo
todas as suas dimensões, mostra bem a noção que Rousseau tem, já no séc. XVIII, da
complexidade e da interacção inerentes à realidade humana. O sentido da sua
subjectividade universal é o de alertar para a importância de uma razão consciente da
sua complexidade, no seu duplo plano, o do pensar e o do sentir. E uma razão
consciente de si mesma reconhece a abrangência e a fecundidade da consciência: trata-
se de uma consciência social, política, ética e científica. Dotado de uma consciência que
se reconhece no exercício de subjectividade universal, o homem não deixa asfixiar-se
pela situação histórica em que vive. Neste sentido, e uma vez que a consciência fala a
voz da natureza e incentiva à prática da virtude, a ética torna-se também transversal às
diferentes dimensões da sociedade humana.
A questão transversal que aqui se coloca é precisamente a de saber se é ou não
possível “uma mesma ética para todos(?)”, questão que Rousseau não coloca, mas
mostra ser possível; não recorrendo ao imperativo categórico, como Kant fez, Rousseau
antecipa a possibilidade de uma ética para todos, podendo deduzir-se das suas reflexões
a defesa de uma ética (naturalmente) universal. No seio da constatação da diversidade
466 MORIN, Edgar, Science avec Conscience, Tr. Port. op. cit., p. 47. 467 Morin estabelece ligações entre a ciência, a filosofia e a política: “a história da ciência é percorrida por
grandes unificações transdisciplinares marcadas com os nomes de Newton, Maxwell, Einstein, o
resplendor de filosofias subjacentes (empirismo, positivismo, pragmatismo) ou de imperialismos teóricos
(marxismo, freudismo).” (ibid., p. 217). E no interior da ciência combate-se pela transdisciplinaridade, que utiliza na sua própria investigação: “Tive de procurar as minhas fontes de informação em várias
disciplinas separadas (Etnografia, História das Religiões, História das Civilizações, História das Ideias,
Sociologia e também Biologia) e, para interpretar, não só alarguei a minha concepção marxista da
história, mas também liguei-a, naturalmente, àquilo que me ensinavam os psicanalistas (Freud, Jung,
Rank, Ferenczi, Lacan, sem esquecer Bachelard).” (ibid., p. 8). 468 Ibid., p. 246.
220
cultural e de diversas éticas subjacentes, a pergunta é feita por alguns autores469
,
oriundos de diferentes ramos de especialidade (filósofos, cientistas, físicos, sociólogos),
cuja resposta é unanimemente afirmativa. Apesar de todos eles levantarem problemas e
obstáculos a uma formulação universal da ética, cada um deles fornece determinados
valores de referência a serem contemplados numa conduta ética universal.
Ainda neste ponto, no qual nos permitimos construir livremente algumas pontes
entre Rousseau e a reflexão sobre o homem contemporâneo, especificamente no que
respeita aos efeitos do progresso científico-tecnológico, não podemos deixar de referir
duas obras, uma de 1627 e outra de 1932, que apresentam de forma ficcional sociedades
“sobredesenvolvidas”. A primeira obra é New Atlantis, de Francis Bacon; a segunda,
Brave New World, de Aldous Huxley.
New Atlantis parte do mito, já referido por Platão, da existência de uma
civilização extremamente desenvolvida, localizada numa ilha perdida, algures no
Oceano Atlântico. Bacon descreve-a como uma sociedade igual e justa que alia um
apurado desenvolvimento científico ao bem-estar e à felicidade dos homens. A “Casa de
Salomão” consiste numa “fundação”470
constituída pelos sábios e cientistas, e onde cada
um dos membros desempenha uma função precisa, numa sociedade que alia o avanço
científico, nomeadamente no campo da medicina, a um forte teor religioso, visível nos
símbolos, rituais, práticas e preceitos de conduta de todos os seus membros. Todos os
conhecimentos científicos que circulam na Casa de Salomão resultam misteriosamente
de pesquisas e informações extraídas de todos os países do mundo pelos “mercadores da
luz”471
. Controlando e dominando a natureza pelas suas técnicas científicas (que
permitiam a previsão e o controle de fenómenos naturais como as tempestades), a Ilha
de Atlântida mantinha ainda assim um profundo respeito pela natureza.
469 Entre outros, referimo-nos a: Jean-Pierre CHANGEUX, Olivier de DINECHIN, Camilo CELA-
CONDE, Henri ATALN, François HÉRITIER, Jacques MEHLER e Franck RAMUS, Mireille
DELMAS-MARTY, Ali MÉRAD, François DUBET, Luc FERRY e Lucien SEVE. Cf. AAVV, Uma
Ética para todos? (dir. Jean-Pierre CHANGEUX), trad. Joana Chaves, Lisboa, Instituto Piaget, 1999. 470 A Casa de Salomão seria o espaço privilegiado dos membros da comunidade científica: “[…] para que
conheçais a verdadeira condição da Casa de Salomão, falarei pela seguinte ordem. Primeiro, far-vos-ei
compreender o objectivo da nossa fundação; segundo, os aprestos e instrumentos de que dispomos para os
nossos trabalhos; terceiro, os vários empregos e funções que estão destinados aos nossos membros e quarto, as normas e ritos que observamos.” Cf. BACON, Francis, New Atlantis – A Work unfinished
(1659) Tr. Port. Nova Atlântida, trad. Fernanda P. Rodrigues, Lisboa, Editorial Minerva, 1976, pp. 59-60. 471 Os “mercadores da luz” dividiam-se em várias categorias, entre as quais a dos “predadores”, que
recolhiam informações dos livros; “os homens dos mistérios”, que se dedicavam às artes mecânicas, os
“pioneiros do mistério”, encarregados dos testes e experimentações várias, os “luminares”, cuja função
consistia na avaliação das novas técnicas que iam sendo desenvolvidas.
221
Por sua vez, Brave New World descreve uma sociedade futura, que surgiria em
2540, fruto do progresso desenfreado dos homens, e na qual são apresentados grandes
desenvolvimentos, patentes, por exemplo, na tecnologia reprodutiva, em que homens
passam a ser “reproduzidos” em laboratórios, sob o princípio da produção em série.
Essa sociedade está hierarquizada e estratificada em castas, uma espécie de classes
sociais, sob a nomenclatura de Alfas, Betas, Gamas, Deltas e Epsilões472
, com funções
determinadas na sociedade. Deixa de haver os “seres humanos” para dar lugar aos
“homens-máquina”, e se há uma personagem que pensa por si própria (Bernard Marx), é
resultado de falha técnica. A ideia do que era antigamente a família e o lar causa
vómitos aos homens-máquina; a alimentação é feita em cápsulas; a “soma” consiste
numa droga que se toma para manter os homens devidamente encaixados na rígida
pirâmide social (social?); a educação, baseada no condicionamento comportamental, é
feita de modo calculado e manipulatório. A associação entre felicidade e progresso é
introduzida da seguinte forma: ouve-se a mesma gravação com “toda a gente é feliz” e
“o progresso é com efeito uma coisa deliciosa”, uma centena e meia de vezes, todas as
noites desde o “nascimento” até aos 12 anos; dos 13 aos 17 anos, 500 repetições, uma
vez por semana473
. Para que fique instalado um ódio instintivo à literatura e à botânica
durante toda a sua vida, nos membros das castas inferiores, destinados apenas ao
trabalho mecânico e repetitivo nas fábricas, é-lhes submetido o seguinte processo (nos
chamados infantários de “condicionamento neo-pavloviano”): em salas gigantescas, os
bebés são levados por enfermeiras-robôs até ao fundo das salas, nas quais se encontram
alguns livros e plantas, e ao mesmo tempo que se aproximam das mesmas, os bebés vão
ouvindo sirenes altíssimas que aumentam a cada passo.474
Tendo em conta as caricaturas expostas nas duas obras, é de sentir algum alívio,
que se deve ao facto de a comunidade científica ter, nas últimas décadas, vindo a tomar
consciência da necessidade de uma reflexão filosófica séria e rigorosa acerca das
responsabilidades e consequências sociais, políticas e éticas das suas investigações,
descobertas e conquistas. Nada está perdido, como, afinal, nada está ganho. A visão
472 Os Betas, por exemplo, são submetidos a vários processos de interiorização da sua função e do seu lugar, sendo-lhes indicado que são inferiores aos Alfas, que são “formidavelmente mais inteligentes” e
“trabalham muito mais” do que eles, e “muito superiores aos Gamas e aos Deltas”, sendo “os Epsilões
ainda piores”. Cf. HUXLEY, Aldous, Brave New Worl (1932), Tr. Port. Admirável Mundo Novo, trad.
Mário Henrique Leiria, Círculo de Leitores, 1976, pp. 36-37. 473 Ibid., pp. 88 e 95. 474 Ibid., pp. 30-32.
222
rousseauniana do homem não é moralista nem derrotista, antes alerta para a
responsabilidade dos homens pelos efeitos dos seus próprios feitos.
Perante as realidades apresentadas pelas duas obras, poder-se-á perguntar se
Rousseau optaria pela perspectiva optimista e utópica de Bacon ou pela perspectiva
pessimista e de alerta de Huxley?
A temática do optimismo, bem como a do pessimismo na obra de Rousseau não
é consensualmente abordada pelos seus investigadores. Lado a lado com autores que o
consideram um optimista, como Hendel475
, existem autores, como Philonenko476
que o
consideram pessimista e derrotista. Nesta última ala, encontra-se a tendência de
justificar a perspectiva do pessimismo com as conclusões que os autores vêem decorrer
da reflexão política de Rousseau: “As conclusões de Rousseau, resumidas por
Hoffmann e Fidler, são pessimistas: i) as ‘combinações’ de Estados que possam surgir
tendem a ser competitivas; ii) a possibilidade de uma ‘sociedade geral da humanidade’ é
improvável; iii) a paz pela dominação imperial seria sempre precária”477
. Os autores
referem ainda a resignação rousseauniana relativamente à guerra entre Estados,
antevendo uma impossível paz internacional, e muito menos universal.
Voltaire acusa Rousseau de querer voltar ao estado de natureza: “Agradareis aos
homens a quem dizeis as suas verdades, mas não conseguireis corrigi-los. Vós pintais
com cores bem verdadeiras os horrores da sociedade humana, em que a nossa
ignorância e a fraqueza prometem tantas consolações. Nunca se utilizou tanto espírito a
querer tornar-nos animais; tem-se vontade de voltar a andar de gatas, quando se lê o
vosso livro”478
. Rousseau, como sabemos, defendeu-se, e bem, da acusação479
. Em
momento algum da sua obra encontramos a ideia de um regresso ao paraíso perdido do
estado de natureza.
475 Hendel defende um optimismo rousseauniano, a partir da análise da correspondência entre Rousseau e
Voltaire. Cf. “The optimist”, in HENDEL, Ch.W., Jean-Jacques Rousseau: Moralist, New York, Bobbs-
Merril, 1934, pp. 227-240. 476 Cf. Philonenko salienta o “diagnóstico assustador” empreendido pelo “médico” Rousseau. Cf.
PHILONENKO, Alexis, Jean-Jacques Rousseau et la Pensée du Malheur – Le Traité du Mal, vol. I.,
Paris, Vrin, 1984, pp. 8-9. 477 FONSECA JR., Gelson, Rousseau e as Relações Internacionais, op. cit., pp. LIX-LX. 478 “Vous plairez aux hommes à qui vous dites leurs vérités, et vous ne les corrigerez pas. Vous peignez
avec des couleurs bien vrais les horreurs de la société humaine dont l’ignorance et la faiblesse se promettent tant de douceurs. On n’a jamais tant employé d’esprit à vouloir nos rendre bêtes. Il prend
envie de marcher à quatre pattes quand on lit votre ouvrage.” (VOLTAIRE, F. M., “À Jean-Jacques
Rousseau – aus Délices près de Genève” [30 Août 1755], in Voltaire. Correspondance, éd. Theodore
Bertermann, Paris, Galimard, 1977-1988, 12 vols., vol. IV, p. 539). 479 Cf. excerto da carta de resposta a Voltaire, na citação que escolhemos para entrada de IV. 3. A
conquista adiada da felicidade, na vida e na história dos homens (p. 192).
223
Cassirer coloca-o na senda dos que não resolveram bem a questão do optimismo
versus pessimismo, tendendo a colocá-lo na ala dos pessimistas. O autor neo-kantiano
situa Kant entre o irónico e sarcástico Candide, ou l'Optimisme de Voltaire e a obra de
Rousseau (cujo confronto com Voltaire é bem visível na correspondência entre os dois):
“Ele [Kant] decidiu contra Rousseau e a favor de Voltaire? Esta questão só pode ser
respondida se tivermos presente a transformação que ele efectuou na forma de colocar o
problema. Se por optimismo queremos dizer que a totalidade do prazer excede a
totalidade da dor na vida de um indivíduo ou da humanidade em geral, Kant nega
enfaticamente tal doutrina, e sem ambiguidade, tal como Voltaire ou Schopenhauer
[...]”.480
Cassirer refere que Kant corrige a dificuldade de Rousseau no que toca ao
conflito optimismo/pessimismo: “Tal solução do conflito entre ‘optimismo’ e
‘pessimismo’, e tal transcendência da ‘dialéctica da razão prática pura’, da oposição
entre felicidade (Glückseligkeit) e ser digno de felicidade (Glückwürdigkeit) era
impossível para Rousseau. Isso exigiria que ele abandonasse o eudemonismo com base
nas suas opiniões éticas e religiosas, pelas quais lutou apaixonadamente. Para Kant, a
rejeição do eudemonismo definitivamente elimina um aspecto do pensamento de
Rousseau. A quimera de uma Idade de Ouro e o idílio de uma Arcádia pastoral
desapareceram.”481
Cassirer vê em Kant o optimismo sustentado que faltava a Rousseau. Não
negamos que o filósofo de Königsberg é um adepto fervoroso do progresso humano, e a
sua vasta e multifacetada obra patenteiam esse facto. Kant é o mais justamente
reconhecido filósofo da Aufklärung e das potencialidades da razão humana. Mas o
optimismo de Kant não faz de Rousseau nem um pessimista nem um filósofo dotado de
uma menor capacidade de fundamentação filosófica do optimismo. Por exemplo,
Rousseau desconfia, é certo, da possibilidade efectiva de uma sociedade democrática,
480 “Did he [Kant] decide against Rousseau and in favor of Voltaire? This question can be answered only
if we keep in mind the transformation he effected in the way of putting the problem. If we mean by
optimism that the totality of pleasure exceeds the totality of pain in the life of an individual or of mankind
in general, Kant denies such a doctrine as emphatically and unambiguously as Voltaire or Schopenhauer
[…].” (CASSIRER, Ernst, Rousseau-Kant-Goethe, op. cit., p. 39). 481 Such a solution of the conflict between ‘optimism’ and ‘pessimism’, and such a transcending of the
‘dialectic of pure practical reason’, of the opposition between happiness (Glückseligkeit) and being
worthy of happiness (Glückwürdigkeit) was impossible for Rousseau. It would have required him to
abandon the eudemonism at the basis of his ethical and religious views, for which he fought passionately.
But for Kant the rejection of eudemonism definitely eliminates one aspect of Rousseau’s thought. The
chimera of a Golden Age and the idylle of a pastoral Arcady has disappeared. […].” (ibid., p. 40).
224
mas não deixa de investir a sua reflexão sobre os princípios do direito político e sobre
os fundamentos para uma sociedade justa de homens livres.
Rousseau considera infecundos, quer o optimismo leibniziano que vê este como
“o melhor dos mundos possíveis”, quer o optimismo que Pope lançou no seu poema
filosófico An essay on man (1734):
“Segundo Leibniz e Pope, tudo o que está, está bem […] o optimismo por si não faz nada, nem a
favor, nem contra […].”482
O filósofo não é, pois, nem optimista, nem pessimista, é essencialmente um
observador de um passado conjectural, de um presente concreto, com o olhar no futuro.
A felicidade humana é possível, Rousseau mostra a sua viabilidade e com esta, também
a sua fragilidade. Tal como refere Todorov, a via que Rousseau “recomendou sem
reserva. […] não conduz automaticamente à felicidade e, quando o faz, esta felicidade
não tem nada de certeza absoluta, de descanso definitivo. Consiste em praticar uma boa
sociabilidade; não é muito, mas talvez seja tudo o que é possível aos seres humanos,
extraindo, como diz Rousseau, o seu remédio da natureza mesma do seu mal […].
Assim, da nossa imperfeição nasce a nossa frágil felicidade”483
.
Se o filósofo acusa uma evolução negativa das ciências, não é para defender o
pessimismo, mas para alertar as consciências. À reflexão de Rousseau não interessa nem
o optimismo, nem o pessimismo. Importando-o para a nossa questão, o que se lhe impõe
é a observação do progresso das ciências, dos seus efeitos, pensá-los e senti-los,
aferindo se os mesmos vão ou não ao encontro da natureza e da felicidade dos homens,
e se respeitam o bem comum da sociedade, nas circunstâncias específicas dos tempos e
dos lugares em que vão ocorrendo.
É neste sentido que vão os desafios da complexidade que Morin enuncia para o
terceiro milénio, em O Desafio do século XXI, desafios que, à maneira rousseauniana, se
baseiam na constatação de contradições. O primeiro é o desafio da globalidade, no
contexto da contradição existente entre um saber cada vez mais fragmentário e
482 Selon Leibniz et Pope, tout ce qui est, est bien, […] l’optimisme bien entendu ne fait rien ni pour ni
contre […].” (Lettre de J. J. Rousseau à Monsieur Philopolis, OC III, p. 233). 483 “[ L'itinéraire] qu’il recommande sans réserve ne conduit pas automatiquement au bonheur ; et, quand
elle le fait, ce bonheur n’a rien d’une certitude absolue, d’un repos définitif. Elle consiste à pratiquer une
bonne socialité: ce n’est pas beaucoup, mais c’est peut-être tout ce qui est accessible aux êtres humains ;
ils tirent là, comme le dit Rousseau, leur remède de la nature même de leur mal […]. Ainsi de notre
infirmité même naît notre frêle bonheur.” (TODOROV, Tzvetan, Frêle bonheur – Essai sur Rousseau,
Paris, Hachette, 1985, pp. 86-87).
225
realidades cada vez mais globais e multidimensionais. O segundo desafio diz respeito
aos novos tempos do ensino e da transmissão dos saberes, no contexto da contradição
entre o aumento ininterrupto dos saberes e a dificuldade cada vez mais crescente em os
organizar num todo. Para este autor, os desafios da complexidade resumem-se a três:
religar, contextualizar e globalizar os diferentes saberes e conhecimentos em torno do
que importa: o homem.484
A reflexão sobre a ciência, com tudo o que implica, deve
corresponder à reflexão sobre o homem. Reflectir sobre o homem é reflectir sobre a sua
vida. E reflectir sobre a vida humana é procurar saber como podem as diferentes
ciências e tecnologias, os diversos saberes e conhecimentos melhorar a qualidade de
vida dos homens, tornando-os mais felizes.
Ora, face ao progresso científico-tecnológico e ao seu impacto num mundo em
plena mutação, em que as sociedades (sobre)vivem numa múltipla e indefinida
dinâmica, que melhor oportunidade para colocar de novo a observação e a compreensão
rousseauniana do homem no cerne da reflexão?
V.2. A subjectividade universal rousseauniana e o homem contemporâneo
V. 2. 1. O exemplo do homem hipermoderno
“Je ne m’arrêterai pas à décrire l’invention successive […], le progrès des langues, l’épreuve et l’emploi
des talents, l’inégalité des fortunes, l’usage ou l’abus des richesses, ni tous les détails qui suivent ceux-ci,
et que chacun peut aisément suppléer. Je me bornerai seulement à jeter un coup d’œil sur le genre
humain placé dans ce nouvel ordre de choses.”
(ROUSSEAU, J.-J., Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, O.C III,
1964, p. 174)
O maior contributo da subjectividade universal para a reflexão sobre a
hipermodernidade é precisamente a pertinência actual da lição da observação
rousseauniana do homem e do seu lugar na “nova ordem de coisas [em que] ser e
parecer se tornaram [hoje mais ainda do que no seu tempo] duas coisas completamente
diferentes […]” (D2, p.174). O recurso à observação que Rousseau empreende sobre o
homem, no mais singular e universal exercício de subjectividade, surge como uma
mais-valia para a compreensão do homem dos tempos hipermodernos. Rousseau leva-
484 Cf. MORIN, Edgar, “Introdução às Jornadas Temáticas” e “Os desafios da complexidade”, in AAVV,
O desafio do século XXI – religar os conhecimentos” (sob a direcção de Edgar MORIN), trad. Ana
Rabaça, Lisboa, Instituto Piaget, 2001, pp. 9-17 e 491-497, respectivamente. Esta obra reúne textos de
vários autores, de diferenciados ramos de especialização (Filosofia, História, Psicologia, Geografia,
Climatologia, Biologia, Medicina, Geologia, Fisiologia, Etologia, Matemática, Física, Música).
226
nos a interrogarmo-nos se é no sentido deste homem hipermoderno que queremos
educar e formar as nossas crianças e os nossos jovens.
Neste ponto, incidimos a nossa reflexão sobre três questões principais:
a) A modernidade, a pós-modernidade e a hipermodernidade: da razão convicta
e iluminada à razão complexa e frágil.
b) A hipermodernidade e a felicidade paradoxal do homem
c) A subjectividade universal, a reflexão rousseauniana sobre o homem e ainda
a educação que importa.
A evolução da razão acompanha a história dos homens e as suas grandes
mudanças. O racionalismo clássico não se confunde com a razão medieval, que pouco
tem em comum com a razão moderna ou iluminada, menos ainda com a razão
instrumental ou tecnológica. Atentemos, por breves instantes, nas configurações que a
razão tem vindo a receber, nos últimos séculos.
É bem conhecida a afirmação hegeliana segundo a qual a filosofia ocidental não
teria sido mais do que um comentário da filosofia de Platão e de Aristóteles. O
pensamento filosófico hegeliano é destacado como exemplo dos grandes sistemas
filosóficos, e Hegel é frequentemente referido como o filósofo que inaugura o discurso
da modernidade, mesmo que disso não tivesse dado conta. A partir de Hegel, a razão
sofre reinterpretações várias, e a crítica da modernidade torna-se inevitável. Muitos são
os autores que se dedicam a repensar a modernidade da razão, e a sua evolução. Em Der
philosophische Diskurs der Moderne (1985), Habermas propõe-se fazer o discurso da
modernidade, identificando “uma censura que é feita pelos seus detractores que, na
essência, tem sido sempre a mesma, desde Hegel e Marx até Nietzsche e Heidegger,
desde Bataille e Lacan até Foucault e Derrida. Esta acusação é dirigida contra uma
razão que se funda no princípio da subjectividade, e consiste em afirmar que esta razão
só denuncia e procura abalar todas as formas de extensiva opressão e exploração, de
aviltamento e de alienação, a fim de, no lugar delas, impor o domínio inexpugnável da
própria racionalidade”485
.
Já antes do filósofo da ética discursiva, da acção comunicativa e emancipatória,
outros pensadores associados à Escola de Frankfurt se tinham debruçado sobre as
485 HABERMAS, J., Der philosophische Diskurs der Moderne (1985), Tr. Port. Discurso Filosófico da
Modernidade, tradutores vários, revisão científica de António Marques, Lisboa, D. Quixote, 1990, p. 63.
227
reflexões de Kant, Hegel, Marx, Freud, Weber e Lukács, estabelecendo ligações entre as
mesmas, e procurando compreender o percurso da razão e da modernidade, numa
palavra, as consequências da razão das Luzes. Destes, destacam-se Horkheimer e
Adorno, que vêem na evolução da razão um processo de “autodestruição da razão [e] de
desencantamento”486
. A evolução da razão canalizada para o fabrico e reprodução de
técnicas e tecnologias intensificou a exploração e a dominação do homem sobre o
homem. A aventura da Razão e a sua procura pela desmistificação tornou a razão o
novo mito. A razão não ultrapassou a alienação, pelo contrário, aprofundou-a,
alimentou-a, e a sua ruína materializou-se nas ruínas da Europa, nas ruínas do mundo.
Recorrendo à Odisseia de Homero, os autores mostram Ulisses como o herói de uma
razão pervertida.
São muitos e muito rápidos os passos dados pela razão, desde a modernidade à
pós-modernidade e hipermodernidade, desde uma razão convicta e iluminada a uma
razão complexa e frágil. Morin fala-nos de um processo de desumanização da razão,
intensificada ao longo do último século, e que estipula a sobrevalorização do interesse
económico face aos outros interesses humanos – “por exemplo, pode explicar-se os
campos de extermínio hitlerianos pelo interesse que tinham as grandes firmas industriais
alemãs em fazer sabão barato com a gordura dos deportados.”487
.
Há diversos registos sobre a evolução da razão, concretamente sobre o modo
como evoluiu nos últimos séculos. Sfez apresenta três etapas da evolução da linguagem,
que correspondem a três metáforas, que, por sua vez, veiculam três visões do mundo,
que se sucederam ao longo do processo da tecnologização da razão. A primeira etapa
remonta ainda ao séc. XVII: a metáfora é a da máquina, a linguagem é a da
representação, e a visão do mundo baseia-se na distinção entre o representado e o
representante. A segunda etapa corresponde aos séculos posteriores488
: a metáfora é a do
organismo, a linguagem é a da expressão, e a visão do mundo é orgânica. A terceira
etapa está ainda a decorrer: a metáfora é a de Frankenstein, a linguagem é
486 HORKHEIMER/ADORNO, Dialektik der Aufklärung (1947), Tr. Fr. La dialectique de la Raison* - Fragments philosophiques, trad. Eliane Kaufholz, Paris, Gallimard, 1974, p. 13. Os autores consideram
que a humanidade se encontra “numa nova forma de barbárie” (ibid., p. 13). * A tradutora adaptou
“Raison” para traduzir “Aufklärung”, constante do título original. 487 MORIN, Edgar, Science avec Conscience, Tr. Port. op. cit., p. 207. 488 Sfez não precisa a época histórica a que remete, mas refere Morin e a sua interpretação orgânica da
complexidade da realidade. Cf. SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 32.
228
confusionante, e a visão do mundo é tautística.489
Segundo o autor, o tautismo490
consiste numa ideologia, que invade toda a realidade do homem, nos recentes tempos
tecnológicos: “o tautismo é uma ideologia e como tal serve para ocultar. Esconde o fim
do sujeito, exibe mesmo esse lado oculto de que revela um triunfo. Esconde, pois, os
fins da comunicação, de que pretende ser o arauto. De facto, suprime-a, dado que mata
o sujeito e todas as possibilidades de interpretação. Esconde ainda o fim da distinção
privado-público, que constituía a base da sociedade civil [e oculta] os fundamentos que
tomam o lugar dos velhos consensos do passado: igualdade, razão, nação e
soberania”491
.
Seja qual for a história que se conte sobre a razão, é incontestável a diferença
entre a razão dos finais do século passado e do terceiro milénio e a razão esclarecida do
século XVIII, que Cassirer descreve como não sendo já “uma soma de ‘ideias inatas’
[que] nos revela a essência absoluta das coisas” acrescentando que “Ele [o séc. XVIII]
não a toma já por um conteúdo determinado de conhecimentos, de princípios, de
verdades, mas por uma energia, por uma força que não pode ser plenamente percebida
senão na sua acção e nos seus efeitos”492
. O debate das Luzes/Contra-Luzes, no seio do
movimento europeu das Luzes (Aufklärung, lumières, enlightenment, ilustración,
iluminismo) foi intenso.493
Kant e Mendelssohn, por exemplo, discordam um do outro.
Não fora a coincidência cronológica das suas respostas à questão Was ist Aufklärung?, e
poder-se-ia pensar que os textos não se referem à mesma época. Enquanto Kant vê, na
razão do seu século, a porta para “a saída do homem da sua menoridade”494
, e uma
oportunidade de exaltação sem antecedentes para um pensar autónomo (Sapere aude!),
489 Cf. ibid., pp. 28-35, pp. 69-102. 490 Ao longo da obra, o autor esclarece por diversas vezes a formação deste neologismo: “Neologismo
contraído de autismo e tautologia, evocando sempre a totalidade e o totalitarismo.” (ibid., p. 33). 491 Ibid., pp. 299-300. 492 “Elle n'est plus une somme d''idées innées' [qui] nos révèle l'essence absolue des choses. [...] Il [le
XVIIIe siècle] ne la tient pas pour un contenu déterminé de connaissances, de principes, de vérités mais pour
une énergie, pour une force qui ne peut être pleinement perçue que dans son action et ses effets.”
(CASSIRER. Ernst, La philosophie des lumières, trad. Pierre Quillet, Paris, Fayard, 1970, p. 48). 493 Tal como Cassirer, também Goldmann e Mortier dão conta deste debate Luzes/Contra-Luzes, no seio
das próprias Luzes. Cf: GOLDMANN, Lucien, “La philosophie des lumières”, in Structures mentales et
création culturelle, Paris, Ed. Anthropos, 1970, pp. 21-130; MORTIER, Roland, Clartés et ombres du Siècle des Lumières. Études sur le XVIII siècle littéraire, Genève, Droz, 1969. 494 KANT, Immanuel, Was ist Aufklärung? (1784), Tr. Port. “Que são as Luzes?”, in A Paz perpétua e
outros opúsculos, trad. Artur Morão, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 11. Kant define a menoridade como “a
incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem” (ibid., p. 11). Repare-se que o
filósofo de Königsberg refere a saída da menoridade, mas não a sua conquista; faz questão de esclarecer
que vive numa época das luzes, não numa época esclarecida. Cf. ibid., p. 17.
229
de que a sua filosofia é um exemplar testemunho, Mendelssohn diz que o termo
Aufklärung permanece apenas “na linguagem dos livros”495
.
Talvez as Luzes não tenham sido desenvolvidas como os filósofos iluministas
esperavam. As sociedades desenvolvem-se acima (ou abaixo?) das filosofias. Seja como
for, a história dos homens está neste ponto, no da realidade de hoje, que Lipovetsky
descreve como a realidade hipermoderna. O termo “hipermodernidade” deve-se a
Lipovetsky, e surge conceptualizado sobretudo a partir da obra de 2004, Les temps
hypermodernes. O neologismo visa substituir o conceito de “pós-modernidade”, que
Lyotard apresenta na sua obra de 1979, La condition postmoderne.
Lyotard define o “pós-moderno” como “a incredulidade em relação às
metanarrativas”496
, num tempo em que se assiste “a uma ‘atomização’ do social em
redes flexíveis de jogos de linguagem”497
. O pós-moderno designa “o estado da cultura,
após as transformações que afectaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das
artes, a partir do século XIX. [...]”498
. Outros autores, como Pierre Lévy499
e o polémico
Francis Fukuyama, que enuncia o fim da história500
, reforçam a ideia da pós-
modernidade como marcando um tempo do fim das narrativas, assentes em ideologias
495 MENDELSSOHN, Moses, “Sur la question: que signifie ‘Aufklären’?” (1784), in Dix-huitième Siècle,
trad. Dominique Bourel, 10, 1978, p. 22. Este autor distingue Kultur (civilização), onde coloca as artes e
os costumes (das Praktische) de Aufklärung, que diz respeito ao conhecimento e às ciências (das
Theorische), fazendo ambas parte da bildung (cultura) de uma nação. Cf. ibid., pp. 22-26. 496 LYOTARD, François, La Condition postmoderne. Rapport sur le savoir (1979), Tr. Port. A condição
pós-moderna, trad. José Navarro, tradução revista e apresentada por José Bragança de Miranda, Lisboa,
Gradiva, s/d, p. 8. O autor refere explicitamente o fim da metanarrativa de Marx. 497 Ibid., p. 40. Os “jogos de linguagem” de Wittgenstein recebem uma interpretação original por parte de
Lyotard, que os transporta para as complexas relações sociais e para a multiplicidade de centros que têm lugar na própria esfera social. 498 Ibid., p. 7. 499 Não obstante a sua perspectiva optimista em relação à realidade actual, Lévy reforça aqui a ideia da
pós-modernidade, como a de um fim das narrativas: “A filosofia pós-moderna descreveu bem a explosão
da totalização. A fábula do progresso linear e garantido já não tem aplicação nem na arte, nem na política,
nem em nenhum domínio. Quando já não há ‘um’ sentido da história, mas uma multidão de pequenas
proposições lutando pela sua legitimidade, como organizar a coerência dos acontecimentos, onde está a
vanguarda? Quem se antecipa? Quem é progressista? “ (LÉVY, Pierre, Cyberculture, Tr. Port op. cit., p.
124). 500 Fukuyama considera que o maior propagador do fim da história terá sido Marx, “que acreditou que a
direcção do desenvolvimento tem o propósito bem determinado pelo interjogo das forças materiais, e que
chegaria finalmente a um fim apenas com a realização da utopia comunista que resolveria finalmente
todas as contradições anteriores.” - FUKUYAMA, Francis, The End of History and the Last Man (1992),
Tr. Port. O Fim da História e o Último Homem, trad. Maria Goes, Lisboa, Gradiva, 1992, p. 3. Neste livro de 1991, o autor descreve a crise generalizada do socialismo (o desmoronamento da URSS, o processo de
unificação da Alemanha, e a progressiva adesão ao capitalismo e ao liberalismo pelos países do Leste
Europeu), defendendo que, com a propagação do capitalismo e do modelo económico liberal, patenteados
como os mais legítimos sistemas político-económicos, a história teria chegado ao fim. Por se tratar de
uma visão polémica e fundamentalista, este autor é largamente e, a nosso ver, também justamente
criticado.
230
que forneciam os objectivos para uma história de um progresso linear, que contava com
a garantia de um final feliz. No pós-moderno, “o critério de operatividade é tecnológico,
não sendo pertinente para ajuizar do verdadeiro e do justo”501
.
O conceito de hipermodernidade de Lipovetsky vem substituir o de pós-
modernidade, considerado inadequado e ultrapassado pelo seu autor: “O neologismo
pós-moderno tinha um mérito: salientar uma mudança de direcção, uma reorganização
em profundidade do modo de funcionamento social e cultural das sociedades
democráticas avançadas […]. Ao mesmo tempo, porém, a expressão “pós-moderno” era
ambígua, desajeitada, para não dizer vaga. Isso porque era evidentemente uma
modernidade de novo género a que tomava corpo, e não uma simples superação daquela
anterior.”502
. O hipermoderno qualifica uma sociedade que integra as lógicas modernas
do mercado, do consumo e da individualidade. O conceito de hipermodernidade traduz,
assim, uma cultura de excessos, descrita como possuindo múltiplos “hípers”
(hiperconsumo, hipermercado, hipertexto, hiperindividualismo, hiperterrorismo, “o que
é que já não é híper?”503
). Segundo o autor do neologismo, o homem hipermoderno
vivencia os paradoxos e contradições de uma vida pesada e intensa, vida que decorre a
um ritmo de alucinante aceleração, mas que é, afinal, em si mesma, de leve substância.
Enquanto a condição pós-moderna se refere à situação da cultura europeia e
ocidental, desde o séc. XIX até ao presente, um presente caracterizado pelo progresso
científico-tecnológico504
, a hipermodernidade refere-se, sobretudo, às últimas quatro
décadas. Em comum têm a modernidade como foco e alvo.
Centremos novamente a nossa atenção neste conceito da hipermodernidade
proposto por Lipovetsky. Para este autor, a pós-modernidade não terá sido mais do que
501 LYOTARD, François, La Condition postmoderne, Tr. Port., op. cit., p. 9. 502 LIPOVETSKY, Gilles, “Tempo e contra tempo ou a Sociedade Hipermoderna”, in LIPOVETSKY,
Gilles e CHARLES, Sébastien, Les temps hypermodernes, op. cit.,p. 54. “Há vinte anos, o conceito de
pós-moderno dava oxigénio, sugeria o novo, uma maior bifurcação. Agora, é vagamente obsoleto. O ciclo
pós-moderno desenvolveu-se sob o signo da descompressão cool do social; temos, hoje, o sentimento que
os tempos se endurecem de novo, carregados como estão de nuvens sombrias. Viveu-se um breve
momento de redução de constrangimentos e de imposições sociais, e eis que reaparecem na ribalta do
palco, ainda que com novos traços. No momento em que o triunfo das tecnologias genéticas, da
mundialização liberal e dos direitos do homem, o rótulo pós-moderno ganhou rugas, esgotou as suas
capacidades de exprimir o mundo que se anuncia. O pós de pós-moderno fazia dirigir ainda o olhar para
as traseiras do que já estava decretado morto; levava a pensar num desaparecimento sem precisar no que nos tornámos, como se se tratasse de preservar uma liberdade recém-conquistada no rastro da dissolução
dos enquadramentos sociais, políticos e ideológicos. Daí o seu destino. Este tempo acabou.” (ibid, pp. 54-
55). 503 Ibid., p. 55. 504 A expressão “progresso científico-tecnológico” é, muitas vezes, substituída por “desenvolvimento
técnico-científico”, expressão que dá maior ênfase à técnica sobre a ciência.
231
uma fase de transição505
das sociedades que, do “pós” passaram rapidamente para o
“híper”. A imposição do “híper” em todos os átomos constituintes da sociedade
ultrapassa largamente a pós-modernidade, pois aprofundou-a, exacerbou-a de tal modo
que a anulou, dando origem a outra modernidade: a híper-modernidade. Nesta nova
modernidade, “a tónica é colocada na obrigação do movimento, na hipermudança
desligada de toda a finalidade utópica, ditada pela exigência de eficácia e pela
necessidade de sobrevivência. […] o culto da modernização tecnicista prevaleceu sobre
a glorificação dos fins e dos ideais.”506
.
Na obra de 83, o autor não referia ainda o conceito de hipermodernidade, mas já
ali apresentava uma perspectiva distinta da pós-modernidade de Lyotard: “a época
moderna foi assombrada pela produção e pela revolução; a época pós-moderna, pela
informação e pela expressão”507
, e agora assistimos a um individualismo narcisista sem
precedentes, é essa a nova marca, inclusivamente, da comunicação: “É isso
precisamente o narcisismo, a expressão a todo o custo, o primado do acto de
comunicação sobre a natureza do que é comunicado, a indiferença pelos conteúdos, a
reabsorção lúdica do sentido, a comunicação sem finalidade nem público […]
comunicar por comunicar [e é assim] que o narcisismo revela aqui, como noutros
lugares, a sua conivência com a dessubstancialização pós-moderna, com a lógica do
vazio”508
.
Lipovetsky destaca algumas características da era hipermoderna, dedicando-lhes
textos isolados, como é o caso da leveza509
e do efémero510
. Também a felicidade lhe
mereceu destaque, tendo procurado compreender as causas e as consequências do que
considera ser a felicidade paradoxal da hipermodernidade. O consumo é um dos trunfos
utilizados para a obtenção de felicidade, ou melhor, de prazer ou satisfação rápida e
505 Diz-nos Lipovetsky: “A modernidade de onde saímos era negadora, a supermodernidade é integradora.
Já não se trata da destruição do passado, mas da sua reintegração, da sua reformulação no quadro das
lógicas modernas do mercado, do consumo e da individualidade. Quando mesmo o não-moderno revela o
primado de si e funciona segundo um processo pós-tradicional, quando a cultura do passado já não é
obstáculo à modernização individualista e comercial, aparece uma nova fase de modernidade. Do pós ao
híper: a pós-modernidade apenas terá sido um estado de transição, um momento de curta duração. E este
já não é o nosso.” (LIPOVETSKY, Gilles, “Tempo e contra tempo ou a Sociedade Hipermoderna”, in
LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien, Les temps hypermodernes, Tr. Port. op. cit., pp. 60-61). 506Ibid., pp. 59-60. 507 LIPOVETSKY, Gilles, L’ère du vide, Tr. Port. op. cit., p. 15. 508 Ibid., p. 16. 509 Cf. LIPOVETSKY, Gilles, De la légèreté: vers une civilisation du léger (2015), Tr. Port. Da Leveza –
para uma civilização do ligeiro, trad. Pedro Eloy Duarte, Lisboa, Edições 70, 2016. 510 Cf. LIPOVETSKY, Gilles, L’empire de l’éphémère, Paris, Gallimard, 1989.
232
curta. O autor reflecte sobre a ideia de felicidade que tem o alienado homo
consumericus (ou consomator), desfazendo-a e fazendo-a corresponder a mera
satisfação, ilusória e efémera: “O hiperconsumo é a mobilização da banalidade
comercial tendo em vista a intensidade da experiência e a vibração emocional”511
. A
causa dessa procura reside essencialmente na busca incessante por algo que o faça
desligar da vida repetitiva, monótona, frustrante: “Encontramos ainda uma
subjectividade transcendente no consumidor da nova vaga; o seu tropismo traduz o
desejo de não ser completamente ‘arrastado’ pelos dias comuns e pela vida repetitiva. O
modelo do neoconsumidor não é o indivíduo manipulado e hipnotizado, mas o
indivíduo móvel, o indivíduo em trajectória que muda continuamente de uma coisa para
outra na esperança, por vezes frustrada, de mudar a sua própria vida”512
. O consumo
desenfreado gera mais consumo desenfreado. A satisfação do consumidor é instantânea
e pontual; tornando-se necessário preencher esses vazios, trata-se de uma circularidade
sem fim à vista. É evidente que não podemos referir o hiperconsumo, nem o mesmo tipo
de procura pela satisfação, nas diferentes camadas sociais. Por isso, Lipovetsky impõe
uma nova abordagem, no que respeita às camadas mais desfavorecidas, estabelecendo
justamente uma curiosa relação entre a pobreza, a exclusão social, a delinquência e a
violência.513
Todas as épocas passaram por fases de crise. Na hipermodernidade, a crise514
foi
exponenciada, alargada a diferentes crises; trata-se da modernidade do próprio
fenómeno da crise. Os tempos hipermodernos surgem caracterizados como
propagadores de uma imensa insegurança política, económica, cultural, social, que
surge pautada por inúmeras contradições, hiatos, fossos, numa realidade cada vez mais
global e planetária, e onde o homem tem dificuldades acrescidas em saber qual é o seu
lugar neste novo mundo. A hipermodernidade está a criar uma outra cultura, um outro
mundo, uma cultura-mundo: “A cultura transformou-se em mundo, em cultura-mundo
do tecnocapitalismo planetário, das indústrias culturais, do consumismo total, dos media
511 LIPOVETSKY, G., Le bonheur paradoxal, Tr. Port. op. cit., p. 59. 512 Ibid., p. 59 513 Cf. “Pobreza e delinquência: a violência da felicidade”, in ibid., pp. 162-163. 514 A propósito da hipermodernidade e o sentido da crise histórico-cultural que a ela está associada, veja-
se os contributos das reflexões de Oswald Spengler e Ortega y Gasset, destacados na dissertação de
doutoramento de Carlos Alberto Gomes. Cf. GOMES, Carlos Alberto, Uma Filosofia prospectiva da
Hipermodernidade, (na especialidade de Filosofia da Cultura, sob a orientação de Prof. Dr. José Esteves
Pereira), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Setembro de 2011.
Disponível em: https://run.unl.pt/handle/10362/7298 (consultado em 12/04/2016).
233
e das redes sociais.”515
Vivemos num mundo novo, complexo e difícil, mas não estamos
condenados a viver mal. Lipovetsky salienta o facto de não podermos subestimar, de
modo algum, “o poder de autocrítica e de auto-correcção que continua a habitar no
universo democrático liberal”516
. Nada está perdido, “a era presentista está tudo menos
fechada [e] o futuro continua em aberto. A hipermodernidade democrática e mercantil
não disse a sua última palavra: ela apenas está no início da sua aventura histórica”517
.
Numa sociedade tão distinta daquela que existia há três séculos atrás, que
sentido faz voltar a Rousseau? Seria abusivo e dificilmente sustentável afirmar que
Rousseau está mais próximo do nosso tempo do que do dele próprio. Mas é mais
dificilmente contestável dizer que o seu pensamento vai muito além do seu tempo. O
autêntico filho das Luzes, quando as combate, e também quando as supera, como bem o
retratou Cassirer, chega até nós com uma significativa pertinência. A razão humana que
Rousseau nos dá a ver é uma razão complexa, que vê nela mesma a dupla, mas
uníssona, função do pensar e do sentir, uma razão que vê a sociedade como um todo
integrador das suas diferentes esferas e dimensões, sem relegar a importância primordial
do indivíduo.
Os autores que se dedicam a reflectir sobre a hipermodernidade vêem
precisamente nos dias de hoje uma sociedade indiscutivelmente integradora, mas cuja
integração está ainda por fazer, uma integração que Rousseau não profetizou, mas à
qual deixa uma visão pertinente, original e inovadora das dinâmicas das sociedades,
independentemente dos tempos e dos lugares. Rousseau convida o homem
contemporâneo precisamente “a pensar-se a si mesmo na complexidade”518
, objectivo
que vimos Morin enunciar como sendo urgente cumprir, numa fase da história em que o
conhecimento científico é indubitavelmente mais rico do que no tempo de Rousseau, e
também muito mais prolixo, disperso, parcelar e confuso. Morin não cita Rousseau,
nem sequer o refere. Mas o filósofo genebrino vira também uma razão complexa, que
reconhece em si mesma “uma zona obscura, irracionável e incerta”, que “não é
totalmente racionalizável”, que faz comunicar a “inteligência e a afectividade”, “razão e
515 LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean, La culture-monde – réponse à une société désorienté (2010), Tr. Port. A Cultura-Mundo – resposta de uma sociedade desorientada, trad. Víctor Silva, Lisboa, Edições
70, 2010, p. 11. 516 LIPOVETSKY, Gilles, “Tempo e contra tempo ou a Sociedade Hipermoderna”, in LIPOVETSKY,
Gilles e CHARLES, Sébastien, Les temps hypermodernes, Tr. Port. op. cit., p. 106. 517 Ibid., p. 106. 518 MORIN, Edgar, Science avec Conscience, Tr. Port. op. cit., p. 220.
234
desrazão”519
. A observação rousseauniana é a de uma razão abrangente, que pensa e
sente, imagina e devaneia, foca a atenção sem deixar de procurar a vista panorâmica
sobre o homem, a sociedade, e as inter-relações entre as diferentes esferas que
caracterizam a sua inevitável dependência social: conhecimento, política, educação,
ética, moral, religião. O homem é individual e particular, mas também é colectivo e
universal. Não há aí qualquer contradição lógica, porque as vidas das sociedades e dos
homens não são “logicizadas”. Não há homem social sem as duas dimensões. Se há
dinâmicas, contradições e paradoxos a resolver, eles mesmos estão já inscritos na
natureza dos homens. Não há tragédia apocalíptica. Mas há trabalho a fazer. Ora,
Rousseau diz-nos que é a consciência que dita a cada cidadão os preceitos da razão
pública, e a cada homem, o modo como deve agir de acordo consigo mesmo, que o
mesmo é dizer, a não entrar em contradição nem consigo, nem com o outro. E a
consciência que ouve as suas vozes não age senão para o propósito da felicidade
comum, do próprio e do outro.
É com razão que Kant vê em Rousseau um marco na história da reflexão sobre o
homem, comparando-o com a revolução newtoniana. Newton contribuiu para que Kant
compreendesse as leis que governam o curso dos astros, ao passo que Rousseau lhe abriu
o caminho para o entendimento da natureza e da condição humanas: “Newton foi o
primeiro a ver a ordem e a regularidade unidas à perfeita simplicidade onde, antes dele,
ninguém tinha descortinado senão desordem e confusa diversidade e, desde então, os
cometas deslocam-se em trajetórias geométricas. Rousseau foi o primeiro de todos a
descobrir sob a diversidade das formas humanas convencionais, a natureza do homem nas
profundezas onde se escondida, assim como a lei secreta em virtude da qual a providência
é justificada pelas suas observações […]. A partir de Newton e de Rousseau, Deus está
justificado”520
.
519 Diz-nos Morin: “A razão fechada era simplificadora. Não podia enfrentar a complexidade da relação
sujeito-objecto, ordem-desordem. A razão complexa pode reconhecer estas relações fundamentais. Pode
reconhecer em si mesma uma zona obscura, irracionalizável e incerta. A razão não é totalmente
racionalizável […]. A razão complexa já não concebe em oposição absoluta, mas em oposição relativa,
isto é, também em complementaridade, em comunicação, em trocas, os termos: inteligência e
afectividade, razão e desrazão. Homo já não é sapiens, mas sapiens-demens.” (ibid., p. 214). 520 “Newton le premier de tous vit l'ordre et la régularité unis à une grande simplicité là où avant lui il n'y
avait à trouver que désordre et que multiplicité mal agencée, et depuis ce temps les comètes vont leur cours
en décrivant des orbites géométriques. Rousseau le premier de tous découvrit sous la diversité des formes
humaines conventionnelles la nature de l'homme dans les profondeurs où elle était cachée, ainsi que la loi
secrète en vertu de laquelle la Providence est justifiée par ses observations. […] Depuis Newton et
Rousseau, Dieu est justifié […]. (Trad. Delbos, o. c., p. 117).” (KANT, Immanuel, Bemerkungen zur den
235
A distinção rousseauniana entre o homem e o animal trouxe uma dupla
novidade, que se revela, ainda hoje, pertinente: o homem não se distingue do animal
tanto pela sua racionalidade, mas mais pelas suas características específicas, a da
liberdade e a da perfectibilidade. Só o homem é livre e perfectível, e é do uso da sua
liberdade e da sua perfectibilidade que a história dos homens se faz e o progresso se
desenvolve, ao contrário dos animais.
A realidade em que hoje se vive é fruto da perfectibilidade humana. Numa época
em que os homens parecem canalizar a sua razão mais para o cálculo do que para a
reflexão, para a economia e para os números do que para as pessoas, é tempo de lembrar
que o uso da liberdade e da perfectibilidade são da exclusiva responsabilidade humana.
Quanto à razão, Rousseau lembra a importância do sentimento, e mesmo das paixões,
intrínsecas a ela mesma: “o entendimento humano deve muito às Paixões […] é pela sua
actividade que a nossa razão se aperfeiçoa […]” (D2, I, p. 143). A razão não se baseia
exclusivamente em raciocínios. A razão sente e pensa, desde sempre: “há muito tempo
que o género humano já não existia se a sua conservação tivesse surgido exclusivamente
dos raciocínios (D2, II, p. 171). O problema reside em o homem considerar que o
coração e o sentir contrariam, ou são, respectivamente, coisas diferentes da razão e do
pensar. A vida sente-se e pensa-se. Não há forma de balizar firmemente as duas
dimensões, como não há forma de pré-determinar o modo como cada um vive, e como
as vidas se desenrolam. Cada vida é única, como único e singular é cada homem. Mas
se a característica comum de todos os homens “é a condição de homem” (É, I, p. 252), e
se a natureza originária de todos os homens é a mesma, bem como a felicidade que lhe
convém, como pode o homem contemporâneo, hipermoderno e internético não pensar
em conjunto a sua vida em sociedade, a vida que quer levar?
Porque é da vida que Rousseau nos fala:
“Primeiro não sabemos viver, mais tarde já não o podemos fazer e no intervalo que separa estas
duas extremidades inúteis, os três quartos do tempo que nos resta são consumidos pelo sono, pelo
trabalho, pela dor, pelo constrangimento, pelas penas de todas as espécies. A vida é curta, não tanto pelo
pouco tempo que ela dura, mas mais pelo pouco tempo que disponibilizamos para dela usufruir. O
Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen, Trad. Fr. op. cit., p. 66). Manteve-se a
referência à tradução de Debos, tal como está enunciada no excerto citado.
236
instante da morte está bem afastado daquele do nascimento, a vida é sempre demasiado curta quando este
espaço é mal preenchido.”521
No final do Discours de 55, Rousseau alerta-nos para o novo estado de natureza,
“fruto de um excesso de corrupção” (D2, II, p. 191), referindo-se ao despotismo “que
dissolve o contrato do governo” e “à lei do mais forte que aquele implica” (D2, p. 191).
O “mais forte” e o déspota são, agora, a sociedade consumista e tecnológica que absorve
e vence os homens. A hipermodernidade recapitula, assim, o conceito rousseauniano de
um novo estado de natureza, aplicado agora ao estado de coisas presente, para o qual, ao
contrário de Rousseau, muitos não vêem solução. Com efeito, abundam críticas
negativistas em face da realidade actual, e há quem defenda que a sociedade
contemporânea está, afinal, sob a alçada da instauração de uma inédita e perigosa
ideologia522
, que absorve e condena o homem.
Com Rousseau, recusamos a ideia de condenação e de tragédia consumada,
associadas à hipermodernidade. Pelo contrário, vemos grandes benefícios no tempo
actual, na consciência do outro que vemos emergir, na solidariedade que vemos
aumentar, nas conquistas de novos direitos humanos. Não fechamos os olhos à
violência, ao terrorismo, à desregulação económica, às guerras que inacreditavelmente
se mantêm. Vivemos numa realidade de fortes contrastes e contradições, sem dúvida.
Mas não estamos condenados à infelicidade. Consideramos que Rousseau dá conteúdo e
fundamento a esta conclusão, através da observação da natureza originária do homem
que nos fornece, e da partilha das consequências que dessa observação advêm. Se o
estado de natureza (ser) está mais oculto e desfigurado nos dias de hoje, é preciso que o
homem apure a visão, utilize a imaginação, pense e sinta a sociedade que hoje integra, a
vida que vive. E a fazê-lo, que o faça nesse exercício de indagação e auto-reflexão que
dá a reconhecer que os homens nascem para serem felizes, pois a felicidade está-lhes na
natureza. Uma felicidade que não se encontra no plano do parecer, nem do ter, que não
521 “D’abord nous ne savons point vivre, bientôt nous ne le pouvons plus, et dans l’intervalle qui sépare
ces deux extrémités inutiles, les trois quarts du temps qui nous reste sont consumés par le sommeil, par le
travail, par la douleur, par la contrainte, par les peines de toute espèce. La vie est courte, moins par le peu
de temps qu’elle dure que parce que de ce peu de temps nous n’en avons presque point pour la gouter.
L’instant de la mort a beau être éloigné de celui de la naissance, la vie est toujours trop courte quand cet espace est mal rempli.” (É, livre IV, OC IV, p. 489). 522 Diz-nos Sfez: “Podemos, pois, perguntar em que grande livro do saber total se encontraria essa ciência
das ciências do para-ser, que teria subtilizado o ser para o fagocitar e governaria o conjunto dessas
práticas, colocando um ponto final no edifício. Esse grande livro existe, está em vias de constituição. É a
ciência de Frankenstein, ou ciência cognitiva.” - SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port.
op. cit., p. 267.
237
se contenta com a satisfação efémera e superficial que o consumo oferece, nem com um
uso abusivo das nossas máquinas, que parecem tudo dar, mas que, frequentemente, nada
acrescentam à felicidade que convém à natureza humana.
Podemos perguntar se a hipermodernidade não infantilizou o homem, que
procura, a todo o momento, o brinquedo (por exemplo, o computador), para esquecer o
peso da responsabilidade523
. Por outro lado, como não ser crescido e responsável na
participação consciente e activa numa sociedade de deveres, mas onde também os
direitos são constantemente empolados? Afinal, as actividades lúdicas sempre fizeram
parte do homem: “Como se os homens não se tivessem sempre divertido a brincar, a
simular, a mudar de aparência, a libertarem-se e a contrariar as questões sérias da vida:
são comportamentos que se repetem desde tempos imemoriais”524
. Um facto é
indiscutível: num tempo da cultura-mundo a que corresponde a descrição hipermoderna,
o indivíduo tem, mais do que nunca, de saber criar-se a si mesmo, de encontrar
estratégias de vida tanto na esfera privada como na pública. A questão é que quanto
mais essas estratégias forem sensatas e responsáveis, mais próximo fica o indivíduo de
um estado de felicidade, e não apenas do momento efémero do prazer ilusório. E
Rousseau mostra-nos que à nossa natureza importa a qualidade do bem-estar, e não a
quantidade de prazeres ilusórios.
No seio de uma sociedade consumista e economicista, aliada ao uso irreflectido
das novas tecnologias, os efeitos já estão contabilizados e tendem, muito
provavelmente, a aumentar. Rousseau mostra-nos que esses efeitos foram e continuam a
ser obra humana. E são os homens que, em cada tempo e lugar, devem saber combatê-
los. Mas o filósofo não fica só por aí, como sabemos. Deixa-nos indicações preciosas,
das quais aqui mencionamos apenas aquelas que dizem directamente respeito à
educação.
Assim, do vasto contributo que a reflexão educacional de Émile nos oferece,
salientamos, sem nos alongarmos, apenas três pontos, resultantes de um exercício de
subjectividade, e que, no seu conjunto, podem alterar este “novo estado de coisas” em
que vivemos actualmente. São eles: educar para a felicidade; ter em conta a
523 O “juventudismo” é apontado como o ideal da maturidade adulta dos tempos hipermodernos. Cf.
LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean, La culture-monde – réponse à une société désorienté, Tr. Port.
op. cit., pp. 176-177. 524 LIPOVETSKY, Gilles, Le bonheur paradoxal, Tr. Port. op. cit., p. 62.
238
individualidade e a natureza de cada criança e, finalmente, educar com base em
exercícios e práticas, e não sob preceitos.
A primeira lição de Rousseau é a de educar a criança para a felicidade para a
qual tende naturalmente, o que parece não ter eco na prática educacional dos nossos
dias. Às crianças são mais oferecidos instrumentos e objectos tecnológicos,
recompensas materiais, do que propriamente dotá-las dos meios que as levem a ver que
nasceram para ter uma vida feliz, ou a compreenderem que género de felicidade é a do
ser humano. Os agentes da educação preocupam-se em demasia com preceitos e hábitos
sociais a incutir nas crianças, a “portarem-se bem”, a estarem sossegadas nas carteiras
das escolas, a ouvir, a trazer boas notas para casa, e tudo isso sem muitas vezes se lhes
dar qualquer explicação que sustente as regras sociais que lhes são impostas. A única
coisa que sabem é que, se se encaixarem na forma que lhes é atribuída, terão
recompensa material. Neste aspecto, a educação negativa que Rousseau refere é de
extrema importância, uma vez que dá o tempo necessário ao educando para crescer, isto
é, não ultrapassa nenhuma fase da educação, preparando a criança para a vida, quando
estiver em condições disso, e para o bem, “quando estiver em condições de amá-lo”525
.
A distinção entre a educação positiva e a educação negativa mostra que educar não é
invadir a mente da criança, facultar-lhe precocemente todo o tipo de tecnologias, por
exemplo, antes de a criança estar em tempo de discernir o que é o uso e o abuso das
mesmas, o usufruto e a dependência viciante. Educar é preparar para a vida e para o
mundo, lembra Rousseau. E as sociedades contemporâneas sabem-no. Mas será isto que
temos feito? Leiamos as palavras que tão sabiamente dizem o que sabemos, mas que
indirectamente denunciam o que talvez não façamos:
“[…] depois de terem enchido sua memória ou de palavras que não pode entender, ou de coisas
que não lhe servem para nada. […] colocam este ser factício nas mãos de um preceptor que acaba de
desenvolver as sementes artificiais que já encontra completamente formadas, e lhe ensina tudo, excepto a
conhecer-se […] excepto a saber viver e tornar-se feliz. Enfim, quando essa criança, escrava e tirana,
cheia de ciência e carente de juízo, igualmente débil de corpo e alma, é lançada no mundo […].”526
525 Rousseau dirige a Christophe de Beaumont uma resumida e clara distinção entre a educação negativa e
a educação positiva (cf. Lettre à C. de Beaumont, OC IV, p. 945). 526 “[…] après avoir chargé sa mémoire ou de mots qu'il ne peut entendre, ou de choses qui ne lui sont bonnes à rien […] on remet cet être factice entre les mains d'un précepteur, lequel achève de développer
les germes artificiels qu'il trouve déjà tout formés, et lui apprend tout, hors à se connaître […]. Enfin,
quand cet enfant, esclave et tiran, plein de science et dépourvu de sens, également débile de corps et
d'âme, est jeté dans le monde […].” (É, livre I, OC IV, p. 261).
239
A segunda lição rousseauniana é a de salvaguardar a individualidade e a
natureza na educação e formação da criança e/ou do jovem. As sociedades
hipermodernas estão longe desta realidade, não obstante os passos que têm
incontestavelmente sido dados nesse sentido, nomeadamente, com o vasto leque de
opções que os jovens hoje têm, no que respeita às suas aptidões, nas diferentes áreas de
formação e no seio da vasta panóplia de cursos académicos existentes. Para não
falarmos dos últimos passos concretamente dados na inclusão de crianças e jovens com
necessidades educativas especiais nas escolas, as quais só há pouco tempo começam a
ter as devidas (mas não ainda suficientes) condições.
A educação deve salvaguardar o “génio particular da criança”, pois “cada
espírito tem a sua forma própria, segundo a qual precisa de ser governado” (É, II, 324).
A fase mais importante para Rousseau é a “que decorre entre o nascimento e a idade dos
doze anos” (É, II, p. 323). Nesse espaço de tempo, a criança deve ser criança, brincando
livremente, deve ser protegida contra o vício e contra o erro, mais do que invadida com
verdades e pretensas virtudes:
“Consiste, não em ensinar a virtude ou a verdade, mas em proteger o coração contra o vício e o
espírito contra o erro. Se pudésseis nada fazer e nada deixar que fizessem, se pudésseis levar o vosso
aluno são e robusto até a idade de doze anos sem que ele soubesse distinguir a mão esquerda da direita,
desde vossas primeiras lições os olhos de seu entendimento se abririam para a razão; sem preconceitos,
sem hábitos, ele nada teria em si que pudesse obstar o efeito de vossos trabalhos.”527
A terceira lição é a de educar com base em exercícios e práticas, e não sob
preceitos. A educação baseada em preceitos aprisiona e favorece a manutenção de uma
sociedade aprisionada, em que cada um nasce, vive e morre escravo:
“Toda a nossa sabedoria consiste em preconceitos servis, todos os nossos costumes não passam
de sujeição, embaraço e constrangimento. O homem civil nasce, vive e morre na escravidão.”528
Mais do que preceitos, ou palavras, Rousseau alerta para que a educação se
baseie em práticas, práticas que as crianças devem também ver nos adultos. Muitas
vezes, os adultos só têm as palavras, não as atitudes. De que serve ao educador fornecer
discursos repreensivos à criança e/ou ao jovem em face da constatação da sua eventual
527 “Elle consiste, non point à enseigner la vertu ni la vérité, mais à garantir le cœur du vice et l’esprit de l’erreur. Si vous pouviez ne rien faire et ne rien laisser faire; si vous pouviez amener vôtre élève sain et
robuste à l’âge de douze ans sans qu’il sut distinguer sa main droite de sa main gauche, dès vos premières
leçons les yeux de son entendement s’ouvriraient à la raison; sans préjugé, sans habitude il n’aurait rien
en lui qui put contrarier l’effet de vos soins.” (ibid., livre II, pp. 323-324). 528 “Toute nôtre sagesse consiste en préjugés serviles; tous nos usages ne sont qu’assujettissement, gène,
et contrainte. L’homme civil naît, vit et meurt dans l’esclavage.” (ibid., livre I, p. 253).
240
adição às novas tecnologias, se as suas atitudes forem exactamente as mesmas que
recrimina? E Rousseau, novamente a incomodar: “Pois o que lhes ensinam, afinal?
Palavras, mais palavras, sempre palavras” (É, II, p. 346).
A sociedade é o resultado do trabalho das gerações que se vão sucedendo. Uma
sociedade infantilizada será o resultado de uma sociedade que não soube fazer as suas
crianças crescer. Rousseau diz-nos que “somos feitos para sermos homens; as leis e a
sociedade voltaram a mergulhar-nos na infância” (É, II, p. 310). Contudo também nos
vai dizendo, ao longo dos seus escritos, que nenhuma sociedade, nem nenhum de nós
está condenado a esse mergulho. É preciso, pois, repensar a educação, uma educação
que não seja bárbara, que proporcione um melhor presente com vista a dar maiores e
melhores frutos no futuro:
“Que devemos pensar, então, dessa educação bárbara que sacrifica o presente por um futuro
incerto, que prende uma criança a correntes de todo o tipo e começa por torná-la miserável, para lhe
proporcionar mais tarde não sei que pretensa felicidade de que provavelmente nunca gozará?”529
A aplicação prática e concreta das linhas de orientação educacional que
Rousseau fornece exige medidas políticas, conversões económicas, culturais, capazes de
minorar as contradições e paradoxos das sociedades hipermodernas, no ensino e nas
escolas, bem como noutras áreas.
Neste actual mundo de paradoxos e contradições, onde a técnica e a máquina
vão ganhando maiores e novos terrenos, não é urgente observar este “ambiente inédito
que resulta da extensão das novas redes da comunicação para a vida social e
cultural”530
, e aferir quais e como estão a ser os efeitos? O homem hipermoderno
constata sem dificuldade que “A produtividade das máquinas baseadas na inteligência
artificial […] ameaça, a prazo, inúmeros empregos de funcionários. Os robôs
industriais já demonstraram que se pode passar sem a força de trabalho operária.
Agora, são partes inteiras da economia, dos serviços (bancos, seguros, distribuição)
que estão directamente ameaçadas de implosão”531
. Não se trata apenas do problema
do desemprego causado pela preferência da máquina à mão humana: “Para além do
problema lancinante do desemprego que afecta, indistintamente, países desenvolvidos
529 “Que faut-il donc penser de cette éducation barbare qui sacrifie le présent à un avenir incertain, qui
charge un enfant de chaines de toute espèce et commence par le rendre misérable pour lui préparer au loin
je ne sais quel prétendu bonheur dont il est à croire qu’il ne jouira jamais?” (ibid., livre II, pp. 301-302). 530 LÉVY, Pierre, Cyberculture, Tr. Port. op. cit., p. 12. 531 QUÉAU, Philippe, “Cibercultura e Info-ética”, in AAVV, Os Desafios do Século XXI, op. cit., p. 407.
241
e países em desenvolvimento, o que é posto em causa pelas máquinas que o homem
inventou é, pura e simplesmente, o papel deste Homem. O Homem está, sim,
condenado a encontrar para si mesmo um papel novo – essencialmente humano, não
duplicável pelas máquinas… Este é um desafio político, mas que, na realidade, é de
essência cultural”532
.
É preciso, pois, repensar o homem desta nova era, o homem da era da máquina
artificial, computacional e internética: “Com a era do computador, eixo de uma
economia mundial, de uma cidade mundial ou ‘redepólis’, fonte de trabalho e de
concorrência, com o seu aparecimento aos níveis mais correntes da vida doméstica, e
com a aura científica que a envolve, criou-se uma tarefa ainda mais ambiciosa: a de
renovar inteiramente os dados sociais, a ideia que fazemos das liberdades do indivíduo,
do seu lugar num grupo, da sua função e dos seus papéis, numa palavra, da sua
identidade”533
.
Estamos perante um novo homem: o homem hipermoderno. E neste homem,
encontramos ainda outras figuras, como a do homem internético. Com efeito, a
hipermodernidade inclui diferentes realidades e vivências, das quais destacamos a
realidade internética e a vivência virtual, trazidas pela máquina computacional, que se
destaca pelo seu impacto nas várias esferas sociais. Consideremos, por breves instantes,
o homem internético como uma sub-classe do homem hipermoderno, e vejamos, num
mero relance, as múltiplas e específicas questões inerentes ao universo internético. Que
pessoa é o internauta? Que espaço é o ciberespaço? De que realidade trata o virtual? De
que linguagem se trata?
Sejam quais forem as questões a inventariar, no contexto da consideração do
homem hipermoderno, do qual faz parte o homem internético, impõe-se a reflexão do
homem sobre o homem, sobre o que o homem é, sobre o que o homem parece ser, sobre
como pode o homem melhor ser. Ora, quem melhor do que Rousseau contrariou as
tendências do seu próprio tempo em busca de um novo homem? Assim, no seio da
hipermodernidade, e no que respeita às questões que especificamente surgem em
relação à nova realidade internética, o que nos pode oferecer Rousseau? Procuramos dar
conta da resposta a esta questão no próximo e último sub-capítulo.
532 Ibid., p. 407. 533 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 285.
242
V. 2. 2. O exemplo do homem internético
“[…] si j’en fais naître de bonnes [idées], je n’aurai pas tout-à-fait perdu mon temps”
(ROUSSEAU, J.-J., “préface”, in Émile ou d’éducation, OC IV, 1969, p. 241).
Neste último momento, dedicado ao desafio de patentear uma relação entre
Rousseau e a realidade internética, permitimo-nos utilizar uma escrita mais livre, menos
académica. No levantamento de algumas questões inerentes ao homem internético,
intentamos adoptar a reflexão de Rousseau, ainda que fiquemos certa e imensamente
longe do seu estilo, e infinitamente aquém do seu génio.
Para ilustrar a hipótese, anteriormente colocada, da subjectividade universal
rousseauniana como paradigma, e mesmo que não avancemos muito mais, tornou-se, pelo
menos, necessário aferir de que modo pode aquele ser aplicado a questões que
concretamente se colocam ao homem contemporâneo. Que o mesmo foi perguntar como
pode aquele paradigma, enquanto modelo e exemplo de visão (do homem), servir de base
para a reflexão sobre algumas e diferentes questões que, dada a sua natureza aporética e
complexa, constituem verdadeiros puzzles da realidade/sociedade humana, de cada vez
maior complexidade. Seleccionámos as questões já abordadas do progresso científico-
tecnológico (com especial enfoque no desenvolvimento da reflexão sobre a Ciência nas
últimas décadas), da hipermodernidade (enfatizando as categorias do efémero e da
felicidade paradoxal, associadas à lógica do consumismo) e, a abordar agora, escolhemos
a questão do homem internético (uma subclasse do homem hipermoderno).
Nesta breve consideração sobre o homem internético, não é nosso objectivo
explanar os muitos e diversos conceitos intrínsecos à terminologia específica da realidade
internética, mas tão-só aflorar algumas questões que remontam especificamente à questão
da subjectividade universal rousseauniana.
Que relação pode, afinal, ser estabelecida entre o filósofo do séc. XVIII e o
homem internético, que vive sob a alçada desta nova tecnologia de informação e de
comunicação a que abreviadamente se dá o nome de net? A relação assenta no que
consideramos consistir numa reactualização da concepção rousseauniana do homem
civilizado, numa temática actual que exige a demanda da natureza do homem e o que a
ela convém.
Mudam-se os tempos, os feitos dos homens, mas não a sua natureza. Tenha ou
não existido, o estado natural do homem fica incólume aos tempos e aos lugares, ao
243
contrário do homem civilizado que, ao longo da história, vai sofrendo alterações, de
acordo com as diferentes circunstâncias. O homem contemporâneo não é o mesmo do
que o homem iluminista. Com as novas realidades, vêm novas questões, mas, pelo
menos no que concerne à realidade internética, a questão da subjectividade universal
rousseauniana parece manter-se actual. Com efeito, a máquina internética é hoje parte
integrante da dinâmica quotidiana das sociedades e dos homens hipermodernos,
trazendo novos revestimentos, que alteraram com toda a certeza a aparência da estátua
de Glauco. As novas questões relacionadas com a era internética retomam as questões
inerentes à subjectividade humana, não obstante a inevitável modificação dos contornos
que recebe dos novos tempos. No contexto deste novo homem, as mesmas questões se
impõem: a questão da relação entre pensar e sentir; a questão do eu e do outro
(identidade/ alteridade); a relação entre a subjectividade e a universalidade; o conceito
de homem, da sua natureza e da felicidade que lhe é própria; a dialéctica entre ser e
parecer; a distinção entre o estado de natureza e o estado de civilização, ficando este
cada vez mais afastado daquele; o surgimento de novos males sociais, que é preciso
combater; a necessidade de uma consciência atenta e abrangente, e a urgência de uma
prática virtuosa que potencie a felicidade.
O Discours de 55 e o Essai descrevem as etapas que mais marcam a evolução e
o desenvolvimento do homem ao cidadão; perante a realidade de hoje, faltaria a
Rousseau descrever um outro homem, o da era virtual534
. Nos nossos dias, a estátua de
Glauco ficou, com toda a certeza, menos nítida e mais disforme, e os efeitos negativos
que Rousseau vê na passagem do homem natural para o homem civilizado agudizam-se,
no que podemos considerar ser a passagem do homem civilizado para o homem virtual.
Com a descrição do estado de natureza (estado ao qual já não podemos voltar, que já
não existe, e talvez nem tenha existido), Rousseau mostra-nos que a história dos homens
se faz do presente para o futuro, que não podem as evoluções e os desenvolvimentos
sucessivos ser eliminados, e que, naturalmente, também as descobertas e os eventos
tecnológicos não podem ser erradicados. Mas o seu uso e implicações podem ser
534 “[A] progressão da abstracção pode assimilar-se a um ‘progresso’ da Humanidade, se se seguirem as
teses de Leroi-Gourhan, que afirmava que as grandes etapas da civilização humana foram marcadas por
abstracções radicais (o grito abstraiu-se em palavra, a mão abstraiu-se em ferramenta, o oral abstraiu-se
em escrito). Visto que a ‘virtualização’ é comparável a uma nova forma de abstracção (o real esbate-se
em virtual), pode esperar-se consequências incalculáveis, à escala das idades da humanidade: depois da idade da pedra, da idade do bronze, da idade do ferro viria a idade do virtual.” (QUÉAU, Philippe,
“Cibercultura e info-ética”, in AAVV, O Desafio do Século XXI, op. cit., p. 405).
244
pensados e sentidos, com vista ao avanço do progresso que sirva os homens, sem os
condenar. É um longo caminho ainda a percorrer. E perante um caminho ainda não
percorrido, tanto o optimismo como o pessimismo parecem mostrar-se inúteis.
Poder-se-á perguntar se a realidade virtual substitui, complementa ou subverte a
ordem comum real-conceptual, i.e., se o “novo estado de coisas” (como referiu
Rousseau em relação ao seu tempo) mudou por completo o anterior, com a presença do
computador, e especificamente com a introdução da internet, nos nossos dias. É
perfeitamente plausível a comparação entre a descrição do homem internético e a
caracterização rousseauniana do homem civilizado, ambos conduzidos a uma realidade
em que o que é se confunde com o que parece, da qual somos prisioneiros, e onde nos
encontramos “a ferros”, agora numa rede (informática), emaranhada onde o nosso eu se
perde. Outra questão que se impõe é a de saber se a comunicação, tão cara a Rousseau,
agora surgida em, na e pela rede, contribui para uma efectiva partilha social ou para o
isolamento, para o embotamento da iniciativa e capacidade crítica das massas ou
estimulará, pelo contrário, uma atitude judicativa do internauta. A questão da sociedade
panóptica e orwelliana, o facto de questionarmos se a nossa identidade se poderá ou não
perder neste “pan”, neste todo totalitarista que abafa as suas partes, no qual cada um
perderá a sua identidade, a questão do big brother, da acessibilidade dos nossos dados a
outros com a facilidade de um simples click, são outras questões que se impõem e que
actualizam, sob nova terminologia, algumas das questões empreendidas por Rousseau.
O homem de hoje é outro do homem do séc. XVIII; a contemporaneidade trouxe-lhe
novas vestes sociais, científicas, culturais, políticas, económicas. A sua integração na
sociedade implica o manuseamento de instrumentos e aparelhos técnicos, cada vez mais
sofisticados, e que, por isso, exigem a contínua actualização de conhecimentos e de
competências. Também a linguagem internética uniformizada em símbolos, mais
convencionada e artificial do que alguma vez Rousseau pensou no seu Essai, obrigou à
aprendizagem de uma nova linguagem, e quem não a domina é considerado um
analfabeto-informático, info-excluído, inexistente. Esse subtrair-se-á à comunicação
virtual, característica do mundo hipermoderno. Não usufruindo do tempo nem do
espaço virtual, será banido por alguns grupos, se se mantiver inexistente nas conversas
online com os familiares, amigos e desconhecidos. A questão impõe-se: “qual será o
245
lugar da pessoa humana, num mundo cada vez mais dominado pelas máquinas e as
lógicas abstractas?”535
Rousseau ajuda a responder.
Antes de mais, é preciso à maneira rousseauniana apresentar a questão da
realidade e do homem internéticos. Mais importante do que as respostas é a forma como
se coloca e clarifica a questão sobre a qual se pretende reflectir, tal como Rousseau
exemplifica com a reformulação que faz das questões colocadas pela Académie de
Dijon.
Assim, para começar, esclareçamos a questão que importa reflectir: é o mundo
internético vantajoso e um bem para a sociedade, ou, pelo contrário, potencia malefícios
e consequências desastrosas para a sociedade e para a vida dos homens? Esta é a
questão central que pretendemos colocar; contudo levará a outras, que, como veremos,
não estão longe das que Rousseau também formulou em relação ao seu tempo.
Antes de responder à questão, procedamos ao elenco dos benefícios da internet e
da realidade virtual.536
Apontemos apenas alguns: a possibilidade de acesso à
informação pelo cidadão comum; a amplitude e o alargamento nunca antes visto das
informações; a reconfiguração do espaço (ciberespaço537
), ultrapassando os limites
físicos das distâncias; a facilidade da comunicação com quem está no outro lado do
mundo (e.g., o skype); a convergência num mesmo espaço de diferentes media: é
possível ouvir rádio, ver televisão, aceder a vídeos, comunicar tele-visualmente.
Façamos o exercício contrário, vejamos agora as desvantagens da realidade
internética, e realcemos o facto de as mesmas terem vindo a aumentar e a ganhar
terreno.538
As estatísticas oferecem números preocupantes dos utentes que passam a
535 Ibid., p. 419. 536 São também de destacar os inúmeros benefícios que o uso e a aplicação da realidade internética
trouxeram para o desempenho da maioria das profissões, para a prática diária nas escolas, nas empresas,
nas várias instituições sociais, no ensino e na investigação, na economia e nas finanças, na política, nos
espaços públicos e nos espaços privados. 537 O vocábulo deve-se a William Gibson, que, em 1984, o usou pela primeira vez, no romance de ficção
Neuromancien. 538 É sobejamente conhecido o excesso da presença da Web na sociedade e na vida dos seus milhões de
utentes, num mundo paralelo cuja identidade ontológica não é questionável: o utente não sente que é nem
que existe fora da máquina. Os perigos da internet nos jovens da geração Web são ainda mais
assustadores, e vão muito além da adição, colocando mesmo as suas vidas em risco, dada a multiplicação das práticas de pedofilia, pornografia, rapto e violência que podem decorrer do contacto virtual. E não
esqueçamos a violência que caracteriza a maioria dos jogos virtuais, dos quais se destaca o recente e
assustador Jogo da Baleia Azul (conhecido como o Jogo da Morte) que encoraja à prática da auto-
mutilação, tendo já levado muitos jovens adolescentes ao hospital, e mesmo à morte. Há estudos que
revelam haver pessoas a viver praticamente em frente à máquina, e que inclusivamente perderam o
emprego devido à opção por uma vida virtual, na qual podem ser (ser?) quem quiserem, ao simular o jogo
246
maior parte das horas dos seus dias a navegar pela vasta panóplia dos serviços de oferta
da máquina de excelência (computador), que oferece a possibilidade do usufruto dos
programas informáticos (softwares), dos diversos motores de busca existentes, e de
variadíssimas redes sociais. Estes são apenas alguns exemplos de oferta deste mundo
virtual, que levam o internauta ao vício da fixação no écrã e do manuseamento do
teclado, podendo tornar-se vítima da “doença informática”539
: Com as doenças
físicas540
, surgem as patologias psicológicas, incluindo diversos tipos de depressões
internéticas, como a ansiedade incontrolável em pessoas que, por motivos profissionais
ou pessoais, não conseguem deixar de estar on-line, e que, a todo o momento,
necessitam de verificar os e-mails, as actualizações dos murais do facebook e de outras
redes sociais, as fotografias ao micro-segundo que vão sendo partilhadas no instagram,
e tantas outras funcionalidades em constante actualização. Se pensarmos que os
malefícios da internet resultam da má utilização do internauta, e não tanto das
potencialidades indubitavelmente positivas da realidade virtual, talvez nos reste a defesa
do mundo internético por si mesmo.
Mas a questão está longe de ser consensual. Os efeitos e as consequências do
mundo internético dividem-se entre uma leitura mais pessimista e outra mais optimista.
Da primeira, destacamos a perspectiva de Lucien Sfez, e da segunda, a de Pierre Lévy.
Para Sfez, o mundo virtual que se dá na máquina é um Frankenstein, fonte de
representação e não de expressão, de ilusão e não de realidade, de interactividade e não
de interacção. Nada é o que parece ser no mundo da máquina virtual, que, na
perspectiva sfeziana, é tomada como divina, fazendo lembrar a concepção de Feuerbach
sobre a religião: “[…] Tenho a ilusão […] de estar aí, enquanto não há corte e escolhas
prévias a meu respeito. A tal ponto que acabo por pedir emprestadas à máquina social,
da vida no ecrã, como se fosse real (o exemplo do jogo Second Life, um dos primeiros a demonstrar que
se pode ter uma vida virtual, na escolha do vestuário, do emprego, da família, etc.). Surgem as chamadas
doenças do computador, e.g. lesões nas mãos, braços e cotovelos, problemas de visão, devido ao esforço
repetitivo em frente do écra do computador, ou em frente aos tablets, para não falar dos telemóveis, que
acrescentam problemas de audição. Os novos meios de informação e de comunicação vão evoluindo de
dia para dia, as últimas gerações dos engenhos tecnológicos põem as anteriores no canto, e quem quer ser
verdadeiramente moderno, ou melhor, hipermoderno, tem de as adquirir, para não ficar atrás no ranking
dos utilizadores de softwares actualizados. 539 A expressão não é incomum entre os autores que reflectem sobre as questões da realidade virtual. Sfez é um dos exemplos: “Que conta para os hackers e as crianças, na prática concreta, esse imaginário que
deles se apodera? Não haverá uma verdadeira ‘conversão’ no espectáculo quotidiano e na coabitação
permanente do homem com a máquina? Não se poderá falar de doença informática […]?” - SFEZ,
Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p.78. 540 As doenças físicas que advêm da utilização das máquinas com teclados são comummente referidas
pela sigla LER (lesões por esforço repetitivo).
247
televisual ou informática, as minhas próprias faculdades. E tendo-lhes sido delegadas,
elas devolvem-me como se a sua origem estivesse aí, no céu tecnológico […]. Essa
máquina é toda ela feita de representações e simulações, mas torna-se então o único real
que se exprime. É ela que, de futuro, forma e informa, dá alegria e vida. Estamos, pois,
perante uma sociedade Frankenstein, essencialmente caracterizada por uma infinita
circularidade. O produto é produtor e produto ao mesmo tempo […]”541
. Sfez refere a
realidade virtual como uma estrutura maligna que encerra em si mesma um quadrilátero
de conceitos cuja interacção é nociva por si mesma: paradoxo, simulação, rede e
interactividade.542
Aqui, o plano do fictício iguala o do real. Tudo se confunde:
máquina, utilizador, espaço, tempo, emissor, receptor, meio e mensagem A ciência
cognitiva, que Sfez considera estar na base das novas tecnologias e, sobretudo, do
computador543
, “torna-se então o pensamento de todo o pensamento, [desenvolvendo] as
suas tautologias totalizantes, autísticas nos nossos espíritos, em perda de memória”544
.
O mundo é outro, a tradição desaparece, só a tecnologia conta, o tautismo é totalitário,
“e esconde, pois, os fins da comunicação, de que pretende ser o arauto”545
.
Pelo contrário, Lévy vê na cibercultura um espaço vivo, inacabado, livre e
heterogéneo546
, “um espaço de comunicação aberta”547
. No conjunto das suas obras
acerca da realidade virtual, esta é apresentada como sendo o meio privilegiado para a
possibilidade de uma união efectiva entre os povos, bem como um meio potencialmente
541 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 75. O tautismo é um traço comum
que Sfez vê presente em três grandes ordens da realidade contemporânea: mass media, computador e realidade internética, e ciência cognitiva. De tal forma se impôs na vida dos homens e nas diferentes
esferas sociais, que Sfez chega mesmo a referir o tautismo como a última ideologia dos novos tempos. Do
autor recorreremos apenas à aplicação que faz do tautismo à máquina-computador e à realidade
internética. 542 Cf. “As tecnologias do espírito”, in ibid., pp. 257-267. “O quadrilátero fecha-se sobre si mesmo e
engloba o conjunto das operações possíveis, dado que anuncia, desde já, que nenhuma contradição,
qualquer que ela seja, se pode opor à realidade do paradoxo, que toda a posição se pode encaixar em si
mesma, numa outra, dado que a própria realidade irreal (simulação) está em actividade de um extremo a
outro nos seres pensantes (rede), que se enriquecem uns aos outros no seu contacto recíproco (rede e
interactividade).” (ibid., p. 266). 543 Segundo Sfez, “o computador é tecnologia da tecnologia: tecnologia ao quadrado, no centro de todo o
dispositivo tecnológico.” (ibid., p. 285). 544 Ibid., p. 285. 545 Ibid., p. 299. 546 Cf. explicitação desta ideia: LÉVY, Pierre, Cyberculture (1997), Tr. Port. op. cit., pp. 46-47. O autor
salienta a importância da realidade virtual como um espaço comum e dinâmico, alimentado por todos
aqueles que o usam, e que tende a progredir no sentido da integração, universalização e transparência. 547 Ibid., p. 95.
248
fundador do que apelida de “amor universal”548
. Utilizando os conceitos
rousseaunianos, poder-se-ia afirmar: na impossibilidade do amor-de-si-mesmo, o amor
ao próximo, que já não se deixa confundir com o amor-próprio, é o mais aproximado
daquele, e um amor universal corresponderia ao amor da humanidade. Assim fosse.
Podemos verificar a presença da reflexão rousseauniana nas duas perspectivas
apresentadas, demarcando-se, portanto, de cada uma delas. Munidos da leitura dos
textos rousseaunianos, pensamos que o filósofo optaria pela leitura intermédia. Mas
como sustentar uma perspectiva de Rousseau, que não chegou a ser defendida pelo
próprio? Em primeiro lugar, reconhecemos que é um risco, e não é de pouca monta. Em
segundo lugar, consideramos que vale a pena correr esse risco, dado que vemos
questões associadas à máquina-computador e ao seu uso pelo homem internético549
que
efectivamente ganham com o contributo da reflexão rousseauniana, perspectivada agora
à luz da questão virtual.
Trazer Rousseau ao debate Sfez/Lévy parece-nos ser um exercício fecundo,
porquanto com o filósofo conciliaremos as duas perspectivas antagónicas, recorrendo à
lição da observação da natureza humana. Num tempo e numa realidade tão afastados do
século das Luzes, vejamos como as mesmas questões colocadas por Rousseau se
manifestam no cerne da problematização das questões direccionadas ao homem
internético, que passamos a elencar:
a) A relação entre o computador-máquina e os utilizadores, e estes entre si:
interacção ou interactividade; sociabilidade ou isolamento social?
b) A questão da identidade versus alteridade do internauta.
c) A linguagem convencional do código internético: que comunicação?
d) O homem e o ciberespaço: dependência, liberdade e/ou autonomia?
A primeira questão elencada retoma a preocupação rousseauniana pela
interacção social. Pretende-se saber que tipo de relação é estabelecida entre o
548 LÉVY, Pierre, World Philosophie – le Marché, le Cyberespace, la Conscience, Tr. Port. Filosofia
World – O Mercado, O Ciberespaço, A Consciência, trad. Carlos Aboim de Brito, Lisboa, Edições Instituto Piaget, 2001, p. 189. 549 Utilizamos indistintamente as expressões “era virtual”; “realidade virtual”, “realidade internética”,
“mundo internético” e “mundo virtual”, todas elas associadas ao advento da internet. Do mesmo modo,
utilizamos os termos “máquina”, “computador” e “máquina-computador” como expressão do mesmo
conceito. Da mesma forma, utilizamos sem critério “utilizador”, “internauta” e “cibernauta” como
sinónimos do utente que usufrui do serviço informático.
249
computador e os utilizadores, e se a relação destes entre si traduz uma interacção ou
apenas interactividade, se induz à sociabilidade ou ao isolamento social.
Segundo Sfez, o internauta deixa-se inevitavelmente absorver pelo mundo
virtual que a máquina-computador lhe oferece, e tende a isolar-se do mundo real.
Abstraído da sua vida real, passa a sobreviver no virtual. O tautismo tem relação
imediata com a metáfora de Frankenstein que serve para melhor ilustrar a ideia segundo
a qual o criador é vencido pela criatura. O homem está agora completamente envolto
pela tecnologia e, nela, perde-se. O “tautismo” é um neologismo criado pelo autor a
partir da junção entre autismo e tautologia: “Tautismo dizemos nós: é uma contracção
de dois termos, autismo e tautologia. Autismo, doença do autofechamento em que o
indivíduo não manifesta a necessidade de comunicar o seu pensamento a outrem nem se
conformar com o dos outros e cujos únicos interesses são os da satisfação orgânica ou
lúdica. Diz-se que é uma tautologia qualquer proposição idêntica cujo sujeito e
predicado são o único e mesmo conceito ou ainda, segundo Wittgenstein, qualquer
proposição complexa que continua a ser verdadeira em virtude da sua única forma,
qualquer que seja o valor de verdade das proposições que a compõem. O tautismo é um
autismo tautológico. Tautismo evoca ainda totalidade. Um imenso todo que nos engloba
e em que somos diluídos. […]”550
. Em relação ao autismo, o autor explicita que “se não
se trata de um autismo no sentido clínico do termo, trata-se, pelo menos, disto: de um
tautismo, de um bloqueio solipsista, sem outra saída que não seja a de se sujeitar então
ao deus ‘computacional’ e à realidade de uma comunicação vazia”551
. Sfez considera,
portanto, que a relação entre a máquina e os seus utilizadores é confusa e obscura, a
máquina faz do homem parte integrante da realidade ilusória que emana, e o homem
deixa-se ir, nesse espaço que a máquina mostra ser social. Mas engana-se: não há
verdadeira interacção com o outro, apenas interactividade com a máquina, a promessa
do convívio social torna-se, afinal, em isolamento social.
Já Lévy acusa de pretensa e grosseira a ideia de oposição entre o homem e a
máquina: “Como poderia ser tão radical a oposição entre o homem e a máquina? O
corte pertinente não se verifica entre a sociedade dos humanos, por um lado, e a raça das
máquinas, por outro. Toda a eficácia de um e a própria natureza do outro decorrem
dessa interconexão, dessa aliança de uma espécie animal com um número indefinido,
550 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 77. 551 Ibid., p. 77.
250
sempre crescente, de artefactos; e esses cruzamentos, essas construções de colectivos
híbridos e de circuitos que aumentam de complexidade, colocam sempre em jogo
porções do universo mais vastas, ou mais ínfimas, ou mais fulgurantes. Isto não
equivale a dizer que a máquina é a melhor amiga do homem, nem que o próprio homem
o seja” 552
. Para este autor, não há confusão entre o homem e a máquina; o homem é o
inventor e fabricante da máquina, e esta está destinada a ser utilizada e a prestar serviço
ao homem. O internauta entra e sai do mundo virtual, sem se deixar diluir nele. Utiliza-
se o computador como outra máquina qualquer, ainda que, para Lévy, esta seja a
máquina com mais benefícios até agora inventada e fabricada pelo homem.
Pensamos que Rousseau veria a relação entre o computador-máquina, os
utilizadores e estes entre si, como uma relação de interactividade, tendendo para o
isolamento social, e não como uma relação de interacção que promovesse uma sólida
convivência social. São vários os momentos nos seus textos que assim nos levam a
pensar. Rousseau não verbaliza conceitos como interacção ou interactividade, mas
vimos como a sua reflexão pretende salvaguardar uma relação mais saudável entre os
homens no todo social; os conceitos de cariz político, como o da vontade geral, e os de
teor educacional, moral e religioso, como os da virtude e consciência, visam
fundamentalmente criar relações saudáveis entre os homens, caracterizadas por
fecundas e felizes interacções, e não pelo isolamento social, como foi o seu destino.
A segunda questão elencada diz respeito à identidade versus alteridade que tanto
interessa a Rousseau, e que recebe um novo contorno em relação ao internauta e ao
mundo virtual, que em si mesmo supõe, não só uma alteridade, uma vez que se trata de
passar para um outro plano paralelo ao da realidade mesma, mas também de um
processo de alterização, a partir do momento em que o utilizador entra no mundo
virtual e se faz representar. A cada click, inicia a sessão, e escolhe se e com quem quer
estabelecer contacto, podendo optar ainda por ser quem é ou por quem quer ser, criando
falsos perfis de identidade.
O problema da identidade do internauta remete para a questão do espaço e do
tempo virtual. O modo como se perspectiva uma das questões espelha-se em todas as
outras. No mundo virtual, o utilizador pode ser quem é, pode deixar de ser quem é, pode
552 LÉVY, Pierre, Les technologies de l'intelligence (1990), Tr. Port. As Tecnologias da Inteligência – O
Futuro do Pensamento na Era Informática, trad. Fernanda Barão, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, pp. 242-
248.
251
fingir quem quer ser, e pode até fazer-se passar por outro internauta. Pode “falar” com
quem quiser, e como quiser, e pode, a qualquer momento, passar ao estado offline, ou
procurar outros destinatários que estão online. O utilizador comunica (?) e “conversa”
ao mesmo tempo com um ou mais perfis de alguém que está por detrás da máquina. O
utilizador pode navegar à-vontade, em plena liberdade, sem constrangimentos. Tem
acesso a uma vasta gama de serviços, que vai da esfera profissional até à oferta sexual,
e, assim, pode gerir os seus e-mails, proceder a uma pesquisa, ler notícias online,
consultar um blog do seu interesse, aceder às actualizações das diversas redes sociais
e/ou participar em salas de encontro; quanto mais prática virtual e domínio de teclado
tiver, mais operações consegue realizar. O mundo internético oferece assim janelas e
portais vários, a um só tempo e num mesmo espaço, suplantando o que a realidade não
pode dar. Contudo, o espaço e o tempo são duplos: num determinado momento, existe
alguém por detrás de cada computador, no espaço e no tempo da “realidade real”.
Simultaneamente, há um espaço e um tempo virtuais, onde o internauta se encontra
online. Neste contexto da realidade internética, e sobretudo nas redes sociais e nas salas
de conversação (chats), a pergunta impõe-se: quem é o cibernauta, que pessoa é? 553
Para Sfez, os constantes “jogos de espelhos” (expressão sfeziana) característicos
das redes sociais e dos chats exponenciam a perda da identidade do internauta. Mas a
própria relação entre a máquina e o cibernauta compromete a identidade do utilizador,
independentemente do seu propósito e do género de utilização que dela faz. Em
qualquer situação, o internauta acaba “diluído num todo”554
, num terceiro elemento
(computador-utilizador), em que a máquina deixa de ser apenas um objecto e o
internauta o sujeito. O internauta faz parte da máquina e esta é a extensão do seu corpo e
da sua mente. Nesta perspectiva, a virtualidade espácio-temporal absorve de tal modo o
553 A propósito da identidade do internauta e das questões associadas à comunicação em rede, leia-se:
TENDEIRO, Maria da Graça, “As relações virtuais: que Pessoa?”, in Phainomenon, Lisboa, ed. Centro
de Estudos de Filosofia da FLUL, 8, 2004, pp. 133-155. Neste artigo, a autora procede à análise de
questões, no âmbito do conceito de pessoa nas relações virtuais, dando ênfase à questão da comunicação,
e num último momento do artigo, interpreta e enquadra as relações virtuais à luz da perspectiva da moral
utilitarista. Cf. ibid., pp. 145-155. A autora justifica por que razão recorre a uma perspectiva teleológica
(utilitarista) e não deontológica: “A tentativa de interpretação e enquadramento baseada numa moral
teleológica e não deontológica justifica-se pelo facto de os comportamentos nestas comunidades de encontros online serem finalistas. Cibernautas procuram aumentar o prazer, reduzir a dor, alcançar a
felicidade. A felicidade é o fim em si. Neste sentido, se é possível falar de ética nos chats, será de uma
ética consequencialista, como é o utilitarismo de Stuart Mill e não de uma ética intencionalista e não
deontológica, onde o que conta são as intenções, subordinando a acção moral à razão e a princípios
universais”. (ibid., p. 145). 554 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 76.
252
internauta, que este fica impedido de distinguir o plano real do virtual, a dimensão da
realidade da dimensão da ficção, o que é do que parece.
Na perspectiva de Lévy, o internauta é quem, num dado momento, utiliza a
máquina virtual. Nada o impede de distinguir o espaço e o tempo reais do espaço e do
tempo virtuais. Aqueles não cessam de existir, enquanto estes só têm lugar no momento
da utilização. A identidade do internauta que utiliza conscientemente a máquina em
nada fica comprometida. O traço característico da universalidade atribuído à rede
internética corresponde tanto aos projectos dos seus criadores, como às expectativas dos
seus utilizadores. O utilizador sabe à partida para o que vai, quando acede à rede:
pretende participar da “comunicação universal”, na telecomunicação virtual, no novo
espaço planetário, e num mesmo tempo (comunicação assíncrona). Nesse movimento de
universalização, a identidade de cada um não está em risco: trata-se tão-só de uma
ocorrência, na qual o utilizador entra e sai, utiliza um serviço, e deixa de o utilizar. O
acesso ao mundo virtual cessa no momento em que o internauta sai do ciberespaço.
Como uma conversa telefónica, que finda e se desliga.555
Enquanto Sfez acusa a indistinção entre ser e parecer como uma característica
negativa do mundo virtual, mostrando não haver aí lugar à distinção clara entre o que é
e o que parece (ser), como Rousseau tanto se esforçou por fazer, Lévy refere o mundo
virtual como uma porta aberta para a união entre os homens, e até para a possibilidade
de um amor universal, ideia que certamente agradaria a Rousseau.
Diante da questão da identidade internética, talvez Rousseau nos recordasse que
o mundo virtual das novas tecnologias não faz parte da nossa natureza originária, mas
que o hábito da sua utilização se impõe, como se fosse uma segunda natureza:
“Quanto mais nos afastamos do estado de natureza, mais nos perdemos dos nossos gostos
naturais […] o hábito faz-nos uma segunda natureza que substituímos de tal modo à primeira que nenhum
de nós conhecerá mais aquela.”556
555 Lévy desvaloriza os problemas que comumente são reportados à virtualização em rede, virtualização
que já existia antes da internet, ainda que de modo mais rudimentar: “[…] a comunicação prossegue com
o digital um movimento de virtualização iniciado há muito tempo por meio de técnicas mais antigas, tais
como a escrita, o registo do som e da imagem, o rádio, a televisão e o telefone.[…] só as particularidades técnicas do ciberespaço permitem aos membros de um grupo humano (que podem ser tão numerosos
quanto se queira) coordenarem-se, cooperar, alimentar e consultar uma memória comum, e isso quase em
tempo real, apesar da dispersão geográfica e das diferenças horárias.” (LÉVY, Pierre, Les technologies de
l'intelligence, Tr. Port., op. cit., p. 53). 556 “Plus nous nous éloignons de l’état de nature, plus nous perdons de nos gouts naturels […] l’habitude
nos fait une seconde nature que nous substituons tellement à la première que nul d'entre nous ne connaît
253
Os dados existentes de adição e de doença informática parecem reforçar a
afirmação anterior. Longe como nunca estivera do estado de natureza, impõe-se talvez
ao homem, especificamente ao homem internético, um novo projecto de renaturalização
face à insólita desnaturalização que o mundo virtual promove. Rousseau fê-lo, como
vimos, no Émile e em Du Contrat Social. E aí mostrou que não se trata de fazer eliminar
o progresso que levou o homem à era virtual, numa frustrada e impossível
desnaturalização do homem, deslocando-o para o estado de natureza. Sem perder de
vista a natureza humana, trata-se de fazer surgir um novo homem, o dos novos tempos,
um homem que se conheça a si próprio, que reconheça a felicidade que naturalmente lhe
convém. Que seja, pois, o homem que vive em dois planos, o real e o virtual, mas,
lúcido e sensato, que não se perde nos dois mundos, e que tende a ser feliz.
A terceira questão elencada retoma a reflexão de Rousseau sobre a origem e a
evolução das línguas, e diz respeito à comunicação online, especificamente em relação à
linguagem mediada entre os cibernautas, e ao uso comum do código internético. A
realidade internética traz consigo duas linguagens, como se de dois novos dicionários,
ou mesmo alfabetos, se tratasse. De um lado, surge toda uma nova terminologia
específica e um universo semântico, que não havia na época que não era virtual: a
linguagem que envolve os próprios componentes e recursos do computador e das suas
potencialidades. Com efeito, o computador e o mundo virtual trouxeram consigo uma
linguagem nova, inexistente no tempo de Rousseau: www (Word Wide Web), site,
página, link, blog, janela, portal, hipermédia, internet, rede, online, offline, software,
hardware, internauta, ciberespaço, cibernauta, entre tantos outros vocábulos, são termos
que o autor não chegou a conhecer. Paralelamente à nova linguagem associada aos
contextos, recursos e componentes do computador, foi-se criando e desenvolvendo um
código internético, que inclui letras, signos, símbolos, imagens. O código internético
começou pela uniformização de alguns símbolos, que visavam representar emoções, de
alegria, tristeza, ira. O smile, por exemplo, resulta, como se sabe, do teclar de dois
pontos, seguido de um parêntesis curvo. Actualmente, o código internético é composto
por centenas de símbolos, que representam emoções, reacções, acções, pensamentos,
sentimentos, objectos e imagens.
plus celle-ci.” (É, livre II, OC IV, pp. 407-408). Rousseau quer, por isso, fazer prolongar o mais possível
a infância da criança, longe dos hábitos sociais que lhe imporão uma “segunda natureza”.
254
Neste ponto, a questão que mais interessa rousseaunianamente reflectir é
precisamente a da comunicação. Que comunicação é feita entre os utilizadores dos
computadores, nos múltiplos e diversos espaços e redes sociais que hoje existem, e que
amanhã já não são os mesmos? A linguagem internética aproxima ou distancia os
homens? É a comunicação efectivamente promovida entre os cibernautas, ou somente a
ilusão de que comunicam? O código internético expressa ideias e sentimentos, ou faz-se
apenas representar? Que comunicação é esta que Sfez considera a “tecno-
comunicação”?
No que respeita à comunicação online, destacam-se as redes sociais e as “salas
de encontro”. As últimas caracterizam-se como privilegiados espaços de comunicação,
no contexto virtual. Destinam-se a conversações de diferente teor, para amizade, para
fins de relacionamento muito, pouco, ou nada sério, pautadas por uma vasta gama de
oferta dirigida a todos os gostos e hábitos. Há “salas” de acesso público, e há “salas” de
acesso restrito. À partida, quem quer comunicar pode fazê-lo como e com quem quiser.
No contexto da perspectiva sfeziana segundo a qual “a tecnologia invadiu a totalidade
das actividades humanas, incluindo a comunicação”557
, a realidade internética veio criar
um definitivo vazio comunicacional, a comunicação tornou-se numa não-comunicação.
O excesso e a rapidez da comunicação online anulam a própria comunicação. O
tautismo que, entre outras realidades e actividades humanas, caracteriza a realidade
internética “abusa da palavra comunicação que significa colocar em comum, e por isso
abusa de nós, porque não faz mais do que rodopiar sempre sobre si mesmo, sem dar
importância à menor apropriação individual ou comunitária. A igualdade e a razão que
invoca são passivas, enquanto corrói nação e soberanias, já bem mergulhadas no
abismo. A sua nação é o mundo inteiro. A sua língua é a electrónica”558
. Na realidade
internética, instaura-se a confusão entre o emissor e o receptor, “já nada se diz [e] a
prolixidade induz a repetição vazia”559
, a comunicação é autista, tautológica,
tautística.560
557 SFEZ, Lucien, Critique de la Communication, Tr. Port. op. cit., p. 21. 558 Ibid., p. 300. 559 Ibid., p. 79. 560 “[…] a comunicação não é mais do que a repetição imperturbável da mesma (tautologia) no silêncio de
um sujeito morto, ou surdo-mudo, fechado na sua fortaleza interior (autismo), captado por um grande
Todo que engloba e se dissolve até ao menor desses átomos paradoxais […]. A comunicação faz-se assim
de si para si mesmo, mas de um ‘si’ diluído num todo. Essa comunicação é, pois, a de um não-em-si para
um não-em-si-mesmo.” (ibid., p. 76).
255
Para Lévy, a realidade virtual é uma verdadeira fonte de comunicação entre os
internautas de todo o mundo: “O ciberespaço põe em funcionamento um dispositivo de
comunicação original, pois permite às comunidades constituírem progressivamente e de
forma cooperante um contexto comum”561
. A comunicação dá-se efectivamente no
contexto da realidade virtual, que é, sem dúvida, um novo espaço de partilha e de
comunicação. A realidade virtual abriu portas para uma comunicação partilhada, de
todos para todos, abrangendo milhões de pessoas e Lévy vê nisso uma oportunidade
gigante que a cibercultura proporciona.562
A questão da linguagem interessa a Rousseau precisamente enquanto fonte de
comunicação, expressiva e não representativa. A linguagem internética servirá tanto
mais a comunicação entre os internautas quanto mais expressar a subjectividade de cada
um, e de todos. O código internético representa a máxima evolução da linguagem
convencional, que Rousseau critica no Discours de 55, e desenvolve no Essai. O código
internético traduz a absoluta conquista da representação e do desejo de exactidão face à
expressão (EL, V, p. 388). Assistimos à instauração de um código artificial, que não é
natural, é mecanizado, uniforme, e vinculativo à descodificação desejada. Este código
uniforme é obrigatório ao utilizador que pretende ser verdadeiramente integrado e aceite
neste mundo virtual, e está acima da língua materna (o “k” e o “lol” são apenas dois de
inúmeros exemplos). O código internético surge, pois, como uma nova etapa a
acrescentar às etapas da evolução da alteridade da linguagem, que Rousseau descrevera
no Essai, e o modo como esse código é utilizado impõe-se como uma reflexão urgente a
fazer.
A última questão elencada – o contexto da realidade virtual: dependência,
liberdade e/ou autonomia? – retoma a questão da submissão e aprisionamento que tanto
preocupa Rousseau. Ciber aponta para uma espécie de governo: “As palavras ‘leme’,
‘governar’ ou to govern, partilham a mesma etimologia: vêm do grego cyber. Esta
proximidade etimológica dá que pensar”563
. Está o internauta condenado a estes novos
“ferros”? Destinado à dependência da realidade internética? A dimensão virtual anula
decisiva e absolutamente a liberdade daquele?
561 LÉVY, Pierre, Cyberculture, Tr. Port. op. cit., p. 67. 562 Cf. LÉVY, Pierre, “A comunicação através do mundo virtual partilhado”, in ibid., pp. 106-107. 563 QUÉAU, Philippe, “Cibercultura e info-ética”, in AAVV, Desafio do Século XXI, op. cit., p. 404.
256
As contradições que Rousseau viu no seu tempo são agora substituídas por
novas contradições na era do ciberespaço, por exemplo, a contradição entre o aumento e
a ampliação dos recursos do ciberespaço e a exclusão que este potencia: “quanto mais se
desenvolvem as comunidades virtuais no ciberespaço (comunidade dos operadores
financeiros, empresas virtuais, deslocalizadas), mais se reforçam os guetos de exclusão
bem real”564
. As contradições que surgem na relação entre a economia de mercado e o
ciberespaço espraiam-se por diversos campos, nomeadamente entre os direitos do
internauta e do autor, na “contradição entre o direito dos produtores que se regem contra
a pirataria e o direito dos utilizadores que garantem a cópia privada, o uso leal das obras
(fazer uso), contradição entre a defesa do copyright e a promoção do acesso de todos à
informação para fins de educação e de pesquisa”565
.
Estamos condenados a mergulhar sem salvação nesta linguagem técnica,
convencional, de total representação? Seremos inevitavelmente segregados pela
máquina? É inevitável a dependência internética? A resposta de índole rousseauniana é
firme e é não. Regressar ao passado, alerta o filósofo, não é mais possível. Nem
desejável. Quantos estarão dispostos a abdicar do conforto que as tecnologias
trouxeram? Quem dispensará o privilégio de pertencer a este tempo, que tanto progresso
nos trouxe? Quem quererá dispensar um tempo em que os avanços científicos fizeram
aumentar anos de vida, e curar doenças, outrora mortais?
Na impossibilidade de regressar de vez ao passado, parece ficar, mais uma vez, a
necessidade da observação fecunda como a mais útil saída para a questão presente.
Neste contexto, Rousseau alertar-nos-ia para a necessidade de estarmos atentos e
vigilantes não fazendo do uso da internet um abuso, antes dela retirando benefícios para
o homem. Tal como fez em relação às Luzes do seu tempo, criticando-as e usando-as
em benefício do homem. Nesse sentido, se vemos uma estreita relação entre a reflexão
de Rousseau e as críticas tecidas por Sfez, verificamos que há também uma proximidade
564 Ibid., p. 409. 565 Ibid., p. 410. O universo internético põe em evidência o ressurgimento de novos direitos: “Que direitos
possuirão os cidadãos sobre os lucros numéricos, assim como sobre os inúmeros vestígios que deixarão
para trás em cada transacção na web? O risco mais sério é que, se nada se fizer para resolver este
fenómeno à escala mundial, o mínimo ‘clique’ numa ligação hipertexto, a mínima navegação na web sejam sistematicamente registados, depois reunidos e, finalmente, tratados por potentes máquinas de data
mining. A ameaça potencial para os indivíduos, as comunidades, ou mesmo toda a sociedade é
considerável. Porém, é a dignidade humana que está na primeira linha. Será que iremos aceitar existir,
doravante, social, económica, financeira e mesmo politicamente sob forma de ficheiros numéricos
reunidos sem controlo, manipulados sem ‘direito de resposta’ possível? É esta a imagem da pessoa na
sociedade da informação que está em jogo.” (ibid., p. 417-418).
257
com Lévy quanto aos benefícios que o mundo virtual pode trazer, encarado como um
mundo universal, da universalidade e da totalidade, e não da totalização e do
totalitarismo.566
Nada nos garante que as gerações futuras venham a lidar com o mundo
tecnológico-virtual com maior sensatez e equilíbrio. O resultado não é verdadeiramente
assegurado, pois implica a acção conjunta de todos os que rodeiam a criança, o que a
observação de Rousseau reconhece como sendo difícil de conseguir:
“[…] dessas três educações diferentes a da natureza não depende de nós; a das coisas só em
certos pontos depende. A dos homens é a única de que somos realmente senhores e ainda assim só o
somos por suposição, pois quem pode esperar inteiramente dominar as palavras e as acções de todos os
que cercam uma criança?”567
Ainda assim, sem sucesso garantido, urge o investimento na educação das nossas
crianças e jovens. O que é pedido a Émile não é o cumprimento de dogmas religiosos,
nem de regras sociais, nem de deveres normativos determinados pela razão iluminada,
mas o respeito perante o que, na sua subjectividade mesma, encontra de si, em si e para
os outros. Estando a consciência moral e o apelo à virtude em si próprio, Émile não tem
de receber instruções exteriores, mas sim de aprender a orientar a sua vontade e o seu
juízo, pensando e sentindo a vida, bem usufruindo de tudo o que esta tem para lhe dar.
Por isso, a reflexão educacional de Rousseau dirige-se a diferentes nações e povos,
independentemente das circunstâncias históricas, geográficas e culturais de cada um,
alertando para a educação para a felicidade, no respeito pela individualidade e natureza
de cada um, e muito mais do que em preceitos, baseada em exercícios e práticas
virtuosas, que visam respeitar a sua subjectividade, que é também a do outro.
566 Veja-se a explicitação do mundo virtual como sendo o mundo da totalidade e da universalidade, e não
da totalização, a partir da crítica que Lévy faz à tese da pós-modernidade de Lyotard: “Em três palavras, e
retomando a expressão de Jean-François Lyotard, a pós-modernidade proclama o fim dos ‘grandes
discursos totalizantes’. A multiplicidade e a desordem radical das épocas, dos pontos de vista e das
legitimidades, traço distintivo do pós-moderno, são aliás nitidamente acentuados e encorajados na
cibercultura. Mas a filosofia pós-moderna confundiu o universal e a totalização. O seu erro foi espargir o
bebé do universal com a água suja da totalidade. O que é o universal? É a presença (virtual) da
humanidade em si mesma. Quanto à totalidade, pode definir-se como a reunião estabilizada do sentido de
uma pluralidade (discurso, situação, conjunto de acontecimentos, sistema, etc.). Esta identidade global
pode prender-se ao horizonte de um processo complexo, resultar do desequilíbrio dinâmico da vida,
emergir das oscilações e contradições do pensamento. Mas seja qual for a complexidade das suas
modalidades, a totalidade fica ainda sob o horizonte do mesmo. Ora, a cibercultura mostra precisamente que existe outra maneira de instaurar a presença virtual em si da humanidade (o universal) sem ser pela
identidade do sentido (a totalidade).” (LÉVY, Pierre, Cyberculture, Tr. Port. op. cit., pp. 124-125). 567 “[…] de ces trois éducations différentes, celle de la nature ne dépend point de nous; celle des choses
n’en dépend qu’à certains égards; celle des hommes est la seule dont nous soyons vraiment les maîtres;
encore ne le sommes-nous que par supposition: car qui est-ce qui peut espérer de diriger entièrement les
discours et les actions de tous ceux qui environnent un enfant? ” (É, livre I, OC IV, p. 247).
258
Numa palavra, e para responder com Rousseau à questão inicial de saber se a
realidade internética traz mais vantagens ou desvantagens, dizemos que o uso do
computador e da internet faz rousseaunianamente sentido, caso não se transforme em
(ab)uso, e se propiciar uma efectiva comunicação, interacção e sociabilidade, sem
desrespeitar a identidade, a natureza, a subjectividade e a universalidade dos homens. A
Rousseau interessaria, sobretudo, a utilização virtuosa da internet. Diz-nos que não é
moralista, mas observador, e, como tal, não se oporia à livre e heterogénea utilização da
máquina virtual, desde que daí não resultassem nefastas consequências. Acentuaria,
pois, a importância de um uso sensato da mesma, e a medida da sensatez está na própria
natureza do homem, à qual acede por meio do exercício subjectivo de indagação de si
mesmo.
Pode a subjectividade universal rousseauniana ser considerada um paradigma?
Sim. Se resolve todos os problemas? Claro que não. Nem os do seu tempo, nem os de
hoje. A questão apresenta-se, sim, como um precioso contributo diante da “anorexia
classicizante e reflexiva dos nossos dias”568
. Rousseau não é um profeta, mas
compreende-se que Fernando Gil o refira como um dos inventores do futuro, pois
“aprender a ver obriga a saber sonhar”569
. Subscreva-se ou não a reflexão
rousseauniana, ninguém poderá negar o investimento ao longo de uma vida na
observação da natureza humana com vista à felicidade que lhe convém. Se não é muito,
pouco também não será. Rousseau entrega, como vimos, a responsabilidade de todos os
males às mãos humanas, às criações e invenções dos homens, males que só por eles
podem ser minorados. O homem só pode bem viver, de modo livre e responsável e,
portanto, não se tornando escravo do progresso que ele mesmo desencadeou, fazendo
dele, ao invés, um uso responsável e virtuoso.
Com Rousseau, perguntamos de novo. Queremos o progresso da humanidade ou
a humanidade do progresso? Queremos caminhar com consciência neste Novo Mundo,
ou queremos seguir cegamente em direcção a um Mundo Novo, sob essa caricatura que,
afinal, pode vir a ser mais próxima da realidade do que à partida parece? Preferimos o
conforto material e o bem-estar supérfluo e instantâneo que hoje temos à sensação de
felicidade? A resposta não é individual, nem sectorial, mas colectiva e global. Nenhum
de nós está isolado do todo social, e a educação não está isolada da política, nem da
568 GIL, Fernando, “Os Inventores do Futuro”, in Acentos, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
2005, p. 331. 569 Ibid., p. 326.
259
ética, como bem viu Rousseau, e, agora, muito menos da economia. A minoração dos
males internéticos passa por cada um de nós (cada um deverá repensar o modo como
utiliza os meios informáticos), mas é, sobretudo, colectiva, social, global e universal.
Deixamos uma última questão: não constituirá a hipermodernidade, destacando
aí a realidade internética, um dos maiores e mais recentes desafios que são colocados à
subjectividade universal rousseauniana? Com esta questão, sustentada por tudo o que
atrás ficou dito, esperamos sinceramente ter correspondido ao desafio de uma leitura
pertinente, legítima, fiel e justa de Rousseau. Esperamos, enfim, ter correspondido
positivamente a estas palavras que o filósofo deixa ao leitor, no prefácio ao Émile: “[…]
se eu fizer nascer boas [ideias], não terei certamente perdido o meu tempo”570
.
570 Cf. citação que serviu de entrada ao presente sub-capítulo.
260
CONCLUSÃO
A conclusão mais segura que pode ser extraída de uma investigação sobre a obra
de Rousseau é a de que é ela mesma inconclusiva. Posta esta primeira (in)conclusão,
consideramos, ainda assim, estar em condições de proceder a uma sinopse clara da
investigação empreendida, intrínseca e naturalmente inacabada.
O nosso modus operandi foi o de nos atermos o mais possível às palavras do
filósofo, após inúmeras leituras de comentadores. Na verdade, quantas mais leituras de
leituras fazemos da obra rousseauniana, e tendo em conta a divergência de
interpretações com que nos deparamos, mais nos apercebemos da indispensabilidade de
uma leitura própria e a sós com o autor. A leitura que empreendemos ditou caminhos e
sentidos de compreensão que esperamos não ter ficado longe do ensejo de Rousseau, ao
mesmo tempo que marca a originalidade devida de uma leitura autónoma.
Neste apontamento conclusivo, procuramos fundamental e sumariamente dar
conta de três aspectos essenciais: em primeiro lugar, clarificar a tese que defendemos,
fundamentando-a com os resultados da problematização efectuada em cada uma das
fases pelas quais passou, e dando ênfase às considerações que Rousseau reitera,
explícita ou implicitamente, ao longo dos textos que tomámos para análise, e a partir
das quais sustentamos a nossa tese; em segundo lugar, apontar a simplicidade, alcance e
fecundidade como características da questão em análise; e, finalmente, perspectivar
horizontes de investigação a partir do ponto em que damos por findada esta nossa
investigação.
A tese maior e, para nós, a mais abrangente dos textos de Rousseau e das ideias
que nestes fomos vendo reiteradas é a da subjectividade universal, isto é, a defesa do
exercício subjectivo de carácter universal, pela demanda da natureza humana, por meio
de uma reflexão que exige a concomitância dos planos do pensar e do sentir, dirigida
aos homens de todos os tempos e de todos os lugares. A subjectividade universal de
Rousseau transporta em si um determinado saber-ser-estar-pensar-sentir-viver, que não
está, diz-nos repetidamente, nos livros, mas em cada um de nós, e no exercício de
subjectividade que cada um deverá empreender. Um exercício de subjectividade que nos
leva, não a sistemas políticos, educacionais, morais, religiosos, mas a ideias, a pensar e a
sentir, de cuja percepção e reconhecimento dependerá a felicidade dos homens, sob todas
as suas dimensões. Todavia, Rousseau escreve este exercício e dá a ver as suas
261
repercussões, nas diferentes obras que nos deixa. E fá-lo mais para a posteridade, já que
os seus contemporâneos não o compreendem.
O processo da investigação passou pela aferição dos traços distintivos, contornos
específicos, originais e inovadores da questão da subjectividade universal rousseauniana,
traduzidos nas cinco principais fases, etapas, ou se se quiser ainda, momentos desse
processo.
Começámos por identificar o horizonte da definição da subjectividade universal
rousseauniana e aí vimos a relação inextricável entre pensar e sentir como o contexto no
qual se desenvolve a questão da subjectividade. Nesse primeiro momento, partimos da
questão de Derathé, a de saber se Rousseau é ou não um racionalista. No contexto da
polémica existente em torno desta questão, entre a ala defensora de um racionalismo
rousseauniano, representada por Beaulavon, e a ala oposta que defende uma
incontestável primazia do sentimento em detrimento da razão, na qual se encontram
autores como Pierre-Maurice Masson, Brunschvicg e V. Basch, assumimos a posição
intermédia, tal como Derathé. Contudo, consideramos ser mais radicais do que este
autor, no que respeita à perspectiva de um movimento duplo e simbiótico entre razão e
sentimento, na obra de Rousseau. Se há textos, como a Profession de Foi, em que o
primado do sentimento é evidente (texto que Masson destaca, em defesa da sua tese),
outros há, em que o papel da razão parece sair vitorioso (papel que Beaulavon destaca, na
relação de proximidade que estabelece entre Rousseau e Descartes). Outros autores, como
Goldschmidt, defendem um sensualismo próximo do de Condillac. Apesar da inegável
influência que recebe de filósofos como Condillac e Locke, Rousseau recusa a
perspectiva do sensualismo. Por outro lado, não obstante a importância que dá aos
sentidos, Rousseau não defende a teoria empirista da tábua rasa. Não é também um
defensor acérrimo do empirismo lockiano, no qual todas as ideias provêm mais ou
menos visivelmente das sensações e dos sentidos, incluindo os valores do bem e do mal,
aos quais Locke faz corresponder o prazer e a dor, respectivamente. Se Rousseau não é
um empirista, que se possa colocar ao lado de Locke, Hume ou Berkeley, também não é
um racionalista, lado a lado com Descartes, Leibniz e Espinosa. Rousseau é Rousseau. O
filósofo quer-se demarcado de todos os outros filósofos. É o filósofo que combate as
Luzes com uma visão singular das próprias Luzes e da razão, defendendo que a razão
vale pelo que também sente e que os sentimentos do homem civilizado pertencem
também ao campo da razão.
262
Da análise dos textos que tomámos para referência, resulta a consideração de que
a relação entre pensar e sentir é simbiótica e inextricável, facto para nós visível tanto no
modo de escrita, como na tese filosófica que vemos reiterada, ao longo dos diferentes
textos. Para Rousseau, sentimos antes de pensarmos: “Não começámos por raciocinar,
mas por sentir” (EL, II, p. 380); “[…] a nossa sensibilidade é incontestavelmente anterior
à nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes das ideias.” (PF, p. 600) e “Senti antes
de pensar […]” (C, I, p. 8). Os sentimentos naturais (próprios do estado de natureza) dão
lugar a sentimentos sociais (próprios do estado de civilização) – e.g. o amor de si
mesmo (amour de soi-même) é substituído pelo amor-próprio (amour-propre). O cunho
da razão nos sentimentos que surgem em sociedade não mais deixará de estar presente.
O homem natural sente sem fazer actuar a racionalidade (encontra-se na etapa pré-
racional), mas o homem civilizado já só sabe sentir com a razão (uma vez desenvolvida,
a razão não deixará mais de actuar). Segundo Rousseau, pensar e sentir entrecruzam-se,
um não subsiste sem o outro, e o homem que pretende conhecer-se tem de assumir os
dois planos. A demanda da natureza humana implica a sua observação num exercício
introspectivo de subjectividade. Essa observação, a do estado de natureza, que remete
para a natureza humana, só é passível de ser efectiva e verdadeiramente conseguida se o
observador recorrer ao olhar duplo, o do pensar e o do sentir. Ao leitor é, assim, exigido
o firme abandono da dicotomia comummente atribuída aos termos razão e coração,
raciocínio e sentimento.
Ainda nesse primeiro momento, vimos também que a subjectividade
rousseauniana não consiste exclusivamente numa subjectividade filosófica, nem apenas
literária, antes numa subjectividade filosófico-literária. Como em todas as questões que se
colocam em relação à obra de Rousseau, também esta questão não escapa à polémica: se
uma parte dos comentadores defende a presença maioritária de uma subjectividade
filosófica, outros há que defendem essencialmente uma subjectividade literária. Situamo-
nos numa outra perspectiva partilhada por um conjunto de autores, que vêem nos escritos
rousseaunianos a presença de uma subjectividade simultaneamente literária e filosófica. O
“eu literário” confunde-se com o “eu filosófico”, e este último suplanta o anterior, no
sentido em que a escrita e a linguagem rousseaunianas estão ao serviço da sua filosofia.
A filosofia de Rousseau não pretende ser a de uma justificação e fundamentação
sistemática das suas teses, mas a de uma apresentação, fruto de um exercício de
263
subjectividade que procura a observação de si e dos homens, da natureza humana e da
felicidade que lhe convém, e a consequente partilha com o leitor.
Na leitura empreendida, assumimos a influência de Schleiermacher, no que
respeita à compreensão dos textos de Rousseau como processo criativo sem que, no
entanto, pretendessemos compreender melhor o filósofo do que ele a si mesmo. A nossa
leitura não é fruto de uma relação de identificação, ou sequer de reprodução.
Procurámos, antes, cumprir o ensejo de Rousseau, fazendo-nos acompanhar dos
ensinamentos da hermenêutica schleiermacheriana, o da partilha cúmplice com o leitor
para uma efectiva compreensão dos seus textos. Essa partilha exige ao leitor o exercício
da sua própria subjectividade, não com a pretensão de ficar acima, ou abaixo, da do
próprio filósofo, mas para, lado a lado com Rousseau, compreender o universo
filosófico da subjectividade humana. Foi assim que nos confrontámos com a questão
filosófica da subjectividade universal como aquela que mais confere coerência e
unidade à sua obra, resultado de uma aferição hermenêutica de traços comuns aos seus
textos, sem que o autor enuncie ou refira uma única vez a questão da nossa
investigação, mas que consideramos estar subjacente aos textos que tomámos para
nossa análise. Conferindo coerência e unidade à sua obra, vimos também como a
questão da subjectividade universal de Rousseau se dirige ao leitor de todos os tempos e
lugares. Com efeito, a questão salvaguarda uma dimensão extra-temporal e fora-de-
lugar, que os homens não podem, paradoxalmente, dispensar em tempo algum, sob pena
de deixarem de ser efectivamente homens (humanos). Porque, no limite, ser homem é
assumir a sua natureza, saber reconstruir-se socialmente, tendo em conta a sua natureza
e a felicidade que lhe convém. E essa é uma questão que, sendo universal e esquecendo
todos os tempos e todos os lugares, Rousseau destina ao homem que a deverá saber
aplicar, circunstanciadamente, num determinado tempo e lugar, dirigindo-a, assim,
precisamente para os homens de todos os tempos e de todos os lugares.
Já num segundo momento, vimos como a questão da subjectividade universal
rousseauniana implica a compreensão dos seguintes pares de termos: universalidade e
subjectividade; identidade e alteridade. Neste ponto, procurou-se explanar o modo
particular e específico como aqueles conceitos são veiculados em cada um do conjunto
dos oito textos de Rousseau que tomámos para análise.
Nesse sentido, e no que respeita ao primeiro par, destaca-se o facto de Rousseau
considerar a verdade como expressão da subjectividade humana, em todos aqueles textos.
264
O filósofo recusa à partida o objectivo de encontrar uma verdade abstracta, ou metafísica,
ou meramente especulativa. A verdade que Rousseau almeja alcançar é a verdade do
conhecimento do homem, verdade intrínseca à subjectividade humana com vista à
felicidade que convém à sua natureza. Ora, a verdade do género humano não está nos
livros dos filósofos, como também não está nos factos do passado da história. É no
Discours de 50 que Rousseau esclarece pela primeira vez como pretende compreender a
natureza humana: consultar a “luz interior” (PF, p. 569), na introspecção e interioridade
subjectiva e, desse modo, chegar à verdade universal da subjectividade humana.
Rousseau considera que está em condições de dar a ver e partilhar os pressupostos
e as consequências do exercício de subjectividade que leva ao conhecimento do homem,
mostrando como este exercício é acessível e indispensável a todos. A universalidade da
subjectividade não só subjaz a todos os seus textos, como é também expressa nas
Confessions e nas Rêveries, no exercício de subjectividade, que lhe permite descrever,
recordar e imaginar o que, dizendo verdadeiramente respeito à sua vida, ao seu modo de
ser e de estar, não deixa de ser universal, na partilha subjectivamente filosófica que faz
questão de estabelecer com o leitor. Autor e leitor encontram-se na demanda da
identidade e da natureza humana, individual e universal, num processo contínuo de uma
reflexão pensada e sentida, essa que não engana, não mente, antes expressa e apresenta
genuinamente as ideias e sentimentos inerentes à subjectividade.
A compreensão sobre o que é a subjectividade universal em Rousseau passou
também por perceber a relação entre identidade e alteridade. Perguntar pela natureza
humana é perguntar pelo que os homens são, procurar a sua identidade originária, no
sentido de aferir o que é natural ao homem e, ao mesmo tempo, auscultar o que convém
à sua natureza, já sob a aparência das vestes sociais, no seio da sociedade e em plena
interacção social e, portanto, no homem afastado já do seu estado natural, em que a
“razão cultivada” já o fez tornar-se outro, vivendo em alteridade.
Mostrámos como, em cada um desses traços, Rousseau inova em relação aos seus
antecessores, propondo uma visão diferente da própria subjectividade, considerando-a um
exercício universal de indagação pela identidade originária do homem, isto é, pela sua
natureza, um exercício pensado e sentido da boa observação, capaz de reconhecer a
trilogia das ideias/sentimentos que se apresenta à consciência, a saber: a dialéctica
ser/parecer (estátua de Glauco), a distinção entre estado de natureza (homem natural) e
estado de civilização (homem civil) e a evitabilidade do (ab)uso do mal. Procurámos
265
também compreender o amplo e complexo significado que Rousseau confere à
consciência como a voz da natureza, que reconhece a trilogia, compreende e deseja a
prática da virtude, num exercício de autonomia e de liberdade, que não se resigna à
alienação e ao aprisionamento sociais, que procura libertar-se dos “ferros”.
Num terceiro momento, explanámos as três ideias/sentimentos da trilogia, no
modo como surgem, uma a uma, nos diferentes textos de Rousseau. Vimos como dizer
ideias/sentimentos não é o mesmo que defender uma simples homologia entre os dois
termos, apesar de se tratar em simultâneo de ideias a pensar e sentimentos a sentir.
Vimos a dialéctica ser/parecer surgir logo no Discours de 50, no qual Rousseau
acusa a sociedade de não mais parecer o que é. Ora, a observação que se impõe da
natureza humana coincide com a observação da estátua de Glauco, que servirá a
resposta imprescindível à inscrição délfica, procurando a distinção entre o que é e o que
parece no homem. É assim estabelecida uma dialéctica entre os dois estados do homem:
a do ser (oculto e escondido, a que corresponde o estado de natureza), e a do parecer
(claramente visível na interacção social, em que o ser não é mais, por estar oculto em
cada homem e desfigurado pela civilização). A dialéctica ser/parecer aliada ao recurso à
estátua de Glauco permite, assim, observar a natureza humana, qualquer que seja o
tempo e o lugar a que pertence o observador.
Da ideia/sentimento anterior resulta a distinção entre estado de natureza e estado
de civilização, a que corresponde a distinção do homem natural e homem civil.
Rousseau não hesita em momento algum nessa distinção que repete invariavelmente, ao
longo dos seus textos. Ao contrário de outros filósofos, Rousseau afirma que não
confunde aqueles estados e não transporta características exclusivas de um para o outro;
pelo contrário, caracteriza-os de modo inequívoco e preciso, afastando cuidadosamente
a areia (ornamentos civilizacionais) para visualizar com nitidez e sem erro de
perspectiva a natureza humana (representada pela estátua de Glauco).
O homem natural vive no estado de natureza, não tem qualquer espécie de
relação moral, não é bom nem mau, não tem vícios nem virtudes, não reconhece leis,
vive na simplicidade e em perfeita comunhão com a natureza. Não conhece a
desigualdade social, a sua liberdade é natural e a única lei que conhece é a da natureza.
Este homem fala o “grito da natureza”, sente o amor de si mesmo e a piedade natural, e,
266
em parceria com o princípio da conservação de si próprio, não fará qualquer mal a
outrem, mas também não praticará propriamente o bem.
Pelo contrário, o homem civil vive no estado de civilização, aí onde conhece o
amor-próprio, a desigualdade moral e política, os vícios como o do ciúme, o do orgulho,
o da vaidade. Compara-se com o outro, vive na ordem do parecer, conhece a servidão e
dominação, fala uma linguagem convencional, possui “razão cultivada” e não deixará
mais de querer progresso e desenvolvimento.
Àquela distinção, Rousseau acrescentou uma outra, a distinção entre homem e
animal, e fá-lo de modo inovador, trazendo importantes consequências para a reflexão
sobre o homem. A sua definição explícita já não implica a condição necessária e
suficiente de animal racional, social ou político. A racionalidade especificamente
humana deixa de ser a principal dissemelhança entre os dois. As faculdades intrínsecas e
exclusivamente humanas são outras: a perfectibilidade e a liberdade. Com Rousseau, o
homem passa a ser sobretudo um animal de história, livre e perfectível, que jamais
regressará ao seu estado de natureza, mas de cuja compreensão se deverá fazer
acompanhar.
A maior consequência desta nova distinção manifesta-se na terceira
ideia/sentimento da trilogia, a evitabilidade do (ab)uso do mal, a qual está relacionada
directamente com a tese rousseauniana da responsabilidade humana. Para Rousseau, não
há mal radical humano; todos os males resultam do uso das faculdades da liberdade e da
perfectibilidade dos homens. Os homens são os autores responsáveis pelos males sociais
e também pelo seu (ab)uso. Assim, se a sociedade é já um mal, os homens podem e
devem contrariar os efeitos, a profusão e a manutenção dos seus malefícios. O cidadão
recebe uma outra natureza, assume uma nova identidade, mas pode e deve ter em vista a
sua natureza originária, não obstante a sua irreversível erradicação.
Posteriormente, num quarto momento, procurámos perceber quais as regras e os
requisitos implicados na observação rouseauniana da natureza humana, que tem em
vista a felicidade que lhe convém. Vimos como Rousseau confere à observação um papel
de superior destaque no contexto da sua obra, cuja originalidade é destacada pelo
próprio, quando afirma que não vê como os outros homens. São também vários os
momentos em que se assume como um observador. Um observador que observa o(s)
267
mal(es) da sociedade, o estado de natureza e um observador que também se auto-
observa.
À maneira socrática (pela inúmeras referências abonatórias, Sócrates será o
filósofo com quem Rousseau mais se identifica), o filósofo genebrino impõe-se revelar
como é a natureza humana, o que, já sob a aparência das vestes sociais, implica uma
criteriosa e cuidadosa observação. Rousseau não nos diz expressamente, nem num só
momento, quais são os instrumentos e os recursos a ter em conta no processo de
observação, mas vai dizendo, ao longo dos seus textos, que para ver o estado de
natureza é necessária, para além da razão e do coração, do pensar e do sentir, a
imaginação e a memória, tendo aquela um papel predominante sobre esta última. E vai
também acrescentando que a observação exige uma consciência atenta, a que se ouve a si
mesma, capaz de reconhecer a trilogia que a ela se apresenta.
A observação implica um movimento duplo: trata-se, por um lado, de um olhar
introspectivo que se pretende ver a si mesmo e, por outro, de “lembrar” um passado (a
descrição genealógica da passagem do homem natural para o homem civil), recordação
necessária para a compreensão do presente, bem como para a perspectivação do futuro. A
observação do estado de natureza é feita a partir do estado de civilização, mas não fica por
aí. O olhar é de longo alcance, tem de ser dirigido até ao estado de natureza, e não
havendo possibilidade de acesso empírico ou concreto a ele, por não constituir nem um
facto científico nem um dado histórico, o alcance desta visão será somente possível tendo
em conta os alertas e cumpridos os requisitos da observação rousseauniana. A observação
do estado de natureza e do homem natural tem um lugar de destaque na reflexão
rousseauniana, em particular na questão da subjectividade universal, não só pelas
características próprias que o autor lhe confere, como, e principalmente, pelo modo como
se destaca de tantas outras observações. Com efeito, e não sem alguma sobranceria,
Rousseau acusa grandes filósofos, como Aristóteles, Hobbes e Locke de não terem sabido
bem observar a natureza humana. Segundo Rousseau, procurando chegar ao estado da
natureza, os outros filósofos mais não fizeram do que transportar para um estado
longínquo (que talvez nem tenha existido, mas que muito importa à questão do homem
civilizado e civil, organizado social e políticamente) as características e as luzes do estado
de civilização.
Como em muitos outros os conceitos abordados, Rousseau atribui ao conceitode
felicidade uma notável amplitude filosófica, pelo que procurámos compreender a
268
relação entre a felicidade e a memória, o tempo e a imaginação; a felicidade como prática
da virtude; a felicidade como aspiração (natural) humana; a dimensão individual e a
dimensão social da felicidade; a distinção entre felicidade e prazer; e, finalmente, a
felicidade como uma conquista adiada. No final do quarto momento da investigação,
procurámos fundamentar os diferentes significados que Rousseau lhe atribui com as
palavras do próprio autor.
No quinto e último momento, começámos por esboçar a hipótese de a questão da
subjectividade universal como um paradigma de reflexão, nos termos em que o fizemos,
recorrendo a Kuhn. Intentámos depois aferir a presença da subjectividade rousseauniana
na questão do progresso científico-tecnológico que caracteriza as sociedades mais
desenvolvidas vigentes. Procurámos ainda perspectivar o contributo rousseauniano para
a reflexão do homem contemporâneo, sob a égide da hipermodernidade. E deste último
passo passámos para o desafio de trazer Rousseau para a consideração do homem
internético.
Para credibilizar a nossa hipótese, mesmo que não avançássemos muito mais,
tornou-se, pelo menos, necessário aferir de que modo a questão cumpre o sentido
filosófico que Kuhn confere ao paradigma, como uma visão (do homem, já o dissemos),
que sustenta as diferentes peças do puzzle da realidade humana. Adoptámos o conceito
kuhniano, salvaguardando, desde logo, as incontornáveis diferenças entre a filosofia e a
ciência. E nessa adopção livre, lembrámos o modo como o horizonte, os traços
distintivos e a trilogia da subjectividade configuram uma reflexão paradigmática sobre o
homem, o de todos os tempos, especificamente, sobre o homem contemporâneo.
Intentámos perspectivar a hipótese da questão da subjectividade universal de
Rousseau como paradigma de reflexão que muito tem também a dizer acerca da ética e
da função social da ciência e sobre os efeitos do seu progresso, a partir sobretudo da
segunda metade do séc. XX (com autores como Bernal e Morin), e, mais ainda, no
momento actual das sociedades mais desenvolvidas, neste que é o início do terceiro
milénio, no qual vivenciamos o maior progresso científico-tecnológico alguma vez
alcançado.
Dada a complexidade da realidade actual, e da ciência em particular,
considerámos por bem matizar firmemente a arbitrariedade a que a expressão “progresso
científico-tecnológico” ligada à do “homem contemporâneo” pode dar azo. E foi assim
269
que optámos por duas considerações, quer dizer, figuras do homem contemporâneo: a do
homem hipermoderno e a do homem internético, sendo este último uma subclasse do
primeiro.
A estátua de Glauco de Rousseau encontra-se agora revestida de novas
características que resultam dos tempos hipermodernos. O homem hipermoderno de
Lipovetsky corresponde ao estado avançado de aparência característica das sociedades
actuais em que o consumismo e o valor económico são dominantes, e o fosso entre o
que é e o que parece aumenta cada vez mais. Estabelecendo a diferença entre pós-
moderno e hipermoderno, procurámos fundamentar a relação de proximidade que
vemos entre a reflexão de Rousseau e a hipermodernidade.
Num derradeiro passo, procurámos perspectivar as questões colocadas ao
homem que acede à realidade virtual como retomando as preocupações do filósofo que
pensa, sente e observa as questões mais inerentes à natureza humana, as quais, pelo seu
alcance universal, se mantêm inalteráveis na sua essência, apesar dos novos
revestimentos que vão recebendo ao longo da História. A internet e o mundo virtual
estão englobados no universo das novas tecnologias de informação e de comunicação
(NTIC). Dada a complexidade da realidade envolvente destas novas tecnologias,
optamos por nos centrar prioritariamente sobre a realidade internética e virtual, e na
máquina-computador, chamando Rousseau a debate.
Sem colocar, obviamente, a questão sobre a realidade internética e o(s) seu(s)
eventual(is) mal(es) a combater, Rousseau viu nas conquistas do homem civilizado a
origem de malefícios, pelo facto de não satisfazerem os interesses inerentes à
subjectividade humana. Assim, também o mundo virtual deu origem a efeitos que, nas
palavras de Sfez, desvirtuam a essência do homem. Neste âmbito, não procedemos a um
levantamento exaustivo, nem sequer aprofundado sobre esta nova realidade, mas apenas
a um registo de algumas questões cuja abordagem e debate muito ficam a ganhar com o
contributo de Rousseau e o que considerámos ser a sua posição intermédia entre a
perspectiva pessimista de Sfez e a perspectiva optimista de Lévy, face ao mundo virtual.
Entre a metáfora de Franskentein de Sfez e a perspectiva do ciberespaço como um
espaço de liberdade e de união universal de Lévy, parece-nos que a reflexão de
Rousseau se situa no meio, não tendendo, nem para o derrotismo sfeziano, nem para a
visão assumidamente optimista que Lévy tem da máquina e da realidade virtual.
270
Se a realidade internética tem contribuído para uma maior alienação do homem e
para a sua perda de identidade, optaria Rousseau por anular a evolução das novas
tecnologias e, no caso concreto, da realidade internética? Não. Tal como fez em relação
à organização política e à instituição educacional do seu tempo, alertar-nos-ia para a
necessidade imperiosa do exercício de subjectividade como prioridade para a reflexão
sobre a utilização da máquina virtual, no sentido de aferir que felicidade pode a
máquina dar ao homem, evitando que se dê lugar a uma completa submissão do homem
à realidade internética, ao invés de se usufruir das suas incontestáveis mais-valias e
benefícios. Assim, se Rousseau porventura desse maioritariamente relevância aos
efeitos perigosos da realidade virtual, não seria para cair numa atitude pessimista, como
a de Sfez, mas para exaltar algumas questões a repensar na prática diária das sociedades
internéticas. Ora, as questões que se relacionam directamente com a natureza e com a
felicidade humana são precisamente as questões que vimos a realidade internética
empolar, não obstante a distância e a diferença da sociedade e do tempo em que
Rousseau as colocou: a questão da identidade (agora, do internauta), a da dialéctica
ser/parecer (a estátua de Glauco recebe um novo revestimento, tecnológico, informático,
virtual), a questão dos efeitos do (ab)uso da utilização desta nova conquista do
progresso, fruto da perfectibilidade humana, e ainda a questão da autonomia e da
liberdade do homem, agora face à máquina virtual.
Na leitura dos textos de Rousseau, sentimos a mesma dificuldade que o filósofo
testemunha em relação às suas próprias leituras:
“A ideia errada que tinha das coisas convencia-me de que para ler um livro com proveito era
necessário possuir todos os conhecimentos que ele supunha […]. Com esta ideia disparatada obrigava-me
a parar a cada instante, a correr constantemente de um livro para outro, e por vezes, antes de chegar à
décima página do que desejava estudar, ter-me-ia sido preciso esgotar bibliotecas inteiras. Contudo,
teimei tanto neste extravagante método, que perdi um tempo infinito, e acabei por transformar a cabeça ao
ponto de nada mais poder ver sem saber. Felizmente, apercebi-me de que o caminho errado por onde me
metia me fazia perder num enorme labirinto, e saí dele antes de me haver inteiramente extraviado
[…].”571
571 “La fausse idée que j'avais des choses me persuadait que pour lire un livre avec fruit il fallait avoir
toutes les connaissances qu'il supposait [...]. Avec cette folle idée j'étais arrêté à chaque instant, forcé de
courir incessamment d'un livre à l'autre et quelquefois avant d'être à la dixième page de celui que je
voulais étudier il m'eut fallu épuiser des bibliothèques. Cependant je m'obstinai si bien à cette
extravagante méthode que j'y perdis un tems infini, et faillis à me brouiller la tête au point de ne pouvoir
plus ni rien voir ni rien savoir. Heureusement je m'aperçus que j'enfilais une fausse route qui m'égarait
dans un labyrinthe immense, et j'en sortis avant d'y être tout-à-fait perdu […].” (C., livre VI, OC I, p.
234).
271
Num primeiro momento, a cada leitura, e a cada referência a algum autor (e não
são poucas as vezes que Rousseau o faz), sentimos necessidade de procurar saber mais
sobre o autor ou obra referida. Mais tarde, percebemos que tudo o que nos interessava
era apenas compreender Rousseau e qualquer remissão a fazer-se para outro autor, ou
investigador, teria sempre um significado menor no nosso trabalho.
Poderíamos perguntar por que o filósofo não resumiu as suas ideias? Por que não
facilitou a vida ao leitor, apresentando, em dado momento, uma sinopse da sua
reflexão? Porque isso implicaria a própria desvirtuação de Rousseau. A sua morte
enquanto filósofo, escritor e autor, que é. Os textos de Rousseau nem sempre são textos
explícitos, mas importa salientar que a questão da subjectividade universal é apresentada
de modo claro, coerente e rigoroso por Rousseau, não obstante a sua escrita prolixa e,
muitas vezes, obscura.
A leitura que empreendemos da temática da subjectividade universal procura
mostrar a clareza e coerência da mesma, ao longo dos diferentes textos, não obstante o seu
complexo modus scribendi. Rousseau apresenta e reitera ideias, espelhadas nos seus
textos, de modo assistemático, mas que lhe conferem uma lógica interna, mesmo
sistemática. Pensamos, por isso, que não o desvirtuamos ao proceder ao elenco de
algumas ideias basilares, a saber: o exercício de subjectividade consiste num exercício
de observação introspectiva da natureza humana que reúne a dimensão do pensar e a do
sentir; a observação rousseauniana da natureza humana e da felicidade que lhe convém
parte da estátua de Glauco, e adopta certas precauções e requisitos; a compreensão da
complexidade e da responsabilidade do eu humano, na vida individual, como na história
colectiva, implica o reconhecimento da trilogia da subjectividade universal no seu
conjunto; e, finalmente, o estado de felicidade consiste numa tendência natural dos
homens, sendo a sua conquista efectiva adiada per si.
Para trás ficou a explicitação de todos estes pontos, enquadrados nos capítulos
respectivos, e ilustrados com inúmeras remissões aos textos de Rousseau. Resta-nos,
resumidamente, atentar naquelas que consideramos ser as características mais incisivas
da questão, a saber: simplicidade, alcance e fecundidade.
A questão da subjectividade universal rousseauniana é simples (claramente, nada
simplista). É simples porque assenta em “coisas”, “pouco numerosas” que o homem
272
deve saber, para que saiba também reconhecer a natureza humana e a felicidade que lhe
importa. Consideramos que estas “coisas” são as ideias/sentimentos que estão inscritas
na subjectividade humana, a partir das quais derivam todas as verdades que importam,
cujo reconhecimento leva à aproximação da felicidade, estando esta também, como
vimos, ligada à prática da virtude, individual e colectiva. Referimo-nos à trilogia da
subjectividade universal. Estas são as “coisas” que permitem compreender que a
infelicidade humana é produzida pela ausência do reconhecimento da dialéctica entre
ser e parecer, da distinção entre o homem do estado de natureza e o homem do estado de
civilização, e do modo como se pode evitar o (ab)uso do mal. Uma sociedade baseada
num conflito intransponível entre o que é e o que parece, uma sociedade que não assente
no reconhecimento da distinção entre o homem natural e o homem civilizado, e que não
compreenda a exclusiva responsabilidade humana pelo (ab)uso do(s) mal(es) é uma
sociedade condenada à infelicidade, como Rousseau diz ser a do seu tempo.
A observação rousseauniana – pela razão e pelo coração – da natureza humana
fornece a trilogia que promove a possibilidade da felicidade humana: é preciso que os
homens vejam, pensem e sintam em si – e já sempre em relação com o outro – o que
lhes é natural a fim de estarem habilitados a evitar o (ab)uso do mal em sociedade, no
plano da educação (Émile), no da política (Du Contrat Social), enfim, na vida
(Confessions e Rêveries), ainda que a felicidade dos homens seja uma conquista adiada.
Na observação rousseauniana, o estado de natureza surge como resultado de um recurso
imaginário e ficcional (trata-se de uma ficção criada pela imaginação), hipotético e
conjectural (trata-se de uma hipótese conjectural, pois não se sabe sequer se terá
existido). O estado natural do homem não está, pois, nem podia estar, presente no
homem social. Por outro lado, e sem contradição, o que convém à natureza humana
pode e deve estar salvaguardado neste. É preciso que o estado de natureza se torne o
referente principal do estado de civilização. Na impossibilidade da construção de uma
sociedade perfeita, Rousseau investe na procura daqueles que poderão ser os melhores
princípios políticos. Não se trata apenas de constatar a figura do cidadão, mas de formar
o melhor cidadão e, para isso, é preciso educar os homens. Deste modo, a educação é
colocada lado a lado com a política. Por isso, o filósofo defende uma educação natural,
salvaguardando o plano do ser (É, II, p. 325), por contraposição à educação
convencional, assente no plano do parecer.
273
Já em Du Contrat Social (de modo incontestavelmente mais desenvolvido do
que no Discours de 55) a liberdade natural (plano do ser) dá lugar à liberdade civil
(plano do parecer), o homem da natureza (ser) dá lugar ao homem das instituições
(parecer). A questão é saber como podem e devem estar conciliados o plano do ser
natural com o plano do parecer social e civil do homem. Quer os princípios políticos de
Du Contrat Social, quer a educação proposta do Émile, pretendem “conciliar os direitos
da natureza com as nossas leis sociais” (PF, p. 640). No entanto, Rousseau dá a ver
claramente as dificuldades existentes, pois que a sociedade exige do homem a sua
incontornável e inevitável desnaturalização. As relações estabelecidas entre os homens
na sociedade têm de ser legisladas. A liberdade civil implica a própria legislação. A
relação com o outro não pode ser livre nem arbitrária. O direito natural é
definitivamente substituído pelo direito político-jurídico.
No estabelecimento dos princípios do direito político em Du Contrat Social, seja
na concepção do pacto social, seja na da vontade geral, Rousseau reconhece a
necessidade incontornável de fazer nascer um novo homem que reconheça o outro e a
este se associe livre e voluntariamente numa sociedade organizada politicamente. É
assim que surge a figura do cidadão e o pacto social corresponde à associação livre
entre os homens, sendo esta associação civil “o acto do mundo mais voluntário” (CS, II,
4, p. 440). A vontade geral (que Rousseau considera indestrutível, logo no título do
primeiro capítulo do livro IV de Du Contrat Social) representa o compromisso
individual e voluntário de cada homem particular e individual em fazer parte do todo
colectivo e social.
Também a fecundidade e o alcance da reflexão rousseauniana são características
bem patentes na vasta bibliografia existente sobre a obra de Rousseau, qualquer que seja
a temática privilegiada. São muitas as áreas abrangidas pela obra rousseauniana:
estética, ética, linguagem, religião, política, educação, literatura, teatro, romance,
poesia, e o seu imenso legado é apontado em diversos sentidos nos inúmeros artigos e
estudos de quem o leu. Tendo dedicado a sua reflexão a diferentes aporias temáticas,
Rousseau, consciente de que transpõe o seu próprio século, é justamente apontado como
percursor das ciências do homem e as suas reflexões mantêm-se actuais em diferentes
horizontes temáticos.
Independentemente da polémica de algumas das relações que possam ser
estabelecidas entre os autores (mesmo os que à partida menos se esperam) e Rousseau,
274
precisamente devido à amplitude da sua obra, é inegável a importância do seu lugar no
mundo da filosofia. Centrada no “eu” que se vê a partir do “outro” (reconhecimento tão
caro a Lévi-Strauss), e veiculando a verdade como expressão da subjectividade, a
reflexão rousseauniana traz importantes consequências para as ciências sociais e
humanas, e, sobretudo, para aquela que será sempre a mais envolvente e radical
reflexão: a Filosofia.
Deixamos a hipótese de considerar a questão da subjectividade universal de
Rousseau como uma reflexão paradigmática, que não resolve os problemas do mundo e
da sociedade, mas que comporta uma visão do homem, da sua natureza e da felicidade
que lhe convém, que importará trazer para a reflexão de questões específicas e
circunstanciais de outros tempos e lugares. No contexto da complexidade e da dinâmica
que caracterizam as sociedades mais desenvolvidas, não surge hoje reforçada a
necessidade de repensarmos a natureza do género humano e a felicidade que lhe
convém? Seja qual for a fase do estado de civilização em que se encontre cada homem,
é preciso que não perca de vista a sua natureza originária, cuja observação o levará à
felicidade que mais importa. Independentemente dos tempos e dos lugares, é a mesma
trilogia basilar que surge à consciência, no exercício subjectivo de indagação pela
natureza originária do homem.
O leitor de Rousseau necessita, pois, ter um espírito livre e dinâmico, estar
atento e aberto ao futuro e à novidade. Os diferentes textos de Rousseau manifestam o
contexto da sua época e da sua vida e, ao mesmo tempo, irrompem e ultrapassam o seu
século, dirigindo-se aos homens de todos os séculos e de todas as geografias. A
observação que Rousseau enuncia no prefácio ao Discours de 55 dita, já o dissemos
reiteradamente, um sentido prospectivo e activo, a ter em conta nos diferentes tempos,
muito particularmente, pelas sociedades contemporâneas.
As sociedades contemporâneas mais desenvolvidas actualizam, sob novas
formas e modos de vivência, a visão rousseauniana da civilização em que “ser e parecer
[se tornaram] duas coisas completamente diferentes” (D2, II, p.174). A observação do
eu que se procura a si mesmo e que se quer reconstituído faz hoje tanto mais sentido,
porquanto a identidade não esteve nunca tanto em causa como no nosso século. No
contexto da hipermodernidade e da realidade internética, a subjectividade universal
rousseauniana e a observação da natureza humana que comporta surge como uma lufada
de ar fresco, uma luz de esperança, mas não se espere de Rousseau um conjunto de
275
fórmulas milagrosas; o seu contributo não é uma utopia, nem uma ideologia, não é
totalitário, nem consiste na metanarrativa sebastianista que faltava. Trata-se de um
exercício de subjectividade que identifica e caracteriza o homem enquanto homem,
independentemente dos tempos e dos lugares, mas que é preciso ter em conta
precisamente de acordo com as circunstâncias e com os contextos epocais.
O que o preocupa não é o desenvolvimento da razão e o progresso dos
conhecimentos, das artes e/ou das ciências. O que o preocupa são os seus efeitos nefastos,
resultantes de um desenvolvimento cego, desenfredao e desiquilibrado (entre o pensar e o
sentir) do progresso humano. O que o levará a dedicar toda uma vida ao estudo da
natureza humana e a querer saber que género de felicidade (social, política, educacional,
artística, literária, científica) lhe convém. Na nossa perspectiva, é este o alicerce de todo
o seu imenso e diverso legado: a responsabilidade dos homens pela sua história e do
homem individual pela sua própria vida implica o seu auto-conhecimento, bem ainda o
reconhecimento – pelo exercício da sua subjectividade e da sua dupla visão – da trilogia
que identificámos como manifestando-se à consciência.
Mas outras questões surgem. Não haverá uma relação a estabelecer entre a
inextricabilidade que Rousseau confere à relação entre pensar e sentir, razão e coração, e
o avanço dos conhecimentos acerca do funcionamento do cérebro humano? Até que
ponto Rousseau não antecipou filosoficamente os mais recentes conhecimentos
científicos sobre a razão e o coração dos homens? Por exemplo, até que ponto a
subjectividade rousseauniana não é o fundamento/o princípio/a origem/a tónica dos
sentimentos de fundo de que nos fala Damásio e que poderão mesmo funcionar como
marcadores-somáticos da razão, levando o homem a agir para a felicidade e impedindo-
o de agir no sentido do (ab)uso dos males sociais? Ficam as perguntas e a hipótese do
paradigma rousseauniano para eventuais posteriores desenvolvimentos, já fora do
âmbito da presente investigação.
São feitas algumas críticas a Rousseau, quanto ao seu método, pouco ortodoxo, e
à sua escrita, pouco académica, demasiado poética, contraditória, sobejamente prolixa.
É acusado de exacerbação de personalidade pertencente a um ego agigantado. Há quem
o considere como alguém que se vê a si próprio como possuindo uma moral superior. E
há ainda quem, partindo da relação da sua filosofia com a sua vida, ambas intensas e
paradoxais, se dedique a diagnosticar patologias de índole psiquiátrica, que o terão
levado ao isolamento social.
276
Quanto a nós, não pretendemos em nenhum momento da investigação proceder a
qualquer análise psicológica do filósofo. É a sua filosofia que nos interessa. E a questão
que nos assoma como sendo a basilar da sua filosofia: a subjectividade universal
rousseauniana. O propósito rousseauniano de observar o homem não é, como vimos, um
mero exercício reflexivo encerrado em si mesmo; pelo contrário, sai de si para, partindo
da genealogia conjectural do homem no Discours de 55, resultar na reflexão política,
moral e educacional, que apresenta nas obras posteriores, a fim de que cada país e cada
povo, na sua acção histórica, não esqueça os princípios fundamentais que salvaguardam
a felicidade do género humano e que assim possam os homens, nas circunstâncias
particulares do seu contexto, (re)construir o que tem de ser (re)construído.
Na (re)construção da sociedade, Rousseau ressalva que nenhuma parte da
sociedade está isolada e separada do seu contexto social e global. Rousseau percebeu
bem a ideia do todo social, da sua complexidade e da relação que cada uma das suas
áreas tem com as restantes (por exemplo, a educação não está separada da política). O
Estado não esgota a esfera política. A igreja ou qualquer outra instituição religiosa não
esgota a esfera da religião. A educação e o ensino não se esgotam nas escolas. O
progresso científico-tecnológico não se esgota aí mesmo. Eu, tu, e nós, e o Estado, a
Educação, o Ensino, a Ética, a Ciência, tudo se inter-relaciona numa sociedade cada vez
mais complexa, e a precisar cada vez mais de uma abrangente reflexão. Não será fácil.
Mas não há outro caminho.
Rousseau mostra-nos que a história e a vida dos homens fazem tanto mais
sentido quanto mais os seus decursos se fizerem aproximar da felicidade. É da vida, que
nos fala, e não é de uma vida a meio gás que se trata. Trata-se de uma vida plena, pois
“não se trata de o impedir que morra, mas de o fazer viver (É, Manuscrit Favre, p. 59).
Haverá, afinal, outro propósito do pensar, do sentir, e do viver, que não seja o de se ser,
pensar e sentir que se é e se faz também o outro feliz?
Porque desdobrada em narrativas distintas, a subjectividade em Rousseau é
díspare e aponta em vários sentidos, sem que se perca, porque ligada a princípios que a
sustentam, mesmo quando, num mesmo texto, o autor reflecte, pensa, sente, diz, constrói,
desconstrói, recorda, imagina ou confessa. Desdobra-se em vários sujeitos (je, moi, on,
nous, toi) e, em cada um dos seus escritos, a questão da subjectividade surge de modo
distinto, mas cremos ser possível perspectivá-la como contendo em si inscrita a trilogia
das suas ideias/sentimentos basilares, interligados entre si e presentes nos seus textos,
277
tanto nos escritos que remetem para o género humano e para a felicidade dos homens,
como nos escritos que envolvem a sua própria vida, exposta nos textos tardios e em
alguma correspondência. O exercício subjectivo de Rousseau visa a identidade humana, já
sempre sob alteridade, ou seja, compreender a natureza humana e o que mais interessa ao
homem, quer na sua vida privada, quer na esfera pública: o seu ser, o que lhe é natural e o
não (ab)uso do mal. E eis, de novo, a trilogia das ideias/sentimentos inscritas na
subjectividade universal, que, num autêntico exercício de subjectividade, se apresenta
invariavelmente à consciência.
Muitas questões ficaram por explanar. Muitas formas de interpretar seriam
possíveis. A certeza que fica é a de que nenhuma investigação acerca da obra de
Rousseau poderá ser considerada completa. Ainda assim, almejamos ter atingido a mais
alta ambição do nosso estudo: a de termos dado a ver a questão da subjectividade
rousseauniana, alicerçada na relação inextricável entre pensar e sentir, cujos traços
distintivos, contornos específicos, originais e inovadores marcam um antes e um após
Rousseau na História da Filosofia. O filósofo apresenta-nos uma completa filosofia da
subjectividade que influencia sem dúvida o modo de pensar, ser e estar, mas a
subjectividade universal não determina qualquer decisão. Isso seria desvirtuar a própria
liberdade de decisão do homem.
Que subjectividade é, então, a de Rousseau? Uma subjectividade que pensa e
sente, que pensa sentindo e sente pensando; uma subjectividade que procura a
universalidade no exercício de introspecção mais singular; uma subjectividade que se
debruça sobre si mesma; uma subjectividade que se desdobra nos seus textos
verdadeiramente pictóricos e imagéticos que se libertam da mera palavra escrita; uma
subjectividade que só se compreende com a visão racional e sentimental, pelo leitor
dedicado e paciente que se entrega e se deixa entranhar pelos seus textos.
Só se compreende a subjectividade de Rousseau, rousseauniando. Só assim se
vê esta subjectividade que se desdobra em diferentes dimensões, que se diz e desdiz,
escreve e descreve, que se faz e se desfaz, à procura sempre do que mais aos homens diz
respeito: a sua felicidade. Uma subjectividade que faz coincidir a reflexão com o
sentimento das ideias, num autêntico, genuíno e profundo discurso filosófico, literário e
poético, mesmo nos seus textos de carácter político. Uma subjectividade capaz de
desafiar o espaço e o tempo, atravessando não só continentes como séculos. Uma
subjectividade que sabe da conquista adiada da felicidade, quer na vida individual de
278
cada homem, quer na história colectiva dos homens. Mas uma subjectividade que não
desiste e persiste nessa demanda, intemporal e eterna, presente no legado dos muitos e
densos escritos que nos deixou, pronta a ser retomada, em todos os tempos e lugares. É
esse o desafio que fica do filósofo, e ouçamo-lo na sua língua materna:
“[…] chérit trop ses frères pour ne pas haïr leurs vices, et qui voudrait qu’ils apprissent
une fois à se voir aussi méchants qu’ils sont, pour désirer au moins de se rendre aussi bons qu’ils
pourraient être.”572
572
Préface d’une seconde lettre a Bordes, OC III, p. 104.
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Morão, Lisboa, Edições 70, 1989;
-Kritik der reinen Vernunft (1781), Tr. Port., Crítica da Razão Pura, trad. Manuela
Pinto dos Santos e Alexandre F. Morujão, introd. e notas de Alexandre F. Morujão,
Lisboa, Gulbenkian, 1985;
-Kritik der Urteilskraft (1790), Tr. Port. Crítica da Faculdade de Juízo (1790), trad.,
introd. e notas António Marques e Valério Rohden, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa
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civilização do ligeiro, trad. Pedro Eloy Duarte, Lisboa, Edições 70, 2016.
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Vazio – Ensaio sobre o individualismo contemporâneo, trad. Miguel Serras Pereira e
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Felicidade Paradoxal – Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsumo, trad. Patrícia
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http://www.earlymoderntexts.com/assets/pdfs/wollstonecraft1792.pdf.
VIII - Hiperligações (links) e sites sobre Rousseau, consultados ao longo da
investigação:
-http://rousseaustudies.free.fr/
(Site ligado à Équipe Rousseau da Université Sorbonne- Paris IV, da responsabilidade
de Tanguy L’Aminot até 2013, data da sua aposentação. Este site constituiu precioso
auxiliar de investigação, porquanto conteve a bibliografia mundial actualizada dos
estudos e publicações relativos à vida e ao pensamento de Rousseau, até 2015).
-http://www.fflch.usp.br/df/rousseau/membros.html
(Grupo de estudos Jean-Jacques Rousseau da USP, Brasil, sob a direcção de Jacira de
Freitas. O site possibilita o acesso a diferentes estudos, artigos e obras sobre Rousseau).
-www.unicamp.br/~jmarques/gip/index.html
(Grupo Interdisciplinar de Pesquisa Jean-Jacques Rousseau da UNICAMP, Brasil Este
Grupo foi criado por José Óscar de Almeida Marques e tem a sua sede no Departamento
de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. À semelhança
do anterior, este site permite o acesso a diferentes estudos, artigos e obras sobre
Rousseau).
303
-http://agora.qCca/thematiques/rousseau.nsf/.
(Contém a Encyclopédie Thématique Jean-Jacques Rousseau).
-www.sjjRch/.
(Site da Société Jean-Jacques Rousseau de Genève, em Genebra, criada em 1905, dando
a possibilidade de consulta dos seus Annales).
-http://rousseauassociation.ish-lyon.cnrs.fr/.
(Site da Rousseau Association na América do Norte, promove os colóquios que
dinamiza e as publicações que empreende).
-www.rousseau-chronologie.com/index.html.
(Contém a biografia e a cronologia de Jean-Jacques Rousseau, disponibilizando o
visionamento de fotos dos lugares que habitou e que visitou).
-www.espace-rousseau.ch.
(Site ligado ao Espace Rousseau, instalado na casa natal do filósofo, dando conta das
diversas actividades e exposições que ali vão tendo lugar).
-http://agora.qCca/Dossiers/Jean-Jacques_Rousseau.
(Este site específico sobre Rousseau está integrado na reconhecida Encyclopédie de
l’Agora, que resulta da colaboração de investigadores de diferentes áreas de todo o
mundo).
-http://sfeds.ish-lyon.cnrs.fr.
(Site da responsabilidade de Samuel Baudry, ligado à Société Française d’Étude du
Dix-huitième Siècle – fundada em 1964. Actualiza os estudos acerca do século XVIII e
promove diversos colóquios e actividades em diferentes países. É um dos principais
membros da Société Internationale d’Etude du XVIIIe siècle).
-www.isecs.org.
(Site ligado à International Society for Eighteenth-Century Studies que promove
essencialmente a pesquisa sob as diferentes dimensões, cultural, filosófica, linguística,
científica, literária, artística, religiosa e ideológica sobre o século XVIII).
-www.clarens-rousseau.com.
(Site ligado à Association Clarens – Fédération Internationale Jean-Jacques Rousseau
que pretende promover a investigação da obra de Rousseau, sobretudo em relação aos
seus contributos no nosso século).
304
ÍNDICE DE NOMES
A____________________________________________________________________
Adorno, T. W. – 227.
Agostinho (Santo) – 5, 150-155, 212.
Almeida, Teodoro de – 10.
Alorna, Marquesa de – 10.
Alves, J. L. – 2, 10.
Alves Pereira, V. – 12.
Arendt, H. – 2, 44.
Aristóteles – 5, 172-173, 192, 226.
Ast, Fr. – 56-57.
Ataln, H. – 220.
B____________________________________________________________________
Bachelard, G. – 219.
Bacon, F. – 220, 222.
Barata, A. – 10.
Barbeyrac – 2, 26, 117.
Basch, V. – 26, 261.
Bataille, G. – 226.
Beaulavon, M. G. – 26-27, 261.
Bentham, J. – 122, 192.
Benveniste, E. – 49.
Berkeley, G. – 39, 261.
Berlin, I. – 2.
Bernal, J. D. – 217-218, 268.
Bezerra, G. C – 28-29, 170.
Bocage, M. M. B. – 10.
Bodin, J. – 86, 145.
Bouchardy, F. – 47.
Brunschvicg, L. – 26, 261.
305
Buffon, G. – 5, 28.
Burlamaqui, J.-J. – 5, 26, 117.
C_____________________________________________________________________
Cassirer, E. – 2-3, 156, 223, 228, 233.
Celaconde, C. – 220.
Changeux, J-P. – 220.
Charles, S. – 22, 230-231, 233.
Ciriza, A. – 50.
Coblans, H. – 218.
Comte, A. – 192.
Condillac, É. – 5, 28-29, 41, 98, 186-187, 196-197, 261.
D_____________________________________________________________________
D’Alembert, J. – 53.
Damásio, A. – 213, 275.
Darwin, C. – 99.
Dédéyan, C. – 2, 46.
Delbos, V. – 48.
Deleuze, G. – 11.
Della Volpe, G. – 2, 66, 87.
Delmas-Marty, M. – 220.
Derathé, R. – 2, 26-27, 61, 117, 261.
Derrida, J. – 11, 46, 226.
Descartes, R. – 5, 8, 11-12,14, 26-28, 32, 39, 41, 213, 261.
Diderot, D. – 5, 53-55, 93, 123, 182-184.
Dilthey, W. – 9.
Dinechin, O. – 220.
Donald, M. – 99.
Dubet, F. -220.
E_____________________________________________________________________
Einstein, A. – 219.
306
Elísio, F. – 10.
Engels, F. – 2, 66.
Epicuro – 192.
Espíndola, A. – 27, 51.
Espinosa, B. – 39, 96, 261.
Evódio – 153-154.
F_____________________________________________________________________
Ferenczi, S. – 219.
Fernandes, A. M. – 10.
Ferreira da Silva, G. – 30.
Ferry, L. – 220.
Feuerbach, L. – 246.
Fichte, J. G. – 11, 46.
Fidler, R. – 222.
Fonseca Jr., G. – 46, 191, 222.
Foucault, M. – 11, 226.
Freud, S. – 11, 219, 227.
Fukuyama, F. – 229.
G_____________________________________________________________________
Gadamer, H. - G. – 58-59.
Garrett, A. – 10.
Gauthier, D. – 55, 112.
Gibson, W. – 245.
Gil, F. – 70-71, 150, 258.
Gilot, M. – 30.
Gilson, E. – 153.
Goethe, J. W. von – 46.
Goldmann, L. – 228.
Goldschmidt, V. – 2-3, 28, 261.
Goldschmith, M. – 218.
Gomes, C. A. – 232.
307
Gouhier, H. – 27, 124-125, 168, 179.
Gourhan, L. – 243.
Graça, F. L. – 92.
Grimm – 93.
Grócio, H. – 5, 86.
Guattari, F. – 11.
Gueroult, M. – 56.
Gusdorf, G. – 56-57, 59.
H_____________________________________________________________________
Habermas, J. – 2, 226.
Hall, D. – 11.
Heckle, P. – 136.
Hegel, G. W. F. – 2, 8, 11, 226-227.
Heidegger, M. – 8, 11, 226.
Hendel, Ch. W. – 29, 222.
Heraclito – 150.
Herder, J. G. – 99-100.
Héritier, F – 220.
Hobbes, T. – 2, 5, 86, 100, 131, 139-140, 145-146, 172-173, 187-188.
Hoffman – 222.
Homero – 227.
Horkheimer, M. – 227.
Hume, D. – 5, 29, 39, 93, 157, 188, 261.
Husserl, E. – 8, 11.
Huxley, A. – 220-222.
J_____________________________________________________________________
Jackson, J. E. – 12,
Judovitz, D. – 11.
Jung, K. – 219.
308
K_____________________________________________________________________
Kant, I. – 2, 4, 7-8, 11, 35-36, 41, 47-48, 50, 63, 118-119, 122, 155, 157-158, 219, 223,
227-228, 234.
Kawauche, T. – 9.
Kerbrat-Orecchioni, C. – 55.
Kierkegaard, S. – 192.
Kimmerle – 57.
Kristeva, J. – 11.
Kuhn, T. – 21, 209-211, 268.
Kuntz, R. – 180.
L_____________________________________________________________________
L’Aminot, T. – 9, 56.
Lacan, J. – 11, 219, 226.
Lancelin, A. – 112.
Launay, M. – 2, 7.
Leibniz, G. W. – 39, 146, 159, 192, 224, 261.
Lemonnier, M. – 112.
Lerma Jasso, H. – 9, 28, 36, 44, 49-50, 68-70, 212.
Lévinas, E. – 11.
Lévi-Strauss, C. – 96, 273.
Lévy, P. – 24, 229, 240, 246-250, 252, 255, 257, 269.
Lipovetsky, G. – 21-23, 25, 229-233, 237, 269.
Locke, J. – 5, 28-29, 39, 86, 164, 172-174, 192, 261.
Lukács, G. – 226.
Lurson, I. – 44.
Lyotard, F. – 21, 229-231, 257.
M____________________________________________________________________
Machado, F. A. – 10.
Mackay, A. – 218.
Malebranche, N. – 5, 26, 29, 117-118, 261.
Malesherbes, C-G. L. – 5, 183, 189-190.
309
Man, Paul de – 4.
Mansfield, N. – 11, 50-51.
Mariano Gago, J. – 217.
Marinho, J. – 8.
Marques, J. O. A. – 3, 30, 90.
Marques Coelho, S. – 11.
Martins, C. A. A. – 4-5, 10, 52, 69, 146.
Marx, K. – 2, 66, 192, 226-227, 229.
Masson, P.-M. – 26-29, 261.
Matos, M. J. – 2, 9-10, 62, 125, 129, 138, 151, 157, 161.
Matthews, G. B. – 152.
Maxwell, J. – 219.
Mehler, J. – 220.
Melin, N. – 11.
Melzer, A. – 3, 51, 215.
Mendelssohn, M. – 228-229.
Mérad, A. – 220.
Merleau-Ponty, M. – 11.
Mesquita, A. P. – 10.
Mill, S. – 122, 192, 251.
Millet, L. – 149, 157.
Molder, M. F. – 10, 98.
Montaigne, M. – 5, 11, 138.
Montesquieu, Ch. S. (Barão de La Bréde e de) – 5, 96, 176.
Morante, J. C. – 30.
Morin, E. – 217-219, 224-225, 227, 233, 268.
N_____________________________________________________________________
Neiman, S. – 151, 156.
Newton, I. – 32, 219, 234.
Nietzsche, F. – 11, 16, 192, 226.
Novalis (pseudónimo de Georg Philipp F. von Hardemberg) – 46.
310
O_____________________________________________________________________
O’Hagan, T. – 12-13, 30, 146.
Ortega Y Gasset, J. – 232.
Outeirinho, F. – 10.
P _____________________________________________________________________
Pallavidini, R. – 12.
Palmer, R. – 57.
Perelmann, C. – 48.
Philonenko, A. – 222.
Philopolis (pseudónimo de C. Bonnet) – 146.
Pinto, A. M. F. – 87.
Pires Aurélio, D. – 96, 142.
Platão – 5, 11, 13, 103, 123, 138, 152, 154, 192, 200, 202, 220, 226.
Pombo, O. – 10.
Pope, A – 5, 224.
Pufendorf, S. – 2, 5, 26, 86, 117, 145-146.
Q_____________________________________________________________________
Quéau, P. – 240, 243, 255.
Quental, A. – 87.
R_____________________________________________________________________
Ramus, F. – 220.
Rand, A. – 192.
Rank, – 219.
Rawls, J. – 136.
Ribeiro, R. J. – 50.
Ricoeur, P. – 8, 56.
Russell, B. – 29, 192-193.
311
S_____________________________________________________________________
Saad Rossi, V. H. – 44.
Sabba, G. – 12.
Schelling, F. W. – 11.
Schiller, F. – 46.
Schleiermacher, F. – 56-59, 263.
Schnell, A. – 205.
Schopenhauer, A. – 16, 192, 223.
Sena, J. – 11, 92, 111, 180-181.
Séneca – 5.
Serroy, J. – 233, 237.
Seth, V. – 12.
Seve, L. – 220.
Sfez, L. – 21, 23-25, 227, 236, 241, 246-249, 251-252, 254, 256, 269-270.
Sgard, J. – 30.
Singer, P. – 148.
Sócrates – 5, 16, 48, 192, 267.
Spengler, O. – 232.
Starobinski, J. – 2, 15, 46, 64, 101, 126, 130, 156, 160, 170.
T_____________________________________________________________________
Taylor, C. – 12, 96.
Tendeiro, M. G. – 251.
Thiéry, R. – 50.
Todorov, T. – 205, 224.
Tomás de Aquino (São) – 192.
V_____________________________________________________________________
Vaughan, Ch. E. – 5.
Veríssimo Serrão, A. – 139.
Vico, G. – 99-100.
Vincenti, L. – 204-205.
Voltaire, F. M. – 5, 67, 92, 110, 160, 222-223, 274.
312
W____________________________________________________________________
Weber, M. – 227.
Wittgenstein, L. – 249.
Wolf, F. A. – 56-57.
Wollstonescraft, M. – 11, 80.
*Dadas as inúmeras referências a Rousseau, dispensa-se neste índice o seu nome.
313
ÍNDICE DE ASSUNTOS
A____________________________________________________________________
-(ab)uso do mal – 7-8, 17-19, 25, 38, 40, 64-65, 67-68, 113-115, 128, 145, 150, 159-
160, 162-163, 170, 216, 264, 266, 272, 277.
-alienação – 88-89, 104, 226-227, 263-264, 270.
-alteridade – 7, 17-18, 73, 94-98, 100, 102, 105, 111, 125, 130, 137, 211, 243, 248, 250,
255, 264, 277.
-amor de si mesmo (amour de soi-même) – 31, 33, 97, 120-121, 141-144, 262, 265.
-amor-próprio (amour-propre) – 19, 31, 49, 97, 120, 142-144, 248, 262, 266.
-aparência – 12, 19, 21, 23, 47, 95, 113, 117, 121, 124-125, 129-130, 134, 151, 154,
163, 167, 237, 243, 264, 267, 269.
B_____________________________________________________________________
-bom selvagem (beau sauvage) – 157.
-bondade – 67, 114, 119, 121, 126, 128, 146, 154, 171, 173.
C_____________________________________________________________________
-cidadão – 17, 40, 55, 65, 69, 71, 76, 81, 86, 88-89, 96, 101-103, 105, 131-134, 136,
146, 173, 192-193, 203, 234, 243, 245, 266, 272-273.
-civilização – 4, 18, 22, 39, 42, 65, 106, 112, 127, 129, 133, 137-139, 149, 158, 163,
170-172, 174, 176-177, 180, 186, 189, 193-195, 199, 216-217, 220, 243, 262, 265-267,
272, 274.
-compaixão – 81, 96-97, 112.
-condição humana – 16, 18, 46, 61, 72, 95, 122, 128, 132, 146, 205, 234.
-conjectura – 38, 45, 62-63, 125-126, 134, 142-143, 174, 177-179, 181,186, 224, 272,
276.
-consentimento – 43, 115-116, 132.
-convencional – 24, 41, 79, 89, 97, 256, 266, 272.
-coração – 1, 7, 19, 31-34, 36-37, 39-41, 43-50, 54, 56, 69, 78, 81, 84-85, 94, 98, 108-
109, 115-118, 121, 141, 143-144, 166, 168-171, 174, 180-181, 185, 189-190, 195, 198-
200, 203-204, 212, 235, 239, 262, 267, 272, 275.
314
-corpo (político) – 40, 50, 78-79, 81, 86, 88-89, 102, 206.
-corpo (social) – 40, 50, 65, 68, 76, 81, 86, 89.
-costumes – 23, 77, 80, 90, 114, 130, 142, 158, 176, 239.
D_____________________________________________________________________
-democracia – 9, 87, 143, 206.
-desigualdade (moral, política, social); inégalité (morale, politique, social) – 18, 67, 77-
78, 125, 127, 132-133, 139, 141, 143, 156, 174, 183, 194, 205, 265-266.
-Deus – 17-18, 29-30, 32, 34, 54, 63, 69, 72, 84-85, 92, 114, 118-120, 143, 150, 150-
156, 159, 161, 170-171, 201, 206, 234, 249.
-dialéctica (ser/parecer) – 7, 15, 17-19, 25, 38, 95, 113, 117, 123, 127-130, 216, 243,
265, 270, 272.
-direito(s) – 1, 29, 62, 66, 78, 85-89, 102, 107, 130, 132, 136, 148, 165, 174-177, 194,
201, 205, 236-237, 256, 273.
-direito natural – 131-132, 145, 175, 205, 273.
-direito político – 17, 40, 60, 65, 78, 86, 131, 174-177, 206, 224, 273.
-direito positivo – 132-133, 176, 205.
-dominação – 19, 40, 143, 222, 227, 266.
E_____________________________________________________________________
-educação – 1, 3, 9, 18, 39, 67, 69, 74, 78, 80-84, 86, 102-103, 110, 117, 119, 130, 133,
141, 160, 162, 183, 206, 226, 238-240, 256-257, 259, 267, 272-273, 276.
-educação convencional – 79, 133, 162, 272.
-educação natural – 36, 66, 73, 79, 81, 133, 162, 272.
-educação negativa – 80, 133, 238.
-educação positiva – 238.
-Estado – 86-87, 89, 100, 102, 136-137, 139, 172-176, 180, 194, 222, 236, 244, 277.
-estado de civilização (état de civilization) – 7, 12, 15, 17-19, 25, 41, 62-63, 70, 77, 102,
104, 111, 113-115, 117, 124-126, 129, 133, 137-139, 142-143, 145, 157-158, 162, 164,
169, 171-172, 174, 176-177, 180, 186, 189, 193, 195, 199, 216, 243-245, 262, 264-265,
274.
-estado de natureza (état de nature) – 7, 12, 14-15, 17-20, 25, 28, 31, 33, 38, 42, 49, 59,
62-64, 66-67, 70-71, 76-77, 82, 85-86, 88-89, 95-96, 102-104, 111, 113-115, 117, 121,
315
125-126, 128-129, 132-133, 137-139, 141-142, 145-147, 150-151, 153-154, 158, 162-
164, 168-169, 171-173, 175-176, 178-180, 186-187, 193-194, 200, 223, 243, 254, 264-
265, 267, 272.
-estado selvagem – 82.
-estátua (condillaciana) – 28, 187, 196.
-eu – 12, 14, 29, 55, 58, 60, 66, 72, 97, 104-105, 134-135, 167, 178, 190, 193, 201, 203,
223.
-eu (filosófico) – 16, 46, 262.
-eu (individual) – 13-14, 16-17, 50, 61, 101, 135.
-eu (literário) – 16, 46, 262.
-eu (público) – 13, 61, 101, 135.
-eu (universal) – 14, 89, 72.
F_____________________________________________________________________
-felicidade – 8-9, 14, 16-18, 20-22, 24, 41-42, 49, 53, 60, 65, 67, 75-77, 79-80, 82, 89,
93-95, 104, 107, 109, 117, 121, 155-156, 163-164, 170, 172, 186, 190-200, 211, 214-
216, 218-224, 226, 231-232, 234- 238, 240, 242-243, 253, 257-259, 261, 263-264, 266-
268, 270-272, 274-277.
-filosofia – 1, 2-3, 8-9, 12, 14, 16, 25, 35-36, 39-40, 45-47, 49, 51, 59-60, 62-63, 66, 87,
90-92, 94, 101, 104-106, 111, 116, 120-121, 124, 127, 138, 140, 152-153, 192, 210,
226, 229, 263, 268, 274.
-filósofo – 1, 8-9, 11-12, 15-16, 18, 20, 22, 26-27, 29-31, 36, 38-39, 41, 43-47, 50-53,
55, 57-59, 61-63, 65-67, 69, 74-78, 83, 85, 87, 92, 94, 100-112, 114, 123, 129, 133, 145,
152-153, 160, 165-167, 169, 172, 174-176, 181, 187, 190-191, 193, 208, 214-216, 220,
224-227, 229, 233, 237, 242, 248, 256, 259-265, 267, 269-271, 274, 276-278.
G_____________________________________________________________________
-genealogia – 59, 62, 104, 125-126, 135, 164, 179-180, 186, 191, 276.
-género humano – 9, 17-18, 22, 41, 49, 72-73, 76, 80, 82, 91, 97-98, 119, 139, 163, 193,
235, 264, 274, 276-277.
-Glauco (estátua de) – 6, 13, 17-18, 25, 28, 38, 77, 95, 111, 113, 123-129, 134-136, 171,
174, 180, 213, 216, 243, 265, 267, 269-271.
316
-globalização – 87, 129.
-governo – 65, 86, 138, 143, 176, 206, 236, 255.
-grito (da natureza) /cri (de la nature) – 47, 98, 141, 265.
-guerra – 67, 88, 93, 136, 140, 173, 176, 222, 236.
H_____________________________________________________________________
-hipermodernidade - 21, 22, 25, 207-208, 210, 214, 225-227, 229-233, 237-238, 241-
242, 259, 268-269, 274.
-história – 13-14, 20-21, 25, 41, 46, 59-65, 67-68, 75, 78, 95, 105, 111, 113, 122-123,
125-127, 129, 132, 135, 143, 149-152, 154-156, 158-159, 162-163, 169, 179, 182, 185,
191-192, 205-207, 209, 216, 226, 228-229, 233-235, 243, 264, 266, 269, 271, 275- 278
-homem civil (homme civil); homem civilizado (homme civilisé) – 7, 15, 17-19, 21, 23,
25, 36, 38, 62, 64, 68, 71-77, 88, 95, 97-98, 101-104, 113-114, 117, 128, 137-139, 143-
147, 149, 157, 161, 163, 191, 216, 239, 241-245, 261-262, 264-267, 269, 272.
-homo consumericus – 23, 232.
-homem hipermoderno – 21, 23, 25, 72, 208, 211, 226, 230, 240-242, 269.
-homem internético – 23, 25, 242, 244-245, 248-249, 253, 268, 269.
-homem natural (homme naturel) – 7, 15, 17-19, 25, 38-39, 62-65, 68, 70, 76, 95, 98,
101, 113-114, 117-118, 128, 137, 142, 144-147, 149, 157, 160-161, 168, 178, 191, 195,
216, 243, 262, 264-267, 272-273.
I______________________________________________________________________
-identidade – 7, 12-14, 16, 18, 27, 38, 42-43, 49, 61, 73, 94-98, 100-105, 111, 118, 125,
127, 129, 134, 137, 145, 211, 241, 243-244, 248, 250-252, 258, 263-264, 266, 270, 274,
277.
-igualdade – 19, 66, 86, 173-174, 194, 228, 254.
-imaginação – 19-20, 28, 38, 46, 62, 91, 96, 105, 122, 124-126, 134, 141-142, 168, 171,
174, 178-182, 184-191, 196-197, 199, 236, 267-268, 272.
-individualismo – 23, 230-231.
-instituições sociais – 124, 131, 138, 143, 177, 189.
-interacção social – 17-18, 20, 66-67, 69, 85, 95-96, 129, 138, 166, 170, 178, 218, 248,
265.
-interesse comum – 102.
317
J_____________________________________________________________________
-jovem (Émile) – 34, 55, 69, 80-82, 119, 121, 151, 161, 170, 202.
-justiça – 66, 77, 86, 102, 119, 136, 162, 166-167, 202, 206.
L_____________________________________________________________________
-lei(s) – 32, 39, 43, 60, 85-86, 88-89, 99, 112, 118, 132, 138, 141, 149, 155, 161, 175,
194, 205, 234, 236, 240, 265, 273.
-leis naturais – 132, 141, 146, 173-174, 194.
-leis sociais – 130, 273.
-liberdade – 40, 42, 50-51, 64, 67, 79, 81, 86-89, 99, 132, 136, 139, 148-150, 152-158,
160, 172-174, 177, 194, 201, 206, 235, 241, 248, 251, 255, 265-266, 269-270, 277.
-liberdade civil – 40, 79, 86, 93, 104, 130-133, 143, 273.
-liberdade natural – 40, 89, 93, 104, 130, 132, 141, 265, 273.
-língua – 17, 24, 47, 57, 59, 73, 78-79, 97-99, 130, 139, 159, 253-255, 278.
-linguagem – 1, 2, 7-8, 16, 30, 33-34, 39, 41, 45-49, 55, 84, 97-100, 119, 122, 130, 170-
171, 178, 191, 227-229, 244, 253, 255-256, 262, 266, 273.
-linguagem convencional – 4, 17, 20, 46, 76-77, 79, 84, 98-101, 104, 118, 121, 126,
130, 138, 143, 151, 248, 255, 266.
-linguagem internética – 244, 254-255.
-linguagem natural – 46, 85, 101, 119, 130, 170.
M____________________________________________________________________
-mal(es) – 8, 15, 17-20, 24-25, 29, 38, 40-42, 47, 49, 63-65, 67-68, 72, 75-77, 79, 82,
85-86, 88, 91, 93, 100, 102, 105-106, 111, 113-121, 128, 130, 134, 141-146, 148-149,
150-164, 166-167, 170, 182, 189, 198-201, 203, 206, 214-216, 224, 243, 258-259, 261,
265-267, 269, 272, 275, 278.
-memória – 14, 20, 62, 91, 105, 128, 134-135, 178-182, 184-188, 190-191, 193, 196-
199, 238, 247, 267-268.
-metafísica – 49, 66, 75, 151, 264.
-moral – 1, 3-4, 8, 11-14, 18-19, 30, 33-34, 44, 59, 61, 63, 65- 66, 75-78, 80-81, 85-86,
89, 94, 102-103, 115-122, 132, 137-138, 141, 144-146, 148, 150, 158, 160-163, 180,
205, 212, 234, 252, 257, 259, 266, 276.
-música – 1, 70, 79, 92.
318
N_____________________________________________________________________
-natureza – 14, 16, 18, 20, 30, 33, 35, 46-47, 62-65, 67-72, 74-75, 77, 81-86, 88, 93, 95-
98, 105-106, 110, 112, 115, 117-120, 125, 128, 130, 137, 139-141, 143, 148, 151, 162,
167, 170-171, 174, 178, 186, 189-191, 193, 195, 199, 202-203, 205, 216, 219-220, 265.
-natureza (humana) – 4, 9, 12-14, 17-21, 24-25, 30, 33-34, 36, 40-43, 49, 61-62, 64-67,
69, 72, 74-79, 82-85, 90-91, 95-96, 101-102, 113, 117, 121-129, 132-136, 138-139, 145,
147, 149, 156-157, 163-165, 168-175, 177-178, 180-182, 186-187, 189, 191, 193, 203-
207, 211-213, 215-216, 224, 234, 236-237, 242, 248, 253, 257-258, 260, 262-267, 270-
272, 274-275, 277.
P _____________________________________________________________________
-pacto social – 40, 89, 133, 165, 273.
-paradigma – 21, 68, 208-212, 214, 219, 242, 258, 268, 275.
-parecer – 19-20, 24, 42, 49, 114, 116, 118, 122, 125-132, 134, 136-137, 144, 146, 193,
195, 216, 225, 236, 243, 252, 264, 265, 266, 270, 272-274.
-pensar – 7, 14-15, 19, 25-27, 29-34, 36-43, 49, 54, 61, 63, 70-72, 75-76, 78, 84, 88, 91,
102, 108, 110, 114, 121, 125, 133, 135, 140, 145, 149, 154, 168-169, 174, 178, 180,
187, 190-191, 194, 198, 205, 211-214, 216, 219, 227, 229, 234-236, 238, 242, 244, 252,
255, 260-262, 265, 267, 271, 275-277.
-perfectibilidade (perfectibilité) – 31, 42, 63-64, 67, 99, 119, 121, 148-149, 151, 157-
158, 161, 191, 235, 266, 270.
-piedade natural (pieté naturel) – 19, 33, 96, 115, 120, 122, 141-142, 265.
-progresso – 19, 22, 23, 25, 43, 64-65, 75-76, 82, 98-100, 102, 113, 129-130, 132, 139-
140, 143, 158-160, 163, 202, 205, 208, 210-211, 214-217, 220-221, 224-225, 230-231,
236, 244-245, 254, 256, 258, 266, 268, 270, 275-276.
-propriedade(s) – 77, 99, 129, 132, 137, 140, 143, 149, 157, 194, 205.
R_____________________________________________________________________
-razão – 1, 3, 8, 13, 16, 18-20, 24, 26-28, 30-43, 46-49, 56, 61-62, 64, 80-81, 84, 95, 98,
102, 113, 115-121, 124-125, 132, 142-145, 148-149, 153, 160-162, 168-170, 174, 180,
319
182, 201, 205, 212-213, 219, 223-224, 226-228, 233-235, 239, 254, 257, 261-262, 264,
267, 272, 275.
-religião – 1, 26-27, 32, 84-85, 137, 153, 170, 192, 234, 246, 273, 276.
-religião civil – 170.
-religião natural – 1, 26, 66, 74, 84, 120, 153, 170.
-representação – 23-24, 46-47, 121, 130, 154, 159, 227, 246, 257-257.
-República (Platão) – 103, 200.
-República (Rousseau) – 88.
-república (das letras) – 120.
-riqueza – 45, 47, 49, 129, 139, 143.
-responsabilidade – 6, 38, 50, 61, 63-64, 154, 156, 160, 163, 201, 213, 215-218, 222,
235, 237, 258, 266, 271-272, 275.
S_____________________________________________________________________
-sentimento – 2, 3, 7-9, 12, 14-16, 18, 26-27, 28, 30-47, 49, 50-51, 59, 61, 69, 70-78,
84, 86, 88, 93-94, 96-98, 106, 111-113, 115-124, 128, 130, 132, 140-144, 146, 148-149,
151, 160, 162, 165, 169, 171, 178, 184-187, 191-194, 196-197, 199, 201-204, 206, 208,
212-217, 230, 236, 254, 261-262, 264-266, 272, 275-277.
-sentir – 7-8, 12, 14-16, 19, 21, 23, 26, 28-42, 47-50, 63, 70-72, 75-76, 91, 101, 103,
109, 114, 116, 120, 125, 135, 144-145, 147, 149, 160, 168, 169, 174, 198, 202-204,
211-214, 216, 219, 221, 233, 235, 243, 260-262, 265, 267, 271, 275-277.
-soberania popular – 2, 40, 86-87, 89, 101, 133.
-subjectividade – 2-3, 6-18, 20-21, 24-26, 28, 30, 32, 39, 41-44, 48-51, 53, 55-61, 66-
77, 79, 81, 84-86, 88-92, 94-96, 102, 104-106, 110-119, 121-123, 126, 128, 149, 163,
170, 182, 186, 191, 208, 210-216, 219-220, 226-227, 232, 235, 239, 243, 255, 257-264,
268-272, 274-278.
-sujeito – 8, 14-16, 42-43, 50, 54-55, 70, 73, 102, 104-105, 136, 228, 249, 251, 276.
T_____________________________________________________________________
-trabalho – 43, 77-78, 152, 179, 193-194, 197-198, 221, 234-235, 239-241.
-trilogia (da subjectividade universal) – 7-8, 16-18, 20, 25, 49, 73, 76, 106, 111, 113-
116, 118-119, 122-123, 149, 163, 170, 211-212, 214-218, 264-268, 271-277.
320
U_____________________________________________________________________
-unidade – 3-5, 55, 59, 65, 68, 71-72, 89, 114, 125, 131, 192, 263.
-universalidade – 7, 8, 13-17, 32, 43, 60, 73-74, 76, 84-85, 88, 90, 102, 106, 110, 119,
121, 161, 180, 211-212, 243, 252, 257-258, 263-264, 270.
V_____________________________________________________________________
-virtude – 19, 20, 23, 33, 39, 70, 76-77, 80, 82, 84, 86, 88, 93, 113-114, 116, 119-121,
141-142, 144, 154, 160-162, 171, 181, 196, 200-201, 219, 234, 239, 249-250, 257, 265,
268, 272.
-vontade geral (volonté général) – 40, 50, 66, 74, 86, 88-89, 102-104, 114, 133, 136,
207, 250, 273.
-vontade particular – (volonté particulière) – 88-89, 102, 104, 206.
*Dado que a questão da subjectividade universal de Rousseau surge inúmeras vezes mencionada, não se
inclui no presente índice este assunto.
ANEXOS
i
Entrevista a Tanguy L’Aminot
1. Concernant vos recherches et recueils sur la Bibliographie mondiale de
Rousseau, combien d'articles/études avez-vous trouvés ?
J’évalue à 20.000 approximativement ce nombre d’articles et livres, mais je suis
persuadé qu’on est loin du compte car je trouve encore sans cesse de nouvelles
références.
2. Dans cette Bibliographie, quelle dimension de Rousseau est la plus présentée,
la plus étudiée: la dimension politique, morale et/ou pédagogique ?
L’édition de la Bibliographie mondiale comportera neuf volumes. Deux ont paru, le
troisième est sous presse. Les autres sont largement constitués, mais il faut les
uniformiser et les compléter aussi. Le plus gros volume sera celui sur la réception (en
fait ce thème constituera les deux derniers tomes de l’édition). La pédagogie est avec la
politique les deux autres sujets les plus importants. Je n’ai pas prévu un volume sur la
morale.
3. Des éminents et reconnus chercheurs-connaisseurs de l'œuvre de Rousseau
(Starobinski, Goldschmidt, Dérathé, Cassirer, Launay...), lequel estimez-vous
être le plus complet?
Chacun des noms que vous citez a ses qualités et ses limites. A vrai dire, je les ai tous
utilisés et commentés et n’ai jamais fait de classement : ils servent à un moment ou à un
autre.
4. Parmi les chercheurs récents, qui désigneriez-vous comme étant "la
référence" sur Rousseau?
Cette notion de « référence » est une notion de professeur. Elle change selon les
époques et les enjeux, selon l’idéologie et le pays. Je trouve que bien des
commentateurs français récents sont fort limités: ils simplifient Rousseau, cachent ou
nient ce qui dérange leur construction, ou va à l’encontre du « politiquement correct »
en cours. J’essaie au contraire d’ouvrir Rousseau et de montrer les aspects que ces
universitaires étriqués jugent le moins convenable ou le plus dangereux pour les valeurs
qu’ils défendent. L’époque est au repli de chaque discipline sur elle-même et au petit
clan (le copinage et l’auto-référence en cercle clos), moi, j’ai toujours lutté contre ces
questions-là et ouvert ma revue et les colloques que j’ai organisés aux spécialistes de
ii
toutes disciplines et des pays les plus divers. Justement pour qu’on n’ait pas une vision
étroite et fermée.
5. Quel ouvrage de Rousseau vous a le plus marqué/interpellé et pourquoi?
J’aime bien le Discours sur l’origine de l’inégalité et Emile. Ce dernier me paraît le
livre le plus complet exposant la pensée de Rousseau. Le Discours est le plus radical.
J’aime le côté révolutionnaire de Rousseau et j’apprécie donc pour ce qu’ils sont les
efforts universitaires actuels pour en faire un philosophe du libéralisme et de la pensée
bien soumise. J’ai une lecture et une vision anarchiste et anti-sociale de Rousseau.
6. Parmi toutes les thèses de Rousseau, laquelle vous préférez et pourquoi?
J’aime bien la thèse de la bonté naturelle de l’homme. Tout découle de là. Ou bien on
voit les hommes méchants et on propose des théories pour les ramener à l’ordre, ou bien
on les voit naturellement bons et on déplore et déteste tout le système social et toutes les
institutions (Etats, Eglises, partis, écoles, universités, etc.) qui les a rendus mauvais et
stupides. C’est en ce sens que Rousseau est, pour moi, un révolutionnaire.
7. Comment voyez-vous la relation entre "sentir" et "penser" chez Rousseau?
Quelle dimension prend le dessus sur l'autre? Ou bien défendez-vous une
relation inextricable et symbiotique entre les deux?
Ça, c’est votre sujet. Si j’étais sage comme un professeur, je prendrais la dernière
position que vous évoquez, et ronronnerais là-dessus jusqu’à vous endormir. Sentir est
chez Rousseau la fonction naturelle et penser, la fonction sociale, pourrai-je dire
grossièrement en simplifiant beaucoup. Je ne suis pas sûr que la société ait le dessus
chez Rousseau; en tout cas, elle en prend un sacré coup.
8. Quelle est votre perspective face à la polémique de l'unité de l'œuvre de
Rousseau? Les textes autobiographiques doivent-ils être considérés comme
partie intégrante de son univers philosophique?
Là encore, ce sont des hiérarchies qui conviennent à l’enseignement. Le lecteur a une
œuvre à lire et connaître. Elle est sans nul doute cohérente, conséquente avec elle-même
et conçue par un grand philosophe, à l’esprit bien formé, qui ne se contredit pas et pense
toujours selon le même mode, ainsi qu’il l’a dit. Ceux qui voient des contradictions sont
le plus souvent des manipulateurs ou des imbéciles. Ils veulent faire passer leur théorie
en utilisant Rousseau, en s’en démarquant et en le contrecarrant, mais ils montrent le
plus souvent combien ils sont malhonnêtes. Pourquoi ne pas lire les textes
autobiographiques de manière philosophique ? C’est fort bien. Il est juste dommage que
iii
les philosophes ou plutôt les profs de philo soient généralement très étriqués et ne
voient pas plus loin que leurs concepts. J’ai écrit quelques pages pour me moquer de
leur vision d’Emile et de leur lecture du « roman » d’Emile et Sophie au livre V, et on
pourrait développer. En fait il n’y a pas de hiérarchie entre les œuvres de Rousseau et il
ne devrait pas y en avoir entre les disciplines et méthodes utilisées pour les lire. Mais
c’est rêver là d’un monde sans philosophes ou profs de philo.
9. Quelles sont les plus importantes implications de l'héritage de Rousseau pour
nos jours ?
Le journaliste répondra tout de suite: la lutte pour l’environnement ou le rapport de
l’individu avec les pouvoirs, mais Rousseau surgit là où on l’attend le moins. Nous ne
sommes pas toujours préparés pour le voir alors et nos professeurs qui ne veulent pas
que leur petit troupeau d’étudiants s’égare, lui rappellent qu’il est ci et qu’il est ça, qu’il
n’est pas ci et qu’il n’est pas ça. Ils sont amusants, ces profs ! Moi, j’aime bien le
dénicher et le faire surgir dans des bouquins ou dans des mouvements du XXe siècle ou
d’aujourd’hui. Actuellement, je travaille sur sa présence dans la musique Black Metal.
10. En une seule phrase, comment décririez-vous la pensée de Rousseau?
Une pensée qui dérange et dérangera toujours.
(entrevista realizada a 02 Agosto de 2016)
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