247
Somanlu Revista de Estudos Amazônicos ano 5, n. 1, jan./jun. 2005 Manaus-2006

013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

SomanluRevista de Estudos Amazônicos

ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Manaus-2006

Page 2: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

Editora da Universidade Federal do AmazonasRua Monsenhor Coutinho, 724 – Centro

CEP 69.010-110 Manaus/AMTelefax: (0xx) 92 3231-1139

e-mail: [email protected]

Universidade Federal do AmazonasInstituto de Ciências Humanas e Letras

Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura naAmazônia – PPGSCA

Av. Rodrigo Octavio Jordão Ramos, 3.000/CampusUniversitário – ICHL

CEP 69077 – 000 Manaus – Amazonas – BrasilFone/Fax: 055 92 3647-4381/3647-4380

www.ufam.edu.br www.ppgsca.ufam.edu.bre-mail: [email protected]

Copyright © 2006 Universidade Federal do Amazonas

SOMANLU – REVISTA DE ESTUDOS AMAZÔNICOS

Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas.(SOMANLU é um herói mítico da Amazônia criado pelo escritor Abguar Bastos)

REITOR

Hidembergue Ordozgoith da Frota

PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Prof. Dr. Abraham Moisés Cohen

DIRETORA DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

Prof.ª Dr.ª Maria Izabel de Medeiros Valle

COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIEDADE

E CULTURA NA AMAZÔNIA

Prof. Dr. Nelson Matos de NoronhaProf.ª Dr.ª Iraildes Caldas TorresProf.ª Dr.ª Patrícia Maria Melo SampaioProf.ª Dr.ª Heloísa Helena Corrêa da SilvaOrlando Melgueiro da Silva (Representante discente)

COMISSÃO EDITORIAL

Prof. Dr. Narciso Júlio Freire Lobo (Editor)Prof.ª Dr.ª Selda Vale da Costa (Editora)Prof. Dr. João Bosco Ladislau de AndradeProf.ª Dr.ª Iraildes Caldas TorresProf.ª Dr.ª Célia Regina Simonetti BarbalhoProf. Dr. Antônio Carlos Witkoski

DIRETOR DA EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL

DO AMAZONAS

Prof. Dr. Renan Freitas Pinto

COORDENADORA DE REVISTAS

Prof.ª Dayse Enne Botelho

DETALHE DE CAPA E PROJETO GRÁFICO (MIOLO)Verônica Gomes(Composição sobre imagens de capa das obras deMilton Hatoum)

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Rogério Cordovil

ELABORAÇÃO E REVISÃO DE ABSTRACTS

Paulo Renan Gomes da Silva

REVISÃO DE PORTUGUÊS

Cynthia Alcântara Teixeira

A exatidão das informações, conceitos e opiniões sãode exclusiva responsabilidade dos autores

Publicada em fevereiro de 2006

Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura naAmazônia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n. 1 (2000 - ). --- Manaus: Edua/Capes,2000 -

v.: il.; 17 x 24 cm.

Semestral

Até 2002 publicação anual e vinculada ao PPG Natureza e Cultura na Amazônia.Interrompida em 2001.

ISSN 15118-4765

1. Cultura Amazônica 2. Amazônia – Sociologia 3. Amazônia – Antropologia I. Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia.

CDU 316.722(811)

Page 3: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

Apresentação

Artigos

E tu me amas?Aurélio Michiles

A narrativa poética em Dois irmãos – lugar de intercâmbio entresuportes arquivísticosAllison Leão

A importância dos fatores socioculturais no processo da comunicaçãoAllan S. B. Rodrigues/Grace S. Costa

O modo de ser e viver o caboclo por Dalcídio JurandirFabiane Maia Garcia/João Bosco Ferreira

Mercado faz a festa na florestaWilson Nogueira

Representações sociais das comunidades rurais amazônicas doconceito de ambientalismo ou preservação ambiental: os casos deFátima e LivramentoRenan Albuquerque Rodrigues

O desafio ético do desenvolvimento com diversidadeCarlos Lopes

Nas margens do igarapé do Mindu: dois lados da históriaÂngela Maria de Abreu Cavalcante

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento: uma reflexãosobre as diferenças ideo-políticas conceituaisMarinez Gil Nogueira/Maria do Perpétuo Socorro R. Chaves

Afirmação étnica e movimento indígena em Tefé: o caso dos CambebaBenedito Maciel

A inserção do indivíduo em novos espaços sociais e a criação de novospapéisAldair Oliveira de Andrade

Dinâmica territorial na fronteira Brasil–ColômbiaRicardo José Batista Nogueira

Resenhas

A contribuição seminal de Koch-GrünbergRenan Freitas Pinto

5

9

21

35

47

63

81

95

115

129

145

163

175

201

SUMÁRIO

Page 4: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ponto e contrapontoMarcos Frederico Krüger

Homenagem Póstuma a Leandro Tocantins

Dissertações Defendidas

Dissertações defendidas em 2004/2005 (1.º semestre)

Eventos

Cursos: Stop Making Sense! A crise dos paradigmas nas Ciências SociaisA Pesquisa em Ciências Humanas: regiões ou campos de pesquisa

Palestras: Arte e Cultura Popular: Artesanato, Folclore ou Patrimônio Intangível deCulturas Dominadas?Poéticas Orais Amazônicas: algumas questões fundamentaisOs vocábulos da ocidentalização da Amazônia

Publicações Recebidas

Roteiro para elaboração de artigos e Normas editoriais

209

215

237

241

241

245

247

Page 5: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Apresentação

Este número, desde a capa, traz muitas referências à produção do roman-cista amazonense Milton Hatoum: logo após, no primeiro bloco de artigos, vem “Anarrativa poética em Dois Irmãos”, sobre o segundo livro do autor, que é visto apartir do entrecruzamento de suportes arquivísticos, oferecendo-se um novo ângulopara a leitura dessa obra magistral. Na seção de resenhas, o trabalho de Milton voltaà tona, com a apreciação de seu terceiro livro, Cinzas do Norte.

Ainda nesse primeiro bloco, dedicado à arte e à comunicação, temos orelato do cineasta Aurélio Michiles sobre essa figura enigmática, e amada, ao mesmotempo: Hanneman Bacellar (1948-1971), que pintou com cores fortes o cotidianocaboclo e cedo se foi.

Discute-se também, na parte dos estudos comunicacionais, a importânciados fatores socioculturais, assim como as festas na floresta e suas implicaçõesmercadológicas. Está neste número, igualmente, um artigo sobre o modo de ser eviver do caboclo em Dalcídio Jurandir, romancista paraense.

Desenvolvimento, meio ambiente, fronteiras, afirmação étnica, temas re-correntes desde os primeiros números de Somanlu, voltam a ocupar o espaço daindispensável reflexão, valendo destacar o artigo-manifesto de Carlos Lopes, portu-guês com doutorado em História na Sorbonne e representante da ONU e do PNUDno Brasil, que nos oferece magnífica aula sobre o momento presente da humanida-de, marcada por conflitos e desencontros. Esse texto de Lopes, sem dúvida, estádestinado a desencadear pertinente e oportuno debate.

Outra grande surpresa para o crescente número de leitores desta revista: oSeminário-Homenagem dedicado a Leandro Tocantins (1929-2004), transcrito nasua quase totalidade, que oferece diferentes chaves para entender a obra desseamazonólogo, sobremodo original, que tentou compreender o Brasil a partir daAmazônia.

E muito mais.Com este número, resultado do pensar coletivo, mais um grande momento

– estamos certos – na trajetória de Somanlu, procurando refletir a inquietaçãointelectual que emerge da curta vida do Programa de Pós-Graduação em Sociedadee Cultura na Amazônia.

Page 6: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 7: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

ArtigosArtigosArtigosArtigosArtigos

Page 8: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 9: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aurélio Michiles*

ResumoAtravés da memória do vivido, o autor percorre a trajetória dos anos sessenta emManaus, no Brasil e no mundo, destacando a figura carismática do artista plásticoamazonense Hanneman Bacellar, falecido em circunstâncias trágicas, aos 23 anos.

Palavras-chave: cultura; arte; anos 60; Hanneman Bacellar.

AbstractThough the memories of his life experience, the author remakes the trajectory of thesixties in Manaus, in Brazil and in the world, highlighting the charismatic figure ofHanneman Bacellar, the Amazonian plastic artist who died in tragic circumstances atthe age of 23.

Keywords: culture; art, 60’s; Hanneman Bacellar.

E tu me amas?

* Cineasta amazonense, autor, entre outros, de Guaraná – olho de gente, A árvore da for tuna e O cineasta da selva. e-mail:[email protected]

Page 10: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

E tu me amas?

Naqueles anos sessenta formávamos um bando1 empertigado, queríamosdesafiar o desconhecido, colocar à prova os limites da realidade, somente por umaquestão de curiosidade. Tínhamos fome pelo absoluto, e, naquela cidade, não havianenhum adulto para escutar meia dúzia de adolescentes entre treze e quinze anos.Resolvemos, então, editar um jornal estudantil, “O Elemento 106”2, uma metáforapara dizer que éramos muitos “especiais” – o mais novo elemento químico danatureza. Mesmo assim, continuávamos no anonimato, invisíveis. O escritor MiltonHatoum, por exemplo, balançava-se entre exibir sua voz de barítono na banda demúsica pop “The Stteping Stones” e as primeiras leituras de “Os Sertões”3, enquan-to na sua casa se organizava o evento mais comentado do ano, a primeira festa“psicodélica” de Manaus – 1967.

Ao contrário de todos nós, Hanneman Bacellar era um personagem céle-bre, “um pintor amazonense”. Havia sido tema de um filme-documentário, maspara todos nós ele foi uma espécie de irmão mais velho. Tinha uma personalidadeque transitava entre a timidez manhosa e a provocação. Um dia, ele apareceu naminha casa para revelar sua última e espantosa descoberta. Parecia estar tomado porum personagem. E começou a ler obsessivamente: “Ao despertar certa manhã apósum sono intranquilo, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseadonum monstruoso inseto”4, sem maiores comentários, e como eu desconhecia entãoquem havia escrito aquele parágrafo, comecei a crer que ele pretendia me fazer sentirmedo, com “uma história de horror”.

“– Kafka. É uma história kafquiana” – disse ele.Hanneman gostava de cantar “cirandeiro, cirandeiro ó, a pedra do teu anel

brilha mais que o sol”5 ou assobiar “Vamos chamar o vento, vamos chamar o ven-to”6, enquanto atravessávamos na catraia da Aparecida ao bairro de São Raimundoe ao mesmo tempo em que chamava a atenção para as novidades da música popu-lar através dos The Beatles: “Presta a atenção no octeto de cordas à frente do con-junto na música Eleanor Rigby”. Hoje sabemos que Paul, John, George e Ringoestavam na mesma busca por outros paradigmas, alguma coisa que fizesse da reali-dade algo semelhante ao balé aquático do Rio Negro com o Solimões. Fazendo oreencontro do Ocidente com o Oriente, do chiclete com a banana. Paul havia assis-tido naquela época às apresentações de John Cage7 e resolveu utilizar aquelas expe-rimentações sonoras, tão pouco comuns aos ouvidos do consumo popular. O rit-mo atonal em algumas das músicas do disco “Revolver”8 aguçou nossa curiosidade

Page 11: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aurélio Michiles

e não foi somente isso. Hanneman, como todos nós, viu-se maravilhado com a capado disco, cujo desenho em bico de pena nos instigava a novos desafios estéticos.

Como esquecer do seu deslumbramento (que também era o nosso) diantedas pinturas de Hieronymus Bosch9 e das de Pieter Bruegel10, modestas reproduçõesnos fascículos “Gênios da Pintura”, da Editora Abril! “O Jardim das Delícias”, deBosch, nos abria ao mundo de possibilidades, analogias e interpretações – o bem eo mal, deus e o diabo, o exótico, o fantástico, o real e o surreal, o claro e o escuro,acima e abaixo, o sinistro, o bizarro, o híbrido. Alguns de nós ainda freqüentávamosa igreja e nos encontrávamos submetidos aos dogmas da religião. Ao contrário deHanneman, que penetrava nas metáforas sem medo e compaixão, deliciava-se ezombava daqueles que recuavam ao tríptico jogo de seduções sugeridas pela imagi-nação prodigiosa de Bosch.

Quando chegávamos ao fascículo dedicado a Pieter Bruegel, o Velho, asblasfêmias de Hanneman redobravam e detinha-se nos pormenores metafísicos eesotéricos da pintura “O Cego Guiando os Cegos”, como se estivesse participandoda cerimônia sádica entre açougueiros.

Hanneman Bacellar foi um garoto negro e pobre dos anos 60, que vivianum porão palaciano, onde sua mãe espanava o pó da decadência. Como ironia dodestino, nesse Palácio (Rio Branco, hoje Assembléia Legislativa), encontrava-se umacoleção de moedas, a qual, nos tempos áureos da borracha, chegou a ser uma dasmais importantes da América Latina. Mas quem em Manaus estava preocupado empreservá-la? O Palácio, a coleção do Museu de Numismática encontravam-se esque-cidos, aliás, como quase tudo. Ninguém queria saber de arte, de cultura e tampoucode história.

O centro histórico, a meio caminho das “lendas” manauaras, sempre nosconduzia à beira do Rio Negro, ao Porto Flutuante, à Praça da Matriz, ao HotelAmazonas, ao Mercado Público, à Praia do Mercado, à Biblioteca Pública, à Pinaco-teca, ao Teatro Amazonas, ao Cine Avenida, Odeon, Polytheama e Guarany, aoColégio Estadual do Amazonas e às putas da Rua Frei José dos Inocentes. Ah, semesquecer do Café do Pina ou a “República Livre do Pina”, mas essa parte da históriavamos deixar para depois.

Éramos um bando e não uma banda de jovens, que perambulavam pelasnoites úmidas e calorentas de Manaus na busca de algum movimento. Não nosimportava de onde vinha, tanto que o bando chegou a fazer parte de sessões “espí-

Page 12: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

E tu me amas?

ritas”. Desejávamo-nos comunicar nem que fosse com o além do além. Numaoutra oportunidade, deram ouvidos a uma história sobre um poeta-de-verdade quevivia recolhido num sobrado afrancesado, aliás, no momento ocupava o fundo doquintal. Ele havia estudado na Europa, freqüentado a roda de poetas, escritores eintelectuais parisienses e chamava-se Américo Antony.

Não sei como chegamos até ao seu refúgio. Sábado, era sempre nesse diada semana, lá estávamos diante de um Poeta. Ele nos recebeu com certa sofregui-dão, alguns animais domésticos perambulavam livremente por entre e sobre seusescritos, eram muitos papéis espalhados por todos os lados. Naquela caverna íntima,era como se estivéssemos no meio de uma selva de folhas, páginas, livros fechadose abertos, finos e grossos, grandes e pequenos, jornais, revistas por todos os lados.O Poeta, através dos seus óculos de grossas lentes, procurava as letras das palavrasfaladas, que saíam tontas, misturadas à saliva com o hálito de café e tabaco. Elerecitava, aos borbotões, trechos dos seus poemas em português, francês, grego,latim e, quem sabe, num idioma inventado. Nós, como náufragos, tentávamos na-dar no meio daquele emaranhado de uma vida à margem da realidade, tudo aquilo,sabe lá porque, nos atraía, com significados surrealistas.

Seria assim a vida de um Poeta? Um cheiro de “sebo-de-holanda” mistura-va-se a outros cheiros nauseabundos. Ali, na nossa frente, havia um caos, um cipoal,uma confusão. Aquilo tudo fazia parte de uma descida às catacumbas de um imagi-nário que, nós, filhos da classe média, sequer havíamos imaginado. Indiferente aoque pensássemos, se é que ele se deu conta da nossa presença, o Poeta, num gestosob o impulso da velocidade da luz, sai na busca de um poema escrito há pouco,“está em qualquer lugar, sozinho ele não anda”. Finalmente o encontra, justamenteaquele que as galinhas e os patos, como fossem animais amestrados, desenhavamcom suas fezes um abstracionismo escatológico, dando conteúdo e parceria.

O Poeta não se incomodava, ao contrário, com uma disciplina de mongetrapista, limpou-o num só movimento das mãos. A loucura tinha se tornado umarotina naquela visita. Saímos sem bater a porta sob perplexidades e indagações. Aofundo, escutávamos os sinos da Igreja de São Sebastião assinalarem o final da tarde.Na rua, um cheiro de bacuri nos acolhia piedosamente.

O único que se dispôs a ouvir o bando foi o português Álvaro Páscoa, umexilado da ditadura salazarista, que caminhava com a ajuda de duas muletas, viviasozinho, acompanhado da mãe anciã, dona Maria, eternizada numa das pinturas do

Page 13: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aurélio Michiles

Hanneman. O Mestre Páscoa, como o chamávamos, morava na rua Isabel, ondepassávamos grande parte da noite conversando, discutindo sobre tudo que se referiaàs artes. Ele era um artista, um sábio. Sua generosidade nos transformou, mas a suaprodução pessoal está nas suas esculturas e xilogravuras. Na realidade, ele foi umaespécie de pai espiritual para todos nós, mas para o Hanneman, particularmente, foimuito mais. Houve uma ocasião inesquecível e fundamental para sentirmos comovalia a pena visitar o Mestre Páscoa. Naquela noite, ele se encontrava escutando umamúsica que nos arrebatou. Foi como se tivéssemos encontrado uma trilha, uma basemusical para nossas perambulações a esmo naquela cidade silente. Uma música comsonoridade variada, mas cadenciada, sugerindo a possibilidade concreta em se veraquilo que as notas emitiam, numa miscelânea de harmonias e colagens apontandopara outras possibilidades. Ainda não tínhamos trocado as saudações formais, dotipo “Boa noite Dona Maria, boa noite Mestre Páscoa”, e o Hanneman, que já haviachegado, se encontrava de pé. Ensimesmado com uma insinuação de sorriso noslábios, segurava a capa do long-play. Diante do nosso deslumbramento, comentou:

– Quadros de uma Exposição, de Mussorgsky.11

Apesar daquele ar de cidade perdida, Manaus exercia um fascínio nos seustrezentos mil habitantes. O encanto deste encanto encantou o garoto que ousoubrilhar com suas próprias mãos e resolveu pintar diferente essa atmosfera. Foi comoum arco-íris que surge depois da chuva, após um temporal. Desde quando se desta-cou como ganhador do grande prêmio “Clube da Madrugada”, na Feira de Artes,Hanneman, aos treze anos, revelou-se um menino prodígio. Ensimesmado e zom-beteiro, os seus comentários eram oblíqüos. Nos desafiava a tomar atitudes, porexemplo, acompanhá-lo nas suas visitas às prostitutas (suas vizinhas) da rua Frei Josédos Inocentes, nos acanhados dormitórios no alto do “Bar do Quintino”, no finalda tarde, sob a luz trêmula dos candeeiros, quando as retratava em rascunhos. Nãohavia sexo, apenas um troca-troca de histórias. Depois, dávamos uma passada emsua casa. Um ambiente impregnado pelas cores escuras sobre escuro, semelhante àspinturas de Caravaggio12. Durante nossa permanência, movimentávamo-nos peloscubículos, cruzávamos com sua mãe, sempre silenciosa, uns e outros meninos, seusirmãos. Sem nenhum comentário, ele mexia em algum armário, numa caixa de sapa-tos e saíamos sem cerimônia. A impressão era que ele fosse um intruso, e ao mesmotempo aquela atmosfera exalava um calor de alta afetividade. Aquelas pessoas erampersonagens inspirados nas obras de Caravaggio ou vice-versa? Não lembro de

Page 14: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

E tu me amas?

termos comentado a respeito desse pintor do final do século XVI e, no entanto, assuas vidas se cruzavam metaforicamente.

Como Hanneman, o artista Caravaggio violentou os princípios do decoroda sua época, ao tomar como modelos pessoas comuns para retratar as figurassagradas. O seu “Cristo” se veste com indumentárias populares, e o seu rosto nãotem as referências e os traços da elite. Ali está o olhar de um homem que pode serum ladrão, um assassino ou uma mulher, que poderia ser uma prostituta. Neste jogo,onde Caravaggio busca a ambigüidade da gênese humana, fez dele um alvo fácilpara aqueles que têm como objetivo a intolerância. Ele se tornou um maldito e, paranão cair morto, mata e vai para a cadeia.

No final dos anos 60, Manaus noturna não é muito diferente do interior dacasa-porão do Hanneman, a cidade é assim: a iluminação pública parecia de ribalta,estava colocada para destacar determinados personagens. Mas tudo isso estava comdata marcada para terminar. Logo a boçalidade da grana vinda com a Zona Francade Manaus surgiria como uma névoa maléfica, contaminando os cantos e as esqui-nas da paisagem urbana, sem respeito e sem cerimônia. A elite, assim como a maio-ria da população amazonense, cansada do isolamento, logo viu nesse evento a fór-mula mais rápida para sair do esquecimento e da decadência. E, como ironia, tudoisso acontecia logo depois do nosso Estado viver uma espécie de renascença cultu-ral, sob o governo do professor Arthur Cézar Ferreira Reis13. Em seguida, vieramas trevas, o retrocesso e um recalcado provincianismo que se mesclaram aos “anosde chumbo”.

Apesar de em Manaus não haver estradas para se viajar de carona e fugir,como faziam os jovens do mundo inteiro naquela época, foi na 3.ª classe do navioLobo D’Almada que muitos deles escapuliram. Num cruzamento de redes, maisparecendo uma pintura expressionista com o Cubismo, os personagens desagua-vam em várias frentes e interesses, rufiões, prostitutas, dedos-duros, sacerdotes,mochileiros, ladrões, caçadores de aventuras baratas, místicos e profetas, contraban-distas, atravessadores, ilusionistas, traficantes de drogas e escravos(as), turistas estran-geiros, fugitivos da lei e de si mesmos.

Hanneman desembarcou em Belém sob drogas, sexo, rock e desilusões. Ameio caminho de Brasília, encontrava-se num impasse, talvez numa encruzilhada.Queria mais, ir além, atravessar o rio, sobrevoar a floresta e conquistar o mundo, outalvez o mundo fosse pequeno e estivesse dentro dele mesmo. Com certeza, se

Page 15: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aurélio Michiles

encontrava totalmente identificado com a contracultura – o underground que, afinalde contas, ele conhecia muito bem. Aí, sem saber, iria se identificar com a pintura deFrancesco Clemente14 e, mais uma vez, obliqüamente, antecipava a sua tragédia e amesma de Basquiat15. Em Belém, como um trânsfuga, Hanneman se desentendeucom o tio, bateu boca, trocou agressões físicas e, num surto, cometeu um crime,tornou-se um homicida e depois se suicidou. Esta foi a versão oficial e que saiu naprimeira página dos jornais. Mas existe outra baseada no laudo médico, que afirmater ele sido vítima de agressões físicas, com afundamento do crânio, seguido deparada cardíaca, quando se encontrava prisioneiro.

Estávamos no início dos anos 70. A ditadura havia decidido eliminar fisica-mente seus opositores. A truculência e o escárnio aos direitos civis do cidadão erama única verdade. É muito provável que ele tenha sido vítima desta lógica.

A partir daí, como havia medo e censura, não houve questionamento. Comoseu ato foi espetacularmente trágico, ele passou a ser relacionado às drogas e à agoniade uma Amazônia que dava adeus aos seus ritos tradicionais. Tudo faz sentido. Não écoincidência que, depois de ferir a avó, matar o tio (?), ele destruiu um aparelho detelevisão, essa “máquina de fazer doidos” que fez com que toda a sociedade brasileirase tornasse refém da propaganda em massa do “regime militar”.

Na zona das sombras e da maldição, Hanneman Bacellar, como EduardoRibeiro16, era negro, personagens fabulosos da mesma tragédia, aquela que tentaenfiar goela abaixo a mitomania, escamoteando a verdadeira história. Tanto umcomo outro foram estigmatizados como “loucos e suicidas”.

O artista Hélio Oiticica17, que inventou o “tropicalismo”, criou uma obra dearte que trazia a provocadora frase, emblemática para a década de 60: “Seja herói, sejamarginal”. Hanneman Bacellar é um personagem desse tempo, uma época de contes-tações, transgressões, reinvenções e negações. Na interpretação de qualquer coisa tinhaque haver um subtexto político e ideológico. Mas isso era para os países que viviamnuma democracia, que não era o caso do Brasil, onde, inclusive, falar da miséria e dapobreza era subversivo, assunto restrito à literatura, ao cinema e às ciências sociais.Falar da pobreza era ser comunista. Dava cadeia. Mas Hanneman não era comunistano sentido partidário. Os comunistas de carteirinha eram conservadores, a arte que elesdefendiam não era a mesma arte que a geração do Hanneman buscava.

Como artista, ele quis retratar o que via e vivia de um outro jeito, não apaisagem do “realismo socialista”, mas o sentimento convulsionado do seu tempo,

Page 16: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

E tu me amas?

algo paralelo às metáforas de Jimi Hendrix e aoThe Who, quando destruíam guitar-ras, baixos e baterias durante as suas performances musicais. O cinema, ao sugerir“uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, o teatro, ao pregar o anti-realismo, omesmo desejo dos artistas plásticos querendo extrapolar os limites da tela e proporuma outra monumentalidade relacionada à tridimensionalidade da criação. Algo comoa “não-arte”, as “instalações” como um gesto criador capaz de incorporar o cotidi-ano mais desprezível, volúvel, consumista e mistificador dos comerciais de propa-ganda. Com certeza, o artista Hanneman se encontrava num movimento que aca-bou sendo interrompido por sua própria pressa, relacionado a sua história de vidapessoal. Hanneman, maldito, prefigura a força poética e provocadora do artistaRoberto Evangelista. Aquele outro Hanneman celebrado está mais perto da artistaRita Loureiro. Mas, por mais paradoxal que tudo isso possa parecer, ele vai deencontro a uma mesma sintonia do movimento dos rios, num verdadeiro encontrodas águas, como se fosse possível afirmar que Hanneman deixou de existir comopessoa para forjar a existência desses dois artistas.

Ele não tinha consciência de tudo isso. A nossa certeza é que ele teve a cora-gem de renegar aquele espaço permitido e conquistado. Mas a sociedade que permitiua sua ascensão, desde os porões onde nasceu e viveu, queria que ele ficasse prisioneirona roupagem de artista oficial, onde pudessem exibi-lo como um troféu de umasuposta “democracia racial”. O Hanneman “black is beautiful” disse “não ao não” aopapel de “pitoresco”, “exótico” ou qualquer outra legenda editada nas academias –como “um autêntico herdeiro da arte regional”. Hanneman preferiu virar as costas(como Milles Davis18 fez num show do Teatro Municipal–RJ, no final dos anos 60) eexibir uma outra inquietação. Esse gesto doeu, e as conseqüências ninguém entendeu.

Mas tudo isso é apenas um fotograma da metáfora que nós estávamosvivendo intensamente. Não sabíamos, mas éramos parte do painel cubista, surrealista,dadá, artnouveau, psicodélico, tudo misturado ao lixo puro, quer dizer, à promíscuaonda da cultura pop-art. Estávamos atravessando a linha que dividia o mundo entrecultura erudita e popular, o clássico e o moderno, de Deus e do diabo, do Ocidentee do Oriente, do capitalismo e do comunismo.

Ao utilizar as suas mãos de artista para matar, Hanneman causou uma rup-tura social ao aceitável. Ele foi além da espantosa expressão pictórica de um FrancisBacon19. Neste sentido, ele foi mais realista e brutalmente assustador. Literalmente,resolveu expor toda a dor das suas inquietações. Ao rasgar e queimar seus desenhos,

Page 17: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aurélio Michiles

ele quis zerar tanto a arte como a vida que, para ele, naquele momento, era a mesmae única coisa. O seu gesto tem tudo a ver com a expressão utilizada na época: “Jáera!”. Mas que poderia perfeitamente estar reproduzindo Maiakovski20, quando noinício do século XX declarou: “Viva a vida, abaixo a arte!”.

Em fevereiro de 1971, aos 23 anos, Hanneman sabia que a vida se escrevepor linhas tortas e, muitas vezes, num texto metafórico e profano (ele morreu nocarnaval). Ele se foi acompanhado por Janis Joplin (1943-1970), Jimi Hendrix (1942-1970), Jim Morrison (1943-1971), Keith Moon (1947-1978), Torquato Neto (1944-1972), todos eles, jovens, antenados e destemidos. Trinta anos depois da sua morte,ao visitar o túmulo de Jim Morrison21, ocorreu-me lembrar do Hanneman, um eoutro, jovens para sempre. Quando escutei, ao fundo, um senhor de cabelos grisa-lhos tocar num sax os acordes de “The Celebration of the Lizard”22, tive a certezada presença do artista Hanneman Bacellar e da sua obra “Cafuné”, e compreendique ele, à sua maneira, recusara o chamado da menina mimada na poesia que numacerta época ele gostava de recitar:

“Ó Fulô! Ó Fulô!(Era fala da Sinhá)Vai forrar a minha camapentear os meus cabelos, ajudar a tirara minha roupa, Fulô!Essa negra Fulô!” [...]“Vem me catar cafuné” [...]23.Obliqüamente, ele quis dizer:“Eu amo. Eles amam”.“Tu me amas?”.

Notas

1 O bando: Aurélio Michiles, Carlito Michiles, Claudia Silva, Enéas Valle, FrançaMoss, Hanneman Bacellar, Ilton Oliveira, Milton Hatoum, Narciso Lobo, Plínio Jr.,Regina Farias.

2 “O Elemento 106”, com uma tiragem de 1.500 exemplares, chegou ao terceironúmero.

3 Em 1897, o engenheiro e repórter Euclides da Cunha (1866-1909), ao visitar Ca-nudos, escreveu uma série de reportagens sobre o conflito entre as forças governa-

Page 18: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

E tu me amas?

mentais contra um grupo de fanáticos religiosos, liderados pelo beato AntonioConselheiro, o qual profetizava “que o sertão vai virar mar e o mar vai virar ser-tão”. Essa reportagem resultou no livro Os Sertões.

4 A novela “A Metamorfose” foi publicada em 1912, pelo escritor checo FranzKafka (1883-1924).

5 “Cirandeiro”, de Edu Lobo e Capinan.6 “Vento”, de Dorival Caymmi.7 John Cage (1912-1992), “a figura mais paradoxal de toda a música contemporâ-nea”, disse o escritor Umberto Eco. Cage é um músico poeta. Em 1952, compôs“4,33”, sob o mais absoluto silêncio, irritando uma parte da platéia. “Silêncio tam-bém é música”, comentou.

8 Revolver, disco dos The Beatles, que, lançado em agosto de 1966, dá seqüência àsexperiências sonoras do grupo. Algumas das composições foram influenciadaspela leitura do livro The Psychodelic Experience, de Thimothy Leary, considerado o paido LSD.

9 Hieronymus Bosch (1450-1516), nascido na cidade de Hertogenbosch, na Holanda,sua pintura é marcadamente relacionada ao mundo dos sonhos misturado aospesadelos, uma viagem pelo inconsciente da humanidade, algo semelhante ao queconhecemos como surrealismo.

10 Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), nascido nos Países Baixos (Holanda e Bélgi-ca). Este pintor tem como influência a obra de Hieronymus Bosch, mas, ao con-trário deste, suas pinturas transmitem uma idéia irônica, até mesmo ácida da natu-reza humana.

11 “Quadros de uma Exposição” (1874), de Modest Mussorgsky (1839-1881), queintegrou o “grupo dos cinco” (Borodini, Rimsky, Korsakov, Balakiev e Cui).

12 Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), artista nascido nos arredores deMilão, subverteu aos estilos contemporâneos a sua geração (maneirismo e orenascimento pleno). A composição de luz nas suas obras faz surgir uma outradenominação ao realismo. Nasce o “naturalismo”.

13 Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1993), após o golpe militar de 1964 foi ointerventor no Estado do Amazonas (1964-1967). Apesar da situação institucionalirregular, sob o seu governo, o Amazonas vivenciou uma espécie de renascençacultural. Inclusive programou uma aguda polêmica: “Amazônia e a Cobiça Inter-nacional”, que é o título de um dos muitos livros que escreveu e publicou.

Page 19: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aurélio Michiles

14 Francesco Clemente (1952). “Sem Título”, de Mortalha Branca, 1983.15 Jean Michel Basquiat (1960-1986). Artista negro norte-americano, nascido em Nova

York. Integrante do movimento “graffiti” e que alcançou notoriedade prodigiosaao lado de artistas como Andy Warhol (1928-1987). Morreu precocemente, víti-ma de overdose de heroína.

16 Eduardo G. Ribeiro (1863-1900). Foi governador do Amazonas entre 1892-1896,numa época de prosperidade trazida pela economia da borracha. Valendo-se des-ta situação, empreendeu um dos governos mais dinâmicos em toda história daregião. Faleceu aos 37 anos, em circunstâncias até hoje não esclarecidas.

17 Hélio Oiticica (1937-1980) foi e é um dos artistas mais radicais da neovanguardabrasileira.

18 Miles Davis (1926-1991), nascido em Alton, Illinois, desde criança se interessou emtocar trompete. Com Wayne Shorter, Herbie Hancock, Tony Williams e Ron Carter,formaram um dos mais excitantes e criativos grupos de jazz moderno. Mas aolançar o álbum “Bitches Brew”, de 1969, ele rompeu definitivamente com a esté-tica jazzística dos anos 50 e 60.

19 Francis Bacon (1909-1992), artista irlandês influenciado pelas obras de Velásquez e“que gosta de riscos, tanto na vida pessoal como no seu trabalho” (H. W. Janson.In: História da Arte,1986).

20 V. Maiakovsky (1893-1930). Uma frase do manifesto “Bofetada no Gosto Públi-co”, em 1912, e que deflagra o movimento futurista russo.

21 Cemitério do Pére Lachaise, em Paris, onde estão sepultadas celebridades comoOscar Wilde, Marcel Proust, Molière, Edith Piaf, Chopin, Sarah Bernhardt, YvesMontand. Mas é o túmulo do ídolo da música pop Jim Morrison (1943-1971) queatrai milhares de pessoas vindas de todos os continentes a visitar esse lugar.

22 Música que faz parte do álbum duplo “Absolutely Live”, The Doors, gravado aovivo em 1970. The Celebration of the Lizard: “Lions in the street and roaming /Dogs in heat, rabid foaming / A beast caged in the heart of a city / The body ofhis mother / Rolling in the summer ground / He fled the town”. [...]

23 “Essa negra fulô”. É o mesmo título do livro publicado em 1928, do poetaalagoano Jorge de Lima (1895-1953).

Page 20: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 21: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allison Leão*

ResumoBreve reflexão sobre o entrecruzamento de suportes arquivísticos no romance Doisirmãos, de Milton Hatoum. Desse intercâmbio parece resultar uma narrativa poéticaque provoca uma mudança da escrita operada a partir da própria escrita.

Palavras-chave: narrativa poética; Milton Hatoum; suportes arquivísticos.

AbstractBrief consideration about the intersection of the archivistic support in the novel Doisirmãos, by Milton Hatoum. From this intersection there seems to appear a poeticalnarrative that causes a change in the writing from itself.

Keywords: poetical narrative; Milton Hatoum; archivistic support.

A narrativa poética em Dois irmãos – lugar de intercâmbioentre suportes arquivísticos

* Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia – ICHL/UFAM; Doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federalde Minas Gerais; bolsista pela Fapeam.

Page 22: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A narrativa poética em Dois irmãos...

Tomemos esta imagem: uma carta ou mesmo um bilhete escritos há muitosanos provavelmente repousam no fundo de alguma gaveta, nalgum longínquo ar-quivo pessoal. Recordá-los significaria acessar novamente seu conteúdo, uma deter-minada informação. E mais que isso: a tristeza ou a alegria que nos causaram, apalpitação ou o alívio, a frustração ou o entusiasmo. E, numa perspectiva ainda maissutil, recordá-los seria lembrar a cor que as palavras tinham ou passaram a ter namemória, o cheiro da tinta e do papel, a textura, a luz daquele dia em que se leram ereleram as palavras, talvez algum som. A escrita, aquele contato com a escrita, rodeadade outros suportes, leva o sentido de contato ao limite. E recordar a escrita já não émais tão-somente recordar a escrita.

Em que ponto pode haver uma subversão ou mesmo uma ultrapassagemda escrita operada a partir dela mesma? Ou seja, como, escrevendo, pode-se contra-riar a própria escrita? Quando Pierre Nora (1997), por exemplo, propõe-se pensaros “lugares de memória” nas sociedades contemporâneas, o faz sempre com oolhar positivamente voltado para sociedades arcaicas, às quais ele credita o uso deuma autêntica memória em contraposição à artificialidade dos chamados lugares dememória atuais, suportes da historiografia. Isto é, para Nora, o suporte pode indicarpara que lado tende a “memória”: se para a espontaneidade da “verdadeira” me-mória – através da oralidade, por exemplo – ou se para o engessamento de umamemória artificial – marcada pelos códigos historiográficos, pelos museus, por umacerta exteriorização, enfim. Em resumo, Nora busca estabelecer uma distinção com-pleta entre história e memória. Esta, encontrada em sua pura forma nas sociedadesarcaicas. E aquela, típica das sociedades modernas. Em termos conceituais, as dife-renças se estabeleceriam especialmente, do lado da memória, pela fluidez, pela im-precisão, pela dinâmica e pelo caráter do inacabado em contraposição à fixidez, àrigidez e à objetividade historiográfica. No que se refere aos suportes, a memóriaestaria longe de uma materialidade, se ligaria mais ao inapreensível da oralidade,enquanto a história trabalharia com suportes de ordem material e institucional, espe-cialmente documentais.

Há, entretanto, formas menos maniqueístas de se pensar a natureza de umsuporte e sua relação com seu conteúdo. Andreas Huyssen, por exemplo, ao analisara situação do museu num cenário pós-moderno de forte presença do pop e dacultura de massa – que faz do museu “um lugar de uma mise-en-scène espetacular e de

Page 23: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allison Leão

exuberância operística” (1997, p. 223) –, mostra, no entanto, que da concepçãomoderna para a pós-moderna de museu uma das diferenças fundamentais é queesta, apesar de todas as ressalvas que aqui podem ser feitas, a partir de umacotidianização do que é museico, pôde gerar algo como uma mediação entre oexterno e o interno. A exteriorização da memória, típica do museu e criticada porNora, ganha aqui forças de dialogização.

Lembrando de Platão no Fedro, quando o filósofo grego desqualifica qual-quer suporte externo da memória, Ulpiano T. Bezerra de Menezes (1999) chama deconservadora toda a crítica que deriva da tradição platônica que vê um irremediáveldivórcio entre técnica e conteúdo, entre poética e política, e para a qual a externalidadeda memória já seria em si uma contradição ou, no mínimo, um enfraquecimentodesta. Não se trata de glorificar um requerido grau mnemônico em todo objeto,uma memória que aí também seria aurática, mas de perceber como essa materialidadepode ser ferramenta do juízo, ao mesmo tempo uma reflexão e uma refração damemória.

A oposição que se percebe aqui é entre subjetividade e objetividade. Umbalanço feito por Jacques Le Goff (2003) a respeito do valor dado ao documentocomo verdadeiro, objetivo, indiscutível e autêntico pode nos fazer perceber comodisso deriva uma marca da escrita – pelo menos grande parte dela – nas sociedadesditas ocidentais: a escrita seria, a princípio, um desses suportes calcados na objetivi-dade.

De início, se poderia pensar que a literatura se salva dessas pretensões, peloseu caráter eminentemente artístico. Mas não nos apressemos, lembremo-nos aomenos da vontade de objetividade do Naturalismo, jamais plenamente cumprida,claro. Lembremos também da armadilha biográfica, sempre a espreitar, com umacerta aura de autenticidade, os relatos sobre as pessoas “de verdade”, exatamentecomo elas foram. Permanece a questão: como subverter a escrita de dentro dela?

Proponho pensarmos a escrita como um suporte arquivístico. A princípio,podemos vê-la como um tipo de suporte com tendência a fixar arquivos. Mas acontradição se instalará à medida que nos lembremos daquela carta a que me referino início deste artigo. Nela, fica evidente como os suportes não existem sozinhos,como acessar um significa acionar uma rede de suportes e os significados que dissopossam derivar. Nosso recorte é constituído pelo romance Dois irmãos (2000), doescritor amazonense Milton Hatoum, pois creio que ali estão tanto a escolha de uma

Page 24: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A narrativa poética em Dois irmãos...

narrativa poética quanto a de um narrador poético – tentarei explicar ambos ostermos a seguir – que propiciam uma escrita da dispersão, da incerteza, a partir dequando o narrador, para escrever seu arquivo pessoal, aciona diversos suportes dis-tintos da escrita. Neste romance parece ocorrer um trabalho de (con)fusão de su-portes efetuado pelo narrador, o jovem Nael. Minha hipótese é de que, ao acessararquivos imprecisos – arquivos orais, arquivos espaciais como a cidade, a natureza, acasa e o corpo –, o narrador reconfigura a narrativa, fazendo-a transcender o caráterde exterioridade. Ou, em termos nietzscheanos, encontra na exterioridade, na super-fície a brecha do sentido.

O arquivo ficará, assim, entendido, ele mesmo, como um espaço de inter-câmbio: a princípio dos suportes, mas também lugar onde se entrecruzam os enun-ciados, a palavra e o silêncio, o eu e o outro. O que importa nesta noção de arquivoé aquilo que Wander Melo Miranda (2003, p. 36) chama de “valor diferencial”, ouseja, a coexistência conflituosa e transformadora dos enunciados presentes no arqui-vo. Ou, como informa ainda Wander, sustentando-se no Foucault de Arqueologia dosaber (rede de enunciados), o que interessa aqui é a noção de arquivo como “sistemade discursos que encerra possibilidades enunciativas agrupadas em figuras distintas,compostas umas com as outras segundo relações múltiplas e mantidas ou não con-forme regularidades específicas”.

A escrita, em Dois irmãos, está diluída em narrativa. Ou seja, é a narrativa queescreve contra a escrita. Mas uma narrativa poética. Poético vai aqui compreendido nosentido mesmo de poiésis, do fazer, ou do que está se fazendo, se re-elaborando, sereconstituindo permanentemente. As principais características dessa narrativa poéti-ca seriam a imprecisão e o olhar e o ouvir como seus sentidos construtores.

Pensemos inicialmente a imprecisão. O silêncio, que a princípio chega a sernegativo porque nele está guardado o segredo da concepção de Nael – qual dosgêmeos seria seu pai: Omar? Yakub? –, passa a ser a principal fonte de invenção parao narrador. O silêncio geral da casa, sobre esta e outras questões, chama-o a buscardiversas fontes de arquivo, o que não está dito no dito e o espaço, que não é dito,mas pode ser visto. O silêncio, enfim, lhe dá licença para a invenção.

Nesse inventário – e aqui podemos brincar com a palavra: listar bens ouinventar –, Nael recorre a narrativas indiretas, vindas de narradores indiretos. Mar-cos Frederico Krüger Aleixo (2002) chamou atenção para isso, elencando uma série

Page 25: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allison Leão

de narradores “afluentes” em Dois irmãos, dentre os quais destacam-se Halim, olibanês avô de Nael, e Domingas, a mãe, índia que desde muito jovem prestavaserviços na casa da família libanesa. Deles vem o contato com a narrativa oral, poismuito do que consta nesse inventário deve-se aos relatos de Halim e Domingas,representantes de culturas cuja oralidade, as histórias ancestrais transmitidas oral-mente constituem traços marcantes. E deles podemos destacar dois pontos funda-mentais: o esquecimento e a dispersão da autoria, ambos ligados diretamente à idéiade imprecisão.

Sobre o esquecimento, destaco o seguinte trecho, em que Halim conta aNael os primeiros dias depois de ter-se casado com Zana. Num certo momentoHalim pára a narrativa. Nael escreve:

Ele abanava o tabaco de narguilé, a fumaça cobria-lhe orosto e a cabeça e o sumiço momentâneo de suas feiçõesera acompanhado de um silêncio: o intervalo necessáriopara recuperar a perda de uma voz ou uma imagem, essaspassagens da vida devoradas pelo tempo. Aos poucos, afala voltava: membranas do passado rompidas por súbitasimagens (HATOUM, 2000, p. 55).

Por detrás dessa fumaça da memória talvez estivesse um sentido original,pensaríamos, apressados, mas a dispersão da fumaça não traz certezas: traz “súbitasimagens”, traz retalhos. Entretanto, é desses retalhos que Nael constrói a rede de suanarrativa. O incerto transmutando o caráter da informação. Assim, a narrativa escri-ta de Nael já se funda na incerteza.

Domingas, também, é uma fonte de narrativas orais para o narrador deDois irmãos, mas em vez de dar um exemplo de histórias contadas por ela, talvezfosse mais interessante lembrar os momentos em que ela canta. Indo para uma visitano interior do Amazonas, de onde provém, acalentando Nael ou simplesmentecantando sozinha, alguma coisa nesse canto toca o narrador. Importante destacarque esse canto às vezes é entoado em nheengatu (p. 240). Se ouvirmos o canto deDomingas junto aos gazais – dísticos que Halim utilizara na conquista amorosa deZana e que o velho libanês às vezes repetia em árabe –, notaremos como o conteú-do aparente pouco importa, a informação precisa de nada adianta. Ainda que Naelnão entenda o falar estrangeiro a ele, existe a possibilidade de transformar isso emescrita. E a escrita nascendo fora do entendimento informacional, mas dentro da

Page 26: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A narrativa poética em Dois irmãos...

compreensão do ouvido, dos sentidos é uma escrita alterada, subversivamente alte-rada. Diz Nael: “Eu não compreendia os versos quando ele falava em árabe, masainda assim me emocionava: os sons eram fortes e as palavras vibravam com aentonação da voz. Eu gostava de ouvir essas histórias. Hoje, a voz me chega aosouvidos como sons da memória ardente” (p. 51). Notemos, aqui, o apelo e a sedu-ção do significante, desvinculado do significado.

Indo buscar esses arquivos orais, Nael encontra uma certa solidariedade dosnarradores indiretos. Ao falar, eles jogam seus relatos no ar, permitem que elesviajem. Não assinam com caneta o que falam. Não cercam nem registram proprie-dade de suas histórias. Falam para ouvidos que os queiram ouvir. Ressignificam seustraumas assim, e a princípio é isso que interessa: contar e recontar. Elaborar perdas.Nael, entretanto, é o ouvido interessado. E constrói seu arquivo quase como seestivesse roubando histórias, roubando o arquivo alheio, confundindo a fronteiraentre os arquivos do eu e do outro. Ao entrar para os arquivos do narrador princi-pal, as narrativas subjacentes ganham outro sentido, porque postas em nova rede deressignificação. Ao olhar e ouvir o outro, Nael inventa a si mesmo. E é bom salientar:inventa. Das bocas de Halim e Domingas jorram as palavras como se viessem doalto de uma por sua vez muito alta cachoeira, e vêm batendo nas pedras, o jorrodesfazendo-se em fios, gotas e vapor d’água. E aqui em baixo, de mãos espalmadas,Nael colhe a evanescência da memória. Memória líquida, sem forma fixa, assumin-do, sempre transitória, a forma do recipiente em que esteja. E nas mãos, escapa porentre os dedos. Esse é um dos seus materiais. Daí eu ter chamado esse narrador depoético. Porque, além de a narrativa ir-se constituindo dinamicamente, também ele,o narrador, nos dá a sensação de que está inacabado a cada instante. O que ele nosmostra de si é também o incerto. Mas o vigor narrativo torna isso convincente. Aomenos até que o próximo passo seja dado.

A escrita documental, que se pretende verdadeira, sustenta-se fundamen-talmente pelas idéias de procedência – autêntica – e de autoria ou autorização paraenunciar, e sabemos que esta última função tem na autoria uma forte marca decerceamento da circulação do saber – como muito bem já observou Foucault(1987). No entanto, com a noção de autoria dispersada pelo contato do olhar edo ouvir a possibilidade de trânsito entre os discursos e de mútua apropriaçãoparece efetivar-se.

Page 27: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allison Leão

Desta maneira, Dois irmãos promove o encontro de duas formas de narrar:aquela baseada no narrador benjaminiano e uma outra percebida por Silviano San-tiago. O narrador de Benjamin é aquele que conta a experiência vivida, sua sabedoriaestá em “dar conselhos” que resultaram de todo um acúmulo dessa experiência(1986). Nael não é esse narrador, mas ainda o encontra em Domingas e Halim, quesão os narradores de sua própria experiência, guardiães do saber – no sentido doque foi vivido. O projeto de narrativa de Nael se sustenta mais em ouvir e ver – emtestemunhar –, o que o aproxima muito do narrador contemporâneo, sobre o qualse deteve Silviano Santiago (1989). Nael narra o outro, o alheio. Isso redobra afragmentação do conceito de autenticidade nessa escrita, pois aqui o autêntico é umaconstrução que nasce da linguagem, conforme escreveria Silviano (p. 40). Ele sedistancia do que narra, distancia-se pelo olhar, para ter perspectiva. Lembremos queNael mora nos limites do quintal da família libanesa. Entra na casa, trabalha na casa,mas à noite, quando escreve, quando retorna ao pequeno quarto nos fundos doterreno, recupera metaforicamente sua distância, sua perspectiva de observador. Assimele escreve: “muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de foraaquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o observador dessejogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final” (p. 29). Portanto, o que parecia seraventura de um desvendar-se, de um descobrir sua procedência, passa a ser secun-dário no romance. O olhar e o ouvir de Nael estão completamente voltados para ooutro. “Ele não narra enquanto atuante”, como diria Silviano Santiago (p. 39). E suaprocedência será o que ecoar disso, mas o que ecoar aos nossos ouvidos, de leitores.Outros observadores que somos – pobres em experiência tanto quanto o narrador–, para lembrar ainda Silviano.

Mesmo assim, o narrador contemporâneo Nael encontra os narradorestradicionais, como disse há pouco. Creio que esse encontro abre duas possibilidadesque se interligam. A primeira, entre a perspectiva narrativa pós-moderna e a elabo-ração da crítica benjaminiana sobre a narrativa moderna – parece-me que aqui Mil-ton Hatoum nos dá uma idéia do quanto sua geração pôde elaborar e transmutar aeducação estética moderna que lhe foi prestada. É um narrador assim como Nael,pós-moderno como ele, que busca no suporte oral, advogado por Benjamin, ele-mentos para sua composição narrativa – apesar de todas as diferenças entre estetipo de narrador e o tradicional, corretamente apontadas por Silviano Santiago. E asegunda, com relação ao saber narrativo, ou seja, a partir de que a narrativa pós-

Page 28: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A narrativa poética em Dois irmãos...

moderna elabora seu saber. E parece fazê-lo com o que fica do cruzamento entre atradição oral – a imprecisão, a dispersão da autoria e, para além da crítica sobre umaincerteza do saber nos tempos atuais, o saber da incerteza – e os suportes caros àpós-modernidade, fundamentalmente espaciais e também incertos. E neste ponto oromance de Milton Hatoum é bastante profícuo.

Marcos Frederico Krüger Aleixo (2002, p. 209–211) relaciona ainda algunselementos no romance de Hatoum que funcionariam como narradores subjacentesa Nael. Há pouco destaquei dessa lista Domingas e Halim, mas a eles juntam-se,segundo Aleixo, subnarradores como Yakub – quando conta ao pai porque nãofalara com Omar, passagem retransmitida, certamente em diferença, a Nael –; Zanuri,que, por encomenda de Zana, espionava Omar; o tempo e o espaço. Por questõesde recorte, pensemos no espaço como arquivo. Até porque poderemos ver que, emDois irmãos, o tempo se faz notar sobremaneira pelo espaço.

Marcos Frederico cita a Amazônia e a cidade de Manaus como espaçosque falam na narrativa. Evidentemente, ele aqui faz uma distinção entre o interiore a capital. Quanto ao interior, teríamos as histórias que vêm descendo o rio, oucomo Marcos transcreve do romance, “vinham dos beiradões mais distantes erenasciam em Manaus, com força de coisa veraz” (2002, p. 210). Ainda para ocrítico, no que se refere à cidade, também o boca-a-boca é a fonte narrativa. “Asvozes das pessoas que contavam histórias logo ao amanhecer”, nas palavras deNael, que aqui cito também no boca-a-boca, via Marcos Frederico (p. 211). Po-rém, chamo atenção para o seguinte: parece que na análise de Marcos o espaçonão se expõe como um espaço, justamente porque, nos exemplos que ele destaca,o espaço fala, faz-se ouvir por vozes, o que demanda mais tempo do que espaço.Creio, entretanto, que o espaço a gente ouve com os olhos. Nael, pelo menos,percorre o espaço com os olhos.

Comecemos pela cidade. Conforme a narrativa de Nael acompanha o es-facelamento das relações entre a família de libaneses, somos levados, pelo seu olhar,a observar uma certa cidade a se desfazer também. A chegada da parafernália mo-derna altera uma série de quadros. Sem nenhuma sombra de saudosismo, o que estáà frente de nossos olhos é o soterramento de formas de espacialização tomadas porsubalternas, tais como a Cidade Flutuante, que percorremos juntamente com Halim,em seus passeios. Tratava-se de um aglomerado de casas erguidas sobre toras quepor alguns anos constituíram um verdadeiro bairro de Manaus e que por medidas

Page 29: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allison Leão

públicas – estéticas, sanitárias e de segurança – naufragou. Foi naufragado, para sercorreto. Um bairro que desapareceu. Desapareceram com o bairro, para ser corretonovamente. No romance, a agonia de Halim, já em sua velhice, refugiado no último,roto e pequeno espaço que lhe resta, nos altos da loja da família, corresponde aoafugentamento de toda uma história espacial da cidade, posta mais e mais emmarginalidade. E corresponde também a uma cidade comprimida entre o arcaico eo moderno, entre o fausto passadista e a promessa de glória num futuro próximo,tendo na pele, entretanto, as marcas de um presente aberto em chagas, perdidanuma Amazônia esquecida.

Aliás, o discurso espacial, ou o arquivo espacial que Nael acessa para com-por sua narrativa, é fundado nas relações de centro e margem. Somos levados aolhar a partir da perspectiva marginal de Nael, fruto da bastardia. Marginais, diga-sede passagem, já são os migrantes. Mas estes têm um poder de negociação diferentedo de Nael – depois retomarei essa questão. Na perspectiva oposta à de Nael,temos Omar, cujas aventuras se dão diariamente com suas saídas de casa para umaoutra marginalidade, entretanto forçada – se bem que a estética de vida que Omarescolhe para si, boêmia por excelência, vai gradativamente tornando-se marginal,com o avanço da sociedade tecno-burocrática, muito mais próxima à estética deYakub. Lembremos, em relação a Omar, que uma de suas amantes, Dália, a MulherPrateada, morava num subúrbio distante: “uma casa derruída da Vila Saturnino,onde, indo para o Norte, Manaus terminava. Era a última casinha da vila, situadanum pequeno descampado cheio de carcaças de carroça e aros de bicicleta enferru-jados” (p. 105). E com outra, a Pau-Mulato, ele escondera-se num limiar, nem tãolonge da cidade como imaginara Halim, nem tão à vista como desejara Zana: noporto, local de passagem.

Somos observadores também do espaço da casa, seus móveis, a sala, aprincípio cheia e depois a esvaziar-se de suas comemorações e de todas as suaspresenças – “Zana passou a chave na porta do quarto, e do balcão ela viu a lonaverde que cobria os móveis de sua intimidade. Viu o altar e a santa de suas noitesdevotas, e viu todos os objetos de sua vida, antes e depois do casamento comHalim. Nada restou da cozinha nem da sala. Quando ela desceu, a casa parecia umabismo. Caminhou pela sala vazia e pendurou a fotografia de Galib na parede marcadapela forma do altar. Nas paredes nuas, manchas claras assinalavam as coisas ausen-tes” (p. 252) –; até a transformação completa da casa após a venda para o comerci-

Page 30: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A narrativa poética em Dois irmãos...

ante Rochiram. “Os azulejos portugueses com a imagem da santa padroeira foramarrancados. E o desenho sóbrio da fachada, que era razoável, tornou-se uma másca-ra de horror, e a idéia que se faz de uma casa desfez-se em pouco tempo” (p. 255).Maria Zilda Ferreira Cury, em artigo sobre as personagens femininas na ficção deMilton Hatoum, nota uma fusão de duas das mais fortes mulheres dos textos doescritor amazonense: Zana, de Dois irmãos, e Emilie, a matriarca de Relato de um certooriente, primeiro romance do escritor amazonense:

Ambas as personagens fundem-se aos sentidos mais co-muns assumidos pela casa da infância: o feminino, o refú-gio e a proteção do seio materno, mas também os seusopostos. A ruína das duas personagens espelha-se na ruínade suas casas, mútuo-alimentando-se, confundindo-se nomesmo corpo, no mesmo centro, fixadas como fotografia(2002, p. 310).

E em outro artigo, no qual analisa Relato de um certo oriente, Maria Zilda dis-corre sobre a significação da casa neste romance:

A casa tem significação especial a definir inclusive o pró-prio relato: a impossibilidade de recuperar a moradia dainfância – excessiva, rebuscada, pesada nas suas tradições– metonimicamente diz da impossiblidade de reconstruçãodo eu narrador na escritura de memórias, sendo, parado-xalmente, o motor principal da narrativa (2000, p. 174).

Embora neste ponto haja uma aproximação dos dois romances, quanto aesta impossibilidade de reconstrução, o narrador de Dois irmãos tem a peculiaridadede ser aquele que entra e sai da casa. Nael é da casa sem pertencer a casa. Metáforados marginalizados da nação, ele transita no espaço da casa como uma presençaflutuante. Mas é por seu olho e seu ouvido interessados que se costurará a narrativa.

Chamo ainda atenção, nesse discurso do espaço, para o corpo como umoutro arquivo espacial acionado por Nael. Interessa-lhe perceber as marcas que oscorpos ganham e disso compreender algum sentido. O envelhecimento de Halim, aresistência da beleza no rosto de Zana, ao menos até certo ponto. A aparência dosgêmeos, ao mesmo tempo tão semelhantes e distintos – “na aparência podia ser ooutro, sendo ele próprio” (p. 135) –, a pequena meia-lua na face de Yakub, o mag-

Page 31: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allison Leão

nífico e quase intocado corpo de Rânia. São marcas em corpos que “falam” por si.É claro que há a mediação da escrita de Nael. Mas há também espaços que só oolhar penetra. Chegamos a esse limite entre o olhar e a palavra. E usufruímos tantodo poder de um quanto do outro. Eis o ponto onde os arquivos se entrecruzam. Aescrita torna-se também ela um corpo, que vai envelhecendo e renovando-se pornecessidade de que a narrativa prossiga. E a demanda temporal para o caminho doolhar sobre a escrita nos dá uma sensação espacial sobre o tempo. Assim, se otempo narra, conforme observou Marcos Frederico, se ficamos sabendo sobreseus efeitos, é o espaço que nos informa sobre eles.

Tendo acessado diversos suportes arquivísticos para compor sua narrativa,Nael chega a um ponto em que nós, que o acompanhamos com os olhos, estamosrepletos de imagens cruzadas, arquivos cruzados, mas que, no entanto, nos chegampela escrita. É quando percebemos como a escrita transubstanciou-se no decorrerda narrativa. Nael talvez buscasse sua origem – o último lance do livro ainda é umencontro mínimo e ao mesmo tempo máximo com Omar, um de seus prováveispais – mas, antes disso, já nos era possível perceber que, muito além de encontraruma suposta verdadeira origem, o ato de escrever, a invenção da e pela escrita foi ogesto principal da narrativa em Dois irmãos.

Num de nossos encontros nos seminários de literatura comparada a respei-to dos arquivos literários, na UFMG, o professor Reinaldo Marques comentou umartigo de jornal a respeito de arquivos inéditos do médico nazista Josef Mengele. Aobservação do professor foi que a manchete dava uma medida do quanto a respei-to dos arquivos pode-se ter uma idéia de origem pura e verdadeira, como se aliestivesse a verdade final sobre um fato ou uma pessoa. Trata-se de uma visão docu-mental do documento, recordando novamente Le Goff (2003). O trabalho donarrador Nael, no entanto, foi de construção aberta da possibilidade de proveniên-cias. Nael não escreve para a verdade porque não acessa os arquivos como se fos-sem portadores da verdade. Seu trabalho narrativo, portanto, é de decomposição erecomposição da escrita. É a escrita que o ajuda a matar um pai fantasma.

Há, no romance, algumas indicações de como a escrita pode ser umaestética do inacabado ou uma estética da petrificação. Os gazais, poemas apaixo-nados do jovem Halim para Zana, escritos pelo boêmio Abbas; a escrita marginale vigorosa do poeta e professor Antenor Laval, soterrada pela violência do regi-me militar, exemplos da primeira estética. Os cálculos e projetos de Yakub, o

Page 32: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A narrativa poética em Dois irmãos...

relatório que Zanuri fez para Zana, sobre Omar, em detalhes inúteis e de intençõesdelatoras, representantes da segunda estética. Mas a narrativa de Nael utiliza todas,ressignifica-as.

No contexto amazônico, brasileiro e latino-americano, é interessante perce-ber a escrita como subvertedora da ordem de uma sociedade fundamentalmenteescrita, do cânon, do documento, das letras, enfim, como diria Ángel Rama (1985).Mas se foi todo um arsenal intelectual escrito que promoveu a imposição de certoscódigos na história da América Latina, também pela via escrita ou da cultura daescrita pôde-se dar uma medida de resistência, conforme igualmente observa Rama(p. 126-156). Um dos símbolos dessa resistência no romance de Milton Hatoum é opresente que Nael, ao fazer dezoito anos, ganha de Halim: uma caneta. A escrita queNael empreenderá é de uma estética das sobras. Os livros de sua formação virãoora do que desprezara Omar – até seu uniforme de escola –, ora do que lhe enviaraYakub. A própria narrativa vem das sobras que o tempo deixou na memória deHalim e de Domingas e das sobras no espaço, como já vimos. Na busca pela suaprocedência, Nael consegue perceber que, dado seu caráter de marginalidade – filhobastardo da casa –, construir sua memória requer negociação entre os suportestradicionais de arquivos, neste caso a escrita, e sua matéria de negociação, exatamenteas formas subalternas de arquivamento. Disso parece resultar nem mais a oralidadepura – ou as outras formas de arquivamento – nem mais a escrita rígida. Resulta anarrativa poética, como afirmei anteriormente. Narrativa que nasce de negociação.Os libaneses, como outros migrantes, negociaram sua inserção na sociedade umbocado pelo comércio. Mas as trocas, intencionalmente ou não, foram bem maio-res. Nael precisa achar sua forma de negociação – “me distanciei do mundo dasmercadorias, que não era o meu, nunca tinha sido” (p. 262), afirma ele – e da suamarginalidade retirar a possibilidade de troca.

Perante nossos olhos, vai nascendo aos poucos uma narrativa como arqui-vo misto. O silêncio, a incerteza, o espaço – a casa, a cidade, o corpo – e a tradiçãooral são seus materiais. Nael cruza formas conservadoras de arquivo com outras,bem mais heterodoxas. E o faz para escapar da amnésia. Aliás, comparando, é paraescapar da amnésia que a cultura museológica intercambia-se contemporaneamentecom a cultura de massas, recordando Andeas Huyssen (op. cit.). É assim que o

Page 33: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allison Leão

museu respira um pouco mais. E é assim que a escrita, num mundo em que poucosescrevem, pode também respirar. E é assim que a literatura pode ainda ter fôlego.

Referências

ALEIXO, Marcos Frederico Krüger. O mito de origem em Dois irmãos. Intertextos –Revista do Programa de Pós-Graduação em Natureza e Cultura na Amazônia.Manaus, n. 3, p. 203-214, 2002.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In:Obras escolhidas. 2. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,1986. p. 197-221. v. 1.

CURY, Maria Zilda Ferreira. De orientes e relatos. In: SANTOS, Luiz AlbertoBrandão; PEREIRA, Maria Antonieta (Org.). Trocas culturais na América Latina. BeloHorizonte: Editora UFMG, 2000. p. 165-177.

_______. Imigrantes e agregadas: personagens femininas na ficção de MiltonHatoum. In: DUARTE, Constância Lima; ASSIS, Eduardo de; BEZERRA, Kátiada Costa (Org.). Gênero e representação na literatura brasileira. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 2002. p. 305-318.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universi-tária, 1987.

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

HUYSSEN, Andreas. Escapando da amnésia: o museu como cultura de massa. In:Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 222-255.

LE GOFF. Jacques. Documento/monumento. In: História e memória. 5. ed. Campi-nas: Editora Unicamp, 2003. p. 419-476.

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da memória, história e documento:reflexões para um tempo de transformações. In: SILVA, Zélia Lopes. Arquivo,patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: Editora Unesp; Fapesp,1999. p. 11-29.

MIRANDA, Wander Melo. Archivos e memória cultural. In: SOUZA, Eneida Ma-

Page 34: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A narrativa poética em Dois irmãos...

ria de; MIRANDA Wander Melo. Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.p. 35-42.

NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux. In: NORA,Pierre (Dir.). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1997. p. 23-43.

RAMA, Ángel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985.

SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: Nas malhas da letra. São Paulo:Companhia das Letras, 1989.

Page 35: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allan. S. B. Rodrigues*

Grace. S. Costa**

ResumoA difusão do discurso pela exploração dos recursos naturais do planeta de formasustentável apresenta-se como um desafio para governos e organizações não gover-namentais (ONG’s). O êxito nessa empreitada mundial depende da adoção de es-tratégias de comunicação que levem em consideração fatores socioculturais ineren-tes aos diferentes públicos-alvo do “discurso da sustentabilidade”.

Palavras-chave: comunicação; populações caboclo-ribeirinhas; sustentabilidade.

AbstractThe dissemination of the discourse on the sustainable explotaition natural resource isa challenge for the government and non-governmental organizations (NGOs). Thesuccess in this worldwide enterprise depends on the adoption of appropriatecommunicative strategies which take into consideration sociolcultural peculiarities

of each audience of this “sustainability discourse”.

Keywords: comunication; riverine population; sustainability.

A importância dos fatores socioculturais no processoda comunicação

* Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo – e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociedadee Cultura na Amazônia – Universidade Federal do Amazonas (UFAM). [email protected]

** Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo – Universidade Federal do Amazonas (UFAM)[email protected]

Page 36: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A impor tância dos fatores socioculturais...

O receptor-decodificador é o mais importante elemento de um processobásico de comunicação, que compreende ainda a fonte (ou codificador), o código(língua), o canal (condutor das mensagens) e os ruídos (elementos diversos que po-dem prejudicar o entendimento da mensagem). Afinal, não teria sentido uma men-sagem ser formulada e transmitida se não houvesse um destinatário em condiçõesde entendê-la e reagir ao seu conteúdo. Logo, os esforços comunicacionais devemlevar em consideração o nível de conhecimento dos receptores, sua cultura, suadisposição social no grupo em que estão inseridos e sua habilidade decodificadorapara se comunicar se quiserem ser efetivos em seus objetivos:

Quando a fonte escolhe um código para a mensagem, deveescolher um que seja conhecido do receptor. Quando afonte seleciona o conteúdo, a fim de refletir seu objeto,seleciona um conteúdo que tenha significação para o re-ceptor. Quanto trata a mensagem de alguma forma, partedesse tratamento é determinado pela sua análise das habili-dades de comunicação (decodificação) do receptor, de suasatitudes, conhecimentos e posição no contexto sociocultural.A única justificação para a existência da fonte, para a ocor-rência da comunicação, é o receptor, o alvo ao qual tudo édestinado (BERLO, 1997, p. 59).

Dessa premissa, emerge o desafio enfrentado pelos governos e organiza-ções não-governamentais (ONG’s) em todo o mundo em relação à difusão dodiscurso da necessidade de se adotar um sistema sustentável de exploração dosrecursos naturais do planeta. A propagação desse “discurso da sustentabilidade”acontece tanto em direção a um público situado nos grandes centros urbanos quan-to no sentido das comunidades caboclo-ribeirinhas1 residentes em áreas de relevanteinteresse econômico e ecológico, como a Amazônia. A partir de 1992, com a reali-zação da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ECO-92) noBrasil, quando foi cunhado o conceito de desenvolvimento sustentável, as mensa-gens ecológicas ganharam força na mídia mundial, dando início a diversas frentes dedefesa do meio ambiente, principalmente com o surgimento de inúmeras ONG’sdedicadas as mais variadas causas ecológicas. No entanto, as estratégiascomunicacionais elaboradas para atingir os receptores através dos veículos de co-municação de massa (TV´s, Rádios, Internet e outros) chegaram de forma deficitá-

Page 37: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allan. S. B. Rodrigues/Grace. S. Costa

ria nos chamados “beiradões”, onde residem pessoas com baixa escolaridade e quetiram o sustento da caça, da pesca, dos roçados e da atividade extrativa.

O caboclo da Amazônia pouco sabe hoje sobre esse “tal desenvolvimentosustentável”, e o que sabe está relacionado, na maioria das vezes, às diversas restri-ções contidas na legislação ambiental sobre o uso dos recursos naturais, pois produ-zem impactos diretos no seu modo de vida. Este quadro de desinformação podeser creditado também a falhas nas estratégias (gestão) de comunicação dirigida a estepúblico em particular. Reside, neste ponto, a gênese do caráter multidisciplinar doprojeto de pesquisa que apresentei ao Programa de Pós-graduação em Sociedade eCultura na Amazônia, cujo título é “Gestão da Comunicação e Sustentabilidade: umestudo de caso sobre a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá”.O objetivo desse artigo é evidenciar (de forma sucinta aqui, mas aprofundada nocorpo da pesquisa) alguns elementos do contexto social em que estão inseridas ascomunidades caboclo-ribeirinhas amazônidas, mais especificamente as residentes naRDS Mamirauá, que devem ser considerados para o estabelecimento de um proces-so de comunicação efetivo em relação à difusão do discurso do desenvolvimentosustentável.

Antes de começar a citar alguns elementos que julgo importantes para acompreensão do contexto social destas comunidades caboclo-ribeirinhas da RDSMamirauá, convém, para facilitar o entendimento do texto, fornecer mais dados arespeito do projeto de pesquisa supracitado.

Para fazer frente à tarefa de tentar conciliar a preservação do meio ambien-te e a sustentabilidade das comunidades caboclo-ribeirinhas da Amazônia, o poderpúblico tem empregado diversos esforços. Um deles é a criação de unidades deconservação de uso sustentável, como as Reservas Extrativistas (Resex), no âmbitofederal, e as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), no âmbito estadual,previstas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (S. N. U. C.), criado em18 de julho de 2000. Essas duas modalidades de reservas são áreas naturais protegi-das que abrigam populações caboclo-ribeirinhas da várzea amazônica, cuja existên-cia baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais. O objetodo projeto de pesquisa apresentado ao PPGSCA é instituir um modelo de desen-volvimento sustentável que possa ser adotado pelas RDS’s, mais especificamente ade Mamirauá, localizada na confluência dos rios Solimões, Japurá e Auati-Paraná (à

Page 38: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A impor tância dos fatores socioculturais...

distância de 450 km de Manaus) e com uma área de 1.124.000 ha. A escolha deve-se ao fato da RDS de Mamirauá, criada pelo Decreto estadual n.º 12.836, de 9 demarço de 1990, ter sido a primeira do gênero no país e já possuir uma trajetória dedezoito anos de existência se tomarmos como marco de sua implantação a solicita-ção encaminhada pelo biólogo José Márcio Ayres ao Governo do Estado do Ama-zonas, em 1985, para a criação de uma área de proteção para o primata Uacaribranco (cacajao calvus calvus).

Também figura como fator importante na escolha da RDS de Mamirauácomo objeto da pesquisa a sua proposta de preservação da natureza, que contemplaa permanência dos moradores na reserva e a melhoria das suas condições de vida.Mamirauá aposta na presença e na participação dessas populações residentes, usuáriasdos recursos naturais e no investimento, a partir de pesquisas, na produção de co-nhecimentos relacionados a práticas de manejo como forma de obter sucesso emsua sustentabilidade. Para tal, tornou-se vital o estabelecimento de um processo decomunicação entre o gestor da RDS, o Instituto de Desenvolvimento SustentávelMamirauá (IDSM), e as diversas comunidades existentes dentro da Reserva, cujoobjetivo foi internalizar nos moradores o discurso do desenvolvimento sustentável,ou seja, a necessidade deles manejarem os recursos naturais de forma a garantirtanto o seu sustento quanto a preservação do ecossistema local.

Resumidamente, o objetivo da pesquisa é analisar o processo de comunica-ção estabelecido entre os gestores da RDS e as comunidades residentes de Mamirauá.Na medida em que Mamirauá apresenta-se para o público externo como modelopromissor no campo das unidades de conservação de uso sustentável, cabe averi-guar como a comunicação contribuiu para a criação, desenvolvimento e manuten-ção da reserva. O estudo da gestão da comunicação em Mamirauá (estratégias,métodos e instrumentos), que enfrenta obstáculos como as grandes distâncias entreo centro emissor das mensagens e as comunidades, o nível baixo de informação dopúblico alvo, os diferentes estágios de organização social das comunidades e fatoresculturais, pode apontar caminhos a serem aproveitados em outras unidades de con-servação de uso sustentável ou até mesmo indicar pontos a serem corrigidos nosentido de corroborar para o melhor funcionamento da RDS Mamirauá.

Uma vez entendida a proposta da pesquisa, convém trazer à tona algunsfatores importantes que devem ser considerados na elaboração de uma estratégia decomunicação visando atingir as comunidades caboclo-ribeirinhas. Levando-se em

Page 39: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

3 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allan. S. B. Rodrigues/Grace. S. Costa

conta que nenhuma fonte se comunica como livre agente, sem ser influenciada porsua posição no sistema sociocultural, o mesmo acontecendo em relação ao receptor,o emissor de uma mensagem dirigida aos moradores de uma comunidade da Ama-zônia precisa conhecer basicamente o contexto social dos indivíduos que pretendeatingir com seu discurso. Entre as informações básicas que julgo serem necessáriaspara tornar o processo de comunicação efetivo estão as características singularesdaquela região frente ao contexto nacional (nação e região), a formação social da-quela população e o perfil do homem da região (o caboclo). De posse destes dados,as chances do discurso ser entendido aumentam consideravelmente, pois:

[...] os sistemas social e cultural determinam em parte asescolhas de palavras que as pessoas usam, os objetivos quetêm para se comunicar, os canais que usam para esta ouaquela espécie de mensagem etc. Um norte-americano nãose comunica da mesma forma em que o faz um indonésio.Japoneses e alemães podem codificar mensagens iguais paraexprimir objetivos amplamente diversos, como podem co-dificar mensagens totalmente diferentes para exprimir osmesmos objetivos (BERLO, 1997, p. 57).

O entendimento do sistema sociocultural da Amazônia começa pela com-preensão da singularidade da região no contexto nacional, principalmente porqueestá em andamento um “processo de transformação profunda no planeta, no Brasile na Amazônia” (BECKER, 1994), o qual traz a hipótese de uma transformaçãodos conceitos de nação e região ainda não definida e imprevisível. No entanto, ater-nos-emos aos conceitos já postos sobre nação e região. O termo “nação pertence aum período particular, historicamente recente, principalmente os séculos XIX e XX,e se constitui como entidade social apenas quando relacionada à formação do Esta-do Nacional Moderno” (D’INÁCIO; SILVEIRA, 1996, p. 103), enquanto o con-ceito de região, que são sociedades locais variadas que constituem a dimensãoterritorializada do Estado-Nação, é bem mais antigo, definido somente após a for-mação do Estado Territorial Moderno. Portanto, estes dois elementos (nação e re-gião) são resultado de uma divisão criada pelos detentores do poder e pela práticasocial (decisões tecnocráticas e processos coletivos).

Aplicando esses conceitos ao caso concreto da pesquisa, encontramos oBrasil, um Estado-Nação de dimensões continentais localizado no hemisfério sul do

Page 40: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A impor tância dos fatores socioculturais...

continente americano, e a Amazônia, uma região rica em recursos naturais e conside-rada crítica tanto no contexto geopolítico mundial quanto na estrutura transicionaldo Estado brasileiro:

[...] A Amazônia se tornou símbolo do desafio ecológico,envolvendo ao mesmo tempo a consciência, a utopia e aideologia ecológica. Isto a valoriza como capital-natureza,por ser o maior banco genético do planeta, o lugar demaior biodiversidade do mundo e, portanto, fonte pri-mordial para a ciência e tecnologia, ou seja, para abiotecnologia. Trata-se, assim, de uma valorização do pontode vista geopolítico externo. Ao mesmo tempo nossos ato-res e movimentos sociais afetam e fragmentam a região,no âmbito da geopolítica interna (D’INÁCIO; SILVEIRA,1996, p. 108).

A ação dos atores e movimentos sociais que afetam e fragmentam a regiãoamazônica, citados acima por D’Inácio e Silveira, remetem a outro ponto importantepara a melhor compreensão do sistema sociocultural da Amazônia: a sua ocupação ea conseqüente formação social de seus habitantes. Na verdade, a planície amazônica jáera ocupada por milhares de indígenas que se espalhavam por toda a sua extensãomuito antes dos primeiros espanhóis e portugueses navegarem pelo rio Amazonas noséculo XVI, durante o período das grandes navegações e da expansão dos dois impé-rios ibéricos. Com a chegada dos colonizadores, que trouxeram consigo os negrosescravos do continente africano para explorar a madeira e as chamadas drogas dosertão, deu-se início à ocupação conflituosa da região, que resultou, além da mestiçagemdas três raças (branco, negro e o índio), no desaparecimento de inúmeros povos indí-genas e na perda da base cultural de boa parte dos sobreviventes.

Outra forte corrente migratória para a região ocorreu no final do séculoXIX e nos primeiros anos do século XX, quando milhares de nordestinos vierampara a Amazônia atraídos pelo apogeu da economia da borracha. Em 1839, oamericano Charles Goodyear inventou o processo de vulcanização da borracha,viabilizando sua utilização em escala industrial. Anos depois, com as invenções dabicicleta e do automóvel, milhares de indústrias de transformação, que se instalaramna Europa e nos Estados Unidos, criaram uma grande demanda de mercado paraos produtos pneumáticos. Esse quadro fez da região amazônica a principal exporta-

Page 41: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allan. S. B. Rodrigues/Grace. S. Costa

dora mundial de borracha in natura, atingindo a marca de 1.395 toneladas em 1851,desencadeando a necessidade cada vez maior de mão-de-obra para extrair o látexdas seringueiras. Foi neste contexto que, segundo o historiador Caio Prado Júnior(apud FIGUEIREDO, 2002, p. 79), aproximadamente 500 mil pessoas deixaramseus Estados em busca do “dinheiro fácil” da borracha, dos quais 350 mil eramnordestinos.

A economia gomífera gerou um surto de desenvolvimento na região que,todavia, durou pouco. Em 1876, um inglês chamado Henry Wilckham deu início àderrocada da borracha, cometendo o ato de biopirataria mais nocivo à região quese tem registro. Wilckham coletou sessenta mil sementes de seringueiras e levou-asclandestinamente para o jardim de Kew, na Inglaterra. Sete mil sementes brotaramnos viveiros ingleses e foram transplantadas para o Ceilão, possessão inglesa na Ásiaconhecida hoje como Sri Lanca, onde as seringueiras foram adaptadas para umacultura em larga escala. Dez anos depois (1906), tempo necessário para as árvorescomeçarem a produzir, a Ásia tirou o monopólio da borracha da Amazônia, jogan-do a região em uma grande crise. Em pouco tempo, apesar das várias tentativasgovernamentais de evitar o colapso da economia gomífera, o mercado foi domina-do pelos ingleses. Entre as principais conseqüências, destaca-se o alargamento damiséria, devido à falência das firmas locais e à fuga das estrangeiras para paísesasiáticos, gerando uma massa de desempregados nas cidades e o fechamento dosseringais no interior (grande parte nordestinos).

Os nordestinos voltaram a migrar em grande quantidade para a região du-rante a 2.a Guerra Mundial, quando o Eixo (formado pela Alemanha, Japão e Itália)interrompeu as rotas marítimas da borracha vinda da Ásia. A necessidade de obtera matéria-prima para fabricar os pneus para seus veículos de guerra, levou os Esta-dos Unidos a firmarem um acordo com o governo brasileiro para reabrir os serin-gais abandonados da Amazônia. A extração do látex ficou a cargo de cerca de 53mil nordestinos, denominados “soldados da borracha” (FIGUEIREDO, 2002),que se embrenharam na selva úmida com a promessa de serem recompensadosfinanceiramente pelo governo e de receberem o mesmo reconhecimento dado aoscombatentes (pracinhas) que lutaram no front de batalha. A rendição dos alemães em1945 legou novamente o esquecimento aos seringais e aos soldados da borracha,que recebem, até hoje, apenas dois salários mínimos de aposentadoria, sem direito a13.o salário, e nunca receberam o status de veteranos de guerra. Estima-se que 20 mil

Page 42: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A impor tância dos fatores socioculturais...

soldados da borracha tenham morrido nos seringais de doenças tropicais, ataquesde animais selvagens, entre outras causas.

Nas décadas seguintes, a região foi afetada pelos chamados “grandes proje-tos” para a Amazônia. Durante os governos militares, dois destes projetos merecemespecial deferência: o primeiro veio com o slogan “Integrar para não entregar”, etratava-se de abrir estradas de ligação entre o Sul, Sudeste e Centro-oeste do país eos Estados amazônicos. Daí surgiram rodovias como a BR-364 (que liga Rio Bran-co, no Acre, a Porto Velho, em Rondônia), BR-010 (Belém/Brasília) e a BR-380(Transamazônica); o segundo foi a criação da Zona Franca de Manaus (ZFM), queresultou no surgimento de um pólo industrial avançado em plena floresta. Essasduas iniciativas governamentais de “desenvolver” a região têm em comum o fato deterem implicado em mudanças profundas referentes à ocupação do espaço e aomodo de vida dos habitantes da Amazônia. A abertura de estradas facilitou a chega-da de novas frentes migratórias vindas de outros Estados da federação, bem comoimpulsionou a extração de madeira e a supressão da floresta para dar lugar a pastose plantações. A ZFM, por sua vez, mudou radicalmente a economia do Amazonase trouxe para a capital, Manaus, uma massa de interioranos fugidos do isolamento eem busca de melhores condições de vida.

Muitos outros fatores influenciaram a formação do atual sistema socioculturalda Amazônia e, conseqüentemente, de suas comunidades tradicionais, porém, serianecessário um trabalho investigativo específico apenas para citá-los e analisar seusimpactos. Cito apenas alguns com o objetivo de melhor ilustrar que:

Os conflitos que ocorrem na Amazônia decorrem das con-tradições intrínsecas à inserção do Brasil no sistema capita-lista mundial e à reorganização acelerada da sociedade bra-sileira. Cabe assim reiterar o conteúdo exótico com o qualsão revestidos seus problemas, tratados como mitos, masque não pertencem só a ela e sim a toda sociedade nacio-nal” (BECKER, 1994, p. 7).

Dessa forma, fica claro que:

As regiões não são entidades autônomas. Pelo contrário, seconstituem a partir de diferenças que apresentam em rela-ção a outras e do papel diferenciado que exercem no con-junto da sociedade e do espaço nacional. É nesse contexto

Page 43: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allan. S. B. Rodrigues/Grace. S. Costa

que se pode entender a Amazônia, rompendo com algunsmitos que a envolvem (BECKER, 1994, p. 8).

De posse de informações a respeito da formação do sistema socioculturalda região, é possível tentar entender um pouco sobre o homem da região, cujo perfilfoi grandemente influenciado pelos fatores citados anteriormente referentes à ocu-pação da região. Para Reis (1997), a grande maioria dos caboclos amazônicos des-cende dos “tapuios”, índios que deixaram a vida tribal e se estabeleceram ao longodos rios, lagos, igarapés, paranás e pequenos sítios:

Os caboclos amazônicos, afeiçoados à terra, vivem placi-damente sem revelar ambições. Senhores, como ninguém,de quanto o meio possui de característico ou não, mantêm-se de acordo com o próprio meio. São um produto típicodas forças telúricas. Remadores, construtores de embarca-ções, pescadores e sertanistas. A floresta e as águas nãolhes oferecem segredos. Sabem percorrê-las e sulcá-las semhesitações ou receios. Toda a flora e a fauna, com seushábitos e particularidades, eles identificam rápida e segura-mente. A alimentação é a que lhe fornecem os rios, oslagos e a floresta, com os pescados, a caça, os frutos, quecomem ou de que fazem bebidas. Frugalíssimo, contenta-se com o pouco que obtém (REIS, 1997, p. 231).

Ainda buscando na obra de Arthur Cézar Ferreira Reis subsídios para ilus-trar de forma mais eficiente o caboclo, cito a seguir mais algumas característicasdescritas pelo autor sobre o homem da região amazônica:

Plantam a mandioca, com que preparam farinhas, bananei-ras, pimenteiras e pouco mais. Manifestam aptidão invulgarpara os ofícios mecânicos. Artesãos magníficos, trabalhama matéria-prima local com uma técnica admirável. Vagaro-sos, aparentando displicência, permitem a impressão deindiferentes, abstratos, preguiçosos, quando na realidade oque lhes dá pinta exata é a desambição... Dóceis, meio au-sentes, falam com brandura e escassamente. Quando seaborrecem, ou se sentem vítimas de exploração ou despre-zo, preferem retirar-se, aos gestos de exaltação. Só muitoraramente, por isso, se exasperam. Então toda aquela capade docilidade desaparece violentamente (REIS, 1997, p. 232).

Page 44: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A impor tância dos fatores socioculturais...

Retomando o objetivo delegado a esse artigo – evidenciar a importância dealguns elementos do contexto social em que estão inseridas as populações caboclo-ribeirinhas amazônidas da várzea amazônica no estabelecimento de um processo decomunicação efetivo em relação à difusão do discurso do desenvolvimento susten-tável – é possível notar que as informações a respeito da região, sua formaçãocultural, conflitos e, finalmente, o homem que nela habita, são extremamente neces-sárias ao comunicador (emissor ou fonte do discurso). Isso porque a elaboração deum discurso visando conquistar “os corações e as mentes” das populações caboclo-ribeirinhas da várzea amazônica no sentido delas se tornarem agentes de um modelosustentável de desenvolvimento, passa obrigatoriamente pelo conhecimento de quaisconteúdos poderão ou não ser assimilados, levando-se em consideração uma gamade fatores socioculturais que o comunicador precisa ter conhecimento:

Se (o receptor) não conhece o código, não entenderá amensagem. Se nada sabe sobre o conteúdo da mensagem,provavelmente não poderá entendê-la. Se não compreen-der a natureza do processo de comunicação em si, são gran-des as perspectivas de que entenda mal as mensagens, tireconclusões incorretas sobre os objetivos ou intenções dafonte (BERLO, 1997, p. 58).

A Teoria da Recepção pode oferece ferramentas teóricas para a identifica-ção de quais elementos do discurso da sustentabilidade estão sendo assimilados ourejeitados pelos comunitários. Isso porque os teóricos da recepção consideram osreceptores das mensagens mais do que apenas depositários de informações, mas,sim, seres capazes de reformular conceitos baseados em fatores individuais (cultura,posição social etc.) (JAUSS, 1989). Desta forma, esta corrente teórica poderá forne-cer uma “lente” capaz de considerar os fatores socioculturais envolvidos nas esco-lhas feitas pelos moradores sobre quais conteúdos assimilar ou rejeitar.

Os estudos da recepção, na perspectiva desenvolvida na América Latina, apartir da década de 80, demonstram que existe a necessidade de dar maior atençãoao papel da cultura na relação estabelecida entre emissores e receptores (OROZCO-GÓMEZ, 1991). Assim como os estudos culturais, a pesquisa em comunicaçãovoltada para o pólo da recepção retoma a cultura como lugar onde se negociam ossignificados do intercâmbio social. Perceber as dimensões do conflito social, daformação de novos sujeitos – étnicos, regionais, religiosos, sexuais – e de formas

Page 45: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Allan. S. B. Rodrigues/Grace. S. Costa

novas de rebeldia e resistência é pensar os processos de comunicação a partir dacultura. Em suma, o enfoque dos estudos da recepção está centrado no conheci-mento dos hábitos cotidianos dos receptores e na exposição às mensagens, procu-rando compreender os usos que se faz dos conteúdos transmitidos e as reelaboraçõesocorridas em diferentes grupos sociais:

O conceito de mediação é fundamental na proposta deOROZCO-GÓMES (1991), sendo definido como o con-junto de influências provenientes tanto da mente do sujeitocomo de seu contexto sociocultural – incluindo as inter-venções dos agentes sociais e das instituições – queestruturam o processo do conhecimento. Assim, a recep-ção do discurso envolve diversas mediações: de referência,situacionais, institucionais, cognoscitivas e culturais (COS-TA, 1999, p. 126).

Logo, o estudo das mediações socioculturais presentes no cotidiano daspopulações caboclo-ribeirinhas da várzea amazônica da RDS Mamirauá apresen-ta-se como uma ferramenta importante na compreensão de como o discurso dodesenvolvimento sustentável veiculado pelo IDSM está sendo absorvido e, con-seqüentemente, reconstruído pelos receptores (moradores da reserva). De possedessa informação, seria possível, por exemplo: avaliar se as estratégias de comuni-cação empregadas estão ou não sendo efetivas; corrigir possíveis erros nos esfor-ços de difusão do discurso do desenvolvimento sustentável; e compreender me-lhor por que algumas mensagens provocam ou não mudanças comportamentaisnos receptores tendo em vista os fatores culturais envolvidos. Finalmente, com-preender como se dá a recepção, a apropriação das mensagens, a constituiçãosocial dos sentidos e encontrar alternativas de comunicação é trabalhar para am-pliar a troca cultural de maneira democrática, para fazer efetivas a pluralidade e adiferença que enriquecem a sociedade.

Notas

1 O conceito de populações caboclo-ribeirinhas utilizado neste artigo é o mesmodescrito por Fraxe (2004).

Page 46: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A impor tância dos fatores socioculturais...

Referências

BERLO, Devid Kenneth. O processo de comunicação: introdução à teoria e à prática. 8.ed. São Paulo, 1997.

BECKER, Berta. Amazônia. São Paulo: Editora Ática, 1994. p. 1-112.

_______. Estado, nação e região no final do século XX. In: D’INÁCIO, MariaÂngela; SILVEIRA, Isolda Maciel. Amazônia e a crise da modernização. Belém: MuseuParaense Emílio Goeldi, 1996. p. 103-109.

COSTA, Soraya Rodrigues. Entre o rural e o urbano: recepção de telenovela emSerra da Saudade – MG. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo: Intercom.1999.

FIGUEIREDO, Aguinaldo Nascimento. História geral do Amazonas. 2. ed. Manaus,2002.

FRAXE, Therezinha de Jesus Pinto. Cultura cabocla-ribeirinha: mitos, lendas etransculturalidade. São Paulo: Annablume, 2004.

JAUSS, Hans Robert. La Ifigenia de Goethe y la de Racine. In: WARNING, Rainer(Org.). Estética de la receotión. Tradução de Ricardo Sanchez Ortiz. Madri: Visor, 1989.(Colección La Balsa de le Medeive, 31).

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O caboclo e o brabo: notas sobre duasmodalidades de força-de-trabalho na expansão da fronteira amazônica no séculoXIX. In: Encontros com a civilização brasileira. Rio de Janeiro, 1979. p. 101-140. v. 11.

OLIVEN, Ruben George. Nação e Região na identidade brasileira. In: ZARUR,George de Cerqueira de Leite (Org.). Região e nação na América Latina. Brasília: Edito-ra Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,2000. p 65-80.

OROZCO-GÓMEZ, G. Recepción televisiva: três aproximaciones y una razón para suestúdio. Méjico, D.F.: Universidad Iberoamericana, mar. 1991. (Cuadernos deComunicación y Prácticas Sociales, 2).

REIS, Arthur Cézar Ferreira. O seringal e o seringueiro. Manaus: Editora da Universida-de do Amazonas: Governo do Estado do Amazonas, 1997. p. 1-297.

Page 47: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Fabiane Maia Garcia**

João Bosco Ferreira***

ResumoFruto da análise do pensamento e da obra de Dalcídio Jurandir, o texto retrata aconstituição de sua vida enquanto parte da obra, levantando pontos que constituema identidade do caboclo amazônico. Neste trabalho, o homem, enquanto parte danatureza que Dalcídio apresenta, é retratado de forma lírica. Encanto e desvelarfazem parte do contexto que busca ver o caboclo na natureza, enquanto justapõe amulher-mãe em uma mesma simbologia. O texto é um apelo para desvendar quemé Dalcídio. Nele estão as pistas de como um caboclo se vê, seu auto-retrato.

Palavras-chave: natureza; caboclo; mulher; terra; água.

AbstractStemming from the analysis of the thought and work of Dalcídio Jurandir the textportrays the constitution of his life as part of the work, raising aspects which constitutesthe identity of the “caboclo”. In this work the man as part of the nature that Dalcídiopresents is portrayed in a lyrical fashion. Enchanthent and unveiling are part of thecontext that juxtaposes the woman-mother within the same symbol ism. The text isan appeal to unmask who is Dalcídio. The way the “caboclo” sees himself, his self.Portrait is within Dalcídio’s work.

Keywords: nature; caboclo; woman; earth; water.

O modo de ser e viver o caboclo por Dalcídio Jurandir*

* Este ar tigo é fruto dos estudos propostos na Disciplina Pensamento Social na Amazônia, orientado pelo Prof. Dr. ErnestoRenan Melo Freitas Pinto e pela Prof.ª Dra. Heloísa Lara Campos da Costa.

** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.*** Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.

Page 48: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O modo de ser e viver o caboclo...

O olhar sobre a Amazônia e seus múltiplos significados na constituição daimagem do caboclo tem sido objeto de discussão e análise na academia. O cabocloe seu retratar é tomado a partir dos cronistas e desemboca nas mais variadas formasde mídia que expõem para o mundo o modo de ser e de viver do amazônida. Daspercepções estereotipadas propostas no relato dos viajantes, a justaposição de ima-gens da vida do caboclo é a visão externa que monta e apresenta o perfil de comoo nosso povo se constitui.

O retrato do caboclo pelo caboclo não tem fugido à homogeneidade deconsiderá-lo bandido, herói ou vítima de um processo histórico. Porém, algumasobras merecem um olhar, uma análise e um retratar específicos não apenas porfugir, mas por usar uma linguagem que consegue realçar aspectos cotidianos e quasepsicológicos de como o caboclo vive e sente sua vida em relação e como parteintrínseca da natureza.

O conjunto da obra de Dalcídio Jurandir apresenta-se como uma portapara o adentrar e o compreender do caboclo amazônico. O entendimento da obrapressupõe o entendimento da vida do próprio autor. Vida e obra constituem ver-tentes de um pensamento e viver do que é a Amazônia e do que é ser caboclo.

Outro fator fundamental para se trazer à tona o pensamento dalcidiano é apouca notoriedade que sua obra encontra no meio acadêmico. É possível constatarque a maioria dos estudos no campo literário ou histórico não referenda o autor ousua obra enquanto mecanismo de compreensão e dissociação do que é ser caboclo.Dividir o que foi fruto da análise bibliográfica e das percepções que a obra deDalcídio provoca supõe-se indispensável para as atuais discussões que retratam avida e o modo de ser do caboclo.

Obra e autor não se separam. Dalcídio Jurandir nasceu na Vila de Ponta dePedras, Ilha de Marajó, Estado do Pará, em 1909. Aos nove anos mudou-se paraCampos de Cachoeira (mais tarde Vila de Cachoeira), na mesma ilha.

Foi a natureza primitiva de Cachoeira (com seu rio Arari, suas palafitas,seus campos molhados) que compôs todo o cenário de sua infância. No pequenopovoado de pescadores e criadores de gado, viveu até os treze anos e, com a mãe,nos momentos em que esta voltava dos afazeres no fogão ou da máquina decostura, aprendeu a ler e a escrever, passando a ler os livros da biblioteca dopróprio pai; o que possibilitou, desde cedo, desenvolver senso crítico acerca detudo aquilo que observava.

Page 49: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

4 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Fabiane Maia Garcia/João Bosco Fer reira

Em 1922, foi morar com parentes em Belém, onde se matriculou no tercei-ro ano do Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Na escola primária, conheceu adiscriminação. A maioria de seus “colegas” era formada por filhos de famílias abas-tadas pelo ciclo da borracha, por negócios da pesca ou outros extrativismos. Entre-tanto, o menino pobre de Cachoeira usou de sua precocidade crítica para compen-sar diferenças sociais. Senso crítico este que iria, mais tarde, fornecer ao romancista omote para várias de suas páginas, onde passaram a se entrelaçar, a partir das obser-vações do dia-a-dia, a evocação sentimental e o refinamento psicológico.

Três anos depois de sua chegada a Belém, foi para o ginásio. Porém, asdificuldades financeiras e a timidez de adolescente o inibiram para os exames prepa-ratórios, o que resultou em sua não ida para o Curso Ginasial. E o próprio Jurandirlembra: “Era em junho de 1926. Tinha capiscado ano e meio de ‘humanidades’ eassim entrei no mundo, sem nenhuma letra, sem nenhuma aptidão, chocando a ju-ventude pelo subúrbio” (PEREZ, 1971).

Aos dezoito anos experimentou a primeira grande aventura de sua vida; erao ano de 1928 quando viajou para o Rio de Janeiro. Lá chegando, sem recursos parasobrevivência, passou a trabalhar como lavador de pratos em um restaurante e,semanas depois, foi admitido, sem remuneração, como revisor na redação da Revis-ta Fon-Fon.

Regressou para Belém no mesmo navio em que fora para o Rio de Janeiro,o “Duque de Caxias” e, para pagar a passagem, serviu como copeiro. Enquantoisso, o amigo Dr. Raynero Maroja emprestava-lhe livros de escritores clássicos por-tugueses e de poetas nacionais.

Em 1929, foi nomeado pelo amigo Maroja, que era intendente municipalem Gurupá, no baixo Amazonas, tesoureiro da Intendência Municipal. Em Gurupá,escreveu a primeira versão de Chove nos campos de cachoeira e, depois de ter deixado oemprego, em 1931, concluiu um livro de contos e um romance no qual narra recor-dações da infância em Marajó. Sua produção literária não mais parou e, de volta aBelém, passou a colaborar com os jornais O imparcial e Estado do Pará e com asrevistas Escola, Guajarina e A semana.

O engajamento político de Dalcídio Jurandir o levou à militância no movi-mento Aliança Nacional Libertadora (ANL); o que lhe custou sua primeira prisão em1936. Mesmo na prisão, incomunicável, conseguiu levar consigo Dom Quixote e, nosdois meses em que ficou preso, Quixote, Sancho Pança e Dulcinéia foram suas companhi-

Page 50: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O modo de ser e viver o caboclo...

as diárias. Tendo deixado a prisão, continuou a militância contra o fascismo e, no anoseguinte, foi novamente preso, tendo ficado em reclusão por quatro meses.

Em 1939, foi para Salvaterra, Marajó, onde passou a exercer o cargo deinspetor escolar; reescreveu Chove nos campos de cachoeira, escreveu seu segundo roman-ce, Marinatambalo, publicado mais tarde com o nome de Marajó. Também em Salvaterracolaborou em duas revistas: Terra imatura e Pará ilustrado. No ano seguinte, transferiu-se para Santarém para exercer as funções de secretário da Delegacia de Recensea-mento e, neste mesmo ano, conquistou o primeiro lugar em um concurso literáriopromovido pelo jornal Dom Casmurro e pela editora Vecchi, concorrendo com apro-ximadamente uma centena de escritores. Faziam parte da comissão julgadora JorgeAmado, Oswald de Andrade, Álvaro Moreyra e Rachel de Queiroz.

Vencer o concurso rendeu-lhe o lançamento, no Rio de Janeiro, de Chove noscampos de cachoeira, publicado pela Editora Vecchi em 1941, mesmo ano em que voltoupara aquela cidade e passou a colaborar em vários jornais e revistas, tais como Diário denotícias, Correio da manhã, O cruzeiro, Tribuna popular, O jornal e A classe operária.

Tão aclamado pela crítica quanto o primeiro, Marajó, seu segundo romance,foi publicado em 1947 pela José Olympio Editora.

Em 1950 Dalcídio Jurandir, então repórter da Imprensa popular, viajou parao Rio Grande do Sul onde pesquisou o movimento operário no porto de RioGrande, colhendo subsídios para o livro que escreveria mais tarde Linha do parque,concluído em 1955, publicado em 1959.

Sua militância política não lhe rendeu apenas prisões. Foi graças a ela queviajou à União Soviética em 1952 e ao Chile no ano seguinte, onde participou doCongresso Continental de Cultura. Além disso, em 1963, em Moscou, foi lançada aedição russa de seu livro Linha do Parque, apresentado por Jorge Amado.

Com Belém do Grão Pará, romance lançado em 1960, conquistou o prêmioPaula Brito, oferecido pela Biblioteca do Estado da Guanabara e o prêmio LuizaCláudio de Souza, instituído pelo Pen Clube do Brasil.

O conjunto da obra de Dalcídio Jurandir é tão vasto quanto foi intensa suamilitância política e, em 1972, obra e autor foram reconhecidos pela AcademiaBrasileira de Letras, que conferiu a ele o prêmio “Machado de Assis”.

Dalcídio Jurandir não voltou para seus Campos de cachoeira, não reviu as Ri-banceiras, nem revisitou sua Belém do Grão Pará para um último passeio pela Ponte dogalo ou pela Passagem dos inocentes; morreu, no Rio de Janeiro, em 16 de junho de 1979.

Page 51: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Fabiane Maia Garcia/João Bosco Fer reira

Sobre o pensamento dalcidiano

A obra de Dalcídio Jurandir compõe um conjunto de ficções que apresentaum grande retrato da Amazônia sem ser exclusivamente regionalista ou excessiva-mente generalista. Trata-se de uma narrativa densa, recheada de aventuras e revestidade experiências interiores vividas por quem soube transformar em livros, linguajarese viveres locais e regionais, em caminhos que serão percorridos pelo leitor-viajanteque desejar melhor conhecer a região e sua gente.

O que o leitor vai encontrar é uma leitura que traz para a ficção valoresculturais amazônicos que extrapolam fronteiras e se defrontam com outros valores,outras regiões numa relação dialética que consolida afirmação e negação dessesmesmos valores sem, contudo, sobrepor-se o regional acima do nacional, neminferiorizá-lo em relação às demais regiões. A linguagem dalcidiana não é apenas um“falar pitoresco repleto de cores locais”, ao contrário, apresenta-se plena demodernidade, como nos chama a atenção Sílvio Holanda (2001), ao destacar umpequeno trecho de Marajó: “Os japiins mais de longe teimavam disfarçar aquelasolidão grande que espremia da terra aqueles rios de miséria e febres caminhandopara a baía”. Destaca, ainda, a regionalidade ao comentar que o lexical regionaljapiins (pássaro de plumagem negra) referencia uma região brasileira, sem tornarincompreensível a construção hiperbólico-metafórica rios de miséria e febres, interpretávelmesmo pelo leitor que não tenha navegado pelos rios Arari e Marajó-Açu.

Ainda a propósito da regionalidade, no Pequeno dicionário da literatura brasilei-ra, encontra-se o seguinte registro:

Com exceção de Linha do parque (1958), os demais roman-ces de Dalcídio Jurandir integram a série ‘Extremo Norte’[...]. Nessa série cíclica, propõe-se o romancista a fixar, emtermos de ficção, a vida ribeirinha de Marajó e aspectossociais de Belém nas últimas décadas. À base de reminis-cências autobiográficas, tal fixação faz com que preocupa-ções, de análise introspectiva, ou de levantamento socioló-gico, se tornem numa prosa difusa, a que o linguajar pito-resco da região empresta cor local (PAES, 1980).

A prosa dalcidiana traz, num imaginário rico e diversificado, o desconstruirfreqüente do caos, da morte e do desalento. Ao construir seu imaginário, ele serefere à cultura amazônica – o rio, a cobra grande, o boto – entremeada pela dor

Page 52: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O modo de ser e viver o caboclo...

trazida pela morte e por uma infância destruída. Este seu imaginário do caos e dodesalento não traduz, contudo, uma prisão ou dependência absoluta de uma visãomítica da Amazônia; ao contrário, percebe-se uma empreitada na busca de liberta-ção, uma resistência ao mito como justificativa para a injustiça social. O sobrenaturalaparece não como determinador de fatalismos ou acomodações às exploraçõeseconômica, social e cultural; ele se apresenta como “poder natural” presente nospajés, na cobra grande ou nos encantos refletidos nos mistérios das águas de Guajará.

As imagens apresentadas por Dalcídio Jurandir surgem mais como a des-crição do mundo, provocada pela ordem senhorial, do que propriamente comouma poética mítica. O leito das cobras grandes foi demarcado pelo latifúndio, guar-dado pelos rifles dos coronéis, num processo que chega aos dias de hoje, quando sesabe que três ou quatro famílias dividem entre si a maior ilha flúvio-marinha domundo, numa geografia que esconde as misérias contemporâneas entregues ao im-pério da fome e do analfabetismo.

O autor de Três casas e um rio não precisa buscar, no folclore ou nas lendas,explicações que dêem conta da riqueza e da identidade cultural quer da ilha de Marajó,quer de Belém do Grão Pará. Pelo contrário, ao transportar para a literatura os aspectossociais e culturais da região, ele cria um texto que engloba o mítico e o não mítico, nacerteza de que sem esse consórcio dialético e paradoxal não se pode compreenderuma das formações sociais mais singulares da cultura amazônica.

Suas construções lingüísticas não se resumem em meros ornamentos narra-tivos ou descrições de uma beleza vazia que tenta saciar a fome material ou cultural.Pelo contrário, o imaginário traz consigo a crítica social como reflexo de sua vivênciae militância política. O engajamento está presente não apenas no discurso, mas nocompromisso com o homem e na luta contra a opressão.

Presença marcante na obra de Dalcídio Jurandir, a mulher também extrapolao simples ornamento ficcional ou decorativo da narração. Suas personagens femini-nas não podem ser vistas apenas como retratos etnográficos da ilha de Marajó; elasincorporam-se à terra, à água, ao lodaçal e à vegetação como forma de resistência àopressão a que são submetidas. O entrelaçamento da mulher à natureza produz aerotização da personagem feminina pela sua integração a elementos naturais, comose nos apresenta Alaíde:

Colada ao tronco, enganchada no galho, meio sumida entreas folhas, balançando ao ramo, Alaíde parecia possuída pelo

Page 53: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Fabiane Maia Garcia/João Bosco Fer reira

cajueiro. [...] Alaíde, como uma filha das águas brancas, oscabelos de prata, o corpo de peixe, o cheiro de aninga. Nãopode evitar que Missunga a despisse, como descascasse umafruta [...] as águas caíam da lua, branca era a terra, o homem,e só a noite, com o peludo e escuro mistério, era o que Alaídecobria com as mãos (JURANDIR, 1978, p. 33-34).

Ao evidenciar a opressão denunciada por Dalcídio Jurandir, Sílvio Holandachama a atenção para a condição da mulher:

A mulher cabocla (do tupi kari’boca, procedente de branco),no mundo dos valores de que faz parte o coronel Coutinho,presta-se tão-somente à gratificação sexual dos brancos; trazo estigma da mestiçagem (branco/índio), marca de umacolonização portuguesa ainda presente nos nossos dias. Ohomem branco jamais deve amá-la sob pena de cair sob oinfluxo de uma maldade atavicamente concebida [...]. Alaídetem consciência da sorte que cabe à mulher no mundoregido pelos coronéis e/ou fazendeiros: Missunga [...] háde abandoná-la, preso irremediavelmente a um mundo que,paradoxalmente, considera bárbaro... (HOLANDA, 2001).

A mulher na obra de Jurandir traz força e potência ao se contrapor àsubmissão, ao buscar libertar-se de um mundo bárbaro e desvencilhar-se das es-truturas socioeconômicas arcaicas impostas pela exploração que submete homense natureza.

Estes elementos, Homem e natureza, fundem-se numa paisagem própria,destoante dos padrões turísticos europeus. Paisagem esta descrita como um enlacede sofrimento e magia. A descrição do desalento e da morte, a representação fantás-tica do feminino e a dimensão social integram-se e se fundem em uma unidadereveladora da hipocrisia social, política e religiosa da elite paraense do início doséculo XX.

Essas revelações e a revelação do próprio território amazônico tornam-seevidentes em Chove nos campos de cachoeira. Até sua publicação, esta percepção da Ama-zônia era quase que totalmente ignorada pela inteligência brasileira. Até então, a regiãoera conhecida pelo exotismo de sua paisagem: a Hiléia ou o Inferno Verde. A supre-macia do rio e da floresta subjugava o ser humano e, em geral, os escritores deti-nham-se em descrever a fauna e a flora, sem, contudo, penetrar na vida do homem

Page 54: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O modo de ser e viver o caboclo...

amazônico, sem perscrutar sua alma e seus sentimentos. Com a chegada do Moder-nismo e de Dalcídio Jurandir, a Amazônia pode ser lida visceralmente de dentropara fora.

Comparando-o a Inglês de Souza, também escritor amazônico e de quemJurandir seguiu a trilha, Paulo Nunes destaca que:

É fato que Jurandir – de algum modo – caminhou pelastrilhas abertas por Inglês de Souza, no século XIX. Mas[...] em Dalcídio, percebe-se a competência avassaladoraem desnudar a alma das personagens. Inglês de Souza es-creveu sua obra envolto nos emaranhados deterministas eevolucionistas, o que acabou limitando-lhe a criatividade.Percebe-se que Dalcídio introduz no cenário narrativo daliteratura brasileira uma faceta inexplorada: as angústias eas pequenas felicidades do homem ribeirinho – interioranoou citadino – da região Norte brasileira (NUNES, 2001).

A alma das personagens dalcidianas humaniza, com rostos múltiplos, cená-rios por onde transitam suas histórias e vidas. Belém, por exemplo, mais do que umlugar é uma personagem. A cidade se humaniza na medida em que vai sendo desco-berta e vivida, nas histórias, por personagens e tipos que demarcam as cenas e osepisódios narrativos. Mesmo que a natureza tenha força dramática; mesmo que setorne personagem, ela não é capaz de subjugar os homens e as mulheres que com elacontracenam. As personagens de Jurandir contagiam-se com a natureza, mas não sesubjugam a ela, como acontece freqüentemente nos escritos que o antecederam.

Passagem dos inocentes apresenta esta alma a humanizar cenário e trama narrati-va, quando revela os perigos da iniciação da puberdade, o fim da inocência e odespertar das inquietações da adolescência. A própria Amazônia encontra-se nesseestado de transformação ao surgir das águas, da floresta e do caos social onde seaglomeram os descendentes de senhores e de aventureiros, acotovelando-se à mul-tidão de descendentes de índios, de caboclos e de negros escravos. É na massamestiça de camponeses, pescadores, portuários, marítimos, artesãos, enfim, na gentemiúda e insignificante que Dalcídio vai encontrar seus personagens principais: a mas-sa miserável borbulha em suas páginas.

Os romances de Dalcídio Jurandir, de inspiração amazônica, formam ummosaico da vida cotidiana na Vila de Cachoeira, na foz do rio Amazonas e na cidade

Page 55: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Fabiane Maia Garcia/João Bosco Fer reira

de Belém. Marajó difere ligeiramente dos demais por ter outro conjunto de persona-gens. Entretanto, seu foco narrativo é o viver do dia-a-dia numa pequena comunida-de da ilha que lhe dá o nome e, o ciclo completo, nada mais é do que a evolução dostemas apresentados ou esboçados em Chove nos campos de cachoeira.

Seu principal assunto é a vida das pessoas de situação econômica menosfavorecida: a definição social de tal grupo, a pobreza de seus meios materiais, suasestratégias de sobrevivência e redes de apoio coletivo, sua moral ética e suas mani-festações culturais quer no interior (Cachoeira), quer na capital (Belém). Os noveromances do ciclo “Extremo Norte” concentram-se em torno da vida de sua prin-cipal personagem, Alfredo, desde a infância até a juventude; de Cachoeira a Belém ede volta a Cachoeira, enquanto sua mãe luta para mandá-lo para a cidade grandepara que ele possa ter acesso à instrução de melhor qualidade. Outras personagensimportantes entram e saem de cena: em Cachoeira, sua mãe preta, o pai branco, e anamorada Andreza; em Belém, vários parentes e conhecidos. Todos eles represen-tam os pobres, pescadores, costureiras, cozinheiros, vendedores ambulantes, fun-cionários públicos de baixo escalão, desempregados, vagabundos – a “gente maiscomum, tão ninguém” sobre a qual o autor se sentiu compelido a escrever já que suavisão do mundo inspirava-se nesta vida em movimento, em que há classes sociaisem luta.

Portanto, no conjunto de seus personagens há o fio condutor que estabelecea perfeita continuidade narrativa: o menino Alfredo de Chove nos campos de cachoeira vaiaparecer em Três casas e um rio, Belém do Grão Pará, Passagem dos inocentes, Primeira manhã,Ponte do galo e Os habitantes, em cada um deles vivendo, testemunhando e reportandoas tramas que tecem as histórias do “Extremo Norte”.

O caboclo que pensa ser caboclo quando chove nos campos de cachoeira

Reconhecido pelos pensadores que retrataram a Amazônia no último sécu-lo como um dos mais ousados e promissores escritores da região, Dalcídio Jurandirapesar de pouco conhecido na vida literária, presente nos meios educacionais, teveuma vida intelectual e política intensa. O romance Chove nos campos de cachoeira rompecom o conceito de romance literário em que as personagens principais são apresen-tadas a partir de virtudes e qualidades quase que inumanas. Narra, na maior parte daobra, as percepções que dois irmãos possuem em relação ao espaço físico e social aque estão circunscritos.

Page 56: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O modo de ser e viver o caboclo...

A obra não apresenta linearidade temporal. A questão do tempo e de comose compõe é parte da identidade e da suposta indolência de qualquer caboclo. São aslembranças e acontecimentos encadeados que remetem a uma nova apreensão queos irmãos possuem da realidade. Eutanásio e Alfredo estão em momentos diferen-tes de suas trajetórias pessoais, mas é Alfredo quem lança seu olhar sobre o cotidia-no e consegue narrar todo o sofrimento e introspecção a que ambos se submetem.

A condição física de Alfredo, com suas pernas marcadas por ferimentos,característico às crianças da região, é o primeiro tormento na vida que percebe,desde cedo, diferente em relação à dos filhos dos mais abastados. No texto, esteprocesso é retratado a partir da seguinte sensação: “Sentia-se humilhado quando suamãe ia lavar-lhe as feridas, e por mais que as mãos de D. Amélia fossem leves epacientes sentia que aquelas feridas nunca lhe deixariam de doer o desejo muito seude partir daqueles campos, de parecer diferente do que era”.

Alfredo é filho do Major Alberto que, após a viuvez passara a viver com acozinheira negra que, em alguns momentos, mesmo sendo o ponto de refúgio ecalmaria para Alfredo, é rejeitada em função de sua cor. Esse momento de rejeiçãoda mãe em função da cor da pele é outro conflito que a personagem não podesequer aceitar em função do grande amor que sente pela mãe. Os sentimentos ficamexplícitos quando se expõem:

[...]Alfredo achava esquisito que seu pai fosse branco e suamãe preta. Envergonhava-se por ter de achar esquisito. Maspodia a vila toda caçoar deles dois se saíssem juntos [...].Por que sua mãe não nascera mais clara? E logo sentiaremorso de ter feito a si mesmo tal pergunta. Eram pretasas mãos que saravam as feridas, pretos os seios [...], e aque-le sinal pretinho que sua mãe tinha no pescoço lhe davavagaroso desejo de o acariciar, beijando-lhe também oscabelos, se esquecer do caroço, do colégio, das feridas, dafebre, dos campos queimados avançando para a vila den-tro da noite no galope do vento. Ficar assim como se pelaprimeira vez de repente, compreendesse que tinha mãe, aprimeira e real sensação de que era filho, de que brotara,de súbito, daquela carne escura.

D. Amélia é uma pretinha de Mauaná, neta de escrava, dançadeira de coco,de iguestes nas ilhas, perna tuíra, atirada ao trabalho como um homem e, como na

Page 57: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Fabiane Maia Garcia/João Bosco Fer reira

vida de qualquer caboclo, a mãe é também presença constante na vida de Alfredo. Érepresentada em função dos acontecimentos e da sensação de abandono em váriosmomentos da obra:

Aquele sono sem cantiga foi o primeiro abandono. A pri-meira sensação de que não era mais menino para ser em-balado [...]. Deixa-se cair na rede desalentado [...]. Ninguémse interessava por ele. O pai era indiferente. A mãe só davapela existência da escola quando sentia a falta de Eutanásioem casa [...]. Alfredo sentiu que o mundo tinha o seu ladocada vez mais injusto, mais duro [...]. Os meninos do mun-do inteiro não conhecem o carocinho de tucumã de Alfredo[...]. O carocinho tem a magia, sabe dar o Universo a Alfredo[...]. Seu pai era aquele homem que [...] vivia entre os catá-logos, sem dar, não por que fosse austero, a intimidade queo filho sonhava [...]. Alfredo via-se solitário, cada vez maisdesconhecendo o que se passava em torno de sua solidão.

A presença forte da mulher no cotidiano de Cachoeira vai desde a ingenui-dade da infância, passa pelas descobertas adolescentes, prossegue nas amarguras deum amor inconfessado e reprimido, chegando à maturidade de mãe-mulher a po-voar corações e mentes de Alfredo, Eutanásio, Honório, e tantos outros que, um aum, se encantam ou desencantam em amores sonhados, roubados, traídos oucorrespondidos. Uma narrativa que, a um só tempo, revela e denuncia a pureza desentimentos quebrada pelo poder do menino rico da cidade, Resendinho, que chegae engravida a moça do interior.

Essa presença feminina em Chove nos campos de cachoeira apresenta-se às vezescomo uma simbiose total com a natureza, quando ela se mostra como a mulher-mãe, a mulher-amante, mesmo que nos sonhos; outras vezes, a mesma mãe-nature-za faz clara sua supremacia ao oferecer vida e morte:

Para Clara o mundo era aquele taperebá, aquela mangaaqueles beijos. Dava para Alfredo muruci com açúcar amas-sado com as suas mãos. E lambia e chupava os dedos lam-buzados de muruci e açúcar. Os dedos pareciam mais gos-tosos do que o próprio muruci. Era como uma criaturaque tivesse nascido também das fruteiras, dos murucizeiros,das resinas, dos mururés, daquelas águas e daqueles peixes

Page 58: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O modo de ser e viver o caboclo...

que as grandes chuvas traziam para Cachoeira. [...] Claranão era como as outras moças e meninas que vieram de-pois, lhe dando tentações, curiosidades viciosas, proibições,faz-de-conta lhe fazendo cada vez mais entendido e triste,desconfiado. [...] Ouviu também, uma tarde, sua mãe con-versando com Major Alberto: Está aí o que Clara foi fazerno Araquiçaua. Uma menina que sabia nadar tão bem... –Quem, mamãe? Perguntou Alfredo, assustado. [...] Mas suamãe não respondeu mais nada. [...] A pergunta voltou paradentro de si e ficou para sempre. [...] Dona Amélia nãogostava de recordar histórias de afogados. [...] Se escondeuna esperança de um dia ver Clara estendida de novo nacama. A todo momento podia aparecer, podia vir dos cam-pos, entre os matupiris e os morurés. Vir pela água com ovestido pesado, as sanguessugas agarradas nas pernas o sor-riso cheirando a bacuri e a boca cheia de resina. PoderiaClara ficar reduzida a uma caveira? [...] Para onde teria idoo riso dos dentes de Clara? Sonhou: Clara, com os pésnágua como raízes e pelo nu [...] as frutas nasciam já madu-ras, amarelinhas. [...] Quanto mais se apanhava fruta docorpo de Clara, mas nascia fruta. Clara ou a morte de Cla-ra tinha de ficar mistério dentro de Alfredo. [...] Com amorte de Clara as frutas deixaram de ser, como eram, tãogostosas.

A aquonarrativa é o sotaque literário dalcidiano que descreve coerente-mente o estado anfíbio de ser do homem amazônico. Na Amazônia, viemos daágua e, em muitas circunstâncias, à água voltaremos. Mas o que fascina nestadalcidiana escrita é o fato de se perceber um estilo encharcado, em que o narradormanipula, conforme suas necessidades, a construção de parágrafos longos, algu-mas vezes demarcados por uma pontuação que não obedece rigorosamente aosmoldes gramaticais.

A aquonarrativa, enquanto estilo, sustenta-se pela poetização do discurso,associada ao uso equilibrado das linguagens popular e literária. Ler as trajetórias deEutanásio, Alfredo, Clara ou D. Amélia, personagens, homens e mulheres de papelexemplarmente tão bem construídos por Dalcídio Jurandir, é percorrer a trajetóriacronológica do próprio romance Chove nos campos de cachoeira, é absorver mais coe-rentemente as dores do mundo, é solidarizar-se com os que possuem talento e oexpressam com a mesma naturalidade que a natureza.

Page 59: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

5 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Fabiane Maia Garcia/João Bosco Fer reira

O que pensar sobre aquele que pensou e retratou o caboclo de manei-ra tão particular?

Dalcídio Jurandir representa o pensamento amazônico, em especial oparaense, sem ser exclusivamente regionalista nem excessivamente generalista. Narrade forma clara e lúcida, a trajetória de vida de um menino que é ele próprio e, aomesmo tempo, são todos os meninos pobres que, aos poucos, descobrem o mun-do e as mais injustas discriminações. Este menino cresce, faz-se homem e continuasua trajetória perante o mundo natural e urbano, tomando, gradativamente consci-ência da exploração a que é submetido, denuncia numa torrente apaixonada de vidaem movimento. Entretanto, as experiências vividas pelo próprio autor não fazem desua obra uma autobiografia nem um simples documentário. Sua narrativa oscilaentre a ficção e a realidade, ambas retratadas dentro de um fluxo histórico coerentee sedimentado por personagens recorrentes que estabelecem o fio condutor entre asvárias histórias.

Chove nos campos de cachoeira surgiu no momento em que o romance brasileiro,especialmente o regionalista, estava em pleno desenvolvimento; entretanto, sua van-tagem é a capacidade de ser regional sem ser bairrista, tratar de uma região a partirdo que ela mais tem de próprio e universal a um só tempo.

A força e a beleza de seu texto fazem de Chove nos campos de cachoeira umclássico da ficção amazônica que não pode ficar obscurecido.

Ao tomar conhecimento de sua biografia e saber que era de origem pobre,sequer pertencente à classe média, entende-se melhor o seu realismo. A experiênciade vida que, em princípio pode não parecer tão importante, foi decisiva para atransposição da pobreza socioeconômica para as personagens, particularmente dociclo “Extremo Norte”.

Embora permaneça relativamente desconhecido ou ignorado pela maioriados críticos literários e editores, como, aliás, quase toda a literatura de inspiraçãoamazônica, a obra de Dalcídio Jurandir é de importância ímpar para qualquer leitorque procure ter uma visão autóctone da Amazônia. Trata-se de uma literatura queapresenta o contraponto à literatura naturalista dos primeiros trinta anos do séculoXX, a qual consiste principalmente de obras de autores não amazônicos que apre-sentam uma visão de fora para dentro da região; Jurandir, em contrapartida, nosapresenta uma visão de dentro para fora sem ser introspectiva. Seus livros, quer

Page 60: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O modo de ser e viver o caboclo...

tomados separadamente ou em conjunto, mostram um padrão literário que os co-loca entre os melhores da literatura brasileira pós-modernista.

O fato de relatar as conseqüências sociais do ciclo da borracha usando amesma linguagem usada pelos naturalistas que descreveram, de fora para dentro,aquele ciclo econômico, demonstra uma apropriação daquela literatura como umafonte que, em Jurandir, transforma-se na metalinguagem, cujo conteúdo crítico éreforçado pelo acréscimo de um componente desmistificador da Amazônia. A ima-gem amazônica projetada por ele volta-se para o interior; a voz narrativa, ao invésde examinar a terra a partir do rio, situa-se na terra a olhar ao redor e para si mesma.

A melhor maneira de explicar Dalcídio Jurandir é descrevê-lo como o cri-ador de um quadro romanesco sobre a vida amazônica, na qual as personagens semesclam em autobiografia e ficção; um quadro no qual pobres e excluídos pelasociedade burguesa em que estão inseridos transitam corroídos em um ambienteigualmente corroído: a Amazônia pós-ciclo da borracha. Personagens não maismarcadas pelo embate com a natureza grandiosa, mítica, na maioria das vezesinvencível, como se apresentam na grande maioria da literatura que enfocou a vidaamazônica até então.

Escritor social e politicamente interessado, lúcido e leal, Dalcídio Jurandirsoube associar a grandeza de sua visão ao pulso do romancista nato. Várias décadasdepois de lançado, Chove nos campos de cachoeira é vivo e atual como se tivesse sidoescrito hoje. Trazer à tona seu pensamento se compôs como algo tão valoroso que,aos poucos, nos tornamos íntimos e ao mesmo tempo parte do que, só quem o épode perceber o ser, o pensar e o fazer de Dalcídio.

Referências

HOLANDA, Silvio. Mito e sociedade em Dalcídio Jurandir: anotações em torno de Marajó.Belém: Unama, 2001. (Texto)

JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de cachoeira. 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra,1976.

_______. Marajó. 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1978.

NUNES, Paulo José Martins. Aquonarrativa: uma leitura de Chove nos campos de cachoeira,de Dalcídio Jurandir. Belém: Unama, 2001. (Texto)

Page 61: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Fabiane Maia Garcia/João Bosco Fer reira

PAES, José Paulo; MOISÉS, Massaud (Org.). Pequeno dicionário de literatura brasileira. 2.ed. São Paulo: Cultrix, 1980.PEREZ, Renard. In: JURANDIR, Dalcídio. Escritores brasileiros contemporâneos. 2.ª sé-rie. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

Anexo

Cronologia da obra dalcidiana

(*) Publicações que compõem a série “Extremo Norte”.

1929

1931

1939

1939

1941

19471950

19581959

1960

1961

19631967

1968

1968

19701971

1976

1976

19761978

1978

1984

1987

1991

Chove nos Campos de Cachoeira (1.ª versão)

Conclui um livro de contos e um romance (lembranças de Marajó)

Chove nos Campos de Cachoeira (reescreve)

Marinatambalo (escreve e, mais tarde, publica sob novo nome)

Chove nos Campos de Cachoeira (lançado pela Editora Vecchi) (*)

Marajó (novo nome de Marinatambalo, editado pela José Olympio) (*)Linha do Parque (coleta de dados)

Três Casas e um Rio (publicado pela Marins Editora) (*)Linha do Parque (publicado pela Editorial Vitória)

Belém do Grão-Pará (publicado pela Livraria Martins Editora) (*)

Linha do Parque (lançado em Moscou)

Passagem dos Inocentes (publicado pela Livraria Martins Editora) (*)Os Habitantes (conclui)

Primeira Manhã (publicado pela Livraria Martins Editora) (*)

Chão de Lobos (conclui)

Ribanceira (conclui)Ponte do Galo (publicado pela Livraria Martins Editora) (*)

Chove nos Campos de Cachoeira (2.ª Edição – Editora Cátedra) (*)

Os Habitantes (publicado pela Artenova) (*)

Chão dos Lobos (publicado pela Record Editora) (*)Ribanceira (publicado pela Record Editora) (*)

Marajó (publicado pela Editora Cátedra) (*)

Passagem dos Inocentes (publicado pela Editora Falangola) (*)

Linha do Parque (publicado pela Editora Falangola)

Chove nos Campos de Cachoeira (3.ª ed. revista – Editora Cejup) (*)

Page 62: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 63: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Wilson Nogueira*

ResumoEste trabalho trata da relação das festas populares amazônicas com o mercado capitalistapor intermédio de pesquisa sobre o Boi-Bumbá de Parintins, a Ciranda de Manacapurue o Sairé de Alter do Chão. Embora estejam satisfazendo as necessidades de um merca-do que movimenta milhões de reais, as populações que produzem e legitimam os trêseventos não são recompensadas com melhoria de qualidade de vida. Este artigo sugeremudanças nas relações de produção, distribuição e consumo dos bens culturais, para quese tornem democráticos e voltados à contrapartida social.

Palavras-chave: Amazônia; bens simbólicos; mercado capitalista; meios modernos decomunicação; bens simbólicos e globalização.

AbstractThis work focusses on the relationship between the Amazonian folk celebrations and thecapitalistic market through a research work on the Boi-Bumbá ritual in the city of Parintins,the Ciranda in the city of Manacapuru and the Sairé in of village of Alter do Chão.Despite the fact that they have been satisfying the needs of a market involving millions ofreais, the people who produce and legitimize these three events have not been compensatedwith an improvement in their living standards. This article suggests changes in the production,distribution and consumption of cultural assets in order to make them democratic anddirected towards social compensation to the communities, who produce them.

Keywords: Amazon region; symbolic assets; capitalistic market; modern means ofcommunication; symbolic assets and globalization.

Mercado faz a festa na floresta

* Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia – UFAM.

Page 64: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Mercado faz a festa na floresta

As festas populares podem ser compreendidas em três categorias em rela-ção ao capitalismo: as que estão distanciadas, as que estão em processo de integraçãoe as que estão integradas1 às estruturas do mercado. No primeiro caso, denomina-mos aquelas que atendem apenas às necessidades materiais e simbólicas dos que asrealizam; no segundo, aquelas que se articulam com o mercado, porém dentro dedimensões controláveis pelo ethos comunitário; e por último, aquelas que expressamum sentimento local, mas que se realizam sob uma dimensão desterritorializada2 edominadas por leis mercadológicas, sem o controle social e econômico dos que aslegitimam material e simbolicamente.

Esses conceitos resultam da tentativa de compreender fenômenos culturaisrecorrentes no desenvolvimento do capitalismo. Ou seja: se o capitalismo, comomodo de produção, é um fato cultural-civilizatório, o seu abalroamento com outrasculturas é constitutivo da sua própria existência. Logo, esses fenômenos podem serlocalizados e analisados em vários lugares, e na perspectiva da preocupação dopesquisador. Na Amazônia, essa abordagem ganha mais interesse porque as contra-dições desse processo ocorrem de forma peculiar, se comparadas às dos lugaresonde o capitalismo se apresenta na sua versão mais desenvolvida. As sociedades detradição milenar e secular na Amazônia (ribeirinhos, caboclos e índios, por exemplo)articulam-se, há algum tempo, para se integrar ou até para construir uma provávelautonomia no interior do capitalismo.

Situamos o Boi-bumbá de Parintins3, o Sairé de Alter do Chão4 e a Cirandade Manacapuru5 como festas que já ocorrem nos domínios do mercado, mas queainda sofrem influência comunitária. São eventos que vivem os confrontos entre osinteresses do mercado e os dos que detêm o capital simbólico local – a tradição. Sequiséssemos encontrar o ponto zero desse processo, poderíamos apontar que essasfestas foram herdadas de grupos sociais locais ou trazidas pelo colonizador e insta-ladas ali em Parintins, em Alter do Chão e em Manacapuru. Ou ainda: que sãoresultantes dos conflitos, contatos, fricções e abalroamentos entre um modo e outrode produzir, de pensar e de se relacionar cosmologicamente. Quando as vislumbra-mos na dimensão do mercado, todas essas questões tornam-se imprescindíveis àanálise teórica, porém insuficientes para dar conta do fenômeno. Pode-se dizer, en-tretanto, que o mercado capitalista, por sua natureza, produz mais efeitos conflitantesque harmonizadores à ritualização do cotidiano comunitário. No mercado, as festassão feitas para ser consumidas como divertimento, como lazer, como possibilidade

Page 65: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Wilson Nogueira

de status social ou de identidade cultural. Não significa que sejam menos ou maisideológicas que antes ou agora. Os índios amazônicos, segundo os registros orais earqueológicos, e os relatos desde os primeiros viajantes, viviam em imensas festastribais, onde celebravam a vida e a morte, o plantio e a colheita, a guerra e a paz. Elescelebravam a coesão social, a hegemonia, entes ideológicos que ressaltam até hoje asposições sociais internas e externas dos grupos humanos.

Se não existe uma medida para determinar se uma festa está ou não envol-vida com ou pelo mercado, há pelo menos fatores recorrentes que podem ser res-saltados e sustentados como próprios da articulação mercadológica. No caso dastrês festas que estudamos, elas apresentam as seguintes características comuns: têmorigens em brincadeiras comunitárias; transformaram-se em instituições jurídicas(hoje são grêmios recreativos) para captar recursos; têm ampla divulgação na mídia;são negociadas como produtos turísticos; mobilizam simpatizantes por meio dadisputa polarizada; e são realizadas de acordo com as exigências do mercado. En-tão, essas festas foram admitidas pelo mercado, porque desenvolveram tais caracte-rísticas – assim, hoje elas se vinculam mais ao mercado que às necessidades ritualísticasdas localidades onde ocorrem.

Essa reflexão conduz à necessidade de se verificar as mudanças que o fenô-meno gera na produção simbólica dos grupos locais. As localidades e os grupossociais que nelas vivem são referências imprescindíveis aos interesses do mercado,pois, além de apropriados, foram, também, fetichizados. Fala-se em Sairé de Alterdo Chão, em Boi-Bumbá de Parintins, em Ciranda de Manacapuru. Denominam-seas festas e os lugares. Os agenciadores de turismo criam e alimentam a expectativade existência de um produto cultural característico de um lugar, de um determinadogrupo social. Há um artifício6 que prende e distancia ao mesmo tempo lugares egrupos sociais no mundo do consumo, que é engendrado, principalmente, pelosrecursos técnicos da mídia.

Uma das implicações desse fenômeno refere-se à produção de um espetá-culo para a mídia eletrônica, que é o resultado do processo de apropriação efetichização da festa da comunidade pelo mercado. Os artesãos, especialistas e diri-gentes das festas populares esmeram-se em produzir um espetáculo para os holofo-tes da televisão e para as lentes de jornais e revistas. Necessariamente, devem atenderaos padrões do meio mais imediato: a televisão, que, como contrapartida, prometedar visibilidade aos lugares e aos grupos sociais envolvidos nessa empreitada. A

Page 66: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Mercado faz a festa na floresta

televisão exige formato prévio, pois a qualidade das transmissões depende de equi-pamentos e de pessoal, os quais também fazem parte do espetáculo em qualquerprodução direcionada ao público.

O Boi-Bumbá de Parintins pode, nesse caso, ser tomado como referênciaconceitual de precisão técnica e organizacional. É a partir do bumbódromo7 que osbumbás ganham projeção televisiva e se lançam para a aventura mercadológica naqual se encontram hoje. Produz-se, a partir daí, um espetáculo dentro de uma arqui-tetura que atende às necessidades dos brincantes (foliões), do público espectador,dos patrocinadores e dos meios de comunicação. A estrutura arquitetônica desseespaço vem se aperfeiçoando, a cada ano, às exigências de cada um dos segmentosenvolvidos com o espetáculo. São mais camarotes e arquibancadas para turistas, emodificações que facilitam a “evolução” (apresentação) dos bumbás e a coberturados meios. Pelos mesmos processos passam o Sairé de Alter do Chão e a Cirandade Manacapuru: tiveram que deixar os terreiros acanhados para se apresentar emlugares mais convenientes aos espectadores, telespectadores, leitores, ouvintes einternautas. E por isso foram construídos, também, o sairódromo8 e o cirandódromo.São lugares edificados pelo poder público, para abrigar espetáculos e, portanto,apropriados como espaço do e/ou para o mercado.

Bumbódromo, sairódromo e cirandódromo lembram sambódromo, tem-plo do carnaval carioca, onde está a matriz deflagradora da especialização televisivadas festas populares no Brasil. Foi no carnaval carioca que artistas de Parintins seinspiraram para pôr luxo nos bois-bumbás Garantido e Caprichoso, que, antes dofestival folclórico, a exemplo das escolas de samba, apresentavam-se em terreirosapertados ou nas ruas. O artista plástico Jair Mendes, que trabalhou em escolas desamba do Rio de Janeiro, foi o precursor das alegorias e das fantasias de luxo nosbumbás, introduzindo-as primeiramente no Garantido. Os bumbás desenvolveramuma forma diferenciada de apresentação das alegorias e fantasias em relação à dasescolas de samba.

A arquitetura de Marquês de Sapucaí faz com que as escolas de sambapassem – em desfile – pelos telespectadores, semelhante ao filme que se movimentana tela; as do bumbódromo, do sairódromo e do cirandódromo permitem que osbrincantes (atores) construam e constituam a mesma pintura, o mesmo espetáculo.O pesquisador Paes Loureiro (1995, p. 358) define o bumbódromo como umteatro, um “lugar para ver e ser visto”. Quanto à apresentação dos bumbás, Lourei-

Page 67: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Wilson Nogueira

ro assegura que é “uma pura fascinação de olhar o que passa a existir no momentoem que é olhado”.

A construção de um lugar para a apresentação das três festas popularescausou uma mudança significativa na forma da composição e da apresentação dosgrupos folclóricos aqui estudados. Os bumbás de Parintins foram os primeiros aaperfeiçoá-la para um novo modelo de espetáculo. Introduziram na “brincadeira” oapresentador, que, na prática, é um animador, responsável pelo andamento do des-file de uma lista de personagens “testadas” ao longo dos anos. O apresentador é oelo dos brincantes com os espectadores, que, juntos, constroem quadros no enormepalco até formar um todo apoteótico. Há uma interação entre atores e espectadores.Ou seja: os atores não passam, eles se integram à platéia para realizar o espetáculo.

Bumbódromo, sairódromo e cirandódromo são cenários e palcos paraespetáculos especializados. Quando se transferem para esses lugares, o Boi-Bumbá,o Sairé (os botos) e a Ciranda perdem um pouco da consistência lúdica: a brincadei-ra torna-se um ato que exige de todos extremo desempenho profissional. Seus fo-liões esmeram-se para fazer um espetáculo tecnicamente perfeito; eles não podemfalhar diante do público. Então, se passam a sofrer a pressão do público pagante, éevidente que adotem modificações para agradá-lo. Cria-se no interior dos gruposde brincantes a disposição de se fazer sempre o melhor para encher os olhos doespectador e conquistá-lo como mais um admirador/torcedor/patrocinador. Osingredientes do espetáculo – fantasias, adereços, alegorias, coreografias e ritmos etc.– são produzidos dentro de uma racionalidade técnica/profissional que caracterizaa distância entre o que é feito pela e para a comunidade e o que é feito pela comu-nidade para turistas e platéias das mídias.

O lúdico comunitário modifica-se – e às vezes se perde – nos meandros doespetáculo. Os grupos folclóricos devem se apresentar ao público de forma impe-cável sob pena de punição dos jurados que assistem ao espetáculo na função dedelegados dos espectadores, telespectadores, leitores, ouvintes e internautas. A brin-cadeira, nesse momento, escapa à prática do ócio prazeroso e fica mais sob a influ-ência e vigilância dos patrocinadores de alguns milhares de reais9. Ninguém podebrincar sob pena de errar e, assim, comprometer a qualidade midiática do espetácu-lo. Esse problema está mais evidente no relacionamento das agremiações com atelevisão. A televisão é, por si só, um veículo de entretenimento, uma fábrica deespetáculos: ela junta a imagem, texto e áudio/narração. Os produtores dos chama-

Page 68: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Mercado faz a festa na floresta

dos programas para as massas dizem, como expressão máxima do meio, que atelevisão é um show permanente. Não importa se o que está sendo veiculado é umapartida de futebol ou uma tragédia: as imagens, necessariamente, devem prender aatenção do telespectador/consumidor. A televisão determina formatos para cadatipo de espetáculo. Existem regras preestabelecidas que devem ser cumpridas paraque tudo ocorra de acordo com o que está no escript. A espontaneidade da brinca-deira, quando enquadrada no campo televisivo, torna-se uma falsa idéia do real, sequisermos entender as festas populares como expressão da realidade social daquelesque as produzem.

É possível identificar que o interesse da televisão pelas três festas popularestem um papel preponderante na sua ressignificação simbólica. Desse modo, a televi-são é o agente capitalista que age de maneira mais agressiva sobre as três festasestudadas. É a televisão como meio ágil e eficiente que atrai os demais agentesmercadológicos. Nos bumbás de Parintins, esse fenômeno pode ser medido pelovolume de patrocinadores: políticos, poder público e até multinacionais dos maisvariados segmentos. Investe-se no festival, porque ele mobiliza público consumidore formadores de opinião pública, e proporciona retorno financeiro e institucionalaos patrocinadores. Seria ingênuo imaginar que esse turbilhão de interesses não mo-dificasse a constituição dos bumbás que brincavam nos terreiros e nas ruas. Não setrata de uma ocorrência localizada, mas de uma recorrência histórica no refazer simbó-lico dos povos diante de conflitos dessa envergadura. Nas sociedades denominadasprimitivas, as festas encaixam-se na ritualização do cotidiano como uma reflexãosobre a realidade e seus mecanismos de sustentação do fazer e do refazer coletivo. Porisso, as comparações entre culturas de sociedades primitivas e modernas ilustramessa dicotomia. Lévi-Strauss nos diz que são graus de complexidade distintos e quedevem ser compreendidos dessa forma.

Seguindo esse raciocínio, é possível dizer que o Boi-bumbá de Parintins, oSairé de Alter do Chão e a Ciranda de Manacapuru não se desfizeram totalmentedos elementos simbólicos imemoriais – e que, aqui e acolá, dependendo da atençãodo espectador, telespectador ou leitor, pode-se localizar o fio de Ariadne que osconduzirá às origens de cada uma das festas. Aliás, como já foi mencionado anteri-ormente, os ancestrais amazônicos viviam em constantes celebrações. Hoje não seriadiferente. A humanidade está cheia de festas e rituais com as mesmas finalidades. O

Page 69: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

6 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Wilson Nogueira

que nos surpreende são os meios pelos quais circulam os bens simbólicos hoje. Elessão capazes de mobilizar, instantaneamente, olhares em dimensões planetárias.

Walter Benjamin já advertia sobre as transformações que viria sofrer a obrade arte por intermédio da reprodução em escada industrial. Sua preocupação não selocalizava somente na obra de arte como mercadoria. Afinal, a arte é a produção daexpressão simbólica das sociedades que se inserem, também, no ritual das trocas ouda comercialização, como ocorreu antes e como ocorre até hoje no capitalismo. Oque se caracteriza, para o pensador alemão, como ameaça à obra de arte é a suaserialização por meio de sistemas mecânicos e eletrônicos, tornando-a desprovidada aura do seu autor. É como se o objeto de arte perdesse sua alma, a sua naturezacultural, ao se transformar em mercadoria, nos moldes tratados por Karl Marx nasua definição de fetiche:

A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir ascaracterísticas sociais do próprio trabalho dos homens,apresentando-as como características materiais e proprie-dades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocul-tar, portanto, a relação entre trabalhos individuais dos pro-dutores e o trabalho total, ao refleti-la como relação soci-al existente, à margem deles, entre os produtos do seupróprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtosdo trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, comopropriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos[...] Chamo isso de fetichismo, que está sempre grudadoaos produtos do trabalho, quando são gerados como mer-cadoria (MARX, 1996, p. 80).

Se decodificássemos essa reflexão em imagens, poderíamos até deflagraruma discussão para apocalípticos e integrados 10. Ou nos tornaríamos eternos lunáticosou nos enquadraríamos no contexto da aventura capitalista. Não é esse o propósitodeste estudo. Não há, entretanto, como desprender essa reflexão do âmbito dosmeios modernos que transportam os bens culturais. Eles adquiriram característicasinimagináveis em tão pouco tempo. Se os bens simbólicos até então viajavam nasnaus, nos trens, nos regatões, nos aviões ou nas ondas do rádio, hoje eles são trans-portados em alta velocidade e até de forma instantânea. Podemos assistir às apre-sentações dos bumbás, dos foliões do Sairé ou dos cirandeiros em vários lugares domundo no momento em que eles se apresentam nas suas localidades de origem – ou

Page 70: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Mercado faz a festa na floresta

ao vivo, como se diz no jargão televisivo. A instantaneidade se constitui na principalcaracterísticas dos meios atuais.

As festas que estudamos atingem uma dimensão desterritorizada a partir domomento em que são, também, espetáculos televisivos e produtos de consumo emvários lugares ao mesmo tempo. Estão nos CDs, nas fitas de vídeo, nas revistas, nossouvenirs, nas capas de cadernos e nas agendas escolares, nos jornais, nos programasde TV e de rádio. Esse fenômeno é mais marcante no Boi-bumbá de Parintins, cujaexperiência com a mídia é mais longa, porém, há uma intensa mobilização dosagentes culturais na direção do Sairé de Alter do Chão e da Ciranda de Manacapuru.Redes de TV do Pará e do Amazonas têm divulgado os dois eventos em transmis-sões ao vivo, em comerciais ou por meio de matérias jornalísticas. Incluem-se, tam-bém, na programação das agências de viagens como itens de valor agregado deprodutos turísticos. A celebração do Sairé foi transferida recentemente de junhopara setembro, época em que banhistas procuram as praias ao redor de Alter doChão para matar o calor escaldante da região.

Desde 1999, o Amazonsat, canal UHF da Rede Amazônica de Televisão,transmite ao vivo do Festival da Ciranda de Manacapuru. A mesma rede teve, porcinco anos (1994-1999), o direito exclusivo de transmitir e comercializar as imagensdos bumbás de Parintins, no bumbódromo. Atualmente, o “direito de arena” per-tence, por força de contrato previsto para se encerrar só em 2007, à TV A Crítica,da Rede Calderaro de Comunicação (RCC). A mesma emissora foi pioneira nastransmissões ao vivo, para a cidade de Parintins, na década de 1990. O deslocamen-to da organização da festa do âmbito da comunidade para o mundo da mídia (doqual a televisão é o principal agente) atiça interesses políticos e negócios de grandemonta, que escapam das mãos dos animadores culturais e políticos locais. As dispu-tas pelo controle da festa midiatizadas tornam-se inevitáveis em função da visibilida-de social, do dinheiro que movimentam e do poder político que passam a concen-trar. Afinal, tornam-se eventos vistos por milhares de telespectadores, potenciaisconsumidores e eleitores.

As festas populares atingem essa dimensão quando detêm um nível deprofissionalização que atende aos interesses do mercado na forma de se apresentare das relações comerciais. Os negócios se concretizam de pessoa jurídica para pessoajurídica. Os patrocinadores exigem papéis (contratos e recibos) da burocracia contábil.Os produtores de TV precisam de imagens que justifiquem um show permanente, no

Page 71: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Wilson Nogueira

caso das transmissões ao vivo. As TV’s necessitam prender os telespectadores, paraque eles dêem retorno comercial e institucional aos patrocinadores. O depoimentoda presidente da ciranda Flor Matizada, Maria do Socorro Guimarães Silva, ilustraessa abordagem, uma vez que os cirandeiros acabam de se inserir nas transmissõesao vivo do canal Amazonsat:

Eles (os técnicos da TV) disseram que não querem buracos(falta de atividades) no decorrer das apresentações. Elesexigem muita movimentação, muita dança. Se não for as-sim, eles desistem das transmissões. Já estamos tomando asprovidências para que esses intervalos não ocorram. Nãopodemos perder a oportunidade de mostrar a nossa festapela TV. É por meio dela que conseguimos os recursos. Foiassim que os bumbás de Parintins se tornaram grandiosos .

A ciranda de Manacapuru está longe de ser apenas “um bailado”, como adefiniu Câmara Cascudo (1993, p. 231) ao descrevê-la em dicionário, ou apenas um“cordão amazônico”, como a identificou Mário de Andrade por volta de 1927, nasua histórica viagem à Amazônia, para compor os três volumes de Danças dramáticasdo Brasil (1982). Em Manacapuru, trata-se de uma dança sob música ao estilo dofrevo pernambucano, onde se sobressai a sensualidade das cirandeiras, que nas cons-tantes rodopiadas exibem suas peças íntimas e, mais recentemente, as suas alegoriase fantasias que relembram às das escolas de samba cariocas e às dos bumbás deParintins. A ciranda11 na sua versão amazônica incorporou elementos e movimentosdas culturas correntes na região. Os organizadores da ciranda são unânimes emassegurar que a brincadeira foi introduzida nas escolas pública de Manacapuru, nadécada de 80, pelos professores Maria do Perpétuo Socorro de Oliveira e JoséSilvestre do Nascimento e Souza, ambos com passagem pela cidade de Tefé, ondeorganizaram vários grupos do bailado. A agregação de novos elementos e passos(coreografias) na brincadeira acentua-se com a criação do Festival da Ciranda, pelaprefeitura, no qual cada grupo escolar esmerava-se para ganhar o título de campeão.Hoje, as cirandas estão vinculadas aos bairros onde se localizam as escolas das quaissão originárias.

O Sairé passa por processo idêntico. Paes Loureiro (1995, p. 143) afirma,baseado nos códices do padre João Daniel (1722-1976) denominados Tesouro des-coberto no rio Amazonas, que o Sairé “é uma manifestação de caráter religioso e artísti-

Page 72: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Mercado faz a festa na floresta

co”, cujas raízes estão fincadas na tradição indígena. Os religiosos católicos transfor-maram, por força de estratégia de catequização, os cantos do Sairé em cânticos dedevoção cristã. Nunes Pereira, em O Sairé e o marabaixo (1989), registra o Sairé comooriginado de três fontes de emoção e de religiosidade: a do conquistador luso, doescravo negro e do índio animista e curioso.

O historiador Mário Ypiranga Monteiro (2001) sustenta que a influência dosnegros nas culturas amazônicas – dos índios e mestiços – não tem a consistência quelhe é atribuída nos eventos folclóricos por vários motivos: o número reduzido deescravos africanos devido à carência econômica da região e a permanente inimizadeentre eles por interesses locais causadas pelo empreendimento capitalista. Benchimol(1999, p. 107) credita, após releitura de clássicos da historiografia, antropologia esociologia brasileira, a participação, a influência e intercâmbio da cultura e valoresdos negros africanos na cultura amazônica:

Essa combinação tropicalista e eclética expressa-se atravésdo lado afro-brasileiro através da [...] culinária e na prepa-ração de quitutes e quindins, como vatapá, caruru, acarajé,azeite-de-dendê etc; na religião com a presença do can-domblé, orixás, babalorixás, terreiros; pais e mães-de-santo;nas danças, cânticos, festas e ritmos de gafieiras, samba,bossa-nova, baião, umbigada, capoeira, maracatu, cateretê,frevo, forró, carimbó, pagode, toada, que explodem nossalões, clubes e danceterias, bem como, do alucinante, sen-sual e erótico ritmo e coreografia da lambada paraense-baiana; no folclore dos bois-bumbás de Parintins, do carna-val dos morros cariocas e das escolas de sambas de Manause Belém; no saber de seus ilustres artistas, cantores, intelec-tuais, cientistas; e agora também, no mundo dos negócios edas empresas comerciais industriais.

Hoje o Sairé se constitui, também, na apresentação de dois botos – o BotoTucuxi e o Boto Cor-de-rosa12 – que encenam uma disputa pelo título de campeãocom o desfile de alegorias, fantasias e música tematizando a Amazônia e seus encan-tos. A procissão religiosa do Sairé nas ruas do vilarejo de Alter do Chão, de de-senrolar simples, transformou-se em acessório do espetáculo na versão que encenaos botos, e que é realizada no “sairódromo”. Observa-se que os moradores deAlter do Chão, a partir do momento que se aproximaram de uma possível econo-

Page 73: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Wilson Nogueira

mia ancorada no turismo, espetacularizam o Sairé, transformando-o em valor agre-gado ao divertimento dos turistas que visitam as praias banhadas pelas águas verdesdo rio Tapajós.

Preliminarmente, podemos observar que as três festas estão absorvidas pelomercado capitalista na forma de produtos destinados ao turismo e por isso vivemem processo acelerado de transformação. Ajustam-se mais rapidamente aos interes-ses do mercado, se comparadas às modificações que sofreram por motivações reli-giosas – é pertinente considerarmos que o Sairé foi espetacularizado pelos missioná-rios da fé cristã. O componente novo na circulação das culturas correntes na Amazôniaé, a meu ver, a aceleração do transporte dos bens simbólicos em relação à noção detempo e espaço das sociedades tradicionais. Sabe-se hoje, graças aos esforços dapesquisa científica, que os primeiros habitantes da Amazônia mantinham uma enor-me rede de comunicação constituída de rios e caminhos na floresta, e de instrumen-tos de sopro e percussão, como a flauta e o trocano. Através destes se articulavampara guerrear, festejar, comercializar e trocar experiências entre si. Os meios de co-municação alcançaram hoje a dimensão do tempo real e os impactos desse fenôme-no alastram-se por todo o planeta, porém com efeitos diferenciados.

As culturas correntes na Amazônia estão hoje no olho do furacão dosmeios de comunicação modernos. É a própria Amazônia uma marca fetichizada.Modos de vida e festas populares tradicionais em qualquer lugar do planeta terãosempre espaço privilegiado na mídia13. Mas, na Amazônia, a tendência é que fi-quem supervalorizados devido aos interesses dos leitores, telespectadores, ouvin-tes e internautas por suas peculiaridades e, por conseqüência, dos anunciantes. Queminveste em cultura popular na Amazônia está agregando à sua marca um produtoconhecido em todo o planeta: a própria Amazônia.

A chegada dos meios de comunicação modernos – em particular da televi-são – na organização das festas populares suscita várias abordagens. Uma delas dizrespeito à evidência de um reordenamento das relações internas e externas de cadaum dos eventos com o setor público, com o setor privado, com os lugares onde elasse realizam – isso levou, também, à reorganização das funções dos atores tradicio-nais que nelas atuam. O problema se aprofunda ainda mais se considerarmos, comoconstata Canclini (1999, p. 50), que a televisão dos tempos neoliberais substituiuvelhos agentes culturais e políticos, como os partidos políticos, sindicados e inte-lectuais, que se perderam e se desacreditaram na lentidão da burocracia. O resultado

Page 74: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Mercado faz a festa na floresta

desse fenômeno foi o deslocamento do desempenho da cidadania da esfera públi-ca, das idéias e das culturas às praticas de consumo.

O Boi-Bumbá de Parintins, o Sairé de Alter do Chão e a Ciranda deManacapuru estão hoje no mercado. Tornaram-se alvos potenciais da mídia quecaça turistas e patrocinadores interessados em intermediar com o mercado produ-tos simbólicos ou materiais. Isso não significa que essas festas fiquem menos comu-nitárias ou que estejam condenadas a se perder nas teias do estilo de vida dosglobopolitanos14. Há, em cada uma delas, focos de criticidade que identificam osimpactos e engendram debates e atitudes que visam denominar, espacializar eterritorializar as festas populares, ainda que estas ganhem novos elementos e formasde expressão e visibilidade cultural.

O que nos inquieta é que a massa crítica que se forma no interior das festaspopulares absorvidas pelo mercado precisa, para obter eficácia no desempenho dasua função, de poder de interação e intervenção na mesma proporção do dos mer-cadores de culturas. E mais: precisam, acima de tudo, de capacidade organizativapara que as mudanças ocorram na medida das necessidades da produção simbólicade cada lugar, e não somente de acordo com os interesses dos agentes mercantis,que se autojustificam pelo consumo dos telespectadores. A prevalência desse aspec-to sobre os demais institui uma visão verticalizada do produto, ente mercadológicoque nasce (entra no mercado), cresce (dá lucros extraordinários) e se transforma,consolidando-se ou perdendo sua importância no mercado. Quando as festas po-pulares alcançam níveis de complexidades desse porte, os atores sociais dos lugaresque as realizam precisam estar atentos aos desdobramentos nos quais vão se envol-vendo, para que não lhes sejam reservados apenas os papéis secundários na grandeencenação para o mercado.

Notas

1 Nestor García Canclini (1993, p. 13-14) refere-se à “região fortemente integrada aodesenvolvimento capitalista” e aquelas que “mantêm festas e feiras que apenas nosúltimos anos começaram a receber turistas e produtos industrializados”. O antro-pólogo mexicano está falando de povoados que margeiam os lagos de Pátzcuaro,Patamban e Ocumicho, no centro do México, onde ele estudou as mudanças noartesanato e nas festas populares.

Page 75: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Wilson Nogueira

2 A desterritorialização é a denominação do deslocamento, por meio de aparatotecnológico, de culturas e línguas, mercados e regimes de governo por entre fron-teiras, segundo o Otavio Ianni (IANNI, 1997, p. 32-33).

3 As apresentações dos bumbás Garantido e Caprichoso ocorreram, durante 39anos, nos três últimos dias de junho. A partir de 2004, para atender à conveniênciados agentes de turismo, ocorrerão no último fim de semana de junho. Parintins estálocalizada na margem direita do rio Amazonas, a 325 quilômetros de Manaus.

4 A Festa do Sairé de Alter do Chão realizava-se no mês de janeiro, juntamente coma festa da padroeira do vilarejo, Nossa Senhora da Saúde. Depois transferiu-separa junho, e, a partir de 1999, passou a realizar-se em setembro, com a introduçãoda disputa entre o Boto Tucuxi e o Boto Cor-de-Rosa, como opção de diverti-mento aos turistas que visitam as praias de Alter do Chão, na margem direita do rioTapajós, a 30 quilômetros da cidade de Santarém (PA).

5 Os grupos cirandeiros de Manacapuru apresentavam-se no aniversário da cidade,em 16 de julho. A partir de 1996, criou-se o Festival de Cirandas, com realização naúltima semana de agosto. Participam três grupos: Tradicional, Guerreiros Mura eFlor Matizada. Manacapuru está localizada na margem direita do rio Solimões, a80 quilômetros em linha reta de Manaus.

6 Esse é um fenômeno não só relacionado ao advento das comunicações modernas.Pode-se dizer que o encontro e o desencontro de culturas são constitutivos dagrande aventura humana em diferentes níveis, como os do saber e do conhecimen-to técnico.

7 Arena no formato estilizado da cabeça de um boi onde são realizadas as apresen-tações dos grupos folclóricos em Parintins. O nome oficial da construção é CentroEducacional Desportivo Amazonino Mendes, inaugurado em 1988.

8 O sairódromo, quadra com arquibancada, foi construído em 1997, pela Prefeiturade Santarém, para abrigar as apresentações dos botos Tucuxi e Cor-de-Rosa.

9 Em 2001, os patrocinadores oficiais privados e públicos investiram R$ 28 milhõesna realização do festival de bumbás de Parintins. O dinheiro foi empregado eminfra-estrutura da cidade e na apresentação dos bumbás Garantido e Caprichoso,segundo o Jornal Gazeta Mercantil Amazonas. A multinacional Coca-Cola atesta uminvestimento de R$ 37 milhões no decorrer dos 11 anos de parceria com a festados bumbás. Em 2004, o Governo do Estado comunicou que faria um investi-mento de R$ 6 milhões no festival.

Page 76: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Mercado faz a festa na floresta

10 Umberto Eco (1998) desenvolve esses conceitos ao fazer uma reflexão sobre oposicionamento otimista dos teóricos “integrados”, aqueles que acreditam que osmeios de comunicação modernos colocam os bens culturais à disposição de to-dos; e dos pessimistas ‘apocalípticos’, aqueles que não vêem salvação para os que seconstituem em massa.

11 Câmara Cascudo (1993. p. 231) define a ciranda como uma dança infantil, deroda, vulgaríssima no Brasil e vinda de Portugal onde o bailado é de adultos. Aversão de Portugal tem a seguinte letra “ó ciranda, ó ciranda / vamos nós a cirandar/ vamos dar meia volta / meia volta vamos dar / vamos dar outra meia e trocarde par”.

12 Boto Cor-de-Rosa é como se tornou conhecido o Boto-Vermelho no meio urba-no por influência do documentário do oceanógrafo francês Jacques Custeau so-bre a Amazônia, na década de 80.

13 A Secretaria de Estado da Educação, Desportos e Turismo relacionou 121 festaspopulares para o catálogo de eventos turísticos no Amazonas.

14 Termo utilizado pelo sociólogo Manuel Castells para designar “uma elite reduzi-da” de meios humanos, meios fluxos que se beneficiam do chamado processo deglobalização.

Referências

ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia,1982. Tomos 1, 2 e 3.

ASSAYAG, Lemos Daniela. Amazônia: olha-me pelos meus olhos. Monografia degraduação. Manaus: Departamento de Comunicação Social da Universidade Fede-ral do Amazonas, 2001.

ASSAYAG, Simão. Boi-bumbá: festas, andanças, luz e pajelanças. Rio de Janeiro: Funarte,1995.

AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia de supermodernidade.Campinas: Papirus, 1994. (Coleção Travessia do Século).

AZEVEDO, Luiza Elayne Corrêa. O Boi-bumbá de Parintins: cenários na pós-modernidade e sua inserção no marketing cultural. Dissertação de Mestrado emMarketing. Paraíba: Universidade Federal da Paraíba, 2000.

Page 77: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Wilson Nogueira

BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: formação social e cultural. Manaus: Editora daUniversidade do Amazonas, 1999.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.(Obras Escolhidas).BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

BRAGA, Sérgio Ivan G. Os bois bumbás de Parintins. Tese de Doutorado, Programa dePós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, 2001._______. O boi é bom para pensar: estrutura e história nos bumbás de Parintins.Somanlu, Revista de Estudos Amazônicos, ano 1, n. 2. ed. especial. Manaus, 2002. p.13-26.CANCLINI, Nestor García. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense,1983.

_______. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 4. ed. Rio deJaneiro: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999._______. Culturas híbridas. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,2000. (Ensaios Latino-americanos, 1).

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia;São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. (Coleção Conquista do Brasil,2.ª série, v. 151).

CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. (A era dainformação; economia, sociedade e cultura, vol. 1).CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de C. O rito e o tempo: ensaios sobre o Carnaval.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

_______. Festival na floresta – o boi-bumbá de Parintins. Rio de Janeiro: Funarte, 2000.ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.

FEATHERSTONE, Mike (Org.). Cultura global: nacionalismo, globalização emodernidade. Petrópolis: Vozes, 1994._______. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo:Studio Nobel; Sesc, 1997. (Coleção Megalópoles).

FREITAS, Marcílio de.; SILVA, Marilene Corrêa da. Estudos da Amazônia Contemporâ-nea: dimensões da globaliazação. Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2000.

Page 78: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Mercado faz a festa na floresta

GUEDES, Fátima. Saga do boi-bumbá em preto-e-branco. Somanlu, Revista deEstudos Amazônicos, ano 2, n. 2. ed. especial. Manaus, 2002. p. 51-58.

_______. Ensaios de Rebeldia. Parintins: A Ilha, 2002.

HOBSBAWN, Eric; TERENCE, Ranger (org.). A invenção das tradições. Rio de Janei-ro: Terra e Paz, 1997.

IANNI, Octavio. A sociedade global. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1976.(Biblioteca Universitária, 2.ª série, Ciências Sociais, vol. 31).

LOUREIRO, João de Jesus Paes. A cultura amazônica: uma poética do imaginário.Belém: Cejup, 1995.

MONTEIRO, Mario Ypiranga. Presença do índio na cultura amazonense. Manaus: Go-verno do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Des-porto, 2001. (Coleção Documentos da Amazônia, n. 30).

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

PEREIRA, Nunes. O sahiré e o marabaixo. Recife: Massangana, 1989.

PINTO, Ernesto Renan F. Geografia do exótico. Leituras da Amazônia, Revista In-ternacional de Arte e Cultura, ano 1, n. 1, abr – 98 – fev. Capes/Cofecub. Manaus:Valer, 1999. p. 45-54.

QUEIROZ. Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1999.

SANTIGO, Maria do Socorro de Farias. Pelos caminhos do Sairé – um estudo deaproveitamento da cultura popular do teatro. Tese de doutorado. Escola de Comu-nicação e Arte (ECA) da Universidade de São Paulo, 1996.

SANTOS, Minton. Por uma globalização: do pensamento único à consciência. 5. ed.Rio de janeiro: Record, 2001.

SILVA, Marilene Corrêa da. Metamorfoses da Amazônia. Manaus: Editora da Universi-dade do Amazonas, 2000.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 2. ed.Petrópolis: Vozes, 1999.

_______. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos maiôs de comuni-cação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.

Page 79: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

7 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Wilson Nogueira

VALENTIN Andréas; CUNHA Paulo José. Caprichoso – a terra é azul. Rio deJaneiro: A Valentin, 1999.

_______. Vermelho – um pessoal garantido. Rio de Janeiro: A Valentin, 1998.

WANZELER, Eglê Betânia P. Çairé: nos rios do imaginário, a construção da identi-dade cultural. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Naturezae Sociedade da Universidade do Amazonas, 2001.

Page 80: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 81: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

* Especialista em Psicologia Social e Comunicação Empresarial. Editor de opinião e capa do Jornal do Commercio. e-mail:[email protected].

Renan Albuquerque Rodrigues*

ResumoO trabalho propõe uma pesquisa exploratória de descrição dos atributos semânti-cos mais citados nas representações sociais do ambientalismo segundo moradoresdas comunidades rurais ribeirinhas de Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhorado Livramento, em Manaus/AM, a partir do referencial teórico de Moscovici, arti-culado à teoria da psicologia ambiental. Servindo-se do modelo quase-experimentalnão probabilístico por cotas de estudo qualitativo em psicologia social, sugere-se averificação da disseminação desses atributos entre quatro conjuntos populacionais,subdivididos entre sexo e tempo de estada nas regiões.

Palavras-chave: meio ambiente rural; representações sociais; estudo qualitativo.

AbstractThis text analyses the social representations (SR) of the environment describing likesemantics referential. A population of the Manaus, in Amazonas, was researchedand answered a questionnaire about the disseminations of SR, in conjunction withthe theories of Moscovici and environment psychology. Was utilized the methodhalf-experimental of qualitative study in social psychology, and suggested theverification of dissemination theses attributes in four populations groups, subdividedin sex and time of resident of the regions.

Keywords: enviromental rural; social representations; qualitative study.

Representações sociais das comunidades rurais amazônicasdo conceito de ambientalismo ou preservação ambiental:

os casos de Fátima e Livramento

Page 82: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Representações sociais das comunidades rurais...

Introdução

O projeto “Água e Cidadania: por uma relação responsável entre homem enatureza” é uma ação que visa fortalecer a consciência do uso responsável dos recur-sos hídricos e contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos moradores dascomunidades localizadas no igarapé do Tarumã-Mirim. O projeto tem patrocíniodo programa Petrobrás Ambiental1 e está sendo executado desde outubro de 2004pela Associação dos Cientistas Sociais do Amazonas (ACISAM), em parceria comas associações de moradores das comunidades de Nossa Senhora de Fátima e Nos-sa Senhora do Livramento.

Tendo como perspectiva de trabalho essa intervenção social estipulada, o“Água e Cidadania” está tendo como enfoque principal, atualmente, priorizar edesenvolver2 atividades voltadas para o fortalecimento das organizações de base dasreferidas comunidades, bem como a capacitação de moradores para açõesambientalistas, promoção da cidadania e valorização cultural do meio ambiente.Entretanto, antes disso e para que essa atividade do “Água e Cidadania” fosseimplementada, fez-se necessário uma pesquisa para se descrever quais as representa-ções sociais correntes entre os comunitários no que tange ao meio ambiente. Nessesentido, foi desenvolvido o estudo aqui apresentado, proposto sob a perspectiva deuma análise quase-experimental não probabilística casual simples3.

Essa metodologia possibilitou, no fim dos aportes teóricos de sustentaçãodeste artigo, que fossem exemplificadas as categorias de representações sociais erigidasao longo do estudo que, em seu bojo, veicula a correlação de poder entre grupossociais como sendo esta um suporte básico às próprias representações sociais doscomunitários de Fátima e Livramento com o meio ambiente.

A relação homem versus natureza à luz de uma metodologia em RS

À luz da psicologia ambiental, tendo em vista a vertente da ecopsicologia, arelação homem versus natureza nas comunidades de Nossa Senhora de Fátima eNossa Senhora de Livramento pôde ser compreendida como uma analogia basea-da em interação e mutualidade. A partir daí – para que fosse embasada tal descriçãoe trazido à baila exatamente o termo ecopsicologia – notou-se que esse conceito “éum campo de atuação que visa reconhecer a natureza como fator interveniente nãosó do equilíbrio físico, mas também do equilíbrio psicológico e espiritual do indiví-

Page 83: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Albuquerque Rodrigues

duo” (DANON, 2005, p. 213-214). Ou seja, segundo a autora, a natureza age nãoapenas na formação geo-estrutural da sociedade, mas também na compilação derepresentações que sedimentam a mentalidade dos indivíduos do organismo social.Nesse âmbito, foi possível notar que a compreensão das relações do homem comseu meio ambiente pôde ser delimitada via estudos voltados justamente para o cam-po das representações sociais, como se verificou no decorrer do trabalho.

Assim, para que fosse evidenciada a discussão, a preservação da natu-reza (ambiental) foi analisada como subtema concernente à vertente “ecologia”. Erealmente assim se pôde compreender essa área de estudo. Todavia, isso não foi obastante para que se pudesse formar um maior entendimento sobre o objeto. Alémdessa possibilidade, foi proposta uma segunda questão, da psicologia ambiental,área que enfatiza a relação abstrata do eu com o meio, tendo em vista análises oriun-das da Teoria da Gestalt, de como um meio objetivo geral pode nutrir noçõessubjetivas de maneira particular nos indivíduos.

Desta feita, a análise que deu suporte à vertente da psicologia ambientaltambém se formou a partir de uma interrelação de motes analíticos distintos: opsicológico e a percepção ambiental (ecológica), conforme se salienta teoricamentepor meio de Tassara e Rabinovich:

A percepção ambiental é um fenômeno psicossocial. É comoo sujeito incorpora as suas experiências. Não há leitura daobjetividade que não seja ou não tenha sido compartilhada;o sujeito sempre interpreta culturalmente e, a partir daí,constitui-se como identidade. Sua identidade será como seespacializa, como se temporaliza, como constrói as narrati-vas de si próprio a partir desta espacialização e destatemporalização (TASSARA; RABINOVICH, 2003, p. 339).

Tal como o exposto, as autoras serviram de esteio para se erigir a questãodo ambiente (seja ele urbano ou rural) como um todo. Assim, fizeram-se notar asmúltiplas formas de caracterização que a temática imprimiu no contexto coletivo,tomando como base os juízos formados pelos próprios indivíduos e os anseios quese sucederam às necessidades deles para com o meio.

E é aí que se chama atenção para esse âmbito do trabalho, pois, como ameta foi discenir justamente a questão das representações sociais junto às comunida-des de Fátima e Livramento, houve a necessidade de se avançar no debate, sobretu-

Page 84: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Representações sociais das comunidades rurais...

do diante da possibilidade de entendimento das próprias RS com a psicologiaambiental:

Pesquisas de representações sociais são de particular im-portância para a disciplina (psicologia ambiental). A dinâ-mica das relações pessoa-ambiente só pode ser compreen-dida através de estudos sistemáticos de representação soci-al. [...] A Psicologia Ambiental precisa efetuar uma corre-ção de rota, de estudos sobre atitudes e percepção para aavaliação de valores ambientais e seu contexto ideológico afim de compreender o comportamento do indivíduo emum ambiente específico (MOSER, 2003, p. 331).

O autor trata de pôr em relevo as análises voltadas às representações sociaisdas populações rurais em geral, que, segundo ele, dão importante suporte aos estu-dos em psicologia ambiental e a reboque para a ecopsicologia. Ou seja, Moserressalta o alargamento das possibilidades que o aporte das representações sociaispossibilita, em geral, à teoria da psicologia ambiental.

O que Moser defende é que existe a possibilidade das representações sociais(RS) darem alargamento de visão à psicologia ambiental. Nesses termos, o autorafirma que o ato de descrever as RS de dada comunidade ou grupo populacionalauxilia na compreensão das ações de conscientização ambiental que porventura pos-sam ser executadas via políticas públicas ou parcerias público-privadas (PPP’s), comoé o caso do projeto “Água e Cidadania”, que vem se utilizando de ações lúdico-culturais direcionadas para os comunitários de Fátima e Livramento a partir dereferenciais tanto das RS quanto da psicologia ambiental:

A relativa ausência de teorias integradoras em PsicologiaAmbiental pode ser considerada como uma conseqüênciade não se levar em conta àquelas particularidades culturais.Tentativas desse tipo têm sido realizadas com sucesso, for-necendo resultados promissores, como no caso das condi-ções de comportamento ecológico (PORTINGA et al.,2002, apud MOSER, p. 332).

Como “comportamento ecológico” o autor entende que são atitudes pró-meio ambiente e pró-ecologia, tomadas pela sociedade em determinada relação de

Page 85: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Albuquerque Rodrigues

troca de referências subjetivas. Da mesma forma, Moser acredita que tal “compor-tamento” pode ser verificado, em sua maior ou menor amplitude, com a integraçãodas vertentes de representação social e psicologia ambiental.

Entretanto, tendo em vista o discernimento sobre as duas teorias, que secompletam nas fundamentações de base, cabe enfatizar que a proposta de análisenas comunidades rurais teve seu tratamento por meio do viés de Lourence Bardin(1997). E ainda conforme identificação de conteúdo das representações sociais elevantamento de categorias: a) entrevista; b) associações livres por meio de análisedo discurso; e c) categorização por atributos citados a partir das proposições emer-gentes de um grupo aleatório das populações.

Esse modelo de análise da autora é bastante usual em interpretações sobrecultura, entendimento de mundo, valoração lingüística etc., como é o caso dos estu-dos em RS, dada a base descritivo-analítica na qual reside a raiz metodológica dessaformatação de categorias. Além do mais, ao se erigir a problemática das representa-ções sociais dos ribeirinhos de Fátima e Livramento, no que concerne aoambientalismo, ficou implícita a intenção de se avançar na pesquisa das formas deconhecimento que se manifestaram como elementos cognitivos (imagens, conceitos,categorias, teorias etc.), mas que não se reduzem o se reduzem aos mesmos compo-nentes cognitivos.

Assim, tornou-se evidente que a análise de fundo dos discursos em Bardinauxiliou de forma crucial no entendimento dos casos de Fátima e Livramento, pro-porcionado pelos estudos sobre a construção da realidade comum do outro pormeio vigente nas representações sociais. Sobretudo, relativo à construção interpretativados sujeitos enquanto indivíduos sociais que participam da realidade coletiva.

Postos de tal modo, os aspectos das representações sociais que se pretendeuindicar, de acordo com o que até este ponto foi estipulado, foram aqueles demons-trados pelas vertentes da teoria psicológica ambiental (como aspecto de análise sub-jetiva das formas, ligada a pressupostos gestaltistas e de cunho ecológico) e outroscompreendidos a partir do ideário cultural constituído na formação psicossocialdos coletivos. Sendo de tal forma, foi inerente a verificação da transdisciplinaridadesuscitada diante dessa perspectiva em voga, cuja meta atendeu às categorias quesurgiram no levantamento quase-experimental casual simples4.

De forma alguma, entretanto, foi considerada a possibilidade de estratificaçãona análise. A meta da proposta não abarcou essa possibilidade, que demandaria

Page 86: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Representações sociais das comunidades rurais...

segmentação detalhada e subsídios canalizados de setores como a antropologia – oque não foi o caso neste trabalho. Até mesmo porque, levando-se em conta o uni-verso em destaque, constituído por cerca de 2.000 famílias, optou-se por uma pes-quisa de formato quase-experimental, porque ela abriu possibilidades para a nãoutilização de critérios de escolha.

Esmiuçando essa vertente de estudo, a metodologia de suporte teve comoobjetivo servir de instrumentação para se destacar um grupo aleatório de morado-res das comunidades. Daí, mediante observação, foram erigidos atributos para quese pudesse expandir a compreensão das representações sociais desse grupo, visandoentender o funcionamento das relações homem/natureza em Fátima e Livramentode modo mais amplo possível.

Por isso, levando em conta essas necessidades, e no que pesem as dicotomiasinerentes ao sugerido modelo quase-experimental não-probabilístico acidental sim-ples – escolhido para este trabalho – foi considerada apenas a cultura social domi-nante (sem estratificações para reclassificação) nas comunidades, tendo em vista au-xiliar na pesquisa sobre o cotidiano multifacetado de interpretações psicossociaissobre o meio ambiente nas unidades rurais ribeirinhas do Tarumã-Mirim.

O cerne do problema

Diante da coleta de dados a partir das representações sociais de um grupoaleatório de moradores de Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora do Livra-mento, pode-se constatar que, em primeiro plano, como atores sociais os comunitá-rios vêm tendo a maior parte de suas experiências com o meio (natureza) pautadapor correlações econômicas e de necessidade de trabalho. A funcionalidade da rela-ção do homem com seu meio ambiente tem seu destaque mais importante naquiloque possibilita a subsistência das populações, no caso, as relações econômicas. Assimsendo, foi verificado que o homem, antes de tudo, atua em seu meio tendo comoenfoque de interpretação causas e conseqüências monetárias. E, avançando nessacompreensão, foi determinante o entendimento dessa correlação econômica via re-presentações em Fátima e Livramento para que se estipulasse aspectos intrínsecosque sedimentam o viés econômico em meio à problemática do ambientalismo.

Para entender esse meio em seus aspectos intrínsecos, foi preciso levar emconsideração que, sendo bastante rústico e guardando proporções de análise funda-mentalmente alargadas, a perspectiva do viés das RS em Fátima e Livramento tenha

Page 87: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Albuquerque Rodrigues

sido primordial na desconstrução dos sujeitos, tendo em vista os papéis que elesexercem ao tomarem como base suas relações sociais para a utilização do espaçoherdado da natureza, como ficou claro nos discursos.

Ainda sobre essa categoria que foi erigida no processo de análise, a funda-mentação econômica da relação homem/natureza acontece, em si mesma, via outracorrelação, que é a do sentido da preservação. Esmiuçando o item, tem-se que énotória a importância do meio ambiente para os comunitários de Fátima e Livra-mento, entretanto o uso do meio para a sobrevivência coletiva faz com que asrelações homem/natureza sejam arraigadas de interesses correlacionados. É preciso,entretanto, que se possa distinguir essa problemática sob a seguinte égide: a correla-ção é de sujeição, pois os comunitários utilizam o meio, de certa forma, para obterlucro (extrativismo, agricultura, queimada etc.). Todavia, sendo essa sujeição funçãosine qua non para a sobrevivência é quase que impossível de se determinar, de ummomento para outro, uma mudança da forma de correlação entre homem e meioambiente.

Expliquemos melhor essa imbricada teia, surgida nas falas dos entrevistadostanto em Fátima quanto em Livramento5.

Ficou evidente que a noção de ambientalismo como representação socialpara os comunitários existe por instrumentação da natureza para que dela se extraiaa sobrevivência. Mas também foi notória a existência de uma espécie de círculovicioso que faz com que esse tipo de mentalidade se multiplique, tanto em benefícioquanto de forma maléfica aos comunitários. Em outras palavras, por círculo viciosoentende-se que seja a sujeição do aspecto ambiental à questão econômica. Entretan-to, é preciso que se delimite que esta visão é oriunda de uma análise externa doproblema. Levando a termo que os comunitários de Fátima e de Livramento inter-pretam essa sujeição como apenas um dos aspectos concernentes ao conceitoambientalismo, é importante que não se reduza a representação social do todo ape-nas a essa parte – apesar dela ter sido a mais veiculada nas entrevistas com as popu-lações das comunidades rurais em destaque.

Para que fosse eleita essa categoria de análise, foi estipulada, na qualificaçãodas categorias, aquela mais relevante. Daí, notou-se que a categoria casual econômi-ca, que possui duas vertentes em seu foco principal, foi a que mais surgiu nos discur-sos. Elencada como “categoria das necessidades econômicas de se preservar o meioambiente”, ela foi analisada de tal forma que se tornou visível ser a relação homem

Page 88: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Representações sociais das comunidades rurais...

e meio ambiente é de sujeição (FOUCAULT, 1979) e de simbolismo. Assim, ficouclara a montagem do tripé preservação, sujeição e simbolismo.

Nesse âmbito, notou-se que, em primeiro plano, o meio ambiente, por sisó, não vem dialogando tal qual um ser social com os coletivos que interferem emseu metabolismo. Desse ponto de vista, a tendência de uso/desuso do método desujeição está sendo fortalecida diante das formas de poder entre homem e naturezae já tende a abastecer o sistema de influência correlacional indivíduo/meio ambiente.Em outras palavras, a sujeição da natureza por parte do homem vem acontecendode forma indireta, via correlação simbólica. Nos discursos colhidos junto às comu-nidades, a clareza quanto a esse problema tornou-se iminente. Por dois fatores: 1) osmoradores de Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora do Livramento vêmganhando mais senso de identificação cultural e histórica com sua terra com o passardo tempo; e 2) todavia, essa identificação não está ocorrendo de forma isolada, massim por conta da sujeição do meio ambiente às necessidades econômicas.

Ainda tratando dessa questão, notou-se que, a partir da identificação com aterra, há um cuidado melhor para com a natureza, porém, esse cuidado mantémsignificados de fundo que necessitam ser examinados de maneira singular. Um dostais cuidados de fundo, se assim forem reportados, por exemplo, é a compulsivaprecisão de se explorar a terra – tendo em vista que ela foi identificada como per-tencente ao próprio homem de Fátima e Livramento – para que se ganhe dinheirocom esse trabalho de manipulação. Aqui, diante desse contexto de correlação, temosque a categoria de identificação é subtraída para que, no âmbito geral, a categoria desujeição econômica ganhe mais expressividade, por conta de sua variação ter sidomais iminente nos discursos. E, além do mais, por ter sido mais referendada peloscomunitários de Fátima e Livramento quando lhes foi questionada sobre as opiniõesacerca do meio ambiente onde viviam.

Essa categoria representativa deu mostras de que a estrutura interpretativaligada ao meio ambiente teve sua recente formação coletiva cimentada com valoresfuncionalistas6, os quais, de forma alguma, corroboram de modo depreciativo nainterpretação do conceito de ambientalismo junto aos comunitários de Fátima eLivramento. Contudo, essa categoria de correlação possibilitou a abertura para quenovas análises mais abrangentes levem em consideração o processo de sujeição sim-bólica da “ética ambientalista” frente a um modus operandi econômico.

Page 89: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

8 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Albuquerque Rodrigues

Desta feita, note-se a opinião acerca do tema sujeição econômica da nature-za por parte da sociedade:

O poder simbólico consiste em um poder exercido atravésdo discurso, reconhecido pelos demais e legitimado devidoà posição social de quem o profere. No entanto, somenterecebe prestígio ou poder simbólico quem detém capitalsimbólico, ou é capaz de transformar alguma espécie decapital, como por exemplo, capital econômico, cultural ousocial, em capital simbólico (BOURDIEU apud SMOLKA;GÓES; PINO, 1998, p. 218-238).

A passagem vem ao encontro da categoria que mais foi citada na pesquisasobre representações sociais dos comunitários de Fátima e Livramento, a saber“ambientalismo”. E traz ainda o aporte da questão do prestígio via detenção docapital. Essa modalidade não foi discriminada diretamente, até mesmo porque sópoderia ter aparecido mediante correlações, que não se evidenciaram no levanta-mento das categorias. Entretanto, ela foi delimitada por conta de seu conteúdo defundo, que é o mais importante nas análises que têm como base Bardin.

No que concerne à análise do conteúdo de fundo, a expectativa concen-trou-se no simbolismo. E dentro desse contexto, em segundo plano verificou-se queessa categoria correlacionada inscreve-se no seio das representações sociais comoum conteúdo intrínseco que influencia o conjunto das interpretações, sejam elas eu/outro ou eu/natureza.

O simbolismo pôde, ainda, dar acesso às interpretações sobre entendimen-tos ligados à possível sub-relação entre pobreza rural e degradação ambiental —tese já refutada por pesquisadores desse mesmo tema (WAQUIL; MARCUS;MATTOS, 2004). Nessa instância, foi necessário que se examinassem duas vertentes:1) quanto mais pobre e desinformada, pode ser que mais uma população mantenharelações de afastamento com o meio ambiente, passando assim a degradar a nature-za; 2) que riqueza ou pobreza, analisados por si só, não podem dar indicativosabsolutos que reduzam a relação homem/meio ambiente a uma relação econômicaem uma população rural (CAVENDISH, 1999 apud WAQUIL et al.).

Desse modo, ao serem identificadas essas duas categorias como sendo asmais relevantes no levantamento das representações sociais do ambientalismo nas

Page 90: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Representações sociais das comunidades rurais...

comunidades rurais de Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora de Livramento,em Manaus, ficou clara a posição de que há trabalho ainda a ser feito quanto aesclarecimentos em relação à noção de ambientalismo.

Outra tarefa sugerida, por exemplo, seria verificar o grau de disseminaçãodas RS dentre comunitários de diferentes grupos sociais de Fátima e Livramento.Desta feita, avançar-se-ia de uma “análise quase-experimental casual simples” parauma “análise quase-experimental casual por cotas grupais”.

Além dessa proposição, caberia também verificar a influência de mitos oulendas na formação das representações sociais do ambientalismo, tendo em vista asuposta noção de que a historicidade mítica da floresta e dos rios possui uma auto-função “protetora”. Ou melhor, que comunidades pouco preservadas são aquelasonde há pouca influência de mitos e lendas (LÉVI-STRAUSS, 1978).

Considerações finais

Em suma, foram passíveis de identificação duas categorias de base e duascategorias de correlação, na pesquisa sobre as representações sociais do ambientalismonas comunidades rurais ribeirinhas de Fátima e Livramento. No primeiro caso, “ne-cessidade econômica” e “simbolismo para a não-degradação com o meio ambien-te” foram as duas categorias que mais se destacaram; em segundo plano, de correla-ções, “sujeição de sobrevivência” e “identificação com o meio ambiente” se sobres-saltaram no universo da pesquisa.

Assim, optou-se pelo agrupamento das categorias para que elas não fossemconfrontadas no critério de seleção. Desta feita, a classificação no modelo casualsimples teve como critério a escolha por citação dentro das entrevistas. E sob aperspectiva da noção da correlação de categorias por conta da metodologia aplica-da, destacou-se que o foco de análise das categorias emergidas diante das interpreta-ções dos discursos das populações de Fátima e Livramento não pôde ser interpre-tado como um todo, mas apenas por seu correlacionamento e suas categorias desujeição (que, por sua vez, também são simbólicas), devido à delimitação que foidada a este artigo.

Todavia, a importância primordial da pesquisa recaiu sobre as especificidadesrelatadas nas duas principais categorias de representações sociais levantadas no estu-do e sustentadas com aportes teóricos: a) necessidade econômica (correlação desujeição para sobrevivência) e b) simbolismo (identificação com o meio ambiente).

Page 91: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Albuquerque Rodrigues

Como entendimento das prioridades que puderam ser analisadas medianteos discursos colhidos via análise de representações sociais do ambientalismo emFátima e Livramento, notou-se que essas populações, apesar de conceberem intrin-secamente a necessidade de preservação da natureza como premente, também pos-suem causas externas. Essas causas sujeitam-nas a agir de modo tal que a questão doambientalismo por vezes seja relegada ao segundo plano.

Tais causas foram determinadas ao longo da pesquisa e pôde-se notar quea mais importante delas foi a causa econômica. Esse entendimento ocorreu par-tindo-se justamente da idéia de que a formação das representações sociais doambientalismo em Fátima e Livramento ainda não se sedimentou devido às trans-formações sociais a que vêm sendo submetidas tais populações, no concernente àevolução espaço-temporal.

Notas

1 O “Petrobrás Ambiental” é um programa social da estatal, que tem como metadestinar verbas a projetos ambientais em todo o Brasil que visam contribuir para odesenvolvimento da relação do homem rural com a natureza.

2 Tais como: seminários sobre o que é cidadania e extração responsável dos recursosnaturais, gincanas culturais sobre atuação pró-ambientalismo, atividades educacio-nais sobre o uso da terra e da água etc.

3 Método em que são realizadas entrevistas diretas e individuais (gravadas ou escri-tas) com moradores do(s) local(ais), que neste caso são as comunidades rurais ribei-rinhas de N. S.ª de Fátima e N. S.ª do Livramento, sem distinção de raça, cor, credo,atividade laboral ou qualquer que seja a preferência dos participantes.

4 Ver nota 3.5 Verificar Anexo.6 Tendência de um grupo ou pessoa a se ajustar ao sistema em que vive por escolhaou necessidade.

Referências

BARDIN, Lourence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.DANON, Marcella. Ecopsicologia. Disponível: <http://www.solaris.it/indexprima.asp?Articolo=279>.

Page 92: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Representações sociais das comunidades rurais...

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 17. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 2. ed. Campinas: Papipus Editora,1997.

LÉVI-STRAUSS, Claude; BESSA, Antonio Marques. Mito e significado. São Paulo:Edições 70, 1978.

MOSER, Gabriel. Examinando a congruência pessoa-ambiente: o principal desafio para aPsicologia Ambiental. Estud. psicol., Natal, mai/ago. 2003, v. 8, n. 2, p. 331-333.ISSN 1413-294X.

SMOLKA, A. L. B.; GÓES, M. C. R.; PINO, A. A constituição do sujeito: umaquestão recorrente? In: WERTSCH, J. V.; RÍO, P. del; ALVAREZ, A. (org. ). Estudossocioculturais da mente. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 218-238.

TASSARA, Eda Terezinha de Oliveira; RABINOVICH, Elaine Pedreira. Perspectivasda Psicologia Ambiental. Estud. psicol., Natal, mai/ago. 2003, v. 8, n. 2, p. 339-340.ISSN 1413-294X.

WAQUIL, Paulo D.; FINCO, Marcus V. A.; MATTOS, Ely J. Pobreza rural e degra-dação ambiental: uma refutação da hipótese do círculo vicioso. Rev. Econ. Sociol.Rural, abr./jun. 2004, v. 42, n. 2, p. 317-340.

Anexo

Trechos de alguns discursos de comunitários de Nossa Senhorade Fátima e Nossa Senhora do Livramento

Questionamento: O que é ambientalismo?Categoria ‘Conscientização’, com indicativos de ‘Identificação’ (em Fátima).“Ambientalismo é preservar o igarapé onde você mora. É não deixar vaso

com água porque atrai doença. E eu não costumo deixar. Aqui a gente vende vinhode buriti que colhe quando o rio está cheio ou seco, dos buritizais. E costumamosusar muitas vasilhas para deixar apurar o suco do buriti, até ele virar vinho. Mas agente sabe que água parada, água em pneus, também não deve ficar guardada”.

Categoria ‘Trabalho’ (em Fátima).“Um dos problemas da falta de ambientalismo aqui em nossa região é a

Page 93: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Albuquerque Rodrigues

questão da matança ambiental e do afastamento da fauna, por causa da competiçãoentre espécies. O homem, ao povoar, compete com o animal. Caça e mata o bichopara comer”.

Categoria ‘Trabalho’ com indicativos de ‘Identificação’ (em Livramento).“Ambientalismo?! [...] Eu moro aqui há 38 anos, esta época está muito difícil

para pescar de malhadeira agora. Antes não era assim. Por isso eu estou criandopeixes. Também faço farinha para vender. Essa água aí, por exemplo (água doigarapé do Mari), a gente não toma mais dela, só cozinha.”

Categoria ‘Lazer’, com indicativos de ‘Trabalho’ (em Livramento).“Ambientalismo é tudo o que está ao nosso redor, é onde nós moramos e

por isso devemos preservar. Quando tenho folga, meu lazer é plantar, é ir para omato. Isso aqui onde nós estamos é uma área reservada para turistas, para eles”.

Categoria ‘Trabalho’ com indicativos de ‘Identificação’ (em Fátima).“Hoje em dia as pessoas destroem o meio ambiente. Aparecem muitas

doenças hoje, mas eu proibi todo mundo aqui em casa de desmatar, porque euplanto orquídea e vendo em Manaus. Eu trato de galeânderas, você conhece? Agoraminha idéia é de trabalhar na piscicultura”.

Page 94: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Carlos Lopes*

ResumoO presente artigo discute as mudanças na noção de espaço e tempo, que questionampremissas históricas, agora invadidas por um acúmulo de informação, acesso maisfácil a comunicações e a necessidade de entender esse mundo globalizado com aber-tura para a diversidade e liberdade cultural, além de uma atualização da moral e daética. Mesmo porque, como demonstra o autor, o mundo não vive um choque decivilizações, mas uma civilização humana diversa e plural, que precisa ser reconhecida.

Palavras-chave: globalização; desenvolvimento; comunicação.

AbstractThis article discusses the changes in the notion of space and time, wich puts intocheck historical premises now invaded by a accumulation of information, easieracess to communication and the need to understand this globalized world withopening towards cultural diversity and liberty, in addition to an updating in moralsand ethics. More so, as the autor has demonstrated, the world does not go througha civilization shock, but diverse and plural human civilization that needs to beacknowledged all.

Keywords: globalization; development; communication.

O desafio ético de um desenvolvimento com diversidade

* Formado em Economia do Desenvolvimento e Sociologia pela Universidade de Genebra e com PhD em História daUniversidade de Paris 1, Pantheon-Sorbonne. É atualmente o representante da ONU e do PNUD no Brasil.

Page 95: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O desafio ético de um desenvolvimento...

Introdução

Definida de forma vária, a transformação do mundo, a que assistimos de-samparados, provoca uma gravitação dos processes econômicos, sociais e culturais,fazendo-nos perder referências familiares e sentimentos confortáveis. As mudançassignificativas na nossa noção de espaço e tempo questionam premissas históricas,agora invadidas por um acúmulo de informação, acesso mais fácil a comunicaçõese uma revolução nos métodos quantitativos. A globalização é vista como um pro-cesso de riscos e oportunidades, desenhada em função de uma capacidade de inser-ção e aproveitamento da economia mundial, caracterizada por desafios novos efortes; e uma acentuação da polarização e heterogeneidade.

A falta de preparação para enfrentar este admirável mundo novo poderesultar em formas novas de exclusão, provocadas, por exemplo, pela grande mo-bilidade de capital, bens e serviços, enquanto se restringe a livre mobilidade da mão-de-obra. É assim natural que os mecanismos de regulação reflitam estas prioridadesassimétricas. Eles não garantem uma coerência na utilização dos preceitos de merca-do, já que tendem a privilegiar políticas macroeconômicas que obtenham uma ade-quada rentabilização e tributação do capital.

Vão-se gerando, ao mesmo tempo, nas outras formas de equilíbrio necessá-rias para expandir as oportunidades de todos, tensões palpáveis. Estas deficiênciasrepercutem nas formas de governabilidade dos problemas mundiais. E assim flo-resce um crescente apelo a formas de cidadania global. Esse é um cardápio comple-xo que obriga a refletir sobre a relação desenvolvimento e ética.

A globalização é um fenômeno multidimensional que se inscreve nainternacionalização da economia mundial. Pretender que o seu locus se junte ao co-mércio e investimento, finanças ou regimes macroeconômicos, não faz sentido. Asassimetrias que cria mudam os comportamentos e instituições e têm um impactodireto na vivência cultural. O apelo à diversidade e o papel das imigrações contem-porâneas têm de ser analisados com uma acuidade superior.

A ética e sua releitura da moral podem ajudar a melhor definir o novo papeldo desenvolvimento. A adoção de políticas que respeitem a multi-identidade emulticulturalidade é a única abordagem sustentável de desenvolvimento. Contraria-mente às teses sobre o choque de civilizações (HUTTINGTON, 1996), o mundoprecisa é de reconhecer que não existem identidades puras, e o caminho a seguir é oreconhecimento de uma dimensão singular a todas as manifestações de caráter

Page 96: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Car los Lopes

identitário (RIBEIRO, 2003). A resistência xenófoba à diversidade cultural susten-tou-se no passado pela defesa da autenticidade e do caráter nacional. Hoje, ela seesconde em políticas de intolerância glorificadoras de tradições herdadas, ou ver-sões ortodoxas de catequeses religiosas. O desenvolvimento humano, definido comouma constante expansão das oportunidades dos indivíduos e sociedades, merece eprecisa da defesa das liberdades culturais de todos e de cada indivíduo.

1 Qual o legado histórico

Os seres humanos inteligentes sempre acham que vivem numa época singu-lar, cheia de acontecimentos únicos e marcantes. Há um pouco de verdade nessapercepção, mas muita dessa verdade também é ofuscada por uma sobrevalorizaçãoda diferença em relação a épocas passadas. Em termos de conteúdo universal, osdilemas das sociedades humanas muitas vezes são repetitivos. Por exemplo, o alarga-mento da democracia para além dos eleitos cidadãos gregos da Antiguidade é umtema que ainda não se esgotou. Os debates recentes sobre a democracia representa-tiva mostram que nem o sufrágio universal resolveu a questão dos direitos políticose da plena cidadania.

Se a globalização é um processo de identificação das relações entre socieda-des, então temos que admitir que isso acontece há milhares de anos e já nos trouxe:dissabores históricos como o tráfico de escravos; ou vantagens como a divulgaçãodos conhecimentos científicos, expansão do comércio ou maior intercâmbio entreos povos. Estudos recentes na Itália e Inglaterra mostram que existem muitas seme-lhanças entre a época atual e o final do século XIX1. A proximidade que todostemos do tempo dos nossos avós e bisavós é bem maior do que normalmenteadmitimos (BURKE, 2004).

O que nos faz ter a sensação de vivermos um momento paradigmático é ofato do poder enorme de destruição já não ser privilégio dos mais fortes. O terro-rismo contemporâneo introduziu o medo nas sociedades ocidentais e universalizoua insegurança humana para os territórios protegidos: cidades; subúrbios de classemédia; ou países ricos. Em vez da inspiração iluminista de uma sociedade maisintegrada, ou das promessas do socialismo ou da social democracia de uma socie-dade mais igualitária, repartindo os serviços de um Estado providência, estamosperante uma civilização do medo. O medo como conseqüência direta de uma distri-buição desigual e de uma concentração de riqueza sem precedentes. Aliás, o grande

Page 97: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O desafio ético de um desenvolvimento...

erro do projeto iluminista foi dar uma importância desmesurada à transformação eà conquista do mundo objetivo, em relação à questão dos desejos e ao ladocontemplativo da realidade humana (GIANETTI, 2002)2.

O projeto civilizatório ocidental não conseguiu, nem consegue, domar arevolta dos que não têm nada a perder e se refugiam na intolerância e recusa dosvalores democráticos. A globalização causou – isso mesmo – uma crise de valores!Questionar os valores faz parte do percurso da humanidade. Também neste quesitoa originalidade em relação ao legado histórico é diminuta. Os grandes momentos daHistória estão marcados precisamente por terem trazido, mais do que acontecimen-tos de monta, uma discussão dos princípios éticos das sociedades: a volta de Deus,do homem – isto na sua dimensão eterna e imutável de humanismo – ou da nature-za, como fonte a-histórica da moral. Estas três concepções procuram a moral forado homem concreto, histórico e social, assumindo, justamente, que o comporta-mento moral se encontra no homem desde que existe. A moral muda e avançaconforme as sociedades se desenvolvem (VASQUEZ, 2003). A mudança moralpor sua vez nos coloca perante a necessidade de definir as causas e fatores que adeterminam. O recuo histórico é o primeiro passo: através deste, entendemos ecolocamos a discussão no trilho certo, que é saber se existe um progresso moral dassociedades (VASQUEZ, 2003).

Num mundo em que qualquer grupúsculo pode se armar até os dentes eobter informações com intenções nocivas e letais, há necessidade de entender qual odesafio moral que nos levou a esta situação? Não estará a nossa crise de segurançarelacionada com a nossa crise de solidariedade? Não estarão os nossos princípios deliberdades individuais distorcidos no básico respeito à diferença? Onde se coloca olimite ao individual? Serão estas questões realmente novas?

A evolução do conceito de desenvolvimento tem muito a ver com estasinterrogações. Durante os últimos sessenta anos criaram-se expectativas enormes depropagação de uma regulação internacional baseada em princípios de direito, consa-grados por uma panóplia de instrumentos jurídicos. O princípio da soberania serviude base para as relações internacionais. O princípio de mercado orientou as receitasdesenvolvimentistas, com mais ou menos Estado, segundo vários modelos. Os or-ganismos internacionais, os agentes reguladores de uma governabilidade mundial,serviram de árbitros para a construção desta arquitetura que tinha na DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos a sua página ética e moral.

Page 98: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

9 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Car los Lopes

O mundo foi mudando e hoje se interrogam princípios, como o da sobe-rania, a não agressão, ou o direito de resposta militar, como se viu recentementecom a crise do Iraque. O fator paradigmático por detrás das manchetes dos notici-ários sobre estes assuntos é a emergência de um debate ético e de teor moralista. Sóque a moral assim vista tem ângulos tão opostos como a polarização provocadapela globalização.

Um livro recente (CHANG, 2003) apresenta uma argumentação interessan-te. Segundo Chang, os países em desenvolvimento sofreram, nas últimas décadas,uma série de pressões por parte do establishment econômico mundial, para adotarem“boas políticas”. Estas recomendações estreitaram a margem de manobra dos paí-ses e diminuíram as opções de política pública que os Estados dependentes podemusar. Entre estas políticas figuram políticas macroeconômicas restritivas, a liberalizaçãodo comércio internacional e dos investimentos, a privatização e a desregulamentação.Para além destas políticas, é necessária uma boa governança que se caracteriza poruma democracia liberal, uma boa burocracia, um judiciário independente, forte pro-teção aos direitos privados (incluindo os intelectuais) e uma regulação eficaz domercado – sobretudo nas áreas financeiras, tal como um Banco Central indepen-dente. O que muitas vezes se assume, erradamente, é que os países desenvolvidos sedesenvolveram graças a essas características. O que Chang demonstra minuciosa-mente é que tal se trata de um segredo de polichinelo: os países ricos não se enrique-ceram com tais instituições ou políticas, antes as adotaram à medida que se foramdesenvolvendo.

A telescopagem histórica é tanto compreensível como desprezível. Com-preensível na medida em que com a integração dos debates globais e a velocidadeda informação se tem muitas vezes a impressão de que todas as sociedades vivemno mesmo diapasão institucional e, por conseqüência, de princípios éticos, também.Desprezível porque não se justifica que, com o grau de sofisticação de análise dispo-nível, se chute a escada depois de subir, como metaforicamente classifica Chang aatitude arrogante do establishment. Até que ponto não se está escondendo a receita dosucesso, através da utilização de uma força reguladora internacional? (CHANG, 2003).Até que ponto se esquece o legado histórico da globalização em nome, justamente,de uma sociedade, dita do conhecimento?

Page 99: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O desafio ético de um desenvolvimento...

2 Uma sociedade do conhecimento ou da ignorância?

Podemos definir conhecimento como a organização da informação pararesponder a questões ou solucionar problemas. Conhecimento pode assim ser vistoquer como fluxo ou atividade, quer como estoque dos produtos do fluxo. Enquan-to o primeiro se relaciona com a dimensão criativa, o segundo é o resultado daacumulação de atos criativos de estruturação das idéias. Aprendizagem seria assim oacesso ao conhecimento (MURTEIRA, 2004).

Durante muito tempo, o saber tinha muito mais a ver com o ser do quecom o ter e fazer, como parece ser hoje o foco. Não é, pois, de admirar que oconhecimento se tenha transformado, graças à evolução das tecnologias de infor-mação e comunicação, num mercado com regras próprias que delimitam o acessoem função de direitos privados de propriedade intelectual. E aqui está o paradoxo:nunca circularam tanto a informação e o conhecimento no mundo, mas estes sãohoje restringidos por regras sólidas de estruturação do acesso. Os logiciais são umaforma de segmentação de Mercado aos conhecimentos. A natureza do conheci-mento científico é uma demonstração desta concentração. As indústrias criativas sãouma outra. A deslocação do alto valor agregado do colarinho azul para o colarinhobranco é a metáfora para a economia do conhecimento. Mas esta metáfora tem deser cautelosa.

Os inovadores do virtual são hoje o equivalente ao cambista no mercantilismo,ou o industrial no fordismo. O conhecimento implica capacidade para organizar ainformação disponível, mesmo que não codificada, para responder a uma questãoou resolver um problema. Assim, tal como o investimento no chamado capital fixo,o conhecimento pode ser analisado em tempo determinado. Mas, enquanto o capi-tal fixo se desvaloriza com o tempo (ou seja, a capacidade produtiva se deprecia,por obsolescência ou desgaste), o mesmo não acontece, necessariamente, com oconhecimento. A sua acumulação aumenta o valor. Isto obriga a uma revisão dateoria do valor.

Por exemplo, está em moda propor às corporações e entidades públicasuma gestão do conhecimento. O âmbito desta proposição é enorme. Presume-se,uma vez mais, que existe um nivelamento internacional e institucional que permitiriautilizar as mesmas técnicas de forma estandardizada. Na realidade, a assimetria noacesso à informação tem repercussões na valorização do conhecimento. O conheci-mento sobrevalorizado corresponde aos indivíduos e sociedades com maior poder

Page 100: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Car los Lopes

econômico; já o subvalorizado, aos indivíduos e sociedades com fraco acesso àdivulgação; portanto, isolados de várias formas de participação, incluindo, evidente-mente, a provocada pela divisão digital.

Quando antes se falava em fatores produtivos, o pensamento econômicoreferia-se a bens tangíveis como terra, capital e trabalho. O tratamento da evoluçãotécnica e tecnológica perturbaram esta tríade, falando-se agora de capital fixo nãoincorporado, ou fatores residuais não diretamente mensuráveis, para tentar captar oconhecimento. A análise defronta-se de chofre com a intangibilidade de mensuraçãodo conhecimento, ao mesmo tempo em que se reconhece a sua centralidade(MURTEIRA, 2004).

Duas correntes ganharam força na tentativa de estabelecer os parâmetrosda contribuição do conhecimento para o desenvolvimento: as teorias sobre o capitalhumano e organizacional e as relativas ao capital social. Sem querer entrar aqui nodebate polêmico relativo a estas teorias, interessa reter que a questão do conheci-mento muda radicalmente o nosso entendimento de como conceber desenvolvi-mento. Se desenvolvimento humano tem a ver com a expansão de oportunidades, oque pressupõe, como explica Sen (2002), uma idêntica expansão das liberdades,então a forma como se organiza o acesso, a divulgação e a partilha de conhecimen-tos é crucial.

Num estudo sobre o futuro do milênio, um grupo de cientistas (GLENN,2003) concluiu que a maioria das pessoas não tem idéia da velocidade dos avançosna ciência e tecnologia. Áreas como a nanotecnologia, biotecnologia, inteligênciaartificial e ciências cognitivas terão progressos espetaculares nos próximos 25 anos.A produtividade de indivíduos e de grupos dominadores destas tecnologias será tãorápida que vai necessitar de novas interpretações éticas e morais. A fronteira dosconhecimentos entre estes grupos e uma maioria de marginalizados será tão grandeque, enquanto uns estarão lidando com biométrica, cirurgia restaurativa do cérebroe dos olhos, para aumentar a longevidade, outros continuarão a lutar pela sobrevi-vência.

A dimensão polarizante do conhecimento, mais do que qualquer outra di-mensão, demonstra que quanto mais se sabe mais se pode ignorar o outrem. Umaboa demonstração disso mesmo é a forma como a mídia está regulada. Deve-seolhar com cuidado a interface entre o negócio de jornalismo e a ética de reportar. Opoder e a riqueza podem corroer esta interface. Existe um fenômeno chamado

Page 101: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O desafio ético de um desenvolvimento...

sinergia que consiste em associar a mídia que chega ao indivíduo a toda uma cadeiade relações de dependência que permitem às mesmas autoridades decidir sobre apublicidade num veículo de mídia sobre o produto de outro (revista, jornal, televi-são, cinema, CD, DVD, merchandising etc.) que é incompatível com a ética jornalísticacomo princípio estruturante (AULETTA, 2003). Uma cultura de mercado substituiuma cultura de notícias, baseadas na idoneidade. O Ibope passa a ser mais impor-tante que o conteúdo. As escolhas diminuem. As concentrações do conhecimento eda informação permitem a grandes conglomerados decidir sobre o que divulgar,para quem e a que custo: um mercado segmentado que, paradoxalmente, é o resul-tado de um desdém por certo tipo de participação e conhecimento. Essa ignorânciamoral só pode ser corrigida através de princípios éticos comuns.

3 Que é comunidade internacional?

Em nome de princípios comuns, ouve-se muito falar de comunidade inter-nacional. O que é? Quem define seu conteúdo e prioridades? Quem decide quem émembro ou excluído?

Na mídia, a expressão comunidade internacional é usada para projetarantropomorficamente uma entidade imaginária por detrás daquilo que se pensa serum consenso ou a opinião preponderante sobre determinado tema (CRAVINHO,2002). Por vezes, refere-se a uma resolução ou tomada de posição das NaçõesUnidas, esta mesma subdividida entre o seu Secretariado, com múltiplas agências eopiniões, e a Assembléia Geral ou o Conselho de Segurança – órgãos deliberativoscom poder desigual. Outras vezes refere-se pura e simplesmente à opinião de umgrupo majoritário de países. Muitas vezes, trata-se, apenas, da opinião de algunspaíses com influência mundial.

A idéia de comunidade, definida por Max Weber, caracteriza-se por laçosde afetividade. Mesmo acompanhando o raciocínio de Weber, segundo o qual ascomunidades tendem a criar regras de racionalidade utilitária, em vez das afetivas,transformando-se, assim, em sociedades, fica difícil imaginar que uma tal entidadeinternacional coesa exista. As comunidades, por natureza, são espontâneas, o quedificilmente se coaduna com as tomadas de posição, normalmente sobre conflitos,que se presta a comunidade internacional. Se existisse uma sociedade internacionalela teria regras como as do direito internacional, regulamentação diplomática oupráticas correntes. Ela deveria reger-se por comportamentos equivalentes à norma

Page 102: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Car los Lopes

social com princípios idênticos, sendo que o mais importante deles tem a ver com apreservação da vida e do bem-estar. Caso contrário, não haveria incentivos para secumprir normas e ter expectativas de comportamento por parte de outros. Umadas distinções entre a anarquia e a sociedade tem a ver com essa previsibilidade(CRAVINHO, 2002).

Hoje em dia, a previsibilidade está seriamente ameaçada, tanto do pontovista da segurança humana (a sociedade) como do da segurança pública (o indiví-duo). Em ambos os casos, esta insegurança altera as regras de convívio social e, porconseqüência, requer uma releitura do papel da estrutura mais próxima de sociedadeinternacional: as Nações Unidas.

Nas últimas décadas, inúmeras Conferências globais, sob a égide das Na-ções Unidas, tentaram mapear os déficits de previsibilidade: nas questões ambientais,científicas e humanas. Essas conferências atingiram seu ápice em 2000 quando, numarodada histórica, a Assembléia do Milênio aprovou uma declaração que defineparâmetros de convívio para o futuro. Definiu-se um conjunto de objetivos, quevisam à redução do fosso entre ricos e pobres, como pauta para esse convívio. Estaagenda visa emprestar um sangue novo, uma nova bandeira ao trabalho das NaçõesUnidas. Até 2015 – a data fetiche de referida para atingir os Objetivos do Milênio –poderá se introduzir uma previsibilidade que talvez permita uma nova segurançahumana e pública. Trata-se de uma proposta moral, que será julgada em termosmorais. Para tanto, torna-se necessário entender em que bases se legitimarão as novashegemonias.

4 Que legitimidade emergirá no futuro próximo?

No campo das redes internacionais uma das teses mais interessantes se ins-pira no argumento de que a uma ordem política internacional se sobrepõe outra, decariz econômico, que é de natureza liberal. Para a última, interessa uma estabilidadeque é oferecida pelo investimento de um poder hegemônico, digamos os EstadosUnidos, mas que beneficia muitos outros. À medida que os outros vão sendo pou-pados dos custos da manutenção da estabilidade (embora tirem partido dela), insta-la-se uma certa crise. Seguindo-se uma análise neo-realista chega-se à conclusão deque a estabilidade hegemônica, assim definida, começa por interessar as potênciasmais fortes, mas pode também ser objeto de contenda pelas mesmas potências(CRAVINHO, 2002). Nada impede que o conceito de estabilidade hegemônica –

Page 103: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O desafio ético de um desenvolvimento...

introduzido por Charles Kindleberger3 para explicar a depressão econômica dosanos 30 – possa servir para revisar a própria globalização. O conceito pode seralargado muito além das matérias-primas, acesso a capital e crédito, controle demercados e vantagens competitivas na produção de bens, para incluir também co-nhecimento, segurança ou normas internacionais de comportamento (CRAVINHO,2002).

Na linha do alargamento do conceito, hegemonia pode ser definida como“o conjunto de pressões que define os limites aceitáveis para decisões autônomas eque produz, por conseguinte, padrões repetidos de comportamento no plano inter-nacional” (CRAVINHO, 2002). Está implícita, nesta definição, que para além deforça material ou militar, existem hegemonias baseadas em corpos de idéias e deconhecimentos, fundamentados em redes normativas – que não se reduzem neces-sariamente apenas à influência de Estados. Desde logo, é possível detectar que asegmentação do acesso ao conhecimento delimita o grau de participação de uns eoutros nas redes normativas que definem os conteúdos hegemônicos.

Estamos perante uma evolução do conceito de estabilidade hegemônica,centrada na economia, aqui tradicionalmente definida, para algo substancialmentemais vasto e poderoso. Onde há estabilidade, desta feita, exerce-se uma certahegemonia e vice-versa. Só que estabilidade passaria assim a ter o conhecimentocomo centro. As comunidades, mais do que a “comunidade internacional”, podemse constituir em blocos de interesses epistêmicos4 a jusante da hegemonia. Uma vezdefinidas novas normas, essas comunidades legitimam-se.

O mundo está vivenciando um maremoto através dessas novas formas dehegemonia e legitimação. São elas que vão definir as fronteiras demográficas, asnovas formas de encarar o papel do gênero em relação ao trabalho e poder, oslimites aceitáveis da exclusão, o combate ao efeito de estufa ou desmatamento dasflorestas, a luta pelo acesso à água potável ou a definição de luta contra o terror. AInternet potencia estas novas redes normativas e cria, por default, não só uma novaarquitetura social mundial, mas também uma nova ética, tal como uma ciberculturaestá despertando uma ciber-ética. Para entender estes desafios é necessário ultrapas-sar a visão tradicional do imperialismo, como nos lembra Lins Ribeiro (2003). Se-gundo este autor, só o reconhecimento de novas cosmopolíticas, para cuja articula-ção a rede é fundamental, permitirá construir discursos contra-hegemônicos a umacerta forma de globalização excludente.

Page 104: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Car los Lopes

5 Que papel para as elites no mundo de hoje?

A elite é um grupo que, para além do seu lugar funcional, tem uma liderançanatural nos processos de transformação. Desgastadas pela superexposição dos mé-todos quantitativos introduzidos pela sociologia americana, as elites jogam a defesaenquanto grupo. Não é de bom tom falar de elite, exceto através da valorização dasociedade do espetáculo. O culto à celebridade camufla a influência midiática naconstrução de novas formas de aculturação e simbologia.

A República, portadora dos valores de integração cidadã e de laicização doEstado, fundou-se no Direito. As elites souberam operar a transformação atravésdo alargamento da participação, da construção de valores de interesse público etradições de humanismo cívico (BIGNOTTO, 2002). O papel da elite serviu desustentáculo para a transformação operada pelo republicanismo. Mas as formasaglutinadoras de identidade nacional foram seriamente abaladas com um conjuntode desenvolvimentos políticos que mudaram, para pior, o entendimento sobre osvalores democráticos. A pressão de novos movimentos e atores sociais criou umasociedade civil ativa e participante. A reivindicação de espaço é constante. A distin-ção entre público e privado ficou mais tênue. Os novos liberais celebram a apatiapolítica, por acharem que é uma demonstração pelos cidadãos da falta de entusias-mo para com o papel do Estado (BIGNOTTO, 2002). Os pós-modernos achamque se chegou mesmo ao fim da política como terreno predileto de decisão.

Estes desenvolvimentos são complicados, porque isolam a defesa do bemcoletivo público, exceto quando se trata do somatório de vários interesses pessoais.Com o controle do conhecimento e de redes normativas, as elites poderão definiros novos valores morais, que legitimarão essas escolhas. Todos precisamos estarconscientes disso.

6 Que quadro ético se esboça?

Do grego ethos, ética pode ser definida como estudo dos limites entre ocerto e o errado; dos costumes, obrigações e valores morais de conduta coletiva; ea homogeneidade de comportamentos sociais. Definir ética é um passatempo filo-sófico importante que ocupou Aristóteles, Max Weber, Karl Marx e muitos mais.

Page 105: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O desafio ético de um desenvolvimento...

A essência do pensamento referencial de Aristóteles em relação à ética é acapacidade de buscar incessantemente o bem comum na base da virtude e excelên-cia; para se ser feliz, são necessárias três realizações: possuir bens materiais; para alémde possuir, usufruir; e ter prazer (CHALITA, 2003). O pensamento aristotélico giraem volta das escolhas e da necessidade de deliberar para que estas se processem. Éno de deliberar que se exercem as escolhas éticas.

A ética racionaliza uma experiência humana na sua totalidade, diversidade evariedade:

O que nela se afirma sobre a natureza ou fundamento dasnormas morais deve valer para a moral da sociedade gre-ga, ou para a moral que vigora de fato numa comunidadehumana moderna. É isso que assegura o seu caráter teóri-co e evita a redução a uma disciplina normativa ou prag-mática (VASQUEZ, 2003).

Ou seja, a ética teoriza o comportamento moral dos homens em sociedade.E é por essa razão que precisamos constantemente atualizar nossas noções sobre amoral. Como todos os atos morais pressupõem a necessidade de escolha, temos deentender por que o mundo de hoje assiste a determinadas escolhas. Logo, precisoentender que a segmentação do conhecimento, a reorientação da estabilidadehegemônica, através de novas redes de influência, requer, por natureza, uma moraligualmente segmentada e, porque não, assimétrica. “Ter de escolher supõe, portanto,que preferimos o mais valioso ao menos valioso moralmente” (VASQUEZ, 2003).Nós avaliamos as escolhas em termos axiológicos, ou seja, do seu valor. QuandoMarx se referia ao fetichismo da mercadoria, estava-se a referir à noção de valor na suadimensão material, mas igualmente ao papel desmembrador do capitalismo nas esco-lhas morais. O que seria ético nem sempre seria o preferido pela lógica capitalista.

Princípios contrários à lógica marxista foram defendidos por Weber, segun-do o qual a ética protestante era a principal responsável pelo desenvolvimento capita-lista de certos países. Depois, se disse o mesmo de Confucius para justificar o espeta-cular desempenho da Àsia do Sudeste e China. Mais recentemente, fez-se apelo à éticajanaísta do cultivo individual para explicar o boom indiano (MOHANTY, 2000).

Na realidade, o desenvolvimento é o resultado de muitos fatores. A existên-cia de uma ética própria serve para aumentar o sentido de comunidade e de auto-

Page 106: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Car los Lopes

estima, fatores entre os mais valorizados na capacitação dos indivíduos, instituiçõese sociedades. Em tempos de imprevisibilidade, o recurso à discussão ética é sinal devalorização e auto-estima.

Mas existem sempre variações no discurso ético de qualquer sociedade.Estas se têm exacerbado com a globalização. Enquanto nas sociedades ocidentais atendência vai ser de uma individualização tamanha, que provocou uma auto-éticaespecífica de cada um, em muitas outras regiões do mundo a defesa da tradição vai-se erguer em barreira contra essa possibilidade. As grandes religiões universalistas,referências éticas importantes, não podem mais, no mundo contemporâneo, fun-cionar na base de interpretações centralizadas de clérigos. Onde estes tiverem espaçopara o fazer está em atividade um tremor de terra. Ao contrário do que as notíciasnos possam transmitir, as lutas de hoje são mesmo contra poderes hegemônicos devários campeonatos. A concentração no mais importante pode ofuscar outras redescontra-hegemônicas menos visíveis ou significativas. Mas nenhuma sociedade estáimune aos ventos da mudança provocados pelas novas formas de protesto e cida-dania. Nem mesmo a Arábia Saudita.

6 Os desafios da diversidade e a liberdade cultural

As reivindicações de reconhecimento e igualdade de diferentes grupos étni-cos, religiosos e lingüísticos compreendem uma das questões mais urgentes que afe-tam a estabilidade internacional e o desenvolvimento humano no século XXI (PNUD,2004). No mundo de hoje, mais de 5.000 grupos étnicos vivem em aproximada-mente 200 países. Em dois de cada três países, há, pelo menos, um grupo étnico oureligioso minoritário substancial, representando 10 por cento da população ou mais.Um sétimo da população mundial – cerca de 900 milhões de pessoas – enfrentauma ou outra forma de discriminação por causa da sua identidade étnica, racial oureligiosa. Os grupos étnicos e religiosos excluídos pela sociedade mais ampla ou porela denegridos estão a reagir através do ativismo.5 As políticas de identidade podem,nestas circunstâncias, polarizar comunidades e nações inteiras, semeando o ódio eameaçando a paz e o desenvolvimento. Dos povos indígenas da América Latina àsminorias religiosas do Sudeste Asiático e às minorias dos Balcãs, aos Xiitas, aosSunitas e aos Curdos do Iraque, aos grupos étnicos de África aos imigrantes daEuropa Ocidental, muitas pessoas estão atualmente a mobilizar-se segundo linhas

Page 107: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O desafio ético de um desenvolvimento...

étnicas, religiosas, raciais e culturais. Este fenômeno deve-se a muitos fatores conver-gentes, entre os quais:

• A disseminação da democracia, que deu aos grupos excluídos mais espaçopolítico e mais opções para protestos baseados em razões de queixa históricas;

• Os progressos da globalização e da comunicação, que criam novas redes ealianças;

• O ritmo acelerado da migração internacional, que cria, fora do país natal,um eleitorado que apóia as exigências de reconhecimento cultural.

A liberdade é tanto uma necessidade para o desenvolvimento humano comopara a democracia e as oportunidades econômicas (PNUD, 2004). As políticas queacolhem a diversidade e fomentam o multiculturalismo têm de ser integradas noprocesso de desenvolvimento para garantir o crescimento, a estabilidade e umagovernação democrática.

Nas últimas décadas do século XX, assistiu-se a um dos maiores surtosmigratórios da história mundial. O número de imigrantes da Ásia, da África e dasAméricas na União Européia deu um salto de cerca de 75%, entre 1980 e 2000. AAmérica do Norte testemunhou um influxo ainda maior, com o número total deresidentes estrangeiros nos Estados Unidos a aumentar 145% no mesmo período,passando de 14 para 35 milhões. O que distingue este fenômeno dos surtos migra-tórios dos séculos anteriores são não só os números elevados, mas também o papeltransformador da tecnologia: em todo o mundo, as revoluções das telecomunica-ções e dos transportes tornaram possível aos imigrantes manter simultaneamenteduplas ou até múltiplas identidades culturais e diferentes interesses. Hoje, os imigran-tes podem, querem e devem ser capazes de continuar envolvidos com os seus paísesde origem, sem comprometer o seu empenho ou a sua lealdade para com os seuspaíses de recente adoção – dizem os autores. Defendem que os países que acolhempopulações imigrantes precisam de se adaptar à diversidade e de introduzir novaspolíticas de reconhecimento cultural em vez de apostarem na assimilação.

Segundo um estudo do projeto Minorias em Risco, da Universidade deMaryland, citado no Relatório do Desenvolvimento Humano (PNUD, 2004), outraárea importante de diversidade e liberdade cultural diz respeito aos bens culturais.Os bens culturais são diferentes de outros produtos comercializados porque “trans-portam idéias, símbolos e estilos de vida e são parte intrínseca da identidade dacomunidade que os produz” – dizem os autores, que defendem exceções para os

Page 108: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 0 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Car los Lopes

bens culturais nos acordos internacionais de comércio. A diversidade cultural nasartes diminuiria, radicalmente, se ficasse entregue apenas às forças do mercado(PNUD, 2004). A prova econômica é convincente:

• O comércio mundial de meios de entretenimento – cinema, radiodifusão,música, literatura, artes visuais – quadruplicou nas últimas duas décadas, passando de95 mil milhões de dólares por ano para cerca de 380 mil milhões de dólares. Cercade 80% deste fluxo de comércio cultural tem origem em apenas 13 países, lideradospelos Estados Unidos.

• Só as produções dos Estados Unidos representam atualmente cerca de85% dos filmes exibidos em todo o mundo. Os dez filmes que mais receitas gera-ram desde sempre em mercados fora dos Estados Unidos são todos feitos nosEstados Unidos da América, como o filme “Titanic”, de 1997, que fez mais de 1,2mil milhões de dólares nos mercados internacionais, em primeiro lugar.

Defender a diversidade cultural no mundo global não tem sentido se não seprotegerem formas de participação e identidade no interior dos próprios países. Omundo tem de se preparar para viver o multiculturalismo. As contradições com oprojeto de Estado-Nação desenhado após a Revolução Francesa são cada vez mai-ores. O estatuto político das minorias é fundamental para alicerçar e preservar ademocracia.

Quase todas as grandes democracias que são étnica ou lingüisticamentediversificadas praticam alguma forma de federalismo assimétrico: a Bélgica, a Fede-ração Suíça e a Espanha são exemplos proeminentes. O êxito dos arranjos federaisdepende de um plano cuidadoso e da vontade política de melhorar o funcionamen-to democrático do sistema. O que importa é se os arranjos acomodam diferençasimportantes, apoiando mesmo assim as lealdades nacionais. Um terreno importantede discussão sobre o tratamento assimétrico é a realidade dos negros e pardos noBrasil, excluídos de várias formas de poder e carregando ainda um legado históricopesado. São necessárias políticas assimétricas quando existem desvantagens coletivas.Muitas experiências de ação afirmativa trouxeram ensinamentos importantes paraque essas reparações não se transformem em caldeirões de tensão racial e de isola-mento identitário. Qualquer política de afirmação deve salvaguardar o conceito multi-identitário dos indivíduos.

Page 109: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O desafio ético de um desenvolvimento...

Os Estados também têm a responsabilidade de proteger direitos e de ga-rantir liberdades para todos os seus membros e de não discriminar ninguém combase na religião ou credo. Os Estados não discriminatórios devem proteger a liber-dade religiosa e a escolha individual:

• Todos devem ter o direito de criticar, alterar ou por em causa o predomí-nio de uma interpretação particular de crenças fundamentais;

• Clero ou outras hierarquias religiosas devem ter o mesmo estatuto que osoutros cidadãos;

• As pessoas de uma religião devem ter a possibilidade de serem responsa-velmente críticas em relação às práticas e convicções de outras religiões;

• As pessoas devem ser livres não só para criticar a religião em que nasce-ram, mas também de a rejeitar e trocar por outra ou de ficar sem nenhuma.

A identidade cultural não é um jogo de soma zero. Os falantes de umalíngua materna que não seja língua dominante ou oficial de um país – seja ela obasco, em Espanha, o zulu, na África do Sul, ou o urdu, no Reino Unido, ou oespanhol, nos Estados Unidos da América – pode, mesmo assim, participar inteira-mente na cultura e na política nacional. As limitações da capacidade das pessoasusarem a sua língua nativa – e a facilidade limitada de falarem a língua nacionaldominante ou oficial – pode excluir as pessoas da educação, da vida política e doacesso à justiça. A África Subsariana tem mais de 2.500 línguas, mas a capacidade demuitas pessoas usarem a sua língua na educação e nas relações com o Estado éparticularmente limitada. Em mais de 30 países da região, a língua oficial é diferenteda que é mais vulgarmente usada. Apenas 13% das crianças que recebem educaçãoprimária o fazem na sua língua nativa.

Conclusão

O mundo não vive um choque de civilizações. O mundo vive uma civiliza-ção humana diversa e plural. Entender este mundo requer uma abertura à diversida-de e à liberdade cultural. Essa atitude não pode ser entendida, e muito menos defen-dida, sem uma atualização da moral e da ética. Essa atualização deve comportar ascautelas aqui evocadas. Nada é mais redutível a unidades celulares. Descobrimos,com o genoma humano, a complexidade do que somos. Descobrimos, com a física

Page 110: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Car los Lopes

quântica, a gama de atributos do universo. Mas, paradoxalmente, os seres humanostêm dificuldade em admitir que não existem identidades tão finamente definidas eclassificadas. O desafio ético de hoje, esse passatempo dos filósofos, é admitir estasdiferenças e considerá-las enriquecedoras.

Notas

1 Num artigo assinado por Burke (2004), ele menciona as teses defendidas por CarloFumian, segundo as quais a globalização surgiu como tomada de consciência inte-lectual em 1870-1914 e logo foi catapultada por Theodore Levitt a uma dimensãomais midiática em 1980. Burke refere-se também a um livro recente, escrito porChristopher Baily, onde este chama de crise o período 1780-1820, durante o qual aassimilação dos princípios da Revolução Francesa e o impacto do Impérionapoleônico criaram as condições para uma “grande aceleração” das transforma-ções em 1890-1914. Existem muitas outras versões sobre o início da globalização,porque a própria terminologia de globalização ou mundialização se presta a váriosequívocos.

2 Segundo Gianetti (2002) “todo o sofrimento humano, não importa qual seja, resul-ta de uma incongruência entre a nossa vontade e desejos, de um lado, e o curso dosacontecimentos que nos afetam, de outro”; ou seja, “nenhum homem jamais seriainfeliz se ele pudesse alterar os seus sentimentos” ou... a sua realidade.

3 Não é o momento para entrar aqui em todos os elementos ou críticas desta teoria,pois apenas estamos fazendo recurso a ela para elaborar um argumento conexo.Para uma leitura sucinta dos pontos de vista de Kindlieberger e dos seus críticos,ver Cravinho (2002).

4 Comunidades epistêmicas é um conceito muito utilizado em relatos internacionais,popularizado por Peter Haas em 1990, numa análise sobre cooperação ambientalno Mediterrâneo, onde demonstrava a relação de causa e efeito que une certosgrupos de interesse em volta de uma mesma grelha de análise.

5 Expressão de Edgar Morin (2000), segundo o qual as nossas finalidades não irãoinevitavelmente triunfar, daí que devemos visualizar seu insucesso possível: justa-mente porque a incerteza sobre o real pode conduzir-nos à luta por nossas finali-dades.

Page 111: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

O desafio ético de um desenvolvimento...

Referências

AULETTA, Ken. Backstory: the business of news. Londres: Penguin Press, 2003.BIGNOTTO, Newton. Pensar a república. Belo Horizonte: UFMG, 2002.BURKE, Peter. Origens distantes da globalização, Folha de São Paulo, 11 de julho,Caderno Mais, São Paulo, 2004.CARDOSO, Sergio (Org.). Retorno ao Republicanismo. Belo Horizonte: UFMG, 2004.CHALITA, Gabriel. Os dez mandamentos da ética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2003.CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada. A estratégia de desenvolvimento em perspec-tiva histórica. São Paulo: Unesp, 2003.CRAVINHO, João Gomes. Visões do mundo. As relações internacionais e o mundocontemporâneo. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2002.GIANNETTI, Eduardo. Felicidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.GLENN, Jerome; GORDON, Theodore. 2003 State of the Future. Washington, DC:American Council for the United Nations University, 2003.HUTTINGTON, Samuel P. The Clash of civilizations and the remaking of world order.Londres: Simon & Schuster, 1996._______. Who are we? America’s great debate. Londres: Simon & Schuster, 2004.LAWRENCE, E. Harrison; HUNTINGTON, Samuel P. (Org.). A cultura importa.Os valores que definem o progresso humano. Rio de Janeiro: Record, 2002.MAYOR, Frederico. The World Ahead. Our future in the making. Londres: Unesco eZed Books, 2001.MURTEIRA, Mario. Economia e gestão do conhecimento: um ensaio introdutório. Econo-mia Global e Gestão. vol DC, número 1, p. 77-117, abril, Lisboa, 2004.MOHANTY, J. N. Classical Indian Philosophy. New Dheli: Oxford University Press,2000.PNUD. Relatório de Desenvolvimento Humano 2004. Lisboa: PNUD e Mensa-gem, 2004.MORIN, Edgar. A ética do sujeito possível. In: Ética: solidariedade e complexidade.São Paulo: Palas-Athena, 2000.

Page 112: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Car los Lopes

REGO, Armênio; TAVARES, Ainda. Culturas nacionais e índices de desenvolvi-mento econômico e humano. Economia Global e Gestão. v. DC, n. 1, p. 33-51, abril,Lisboa, 2004.RIBEIRO, Gustavo Lins. Pós-imperialismo. Barcelona: Gedisa, 2003.ROLLEMBERG, Marcello. Ética de papel. Revista USP, São Paulo, n. 59, p. 258-263, setembro-outubro, São Paulo, 2003.SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das letras e Ins-tituto Ayrton Senna, 2002.VASQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Page 113: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 114: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ângela Maria de Abreu Cavalcante*

ResumoAs políticas de industrialização e urbanização implantadas a partir dos anos 70 fo-ram decisivas no processo de estruturação urbana de Manaus. Mas as mudançasespaciais observadas vincularam-se a um conjunto de políticas urbanas, agressivasao meio ambiente, destacando-se a transformação de um balneário público emalvenaria e asfalto. As diferentes formas de intervenção pública na área do igarapédo Mindu não contribuíram para a preservação/conservação do meio ambiente equalidade de vida. Esta pesquisa foi realizada no período entre fevereiro e novem-bro de 2002.

Palavras-chave: meio ambiente; políticas públicas; Manaus.

AbstractThe industrialization and housing development policies introduced since the 70’shave been decisive in the urban structure process of Manaus. However, the observedspacial changes are linked to a complex of urban policies, aggressive to theenvironment highlighting the transformation of a public spa in to masonry andasphalt. The different types of public intervention in the Mindu area have failed tocontribute towards the preservation/conservation of the environment and qualityof life. The research was carried out from february to november 2002.

Keywords: environment; public policies; Manaus.

* Mestre pelo Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas. Falecida em 2003.

Nas margens do igarapé do Mindu:dois lados da história

Page 115: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Nas margens do igarapé do Mindu...

Introdução

Manaus, capital do Estado do Amazonas, é uma cidade entrecortada porrios e igarapés. Localiza-se na parte norte do Brasil, na região do médio Amazo-nas, bem no meio da maior bacia hidrográfica do mundo e da maior florestaequatorial-tropical úmida do planeta. Ocupa uma área de 14.337 km², e faz limitescom os municípios de Presidente Figueiredo ao norte; Careiro e Iranduba ao sul;Rio Preto da Eva e Itacoatiara a leste, e Novo Airão a oeste.

De acordo com o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geogra-fia e Estatística – IBGE (2000), o município possui, aproximadamente, um mi-lhão e quinhentos mil habitantes, que não ocupam de maneira uniforme a suasuperfície geográfica, concentrando-se em núcleos periféricos, cujas condições devida e saneamento tornam-se insatisfatórias devido ao adensamento populacionalsem planejamento e à implantação do pólo industrial que comprometeram a qua-lidade das drenagens superficiais da cidade. O acesso ao município dá-se pormeio fluvial e por um sistema de rodovias destacando-se, pelo rumo norte, a BR-174 (Manaus–Boa Vista); rumo sudoeste, a BR-319 (Manaus–Porto Velho) e rumoleste, a AM-010 (Manaus–Itacoatiara).

A cidade desenvolveu-se, praticamente, em cima de seis igarapés que dre-navam a área central, sendo que três desses cursos d’água sofreram aterramento(BITTENCOURT, 1969; MONTEIRO, 1994): o igarapé do Espírito Santo, ocu-pado, atualmente, pelas Avenidas Getúlio Vargas e Floriano Peixoto; igarapé dosRemédios ou do Aterro, atual Avenida Eduardo Ribeiro; igarapé da Ribeira dasNaus, ocupado pelas Praças do Comércio, Oswaldo Cruz e Quinze de Novem-bro.

Esses e os demais igarapés urbanos de Manaus constituíam-se em fonteprimária de alimentos para uma fauna diversificada e para o próprio homem; emfluxo de locomoção; em água para abastecimento e consumo doméstico, masperderam seu espaço como igarapé quando passaram a sofrer diferentes formasde intervenção em suas áreas marginais e no leito. O Mindu é um desses corposd’água que sofre ações “legais” do Poder Público e concentra em suas margens eleito grande parcela da população pobre da cidade.

O objetivo dessa pesquisa foi verificar se as intervenções públicas realiza-das ao longo do igarapé do Mindu contribuíram ou não para a preservação/

Page 116: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ângela Maria de Abreu Cavalcante

conservação do meio ambiente e da qualidade de vida. O trabalho baseou-se empesquisa bibliográfica, documental, fotográfica e de campo, incluindo omapeamento de todo o trajeto do igarapé e seleção dos trechos consideradosrelevantes para uma investigação mais profunda sobre as intervenções processa-das pelo poder público.

Manaus: urbanização e conseqüências

Segundo Carneiro Filho (1998), os diferentes papéis desempenhados pelacidade marcaram de forma significante sua paisagem. Na fase colonial, serviu deposto avançado da geopolítica portuguesa; no período extrativista, durante todoo ciclo da borracha, vivenciou a “ilusão do fausto” como “capital do látex”.

Durante o governo de Eduardo Ribeiro (1892–1896), a vila provincianatransformou-se numa moderna cidade. Houve a definição do primeiro planodiretor da cidade, em traçado xadrez, quando foram ocupados os trechos com-preendidos entre o rio Negro e a Sete de Setembro, a Avenida Tarumã e oBoulevard Amazonas (DIAS, 1999).

Enquanto tinha na borracha sua fonte financeira, Manaus continuou cres-cendo e embelezando-se pelo design europeu, na construção de um conjunto deprédios como o Teatro Amazonas e o Palácio da Justiça, que se tornaram referên-cia, a Biblioteca Pública, Alfândega, Penitenciária do Estado, o Cais do Porto e oMercado Municipal e, também, pelo surgimento de vilas, palacetes, hotéis, ban-cos, lojas.

A criação da Zona Franca de Manaus (ZFM), em 1967, efetivada no iníciodos anos 70, com a instalação da Superintendência da Zona Franca de Manaus(SUFRAMA) e a implantação do Distrito Industrial possibilitaram um novo cres-cimento econômico e profundas alterações ambientais e territoriais à cidade(BENCHIMOL, 1992).

A imigração, desencadeada pela ZFM, constituiu-se num dos fatores prin-cipais do “inchaço” e da “remodelação” da cidade. Os migrantes chegaram embusca de uma melhoria da qualidade de vida, mas acabaram por se instalar emáreas inapropriadas, contribuindo para a problemática sócio-ambiental dos locaisonde passaram a viver e a se relacionar. A rede de igarapés, por exemplo, forma-

Page 117: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Nas margens do igarapé do Mindu...

da de pequenos cursos d’água que davam uma paisagem veneziana à cidade, foidesfeita pelos aterros e reformas urbanas, visando ao estabelecimento desse novocontingente.

A Zona Franca trouxe melhoramentos para a cidade, mas trouxe tambémos impactos ambientais que se refletiram na estrutura do espaço urbano, nas rela-ções funcionais de trabalho, nas diretrizes estaduais de planejamento e nas açõesinterventoras do poder público. Logo, o fazer e o desfazer da cidade produzirammudanças diversas nos espaços urbanos com vistas a atender a demanda do con-tingente populacional oriundo de lugares diferenciados do país.

Manaus esparramou-se para todos os lados: o planejamento deu lugar à“desordem”. O “crescimento” acelerado da população na área urbana não foiacompanhado pelo poder público, no que tange à infra-estrutura; as formas dehabitação improvisadas ampliaram-se, as favelas ao longo dos igarapés expandi-ram-se e os recursos naturais degradaram-se.

Portanto, assim como as terras firmes foram sendo ocupadas sem plane-jamento, organização e um plano diretor, o mesmo se deu nas margens e nosleitos dos igarapés, sem que houvesse uma preocupação com os espaços verdes,com as áreas protegidas por lei, e com os serviços e equipamentos sociais básicos.Já as áreas nobres que apresentavam características de horizontalidade na ocupa-ção do solo, verticalizaram-se mediante os megainvestimentos de grandes cons-trutoras que conseguem a aprovação de seus projetos, mesmo desrespeitando alegislação vigente.

Com o aumento das ocupações das margens e leitos dos igarapés, agrava-ram-se o problema ambiental e as condições de habitação da população. O assen-tamento da zona leste passa a ser definido pelas ocupações a “qualquer custo”,sem nenhum condicionante de controle ambiental. A cidade passa a sofrer inves-timento de grandes construtoras do país que, por meio de aprovações negociadasou clandestinas, desrespeitam a legislação vigente, além de provocarem averticalização em áreas nobres, como Vieiralves, Ponta Negra e Adrianópolis, queaté então tinham a característica da horizontalidade na ocupação do solo (IMPLAN,1996). Manaus atingiu, em apenas três décadas – de 1970 a 2000 –, a condição demetrópole da Amazônia Ocidental, conforme dados da Tabela 1.

Page 118: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 1 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ângela Maria de Abreu Cavalcante

Os bairros existentes na cidade foram distribuídos em seis zonas geográfi-cas: norte, sul, leste, oeste, centro-oeste, centro-sul e uma área denominada de Ex-pansão Urbana, considerada Zona Rural, tendo como base os estudos técnicos rea-lizados pelo Implan (1996).

Da zona norte, fazem parte os bairros: Cidade Nova, Colônia Santo An-tonio, Colônia Terra Nova, Monte das Oliveiras, Novo Israel e Santa Etelvina; dazona sul, os bairros: Aparecida, Betânia, Cachoeirinha; Centro: Colônia OliveiraMachado, Crespo, Educandos, Japiim, Morro da Liberdade, Petrópolis, Praça 14,Presidente Vargas, Raiz, Santa Luzia, São Francisco, São Lázaro, Vila Buriti; leste:Armando Mendes, Distrito Industrial, Colônia Antonio Aleixo, Coroado, JorgeTeixeira, Mauazinho, Puraquequara, São José, Tancredo Neves, Zumbi dos Palmares;oeste: Compensa, Glória, Lírio do Vale, Nova Esperança, Ponta Negra, SantoAgostinho, Santo Antonio, São Jorge, São Raimundo, Tarumã, Vila da Prata; cen-tro-oeste: Alvorada, Bairro da Paz. D. Pedro, Planalto, Redenção; centro-sul:Adrianópolis, Aleixo, Chapada, Flores, Nossa Senhora das Graças, Parque 10, SãoGeraldo (IMPLAN, 1996).

Manaus e seus igarapés

O município de Manaus representa o portal de acesso a um dos mais ricosecossistemas fluviais, possuindo a maior bacia fluvial do mundo. Tem como delimi-tação topográfica a rede de igarapés, correspondente ao maior segmento do espaçourbano manauense, cujas águas, ao invés de terem um fluxo permanente, são, em

* Dados aproximados, sujeitos à retificação.Obs.: hab = habitante; ha = hectare.Fonte: Prefeitura Municipal de Manaus/IMPLAN/IBGE.

Tabela 1 – Densidade populacional de Manaus –1970/2000

Ano População(hab)

Área ocupada(ha)

População/áreaocupada

1970

1980

1991

1995

2000

283.685

621.763

1.006.585

1.138.178

1.405.835

2.532

11.545

30.000

37.737

45.474*

112.0

53.0

33.0

30.2

30.9*

1970

1980

1991

1995

2000

1970

1980

1991

1995

2000

1970

1980

1991

1995

2000

1970

1980

1991

1995

2000

Page 119: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Nas margens do igarapé do Mindu...

grande parte, represadas durante o período da enchente, por efeito da elevação donível do rio Negro. Essa rede de pequenos cursos d’água insere-se no traçado dosítio urbano de Manaus, para formar o conjunto de elementos condicionadores dodesenho da cidade e das formas de ocupação que deram margem à estrutura internado espaço urbano (MELO; MOURA, 1990).

Conforme Junk (1983), a área absorvida pelos igarapés pode ser bem mai-or que a ocupada pelos grandes rios. E, devido ao pequeno volume de água, osigarapés são mais vulneráveis aos impactos ambientais naturais ou produzidos. Suahidrologia e hidroquímica são facilmente alteradas pelo desflorestamento e polui-ção, atingindo, por conseguinte, comunidades animais e vegetais que os habitam.

Na Amazônia, os igarapés naturais exercem funções diferenciadas no coti-diano dos habitantes da região, pois, além de elementos importantes na composiçãodo ecossistema, servem como vias de locomoção, fontes de alimentos, água para oconsumo, uso doméstico e lazer (SILVA; SILVA, 1993). Entretanto, osdesmatamentos, o crescimento urbano e o adensamento populacional traduzem asituação atual em que esses canais fluviais se encontram. Fato que ocorre não só emManaus, mas em todas as regiões, onde os sistemas aquáticos têm sido muito altera-dos pelas atividades antrópicas.

Pesquisas realizadas nos igarapés de Manaus têm detectado a presença dealtas concentrações de metais pesados (zinco, cobre, ferro, manganês) e de coliformesfecais devido aos detritos industriais e domésticos neles lançados, causados por dife-rentes intervenções quase sempre pontuais (AUGUSTO, 2002).

Durante os seus mais de 300 anos de ocupação “branca”, Manaus sofreuum gradiente de intervenções nem sempre adequadas às suas condições regionais.Desenvolveu-se, e continua desenvolvendo-se, em áreas drenadas por igarapés ouem margens de rios, ignorando a acidentada topografia do lugar. Esse fato somadoa outros vem impossibilitando o uso desses canais fluviais pelo que se transforma-ram: galerias, canais cimentados, aterros e ambientes modificados, degradados, po-luídos e mortos, e, mesmo assim, suas margens e leitos abrigam grandes parcelas dapopulação.

A área urbana de Manaus é drenada por cursos d’água superficiais dividin-do-se em quatro grandes bacias hidrográficas que pertencem a uma só: a do rioNegro. Esses ecossistemas são basicamente as bacias hidrográficas da Área Central,medindo 130 hectares; a de São Raimundo, com 11.665 hectares; a dos Educandos,

Page 120: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ângela Maria de Abreu Cavalcante

na faixa de 4.320 hectares; e a do Tarumã-Açu, com 1.380 hectares. Cada uma delasconta com a contribuição de numerosos igarapés tributários e subtributários, com-pondo uma rede de drenagem bastante densa, cujos cursos d’água dividem e sub-dividem o perímetro urbano da cidade (MELO; MOURA, 1990).

As áreas de drenagem que concentram maior densidade populacional loca-lizam-se nas bacias de São Raimundo e Educandos e têm como contribuintes inú-meros corpos d’água. Na paisagem urbana, destacam-se os igarapés dos Educandose de São Raimundo como os mais notados, já que os demais sofreram intervençõesao longo do crescimento da cidade, com ocupações de suas margens, inadequadase desprovidas de qualquer serviço de infra-estrutura básica. Convém destacar que orio Negro, destino final das águas servidas da cidade, é também o seu manancial deabastecimento.

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Meio Ambiente – Sedemalista os igarapés de Manaus e respectivos bairros por aqueles cortados, dando desta-que aos mais importantes1.

Na bacia da Área Central encontram-se os seguintes tributários: o igarapé deManaus, com uma extensão de 21,02 km, ruma pelos bairros Cachoeirinha e Centro,seguindo na rua Sete de Setembro, onde passa embaixo da primeira ponte (PonteRomana I) localizada antes do Palácio Rio Negro; o igarapé do Bittencourt atravessa asegunda ponte (Ponte Romana II) da Rua Sete Setembro, após o Palácio Rio Negro; oigarapé do Mestre Chico, rumando pelo bairro da Praça 14 de Janeiro e bairro deCachoeirinha, passa na Manaus Moderna, debaixo da terceira ponte (Ponte BenjaminConstant) da Rua Sete de Setembro, possuindo uma área de 21,02 km.

Outros igarapés drenavam o centro, mas desapareceram da visão com ocrescimento da cidade: o de São Vicente de Fora, da Bica do Monte Cristo, da Bicada Boa Vista, da Ribeira das Naus, do Aterro ou dos Remédios, do Espírito Santoe toda a microbacia do Igarapé de Manaus.

A rede de drenagem de São Raimundo, que faz limite externo com o rioNegro a sudeste, congrega os sistemas aquáticos seguintes: o igarapé do Sete, atra-vessando os bairros Jorge Teixeira, Armando Mendes, Tancredo Neves, São José,João Paulo, Bairro Novo; o igarapé dos Franceses, passando nos bairros NovoIsrael, da Paz, Redenção, Alvorada, Dom Pedro, Chapada, possui aproximadamen-te 10 km de extensão e 18 afluentes principais; o igarapé do Batalhão de Infantariade Selva, nos bairros Nova Esperança e Dom Pedro, com extensão aproximada de

Page 121: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Nas margens do igarapé do Mindu...

cinco quilômetros e 14 afluentes principais; o igarapé da Vitória-Régia ou Bindá, nosbairros de Flores, Parque 10 de Novembro e Chapada, possuindo aproximada-mente oito quilômetros de extensão e 15 afluentes principais; o igarapé do Mindu,nos bairros Cidade de Deus, Areal, Comunidade Santa Bárbara, Valparaíso, JorgeTeixeira, Tancredo Neves, São José, Coroado, Aleixo, Cidade Nova, Parque 10, N.S. das Graças, Chapada, São Geraldo, São Jorge. Sua extensão é de, aproximada-mente, 18 km, 40 afluentes principais e uma superfície de 66,02 km²; o igarapé daCachoeira Grande, no bairro de São Jorge, com uma área de 37,37 km²; o igarapédo Franco, nos bairros Santo Agostinho, Compensa, Vila da Prata, Santo Antonio,São Jorge, possui 10 km aproximadamente e 18 afluentes principais; o igarapé deSão Raimundo, atravessando as pontes Fábio Lucena e São Raimundo, possui umasuperfície de 21,02 km².

A bacia de Educandos limita-se a sudeste com o rio Negro, sendo consti-tuída pelos seguintes cursos d’água: o igarapé do Japiim, no bairro de mesmo nome;o igarapé do Quarenta, nos bairros Zumbi, Armando Mendes, Japiim, DistritoIndustrial, Raiz, Betânia, Morro da Liberdade, Crespo, Santa Luzia, Petrópolis,Cachoeirinha, São Francisco e São Lázaro. Extensão aproximada de 10 km, 30afluentes principais e uma superfície de 38,40 km²; o igarapé da Cachoeirinha, nobairro de mesmo nome, com uma área de 21,02 km²; o igarapé dos Educandos, nobairro de Educandos.

A Lei Orgânica do Município de Manaus, em seu artigo 206, consideratodos esses cursos d’água como áreas de preservação, dada a sua importância parao sítio manauense. Entretanto observa-se que, mesmo tendo toda essa proteção,não são tratados como deveriam, já que aqueles não podem mais ser utilizados paraabastecimento d’água e nem como fonte de alimento ou de lazer da população,porque se constituem em espaços “propícios” para acumulação de lixos, recebi-mento de esgotos sanitários, domésticos, domiciliares, comerciais, industriais e atéhospitalares, apesar das leis de proteção aos recursos hídricos.

Pesquisa realizada em algumas áreas de igarapés, por técnicos da Sedema,concluiu que existem aproximadamente 70 mil famílias habitando as margens ouleitos desses corpos d’água. Observou-se, ainda, que essas famílias apresentam emmédia 4,2 membros, sendo que quase 50% dos habitantes dividem a moradia commais de cinco pessoas. Essa população possui uma renda familiar baixa. Em relaçãoàs residências nessas áreas, observou-se que aquelas são construídas em madeira,

Page 122: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ângela Maria de Abreu Cavalcante

com parâmetros de qualidade e de segurança variando entre regular e ruim. O aces-so às habitações situadas nas margens ou áreas inundadas dá-se por meio de pontesconstruídas precariamente.

O igarapé do Mindu

O igarapé do Mindu situa-se no município de Manaus nas coordenadas 03º08’ Sul e 60º 01’ Oeste, em plena região de floresta tropical úmida de terra-firme.Devido grande parte de seu percurso localizar-se dentro do espaço urbano, apre-senta ao longo de suas margens vegetação secundária, mas, nos trechos inferiores eurbanizados, as gramíneas compõem a vegetação (RADAMBRASIL, 1976). A zonaleste abriga suas nascentes mais distantes, localizadas em área de floresta primária, ea baía do São Raimundo, zona oeste, a sua foz. Nas faixas abaixo das cabeceiras, jácomeçam a aparecer sinais do crescimento urbano, com conseqüentes desmatamentosde sua área de entorno.

Atravessa as zonas leste, norte, centro-sul e oeste, passando por 10 bairros(Areal, Jorge Teixeira, Tancredo Neves, Cidade Nova, Aleixo, Parque 10 de No-vembro, Nossa Senhora das Graças, Chapada, São Geraldo, São Jorge) e 12 inva-sões (Cidade de Deus, Comunidade Santa Bárbara, Morro da Catita, Colônia ChicoMendes, Valparaíso, Monte Sião, São José II, Colina do Aleixo II, São José dosCampos, Novo Aleixo, Bairro Novo, Mutirão, Vila Amazonas).

Sua água é heterogênea quanto à coloração: nas proximidades das cabeceiras,apresenta-se clara e límpida, enquanto nos trechos já urbanizados mostra-se branca oubarrenta, porque recebe cargas de contaminantes produzidos por comunidades, con-juntos residenciais e comércios em geral, localizados próximo às suas margens. Emgrande parte de seu percurso, já sofreu retificação e contenção de seu leito.

O Mindu é um dos principais afluentes da bacia do igarapé de SãoRaimundo. Drena suas águas para o rio Negro, como todos os outros corpos hídricosda cidade. Recebe, na maior parte de sua trajetória, esgotos de empresas instaladasnas proximidades, lixo e despejos domésticos, porque áreas residenciais foram-seinstalando ao longo de seu curso, provocando, inclusive, grande desmatamento desua mata ciliar. Nas suas margens, as marcas de famosos balneários, como Muruama,Guanabara, Jacundá, Parque 10 de Novembro, que atraíam a sociedade para “ba-nhos” nos fins de semana e feriados.

Page 123: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Nas margens do igarapé do Mindu...

Seu aspecto funcional é resultado das ações interventoras do poder público,dos processos de degradação em função do crescimento urbano e populacional edas alterações provocadas pelo despejo de efluentes domésticos que criam condi-ções sanitárias favoráveis para o aumento de doenças veiculadas pela água e para asua degradação. Durante seu percurso pode-se ainda perceber pequenos trechosflorestados e não impactados, e trechos urbanizados inclusive nas cabeceiras, locali-zadas na periferia da cidade.

Conforme dados da Sedema, suas cabeceiras já exibem as áreas adjacentesdegradadas. Suas nascentes, todavia, encontram-se relativamente protegidas, por seacharem próximas ao jardim botânico Adolpho Ducke. É intenção da Secretariatransformar a área em Unidade de Conservação.

Embora atravesse bairros de classe média alta, grande parte de sua baciaapresenta as margens ocupadas por residências, pequenos comércios e por famíliasde baixa renda, cujas moradias caracterizam-se pela ausência de infra-estrutura bási-ca de saneamento, transformando o Mindu em espaço agressivo às populações queaí residem.

Dentre os cursos d’água da cidade, o Mindu é o que apresenta a maior área,cerca de 66,02 km². Seu trajeto corresponde a aproximadamente 18 km de exten-são, da nascente à Cachoeira Grande, possuindo uma base de 40 afluentes (SEDEMA,2002). Os cursos médio e inferior passam por trechos urbanizados onde se encon-tram um Parque Municipal, diversos bairros de classe média e classe média alta,dominados por conjuntos residenciais e condomínios de luxo. Entretanto, mesmonessas áreas consideradas nobres, ainda se pode encontrar famílias morando empalafitas e convivendo com o lixo e a sujeira.

O lançamento de lixo, de esgoto doméstico e de empresas tem favorecidoforte degradação ambiental e um aumento na quantidade de matéria orgânica noMindu. Inclusive, já se verificam em seu percurso efeitos de eutrofização antrópicaprovocada por inúmeros pontos de emissão de esgotos sanitários, alguns clandesti-namente ligados a galerias de águas pluviais, de esgotos domésticos, ou mesmo deproblemas de desvios de cursos, assoreamento, invasões e desmatamento de suasmargens protetoras.

E é nesse cenário que Manaus desponta como um lugar sem dono, semmuitas perspectivas para seus cursos d’água urbanos, visto que, na cidade, aqueles

Page 124: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ângela Maria de Abreu Cavalcante

não servem de obstáculos para o sonho de uma casa própria e nem para aespeculação imobiliária que viabiliza a qualquer preço a transformação do traçadoda cidade.

Para minimizar a situação degradante dos vários igarapés da cidade, emjulho de 1999, a Prefeitura de Manaus criou o programa “SOS Igarapés”, visandonão somente agir na retirada de lixo sob as palafitas e cursos d’água, como tambémmobilizar as comunidades para a tomada de novos hábitos que culminem em atitu-des de cidadania e qualidade de vida. Apesar desse programa, percebe-se que osmoradores ainda não se conscientizaram de sua participação na melhoria da qualida-de dos igarapés, visto que o lixo continua aparecendo em grande escala no seu leito.

Conclusão

O igarapé do Mindu teve suas margens tomadas por diferentes formas deintervenção, tanto aquelas processadas pelo poder público, como por particulares epela população, principalmente a partir da década de 70, quando não havia, ainda,grandes preocupações com a questão ambiental. As populações que antes habita-vam o interior do Estado do Amazonas migraram para Manaus passando a vivernas chamadas faixas de irregularidade dos igarapés, contrariando a Lei Federal n.º4.771/65 (Código Florestal), que proíbe a instalação de qualquer empreendimentopróximo à área de preservação permanente, representada por cursos d’água, flores-tas e demais formas de vegetação natural. Para que tal aconteça, deve-se obedecerà faixa de preservação adotada para os cursos d’água com menos de 10 m delargura, que, no caso do Mindu, é de 30 metros. Essa distância é considerada acontar da marca da maior enchente até o empreendimento ou atividade.

A ausência de uma visão ambiental consistente colaborou com a ocupaçãodo entorno do igarapé do Mindu, antes um “cenário verde”, hoje transformadonum “cenário de miséria”, onde se concentra uma parcela da população excluída eapartada social e espacialmente. A área aloja, também, uma classe favorecida econo-micamente, com uma concentração espacial de renda, e que, apesar de ostentarriqueza, não demonstra qualquer sentimento em relação às áreas do igarapé.

Como conseqüência do adensamento e crescimento da cidade, o Mindupassou a sofrer inúmeras intervenções, que provocaram a diminuição de suas ativi-dades ambientais, a proliferação de esgotos e efluentes domésticos em seu leito, a

Page 125: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Nas margens do igarapé do Mindu...

poluição de suas águas e a remoção de boa parte de sua mata ciliar, causando-lheproblemas em cadeia como assoreamento, elevação do seu leito e freqüentes cheiase alagações.

Com referência à nascente, o poder público promete implantar um parque,visando proteger a área. Algumas ações já estão sendo realizadas, como a retirada dapopulação concentrada nas zonas onde o projeto pretende alcançar. Mesmo assim,a área continua sofrendo intervenção de particular, com lançamento de lixo nascabeceiras do igarapé e árvores sendo derrubadas.

Na confluência dos bairros Jorge Teixeira, Tancredo Neves e ArmandoMendes (Mutirão), o igarapé sofre contínuo massacre, sobretudo pelos usuários dafeira do mutirão e adjacências, visto que grande quantidade de lixo amontoa-se noleito e margens do curso d’água, já desprovido de qualquer vegetação. Notam-seresíduos sólidos presos nas paredes das residências construídas dentro dele. Algu-mas residências escoam seus esgotos diretamente para o leito do igarapé, outrasutilizam-se da tubulação em cimento providenciada pelo poder público para aquelefim. O igarapé nesse trecho está completamente degradado e com pouco volumed’água e nenhum cuidado por parte da população e das autoridades.

No trecho do Parque 10, sobretudo na Rua Recife e na Rua Paraíba, consi-deram-se alguns agravantes ambientais: a) a retirada de grande parcela da mata ciliarexistente nas margens do Mindu, e a conversão das remanescentes em eixos deesvaziamento de tráfego; b) a descontinuidade da vegetação nativa causada pelodesmatamento, provocando uma abertura no que seria um corredor de biodiversidadedo município, responsável pela conexão entre áreas verdes, permitindo o desloca-mento de espécies da flora e da fauna; c) a ausência de avaliação ambiental, estudoprévio de impacto ambiental e respectivo relatório; d) falta de licenciamento ambientalpelo órgão responsável.

Próximo à Cachoeira Grande, no bairro de São Jorge, o muro de umresidencial cercou parte do entorno do igarapé, absorvendo grande área de preser-vação permanente. A vegetação naquela margem foi completamente retirada. Ape-sar das irregularidades observadas e desobediência ao Código Florestal, o empreen-dimento possui licenciamento ambiental.

O poder público coloca as máquinas, faz as obras, altera o ambiente semouvir a sociedade, dando a impressão de que sabe do que a população precisa. E,mesmo com as leis que regem o meio ambiente, ao iniciar as intervenções, as preo-

Page 126: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ângela Maria de Abreu Cavalcante

cupações com os impactos não são consideradas. Com isso, a ocorrência das obras noMindu, somada à ocupação desordenada de suas margens, vem intensificando o seuprocesso de degradação, acarretando a diminuição da qualidade de vida, uma vez quea retirada da mata ciliar promove o aumento da temperatura local e possibilita oassoreamento do igarapé, agravando-se a situação ambiental da cidade.

Desse modo, verifica-se a deficiência na política de conservação ambiental eum crescimento gradual de políticas voltadas exclusivamente ao desenvolvimento eco-nômico, proporcionando graves danos à execução de projetos que, do ponto de vistaambiental, são nocivos, já que se realizam sem estudos prévios de impactos ambientais,causando efeitos negativos à utilidade pública. Daí a comprovação de que as interven-ções processadas ao longo do Mindu não contribuíram para a preservação/conserva-ção do meio ambiente e nem para a melhoria da qualidade de vida.

Notas

1 Por falta de dados, deixou-se de apresentar os relativos à extensão de alguns dosigarapés citados na pesquisa.

Referências

AUGUSTO, César. Metais pesados condenam igarapé do Quarenta. Notícias daUFAM. Manaus, 2002. v. 13, n. 48, p. 3, out/nov.BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: a guerra na floresta. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1992.BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus: pródromos e seqüências. Manaus:Sérgio Cardoso, 1969.CARNEIRO FILHO, A. Manaus: fronteira do extrativismo – cidade, um históricode dinâmica urbana amazônica. In: ROJAS, L. B. I.; TOLEDO, L. M. (Orgs.). Espaçoe doença: um olhar sobre o Amazonas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.CENSOS DEMOGRÁFICOS. Manaus: IBGE, 1970-2000.CÓDIGO FLORESTAL. Lei n.º 4.771, de 15 de setembro de 1965. Brasília: Diá-rio Oficial, 1965.DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do Fausto. Manaus, 1880–1920. Manaus: Valer,1999.

Page 127: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Nas margens do igarapé do Mindu...

INSTITUTO MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO URBANO EINFORMÁTICA/Implan. Base cartográfica da área urbana de Manaus. Manaus:IMPLAN, 1996._______. Legislação urbanística. Atualização da Lei n.º 1214/75. Manaus: Implan,1996a.JUNK, W. As águas da região amazônica. In: SALATI, E. et al. (Orgs.). Amazônia,desenvolvimento, integração ecológica. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1983.MELO, M.L. de; MOURA, H. A. de. Migrações para Manaus. Recife: Massangana,1990.MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. 4. ed. Manaus: Metro Cúbico,1994.RADAMBRASIL. Levantamento de recursos naturais. Folha AS-20/Manaus. Rio de Ja-neiro: Departamento Nacional de Produção Mineral, 1976. v. 18.SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBI-ENTE (SEDEMA). Projeto de proteção e recuperação da nascente do igarapé do Mindu. Manaus:SEDEMA, 2002.SILVA, E. N. S.; SILVA, C. P. D. A expansão de Manaus como exemplo do proces-so de extinção dos igarapés. In: FERREIRA, E. S. G et al. (Orgs.). Bases científicas paraestratégias de preservação e desenvolvimento da Amazônia. Inpa, 1993. v. 2.

Page 128: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 2 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marinez Gil Nogueira*

Maria do Perpétuo Socorro R. Chaves**

ResumoAnalisa o modelo de desenvolvimento sustentável, discorrendo sobre as diferenças ideo-políticas existentes entre as abordagens conceituais de desenvolvimento sustentável eecodesenvolvimento. Apresenta um resgate histórico da emergência do paradigmade sustentabilidade, buscando refletir sobre os desafios existentes para concretizaçãodos princípios de sustentabilidade do desenvolvimento. Assim, aborda os principais pro-blemas a serem enfrentados para a implementação do desenvolvimento sustentável.

Palavras-chave: questão sócio-ambiental; desenvolvimento sustentável;ecodesenvolvimento.

AbstractThis work analyzes the model of sustainable development, discussing the existingideo-political differences, between the conceptual approaches to sustainabledevelopment and ecological development. It presents a historical rescue of theemergency of the sustainability paradigm, trying to reflect on the existing challengesfor the execution of the development sustanaibility principles. Thus, it approachesthe main issues to be faced in the implementation of the sustainable development.

Keywords: social and environment issue; sustainable development; ecologicaldevelopment.

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento:uma reflexão sobre as diferenças ideo-políticas conceituais

* Mestre em Ciências Sociais na Área de Desenvolvimento Regional – UFRN, professora do Depar tamento de Serviço Socialda UFAM, doutoranda do Curso de Biotecnologia na Área de Gestão – UFAM/INPA.

** Doutora em Política Científica e Tecnológica – UNICAMP, professora do Depar tamento de Serviço Social da UFAM.

Page 129: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento...

Introdução

Atualmente, para se refletir sobre temáticas relacionadas com a injustiça,pobreza, miséria e exclusão social, ou seja, sobre os desafios postos às políticaspúblicas e às lutas sociais na contemporaneidade, torna-se imprescindível correlacionartais temáticas com a questão ambiental e a tão polêmica sustentabilidade do desenvolvimento.

A discussão ambiental que perpassa o conceito de desenvolvimento susten-tável é complexa e causadora de muita polêmica, tendo em vista que traz à tona oquestionamento e o repúdio ao tradicional conceito de crescimento econômico e aopróprio conceito de desenvolvimento da economia política clássica. Assim, a discus-são ambiental sobre a sustentabilidade do desenvolvimento coloca em xeque o modelocivilizacional capitalista/industrialista (ou anticivilizacional), baseado numa lógicadestrutiva que ameaça o futuro do planeta e da humanidade. Essa lógica é responsá-vel pela destruição criminosa da força de trabalho (o que pode ser constatado pelalógica da acumulação flexível) e a devastação irresponsável da natureza.

Portanto, o que está no cerne da questão ambiental é o questionamento damáxima capitalista de “crescimento ilimitado” e da pretensa dissociação da relaçãohomem e natureza, tendo sido a última visualizada pela ótica da economia políticatradicional como um “objeto das necessidades humanas” a ser dominado em favordo primeiro, ou seja, como se essa relação não fosse de reciprocidade dinâmica,desvinculando os efeitos da ação humana sobre a natureza e, conseqüentemente,sobre a sua condição de vida inserida neste meio natural. Observa-se que a visão queo homem construiu sobre o meio ambiente pauta-se numa ótica antropocêntrica, aqual dualiza e fragmenta o próprio conceito de meio ambiente, revelando uma nãocompreensão da interação homem-natureza.

Segundo Reigota (1994), o homem vive na contemporaneidade profundasdicotomias, pois se considera como um elemento da natureza, mas vive como sefosse um ser à parte, apenas observador e/ou explorador da mesma. “Essedistanciamento fundamenta suas ações tidas como racionais, mas cujas conseqüên-cias graves exigem dos homens, nesse fim de século, respostas filosóficas e práticaspara acabar com o antropocentrismo e o etnocentrismo” (idem, p. 11).

As conseqüências dessa visão antropocêntrica e dualista sobre o meio ambi-ente, embutida na racionalidade econômica de “crescimento ilimitado” do capitalis-mo, revelou que a crise econômica dos anos 70 nos países de capitalismo avançado,

Page 130: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marinez Gil NogueiraMaria do Perpétuo Socor ro R. Chaves

assim como nos países do chamado Terceiro Mundo, tinha um “novo ingrediente”,o qual estava relacionado “diretamente com a redução do índice de qualidade devida de grande parte da população mundial: era a poluição que, juntamente com apossibilidade de saturação dos recursos naturais, interferia no presente e no futuroda humanidade” (LEONARDI, 1996, p. 241).

De acordo com Lima (1997, p. 207), observou-se a partir deste contexto, aemergência mundial da discussão sobre a questão ambiental, pois se intensificaramos problemas sócio-ambientais, tais como: o crescimento e a desigual distribuiçãodemográfica; os processos de urbanização acelerada; o consumo excessivo de re-cursos não-renováveis; a contaminação tóxica dos recursos naturais; a redução dabiodiversidade e da diversidade cultural; o desflorestamento; a geração do efeitoestufa e a redução da camada de ozônio, que vêm trazendo implicações sobre oequilíbrio climático e têm causado impacto “na opinião pública mundial e atraídoatenção para uma realidade, até então pouco observada”.

Ainda, de acordo com Lima (1997), a multiplicação de acidentes e proble-mas ambientais e a ação do próprio movimento ecológico (sobretudo a partir dadécada de 1970) impuseram com toda força um questionamento aos modelos dedesenvolvimento industrial, tanto capitalista quanto socialista, despertando na socie-dade uma nova consciência relacionada à dimensão ambiental da realidade.

Diante do cenário exposto, este trabalho tem como objetivo discutir osignificado conceitual do desenvolvimento sustentável, visando refletir sobre os desafiose/ou entraves existentes para concretização dos princípios de sustentabilidade dodesenvolvimento. Assim, o trabalho está estruturado em duas partes. Na primeira,apresentar-se-á um resgate histórico da emergência do paradigma desustentabilidade, discorrendo sobre a diversidade ideo-política existente entre asabordagens conceituais. Na segunda parte, buscar-se-á refletir sobre os principaisproblemas a serem enfrentados para a implementação do desenvolvimento sustentável.

Desenvolvimento sustentável: desvelando as diferenças ideo-políticasconceituais

O cenário histórico de surgimento do paradigma de sustentabilidade

Do ponto de vista histórico, o marco inicial da discussão sobre a questãoambiental e do surgimento do paradigma de sustentabilidade remonta ao ano de

Page 131: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento...

1968, quando foi realizada em Roma uma reunião de cúpula entre cientistas dospaíses desenvolvidos para se discutir “o consumo e as reservas de recursos naturaisnão renováveis e o crescimento da população mundial até o século XXI” (REIGOTA,1994, p. 13). Os resultados das discussões travadas no chamado clube de Roma reve-laram em suas conclusões, a urgência da necessidade de se planejar meios para ga-rantir a conservação dos recursos naturais e controlar o crescimento da população.Como resultado dessa reunião foi publicado em 1972 no livro intitulado: Limites doCrescimento, elaborado por Dennis L. Meadows e uma equipe de pesquisadores, cujatese central pode ser resumida na seguinte assertiva:

[...]se continuarem imutáveis as tendências de crescimentoda população mundial, da industrialização, da poluição, daprodução de alimentos versus a diminuição dos recursosnaturais, serão alcançados os limites do crescimento eco-nômico (ANDRADE, 2000b, p. 190).

Apesar das polêmicas geradas em torno das conclusões fatalistas do estudorealizado pelo clube de Roma, não se pode deixar de ressaltar que a partir dele foireconhecido que “o desperdício e a poluição deixaram de representar apenas umproblema referente às condições de vida e de consumo das populações humanas,mas dizem respeito à própria base de reprodução da esfera produtiva” (FERREIRA,1995, p. 19). Observa-se, também, que um dos seus méritos foi o de inserir a discus-são da problemática ambiental em nível planetário, tendo em vista que a partir dasrepercussões da discussão ambiental travada na referida reunião, a Organização dasNações Unidas realizou em 1972, em Estocolmo, na Suécia, a primeira ConferênciaMundial de Meio Ambiente Humano.

Com a realização da Conferência de Estocolmo, a questão do meio ambi-ente conquistou reconhecidamente um fórum político. Conforme Leonardi (1996),como resultado da Conferência de Estocolmo definiu-se recomendar a criação doPrograma das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, o qual foi criado em1973 com o objetivo de fomentar junto aos organismos internacionais a necessidadeda educação e formação ambientais em todas as atividades exercidas pelos mesmos.Para Reigota (1994, p. 15), a criação do PNUMA foi uma importante resolução daConferência de Estocolmo, a qual divulgou a idéia “[...] de que se deve educar ocidadão para a solução dos problemas ambientais. Podemos então considerar que aí

Page 132: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marinez Gil NogueiraMaria do Perpétuo Socor ro R. Chaves

surge o que se convencionou chamar de educação ambiental”. A partir deste con-texto, a Organização das Nações Unidas-ONU, através da Unesco (United NationEducational, Scientific and Cultural Organization), foi a responsável pela divulgação efomento da realização dessa nova perspectiva de educação.

A reunião de Belgrado contou com especialistas em educação, biologia,geografia e história, entre outros, na qual foram definidos os objetivos da educaçãoambiental, os quais foram publicados no que se convencionou chamar “A Carta deBelgrado” (REIGOTA, 1994). O fato é que após a Conferência de Estocolmorealizaram-se vários encontros, conferências e reuniões em que a discussão ambientalbuscou encaminhar as bases para a configuração da emergência de uma racionalidadevoltada para o desenvolvimento ecologicamente viável, passando-se a discutir for-mas de prevenção e controle da degradação do meio ambiente. Desse modo, surgeo paradigma da sustentabilidade do desenvolvimento.

Diferenças ideo-políticas conceituais

De acordo com Vieira (1995), a preocupação com a necessidade de umgerenciamento ecologicamente viável dos recursos da natureza foi pela primeira vezdifundida na proposta de ecodesenvolvimento defendida pelo canadense Maurice Strong,em 1973. Esse conceito expressava uma concepção alternativa de desenvolvimento,que questionava o caráter tecnocrático do planejamento econômico tradicional, vi-sando direcionar ações em zonas rurais dos países em desenvolvimento para a in-corporação da racionalidade de prudência ecológica. Assim, o conceito deecodesenvolvimento “preconizava uma gestão mais racional dos ecossistemas locaisaliada à valorização do know-how e da criatividade das populações envolvidas noprocesso” (idem, p. 108).

Contudo, o conceito de ecodesenvolvimento tornou-se amplamente divul-gado a partir de 1974, quando foi reelaborado por Ignacy Sachs, num texto quehoje é considerado um clássico da discussão ambiental. Nesta nova versão, o concei-to passa a expressar um estilo de desenvolvimento aplicável não só a projetos rurais,mas também urbanos, contrapondo-se às diretrizes da economia política tradicionale orientando-se pela busca de autonomia (ou self-realiance) e pela satisfação prioritáriadas necessidades básicas das populações envolvidas. Assim, define oecodesenvolvimento:

Page 133: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento...

Desenvolvimento endógeno e dependendo de suas forçaspróprias, submetido à lógica das necessidades do conjuntoda população, consciente de sua dimensão ecológica e bus-cando estabelecer uma relação de harmonia entre o ho-mem e a natureza (SACHS, 1980).

É possível dizer que o conceito de ecodesenvolvimento de Ignacy Sachsampliou a concepção anterior, pois além das variáveis econômicas passou a incor-porar variáveis políticas, culturais, sociais, éticas, dentre outras. Os princípios básicosdesta nova visão de ecodesenvolvimento estão esquematicamente condensados nacitação a seguir:

a) a satisfação das necessidades básicas de todos os sereshumanos no presente (solidariedade sincrônica); b) a soli-dariedade com as gerações futuras (solidariedade diacrônica);c) a participação da população envolvida em todos os pro-gramas de desenvolvimento; d) a preservação dos recursosnaturais e do meio ambiente em geral; e) a construção deum sistema social com garantia de emprego, segurança so-cial e respeito a outras culturas; f) programas de educação(ANDRADE, 2000a, p. 190).

De acordo com Andrade (2000a), os princípios do ecodesenvolvimentoestão vinculados às idéias da teoria do self-realiance (auto-suficiência, auto-sustenta-ção), as quais foram defendidas por Mahatma Gandhi no processo de luta pelalibertação da Índia contra o domínio inglês. Tais propostas estão, também, vincu-ladas às preocupações pela soberania e autonomia dos países periféricos em rela-ção aos ditames dos países centrais hegemônicos. Neste sentido, Vieira (1995)ressalta que os princípios do ecodesenvolvimento permitem o resgate da dimen-são ecológica do desenvolvimento, fortalecendo a tese relativa à necessidade deuma luta contra a desigualdade social e a dependência no e sobre o Terceiro Mun-do, demonstrando a formação de consciência dos limites e vulnerabilidade dabase dos recursos naturais.

A Declaração de Cocoyoc, resultante da Conferência de 1974 da UNCTAD(Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e do Pro-grama de Meio Ambiente das Nações Unidas (UNEP), e, também, o Relatório QueFaire apresentado no final de 1975 pela Fundação alemã Dag-hammarskjöld,

Page 134: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marinez Gil NogueiraMaria do Perpétuo Socor ro R. Chaves

reatualizaram o conceito elaborado por Ignacy Sachs sem dar visibilidade ao termoecodesenvolvimento. Desta forma, conforme Vieira (1995), outro conceito passa aser amplamente divulgado, isto é, o conceito de “desenvolvimento sustentável”, oqual se torna o conceito preferido no âmbito das organizações internacionais dessecontexto, tendo em vista que o mesmo apresenta uma conotação ideológica menosradical que o anterior e mais coerente “com uma fase de experimentação com aidéia de uma nova ordem econômica internacional” (idem, p. 109).

Outro estudo relacionado à problemática ambiental que se transformouem relevante documento para a discussão sobre o meio ambiente é o chamadoRelatório Brundtland1, o qual foi apresentado por uma comissão da ONU em 1987,cujas conclusões foram publicadas em várias línguas no livro intitulado Nosso FuturoComum. A partir desse relatório difundiu-se como desenvolvimento sustentável: “Aqueleque satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gera-ções futuras satisfazerem as suas próprias necessidades.” De acordo com Vieira(1995), este relatório não acrescentou modificações substanciais ao conceito de de-senvolvimento sustentável. Contudo, teve o mérito de reaquecer a discussão ambiental“em escala internacional sobre a caracterização precisa do critério de sustentabilidade”(idem, p. 113).

Já para Andrade (2000a), os autores Acselrad (1997) e Leroy (1997) demar-caram uma nítida separação político-ideológica entre o conceito deecodesenvolvimento e o de “desenvolvimento sustentável”. Este último foi ampla-mente divulgado, a partir deste contexto, como conseqüência do surgimento dosetor empresarial verde no movimento ecológico. Embora se reconheçam algunspontos comuns entre as referidas propostas, tais como: o princípio básico de defesaao direito das gerações futuras e a criação de uma sociedade sustentável, torna-senecessário ficar atento às diferenças ideo-políticas:

Enquanto o ecodesenvolvimento coloca limites à livre atu-ação do mercado, o desenvolvimento sustentável afirmaque a solução da crise ambiental virá com a instalação domercado total na economia das sociedades modernas(LAYRARGUES apud ANDRADE, 2000a, p. 193).

O que se depreende da análise acima é que existe um conteúdo político-ideológico diferenciado entre os conceitos de ecodesenvolvimento e desenvolvi-

Page 135: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento...

mento sustentável. Estão implícitas perspectivas de desenvolvimento. Enquanto oprimeiro busca a superação da lógica individualista/predatória do capital, o segun-do conceito busca responder aos desafios da crise ambiental mediante mecanismosque consolidam o sistema vigente, isto é, visa ao mesmo modelo de desenvolvimen-to sob uma “nova roupagem verde”. Assim, o conceito de desenvolvimento sus-tentável é uma superação positiva para o capital dos princípios conceituais doecodesenvolvimento, os quais representam um questionamento da lógica industrialistavigente num contexto de globalização econômica.

Godard (1997, p. 122) ressalta que a ampla difusão de diversas noções dedesenvolvimento sustentável significa que essa noção conceitual:

[...]pode satisfazer a projetos e valores de uma grande vari-edade de atores e de grupos sociais, e que ela prepara oterreno para a formação de novos compromissos em suasrelações. Desse ponto de vista, o halo de incerteza que ain-da envolve a noção corresponde exatamente à funçãoexercida na fase atual: aproximar problemáticas e interes-ses diferentes, abrir caminho para novas relações e favore-cer reorganizações.

Segundo Chaves (2004), entre 1973 e 1986, a equipe interdisciplinar de pes-quisa do Cired e do Fipad (Fondation International pour um Autre Développement) ampli-aram o debate sobre estratégias de desenvolvimento ecologicamente viável, che-gando ao conceito de desenvolvimento sustentado. A sustentabilidade envolve a busca deconstrução de um novo paradigma de desenvolvimento. Tal processo de constru-ção se afirma na luta político-ideológica de defesa de um desenvolvimento que leveem conta os limites ecológicos do planeta Terra. Assim, esse novo paradigma dedesenvolvimento “abrange a integração entre questões econômicas, sociais, cultu-rais, ecológicas e tecnológicas”.

Obstáculos impostos à implementação do desenvolv imentosustentável: breve reflexão

Depois da realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Am-biente e o Desenvolvimento (UNCED-92)2, que ficou mais conhecida pelo nomede ECO-92, e, também, da realização do Fórum Global3, as discussões sobre a

Page 136: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marinez Gil NogueiraMaria do Perpétuo Socor ro R. Chaves

problemática ambiental chegaram à conclusão de que se não for modificado “oatual modelo de desenvolvimento econômico e não se produzir uma aproximaçãoentre critérios ecológicos e processos econômicos, a espécie humana corre sériosriscos de sobrevivência a médio prazo” (LEIS, 1995, p. 24). As indicações da neces-sidade de transformar a lógica do modelo de desenvolvimento econômico vigenteestão presentes em todos os temas da Agenda 214 aprovados na Unced.

Não há duvidas de que no grande encontro da ECO-92 se registrou terhavido um avanço na compreensão sobre os perigos do desenvolvimento capitalis-ta-industrialista. Contudo, após dez anos foi realizada a Cúpula Mundial sobre oDesenvolvimento Sustentável – Rio+10 (em Johannesburg/África do Sul, no pe-ríodo de 26/08 a 04/09/02), onde verificou-se que houve pouca evolução naspolíticas públicas dos países signatários da Agenda 21, demonstrando que pouco sefez pela preservação do meio ambiente e a sustentabilidade do desenvolvimento.

Diante do quadro global de pouca concretização de políticas públicas vol-tadas para uma real sustentabilidade, vivencia-se um debate em torno das dúvidassobre as reais possibilidades de inflexão do modelo atual de desenvolvimento. Cha-ves (2004) destaca algumas questões que vêm minando as possibilidades deimplementação de um desenvolvimento sustentado, tais como:

• O mercado e a economia são categorias ainda centrais;• A existência de profunda debilidade das instâncias internacionais de

regulação;• A condição de subordinação dos países do Terceiro Mundo às orienta-

ções econômicas e políticas vindas do “Norte”;• Ênfase acentuada na mudança das técnicas de produção e inovação –

vistas como solução para todos os problemas;• A necessidade de ampla articulação, pois nem o sistema internacional, as

agências multilaterais, com a sustentação dos Estados soberanos, nem a estrutura doEstado moderno, suas instituições e políticas setoriais, possuem a chave-mestra parareverter e/ou solucionar os problemas societais.

A referida autora também afirma que este quadro extenso de desafios nãoimplica que não possam ser construídas ações direcionadas para o chamado desen-volvimento sustentável.

Observa-se a necessidade de uma real efetivação da construção de umnovo paradigma de desenvolvimento que busque uma simbiose entre sociedade e

Page 137: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento...

natureza, em que a segurança ecológica seja “reconhecida como um importanteaspecto da governabilidade do planeta, ao lado da paz e da redução da pobreza”(SACHS, 1980). Neste sentido, Eriksson (1997, p. 106) ressalta que:

A formulação de uma política para a sustentabilidade re-quer o uso da imaginação para se definir um estado domundo no ( bem distante) futuro, que possamos considerarcomo uma meta ou telos. Para avançar em direção ao de-senvolvimento sustentável, são necessárias políticas criati-vas preocupadas com o longo prazo (por exemplo mais deum século).

Apesar de se compreender a questão da escala temporal posta no horizonte deuma política de desenvolvimento sustentável, se nada mudar na lógica atual (predatória dosrecursos naturais) do desenvolvimento econômico, não haverá mais recursos para seremusados de forma sustentável, levando em conta a velocidade da degradação ambiental aonível mundial. Sob esta ótica, concorda-se com a seguinte assertiva:

O problema ambiental verdadeiro consiste precisamenteem elevar a produtividade do capital da natureza, usandoseus estoques saudavelmente, sem se sobrecarregarem asfunções de suprimento, de fonte (de recursos) e de absor-ção ou de fossa (de dejetos) do ecossistema. Mas é tam-bém um ponto de partida para a consideração da limitaçãoecológica imposta pela natureza ao processo econômico(CAVALCANTI, 1997, p. 25).

Para Chaves (2004), a busca da implementação de um desenvolvimento queverdadeiramente busque a sustentabilidade requer:

• Democratização do acesso ao poder para superação das disparidadeseconômicas e políticas;

• A conservação da vida (espécies vegetais e animais);• A formulação de questionamentos aos fundamentos da ciência moderna,

às práticas políticas e às políticas públicas;• Políticas públicas integradas que possam promover a distribuição eqüitati-

va de recursos e renda para combater a pobreza e atender às necessidades humanasbásicas;

Page 138: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 3 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marinez Gil NogueiraMaria do Perpétuo Socor ro R. Chaves

• Ciência e Tecnologia sintonizadas com as políticas de desenvolvimentosocial;

• O fortalecimento e ampliação da capacidade interna de inovação e inven-ção;

• Relação cooperativa entre universidades, centros de pesquisa e comunitá-rios (programas voltados para apoiar e contribuir com projetos de desenvolvimen-to local);

• A participação da população na tarefa de propor e trabalhar na constru-ção de um novo modelo de desenvolvimento.

Analisando as questões acima apresentadas percebe-se que a busca desustentabilidade do desenvolvimento requer uma verdadeira reforma institucional,visando à construção de mecanismos que possam vislumbrar a concretização de umdesenvolvimento ecologicamente viável e socialmente justo. Sob esse prisma, corro-bora-se com a afirmação a seguir:

Novas instituições são exigidas para a conservação dos ati-vos naturais, para encorajar a regeneração dos recursosrenováveis, para proteger a biodiversidade, para gerartecnologias mais ambientalmente benignas, para promoverestilos de vida menos intensivos no uso de energia e mate-riais, para manter constante o capital da natureza em bene-fícios das futuras gerações (NORGAARD apudCAVALCANTI, 1997, p. 37).

Além da necessidade de uma reforma institucional no seio da sociedade,verifica-se o desafio imposto ao próprio paradigma de fragmentação e fechamentoteórico-metodológico da Ciência Moderna. Para Costa (2001, p. 314), “o diálogoentre ciências naturais e sociais é, isto posto, uma necessidade imediata, que tem queser estabelecida politicamente e perseguida institucionalmente. Há que se criar osespaços que favoreçam – ou mesmo forcem – esta aproximação.”

Parafraseando Edgar Morin, o grande desafio coloca-se na busca de umaciência do “complexo” e, portanto, interdisciplinar. Tendo em vista que a criseambiental não permite uma análise reduzida do problema da sustentabilidade medi-ante uma percepção por si e para si da questão da preservação da natureza. Dessa

Page 139: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento...

forma, observa-se que “este tipo de visão oficializa certos saberes – os saberes danatureza – diante de uma problemática, o desenvolvimento sustentável, que na ver-dade só faz sentido como problemática social” (COSTA, 2001, p. 315).

Diante do exposto, verifica-se que são muitos os desafios postos para aconstrução de um novo paradigma de desenvolvimento pautado na noção de pru-dência ecológica. No campo da economia política, o que está em cheque é a versãoneoliberal da economia, exigindo novas formas de regulação democrática, o com-promisso do Estado para induzir políticas públicas ambientalmente responsáveis earticular a participação da sociedade civil nesse processo de construção de socieda-des sustentáveis.

Considerações finais

Não há dúvidas de que a sustentabilidade do desenvolvimento depende de umareforma institucional no âmbito do processamento das políticas econômicas e so-ciais públicas. Mas, antes de tudo, depende de uma mudança de mentalidade dasociedade que implique na construção de um novo arcabouço sociocultural derespeito à natureza.

Apesar das dificuldades impostas pela lógica política e econômica daglobalização, e dos próprios ditames do capitalismo, não se pode deixar de perse-guir mudanças em busca de um novo arranjo societal ambientalmente viável. Assim,faz-se necessário o engajamento de todos os setores da sociedade (empresários,Estado e sociedade civil organizada) na busca de um tipo de desenvolvimento sus-tentável, socialmente justo e ecologicamente viável.

Quando se fala de uma reforma institucional, pelo menos três fatores de-vem ser levados em consideração na busca de concretização de um desenvolvimen-to sustentável: educação, gestão participativa e um diálogo de stakeholders ou partesenvolvidas (CAVALCANTI, 1997).

Somente com o envolvimento da população será possível construir umfuturo de compromisso com as gerações futuras, mas é necessário se forjar umnovo ethos sociocultural de comprometimento com as questões ambientais. Semuma política efetiva de educação ambiental esse compromisso não será concretiza-do na teia do tecido social.

Em suma, a sustentabilidade deve ser uma meta da política de governo,visando promover um crescimento durável, eqüitativo e de qualidade ambiental.

Page 140: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marinez Gil NogueiraMaria do Perpétuo Socor ro R. Chaves

Notas

1 De acordo com Reigota (1994), esse relatório foi patrocinado pela primeira minis-tra norueguesa Gro-Brundtland, que propiciou a realização de reuniões em váriascidades do mundo, inclusive em São Paulo, visando discutir e encontrar soluçõespara a problemática ambiental levantada após a Conferência de Estocolmo.

2 A Unced configurou-se como um encontro de governos convocado pela ONUpara tratar da crise ecológica dos bens comuns da humanidade (atmosfera, recur-sos naturais, diversidade biológica, mares etc.) As lideranças governamentais domundo todo já não podiam mais negar a problemática ambiental, diante de umvolume cada vez maior de evidências empíricas em relação à magnitude das cha-madas “mudanças ambientais globais”, tais como: efeito estufa, alterações na ca-mada de ozônio e perda de bio e sociodiversidade.

3 De acordo com Leis (1995), o Fórum Global convocou mais de 2.500 entidadesnão-governamentais de mais de 150 países, realizando quase quatrocentas reuniõesoficiais, alem de vários eventos não-oficiais. Estima-se que esse Fórum atraiu umpúblico aproximado de 500 mil pessoas. Desta forma, considera-se como resulta-do deste evento a “emergência e legitimação do papel da sociedade civil planetáriafrente à crise socioambiental global, em um mundo governado pelos atores e re-gras do mercado e da política” (idem, p. 36).

4 “A Agenda 21 global é um documento desenvolvido para a Conferência das Na-ções Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, através de umprocesso preparatório que demandou dois anos de extensas negociações entre ospaíses-membros. A Agenda inclui uma declaração de objetivos e metas, bem comoum elenco de estratégias e ações a serem seguidas para alcançá-las. A Conferênciafoi apenas o primeiro passo de um longo processo de entendimento entre asnações sobre medidas concretas que possam “reconciliar as atividades econômicascom a necessidade de proteger o planeta e assegurar um futuro sustentável paratodos os povos” (TRINDADE, 2001, p. 265).

Referências

ANDRADE, D. B. M. O processo de reestruturação e as novas demandasorganizacionais do Serviço Social. In: Capacitação em serviço social e política social: o tra-

Page 141: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Desenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento...

balho do assistente social e as políticas sociais.v. 4. Universidade de Brasília. Brasília,DF, 2000a.

ANDRADE, J. B. T. Desenvolvimento sustentado e meio ambiente. In: Capacitaçãoem serviço social e política social: o trabalho do assistente social e as políticas sociais.v. 4. Universidade de Brasília. Brasília, DF, 2000b.

CASTRO, Edna; PINTON, Florence. Faces do trópico úmido: conceitos e questõessobre desenvolvimento e meio ambiente. Belém: Cejup: UFPA – NAEA, 1997.

CAVALCANTI, Clóvis. Política de governo para o desenvolvimento sustentável:uma introdução ao tema e a esta obra coletiva. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.).Meio ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1997.

CHAVES, Maria do P. Socorro R. Gestão em Biotecnologia: Tema sobre Desen-volvimento Sustentável. In: Gestão em Biotecnologia do Curso de Doutorado em Biotecnologia,Ufam/Inpa, 2004. (mimeo).

COSTA, Francisco de Assis. As ciências, o uso de recursos naturais na Amazôniae a noção de desenvolvimento sustentável: por uma interdiciplinariedade ampla.In: GUIMARÃES, Célia et al. (org.). Diversidade biológica e cultural da Amazônia.Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2001.

ERIKSSON, Karl-Erik. Meio Ambiente, Desenvolvimento sustentável e políticaspúblicas. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Ciência para o desenvolvimento sustentável.São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquin Nabuco, 1997.

FERREIRA, L. da C. Limites ecossistêmicos: novos dilemas e desafios para oEstado e para a sociedade. In: HOGAN, Daniel Joseph; VIEIRA, Paulo Freire(Org.). Dilemas socioambientais e desenvolvimento sustentável. Campinas, SP: Editora daUnicamp, 1995.

GODARD, O. O desenvolvimento sustentável: paisagem intelectual. In: CASTRO,Edna; PINTON, Florence. Faces do trópico úmido: conceitos e questões sobre desen-volvimento e meio ambiente. Belém: Universidade Federal do Pará, 1997.

LEIS, R. H. Ambientalismo: um projeto realista-utópico para a política mundial.In: VIOLA, Eduardo J. et al. Meio ambiente, desenvolvimento e cidadania: desafios paraas ciências sociais. São Paulo: Cortez, 1995.

Page 142: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marinez Gil NogueiraMaria do Perpétuo Socor ro R. Chaves

LEONARDI, M. L. A. Educação ambiental e teorias econômicas: primeiras apro-ximações. In: ROMEIRO, A. R; REYDON, B. P.; LEONARDI ,M. L. (org.).Economia do meio ambiente: teoria, políticas e a gestão dos espaços regionais. Campi-nas, SP: Unicamp. 1996.

LIMA, M. J. A. Ecologia humana: realidade e pesquisa. Petrópolis: Vozes, 1997.

REIGOTA, M. O que é Educação Ambiental. São Paulo: Brasiliense, 1994. (ColeçãoPrimeiros Passos).

SACHS, Ignacy. Stratégies de I’écodéveloppement. Paris: Lês Editions Ouvrières, 1980.

TRINDADE, S. C. Agenda 21: Estratégia de desenvolvimento sustentável apoia-da em processo de decisão participativa. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Meioambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. São Paulo: Cortez , 2001.

VIEIRA, P. F. A problemática ambiental e as ciências sociais no Brasil (1980-1990): contribuição ao mapeamento e à avaliação crítica preliminares do esforçode pesquisa. In: HOGAN, Daniel Joseph; VIEIRA, Paulo Freire (org.). Dilemassocioambientais e desenvolvimento sustentável. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.

Page 143: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 144: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Benedito Maciel**

ResumoEste artigo discute o processo de afirmação étnica e construção de identidade dosCambeba, conhecidos também como Omágua, na Amazônia brasileira (médioSolimões) a partir da década de 1980, ocorrido num momento em que emerge emtodo o país e na região de Tefé, o Movimento Indígena que vai procurar dar respos-ta a muitos problemas sociais, como: educação, saúde, auto-sustentabilidade e, prin-cipalmente, terra.

Palavras-chave: antropologia; indigenismo; identidade; índios cambeba.

AbstractThis article discusses the process of ethnical assertion and identity construction ofthe Cambeba Indians, also known as Omágua in the Brazilian Amazon region (mid-Solimões) since the 80’s, which have ocurred at a moment in which the IndigenousMovement that will try to give answers to many social problems, such as: education,health, self-sustainability and, chiefly, land arises in the whole country and in the Teféregion.

Keywords: anthropology; indigenism; identitity; Cambeba indians.

Afirmação étnica e movimento indígena em Tefé: o casodos Cambeba*

* Este ar tigo está baseado na 1.ª par te do capítulo VI de minha disser tação de mestrado intitulada “Identidade comoarticulação de novas possibilidades: etno-história e reafirmação étnica dos Cambeba na Amazônia brasileira”, defendida em2003, na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), dentro do Programa de Pós-Graduação “Mestrado em Sociedade eCultura na Amazônia”.

** Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, professor substituto do Depar tamento de História da UFAM.

Page 145: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Afirmação étnica e movimento indígena...

Introdução

O objetivo deste artigo é analisar o processo de reafirmação étnica dosCambeba verificado a partir do início dos anos de 1980 no médio Solimões,quando estes índios começaram a participar de assembléias e encontros indígenas,organizados pelos Miranha da aldeia Miratu, município de Uarini, com apoio demissionários da Prelazia de Tefé. Nessas reuniões, os índios discutiam seus proble-mas sociais, políticos e econômicos: saúde, educação, alimentação e terra, o quevai dar origem ao Movimento Indígena na região e que teve a Terra como oprincipal elo articulador dos interesses e aspirações indígenas. Esse Movimento vaiculminar na reafirmação étnica de muitos grupos na região como: os Cambeba,os Mayoruna, os Ticuna e os Kokama. Neste texto, trataremos do caso dosCambeba.

Os estudos desses novos processos de reafirmação de identidade no paísainda são incipientes e pouco divulgados. Mas já há algumas reflexões importan-tes, algumas delas estão divulgadas na obra coletiva, intitulada “A Viagem da volta:etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena”, coordenadapor João Pacheco de Oliveira, onde estão publicados alguns resultados destaspesquisas no Nordeste brasileiro. Essa “viagem da volta” não pode ser vista comoum “retorno” ao passado, mas como um processo de afirmação identitária quecoloca para os povos indígenas novos problemas no campo político e recolocaoutros no campo da memória coletiva e da articulação interétnica. Assim, a “via-gem da volta” não é um exercício nostálgico de retorno ao passado, desarticuladodo presente e das presentes questões políticas e sociais vividas pelos povos indíge-nas e até por isso “não é uma viagem de volta” (OLIVEIRA, 1999, p. 30-31).

A possibilidade de conquista da terra e melhorias no atendimento à saúdee à educação, amparadas numa legislação indigenista pós-1988, relativamente fa-vorável aos índios, são fatores favorecedores desses fenômenos, mas há outrosfatores, de ordem interna e externa, verificados no plano local e que devem seranalisados. Como já mencionamos, o caso dos Cambeba não é único, mas ajuda acompreender a situação étnica da Amazônia e a discutir esses novos fenômenosde reafirmação de identidade que estão ocorrendo em todo o país, evidenciandouma realidade étnica regional mais complexa do que se pode imaginar.

Page 146: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Benedito Maciel

Para João Pacheco de Oliveira:

São dois os fatores que favorecem a recuperação étnica:de um lado, os processos econômicos e políticos quepropiciam um aumento da pressão sobre a terra, cominiciativa dos proprietários no sentido da expulsão de“moradores” e a ruptura de alianças com grupos e famíliasisoladas; de outro, o aparecimento, na região, de umaalternativa étnica para alguns setores ameaçados, fato quedecorre da implantação do SPI na região e do novo campoindigenista construído a partir do final dos anos 80, com aatuação da FUNAI, CIMI e entidades não-governamentais(OLIVEIRA, 1999b, p. 327).

Neste sentido, em dissertação de Mestrado intitulada “Identidade comoarticulação de novas possibilidades: etno-história e reafirmação étnica dos Cambebana Amazônia brasileira” sustento que a reafirmação étnica dos Cambeba se deunum contexto histórico marcado por uma importante mudança na políticaindigenista brasileira – tanto por parte do Estado como da Igreja e da sociedadede modo geral – onde emerge com bastante força o chamado “Movimento Indí-gena”1, cujas especificidades no médio Solimões corroboraram para que osCambeba não somente se reafirmassem como indígenas, mas, através deste Mo-vimento, passassem a exercer um importante papel político de liderança em todaa região e, através desse “novo papel”, reelaborassem sua identidade étnica narelação com outros grupos da região.

Dentre os mecanismos de mobilização étnica, ocorridos dentro do Movi-mento Indígena no médio Solimões, destacam-se: os Ajuris; as Assembléias Indíge-nas; as Viagens de Articulação; os Cursos de Formação de Lideranças (agentes desaúde, professores, tuxauas) e a própria organização indígena Uni-Tefé (União dasNações Indígenas de Tefé) como mecanismo de representatividade política “parafora”. Destaca-se também a relação da Uni-Tefé com o Cimi (Conselho IndigenistaMissionário) e a Prelazia de Tefé e, sobretudo, o uso que os Cambeba fazem dainfra-estrutura do Cimi para articular o Movimento e se comunicar com as aldeiasem toda e região. Foi a partir desses mecanismos que os Cambeba se projetarametnicamente na região diante de outros grupos e da sociedade nacional demonstran-do habilidades específicas – próprias e adquiridas –, mas necessárias e apresentadas

Page 147: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Afirmação étnica e movimento indígena...

de forma convincente junto a seus pares. Tratarei aqui apenas do processo de afir-mação dos Cambeba deixando para outra oportunidade a análise dos mecanismosde mobilização étnica dentro do Movimento Indígena na região de Tefé.

Trata-se então de perceber a reafirmação étnica dos Cambeba não comoum retorno ao passado por saudosismo ou por mero interesse econômico“imediatista” (terra, educação, saúde), mas como processo endógeno e exógeno desuperação de estigmas, marcado por conflitos e tensões intra e interétnicas, onde foipossível estabelecer relações de apoio e “parcerias” com os diferentes agentes polí-ticos envolvidos no cenário político regional. Trabalhar esta perspectiva implica re-conhecer o papel do grupo Cambeba enquanto “sujeito”, capaz de saber avaliar ocenário indigenista dos anos 1980 como favorável para sair do silêncio secular eassumir sua identidade étnica (re)elaborando o seu mundo simbólico e cultural.

Discutindo etnicidade

Tomamos como referência os estudos sobre etnicidade desenvolvido porFredrik Barth e Roberto Cardoso de Oliveira, que entendem grupo étnico não comouma unidade cultural fechada ou delimitada rigidamente por fronteiras lingüísticasou geográficas, mas como grupos que vão se definindo a partir das relaçõesestabelecidas com outros grupos e com a sociedade nacional. Barth – retomando aconcepção weberiana de comunidades étnicas que são vistas como grupos virtuaisque se atualizam por intervenção de fatores políticos – entende que a cultura resultada etnicidade e, não o contrário, o que pressupõe uma especial atenção ao problemadas fronteiras étnicas. O estudo de Barth parte de uma crítica à noção de gruposétnicos primordiais, que privilegia o estudo das variações e transformações culturais.Segundo o autor, a perspectiva primordialista não se sustenta uma vez que os gru-pos étnicos continuam existindo apesar das variações culturais e do intenso contatodestes com grupos sociais dominantes (BARTH, 2000, p. 26).

Manuela Carneiro da Cunha também corrobora com esta perspectiva aoafirmar que:

Em suma, traços culturais poderão variar no tempo e noespaço, como de fato variam, sem que isso afete a identida-de do grupo. Essa perspectiva está, assim, em consonânciacom a que percebe a cultura como algo essencialmentedinâmico e perpetuamente reelaborado. A cultura, portan-

Page 148: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 4 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Benedito Maciel

to, em vez de ser o pressuposto de um grupo étnico, é decerta maneira produto deste (CUNHA, 1987, p. 116).

Roberto Cardoso de Oliveira (1976) recupera as contribuições(GOODENOUGH, W. H., 1963; MOERMAN, M., 1965; GOFFMAN, E., 1963e; MCCALL & SIMMONS, 1966) para demonstrar como a Sociologia e a Antro-pologia têm buscado trabalhar a identidade combinando os aspectos social e indivi-dual. Para o autor, a importância de reconhecer esses níveis permite que antropólo-gos e sociólogos possam trabalhar o tema da identidade sem cair em certos“psicologismos”, comuns em trabalhos interdisciplinares dessa natureza (CARDO-SO DE OLIVEIRA, 1976, p. 4). Para ele, a identidade é um fenômeno“bidimensional” que incorpora os aspectos individual e coletivo de forma “proces-sual”. O reconhecimento do caráter processual realizado tanto por indivíduos comopor grupos sociais permite verificar diferentes processos de identificação social.

Buscando compreender a identidade étnica, o autor trabalha a noção de“identidade contrastiva” e a vê como a essência da identidade étnica, pois ela: “im-plica na afirmação de nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo seafirma como tais, o fazem como meio de diferenciação em relação a alguma pessoaou grupo com que se defrontam. É uma identidade que surge por oposição”. Nestesentido, a identidade étnica surge num processo dialético de enfrentamento de con-trários e não em situação de isolamento. Ela se afirma “... ‘negando’ a outra identida-de, ‘etnocentricamente’ por ela visualizada” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p.5-6). Para ele, cultura aqui significa “valores”, assim como definiu Barth, mas enfatizatambém o sentido de “padrão”, “perceber”, “crer”, avaliar”, “agir”. Lembra tam-bém que ao se tratar de “valor” e tudo o que ele significa temos que discutir aquestão da “escolha” e indaga: “[...]por acaso não é a identificação étnica – noscontextos em que a temos examinado – de algum modo uma ‘escolha’?” (CAR-DOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 21).

Neste sentido, a “escolha” em afirmar-se como Cambeba no médio Solimõesestá diretamente relacionada a uma “avaliação” dos prováveis resultados desse atotraduzidos em “perdas” e “ganhos”, onde as possibilidades de ganhos foram vistascomo maiores pelo grupo. Entre os “ganhos” está seguramente a Terra. Uma ava-liação dessa natureza foi feita também pelo grupo no passado, quando se afirmarcomo indígena pressupunha mais perdas que ganhos, ou mesmo nenhum ganho:

Page 149: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Afirmação étnica e movimento indígena...

quando os Cambeba afirmaram que deixaram de falar a língua por medo de seremperseguidos e descriminados pelos “brancos” (Cf. MACIEL, 2003, p. 56-79).

Oliveira (1999) identifica que os debates em torno da questão da etnicidadeapontam para dois caminhos, onde, de um lado, estariam os instrumentalistas –como Barth e Cohen –, que entendem como processos políticos que devem serestudados de forma específica e, de outro, estariam os primordialistas – Geertz eKeyes, por exemplo –, que analisam como lealdades primordiais. Oliveira propõeuma superação dessa polaridade, sugerindo, ao que me parece, uma correlação entreas duas correntes ao apontar que:

A etnicidade supõe necessariamente uma trajetória (que éhistórica e demandada por muitos fatores) e uma origem(que é uma experiência primária, individual, mas que tam-bém está traduzida em saberes e narrativas aos quais vem ase acoplar). O que seria própria das identidades étnicas é quenelas a atualização histórica não anula o sentimento de refe-rência à origem, mas até mesmo o reforça. É da soluçãosimbólica e coletiva dessa contradição que decorre a forçapolítica e emocional da etnicidade (OLIVEIRA, 1999, p. 30).

Contextos histórico e social da identificação étnica dos Cambeba

A emergência do chamado “movimento indígena organizado” no Brasil érelativamente recente e tem um contexto histórico determinado: as décadas de 1970e 1980. Antes desse período, as mobilizações indígenas davam-se de forma isoladae limitada às situações particulares de resistência regional ou étnica, por isso,freqüentemente, fragilizadas e sem muito poder de barganha diante do Estado.

Na mentalidade da sociedade brasileira e dentro da concepção da políticaindigenista brasileira vigente na época, os índios ainda eram vistos como incapazesde gerir seu próprio destino, sendo necessária a proteção do Estado através da tutelae sua integração à sociedade nacional, o que só poderia se dar mediante um proces-so de “aculturação”. Essa era a filosofia desde a época do SPI (Serviço de Proteçãoao Índio) criado em 1910 e se estende até a Funai (Fundação Nacional do Índio)criada em 1967. Essa filosofia significou, na prática, retirar os indígenas das áreas deinteresse do capital e colocá-los em Parques Indígenas ou “Área de Refúgio”, comoParque do Xingu, criado em 1951 e o Parque Indígena Aripuanã, criado em 1968;

Page 150: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Benedito Maciel

extermínios de grupos inteiros ou; redução brusca da população e do territóriocomo foi o caso dos Waimiri-Atroiri no Amazonas.

Nesta perspectiva vemos que na geopolítica do governo militar a Funaitinha a missão de retirar os empecilhos aos grandes projetos econômicos, especial-mente na Amazônia, demolindo as resistências e impedindo determinadas “presen-ças indesejadas” – de pessoas ou de grupos – especialmente aqueles ligados aoindigenismo alternativo que começava a ganhar força em todo o país. Neste sentido,a Funai já nasce comprometida com a ideologia desenvolvimentista dos governosmilitares (Cf. DAVIS, 1978; SABATINI, 1998; THOMÉ, 1999).

Sobre os chamados “grandes projetos”, José de Sousa Martins (1991) assimpercebeu o significado do seu impacto na região amazônica:

Aqui não se trata de introduzir nada na vida de ninguém.Aqui se trata de projetos econômicos de envergadura, comohidrelétricas, rodovias, planos de colonização, de grandeimpacto social e ambiental, mas que não tem por destinatá-rias as populações locais.[...] Não se trata de introduzir nada na vida dessas popula-ções, mas de tirar-lhes o que têm de vital para sua sobrevi-vência, não só econômica: terras e territórios, meios deexistência material, social, cultural e política. É como seelas não existissem ou, existindo, não tivessem direito aoreconhecimento de sua humanidade (MARTINS, 1991, p.16. Os grifos são do autor).

A criação do Estatuto do Índio, em 1973, em vigor até hoje, reconhece aterra como o território tradicional dos grupos indígenas. É a partir desse momentoque os povos indígenas começam a lutar pelo reconhecimento de seus direitos epelos seus territórios tradicionais ou recém-conquistados. Mas é somente com aConstituição de 1988, que a terra indígena assume a conotação de “terras de ocupa-ção tradicional”, onde os índios têm o direito de se reproduzir física e culturalmente,enquanto povos diferenciados, no marco do Estado Nacional2. Foi no períodoconstituinte que os povos indígenas tiveram um dos seus momentos mais importan-tes de luta e resistência e onde conseguiram mobilizar a seu favor um maior númerode aliados: ONG’s, sindicatos, partidos políticos, cientistas, igrejas e personalidades.

Durante toda a década de 1970 são realizadas em todo o país as chamadasAssembléias Indígenas – num total de dez entre 1974 e 1977 –, onde determinados

Page 151: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Afirmação étnica e movimento indígena...

grupos de comunidades de um povo ou de vários povos começam a discutir váriastemáticas, tendo a questão da “terra” como o eixo articulador e mobilizador dasdemandas dos povos e comunidades em todo o país (CONSELHOINDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2001, p. 58). A necessidade de articular ummovimento em nível nacional levou os indígenas a criarem, em 1980, a UNI (Uniãodas Nações Indígenas), que passou a articular as assembléias, encontros e mobiliza-ções indígenas e a representar os povos e comunidades junto ao governo e emvários espaços públicos onde a questão indígena era debatida.

A UNI nasce na crise do indigenismo brasileiro e suas contradições apare-cem nos seus primeiros encontros em nível nacional, realizados entre 1982 a 1984:as tensões entre os indigenismos oficial e alternativo3 são evidentes. Essas tensõese a própria dificuldade de organizar centenas de povos e milhares de comunida-des – com diferentes relações de contato e, quase sempre, isoladas geografica-mente – em todo o país, vão causar uma constante instabilidade no movimentoem nível nacional.

A saída foi fortalecer as organizações e mobilizações em níveis local e re-gional. Assim, foi criada, em 1989, a Coiab (Coordenação das Organizações Indíge-nas Brasileira) e inúmeras outras organizações locais. É nesse momento, final dosanos 1980 e início dos anos 1990, que vão multiplicar-se em todo o país as chama-das “organizações indígenas” legal e juridicamente constituídas com o papel de “re-presentação” dos interesses indígenas junto ao Estado e a várias instâncias da socie-dade nacional.

Como resultado de tensões entre diversos setores do Estado, da igreja e deseguimentos profissionais, como os de antropólogos, há uma reação de vários seto-res sociais “dominados”. A partir do Concílio Vaticano II (1962-65), das Conferên-cias Medellin (1968) e Puebla (1979), a igreja se abre para novas propostas e aceita osdesafios vividos pelos cristãos na América Latina e a orientação da Teologia daLibertação. No final da década de 70 e início dos anos 1980 são criadas: a CPT(Comissão Pastoral da Terra), a Opan (Operação Anchieta, hoje, Operação Amazô-nia Nativa) e o Cimi, além de outras pastorais como a Operária e Estudantil, quetraduzem uma nova postura da igreja católica diante dos problemas nacionais. Odocumento Y-Juca Pirama (1973) deixa clara a posição política da igreja, que, além dedenunciar as violências contra os povos indígenas, declara: “não aceitaremos serinstrumentos de sistema capitalista brasileiro”.

Page 152: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Benedito Maciel

A comunidade científica também se mobiliza. Um grupo de antropólogosde todo o continente americano expressa, na Declaração de Barbados (1970), o quevai ser um eixo orientador de toda a prática indigenista não-oficial: “Ou a libertaçãodos índios é feita por eles mesmos, ou não é libertação”.

A atuação da igreja em Tefé foi um dos fatores decisivos para a emergênciade muitos grupos étnicos na região, num processo de ação política inovadora, masnão sem conflitos. Até o final da década de 1970, somente os Miranha da aldeiaMiratu eram tidos oficialmente como índios. Seu território foi demarcado no iníciodo século pelo SPI. Antes da presença do Cimi na região, o que ocorreu somente apartir de 1979, era o MEB (Movimento de Educação de Base) que atendia às comu-nidades Jaquiri, Betel, Marajaí, entre outras, antes delas terem se identificado comoindígenas4. A atuação da igreja, marcada já nessa época pela “opção preferencialpelos pobres” – orientação traçada em Medellin (1968) e adotada pela CNBB (Con-ferência Nacional dos Bispos do Brasil) Regional Norte I em 19725 –, buscavaimplementar um discurso político de transformação social, incentivando a organiza-ção comunitária e criando as chamadas CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base).

O encontro de lideranças indígenas de Miratu

Esse evento é considerado o 1.º Encontro de Lideranças Indígenas da Prelaziade Tefé e foi realizado na aldeia de Miratu dos índios Miranha, município de Uarini,em julho de 1980. Nesse Encontro as lideranças realizaram um diagnóstico da situ-ação indígena na região de Tefé, onde foi dada especial atenção aos problemas desaúde, terra e organização das aldeias.

Para o tuxaua de Miratu, Sr. Adriano Pereira de Sousa, os problemas sóseriam resolvidos com a “união dos parentes”. No depoimento abaixo, Adrianorevela a situação socioeconômica em que os índios viviam e as alianças que estavamfazendo:

[...] A gente precisa de tanta coisa, mas a produção da gentenão dá pra nada. A gente produz tanta farinha [mas] opreço é de nada; a gente colhe muita castanha, quando éépoca de castanha, também não dá pra nada; a gente cortatanto pau, desmata 3, 4 quadra de roça, não dá pra nada,por não termos ajuda. O comércio corta tudo pela metade[paga metade do valor]. Então é muito difícil a nossa vida.

Page 153: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Afirmação étnica e movimento indígena...

A gente apela, como eu já falei pra seringa, aí acaba dematá; sorva, não existe mais; tem uma madeira de lei, masnão temos serra[...]. É muito longe essas madeiras, onde agente não consegue trazê pra beira.Por esse motivo eu faço um apelo pro lado dos missioná-rios pra que eles ajudem a desenvolver a comunidade. Elestêm muito poder e intimidade com as entidades. Pode serque assim eles possam conseguir alguma coisa pra gente.Será que não é bom assim? Será que a gente se encostandodo lado deles, eles não consegue alguma coisa pra nós?Porque a gente se vira pra um lado e outro e não conseguenada! [...] Eu vou me encostá do lado da Prelazia de Tefé.Pode ser que melhore alguma coisa[...] (Depoimento deAdriano Pereira de Sousa, Cf. MACIEL, 2003, p. 145).

A proposta de “se encostá” na Prelazia era a saída encontrada pelas lideran-ças para buscar apoio para as aldeias e que vai ser assumida por outros gruposindígenas. Os índios perceberam a influência que a Igreja tinha em várias áreas sociais(saúde, educação, comunicação, transporte etc) e, por outro lado, viam que os mis-sionários, especialmente ligados ao MEB e ao Cimi eram pessoas interessadas e queconheciam os índios: “[...] é eles que conhecem a nossa realidade, que andam tudopor aí com a gente”.

Já a partir deste momento, a garantia da Terra passa a ser, no entendimentodos índios, a única possibilidade de melhoria de vida. Lembremos que no início dadécada de1980, apenas as áreas dos Miranha de Méria e Miratu eram demarcadas.Outras áreas do médio Solimões não haviam sido sequer identificadas. Mas o discursoem defesa da terra era firme e tinha um significado bem definido. Nas palavras deAdriano: “[...] vamos lutá pra garanti a Terra. A Terra é o escritório do pobre. Oterçado é a lapiseira do pobre”. É a luta pela Terra que vai articular todo o movimentoindígena na região a partir do Encontro de Miratu (MACIEL, 2003, p. 146).

Reafirmando a identidade étnica: um jeito de se “entrosar” e de ven-cer o medo

A reafirmação étnica dos Cambeba ocorreu a partir do Encontro de Miratu.Desde então esses índios começaram a participar de assembléias e encontros indíge-nas. Esse foi um momento importante, onde os índios colocaram em comum seus

Page 154: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Benedito Maciel

problemas, tomaram decisões e se alegraram de conhecer novos “parentes”. De-pois da apresentação de Raimundo Cruz, índio Cambeba de Jaquiri, que se apresen-tava pela primeira vez como índio diante dos outros grupos, assim se expressouAdriano, tuxaua Miranha:

[...]Pois é Seu [para designar Sr.] Cruz, hoje, dia 03 de julhode 80, que nós temos nos conhecendo, você, Seu Geraldoe agora estamos se entrosando, se conhecendo... Então, esseé o maior prazer que eu tenho de viver junto com vocês.Embora cheio de problemas, mas com amigos, que estamosconhecendo. Que antes, eu nem pensava de ter esse tipo deEncontro (Cf. MACIEL, 2003, p. 147).

O Encontro de Miratu foi um marco na história dos Cambeba e dos índiosdo médio Solimões. Nasce o embrião do movimento indígena, traduzido na articu-lação dos povos e das aldeias, na troca de experiências e na discussão dos problemasem comum. Todas as lideranças colocaram seus problemas e concluíram que nãoapenas tinham um passado em comum, mas também um presente de sofrimento eexploração e que só a união das aldeias e dos povos e a busca de aliados poderiamtirá-los daquela situação. É necessário lutar pela terra; se entrosar, se “encostá” naPrelazia, ou seja, buscar parcerias.

Para os Cambeba, era mais que tudo isso. Neste Encontro, passaram aconhecer outros “parentes” e a reconhecer-se neles também. Numa série de encon-tros que sucederam este tomaram conhecimento dos direitos que os índios tinhamna sociedade brasileira, através de palestras, debates e discussões coordenadas pelosmissionários da Prelazia de Tefé.

Perguntado por que os Cambeba não se identificavam como índios antesde chegar na aldeia Jaquiri, André responde com clareza: “Porque não tinha quemchegasse lá pra perguntá. Ninguém pensava que existia índio lá. Aí a gente vivia àvontade ali. Não era porque a gente não se reconhecia, era porque ninguém dizia queexistia etnia ali” 6. Fica claro no depoimento de André Cruz que os Cambeba tinhamconsciência de sua identidade indígena, ou seja, que eram diferentes dos outros, masa discriminação e o medo não deixavam que eles se afirmassem diante dos outroscomo índios. A razão da sociedade regional não perceber a presença dos Cambebaestá seguramente associada ao fato dos índios não mais apresentarem aqueles traçosdistintivos (andar nu, morar nas matas, exibir pinturas corporais, não falar o por-

Page 155: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Afirmação étnica e movimento indígena...

tuguês etc.) tidos pela sociedade como definidores do índio. Mas adiante, AndréCruz complementa: “Nós sabia que nós era Cambeba, nós falava a língua. Só queera como assim uma criança que vivia ali [...]”7. A relação que André faz com a vidade uma criança quer enfatizar o não conhecimento da estrutura da sociedade brasi-leira, dos seus direitos e a dominação exercida pelos brancos.

Por isso, a expressão “buscar conhecimento” aparece com grande força nodiscurso dos Cambeba passando a ser uma determinação desses índios a partir dosanos 1980. O Movimento Indígena é um espaço privilegiado para essa busca: oscursos, os encontros, as viagens “para fora”[...]. Mas não era só aí que os Cambeba“buscavam” conhecimento. A escola também passa a ter um papel importante navida do grupo. Assim que chegaram a Jaquiri, o tuxaua Valdomiro Cruz designouAndré Cruz, seu filho, para se formar professor. Hoje, os professores das aldeiasCambeba são todos do próprio grupo. Perguntado sobre qual razão teria levado ogrupo a se identificar como Cambeba, André é bem sucinto: “Foi o conhecimento darealidade dos parentes da cidade que não têm emprego, que não têm estudo. Aí,pensamos: temos nossa etnia, vamos nos identificar. Aí deu certo”8.

A identificação étnica dos Cambeba se dá, portanto, no início das aliançasinterétnicas no médio Solimões que vai dar origem ao Movimento Indígena naregião e mais tarde na própria criação da Uni-Tefé, como entidade responsável pelaarticulação desse movimento e pela defesa dos direitos de todos os povos indígenasda região de Tefé.

Contudo, é necessário dizer que a identificação ou a reafirmação étnica apre-sentava-se como uma faca de dois gumes: se por um lado, criava a possibilidade desair do silêncio secular e de poder barganhar o direito a terra e a melhores condiçõesde vida, por outro lado, os expunha a pressões e preconceitos de toda ordem.Mesmo que a demarcação das terras Cambeba (Jaquiri, Igarapé Grande, Barreira daMissão) não tenha contrariado grandes interesses econômicos a ponto de provocarconflitos graves, até mesmo por serem terras relativamente pequenas, mesmo assim,a nova forma de ocupação e uso do território bem como dos lagos e recursosnaturais não foi bem assimilada por comerciantes, regatões, pescadores e donos decastanhais. Lembramos aqui também os conflitos que os Cambeba tiveram comGonçalves e Litaiff pela posse de Igarapé Grande (MACIEL, 2003, p. 150).

Segundo Faulhaber (1998, p. 62), na mentalidade de políticos e administra-dores regionais o morador do “beiradão”, o caboclo, é diferente dos habitantes dos

Page 156: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Benedito Maciel

“altos rios”, como eram vistos os índios. E lembra que “os índios de Tefé, segundoo prefeito, já estariam ‘perfeitamente integrados’, e não necessitariam mais de tutela”.

Entre 1992 e 1995, acompanhamos muitas vezes os coordenadores da Uni-Tefé em palestras nas escolas públicas de Tefé, Alvarães e Maraã e pudemos verquanta surpresa dos estudantes quando descobriam que aquelas pessoas eram índias,mas também o quanto ficavam desapontadas em saber que não falavam a línguamaterna e vestiam roupas iguais às suas, iguais às dos “brancos”. Em muitas opor-tunidades, no final das palestras, os organizadores procuravam-nos para solicitarque da próxima vez fosse alguém que “falasse língua” e que pudesse apresentaralgum ritual “indígena mesmo!”.

Uma vez identificados como índios, fugir do preconceito e da estigmatizaçãopor parte dos “brancos” passou a ser uma preocupação do grupo.9 Em trabalho decampo que realizamos em 1997, um Cambeba contou-nos que, certa vez, o tuxauade Jaquiri mandou prender seu próprio parente que se envolvera numa pequenabriga nas vizinhanças. Presume-se que, com essa atitude, os Cambeba queriam mos-trar que não eram violentos e que não compartilhavam com atos de vandalismo edesordem como poderia constar no imaginário popular. E mais, que tinham seupróprio governo, representado na figura do tuxaua, que eram organizados e quepoderiam resolver seus problemas internos sem a intervenção da polícia.

É neste contexto, no campo de enfrentamento político, que os Cambebavão construindo e reconstruindo sua identidade étnica, numa complicada rede derelações e de conflitos internos (entre si) e externos (com outros indígenas e com osbrancos). Para Faulhaber:

Como as relações entre etnias são estabelecidas em cam-pos políticos concretos, a identidade étnica é construída,portanto, pelos agentes que as operacionalizam, através derelações políticas que se processam em campos de forçasconjuntivas, sendo deste modo a etnicidade definida naprópria situação de confronto político (FAULHABER,1987b, p. 64).

A partir do que foi exposto é possível pensar a reafirmação étnica dosCambeba não como um retorno a formas culturais passadas, mas como umareelaboração das relações sociais, no sentido de conciliar interesse ou mesmo emuma “reinvenção” nos termos que propõe Faulhaber (1997b). Assim, a identidade é

Page 157: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Afirmação étnica e movimento indígena...

vista não como algo que se perpetua no tempo, mas como reelaboração constantedas formas de conceber o mundo e de definir novas estratégias para melhorar ascondições de vida e dar sentido aos propósitos comuns do grupo tendo, comopalco, as lutas e os conflitos do quotidiano.

Dentro desta mesma perspectiva está o estudo de Stuart Hall, na medidaem que ele considera que:

Ao invés de tomar a identidade por um fato que, uma vezconsumado, passa, em seguida, a ser representado pelasnovas práticas culturais, deveríamos pensá-la, talvez, comouma ‘produção’ que nunca se completa, que está sempreem processo e é sempre constituída interna e não externa-mente à representação (HALL, 1998, p. 68).

É, portanto, numa complicada rede de relações, alianças e conflitos que osCambeba vão se afirmando como indígenas e reelaborando seu mundo simbóli-co e cultural, retirando do silêncio secular “pedaços esquecidos” de sua história ede sua tradição, enfim, vão se reorganizar e planejar a vida e o futuro. Comovimos, o Movimento Indígena é o palco principal deste processo de resistência ede afirmação de identidade. É uma nova fase de sua história que se dá, não porcoincidência, inserida nas histórias indígenas brasileira e regional. É um novo cená-rio político e social marcado por mudanças na relação dos povos indígenas coma sociedade nacional, com o Estado brasileiro e entre os próprios grupos indíge-nas. O Movimento Indígena organizado é a maior expressão destas mudanças esignifica, para os Cambeba, ter que fazer novas alianças com antigos e novosrivais, mas também significa a possibilidade de se projetar no cenário político daregião do Solimões e se articular como um povo diferenciado.

Perguntado se havia melhorado alguma coisa na vida dos Cambeba de-pois de terem se identificado como indígenas, André Cruz, é claro e conclusivo naresposta:

Pra nós melhorou porque temos mais conhecimento políti-co e também de vários pontos da aldeia. Chegamos até asala de aula. E nos aspectos do Movimento Indígena, me-lhorou porque chegamos a estudar mais e abranger outrospontos aqui na região. Se não fosse essa identificação comoindígena e entrá no Movimento, nós estava pescando pira-

Page 158: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 5 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Benedito Maciel

nha, não tinha nenhum conhecimento. Nós tava por aí[...]A gente não ia valer nada (Cf. MACIEL, 2003, p. 174)

Notas

1 Faço aqui uma necessária distinção entre “Movimento Indígena” e “OrganizaçõesIndígenas”. O primeiro, entendo como todas as formas de resistência exercidaspelos povos indígenas frente às situação de conflito interétnico – que vão desde asrevoltas contra agentes da colonização regional, ocorridas localmente, até manifes-tações e mobilizações políticas mais amplas –, e o segundo, como novas formas deorganização criadas e recriadas pelos povos indígenas para articular suas lutas den-tro das estruturas do Estado nacional brasileiro e que têm como marco os anos de1980. São “Organizações” criadas a partir do modelo sindical (de luta de classe),seguindo as formalidades jurídicas da sociedade brasileira e que tiveram desde seuinício uma forte influência de entidades da sociedade civil organizada, “aliadas” aosíndios.

2 O Capítulo 231 da Constituição Brasileira reconhece os direitos sociais dos índiose atribui à União a obrigação de demarcar suas terras e proteger esses direitos. Dizo texto constitucional: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costu-mes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradi-cionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitartodos os seus direitos”.

3 Chamo de “indigenismo alternativo” o Movimento articulado a partir dos anosde 1970 pelos índios com apoio da sociedade civil organizada, que, de algummodo, apresentava uma outra perspectiva de organização e de enfrentamento di-ante da política indigenista do Estado brasileiro.

4 O MEB foi criado em 1961 em nível nacional a partir de experiências de projetosde Educação Radiofônica, desenvolvidos pela CNBB nas Arquidioceses de Natale Aracaju. Essas experiências, na avaliação da Igreja, eram adequadas para traba-lhos nas áreas pobres de difícil acesso e comunicação. O Departamento do MEBem Tefé foi criado em 1963, pelo bispo Dom Joaquim de Lange e, durante 40anos, desenvolveu projetos de educação de jovens e adultos, organização comuni-tária, formação de lideranças, assessoria a comunidades e organizações populares,entre outros. Em 2003, o Departamento de Tefé foi fechado.

Page 159: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Afirmação étnica e movimento indígena...

5 Cf. OLIVEIRA, José Aldemir; GUIDOTTI, Pe. Humberto (Org). A Igreja armasua tenda na Amazônia: 25 anos do Encontro Pastoral de Santarém. Manaus: Edua,2000. Neste livro está publicado o conhecido Documento de Santarém bem comouma série de artigos que avaliam a atuação da igreja e a realidade socioeconômicados últimos 25 anos.

6 Entrevista de André Cruz a Benedito Maciel, gravada em fita K-7, em 23 deagosto de 2003, na sede da Uni-Tefé na cidade de Tefé (Cf. MACIEL, 2003, p.148).

7 Ibdem.8 Idem, p. 149.9 Erving Goffman menciona três tipos de estigmas: o primeiro seria “as abomina-

ções do corpo”, o segundo se refere às “culpas de caráter individual, percebidascomo vontade fraca, paixões tirânicas ou não-naturais, crenças falsas e rígidas,desonestidade”, e o terceiro seria “os estigmas tribais de raça, nação ou religião,que pode ser transmitido através da linguagem e contaminar por igual todos osmembros de uma família”. O estigmatizado seria “um indivíduo que poderia tersido facilmente recebido na relação social quotidiana, possui um traço que pode-seimpor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade deatenção para outros atributos seus” (Cf. GOFFMAM, 1988, p. 14). A idéia doíndio como “preguiçoso”, “violento”, “desonesto”, “ignorante” etc. existente nasociedade faz com que o índio seja discriminado e não bem aceito em muitosespaços sociais, sendo, portanto, estigmatizado.

Referências

BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Tradução: JohnCunha Comerford. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo:Pioneira, 1976.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sociologia do Brasil Indígena. Rio de Janeiro/Brasília: Tempo Brasileiro/UnB, 1978.CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. “Outros 500”: construindo umanova história. São Paulo: Editora Salesiana, 2001.

Page 160: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Benedito Maciel

CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil. Mito, história, etnicidade. 2. ed.São Paulo: Brasiliense, 1987.DAVIS, Shelton H. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil.Tradução: Jorge Alexandre F. Pontual. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.FALHAUBER, Priscila. “A Reinvenção da identidade indígena no médio Solimões eno Japurá”. Anuário Antropológico/96. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 83-101,1997a.FALHAUBER, Priscila. O Navio Encantado: etnia e alianças em Tefé. Belém: Museu Goeldi,1987b.FALHAUBER, Priscila. O Lago dos Espelhos: etnografia do saber sobre a fronteira em Tefé/Amazonas. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1998.GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradu-ção: Márcia Bandeira de M. L. Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,1988.HALL, Stuart. “Identidade cultural e diáspora”. Revista do Patrimônio Histórico e Artís-tico Nacional. Nº?, 1998. Ano, p. 68-75.MACIEL, Benedito. Identidade como Articulação de novas possibilidades: etno-história ereafirmação étnica dos Cambeba na Amazônia brasileira. Dissertação de Mestrado.Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2003.MACIEL, Benedito. Resistência Silenciosa: estudo da retomada étnica dos Omágua. Manaus:Universidade do Amazonas, PIBIC/CNPq, Relatório de Final de Pesquisa, 1997.MARTINS, José de Sousa. “A chagada do estranho: notas e reflexões sobre o im-pacto dos grandes projetos nas populações indígenas e camponesas da Amazônia”.In: HÉBERT, Jean, (Org.). O cerco está fechado. RJ: Fase/NAEA/UFPA, Vozes, p. 15-33, 1991.OLIVEIRA, João Pacheco de. “A segurança das faixas de fronteira e o novoindigenismo”. In: HÉBETTE, Jean (Org.). O ceco está fechado. RJ: Fase/NAEA/UFPA/Vozes, 1991. p. 321-346.OLIVEIRA, João Pacheco de. “Novas identidades indígenas: análise de alguns ca-sos na Amazônia e no Nordeste”. In: D’INCAO, Maria Ângela; SILVEIRA, IsoldaMaciel da (Org.). Amazônia e a crise da modernização. Belém: Museu Paraense EmílioGoeldi, 1994. p. 327.

Page 161: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Afirmação étnica e movimento indígena...

OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem de volta: etnicidade, política e reelaboraçãocultural no Nordeste indígena. RJ: Contra Capa Livraria, 1999.OLIVEIRA, José Aldemir de; GUIDOTTI, Pe. Humberto (Org.). A Igreja arma suatenda na Amazônia: 25 anos do Encontro Pastoral de Santarém. Manaus: Edua, 2000.SABATINI, Silvano. Massacre. SP: Conselho Indigenista Missionário, 1998.THOMÉ, José Lauro. Um grande projeto na Amazônia: hidrelétrica de Balbina um fatoconsumado. Manaus: Edua, 1999.

Page 162: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Os indivíduos foram domados.Horkheimer

Aldair Oliveira de Andrade*

ResumoNeste artigo, apresentam-se algumas reflexões sobre as transformações do indiví-duo ao inserir-se ou ser inserido em novo espaço social. Neste processo de inserçãohá uma espécie de desindividualização do sujeito, que passa a pensar e ser pensadonão mais como indivíduo, mas em detrimento do papel social que desempenha.Esta metamorfose social se dá nos espaços que antes o identificavam como perten-cente a um espaço singular, onde o trabalho era uma parte da vida. Neste sentido,este indivíduo marcado por tais transformações é forjado socialmente e a ele éatribuída uma identidade que ressignifica sua existência.

Palavras-chave: indivíduo; pessoa; papéis.

AbstractIn this article, some reflections on individual transformations are presented as theyare inserted or are been inserted in to a new social space. In this insertion processthere is a kind individualization of the subject who starts to think and to be toughtno longer as an individual but in detriment of the social role he performs. Suchsocial metamorphoses happens in the spaces wich used to identify him as belongingto a singular space where the work used to be part of life. Thus, this person markedby such transformations is socially forged and identity that assigns a new meaning tohis existence, is requirede of him.

Keywords: individual; person; roles.

A inserção do indivíduo em novos espaços sociaise a criação de novos papéis

* Mestrando em Sociedade e Cultura na Amazônia, professor do Depar tamento de Filosofia da Universidade Federal doAmazonas – UFAM.

Page 163: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A inserção do indivíduo em novos espaços...

O presente texto apresenta uma reflexão sobre alguns aspectos da constru-ção de novos papéis sociais. Busca-se discutir a construção de uma “nova pessoa” apartir da inserção desse sujeito num novo espaço social, entendido aqui como sujei-to migrante de um espaço urbano-fabril, onde desenvolvia uma cultura de subsis-tência, para um espaço geográfico, onde passa a participar do processo de produ-ção capitalista.

O desenvolvimento histórico cultural da humanidade é também um con-traditório processo de individualização, não do homem social abstrato, mas dohomem concreto, em suas diferenciações sociais, sexuais, em suas diversidadesconcretas.

A articulação produtiva entre indivíduo e sociedade é certamente um pontode partida originário da humanização do homem, contrariando a idéia de umapredestinação ou essência dada pela natureza humana. Se é que podemos falar deessência, falaremos de uma essência construída historicamente, cujo solo heurístico éo existencialismo sartreano de reflexão da liberdade e da essência como construção.Esta perspectiva se coloca na contramão do pensamento do século XVIII, segundoo qual o homem possui uma natureza humana, compreendendo o conceito humanocomo um elemento que pode ser encontrado em todos os homens, o que significaque cada homem é um exemplo particular de um conceito universal. Diferentemen-te deste enunciado, Sartre (1987) afirma que não existe natureza humana. A defesada existência de uma natureza humana serve para “legitimar a ideologia de umaessência individual humana predeterminada, em vez de uma essência historicamenteformada, mediante um longo, atormentado e em grande parte desconhecido pro-cesso de cisão em face da natureza”.

Na tradição latina o indivíduo é o átomo social dotado de uma individuali-dade e singularidade per si. Esse conceito é corrente até Leibniz com as mônadas,que, de acordo com Boécio (apud ADORNO, 1985, p. 8), significa aquilo “o quenão pode mais de nenhum modo ser subdividido, como a unidade ou o espírito”; oindivíduo se diz e se expressa pela sua solidez, não se deixa dividir como o diamante.

Essa visão universal do indivíduo é cindida em Nietzsche (1981), para quema metáfora do diamante só pode pertencer ao verdadeiro indivíduo – o super-homem (além-homem) e sua vontade de potência. É a partir do Renascimento queo termo indivíduo assume claro significado, firmando o conceito no homem singu-

Page 164: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aldair Oliveira de Andrade

lar que “se diferencia dos interesses e das metas alheias, faz-se substância em si mes-mo, instaura como norma sua própria autoconservação e seu próprio desenvolvi-mento” (ADORNO-HORKHEIMER apud CANEVACCI, 1978, p. 9). Instaura-se uma dialética entre autoconsciência do indivíduo e a autoconsciência social, quepermite ao indivíduo tomar consciência de si tão-somente em relação a um outroindivíduo, até chegar à descoberta e à formalização daquela substância secreta quelegitima o reconhecimento da individualidade para alguns e a exclui para outros: apropriedade. É por esse motivo que as crenças, as regras, os pobres, os escravos, asmulheres, os marginalizados, os trabalhadores assalariados não foram identificadosno conceito de indivíduo durante épocas inteiras. Todos foram privados daquele“espírito vivificador” e fundante que é a propriedade privada das relações sociais deprodução.

Assim, os vícios privados sem utilidade pública, a anormalidade, a defor-midade, foram generalizados como exclusão global da condição de sujeito social-mente individualizável numa primeira fase, e, mais tarde, esse sujeito enfrentará umaexclusão substancial dentro das relações de produção da fase tardo-burguesa, con-cebendo-se como parte dos direitos formais. O privado é a zona reservada aosafetos familiares e a aventura etérea ao gozo artístico e ao recolhimento religioso.

A unidade da coletividade manipulada consiste na negação de cada indiví-duo. A sociedade que conseguisse transformar os homens em indivíduos era dignade escárnio, pois a criação da pessoa é a negação do indivíduo. O indivíduo só échamado a existir para submeter-se aos ditames da lei que é feita para ele.

A inserção num novo espaço é determinante para a formação de um novoethos1 e, portanto, para a configuração dos papéis sociais.

Ao deslocar-se o indivíduo do espaço em que está inserido, quando cooptadoa exercer outra atividade para subsistir, caracterizada pela venda de sua força detrabalho, perde sua individualidade e inicia o processo de assimilação e definição dascaracterísticas fundamentais de um novo papel social. Mesmo na sua individualidadefamiliar, exercia papéis, embora sua identidade particular restrita ao seio da família.Ao ser inserido no mercado de trabalho deixa de ser indivíduo e constrói ou assimi-la nova identidade, com características e dizeres próprios, bem definidos.

Surge um sujeito coletivo, que não mais representa a si mesmo, apenas car-rega uma história, um dizer e um processo e manifestação organizados, articuladoscom todos aqueles que detêm os mesmos elementos comuns. Esse novo sujeito

Page 165: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A inserção do indivíduo em novos espaços...

coletivo tem forma, cria representatividade, ganha força, une-se, reflete sobre simesmo, atua, reage, opõe-se, manifesta-se, organiza-se, ataca e é atacado.

Sente-se como membro de um grupo forte, o qual acredita possibilitaratravés dos embates e confrontos avanços e conquistas de novos espaços, reduzin-do o fosso entre ele, que detém a força de trabalho, e o empregador, que detém osmeios de produção.

Sua postura de sujeito coletivo, possuidor de uma identidade de classe, cau-sa estranheza e rivalidade, oposições, estando na maioria das vezes o seuposicionamento crítico sobre as relações sob o julgo da rebeldia, pois não se subme-te de pronto aos ditames do capital. Estando os seus atos sobre observação, suasatitudes sob espreita com intuito de desmoralizá-lo, haja vista sua postura, possibilitae arregimenta ao enfrentamento e ao embate aqueles que se sentem envolvidos eestão conscientes de seus direitos (consciência de classe).

O que quero deixar claro é que, o indivíduo, mesmo submetido pela forçado capital a vender sua força de trabalho e a garantir sua sobrevivência, não seposiciona de forma passiva ou conformista. Podemos dizer que muito contraria-mente (os movimentos de resistências estão para comprovar o que estou dizendo)passa por processo de esclarecimento, podendo lutar de forma mais organizada econsciente.

A consciência de seus direitos, a consciência de fazer parte de uma classeque está em luta constante com sua oposição que não se vê nela, o faz criar mecanis-mos e alternativas, descobrindo os pontos fracos e brechas por onde possa penetrare conquistar ganhos pela correlação de forças. Essa correlação não se dá apenas noaspecto legal, formal, objetivo, mas principalmente na subjetividade, nas micro-rela-ções, pois, mesmo fazendo parte de um coletivo, não se exige e não anula suaindividualidade, contudo participa de uma coletividade.

Alguns autores, como o professor Salazar em sua tese de doutorado intitulada“O novo proletariado industrial de Manaus”, aborda o surgimento da indústria e oprocesso de produção em série no Amazonas, ressaltando as alterações causadasnos indivíduos que começaram a fazer parte desse processo. Conforme seu relato:“[...]o caboclo , ainda que, com aquele jeito de índio, encontra-se diante do grandemundo civilizado, só que agora, com apenas uma arma para lutar, vender a suaprópria força de trabalho”(SALAZAR, 1992, p. 90); e a superposição de sua cultura,

Page 166: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aldair Oliveira de Andrade

uma cultura de subsistência por uma cultura capitalista, por sua vez de acumulação,e as conseqüências ou alterações sociais, advindas por esta substituição, aprofundandoa problemática social da moradia, condições de vida, saneamento e infra-estruturaurbana:

[...] os efeitos perversos da Zona Franca, refletiram, parado-xalmente, sobre as populações do interior do Estado até 1960,segundo dados do IBGE, quase setenta e seis por cento detoda a população do Estado habitava o interior. Com o ad-vento da Zona Franca em 1967, o Censo de 1970 acusavaum declínio de quase dez pontos percentuais daquela popu-lação, enquanto Manaus apontava um aumento simetrica-mente proporcional[...] os parcos recursos deste [Estado]sempre foram insuficientes para atender a demanda cres-cente por obras de infra-estrutura reclamada pela populaçãourbana que faz aparecer novas favelas e novos bairros dodia para a noite (SALAZAR, 1992, p. 89).

A cooptação do trabalhador pelo mercado de trabalho industrial criou inú-meras expectativas com relação aos progressos individuais prováveis. A propagan-da midiática vendeu a idéia de melhores condições de sobrevivência, e de ascensãosocial, como operários, mudando assim o seu status social. Agora os indivíduosestão diante de um mundo que se abre e altera de forma substancial a sua relaçãocom o meio. Este indivíduo desenvolve outros quereres e alimenta sonhos que,geralmente, estão ligados à ascensão no emprego e ao conforto familiar como acompra de uma casa, um meio de transporte próprio, o estudo para que esteja maisqualificado e, portanto, possa competir neste mercado. Às vezes, essas expectativassão adiadas em detrimento de novas necessidades que a “indústria de consumo”lança de forma maciça, levando-o a submeter-se a uma jornada de trabalho cadavez maior para suprir as novas demandas individuais, familiares ou sociais em detri-mento de seus projetos individuais.

O indivíduo, ao ser inserido num outro espaço, adota de forma automáticanovos papéis, próprios do novo modelo a que se submete, mesmo que de formainconsciente, se submete a um novo estilo de vida. Observe-se neste quadro a rotinade um operário:

Page 167: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A inserção do indivíduo em novos espaços...

Você sabe que eu não durmo nem cinco horas? Vou deitarmais ou menos às onze horas, pra levantar às quatro emeia. Chego às dez (22:00h), vou jantar, tomar banho e jásão onze horas. Acordo à quatro e meia. Se não tomar oônibus das cinco não dá prá chegar [...]. E quando chove,que não tem condução! (SALAZAR, 1992, p. 436).

O mais perverso nisto é que o indivíduo não consegue mais viver comodantes, mesmo que quisesse retornar ao estilo de vida anterior, não consegue mais,pois já se desfez de seus valores, da terra, da sua harmonia com a natureza. Já nãopertence mais ao lugar de origem, perdeu sua identidade cultural de subsistência e setransformou em produto do capitalismo.

O indivíduo denominado “caboclo” possui um ethos interiorano, um ethosexistencial, no qual estão delineadas de forma clara suas práticas existenciais. Nestesentido, é válido ressaltar que:

Numa perspectiva mais antropológica, Eunice Durhan(1978) empreende uma análise de toda a configuraçãosócio-cultural e individual gerada a partir dessa modalida-de específica de exploração da terra. Revela a existênciade uma grande uniformidade nas condições de vida dapopulação rural brasileira, subjacente às variações regio-nais, explicando-as a partir dos princípios de organizaçãosocial e do trabalho, própria de uma economia de subsis-tência. Uma das principais características dessa economiaé a “necessidade de obter, dada a falta de crédito, pelopróprio trabalho e o da família, os meios que garantam asobrevivência biológica”. A utilização de meios primitivosna agricultura de subsistência se torna necessária, umavez que o lavrador é obrigado a produzir, o mais rapida-mente possível, o essencial à própria subsistência”(RODRIGUES, 1978, p. 79-80).

O modus vivendi, de acordar cedo, o cuidar da roça, o pescar à tarde, não sedá pela necessidade ou pela imposição de um ordenamento social, mas por umaprática de subsistência. Esta ritualística não se transforma numa obrigação de forapara dentro, característica essa observada por viajantes e cronistas quepreconceituosamente denominaram de indolência esse ethos singularizante.

Page 168: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 6 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aldair Oliveira de Andrade

Pelas novas imposições sociais, o indivíduo é compelido e obrigado a aban-donar sua prática rudimentar de vida e se submeter a uma nova ritualística existenci-al. Por imposição dessa nova postura existencial é obrigado a desempenhar novospapéis e, por sua vez, novas ritualísticas.

O indivíduo de práticas de sobrevivência não tinha em si a preocupaçãocom o desenvolvimento ou aprovação de saberes científicos, o saber por ele adqui-rido é derivado de uma prática empírica, aprendida nas práticas comuns de sobre-vivência para a sua manutenção. Uma vez inserido nesse novo espaço surgem novosvalores e, portanto, a necessidade de novas práticas de aprendizagem para que seadeqüe de forma satisfatória. Nesse processo de adestramento do indivíduo ao ethosfabril surgem instituições como Senai e Senac para treinar esse sujeito em face destenovo papel. E isto associado a um “[...] forte desejo de melhoria de vida e deascensão social que impregna os operários de todos os níveis, independentementedo sexo e da origem” (SALAZAR, 1992, p. 312).

Outra forma de conduta que muda no indivíduo é sua forma de processarsuas relações com seus pares. A sua rotina de partilha que era inerente a seu modusvivendi na área rural não encontra lugar no espaço urbano-industrial. Em face dessainterseção, esse indivíduo assume uma conduta individualista do tipo “depende demim”, “do meu esforço”, “foi muita batalha”. Ou seja, consegue perceber quequalquer ação coletiva pode contribuir para solucionar sues problemas” (SALAZAR,1992, p. 312). Essa postura que o operário adota altera de forma substancial suaforma de lidar com os outros, ocorre uma metamorfose embalada precipuamentepela questão econômica, haja vista a pressão exercida sobre ele pelo grupo social.Nesta lógica, o operário é construtor de desenvolvimento de uma nova moral, pois,os valores éticos dantes pétreos são agora flexibilizados para que seja possível suasobrevivência nesse novo ambiente.

É notório também que essa nova configuração em relação ao outro podeter ocasionado o processo de “rupturas”, haja vista que não se configura mais umarelação de dependência econômica entre os gêneros. Em muitos casos, a dependên-cia da mulher era o fator norteador da vida conjugal. Agora a mulher já não estámais confinada ao lar, ela interage diretamente na vida do grupo e da comunidade.O indivíduo resolvia suas querelas baseado em códigos inerentes ao próprio grupoonde estava inserido. Quando não mais era possível a resolução ou equilíbrio, oEstado surgia como intermediador. Na nova postura existencial surge um novo

Page 169: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A inserção do indivíduo em novos espaços...

agente que se ocupará da intermediação para garantia de seus direitos; são os profis-sionais técnicos, que são requisitados para mediar conflitos dentro das relações eco-nômicas e, portanto, dentro de novas relações de direito.

Os rituais e festas comuns eram fruto das relações de crença, amizade ecompanheirismo na comunidade rural. No contexto urbano, as novas relações são,às vezes, estabelecidas entre os indivíduos mobilizados pela questão econômica oupelo interesse de manutenção dessa nova postura; aqueles que não conseguem aderirou adentrar nesse novo círculo de relações são formadores de novos grupos, agorados “excluídos”, com normas e regras próprias. Um universo singular. Se antes arelação se dava pela execução de práticas comuns como a caça, a pesca e a roça, oestabelecimento de uma linguagem comum e o “status comum”, agora esses papéissão esquecidos. O operário assume um novo papel, o de industriário, sendo a dife-rença agora estabelecida não por prática mas por uma representação, fábrica nacio-nal ou multinacional, sindicalizados ou não sindicalizados. Os encontros de confra-ternização já não são mais criados espontaneamente pelo grupo, agora fazem partede uma nova programação dos técnicos do lazer que buscam quebrar a rotinaimposta pela fábrica aos seus. Percebe-se claramente que a família cria um condi-cionamento e uma certa obrigatoriedade implícita no operário para fazê-lo partici-par desses eventos com o intuito de formar uma “família” ou um grande grupo,uma identidade. Ou seja, não está em causa o interesse empresarial pelo lazer eentretenimento do indivíduo, mas, sim, o que ele representa para a organização:mão-de-obra qualificada e necessária à manutenção de sua posição no mercado.

Sua relação com a família é comprometida ou quebrada, haja vista que antesos papéis eram bem definidos internamente. Para Durhan (apud RODRIGUES,1978, p. 80), “a família rural brasileira se estrutura de modo muito simples, emtermos de subordinação das mulheres aos homens e dos mais jovens aos maisvelhos”. Tem-se o seguinte quadro: o pai é o provedor da família, a mãe é a gestorado lar e os filhos são colaboradores na provisão ou manutenção da família. Note-seque a administração do lar é de estrita responsabilidade da mulher, porém, após ainserção da família nesse novo modo de vida, a mulher passa também a ser prove-dora juntamente com o marido e os filhos. A mulher adentra o mercado de traba-lho, porque é requisitada pelo capital industrial que necessitava dessa mão-de-obra,tida muitas vezes como dócil e barata.

Page 170: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aldair Oliveira de Andrade

A educação dos filhos, que antes era prerrogativa do casal, agora fica restritaàs mães e ao parente mais próximo que cuida da criança, enquanto a mãe trabalhafora. Muitas vezes é o filho mais velho que cuida dos irmãos mais novos, assumindouma responsabilidade que era de seus pais.

Se antes a relação conjugal era centrada numa relação de dependência esubmissão da mulher ao marido, agora se estabelece uma relação de pretensa igual-dade, na qual mulher e homem primam pela sua autonomia, acentuando a concor-rência entre os gêneros. No final das contas é a mulher que assume o ônus da duplajornada de trabalho, na medida em que ela não consegue se desvencilhar dos servi-ços domésticos e do cuidado dos filhos.

Ao adentrar a esfera pública como força produtiva o indivíduo, que antesnão tinha ambições porque vivia a experiência do trabalho sob um outro ethos –fundado em relações de companheirismo, lealdade e solidariedade –, passa a assu-mir uma nova postura com ênfase na concorrência e, muitas vezes, de deslealdadetalvez porque as novas necessidades lhes sejam agora mais importantes que suarelação com o outro, levando-o a criar novos círculos de amizades, novos valores.

Esse sujeito está inserido num espaço que, na maioria das vezes, édiametralmente oposto ao ambiente em que vive: passa o dia em ambiente comcondições modernas de “qualidade de vida”, luz, água, ar-condicionado, assepsia,que rebate de forma direta no padrão de vida que estava acostumado. O impactodessa dicotomia assume contornos impressionantes no imaginário do operário quefica dividido entre o mundo da fábrica e o mundo da casa. Por isso, começa aquestionar por que não tem o conforto que tem na fábrica. Trata-se de uma dicotomiaentre um espaço e outro, e isto é um dos fatores que possibilita a emergência de umfenômeno que denominamos de apatia existencial-comportamento, pois, não po-dendo concorrer de forma direta ou indireta, o indivíduo passa a desenvolver novasformas de disfarces para mascarar sua mágoa ou impotência perante novos papéissociais. A pressão exercida pelos instrumentos de consumo o leva a relegar outrospapéis, acentuando nele a entrega ao trabalho para melhorar os rendimentos e, as-sim, consumir mais e criar novas outras necessidades.

O indivíduo consciente de si mesmo e dos outros constrói a sua “visão demundo”. Ao ser inserido num outro modo de vida, num outro espaço geográfico,diferente daquele a que estava acostumado é natural que altere sua visão de mundo,ou seja, a maneira como interage e age no mundo que conhece. Com a inserção

Page 171: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A inserção do indivíduo em novos espaços...

nesse novo mundo, é forçado a criar mecanismos de defesa e alternativas que antesnão pensava ou não sentia necessidade de fazê-lo. Seus valores que foram construídosatravés de tempos e passaram por todo um processo de construção são adultera-dos, falseados e muitas vezes referendados. Ou seja, essa inserção abrupta ou nãoaltera a construção de mundo particular de cada indivíduo. Se antes ele detinha ocontrole de todas as etapas e rumos de sua vida, agora este novo indivíduo com seusnovos papéis vive dentro da “fragmentação do universo, tanto no trabalho comofora dele” (ARAKCI, 1978, p. 108).

Na comunidade este indivíduo não sentia “necessidade” de uma formaçãoeducacional, pois esses saberes não eram necessários de forma real, ao passo que nocotidiano fabril ele é compelido a adquirir uma qualificação profissional ou técnicaque atenda à necessidade do mercado em que foi inserido. Segundo Adorno (1985,p. 20) “a técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, a utiliza-ção do trabalho de outros, o capital”. Os saberes da pesca, da caça, do compadrionão são mais úteis, agora o útil é o saber técnico, considerando-se que o “[...]trabalhocansativo e os horários de turnos concorrem como forte obstáculo à continuaçãodos estudos” (SALAZAR, 1992, p. 312). As organizações incentivam ou financiamo aprimoramento educacional, através de programas que preparem o indivíduopara atender às necessidades da própria organização, variando na complexidadedesta “formação” o papel desempenhado por cada indivíduo na própria organiza-ção, objetivando, na sua maioria, um retorno efetivo para a própria organização.

Após essas particularizações sobre o novos papéis sociais que o indivíduopassa a desempenhar, o que pretendemos demonstrar não é a relevância de um emdetrimento de outro, mas possibilitar a visualização das transformações sociais, ide-ológicas, psicológicas, visão de mundo e noção de tempo desse ator social inseridoem outro contexto.

Buscou-se realizar uma digressão sobre o indivíduo que cooptado pelomercado de trabalho, especificamente pelo Pólo Industrial de Manaus, passa a atuarem outro contexto social, com suas regras já definidas. É assim que esse indivíduopassa a adaptar e, portanto, a incorporar todas essas regras e condições já postaspelas relações de trabalho próprias da sociedade de classes, alterando a sua compre-ensão de mundo sob o signo de um novo ethos.

Determinar quais os ganhos e perdas desse novo papel social que este indi-víduo passa a desempenhar implica um trabalho mais detalhado com a utilização de

Page 172: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Aldair Oliveira de Andrade

parâmetros pré-estabelecidos e um processo investigativo mais amplo, em que severifique a vida do indivíduo antes e depois da inserção no mercado de trabalho. Asdicotomias ou comparações aqui expostas fazem parte das leituras adquiridas dealguns autores e de observações empíricas colhidas ao longo dos anos como sujeitopartícipe e ator dos papéis ora analisados.

Notas

1 Prática, costume, maneira de agir, comportamento de determinado grupo.

Referências

ABBAGNANO, Nicole. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Editora Mestre Jou,1982.ADORNO/HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradu-ção: Guido Antônio Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.CANEVACCI, Massimo. Dialética do Indivíduo: o indivíduo na natureza, história e cultura.São Paulo: Editora Brasiliense, 1978.O’DWYER, Eliane Cantarino. Remanescentes de Quilombos na Fronteira Amazônica: AEtnicidade como Instrumento de Luta pela Terra. Terra de Quilombos. AssociaçãoBrasileira de Antropologia. Rio de Janeiro, 1995.RODRIGUES, Arakcy Martins. Operário, Operária: estudo exploratório sobre o ope-rariado industrial da Grande São Paulo. São Paulo: Símbolo, 1978.SALAZAR, João Pinheiro. O novo proletariado industrial de Manaus e as transformaçõessociais possíveis: estudo de um grupo de operários. Mimeo. São Paulo: 1992.SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um humanismo. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural,1987. (Col. Os Pensadores).WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. Tra-dução de Clotilde da Silva Costa. 3. ed. Belo Horizonte: Editora da Universidade deSão Paulo, 1998.

Page 173: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 174: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira*

ResumoA pretensão deste trabalho é apresentar um desdobramento da concepção de Fron-teira enquanto disjunção histórica a partir da experiência desenvolvida na fronteirado Brasil com a Colômbia, envolvendo as cidades de Tabatinga e Letícia. Nossaabordagem parte da existência simultânea de três concepções fronteiriças: uma fron-teira controlada; uma fronteira percebida; e uma fronteira vivida. Discute-se ainda a propos-ta de divisão territorial como forma de anular a hegemonia colombiana na fronteira.

Palavras-chave: fronteira; território; Amazônia.

AbstractThe aim of this paper is to show the consequences of the idea of Frontier is to as ahistorical disjunction, starting from the experience developed in the frontier betweenBrazil and Colombia, comprising the cities of Tabatinga and Leticia. Our approachstarts from the simultaneous existence of three frontier conceptions: a controlledfrontier; a perceived frontier; and a lived frontier is also discussed. The proposalterritorial division as a way to nullify the Colombian hegemony in the Frontier.

Keywords: frontier; territory; Amazon region.

Dinâmica territorialna fronteira Brasil–Colômbia

* Prof. Dr. da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. e-mail: [email protected]

Page 175: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

A extensão territorial do Brasil e, por conseqüência, a extensa linha fronteiriçacom dez outros Estados-Nacionais, permite um abrangente estudo sobre as fron-teiras e seus pontos de contato, ou seja, lugares, vilas ou cidades que possuem umaconvivência costumeiramente pacífica e que, em virtude da história do povoamento,são mais numerosos na Região Sul do Brasil.

Dos quinze mil quilômetros de linha fronteiriça, dez mil estão na Amazônia,do Estado de Rondônia até o Estado do Amapá, cobrindo a região com menordensidade demográfica do país, e, portanto, com o menor número de pontos decontato fronteiriço.

Neste artigo trataremos apenas da fronteira do Brasil com a Colômbia,que possui uma extensão de 1.644 quilômetros. Em toda esta linha existem apenasquatro pontos de contato que são:Yauareté (Colômbia) e Iauaretê (Brasil); La Pedrera(Colômbia) e Ipiranga (Brasil); Tarapaca (Colômbia) e Vila Bitencourt (Brasil); eLetícia (Colômbia) e Tabatinga (Brasil). Destes, só o último apresenta uma dinâ-mica fronteiriça com certa intensidade na medida em que reúne aproximadamen-te cinqüenta mil habitantes, metade em cada cidade, fazendo fronteira tambémcom o Peru, além do fato de Letícia ser a capital do Departamento do Amazonas,e Tabatinga a principal cidade do alto Solimões, sendo por isso cotada para sercapital numa eventual divisão do Estado do Amazonas.

Essa fronteira é, deste modo, o principal centro de convergência de toda umarede no interior da Amazônia, já sendo denominada na década de 1940 por LisiasRodrigues como punctun dolens, ou ponto doloroso, lugar merecedor de atenção doEstado-Nacional.

Embora existam inúmeras classificações de fronteira, construídas desdeFriedrich Ratzel, numa visão orgânica, passando por Camille Vallaux, Jacques Ancel,Arthur Dix e outros estudiosos do passado, chegando até Michel Foucher na atuali-dade, que procura inovar apontando um caráter subjetivo às mesmas, procuramosestabelecer algumas noções como fronteira controlada, fronteira percebida e fronteiravivida, que tentam abranger as diversas formas de como a fronteira se mostra. Nossaintenção aqui é apresentar a parte ‘viva’ da fronteira, ou seja, aquela que é composta,vivida pela população, vista por quem está fora da fronteira como os defensores dapátria.

Como dissemos acima, a cidade brasileira de Tabatinga está hoje conurbadacom sua vizinha colombiana Letícia, e isto constitui, a nosso ver, um aspecto pre-

Page 176: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

ponderante na análise fronteiriça, e importante nas discussões que começam a apare-cer em torno da proposta de divisão territorial do Amazonas.

É preponderante, em primeiro lugar, porque a condição fronteiriça sempreterá para o Estado-Nacional um significado particular; em segundo lugar, porque acidade de Tabatinga é apontada como aquela que reúne as condições infra-estrutu-rais para sediar a capital do futuro território; enfim, porque exige que se consigaseparar elementos distintos em duas cidades que se parecem uma, e que se consigaunir elementos distintos numa só cidade, que legalmente são duas, ou seja: o funcio-namento desta aglomeração urbana repartida por uma linha imaginária proporcionamúltiplas relações que, em geral, são reflexos das decisões tomadas nas capitais dosrespectivos Estados-Nacionais. As cidades fronteiriças, nesta condição de geminação,terminam demonstrando o que se passa no país, fazendo com que sua populaçãopossa usufruir determinadas circunstâncias, movendo-se mais para um lado ou maispara outro, como o balanço de uma gangorra.

Tabatinga: o ‘maior bairro de Letícia’

Originariamente um forte português, denominado São Francisco Xavier deTabatinga, junção de um santo português com uma palavra nheengatu, que significabarro amarelo, Tabatinga já aparece nos relatos da viagem de Spix e von Martius aoalto Solimões nas primeiras décadas do século XIX. Ainda era, àquela época, oquartel da fronteira dos portugueses contra o Peru e distante de Belém quase qui-nhentas milhas francesas, contabilizavam os viajantes. Lá encontraram um coman-dante de milícias com 12 soldados; viram também “ruínas de um belo edifícioconstruído pela Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, fundada notempo de Pombal, para sua filial”1. Relatam também o estado lastimável do fortecom alguns canhões enferrujados. Construído em madeira, estava no ponto maisalto da margem do rio Solimões, sendo fácil dominar a passagem do rio. Nãopodiam deixar de perceber a presença dos Ticunas, nação indígena majoritária norio Solimões.

Já na segunda metade do século (1865-1866), o lugar Tabatinga recebe aexpedição de Louis e Elizabeth Agassiz, que também deixaram suas impressões.Explicando a seus futuros leitores, situa Tabatinga como uma vila fronteiriça entre oagora Brasil e ainda o Peru. Em virtude disso tem a honra de ser posto militar. Noentanto, diz Elizabeth: “[...]mas, quando se olha para os dois ou três pequenos ca-

Page 177: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

nhões em bateria sobre o rio, a casa de barro que constitui o posto e os cinco ou seissoldados preguiçosamente deitados à sua sombra, bem se pode de não consideraressa fortificação como formidável” (SPIX, 1981, p. 135). Sobre a vila, chama aatenção de Agassiz o fato de estar num barranco de aluvião bem escavado e fendi-do em várias direções, e ser composta de uma dúzia de casas em ruínas ao redor deuma praça central. Quanto aos habitantes, não pode dizer nada, porque quandodesceu do barco, à tardinha, todos os moradores já haviam se recolhido para seproteger dos mosquitos. O pavor dos mosquitos à noite e os piuns durante o diatornavam a vida intolerável, segundo os moradores que a receberam.

Atravessando o rio Solimões e chegando à boca do rio Javari, encontra-se acidade de Benjamin Constant, antiga aldeia de São José do Javari, à qual Tabatingaesteve vinculada como distrito até 1986. Como município, foi Benjamin Constantque desde a sua criação recebeu dos governos estadual e federal dotação em infra-estrutura. Recebeu também grande quantidade de migrantes durante a 2.ª GuerraMundial para trabalharem nos seringais dos altos rios. Eram os soldados da borra-cha, que chegavam nos navios da antiga companhia de Navegação SNAPP2. Tam-bém os hidroaviões catalina, da antiga companhia de aviação Panair do Brasil, pas-saram a fazer o percurso até aí, o que se tornou um atrativo para a população localver sua chegada. Isto dinamizava a economia regional na medida em que se instala-vam agenciadores, casas de comércio e outros negócios, ao mesmo tempo em queservia para, na visão dos militares, vivificar a fronteira.

Porém, o penoso trabalho da coleta da borracha na floresta, associado àsdoenças e ao baixo preço do produto, convertem estes migrantes, parte em popu-lação rural, mais agrícola que extrativa, e parte atravessa o rio rumo a Tabatinga eLetícia, para trabalharem em serviços diversos, inclusive incorporar-se à colôniamilitar, localizada a poucos quilômetros da linha divisória.

As primeiras ruas do povoado civil de Tabatinga surgem às margens doIgarapé de Santo Antonio que é, na origem, a divisa do Brasil com a Colômbia.Durante a vazante dos rios, a travessia pode ser realizada a pé. Hoje, inúmeras casasde colombianos, brasileiros e peruanos ocupam o fundo do vale deste pequeno rio.A rigor, não há ‘fronteira’.

Como as cidades estão na mesma margem do rio Solimões, quem chega debarco não consegue definir onde começa uma ou outra. As antenas de transmissão

Page 178: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 7 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

de rádio ou tv, primeiro sinal da cidade quando vista de longe, não possibilita distin-guir a qual cidade pertence.

Na verdade, todas as cidades ribeirinhas do Solimões apresentam uma ca-racterística que as assemelham3. Voltadas para o rio, que é, em geral, a porta deentrada e de saída da cidade, têm no porto, por mais precário que seja, o ponto decontato com o mundo rural e regional. Daí ser este lugar o catalisador de toda aprodução rural, abrigar o mercado público, as casas de comércio de venda de pro-dutos para a população ribeirinha e outros serviços associados à vida ribeirinha4.

Tabatinga aparece como Colônia Militar em 1967. Encravada na faixa defronteira, na área de segurança nacional, foi administrada pelos militares até transfor-mar-se em município, em 1986. Abrigando um efetivo mais numeroso, compostopor militares vindos transferidos de outras partes do país e por soldados recrutadosem Benjamin Constant e em outras cidades do Amazonas, foi necessário dar umsuporte mínimo à colônia. A construção de uma Vila Militar, a Base Aérea, umapista de pouso, depois ampliada para um aeroporto internacional, um porto e umaagência do Banco do Brasil criaram determinadas condições que, em nosso entendi-mento, foram o ponto de partida para a transformação do distrito em futuro mu-nicípio e, hoje, polarizar a região do alto Solimões.

Esta implantação, como toda chegada dos de fora, não foi tão tranqüilapara a população civil já estabelecida. Uma das primeiras iniciativas dos militares foiretirar os moradores da linha de fronteira, ou seja, da ‘beira do igarapé’ que constituio limite, e levá-los para a proximidade do núcleo militar. Contudo, eles sempreretornavam para o igarapé, consolidando até hoje a ocupação.

Dentre as condições criadas para receber os militares foi construída umaescola para atender exclusivamente aos filhos de militares, restando para a popula-ção civil a alternativa de colocar os filhos nas escolas de Letícia. Do mesmo modo,o lazer já não era mais tão livre. Do jogo de futebol a uma festa, tudo passava pelaautorização do comandante da colônia. As festas só podiam ser realizadas aos sába-dos até às 24 horas; não se podia usar vermelho; para beber, a alternativa era ir paraLetícia, Ramon Castilla, vila peruana na outra margem do rio, ou esconder-se. Certodia, contam os mais velhos, os militares foram de bar em bar e destruíram todas asbebidas alcoólicas encontradas. Não se podia jogar bola na rua e, aos gritos de ‘lávem a patrulha’, recolhia-se a bola e os jogadores escondiam-se. O castigo comum

Page 179: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

para essas ‘desordens’ era ir para o valão, que significava cavar valas de esgotos nacolônia militar.

A reação a essas atitudes veio com a criação em 1972 do Conselho Comu-nitário do Desenvolvimento de Tabatinga, mesmo contra a vontade dos militares.Até então, luz elétrica era privilégio da colônia militar, quando, em 1973, uma linhade transmissão de energia, saindo da colônia militar, chega à rua Marechal Rondon,na beira do igarapé Santo Antônio.

Já na década de 80, a gradativa expansão do efetivo militar, a ampliação easfaltamento da pista de pouso com vôos regulares para Manaus, a construção dohospital de guarnição do Exército, a própria expansão comercial do outro lado dafronteira, da cidade de Letícia, passam a ser determinantes na mudança estrutural deTabatinga, que conduz também a uma atração maior de migrantes da região –brasileiros e peruanos – e, com isto, começa a autonomizar-se do município deBenjamin Constant. Hoje, um dos grandes problemas do município de Tabatinga éa pressão social para o atendimento assistencial a brasileiros e peruanos que já habi-tam a cidade.

Como fronteira, merece atenção maior do Estado-nacional que, ao implan-tar estruturas de defesa para a segurança do território, termina por caracterizá-lacomo fronteira controlada. Este exercício de controle numa região com as caracterís-ticas singulares da Amazônia – água e selva, é realizado mais intensamente peloExército, Polícia Federal, Receita Federal, Ibama e culminou com a implantação doSivam/Sipam5.

Enfim, para dar conta de milhares de quilômetros de fronteira, encontram-se os Comandos de Fronteira do Solimões, com sede em Tabatinga, que abrigam osPelotões Especiais de Fronteira em Estirão do Equador (460 km de Tabatinga) ePalmeiras do Javari (770 km), ambos no rio Javari, fronteira com o Peru, e os P. E.F. de Ipiranga, no rio Iça (660 km) e Vila Bittencourt (1.580 km)6, no rio Japurá. OC. F. Sol, como é conhecido em Tabatinga – que traz em seu muro a inscrição deforte simbolismo “Aqui começa o Brasil”7 –, tendo o maior número de militares,consegue dinamizar a cidade. Com o hospital de Guarnição e suas máquinas contri-buem com a saúde e a urbanização da cidade.

Mas a fronteira controlada não se manifesta apenas através das instalações eações militares. Outros órgãos do Estado brasileiro também se fazem presentes nomunicípio de Tabatinga. A efervescência da questão ecológica no alto Solimões

Page 180: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

começou com a apreensão em 1996 de milhares de toras de madeira oriunda deterras indígenas, dos rios da bacia do Javari, fronteira com o Peru. Historicamentevivendo das mais diversas formas do extrativismo, do qual o madeireiro tem umaimportância substancial pela extensa rede de dependência que articula, indo do mateiroà grande serraria exportadora, a economia local se viu abalada com a repressão dosórgãos fiscalizadores como o Instituto do Meio Ambiente (Ibama). A atuação doIbama, como se sabe, não se restringe à fiscalização da exploração madeireira, mastambém à caça e à pesca. Esta última, cabe salientar, também responde por umaparcela ponderável da vida econômica em toda esta região internacional, comoveremos adiante.

Ainda como fronteira controlada, o Estado brasileiro dispõe nesta regiãofronteiriça de policiais federais, cujo encargo principal é a repressão ao tráfico dedrogas e o controle de entrada e saída de estrangeiros. Possuem, para isso, um postode fiscalização flutuante no rio Solimões à jusante de Tabatinga, conhecida por BaseAnzol, onde realizam a revista de todas as embarcações que descem em direção aManaus. A própria Polícia Federal estima em 15 mil o número de clandestinos noEstado do Amazonas. De fato, quem sobe o Solimões começa a perceber, a partirde Tefé, a presença de peruanos, principalmente, atuando em diversas atividadescomo camelô, ajudante de embarcações, pequenos comércios, embora venha sendotambém freqüente a presença de médicos e odontólogos, tanto colombianos comoperuanos, atuando profissionalmente nas mais diversas cidades da Amazônia Oci-dental.

Quanto ao tráfico de drogas, o trabalho exige maior sigilo para identifica-ção de pessoas que possam participar da rede de narcotráfico e busca identificar nãoapenas pistas de pouso clandestinas, mas aeronaves que usam a pista oficial. Com oprograma denominado C. A. P. A. – Controle de Abastecimento e Pouso de Aero-naves, do Departamento de Polícia Federal, é possível detectar rotas e destinos sus-peitos. Do mesmo modo, não chega a ser difícil identificar as ‘mulas’ – pessoas quetransportam drogas –, pois numa cidade com população de baixa renda a realiza-ção de duas viagens aéreas num mesmo mês para Manaus já é suficiente para tornarsuspeito.

Com o agravamento da crise colombiana, o Estado brasileiro tem amplia-do sua atuação nesta região, reforçando o exército e a polícia federal, que interna-mente disputam os recursos destinados à repressão ao tráfico de drogas. Fazer uma

Page 181: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

geografia do narcotráfico não é tão simples, pois não há, evidentemente, dadosconcretos de atividades ilegais. No entanto, alguma coisa já pode ser trabalhada apartir de informações de apreensões realizadas pelos órgãos competentes.

Como cidade de fronteira, carrega, comumente, na visão dos que estão defora, o estigma de lugar perigoso, lugar onde reina a contravenção, criando um ar desuspeição sobre seus moradores. Aqui, procuraremos enfocar a fronteira percebida,entendendo esta como um lugar que é percebido, pelo centro do país, a partir daimagem construída sobre esta condição.

Talvez a imagem mais corrente que se faz da fronteira seja aquela que amostra como lugar onde o contrabando, o tráfico de produtos ocorre com maiorfreqüência em virtude do aproveitamento das diferenças dos regimes fiscais, legaisinerentes a cada Estado-nacional. Mas não só isso. A subordinação do cidadão àsleis, aos códigos de seu Estado torna-o cidadão de um Estado, cujas leis são limita-das espacialmente. Assim, a fronteira acaba sendo um lugar privilegiado de refúgioaos agentes das atividades ilícitas8.

Embora as fortes mudanças ocorridas na economia mundial rumo ao libe-ralismo, à abertura comercial das fronteiras tenham promovido uma reorganizaçãono tradicional contrabando, pois ele deixa de ser lucrativo em pequena escala, nonível do cidadão, para só ganhar rentabilidade em grandes volumes transportados,ou seja no nível dos grandes empreendimentos, e do mesmo modo, os acordosinternacionais de extradição de cidadãos tenham possibilitado a busca além frontei-ra, este lugar permanecerá ainda sendo visto pela sociedade do interior do Estadocom reservas.

Esta percepção não poderia deixar de ser, em parte, real, pois sendo afronteira do Estado o ‘ponto de contato’ com outras realidades jurídicas, tal condi-ção locacional permite o usufruto dessa diferença. Percebida como passagem pelasociedade do interior do Estado, a exigência de sua vigilância é permanente.

Deste modo, Tabatinga vem ganhando espaço não mais apenas na impren-sa do Estado do Amazonas, que aparecia até meados de 70 como um lugar em queera interessante para os pequenos comerciantes de ouro, produto que descia dosaltiplanos peruanos e era negociado em Letícia. Mais recentemente, o aglomeradourbano Tabatinga–Letícia passa a ser percebido na imprensa brasileira como umlugar onde o contrabando corre solto; o tráfico de drogas domina o cenário; aguerrilha está ao lado; que recebe os clandestinos peruanos e colombianos que en-

Page 182: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

tram no Brasil. Não resta dúvida de que a saída do anonimato local para ingressar namídia mundial não se fez por motivos mais generosos. A percepção assim estabelecida,consolidada, termina por justificar também a fronteira controlada, que falamos atrás.

Vejamos, então, alguns exemplos. Com um título de impacto: “ Colombia-nos criam tensão ocupando terras no Estado”, um jornal de Manaus noticiou a‘invasão de colombianos’ na fronteira. Dizia o periódico: “Cerca de 500 trabalhado-res sem terra colombianos invadiram ontem pela manhã uma área de aproximada-mente 5 mil hectares em Tabatinga [...] Os invasores vieram de Letícia, cidade co-lombiana que faz fronteira com o Brasil” (A CRÍTICA, 17/10/97).

No dia seguinte, o periódico, acompanhando a contenda, traz um quadrocom depoimento dos ‘invasores colombianos’, agricultores que ocuparam cerca desete quilômetros do assentamento Urumutum, do Incra, em busca de trabalho emoradia, plantando banana e macaxeira. Traz, noutra página, uma reportagem so-bre o acordo antidrogas entre o Brasil e a Colômbia, com a presença de ambos ospresidentes na cidade de Letícia.

Cinco dias após, o incidente já está praticamente resolvido com a retiradados colombianos e a prisão de nove agricultores. O periódico, trazendo um quadrocom depoimento dos moradores de Tabatinga, já afirma que “a invasão dos co-lombianos não teve repercussão nas cidades de Tabatinga e Letícia”, tendo a maioriaacompanhado os fatos pelo jornal. Um taxista de Tabatinga diz “tudo isso é normalaqui. A prisão de colombiano é fato corriqueiro”. Já um agricultor afirma que “tembairro na periferia, como o Tancredo Neves, que só tem colombiano e peruano”.

Poucos meses depois, outro incidente fronteiriço, desta vez distante mais de500 km das cidades: um avião da Força Aérea Colombiana usa a pista de pouso doexército brasileiro localizada no P. E. F. Querari, numa ação de combate à guerrilhada FARC que atacava a cidade colombiana de Mitu, a cerca de 50 km da fronteiracom o Brasil. Como não houve autorização prévia para pouso, causou certo mal-estar diplomático e grande divulgação nos meios de comunicação de todo o Brasil.A imagem de vulnerabilidade põe em evidência a necessidade da fronteira controla-da e reforça o argumento da divisão territorial do Amazonas, estimulado pelo com-bate ao narcotráfico e sua fusão com a guerrilha.

Depois de buscar compreender a fronteira enquanto espaço controlado ecomo espaço percebido por outro, resta-nos, agora, apresentar a fronteira vivida porseus cidadãos.

Page 183: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

Contando com aproximadamente 37 mil habitantes, dos quais 25 mil estãona zona urbana, estes habitantes vivem com a fronteira uma relação decomplementaridade, de solidariedade. Isto significa saber apropriar-se das mais di-versas condições do cotidiano para aí viver. E isto vai desde o corte de cabelo na‘peluqueria’ de Letícia ou uma visita ao zoológico também aí, até a compra de gásbutano por leticianos nos armazéns de Tabatinga.

Apesar de não ser tão fácil inserir-se num lugar, conviver como um de seushabitantes, para a partir daí tentar compreender o lugar como seus habitantes oscompreendem, as diversas permanências em Tabatinga e Letícia, as relaçõesestabelecidas com uma gama variada da sociedade fronteiriça permitiram-me umaprofundamento analítico. De feirante a funcionário público, de professor universi-tário a índio, de garçon a motorista de táxi, de militar a traficante, conseguimos ouvire viver a fronteira.

Para um funcionário da prefeitura de Tabatinga, a divisão territorial seriamuito boa, porque viria mais dinheiro do governo (federal), e poderia gerar maisemprego, porque o Estado do Amazonas não dá muita atenção, citando a existênciade apenas uma viatura da polícia militar. Outros trabalhadores vêem como sendo aalternativa para aumentar o movimento comercial, pois viria muita gente, seria bompara os dois lados.

A grande diferença estabelecida pelos moradores de Tabatinga para com acidade colombiana de Letícia é o fato desta ser Capital, Capital do Departamentodo Amazonas. Esta condição até contribui para a vida dos brasileiros de Tabatingaem virtude da maior oferta de serviços decorrentes da ação do governo de Bogotápara esta fronteira. É clara a hegemonia da cidade colombiana nesta tri-fronteira adespeito da diferença econômica entre o Brasil e a Colômbia.

Este cenário foi vislumbrado por Backeuser na década de 40, quando pre-viu o seguinte:

Atendendo às sucessivas dilatações de território obtidasnestes últimos tempos por hábeis atuações do governo deBogotá, é de considerar como de certa ponderabilidade apressão que a Colômbia possa exercer um dia no setorNorte e Noroeste do Brasil, circunstância tanto mais a con-siderar quanto está este setor muito distante da ação diretado governo federal e mesmo do governo de Manaus(BECKEUSER,1952, p. 254).

Page 184: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

Para os tabatinguenses, a criação do Território Federal mudaria esta situa-ção, porque a cidade também seria Capital, igualaria o status político a Letícia, teriamaior atenção do governo federal. Contudo, apesar de terem a esperança na criaçãodo Território, também afirmam que esta discussão só aparece em época de eleição,pois termina sendo uma grande bandeira dos políticos para angariar votos na cida-de e na região envolvida.

Nos tempos de ‘muita cocaína’, na década de 80, como hoje falam os co-merciantes, a movimentação comercial era bem mais intensa nos dois lados da fron-teira; as vendas de bebidas alcoólicas e materiais de construção superavam a norma-lidade. O aumento da repressão, não só do lado brasileiro como colombiano, alte-raram a vida na cidade reduzindo o comércio.

Para este segmento, a criação do Território Federal poderia contrabalançaro domínio comercial de Letícia, dado o aumento de população, funcionário públi-co; correria mais dinheiro na cidade. Na verdade, para o comércio, a questão passapela distância do grande centro fornecedor do Brasil – de São Paulo para Tabatinga.“Muitas vezes a duplicata vence e o produto ainda está na balsa, no rio Madeira”,afirma Saul, comerciante local.

Mas a vida econômica de Tabatinga não pode ser confundida com o co-mércio de drogas. Compreender esta fronteira requer adentrar no que há de maistradicional na Amazônia: o extrativismo. Além dele, os funcionalismos público, civile militar, de ambos os lados também contribuem com a dinâmica comercial.

Menos controlado do que a exploração madeireira, talvez porque sua reti-rada não deixa marcas na paisagem, a pesca tem sido um dos grandes suporteseconômicos da população às margens do Solimões. Inúmeros barcos de pesca bra-sileiros têm em Letícia os seus principais compradores e financistas. O preço quepagam pelo quilo de pescado nesta cidade é mais estimulante que o preço pago emManaus. Podemos afirmar que da cidade de Tefé, no médio Solimões, até a frontei-ra, a quase totalidade dos barcos de pesca de peixe liso, ou de couro, vendem seusprodutos para ‘os colombianos’. Freqüentemente, denuncia-se esta prática comocontrabando, que, na verdade, não deixa de ser. No entanto, como os frigoríficosestão em Letícia, cidade que possui uma oferta de energia muito maior que Tabatinga,cruza-se, necessariamente, a fronteira para descarregar o peixe, cujo destino final sãoos restaurantes de Bogotá e Miami.

Page 185: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

Além dos pescadores embarcados, há também milhares de ribeirinhos quese envolveram com este tipo de pesca para vender aos barcos. Isto tem alterado aorganização da vida ribeirinha na medida em que já se percebe uma dedicação detempo muito maior à pesca que a prática agrícola. Com o dinheiro da pesca, com-pra-se outras mercadorias, dentre elas destaca-se o frango congelado que vem doSul do Brasil, numa viagem de caminhão até Porto Velho, daí até Manaus e Tabatingade barco.

Num outro circuito comercial estão os índios Tikuna. “Formando uma dasmaiores nações indígenas do Brasil, espalhados também entre Peru e Colômbia,contribuem com o abastecimento local de uma diversidade de produtos retiradosda floresta, do rio e da terra”(GARCEZ, 2000, p. 147). Frutos, raízes, legumes epeixes constituem uma das fontes de renda destes indígenas que também terminampor se inserir no mercado local, comprando produtos industrializados.

Se para os não índios a fronteira Brasil–Colômbia praticamente não existe,para os índios ela é completamente ausente. Com língua própria, tradições, costu-mes e parentesco disseminados ao longo do rio Solimões – acima e abaixo dafronteira estatal –, os Tikunas, no dizer do ex-cônsul do Brasil em Letícia, senhorDarly Oliveira, “não respeitam fronteira nenhuma”. Isto reflete bem a concepção defronteira para um agente do Estado.

Todavia, a fronteira para os índios Tikuna terminou por se expressar deoutra maneira. Quando a Funai – Fundação Nacional do Índio – resolveu estenderos benefícios da aposentadoria para os índios, o problema veio à tona, porquemuitos eram Tikunas colombianos, Tikunas peruanos e somente os Tikunas brasilei-ros faziam jus ao benefício.

O efetivo militar de Tabatinga, mais os funcionários dos órgãos federais –Polícia Federal, Ibama, Funai, Receita Federal, Ministério do Trabalho, Banco doBrasil – estaduais e municipais também contribuem com seus salários para a vidacomercial das cidades. Com apenas duas agências bancárias – Bradesco e Banco doBrasil, o banco oficial tem nos salários do funcionalismo cerca de 70% de sua mo-vimentação bancária.

A fronteira vivida para este segmento da população que vem de outrosEstados da federação, principalmente militares e funcionários federais, também apre-senta aspectos peculiares. O ‘sofrimento’, pois é assim que é vivida a fronteira poreles, termina sendo, em parte, recompensado pela gratificação de localidade, um

Page 186: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

valor a mais acrescentado ao salário. As mulheres que acompanham seus maridostransferidos também não vêem ‘a hora do retorno’, efetivado apenas quando hádisponibilidade de militares de outros lugares para cobrir a vaga. Mas alguns milita-res viram na fronteira um lugar de prosperidade: trouxeram parentes, montaramcomércios e casaram. Outros viram na fronteira um meio de realizar falcatruas, nãono sentido de fazer contrabando, mas de, no momento de ir para a reserva, apon-tarem como endereço a cidade de Tabatinga para receberem determinados benefí-cios. No entanto, muitos deles viviam mesmo no Rio de Janeiro, Brasília ou PortoAlegre (A CRÍTICA, 17/07/1999).

Indiscutivelmente, uma grande contribuição do exército nesta fronteiratermina sendo o pagamento do salário aos recrutados do lugar, pois significa umrendimento muito superior à média salarial da cidade, um dinheiro que fica nacidade.

Ponto de encontro de três Estados-nacionais, encontram-se aí presente flu-xos comerciais que possibilitam aos fronteiriços um abastecimento diversificado,em que fica bem marcado o limite de ação para determinados produtos e ramos decomércio. Tudo isto resulta das políticas adotadas pelos Estados-nacionais para suasfronteiras. A distância de cerca de três mil quilômetros do oceano Atlântico nãoimpede que alguns restaurantes de Tabatinga e Letícia sirvam frutos do mar, oriun-dos da costa peruana, bem como cenoura, alho, beterraba e cerveja que navegampelo rio Marañon abaixo desde Pucalpa. Do lado colombiano, laticínios, verduras efrutas e produtos frigorificados chegam diariamente de Bogotá, via aérea. Do ladobrasileiro, Tabatinga consegue oferecer produtos como óleo comestível, açúcar earroz. Outros produtos brasileiros, no entanto, tiveram sua participação reduzida,como cigarros cervejas e mesmo a coca-cola9, como resultado da abertura comer-cial da Colômbia. Mesmo as motocicletas que são, em sua maioria, originárias dafábrica da Honda da Amazônia, em Manaus, terminam por custar mais barato emLetícia por conta das isenções fiscais que o Estado colombiano concede às suasregiões de fronteira.

Enquanto cidades de fronteira estão, sob determinados aspectos, para de-terminados assuntos, submetidas aos ministérios de relações exteriores. Porém, essavida comum na fronteira terminou por dar origem a mecanismos próprios de reso-lução dos problemas que também ocorrem aí, envolvendo seus habitantes.

Page 187: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

A formação de uma “Comissão de Vizinhança”10 entre os prefeitos deLetícia e Tabatinga, composta de forma paritária por membros das prefeituras, daassociação de moradores e sindicatos, tem por objetivo dar solução local a proble-mas que poderiam extrapolar esta esfera. Para não recorrer aos escalões superioresdos respectivos Estados-nacionais, ter que enfrentar a lentidão da burocracia, algunsproblemas são discutidos nas reuniões desta comissão, como poluição, saúde e trans-porte urbano.

Letícia: o “melhor bairro” de Tabatinga

Principal cidade do extremo Sul colombiano, da região conhecida comoTrapézio Amazônico, a cidade de Letícia também tem na sua origem a marca doperíodo da borracha, visto que terminou por abrigar diversos colonos peruanos,colombianos e brasileiros que aí chegaram em busca do látex.

A origem em si deste aglomerado urbano às margens do rio Solimõesapresenta algumas polêmicas que envolvem tanto o seu pertencimento ao Peru ou aColômbia assim como seu topônimo. A disputa entre aqueles países pelo TrapézioAmazônico resultou numa guerra, em 1932, em que o recurso da Colômbia à antigaSociedade das Nações termina por ratificar este território como colombiano.

Ao contrário do Brasil, que desde o período colonial já havia definido suapossessão nesta área com a instalação do Forte São Francisco Xavier de Tabatinga, ooutro lado permanecera indefinido em virtude das disputas internas entre as recém-criadas repúblicas saídas do domínio espanhol.

As primeiras referências a este lugar são de 1867, quando o Peru constrói oForte Gran Mariscal Ramon Castilla, ou San Antonio, fundado por BenignoBustamante. Preocupado em assegurar o território, pois o Brasil já havia colocadouma bateria de canhões em Tabatinga, e viabilizar a navegação no rio Amazonas, oPeru cria uma Comissão Hidrográfica para realizar o mapeamento da carta náuticados rios da região. Manoel Charon, engenheiro que compunha a comissão, começaa denominar o lugar como Puerto Letícia nas correspondências enviadas à marinhaperuana, no que foi contestado pelo diretor da mesma, que exigia a denominação deGeneral Castilla, em honra a Ramon Castilla, presidente peruano de meados doséculo XIX, pela atenção dada por este à banda oriental do país. Na verdade, ainsistência de Charon pelo nome Letícia devia-se à sua paixão por Letícia SmithBuitron, uma jovem de família anglo-peruana, apontada como a mulher mais bonita

Page 188: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 8 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

de Iquitos. Ironicamente, Donadio (1985) aponta que, embora o nome Letícia tenhapermanecido, o engenheiro apaixonado não conseguiu conquistar o coração da belajovem, que se casou com um comerciante escocês estabelecido em Iquitos.

Pelo menos duas outras versões ainda aparecem para a denominação des-te lugar. Loureiro (1978), historiador amazonense brasileiro, afirma que o nomeLetícia originou-se em função da existência do entreposto de compra de borra-cha neste lugar pertencente à comerciante paraense Letícia Abensur. A última ver-são, enfim, provém das histórias contadas pelos mais antigos do lugar e apontaque o lugar tem este nome, porque ali residia uma mulher com o nome de Letícia,que vendia, em sua banca, tapioca, banana e outros alimentos para os habitantes,sendo, portanto, uma referência de encontro da população: “Vamos lá na Letícia”,como aponta Návia (1994).

Mais importante que a polêmica em torno da origem do nome ou a buscade uma data cívica para comemorar o aniversário da cidade, o certo é que após adefinição da soberania colombiana sobre esta área, toda uma estrutura começou aser montada para consolidar esta posição estratégica. Uma das primeiras medidas éelevar, em 1934, à categoria de Comissaria Especial à antiga Intendência do Amazo-nas, pertencente ao Departamento de Putumayo. Letícia, portanto, passa a se cons-tituir no ponto nodal para a presença estatal colombiana nesta área trifronteiriça.Impõe, posteriormente, uma presença militar e assentamento de população civil.

Uma antena de comunicação instalada pelo Peru passou a ser usada paracomunicar-se com Bogotá e hastear a bandeira colombiana. “No final da década de40 constrói-se o aquaduto e o aeroporto; segue-se à cadeia pública, o prédio dogoverno, a planta de energia etc. (NAVIA, 1994, p. 21). Avenidas são abertas e opequeno povoado já ganha aspectos urbanos, com inúmeras obras públicas. Umapraça central, ponto de concentração da população, com o busto de FranciscoOrellana, ladeadas por ruas que dão acesso ao rio Amazonas, dá a Letícia um aspec-to de vida civil, ao contrário de Tabatinga em que a principal avenida, com aproxi-madamente quatro quilômetros, a Avenida da Amizade, construída pelo exército nadécada de 80, ligando o Comando de Fronteira à fronteira com a Colômbia, abri-gou o novo comércio e os principais órgãos públicos para suas margens. Não háum centro. A praça existente em frente à igreja católica – Diocese do Alto Solimões– foi construída ‘fora do lugar’, ou seja, não se constituiu em ponto de encontro,porque nunca havia sido. Outros prédios em Letícia como o Comando Unificado

Page 189: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

Del Sur, uma planta telefônica, um novo porto, torres de rádio e televisão já estãopresentes desde a década de 80.

A população de Letícia, que até a década de 60 era constituída em suamaioria por brasileiros e peruanos, agora começa a ficar mais ‘blanca’ com o au-mento da migração de civis de Bogotá. Alguns autores colombianos definem istocomo a ‘andinização’ da Amazônia. Enfim, a instalação da biblioteca do Banco aRepública, de um Centro de Investigações Amazônicas, de um núcleo da Universi-dade Nacional da Colombia e a elevação desta Comissária, antes pertencente aoDepartamento do Putumayo, à categoria de Departamento pela Constituição co-lombiana de 1991, sendo Letícia sua capital, concretiza não só a soberania colombi-ana como a hegemonia desta cidade nesta região internacional. Percebe-se que, pou-co a pouco, a visão tradicional de geopolítica, ancorada apenas na capacidade mili-tar, no estabelecimento de pelotões e o aumento do efetivo de soldados, vai dandolugar a uma perspectiva civil de geopolítica, que consiste em reforçar o aparatoburocrático do Estado para a partir daí dinamizar comercialmente o lugar. Estafronteira é vista pelos colombianos do seguinte modo:

Letícia siempre há ejercido um liderazgo económico y cul-tural sobre la triple frontera y sus áreas aledañas, noobstante las grandes inversiones hechas por el gobiernobrasileño para convertir a Tabatinga y Benjamín Constanten los epicentros regionales. La causa, muy difícil derevertir, es le preponderancia que siempre le ha dado elgobierno colombiano a la creación de frontera viva, esti-mulando a la sociedad civil para que lidere el desarrollodel municipio por medio de iniciativas particulares, entrabajo conjunto con las autoridades religiosas y militares(DOMINGUEZ, 1999).

Há, evidentemente, algumas questões particulares à Colômbia que devemser mencionadas, pois talvez isso sirva para estabelecer um paralelo com o Brasil,principalmente no que diz respeito a uma concepção diversa de fronteira. A primei-ra delas seria o estado latente de guerra civil que vive este país há pelo menos quaren-ta anos, cujo conflito, localizado na área central do país, exige uma presença maiordo exército naquela área do que na fronteira11. A segunda, como decorrência desta,é que esta fronteira no Sul da Colômbia, dada a distância e o difícil acesso, termina

Page 190: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

sendo vista como um lugar tranqüilo, pacífico e próspero para muitos que queremsair das áreas conflituosas.

Como fronteira controlada, o Estado colombiano vem procurando ampli-ar sua atuação na região, contudo, ao contrário do Brasil, cuja preocupação é oreforço militar, aquele país está fortalecendo a administração local com o objetivode apoiar o desenvolvimento integral desta área fronteiriça. A Lei de Fronteira co-lombiana assegura estímulos tão fortes que anula qualquer ação do governo brasilei-ro para Tabatinga, pois nem a criação de uma zona de livre comércio em 1991produziu resultados favoráreis. Portanto, termina sendo um lugar atraente ao mora-dor do interior do país, sendo colonizável!

Se o objetivo geopolítico do governo colombiano era tornar esta cidadefronteiriça como o grande pólo regional, o intento foi conseguido com sua perspec-tiva civil. A expansão comercial foi mais eficaz que a militar. Veremos, assim, o queé a fronteira vivida do lado de lá.

Mesmo possuindo uma população equivalente à sua vizinha Tabatinga, emtorno de vinte mil habitantes, Letícia não é uma cidade a mais na rede urbana co-lombiana. A condição de capital de Departamento – semelhante a Estados no Brasil– faz com que, politicamente, sua representação possa ter um maior relacionamentocom Bogotá. Sendo capital, abriga quase todos os órgãos do poder central, e osórgãos inerentes aos departamentos, como a ‘gobernación e assemblea’. Abriga,enfim, uma parcela correspondente ao poder, centralizando ordens e decisões.

Geograficamente, é importante destacar sua localização, pois situada na li-nha fronteiriça, contraria o espírito ratzeliano de centralidade da capital, tão absorvi-do pelos geopolíticos brasileiros das primeiras décadas do século XX. Possivelmen-te a instituição de uma Capital nesta trifronteira deva ser explicada pela instabilidadefronteiriça desde o início do século XX, quando esta área era reivindicada pelo Peru,que, como vimos, culminou numa guerra. Assegurar, portanto, esta saída para oAtlântico pelo rio Amazonas era fundamental à Colômbia.

Do mesmo modo que Tabatinga, a população de Letícia ainda possui nasua constituição uma parcela significativa de indígenas de etnias diversas, sendo osTikunas majoritários. Participam também da dinâmica comercial deste lugar na me-dida em que colocam seus produtos agrícolas ou artesanais no mercado, absorven-do, por outro lado, produtos industriais, como ferramentas, por exemplo.

Page 191: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

No entanto, a maior responsável pela dinâmica econômica da cidade e quese espalha pela região amazônica é a atividade pesqueira. Contando com diversosfrigoríficos, estima-se que os volumes extraídos alcancem aproximadamente 500toneladas por ano, sendo 80% destinado à exportação.

Dada a sua expressividade, a atividade pesqueira consegue interferir na vidade toda essa população regional por meio de, basicamente, outras duas situações. Aprimeira diz respeito ao próprio processo de exportação. Constituindo-se na princi-pal carga de compensação das companhias aéreas para o interior do país (Bogotá),isto permite baixar significativamente os custos do frete dos produtos vindos deBogotá, ampliando, assim, a capacidade de diversificação das mercadorias para omercado consumidor de Letícia e região. E é exatamente isto que faz com queLetícia torne-se atraente para a população brasileira – civil e militar – que lá seabastecem. Frutas e verduras frescas, laticínios e outros produtos têm mercado cer-to nesta região.

A segunda diz respeito ao câmbio de moedas. Numa região fronteiriça emque normalmente fala-se do controle do trânsito de mercadorias e pessoas, deve-selembrar que a própria moeda é, antes de tudo, a principal mercadoria, e que para ocomerciante fronteiriço, o cidadão, antes da nacionalidade, é visto como consumi-dor. Deste modo, tendo Letícia abrigado, historicamente, a quase totalidade dascasas de câmbio e os mais fortes cambistas desta fronteira, ao mesmo tempo emque o próprio governo não interfere sobre a legislação de casas de câmbio, nem naflutuação das moedas, estes comerciantes de moedas, conhecendo seu mercado,alteram as taxas de câmbio de acordo com, por exemplo, a ‘safra do pescado’,quando grande quantidade de pescadores brasileiros, ao venderem sua produçãoem pesos colombianos, procura os cambistas para trocar o dinheiro. A regra édesvalorizar a moeda brasileira não só neste período, como também nos dias depagamento do funcionalismo público no Brasil, ou nas proximidades das festasnatalinas. Segundo um comerciante brasileiro, este câmbio solto, sob controle dos‘colombianos’, termina por sucatear o comércio de Tabatinga. Porém, sendo fron-teira, há também cambistas brasileiros e peruanos trabalhando com esta mercadoriaespecial. Ainda com relação a finanças é importante considerar que as taxas de jurosno comércio colombiano são bem inferiores àquelas praticadas no Brasil, o quetorna muito mais atraente a compra a crédito nesse lado da fronteira. Pudemosperceber a grande clientela brasileira da loja “Créditos Parra”, que exige apenas donovo cliente um fiador que também seja cliente, independente da cidade que reside.

Page 192: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

Como os investimentos do governo colombiano para esta cidade foramdestinados mais para as atividades civis, Letícia oferece à sua população um sistemade distribuição de água tratada que cobre 93% da mesma. Assim como o sistema deesgoto que cobre 78% da malha urbana. Com relação a energia, a capacidade insta-lada é de 12.312kw/h, com cobertura de 96% da população durante as 24 horas dodia. Possuindo um excedente de energia, já chegou a vender à cidade de Tabatinganos períodos mais críticos de abastecimento de energia. No entanto, a falta de paga-mento por parte da prefeitura levou à suspensão do fornecimento.

O exercício da hegemonia leticiana também se manifesta nas relaçõesempregatícias, uma vez que o salário mínimo instituído na Colômbia é de aproxi-madamente 150 dólares, o que faz com que haja um contingente de trabalhadoresbrasileiros atuando principalmente nas áreas de construção civil e empregos domés-ticos, embora more na cidade de Tabatinga, cidade que até recentemente tinha umapolítica de doação de terrenos para famílias de baixa renda, reduzindo, assim, ocusto de moradia.

Como cidade de fronteira, Letícia dificilmente ficaria imune aos problemasassociados às contravenções. Em fins da década de 60 e por toda a década seguinte,o grande negócio era o comércio dos mais diversos produtos da floresta, tendocomo agente principal o ex-cônsul dos E. U. A. lá instalado, o lendário senhor MikeTschalikis. Num artigo escrito para o periódico de Bogotá El Tiempo, em 1969,Arbelaez se surpreende ao chegar em Letícia e descobrir que o melhor hotel dacidade era de Mike; o cônsul dos E. U. A. era Mike; o avião particular da cidade erade Mike; a lancha mais bonita era de Mike; o destino dos macacos, peixes ornamen-tais, papagaios e cobras eram dados por Mike; o homem mais endinheirado, maisinfluente, mais ativo e que tinha muita gente trabalhando para ele era Mike. Quasevinte anos depois, Mike é preso com um carregamento de cocaína escondido numlote de madeiras para exportação em barco de sua propriedade.

Durante toda a década de 80, Letícia viu seu movimento comercial aumen-tar de modo surpreendente, transbordando, como não poderia deixar de ocorrer,para Tabatinga, como resultado da constituição de um pequeno cartel de cocaína,conhecido como cartel de Letícia, tendo ramificações por Manaus. A pouca e difícilvigilância na selva possibilitou a expansão dos laboratórios de cocaína sob a floresta;os aeroportos, com pouca fiscalização e nos rios menos ainda, facilitavam a circula-ção da droga e dos produtos químicos necessários à elaboração do produto. O

Page 193: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

envolvimento de parcela da população jovem de ambas as cidades ampliou-se de-vido a rentabilidade do negócio numa zona urbana de pouca oferta de emprego.Eram narcodólares gerando narcotoyotas, os belos e grandes carros adquiridos pe-los narcotraficantes.

A geografia do narcotráfico é extremamente móvel, porque termina sendoum efeito permanente da ação dos órgãos repressores, como afirma Machado(1998). O aumento da repressão em determinado lugar, ou ponto da cadeia produ-tiva, força a busca de novos caminhos, rotas e circuitos que viabilizem a produção ea circulação da droga. Além disso, é necessário encontrar meios de ‘lavar’ o dinheiropor ela gerado, que nesta região alguns creditam à atividade pesqueira. Com o refor-ço da fiscalização no Amazonas brasileiro a partir da “Operação Cobra”, e na Co-lômbia também, busca-se uma nova alternativa que inclui o rio Orenoco. Isto pro-vocou uma baixa no movimento comercial de Tabatinga e Letícia, que agora, segun-do os próprios comerciantes, está andando com os pés no chão, sem artificialidade.

Ainda podemos apontar na dinâmica fronteiriça as inúmeras pequenasatividades que envolvem os serviços voltados à manutenção de motocicletas, à ven-da avulsa de gasolina, à venda de alimentos em bancas montadas nas calçadas, alémde centenas de comerciantes dos mais diversos produtos, tanto de um lado quantode outro da fronteira como alternativa de renda encontrada por esta populaçãomulticultural que certamente não teria suas vidas alteradas com a propalada divisãodo Amazonas.

Podemos, enfim, compreender esta fronteira vivida a partir do que Foucherdenomina de caráter subjetivo da fronteira: alegria ou tristeza. A integração fronteiriçadeste lugar permite que se denomine de ‘fronteira alegre’ visto que mesmo diantedas múltiplas identidades existentes a identidade de ser ‘fronteiriço’ parece se sobre-por. Esta condição é construída a partir das relações familiares, com membros per-tencentes a ambas as nacionalidades. Expressa-se também pelas condições decomplementaridade de bens e serviços que uma cidade tem para com a outra emvirtude do isolamento relativo vivido por ambas. Isto não elimina, entretanto, atristeza das famílias que se vêem envolvidas com o problema do tráfico de drogas.

Page 194: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

Fronteira Brasil – Colômbia

Escala: 1: 3.000.00 Fonte: www.info.Incc.br

Page 195: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Dinâmica ter ritorial na fronteira Brasil-Colômbia

Notas

1 Ver Spix e Martius – Viagem pelo Brasil. SP. Ed. Itatiaia, 1985.2 Serviço de Navegação e Administração dos Portos do Pará. Esta companhia esta-tal funcionou até 1967 quando foi substituida pela atual Enasa – Empresa de Na-vegação da Amazônia, também com sede em Belém.

3 Lucien Febvre quando faz seu estudo sobre o Reno, fala de um forte ‘ar de paren-tesco’ entre as cidades que margeiam este rio, independente de sua nacionalidade.Ver O Reno. Ed. Civilização Brasileira, 2000, p. 151.

4 Sobre isto ver NOGUEIRA, Ricardo – Caminhos que marcham; o transportefluvial na Amazônia, Revista Terra das Águas, n.º 2, 2000. UNB.

5 Ratzel afirma que do ponto de vista militar, uma fronteira não é só linha de defesa,mas também linha de ataque. La Geographie Politique. p. 159-160.

6 As distâncias apontadas são medidas por via fluvial. Por via aérea atingem-se ospontos extremos em uma hora de vôo.

7 Ratzel faz referência às inscrições sobre a ponte de Rensbourg “Eidora romaniterminus imperii” (ver p. 154). Também Ancel (1938, p. 73), comentando o espíri-to de fronteira, destaca a inscrição sobre a ponte do Reno: “Ici commence le paysde la Liberte”.

8 Na verdade, o contrabando tradicional tende a reduzir ou mesmo a desaparecerem virtude da abertura comercial entre países.

9 Este produto é fabricado em Letícia e dificulta a concorrência do produto fabrica-do em Manaus.

10 Não há nenhum registro oficial desta comissão. Sua existência é apenas verbal eseus membros mudam a cada período.

11 Pelo menos nesta díade, porque com o Equador e Venezuela, em virtude daatuação de grupos guerrilheiros e para-militares, a presença do exército colombi-ano é mais constante.

Referências

ANCEL, Jacques. Géographie des frontiéres. Paris: NRF, 1938.BACKHEUSER, Everardo. Curso de Geopolitica geral e do Brasil. Rio de Janeiro: Grá-fica Laemmert, 1952.BRITTO, Luiz Navarro. Política e Espaço Regional. São Paulo: Nobel, 1986.

Page 196: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ricardo José Batista Nogueira

DOMINGUEZ, C. et al. it El hombre y su médio. Leticia Universidad Nacional deColombia, 1999.DONADIO, Alberto. La guerra con el Peru. Bogotá: Planeta, 1995.FEBVRE, Lucien. O Reno: História, Mitos e realidade. São Paulo: Civilização Brasi-leira, 2000.FOUCHER, Michel. Fronts et Frontieres. Paris: Fayard, 1992.GARCEZ, Claudia L. Ticunas brasileros, colombianos y peruanos. Etnicidad Y nacionalidaden la región del Alto Amazonas. Brasília: UNB, 2000.GUHL, Ernesto. Las fronteras politicas y los limites naturales. Bogotá: Colômbia, 1991.LOUREIRO, A. A síntese da história do Amazonas. Manaus: Imprensa Oficial, 1978. p.242.MACHADO, Lia Osório. O controle intermitente do território amazônico. RevistaTerritório, 1997.NAVIA, Gustavo. Conozcamos la selva amazonica. Bogotá: Fondo Editorial Masayaki,1994.NOGUEIRA, Ricardo. Caminhos que marcham: O transporte fluvial na Amazônia.Revista Terra das Águas. Brasília:UNB/Marco Zero, 2.º Semestre, v. 1, n. 2, 1999.NOGUEIRA, Ricardo. Amazonas: um estado ribeirinho. Manaus: Edua, 1999.RATZEL, Friedrich. La Geographie Politique. Paris: Fayard, 1989.RODRIGUES, Lysias. Geopolitica do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, 1947.SPIX, Johann Baptist Von. Viagem pelo Brasil. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.VALLAUX, Camille. Geografia Social: El Suelo y el Estado. Madrid: Daniel Jorro, 1914.

Page 197: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 198: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

1 9 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

ResenhasResenhasResenhasResenhasResenhas

Page 199: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 200: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Freitas Pinto**

Uma das principais e necessárias tarefas para a instituição e desenvolvi-mento de um núcleo forte de estudos antropológicos no Amazonas é a difusãodas obras de autores fundadores como Koch-Grünberg, Curt Nimuendaju, NunesPereira e Eduardo Galvão, para mencionar nomes conhecidos. Surpreende naverdade que esses e outros importantes antropólogos permaneçam com suas obraspublicadas de modo descontínuo, e mesmo, em alguns casos, simplesmente inédi-tos em português.

A presente edição brasileira da obra Dois Anos entre os Indígenas. Viagens noNoroeste do Brasil (1903-1905), de Theodor Koch-Grünberg, inicia um programaeditorial idealizado para ser desenvolvido com a participação da Faculdade SalesianaDom Bosco e a Universidade Federal do Amazonas, o que finalmente vem abriruma possibilidade de corrigirmos essa grave ausência editorial da antropologia noBrasil e de modo especial em referência a esses antropólogos, cujas obras estãofortemente ligadas à Amazônia.

Passo decisivo para a efetiva realização desse empreendimento editorial foisem dúvida o trabalho da tradução, direta do original alemão, realizado de formapaciente por Casimiro Beksta, auxiliado certamente por sua longa experiência entreos indígenas da região estudada e que terminou por imprimir ao texto traduzido amarca de algo enraizado na experiência vivida, o que transparece através da presençade expressões da linguagem regional que, longe de comprometer o rigor esperadode um texto de cunho etnológico, acrescenta-lhe esse toque particular de um livroproduzido a partir de uma experiência de vida local.

A contribuição seminal de Koch-Grünberg*

* Resenha da obra Dois anos entre os indígenas. Viagens ao Noroeste do Brasil (1903-1905), Manaus: Edua e FaculdadeSalesiana Dom Bosco, 2005.

** Renan Freitas Pinto é doutor em Ciências Sociais e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura naAmazônia da UFAM.

Page 201: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A contribuição seminal de Koch-Grünberg

Outro aspecto igualmente digno de registro é o fato de que neste ano de2005 a viagem que é documentada através da obra Dois Anos entre os Indígenas. Viagensao Noroeste do Brasil (1903-1905) completa seu centenário, o que sugere várias idéiasaos leitores, entre as quais a de empreender, como sempre acontece com essas im-portantes expedições científicas, a reconstituição dos trajetos percorridos, daí haven-do a possibilidade de resultar várias conseqüências. Entre elas a de constatar as mu-danças que certamente ocorreram no espaço desses cem anos. Do ponto de vistados povos indígenas, a publicação se reveste de significado singular, pois torna pos-sível a reconstrução histórica de seus movimentos em relação aos seus territórios eos processos demográficos dos seus respectivos grupos, possibilitando, na atualida-de, verificarmos o que permaneceu, o que mudou, e mesmo o que, como temia naocasião da viagem o próprio Koch-Grünberg, desapareceria inexoravelmente.

A presente edição inspirou o pessoal do Instituto Dirson Costa, onde fun-ciona a Escola de Pintura Ye‘pá, a tomar a iconografia da obra para levar a efeitoum trabalho de recriação, que resultou em um surpreendente conjunto de telas queexpressam, através dos toques diferenciados de cada um dos artistas indígenas, umprocesso de reelaboração do conjunto de ilustrações sob a forma de fotografias,desenhos e grafismos indígenas que adquiriram uma força expressiva, em especialpelas soluções cromáticas encontradas.

Theodor Koch-Grünberg, como um leitor fascinado pela literatura dosviajantes, em especial por aqueles que deixaram relatos sobre os povos indígenas daAmérica do Sul, vai buscar ser fiel a essa tradição dos belos livros de viagem. E esseé mais um aspecto que nos surpreende em relação ao fato de ter ficado sua obrainédita para nós durante todo esse tempo, resultando afinal em longa ausência paraesse numeroso e crescente gênero de leitores. Seu talento de excelente observador enarrador se manifesta em vários momentos e passagens da narrativa, capazes dedeslumbrar o leitor quando associa, ao rigor de suas descrições técnicas e científicas,seu estilo pictórico.

Ele apresenta, em primeira mão, informações sobre a geografia, a mitolo-gia e a cultura material e técnica das populações incluídas na narrativa da viagem, queseriam essenciais para fundamentar pesquisas e estudos de outros autores, entre osquais cabe mencionar Mário de Andrade, Curt Nimuendaju e Nunes Pereira. Nocaso de Mário de Andrade, a leitura de Koch-Grünberg foi fundamental principal-mente para duas de suas mais importantes obras: Macunaíma e Namoros com a Medici-

Page 202: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Freitas Pinto

na. Quanto a Curt Nimuendaju, sua obra etnológica sobre a Amazônia dá, sobdeterminados aspectos, continuidade e aprofundamento a vários de seus estudos.Em Moronguêtá – Um Decameron Indígena, Nunes Pereira tem na obra de Koch-Grünberg uma das suas fontes de documentação mais destacadas.

Entre os aspectos que mais chamam a atenção do leitor, cabe anotar osestudos etnográficos em que Koch-Grünberg descreve a produção da cerâmica,dos tecidos e trançados, do curare e dos instrumentos musicais. Sobre o curare, porexemplo, observa que sua

eficácia já foi testada por muitas experiências. Se o curarepenetra no sangue, paralisa logo o movimento voluntáriodo músculo nesta localidade. Com o sangue que circula,espalha-se o veneno e com ele a paralisação no corpo intei-ro, atinge finalmente os músculos do peito, impede os mo-vimentos da respiração e induz de repente uma morteindolor por meio da sufocação, sem causar a perda da cons-ciência ou aparecimento das manifestações do tétano, ob-servando-se apenas umas convulsões mais leves.O curare não produz um efeito danoso no estômago. Osanimais mortos com curare podem ser comidos sem re-ceio. Os indígenas até dizem que o veneno torna especial-mente saborosa a carne dos animais. (2005, p. 125)

Há uma atenção especial do autor em destacar a situação da mulher nassociedades indígenas, em especial, sem esquecer, entretanto, de mencionar aspectossignificativos da vida da mulher brasileira na região amazônica. Destaca a atuaçãodas mulheres indígenas na produção de artefatos de valor artístico e importânciadiferenciados, assim como sua participação nos processos que envolvem a organi-zação social, as atividades rituais e as transações com outros grupos indígenas e combrancos.

Há nesse sentido, ao longo de sua obra, uma especial atenção para com osignificado artístico e as técnicas de produção de artefatos indígenas como os tearesusados na fabricação dos diferentes tipos de rede de dormir, da grande diversidadede artefatos utilizados na pesca, da variedade de objetos de cerâmica e de um modoparticular com a produção de objetos rituais da dança e dos diferentes procedimen-tos mágicos, entre os quais dedicou especial empenho documental, aos instrumentosmusicais, as máscaras, as cintas e outros adornos, e a própria pintura corporal.

Page 203: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A contribuição seminal de Koch-Grünberg

Sobre a extremamente variada produção de peças de cerâmica ele observa,por exemplo, que:

As vasilhas pintadas, potes e bacias, para conservar suabeleza, são usadas para guardar água. Somente nas recep-ções solenes e nas festas de dança usam também para ofe-recer bebidas de mandioca ou até mesmo do caxiri, embo-ra este líquido alcoólico com o tempo destrua o verniz e apintura. (2005, p. 547)

Sua obra dedicou uma atenção especial ao significado da arte para ospovos indígenas, sendo possível, através da documentação que reuniu e organizounesse particular, identificar não apenas a complexidade de algumas dessas mani-festações estéticas, mas a grande riqueza cultural dessas tão diferenciadas manifes-tações dos povos indígenas. O que significa dizer que sua obra passou a se consti-tuir numa das referências essenciais para o conhecimento da cultura material esimbólica desses povos.

Um dado bastante significativo quanto ao seu interesse especial devotado àarte dos povos indígenas da Amazônia é o de haver escrito um livro intituladoAnfänge der Kunst im Urwald (Começos da Arte na Floresta), obra publicada em 1906 eque ainda espera ser traduzida para a língua portuguesa, o que muito contribuirápara evidenciar o papel que possuía a arte indígena para a formação do pensamentoantropológico sobre os indígenas por ele estudados.

O momento de sua viagem (1903-1905) ocorre em pleno apogeu do cicloda exploração da borracha e sua obra termina por se transformar também em vivodocumento dos processos violentos que caracterizam a incorporação compulsóriados indígenas como trabalhadores escravos nas frentes de extração do caucho, par-ticipando nessas condições da expansão da fronteira do extrativismo, envolvendode modo particular brasileiros e colombianos.

Sua compreensão da situação dos povos indígenas da Amazônia está infor-mada por uma aguda percepção dos processos sociais e políticos que predominamna formação de tipo tradicional e patriarcal da sociedade regional com quem tevecontato. Nesse sentido procura evidenciar que a situação dos indígenas é fortementedeterminada pelos padrões de dominação tradicional predominantes, a partir dosquais ocorre regularmente o trabalho escravo indígena tanto na esfera da produçãoeconômica extrativista quanto nas relações domésticas.

Page 204: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Freitas Pinto

Há ao longo de suas obras sobre a América do Sul, e em particular sobre onoroeste da região amazônica, observações detalhadas sobre a alimentação, a situa-ção de saúde e as condições de existência das populações indígenas sofrendo oefeito do contato com os valores da civilização ocidental.

***

Theodor Koch-Grünberg nasceu no seio de família protestante, no dia 9 deabril de 1872, em Hesse, na pequena localidade de Grünberg, que passou a fazerparte de seu nome.

Iniciou sua formação acadêmica através dos estudos de filologia clássicaque desenvolveu nas universidades de Giessen e Tübingen. Apesar de haver tempo-rariamente se dedicado ao magistério logo depois de prestar seus exames, na reali-dade pretendia se dedicar ao conhecimento dos povos indígenas da América do Sul,aparecendo em 1899 a tão sonhada oportunidade de participar de uma expedição,pois havia sido convidado por Hermann Meyer para acompanhá-lo em sua viagem.

Nessa primeira oportunidade já desenvolveu importantes estudos lingüísticosque se tornariam um dos principais fundamentos de seu trabalho antropológico.

Em 1902 obteve seu doutoramento na Universidade de Würzburg comtrabalho de pesquisa intitulado O grupo Guaikuru, após o que foi convidado paratrabalhar no Museu Etnográfico de Berlim. É nessa condição de pesquisador queempreende, em 1903-1905, sua primeira expedição ao noroeste amazônico, regiãoainda relativamente pouco conhecida do ponto de vista etnológico.

É dessa viagem que finalmente dispomos, com a presente edição em línguaportuguesa, de uma de suas obras mais ricas, em especial do ponto de vista dadocumentação visual, através de desenhos e fotografias. Sua edição original em ale-mão é de 1909-1910, da qual em 1921 foi editada uma versão popular em um sóvolume. Vale registrar que dessa viagem resultaram ainda vários pequenos trabalhosque foram publicados em revistas especializadas, além do álbum com cerca de 140fotos, intitulado Tipos indígenas da região Amazônica, ainda inédito em português.

A viagem à Amazônia que empreenderia a seguir resultaria na obra Do Roraimaao Orinoco, editada originalmente em alemão, em quatro volumes.

É nessa viagem, patrocinada pelo Instituto Baessler do Museu FürVolkerkunde abrangendo áreas do Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa, que Koch-

Page 205: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

A contribuição seminal de Koch-Grünberg

Grünberg trouxe consigo uma câmera cinematográfica com a qual produziu docu-mentação que seria utilizada para a montagem de um filme que foi exibido emCaracas, por ocasião do lançamento da edição em espanhol, patrocinada pelo Ban-co Central da Venezuela.

Ao retornar à Alemanha em 1913 passou a ministrar curso de Etnografia naUniversidade de Freiburg, além de prosseguir realizando conferências e organizan-do escritos etnológicos sempre acompanhados de desenhos e fotografias para pu-blicação.

Deve ainda ser destacado, entre suas atividades docentes, sua atuação naUniversidade de Heidelberg, e a direção científica da seção da América do Sul doLinden-Museum de Stuttgart, posição que ocupou até seu afastamento, em 1924,para empreender sua última viagem, a convite do geógrafo norte-americanoAlexander Hamilton Rice, da Universidade de Harvard.

Essa expedição, que se notabilizou pelos recursos técnicos que mobilizou,entre os quais um hidroavião e uma possante câmera cinematográfica, e a grandeequipe de cientistas que mobilizou, tinha como principal objetivo explorar em deta-lhe as nascentes dos rios Orenoco e Negro.

Nessa sua última e fatal viagem, passou por Belém do Pará para encontrarHamilton Rice e os demais membros da expedição que teria seu início em Manaus,entre os quais Silvino Santos, pioneiro do cinema e da fotografia no Amazonas.

Em fins de agosto, subiram o rio Negro e seu afluente, o rio Branco. Seissemanas mais tarde morria Koch-Grünberg (9 de outubro), vítima de malária nalocalidade de Vista Alegre, situada no médio Rio Branco, portanto sem haver atingi-do a região em que se concentrariam os trabalhos de pesquisa.

A morte de Koch-Grünberg é relatada por Hamilton Rice em Exploração daGuiana Brasileira (1978, p. 24):

Em Manaus, diversos obstáculos retardaram a volta dachalupa até 12 de outubro. A 19, em Sorocaba, um povo-ado cerca de 20 km abaixo de Vista Alegre, chegou-nos anotícia da morte (9 de outubro) de Theodor Koch-Grünberg, membro da expedição. A chalupa que regres-sou de Vista Alegre a 20 de outubro, trouxe-nos a notíciade que Koch-Grünberg morrera subitamente de um aces-so de malária.

Page 206: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Renan Freitas Pinto

Sua morte prematura certamente o impediu de realizar importantes planosde pesquisa, cujas contribuições seriam esclarecedoras para o conhecimento dospovos indígenas e para a publicação de novas obras, como foram aquelas que oconsagraram como um dos fundadores da antropologia brasileira, e de modo par-ticular, dos povos indígenas da Amazônia.

Page 207: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 208: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 0 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marcos Frederico Krüger**

Entre o primeiro e o segundo romances de Milton Hatoum – respectiva-mente, Relato de um certo Oriente e Dois irmãos – há uma personagem que funcionacomo sutil elo de ligação entre os dois textos: a matriarca Emilie. No livro de estréiasua ação é intensa; no segundo, é referida sem o nome no “pórtico” da narrativa. Équando Zana, uns poucos dias antes de sua morte, indagou em árabe, “para que sóa filha e a amiga quase centenária” escutassem, se os filhos já haviam feito as pazes.

O mesmo processo se observa agora, na recente tessitura de Cinzas do Norte.Há um elo de ligação entre este romance e o anterior. Também sem ter seu nomecitado, Nael, o narrador quase protagonista de Dois irmãos, torna-se figurante nanova saga de Hatoum. Sua tênue presença é assinalada quando Lavo, o narradorprincipal, conversa em determinada oportunidade com a costureira Ramira, sua tia.Chega então à janela um rapaz com “rosto meio indígena” e “dois olhos graúdos eesgazeados”. Viera apanhar um tailleur e, após sua partida, Ramira comenta com osobrinho: “É o filho natural de uma família da rua dos Barés”. Quem leu o Doisirmãos não pode deixar de perceber que se trata de Nael, filho da índia Domingas ede pai cuja identidade permanece oculta.

Esse processo de entrelaçamento de textos, que não sabemos se terá se-qüência em oportunidades futuras, indica uma construção literária peculiar: mais doque um romance em mosaicos, Hatoum criou, com seus três enredos, uma obra-painel, em que cada narrativa constitui um quadro. O resultado nos mostra apluralidade de uma cidade fracionada e ferida: a Manaus das primeiras décadas doséculo XX e a que se prostrou diante da ditadura militar. Eis aí, portanto, um signi-ficado para o ato de transplantar personagens de um romance a outro.

Ponto e contraponto*

* Resenha da obra Cinzas do Nor te, do autor Milton Hatoum (São Paulo: Companhia das Letras, 2005).

Page 209: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ponto e contraponto

Se essa técnica de transplante uniformiza os romances como facetas de umasó obra, a diversidade das técnicas narrativas os torna diferentes, como pinturasfeitas por escolas com percepções estéticas distintas. Assim, no Relato, vários são osnarradores; a perspectiva de cada um cria efeitos dessemelhantes no leitor. Em Doisirmãos, em que pese o narrador ser apenas um – Nael –, para ele convergem ashistórias e as visões de múltiplos subnarradores: da mãe Domingas, de Rânia, deHalim etc. Mesmo a cidade de Manaus se torna contadora de histórias através demilhares de vozes anônimas que reproduzem, distorcem e talvez até inventem acon-tecimentos.

Neste novo trabalho, há nova técnica de utilização do foco narrativo. Doissão os personagens que se pronunciam: o principal é Lavo e o secundário (digamosassim) é seu tio Ranulfo, conhecido como Ran. A voz do primeiro busca reconstituira trajetória existencial de Mundo, desesperado artista sufocado por arbitrariedadesde uma sociedade pragmática. O segundo recupera principalmente o passado deAlícia, mãe de Mundo.

Os dois narradores estabelecem histórias diferentes, que se mesclam e cons-tituem o ponto e o contraponto da mesma realidade. Elas são como as roupas queRamira costurava: o direito e o avesso do enredo, ou melhor, a superfície e o forro.E ainda: o tempo há pouco transposto é o lado direito e um tempo remoto, deonde se originou o primeiro, é o avesso.

Muitos personagens, sem que sejam alegóricos, ilustram situações peculiaresde Manaus. Dessa forma, Jano é o industrial poderoso cuja empresa entra em deca-dência após os “novos tempos” surgidos com a implantação da Zona Franca. Seucão se chama Fogo – onomástica sugestiva de prepotência e de amizade com líderesmilitares. Ele casa-se com Alícia, jovem pobre e moradora de arrabalde deserto dacidade, que vê no casamento a chance de sair da miséria.

Mundo é a forma aferética de Raimundo, filho do casal, e a supressão dosfonemas iniciais ressignifica o nome do protagonista, que sonhava com a arte e suasamplidões e não com as faturas e as notas fiscais da empresa do pai. É esse oconflito principal do romance: Mundo contra Jano. Incapaz de compreender opendor artístico do filho, o industrial o sufoca. A atitude de Jano se torna maisaviltante, porque intuímos que ele não é o pai biológico de Mundo e a dúvida nosacompanha por todo o romance. Ficaremos sem saber quem é seu pai, tal comoaconteceu em relação a Nael, de Dois irmãos?

Page 210: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marcos Frederico Kr üger

As válvulas de escape para Mundo são Ranulfo, amante de sua mãe, e umpintor que veio a conhecer, chamado Arana. Tais amizades não são do agrado dopai, que queria vê-lo no Exército. Levado com Lavo para a Vila Amazônia, o obses-sivo Mundo desenha o tempo todo, para desespero de Jano. Mais tarde, em atitudecontraditória, admite ingressar no Colégio Militar e se integrar à dura e machistarotina militar. Tudo, porém, tem um objetivo, que é de ferir o pai, motivo que o levaàs rebeldes atitudes que toma depois.

Sempre apoiando o filho, Alícia se opõe ao marido e entra em conflito comele. Uma saída para o drama íntimo é o jogo, prática que se torna vício e a levará àmiséria. Como se vê, as relações familiares no rico palacete de Jano se tornam im-possíveis. O pano de fundo para esse caos é a ditadura militar e as arbitrariedadescometidas contra a população, como a transferência dos moradores da CidadeFlutuante para um conjunto habitacional distante, ironicamente chamado de NovoEldorado.

Cinzas do Norte é um roman à clef, ou seja, um romance em que os persona-gens (vários deles) podem ser identificados com pessoas da vida real. Não que suatrajetória de vida – a do personagem e a dos protótipos humanos – seja absoluta-mente igual. Entretanto, traços característicos, cargos exercidos e atitudes conhecidaspermitem a identificação. Assim, o exportador J. G. de Araújo Jorge, na “vida real”um rico empresário, se transmuda em Jano, também na vida real da ficção o pode-roso proprietário da Vila Amazônia, próxima a Parintins. O coronel Zanda, preferi-do do Comando Militar da Amazônia para ser o prefeito de Manaus, é Jorge Teixeira.Ambos, o homem da ficção e o “personagem real” devastaram a cidade de Manaus,em sonho alucinado de progresso.

Quanto a Mundo, nós o vemos como a síntese de dois artistas plásticos dacidade, os quais muito sofreram com a incompreensão do meio. Um deles éHahnemann Bacellar. Já Arana, o artista a quem Mundo idolatrava e que se desvia docaminho da arte, corrompendo-se e passando a criar enormes quadros para ilustrarempresas e repartições públicas, quadros quase sempre de mau gosto, é a projeçãode... preferimos não divulgar nossa percepção.

O fato de ser à clef não enaltece nem avilta o teor do texto de Hatoum.Afinal de contas, a realidade do livro é ficcional e, por isso mesmo, ganha outradimensão. Zanda, Jano, Mundo, Lavo, Naiá, Macau – são entes que só existem nanarrativa. O que dignifica o livro é a escrita vigorosa em que estão postos os confli-

Page 211: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ponto e contraponto

tos, como aquele em que Mundo fica marcado no pescoço pelo cinturão manejadocom crueldade pelo pai.

Na superfície da vida, há a aparência feliz, que corresponde ao lado direitodas roupas costuradas por Ramira. Entretanto, não se pode ignorar o lado doavesso, onde estão os ódios e as tormentas. Hatoum busca revelar o inferno existen-cial das criaturas, ponto de partida de toda boa literatura.

E quando se pensa que a tragédia terminou, vem a cartada final do narrador.Eis que nos aparece a surpresa que não deve ser revelada de antemão, numa resenhacomo esta. A surpresa que só pode conhecer com toda a intensidade quem para elase preparou lendo o livro. Ou melhor, para quem não se preparou, pois assim nãoseria surpresa. E ao tomarmos conhecimento do mistério, percebemos que a vida écruel e que viver não é um prêmio, mas um castigo. Pelo menos assim foi paraMundo e assim é – um pouco menos, na maior parte das vezes – para todos. Semque percebêssemos, quando já julgávamos o romance terminado e reduzido a me-mórias cuja razão de ser não estava bem clara, eis que somos colocados face aoinesperado. A mão do mestre nos reservava a cartada final e, embora o seu sentidodevesse ser debatido, não o faremos, para que o signo oculto só seja conhecidopelos que se aventurarem na leitura.

Page 212: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Marcos Frederico Kr üger

HomenagemHomenagemHomenagemHomenagemHomenagemPóstumaPóstumaPóstumaPóstumaPóstuma

Leandro Tocantins

aaaaa

Page 213: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 214: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Na tarde do dia 06/07, ainda sob o impacto da perda de LeandroGóes Tocantins (1929-2004), amigo da cultura e da Amazônia, a quem serviucomo cioso intérprete, o Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Culturana Amazônia reuniu o escritor Luiz de Miranda Correa, autor, dentre outros,dos livros O nascimento de uma cidade e A borracha da Amazônia e a II Guerra Mun-dial, além de amigo de toda a vida de Leandro; o professor doutor Renan FreitasPinto, do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia,onde trabalha com a importante pesquisa/disciplina sobre o Pensamento Socialda Amazônia; e o também professor Odenei de Souza Ribeiro, que defendeu,no PPGSCA, dissertação de mestrado sobre a obra de Leandro Tocantins. Ou-tro fato que liga o homenageado ao PPGSCA é a magnífica conferência quepronunciou para alunos e professores de nosso Programa quatro anos antes deseu desaparecimento.

A sessão foi organizada, conjuntamente, por Selda Vale da Costa e Nar-ciso Lobo, editores de Somanlu. Homenagem que agradaria a qualquer homemde pensamento. Discutiu-se, durante quase três horas, a vastíssima obra do his-toriador, sociólogo, poeta, ficcionista, além de incansável homem de ação. Hou-ve a saudável polêmica entre os palestrantes. Fizemos algumas supressões, como cuidado de manter a essência, daí que o material está robusto. Mas vale a pena.Quem lá não esteve, eis a chance de reencontrar essa figura complexa e ampla,assim definida por um dos participantes deste Seminário-Homenagem: maisque um intérprete da Amazônia, Leandro foi um pensador brasileiro, que, atra-vés da Amazônia, buscou explicar o Brasil.

Page 215: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Odenei de Souza Ribeiro

Na verdade, meu trabalho sobre Leandro Tocantins, eu o desenvolvi a par-tir de um diálogo tanto com minha orientadora, Elide Rugai Bastos, como com oprofessor Renan, que muito me auxiliou com a bibliografia regional. Tenho muito aagradecer a ele. Foi ele quem me colocou diante do pensamento de autores comoLeandro Tocantins. Então, ele teve um papel fundamental na minha via de acesso aessa bibliografia. Na verdade, selecionei uns temas vinculados ao processo de desen-volvimento da minha dissertação em alguns pontos, que creio serem fundamentais.

Primeira coisa que devemos nos perguntar é o seguinte: qual é a relevânciado Leandro Tocantins do ponto de vista não só da produção intelectual, mas tam-bém fundamentalmente na orientação política das instituições locais? É importantesalientarmos que as idéias de Leandro Tocantins não estão presas apenas a um con-junto bibliográfico, mas elas se transformaram em uma política de ação também dogoverno local à medida que ele teve um papel fundamental no governo de ArthurCézar Ferreira Reis (1964-1967), dado que compunha esse governo. Tanto comorepresentante do Amazonas no Rio de Janeiro, como também participando direta-mente e auxiliando Arthur Reis. Mas, na verdade, a primeira coisa que nós tambémdevemos salientar é: qual é a via de acesso para entrarmos no pensamento de Lean-dro Tocantins? E aí essa pergunta é fundamental para nós entendermos que esteautor estabelece um diálogo diretamente com Gilberto Freyre e esse diálogo é fun-damental, porque ele vai tirar um elemento importante para orientar o conjunto desuas reflexões. Esse conjunto de reflexões está orientado por dois princípios funda-mentais que vão orientar sua reflexão sobre a Amazônia. Que princípios são esses?São os princípios ecológicos. Os princípios ecológicos e os princípios genéticos vãoorientar a reflexão. Ora, mas que são princípios genéticos e ecológicos? Primeiro,Leandro Tocantins vai se basear na obra chamada Nordeste, de Gilberto Freyre, de1937, onde este esboça um estudo ecológico da produção açucareira no Nordeste,o impacto da lavoura canavieira sobre o meio ambiente e sobre a ação dos homenscriando tipos psicológicos, criando características psicossociais nos indivíduos, pa-drões de comportamento, modos de agir e de pensar que orientavam a conduta dosindivíduos e dos seus papéis sociais como atores que compunham a lavoura canavieira:

Page 216: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

o curiboca, que é um indivíduo marcado pela produção açucareira; o senhor doengenho patriarcal, o negro, a negrinha... Todos esses personagens vão compor umcenário importante do desenvolvimento da lavoura açucareira.

E Leandro Tocantins, em O rio comanda a vida e também em Amazônia –natureza, homem e tempo, assim como em Vida, cultura e ação, que são os três livros emque eu me fundamentei, vai justamente desenvolver estas teses regionalistas do Gil-berto Freyre, só que acrescentando algo de si mesmo. Por quê? Porque, é importantesalientar, dentro da perspectiva de Gilberto Freyre, que ele está fazendo uma críticaà modernização que está acontecendo no Brasil e o regionalismo é justamente umdiálogo com o modernismo mostrando o seguinte: é necessário nós nos moderni-zarmos; mas, mantendo o núcleo da nossa identidade. O que significa isso? É preci-so passar por um processo de transformação, mas mantendo as raízes que foramconstruídas por negros, brancos e índios em solo brasileiro, porque essas raízes dãosustentáculo justamente à nossa identidade.

E a obra de Gilberto Freyre – Casa Grande e Senzala – serviu na verdadecomo uma espécie de reconciliação entre os setores agrários tradicionais e os novosatores emergentes no plano urbano, como industriais, classe média e proletariado,que estavam emergindo na década de 1930. Então, na verdade, a obra Casa Grandee Senzala significou um pacto de reconciliação.

Partindo desse princípio, eu peguei a obra do Leandro Tocantins e comeceia verificar que ele teve um papel importante na nossa região, justamente ao criar umpacto de reconciliação entre os setores extrativos tradicionais e os setores emergen-tes do processo do desenvolvimentismo, de industrialização. Então, nessa perspecti-va, Leandro Tocantins vai lançar mão, justamente, a partir dos estudos genéticos eecológicos. Genéticos por quê? Genéticos por causa do desenvolvimento das insti-tuições dos homens no tempo e no espaço. Como é que os homens utilizam a fauna,a flora... Como é que os homens desenvolvem toda a técnica para se apropriar dessemeio ambiente? Como é que ele interfere, modifica e deforma esse meio ambiente?Então, por isso, nesse caso, é genético: desenvolvimento histórico das instituições, eecológico, justamente porque deforma o meio ambiente e altera significativamenteos requisitos psicossociais de ação do homem naquele espaço social.

Leandro Tocantins está dialogando, nesse aspecto, com Gilberto Freyre etentando mostrar que o extrativismo construiu seus próprios tipos sociais, sua pró-pria arquitetura; diferente do processo de colonização do Nordeste, que foi marca-

Page 217: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

do por sedentarismo, pelo sistema de plantation, da cana-de-açúcar, pelo patriarcalismoe pelo negro. Na nossa região, o negro não teve um papel tão decisivo. Na verdade,os tipos característicos foram constituídos a partir da miscigenação entre portugue-ses e índios. Esses tipos são fundamentais para criar justamente um tipo novo decivilização. Esse tipo novo de civilização requer mais do que aplicação dos métodosvindos da Europa e dos Estados Unidos. Aí que entra justamente uma dimensãoimportante de Gilberto Freyre e de Leandro Tocantins, que acreditam que o pesqui-sador deve acrescentar algo de si mesmo ao processo de pesquisa, que são justa-mente as impressões, as empatias, as memórias, junto com os métodos. Então, naverdade, quando você se depara com a obra de Leandro Tocantins, você se deparacom uma prosa muito leve. No dizer do Gilberto Freyre, “uma prosa sem osso,sem espinhas, de tão leve que ela é”. Essa prosa é resultado de um conjunto deimpressões da densidade literária que ele desenvolve também ao longo de sua obra.Nesse aspecto, Leandro Tocantins, dialogando com o regionalismo, vai dizer: olha,existe uma hispanotropicologia que estuda o processo de colonização ibérica nostrópicos. O que é essa hispanotropicologia? O que é a luz da lusotropicologia doGilberto Freyre? Os portugueses, diferentes de outros povos europeus, têm umaqualidade plástica. O que significa essa qualidade plástica? Em primeiro: uma capa-cidade de se aclimatar; segundo, uma capacidade de miscigenar. E terceiro: umacapacidade de mobilidade. Esses três elementos constituem a plasticidade do portu-guês. São esses três elementos que constituem o caráter específico do português. E oportuguês, quando esteve em Goa, na Índia, quando esteve na China e quandoesteve nas outras regiões da Ásia e da África, conseguiu absorver parte dessas cultu-ras e a trouxe para o Brasil. Então, a arquitetura, o tipo de alimentação que se desen-volve com a miscigenação portuguesa, indígena e negra, constitui uma “caldo cultu-ral novo” que possibilita justamente uma nova civilização nos trópicos. Daí que nóstemos que fundar uma nova ciência, que é a lusotropicologia.

E Leandro Tocantins, dialogando com essa nova matriz do pensamentoregionalista, vai dizer assim: olha, nós temos que criar uma amazonotropicologia.Amazonotropicologia é, justamente, um diálogo interno entre essa obra do Lean-dro Tocantins e os princípios da Agenda 21, principalmente no que diz respeito àciência e à tecnologia para o desenvolvimento sustentável. Porque Leandro Tocantins,na amazonotropicologia, já está propondo uma ciência específica, oriunda dasetnociências, ou do etnoconhecimento, dos etnosaberes dos povos locais e também

Page 218: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 1 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

da etnobiologia; ele já fala isso nos livros dele. Termos que nós imaginamos que sãocontemporâneos, forjados hoje, na verdade, Leandro Tocantins já está estabelecen-do diálogo com eles, principalmente na obra Amazônia – natureza, homem e tempo;nessa perspectiva, o que vai ser essa amazonotropicologia? A amazonotropicologiavai se sustentar a partir do Museu Emílio Goeldi, do Pará, e do Inpa, no Amazonas,para forjar um conjunto de saberes e mostrar como essas técnicas, que são desen-volvidas localmente, estão plenamente adequadas à nossa cultura. Ele está fazendouma crítica a uma modernização sem critérios.

Que é modernidade sem critérios?É justamente a introdução de valores europeus e norte-americanos e o en-

cobrimento de nossa identidade. Assim como Gilberto Freyre, ele acredita que acivilização do extrativismo, que criou uma cultura e uma identidade local perfeita-mente adaptada às condições regionais, nós não devemos esquecer essas tradições,porque elas são fundamentais.

Aí, eu deparo com um diálogo importante, que é “Arquitetura e paisagismona Amazônia”, que está justamente no final, no apenso do O rio comanda a vida; énesse texto onde ele dialoga justamente com as possibilidades de uma arquiteturalocal, assim como Gilberto Freyre já havia dialogado e discutido e desenvolvido umargumento sobre a arquitetura dos sobrados e dos mocambos plenamente adapta-dos ao clima tropical. E Leandro Tocantins mostra como os portugueses desenvol-veram, através dos pagodes, através das varandas, toda uma arquitetura adaptada.Você entra num casarão ou num sobrado português do início do século em Manaus,e vai ver que, em pleno dia de sol, ele acumula uma umidade dentro, ele tem umfrescor interior. Aquele porão é justamente para acumular a umidade. As paredesgrossas e o teto alto são justamente para impedir que o calor excessivo maltrate aspessoas. E você entra em um edifício contemporâneo, hoje, em Manaus, em plenomeio-dia, e tem que acender as luzes. Eles não são adaptados e nem os arquitetos enem os engenheiros aproveitam a luminosidade da nossa região e não aproveitamtambém a situação climática. Em síntese, em alguns edifícios da nossa região, empleno meio-dia, em dia de sol, temos que acender as luzes, criando um gasto adici-onal. Aqueles edifícios que estão sendo construídos ali na Avenida Djalma Batista,próximo ao CIEC, todos eles já estão inviáveis, porque o vidro acumula calor. Elesvão gastar muito mais energia. Então, você percebe que Leandro Tocantins estádiscutindo justamente como essa modernização, através do concreto e do vidro,

Page 219: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

está justamente apagando uma dimensão fundamental da adaptação do homem aostrópicos.

Assim, a amazonotropicologia é justamente um conjunto de investigaçõessobre as produções locais e de como atualizar essas produções locais em políticas deação do Estado. Como transformar o conjunto desses saberes locais em uma orien-tação política das instituições locais. Por isso, é importante analisarmos e pensarmosas idéias do Leandro Tocantins; não enquanto apenas uma bibliografia, mas até queponto o seu pensamento orientou o conjunto das instituições locais, orientou oconjunto da obra de Severiano Mário Porto, que tinha um diálogo com ele. E nessetexto “Arquitetura e paisagismo na Amazônia”, ele cita Severiano Mário Porto comouma pessoa que veio para cá e compreendeu as dimensões históricas da adaptaçãodos portugueses aos trópicos e conseguiu desenvolver uma arquitetura inovadora.Nesse aspecto, a amazonotropicologia teve um papel fundamental.

Entramos, agora, numa terceira dimensão do pensamento do LeandroTocantins, que é justamente a persistência da tradição. O que significa isso? Em Vida,cultura e ação, ele desenvolve todo um trabalho, mostrando o seguinte: que ao longodo processo do extrativismo, embora o extrativismo não tenha criado raízes sólidascomo o processo de produção açucareira no Nordeste, ele construiu tipos, cons-truiu requisitos psicossociais, modos de agir, modos de pensar, modos de sentir quesão típicos de um novo tipo de civilização. Ele vai chamar a atenção e dizer oseguinte: o Brasil, assim como o regionalismo, é a ponta: o Brasil é feito antes deregiões, regiões naturais, às quais se sobrepuseram regiões culturais; e não de Esta-dos. Ele está criticando o quê? A Federação.

Nesse aspecto, é importante salientar que Leandro Tocantins teve uma pas-sagem importante, que foi justamente um estudo que fez nos EUA sobre o desen-volvimento regional; nesse aspecto, entra uma fase de Leandro Tocantins enquantoassessor do Arthur Cézar Ferreira Reis, que é justamente a discussão do Porto Livrede Manaus, que vai desencadear o processo da Zona Franca. Ele teve um papeldecisivo na discussão sobre a construção desse espaço do Porto Livre de Manausque, ao longo das discussões, poucas pessoas citam Leandro Tocantins como umpensador, um agente político importante para a constituição da Zona Franca.

Por fim, qual é a atualidade do pensamento do Leandro Tocantins? Vocêverifica que existem várias vias para entender seu pensamento. Poder-se-ia estabele-cer uma via que são justamente os hábitos e os costumes, ou seja, as receitas de bolo,

Page 220: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

os fuxicos, os mexericos, as lendas, os folguedos... Só que a obra de Leandro Tocantinsé uma obra polifônica, não se fecha. Ele tem um diálogo com o desenvolvimentismotanto da Cepal como do Iseb. Claro que você verifica que esse desenvolvimentismo,esses princípios, não estão explícitos na obra dele. Você verifica esse diálogo impli-citamente, principalmente porque nós sabemos que na Constituição de 1946 foicriada justamente a dotação orçamentária para valorização da Amazônia; só que nãofoi regulamentada. Ela só será regulamentada no governo Getúlio Vargas, em 1952e 53. E Getúlio vai chamar Leandro Tocantins para conversar justamente porque eleestava lançando O rio comanda a vida. E isso é importante justamente para regulamen-tar a dotação orçamentária de 3% do orçamento para a SPVEA – Superintendênciado Plano de Valorização Econômica da Amazônia, que foi justamente influenciadatambém pelo O rio comanda a vida. Inclusive ele cita em uns de seus prefácios essediálogo que teve com Getúlio Vargas. Ele mostra justamente o que Vargas disse:“olha, na sua região ainda o rio comanda a vida dos homens; nós vamos fazer tudopara reverter esse quadro para que os homens possam comandar a vida; sua vida ea vida da natureza.” Essa dimensão poética também está no pensamento do Lean-dro Tocantins.

Uma coisa que só me veio recentemente é um diálogo de Leandro Tocantinscom a teoria das vantagens comparativas, de Paul Samuelson. O que é essa teoriadas vantagens comparativas? Samuelson, um pensador liberal, acreditava no seguin-te: se os países periféricos se concentrassem na produção de produtos primários,eles iriam ganhar nas relações comerciais internacionais. Por quê? Porque ele acredita-va no seguinte: os produtos primários subiriam geometricamente, enquanto os valo-res dos produtos industrializados subiriam aritmeticamente. Então, na relação inter-nacional, quem levaria vantagem seriam os produtores de produtos primários. Nes-se momento, então, o desenvolvimentismo de Leandro Tocantins vai se sobrepor aessa visão e vai mostrar que é preciso criar raízes sólidas de industrialização na Ama-zônia, mas sem apagar os traços culturais advindos dos processos do extrativismo.Por isso ele chama à persistência da tradição. E diz o seguinte: nós temos que nosmodernizar, mas sem deixar de lado nossas raízes extrativistas do ponto de vista dacultura e da identidade.

Finalizo essa exposição mostrando que, a exemplo, do protagonista de IlGattopardo de Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, que fala sobre a necessidade demudança, para que tudo permaneça como está, também Leandro Tocantins aponta

Page 221: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

para as mudanças da modernização: nós precisamos nos transformar, do ponto devista da industrialização, mas nos mantendo os mesmos, do ponto de vista da iden-tidade, porque essa identidade foi plenamente construída e adaptada ao meio ecoló-gico da Amazônia.

Renan Freitas Pinto

Quero em especial cumprimentar um grande amigo, Luiz de Miranda Corrêa,que nos deu esse prazer e honra de tê-lo aqui conosco, nessa hora, quando buscamoshomenagear essa grande figura que é o Leandro Tocantins. E também parabenizar oOdenei pelos seus sempre muito oportunos e competentes pronunciamentos a res-peito do Leandro Tocantins.

Mais uma vez ele confirma nossa idéia de que ele compreendeu de ummodo profundo o sentido dessa obra e do papel desse homem de ação, que foiLeandro Tocantins. Além de um grande poeta, foi historiador e um cientista social.Enfim, essa figura, como ele muito bem mencionou, no final, complexa e múltipla.

O quadro de idéias onde se movimenta o pensamento de Leandro Tocantins,na verdade, tem antecedentes, já na obra do próprio Montaigne, no início do séculoXVII, quando, ao escrever Os Canibais e um outro ensaio muito interessante, dedica-do aos indígenas da América, ele estava, em certo sentido, fundando uma antropo-logia, que passou vários séculos não reconhecida; até derrotada, num certo sentido,mas que de repente, na obra de homens como Leandro Tocantins, renasce comtoda sua força. Com certeza Leandro Tocantins leu Montaigne, como também leumuita coisa. Era homem de uma erudição e de um espírito extremamente aberto e,certamente, vale a gente lembrar: uma outra leitura muito importante que foi clara-mente expressa na sua obra, que foi a leitura de João Daniel. Ele a resgatou de umaforma extremamente original.

Ao prefaciar a obra de João Daniel, a edição da década de 1970, aqui noBrasil (agora foi reeditada com a apresentação de Vicente Salles, historiador doPará), Leandro Tocantins faz exatamente essa conexão do pensamento de JoãoDaniel com isso que foi mencionado aqui como amazonotropicalismo oulusotropicalismo, ou seja, ele encontrou na obra de João Daniel elementos que bus-cavam claramente, intencionalmente, valorizar os aspectos das culturas indígenas daAmazônia do ponto de vista de haverem essas culturas criado uma arquitetura, um

Page 222: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

modo de vida plenamente adaptado aos trópicos. Advertindo, inclusive, aos seuscompatriotas portugueses que, quando viessem viver na Amazônia, por favor, nãotrouxessem roupas pesadas e não trouxessem os modelos de construção de casa, deprédios públicos etc., tais como se concebiam na Europa, mas que aqui havia todoo material necessário para se construir de uma maneira correta e adequada as habi-tações e as construções que fossem necessárias. E que os próprios indígenas já havi-am fornecido as soluções construtivas para essa arquitetura. Tratava-se apenas deobservar bem como viviam estas sociedades para aproveitar as soluções que havi-am sido encontradas secularmente, milenarmente.

Então, com observações desse tipo, ele resgata de uma maneira extraordi-nariamente original a obra, no caso eu estou mencionando João Daniel, mas naverdade é a leitura do Leandro Tocantins que foi extremamente completa, vasta,dos autores da Amazônia. Inclusive ele menciona nestes dois livros que estão aqui namesa: O rio comanda a vida e Amazônia – natureza, homem e tempo, o que seria na verdadeuma história das idéias na Amazônia. Ao mencionar, por exemplo, as obras dosviajantes, a concepção da Amazônia como o País da Canela, como o País dasIcamiabas, como o País das Palmeiras, enfim, essa preocupação em construir umaobra onde basicamente o que estava em jogo era a valorização das culturas locais,das culturas que se desenvolveram e que forneceriam naturalmente a chave para odesenvolvimento de uma nova Amazônia.

Ele não era um saudosista, um conservador. Era um homem extremamen-te envolvido com a modernidade, apesar de ter uma sensibilidade profunda emrelação a esses valores do Brasil, digamos assim, porque não era só um homemligado aos estudos regionais. Ele tinha uma compreensão do Brasil extremamenteadequada e completa e, na verdade, não podemos dizer que Leandro Tocantinsfosse apenas um intérprete da Amazônia. Na verdade, ele era um pensador brasilei-ro, que, através da Amazônia, buscava explicar o Brasil e, na verdade, tomando oponto de vista inverso. Dificilmente o Brasil poderia ser explicado sem a contribui-ção de pensadores como ele, posicionando-se de um ponto de vista da Amazôniapara ver o Brasil.

E retomando aquela idéia de que as matrizes de seu pensamento estão colo-cadas ao longo dos séculos XVII e XVIII, vamos aqui mencionar, a respeito dolusotropicalismo, um aspecto que é certamente muito importante, que é o registro,por parte de Hegel, na sua obra Filosofia da História, de um conceito de que as colô-

Page 223: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

nias portuguesas, e a própria escravidão portuguesa havia sido mais suave do que asoutras. Ora, esse conceito, emitido no seu curso, que na verdade foi um conjunto detrês cursos proferidos por Hegel, em três diferentes momentos (1822, 1826 e 1828)e que os seus próprios alunos, através de notas desse curso, o submeteram a Hegel,surgiu essa obra, resultado de anotações de sala de aula, digamos assim. Nessasanotações há referências ao Novo Mundo e, particularmente, à Amazônia, ondeHegel faz essa referência de que os portugueses criaram um modo de relação como indígena e os escravos, que era uma forma cordial. Essa idéia de cordialidade, essetempero, suave, certamente ele a coletou. Colheu essa idéia em autores de seu tempoe colocou na sua obra.

A partir de Hegel, podemos tomar como um ponto de referência que anoção de lusotropicalismo, certamente, tem um marco fundamental na obra deGilberto Freyre, mas por esse registro de Hegel nós podemos, já numa perspectivada história das idéias, ver que Gilberto Freyre certamente encontrou fundamentosem outros autores para construir suas hipóteses e esse arcabouço. Um dos arcabouçosprincipais de sua obra, porque também, na verdade, a obra de Gilberto Freyre ébastante complexa e não pode ser reduzida a essa idéia da defesa da democraciaracial e da atitude cordial dos portugueses. É uma obra extremamente ampla. Apropósito, esse livro que o Odenei mencionou, Nordeste, acaba de ser reeditado.Portanto, vemos que o pensamento de Gilberto Freyre permanece vivo e certamen-te esse pensamento se construiu a partir de um diálogo constante com outros intér-pretes brasileiros, inclusive intérpretes como Arthur Reis, o próprio Leandro Tocantins,Charles Wagley, que explicita em sua obra Uma Comunidade Amazônica. Ele manifestaclaramente a sua identidade com as idéias de Gilberto Freyre, no que diz respeito àAmazônia. E vale a pena aqui destacar um aspecto que Gilberto Freyre é um pensa-dor da Amazônia, ele possui, dentro de sua obra, um vasto conjunto de referênciase de reflexões em torno da Amazônia. Temos inclusive, presentemente, um projetode Iniciação Científica, que estamos começando agora, e que trata exatamente disso;é um aluno do departamento de Ciências Sociais, buscando levantar, no seu pensa-mento, a Amazônia de Gilberto Freyre. Então, no conjunto da obra há um cuidado,e uma atenção muito especial de Gilberto Freyre com relação à Amazônia, porquerigorosamente via na Amazônia uma chave para compreender o Brasil. Isso aí estáfortemente exposto em vários momentos de sua obra.

Page 224: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Voltando ao Leandro Tocantins, podemos ver claramente que ele contri-buiu fortemente para uma história das idéias na Amazônia. A começar pelo fato quenós acabamos de mencionar: os seus comentários em relação a João Daniel, o pri-meiro autor que poderia ser, digamos assim, uma espécie de precursor da SPVEA.Um homem que pensou um plano de desenvolvimento e de prosperidade para aAmazônia. E eram planos bastante conseqüentes e factíveis, inclusive de possíveisrealizações. Infelizmente, o projeto ao qual ele estava ligado, que era o projeto jesuítico,foi interrompido pela política pombalina. Era uma perspectiva mundial desses jesu-ítas, eles que possuíam intelectuais pensando várias regiões do mundo e construíram,por exemplo, toda a cartografia mundial. Isso foi iniciativa desse projeto jesuítico,inclusive aqui mesmo ao lado temos a exposição de Samuel Fritz, que foi o primeirocartógrafo da Amazônia e está dentro desse projeto de se criar uma idéia de desen-volvimento da Amazônia. Mesmo que a palavra na época não fosse corrente, mas oque está em jogo é realmente isso: criar mecanismos, criar ações de natureza políticaque conduzissem a Amazônia a se tornar uma região próspera e capaz de, inclusive,solucionar o problema, ajudar a solucionar o problema da fome no mundo, a partirdo momento em que pudesse receber migrantes e colonos de diversos lugares.

Bem, certamente essa idéia de um historiador das idéias é uma idéia forte,mas podemos ainda mencionar, a esse respeito, a leitura que Leandro Tocantins fezde Euclides da Cunha, de quem foi um grande divulgador, senão o maior, da obrade Euclides no Brasil. Com certeza, em relação à obra relacionada com a Amazônia,foi ele o principal divulgador de Euclides da Cunha. Além de historiador das idéias,também teve esse papel de divulgar obras do peso da obra de João Daniel, deEuclides da Cunha...

Cabe mencionar, em relação aos estudos sobre a arquitetura, a projeção queele imprimiu à obra de Severiano Porto (que projetou o campus da Ufam), quecertamente se inspirou fortemente, não apenas nos livros, mas no convívio comLeandro Tocantins e na obra do próprio Luiz de Miranda Corrêa, que se encontrapresente aqui na mesa, que também produziu ensaios também sobre arquitetura eurbanismo de Manaus, da Amazônia, e que através dos seus estudos, na verdade,está dialogando certamente com Leandro Tocantins, de quem foi amigo. A suapresença aqui vai ser para fazer um depoimento da sua aproximação, ou seja, da suaamizade e admiração pelo Leandro Tocantins.

Page 225: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Então, esses aspectos de um autor, um intelectual que contribui fortementepara a história das idéias na Amazônia, como já mencionava, referiu-se aos viajantes,aos cientistas que conheceram a região e, dessas obras, não fez apenas uma leitura,mas incorporou elementos e valorizou determinados aspectos dessa produção queele considerava importante para a compreensão da Amazônia tropical, como porexemplo, Charles Wagley, um autor norte-americano que trabalhou na Amazônia eproduziu um dos maiores trabalhos sobre a Amazônia rural, o livro Uma ComunidadeAmazônica, obra que compartilhava fortemente das idéias do professor Arthur CézarFerreira Reis, de Gilberto Freire e de Leandro Tocantins. Essa é uma expressão dopensamento luso-tropicalista na própria sociologia estrangeira, o que indica o se-guinte: esse pensamento, desses autores, não se restringiu à Amazônia e chegou ainfluenciar fortemente a sociologia norte-americana. Posteriormente, o Charles Wagleyescreveu novo livro, sobre as cidades brasileiras, mas não mais sobre cidades rurais.Mas ele continua fazendo referências a essa perspectiva lusotropicalista ou lusotropical,para ser mais brando.

É por essas, e por tantas razões, que estamos reunidos, homenageandoLeandro Tocantins. Mas acho que a maior homenagem é levantar e suscitar essaslembranças e essas referências ao que representou certamente a sua obra. Eu apenasme restringi, aqui, à obra que Odenei já mencionou, o lado do homem de ação, quede fato ele foi.

Ele foi uma figura presente em diversos momentos de se pensar e de se agirem relação à Amazônia. Eu me limitaria a fazer essas considerações lembrando, porexemplo, que num livro fantástico do professor Artur Cézar Ferreira Reis, O seringale o seringueiro, está essa perspectiva, a perspectiva de Leandro, de que a miscigenaçãonão foi apenas racial, mas a miscigenação cultural foi o elemento fundador da Ama-zônia. E é um elemento bastante valorizado, particularmente nessa obra, que é, naverdade, um monumento da sociologia da Amazônia. Esse livro, que é um livro deum historiador, mas que nesse momento, ele estava bastante inspirado, como umpensador social que nos presenteou com essa obra magnífica, que é O seringal e oseringueiro. Obra essa que, certamente, possui uma familiaridade e uma conexão como pensamento que é compartilhado com Luiz de Miranda Corrêa, com o LeandroTocantins...

Page 226: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Bem, esses dois ensaios sobre a arquitetura, para finalizar, são uma contri-buição extremamente valiosa, e, acho, que muito pouco lidos para o que represen-tam, porque, na verdade, esses dois trabalhos abrem perspectivas para várias pes-quisas, para várias experiências no que diz respeito ao modo de viver da Amazôniae seria recomendável que também, em sua homenagem, tivéssemos um meio dedivulgar mais isso, não apenas entre os arquitetos, mas entre a população, enfim, opúblico que precisa conhecer melhor a Amazônia para até viver melhor nela. Porquenós sabemos que uma cidade, como Manaus, apresenta muitas situações caóticas,porque, exatamente, num certo sentido, desconhece esses conselhos, essas sugestõesque estão aí nessa obra.

Com isso, pretendi dar esse pequeno recado. E, sinceramente, hoje eu sintomuita saudade de uma pessoa que conheci, infelizmente, já recentemente, mas queme cativou muito. Inclusive tive a satisfação, na verdade, de fazer o prefácio daúltima edição do O rio comanda a vida, editado pela Valer, e a respeito do qual ele meescreveu uma carta extremamente carinhosa: o que eu quero, na verdade, é ficaraqui, nesse momento, a pensar nas palavras daquela carta; foram extremamentehumanas e muito importantes para mim.

Muito obrigado!

Luiz de Miranda Corrêa

Depois do pequeno grande recado que você deu, Renan, depois desse ex-celente trabalho do Odenei, eu fico sem saber o que falar. Mas, vou começar fazen-do pequenos reparos a você e ao Odenei. Eu me permito, porque eu vivi mais partedesse tempo: o encontro com Vargas, no qual este falou para Leandro: “Quero queum dia o senhor me traga um outro livro dizendo que o homem é que comanda orio, que comanda a vida”, perdão, antecede, e muito, a ida do Leandro para aSPVEA. O Leandro foi para SPVEA levado por Arthur Reis. Quem sistematizou oorçamento da SPVEA foi Arthur Reis. Foi o primeiro superintendente do Plano deValorização Econômica da Amazônia – SPVEA. O Leandro foi levado como as-sessor dele. Ambos moravam no Rio de Janeiro. Ambos tiveram que se mudar paraBelém.

Page 227: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Eu entrei na SPVEA dois anos depois, quando ainda era dirigida por ArthurReis, e Leandro continuava em Belém. Outra coisa que eu gostaria de lembrar aoRenan, que todo o problema do Leandro com a arquitetura ecológica da Amazônia,uma possível arquitetura ecológica da Amazônia, porque ele não era arquiteto, erabaseado exatamente em João Daniel e em correspondências de Mendonça Furtadocom o Marquês de Pombal, porque o Marquês de Pombal também tentou fazeruma Superintendência de Valorização da Amazônia e, na correspondência dele, na-queles três “tijolos” editados pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janei-ro, a gente sente tanto do Pombal, quanto do Mendonça Furtado, que era irmãodele, a vontade de criar um plano de valorização econômica da Amazônia, apesarde que pode ter sido inspirado pelos Jesuítas e, naturalmente, anteceder uma políticade Estado. Mas, aí, já foi uma política de governo e não foi uma política de umaordem religiosa.

Eu não compro a briga de quem é pró-Jesuíta é anti-Pombal, ou quem épró-Pombal é anti-Jesuíta, porque isso era uma discussão em Portugal, há dois sécu-los, não é? Lá, quem elogia os Jesuítas odeia Pombal. E quem elogia Pombal odeiaJesuítas. O que é uma tolice! Porque os dois lados tiveram erros e acertos. Tanto aordem religiosa, quanto a política de Estado do Pombal!

Era basicamente isso que eu queria dizer. O Leandro antecede SeverianoPorto. Severiano Porto veio para Manaus (ele era um arquiteto carioca com as idéiasda Universidade Federal do Rio de Janeiro, que era a melhor escola de arquiteturado Brasil), mas ele chegou aqui, e isso pode-se ver nos primeiros prédios que eleconstruiu, era uma coisa transplantada do Rio de Janeiro para Manaus. E Leandrofez muito a cabeça dele, mas ele era um homem de muita sensibilidade e acabouentendendo. Ele criou, realmente; ele é o homem que criou uma espécie de arquite-tura amazônica.

Mas, uma outra coisa eu vou dizer para você, Narciso, você disse que eu fuiamigo de Leandro Tocantins: eu vou ser amigo eternamente do Leandro Tocantinsenquanto eu viver. Porque foi uma presença marcante na minha vida há quarenta ecinco anos. Eu o conheci quando ele chegava ao Rio. E o então chefe do escritórioda SPVEA no Rio, jornalista Clóvis Barbosa, pediu-me para ir buscá-lo no aeropor-to. E eu fui. Chegou ele e, como jacamim, parecia uma tribo: era ele, a mulher dele,a mãe dele, e a irmã solteirona, e uma filha na barriga da mulher. Enfim, quarenta e

Page 228: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 2 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

cinco anos atrás. A partir daí, tive uma grande ligação com Leandro. Aprendi demaiscom Leandro.

O Leandro era uma pessoa absolutamente fantástica. Era um homem des-provido de amor ao dinheiro, mas era de uma vaidade impressionante. Ele, talvez,por ser dez anos mais velho do que a mulher dele, escondia a idade: o Leandronasceu em 1929, portanto só tinha setenta e cinco anos, ao falecer. Saiu em todos osjornais como tendo oitenta e cinco. Eu quero mandar os recortes para a mulher dele;ela vai pensar que eu estou doido.

Leandro nasceu em Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Naquele largo daSé, num tal sobrado que tem problemas, milhões de coisas. Ele foi, talvez, commenos de um ano para o Acre, para o seringal do pai dele. Foi um momento emque os negócios da família não estavam muito bons e ele foi morar no rio Tarauacá.E morou uns seis anos lá. Aquele livro de poesia dele, Cosmoinfância, tem poemasabsolutamente deslumbrantes sobre essa fase dele. Até tem um que o professorArtur Reis ficou zangadíssimo, porque achou que não era coisa de poeta. Um poe-ma que ele chama... Mas, tudo bem. Eles brigavam por certas coisas. O Dr. ArturReis brigava também com Gilberto Freyre, quando Gilberto Freyre escrevia certasmaluquices da vida dele: quando ele conta, por exemplo, eu não me lembro em quelivro, que a primeira experiência de sexo que ele teve foi com uma vaca. Isso foi uminsulto e Dr. Reis brigou com Gilberto até dizer chega.

Leandro era um filho político de Getúlio Vargas; depois de Artur Reis, queera outro filho político de Getúlio Vargas. Inclusive, o pai de Leandro foi prefeitode uma cidade na Ilha do Marajó, na época de Magalhães Barata. Mas, Leandro eratambém um filho da sociologia de Gilberto Freyre. Não há absolutamente dúvidas.Até nas conversas do dia-a-dia era uma coisa que aparecia. Ele não negava.

Claro que Hegel... eu não conheço... mas deve ter tido essa visão daamazonotropicologia ou lusotropicologia, melhor dizendo. Mas isso já existia emPortugal desde 1500. Talvez até antes. Veja a maneira como os portuguesesmiscigenaram com os árabes, que eram negróides! Porque existiam áreas que eramde brancos e áreas que eram de negros. Os árabes que foram para Portugal e paraa Espanha eram todos do Marrocos e eram negros. E o português estava muitoacostumado, como o espanhol, a conviver com os negros. Era uma cultura muitosuperior à deles. E também, em seguida, quando foram para a África e chegaram

Page 229: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

à Índia. Todos povos de cor. Então, eles achavam, inclusive, o negro bonito. In-clusive Vasco da Gama disse que as negras eram mais bonitas do que as loiras. Emsíntese, o português estava pronto para essa grande aventura africana e asiática esul-americana.

No entanto, o português sempre foi muito preguiçoso. Ele nunca traba-lhou. Essa é uma grande mentira dizer que o português é trabalhador. Não é! Ele oé, apenas, quando migra, porque quer enriquecer para voltar e comprar um título denobre... uma quinta... e ponto final... Portugal, como disse Camilo Castelo Branco,somos um povo de comerciantes e nada mais. Português ficava ali no Porto e emLisboa recebendo as coisas do Brasil e revendendo, e o preto trabalhando aqui.Porque o português estava aqui como feitor apenas. Então, não existe essa tradição.Gilberto (Freyre) disse bem isso; o Dr. Reis e Leandro também. Mas era um povochameguento com os negros, né!

Eu acho que disse o que queria dizer. O que mais eu posso dizer do Lean-dro? Ah! Sim! Era até uma coisa que gostaria de perguntar. Eu não falei ainda comdona Léa, viúva de Leandro, sobre isso, mas vou falar com ela. Eu queria trazer abiblioteca e os arquivos do Leandro para Manaus. Como a gente vai fazer paraconseguir isso? Lembro que já foi uma confusão para incorporar a biblioteca earquivos do Arthur Reis! Eu não sei. Eu lanço aqui a idéia. Vamos pensar nisso!

O debate

Renan: A propósito, eu me lembro que estivemos até empenhados naquela primei-ra compra. Você se lembra?Luiz: Não toque nesse assunto. Eu não quero falar nisso, hein! Eu fiquei com a carade tacho porque consegui a coisa mais difícil, porque o doutor Reis não queria se verlivre da biblioteca dele antes de morrer. E nós propusemos a ele ficar como o fieldepositário até sua morte. Pagávamos a ele, ficávamos como fiel depositário e, logoem seguida, viria para Manaus. Mas, aí houve outros problemas, que não quero falar.Renan: Mas a idéia é muito interessante de trazer a biblioteca e arquivos de Lean-dro.Luiz: O Leandro tem uma biblioteca boa, muito boa, apesar de ser absolutamentedesorganizada. Acredito que ele deve ter coisas muito boas, muito importantes.Você cita o Leandro como um dos agentes da Zona Franca de Manaus. Ele foi

Page 230: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

muito importante. E ele tem uma grande documentação sobre isso. Depois ele foiadido cultural do Brasil em Portugal. Ele fez um trabalho excepcional pela Amazô-nia. Ele patrocinou exposições do Moacir Andrade em Portugal etc. Eu acho que eletem uma correspondência muito interessante e, apesar de ser paraense, acreano, elefoi sempre muito ligado ao Amazonas. Ele sempre teve um carinho muito grandepelo Amazonas. Aliás, tem outra coisa que eu quero falar e vocês dois esqueceram:Leandro também não pode deixar de ser lembrado pelo livro dele Formação históricado Acre, que é o livro mais importante escrito por ele. Inclusive eu brincava muitocom ele e dizia: “Leandro, você inventou o Acre. O Acre não existe”. Uma vez,fomos ao Acre juntos, para um trabalho que ele estava fazendo sobre Plácido deCastro; um filme, a Embrafilme havia me financiado o roteiro, e aí o Leandro vai ediz isso, na frente do governador do Acre: “Olha, ele diz que o Acre não existe”. Ogovernador, que era meio grosso, disse: “Então, mande ele ir embora”. Tudo bem!

O Leandro era uma pessoa boa, um coração generosíssimo. Agora ele tinhaisso: era vaidoso... a confusão em que ele meteu tanta gente com relação à idade... éterrível!Participante: É apenas para registrar um agradecimento sobre a referência que oLuiz fez aos poemas. Ao Leandro Tocantins, literato, escritor, poeta, memorialista,além de Cosmoinfância, que é belíssimo, e pequenas crônicas também.Luiz: ...tem editado em Portugal, eu esqueci o nome. Ele tem a Aventura de Tizinho,que é um livro infantil, autobiográfico. A memória de viver, e o outro é Os silêncios docanto.Participante: Os silêncios do canto. Esse é o livro que eu estava me esquecendo, que éum poema bonito. Então, era para reforçar o registro do Leandro Tocantins escri-tor, literato, jornalista e poeta.Participante: Sobre a possível vinda da biblioteca de Leandro para o Amazonas,acho que é um momento muito peculiar, até porque 2004 e 2005 nós estamosfestejando, no Brasil, sobretudo nós, amazonenses, o reconhecimento dos rios Puruse Juruá. Então, o histórico do Juruá é a história, na realidade, da formação da regiãoacreana. Gostaria de reforçar essa idéia de Luiz Maximino.Participante: Só gostaria de dizer que essa questão de comprar a biblioteca doLeandro vai gerar uma guerra civil na Amazônia entre Pará, Acre e Amazonas. Mas

Page 231: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

uma coisa é certa, a primeira homenagem nacional a Leandro Tocantins está sendofeita pelo nosso Programa, talvez isso nos assegure uma precedência... Inclusive estáhoje registrado no sítio do Jornal da Ciência.Participante: Uma questão que eu queria conversar com o Odenei e com o Renané sobre a tríade que aparece muito nas obras do Leandro, sobretudo nessas duas: ORio comando a vida e Amazônia – natureza, tempo e homem. No fundo, a gente está enten-dendo essa assertiva dentro de toda problemática amazônica, com todo o nexo queela tem com o rio e com a natureza. Fazer essa tríade de sociedade, natureza ehomem, que aparece nas obras, eu não vejo muito nas obras de Gilberto Freyre.Renan: Bem, em relação à possibilidade de se comprar essa biblioteca, acho quepodíamos aproveitar o momento em que temos uma Secretaria de Ciência eTecnologia, uma Fundação de Amparo à Pesquisa. Acreditamos que se possa en-caminhar um projeto nesse sentido para a Fapeam. E, em relação a esse clima dasidéias, em que se desenvolveu a obra do Leandro Tocantins, certamente o nossopróprio Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia está apar, digamos assim, desse conjunto de idéias que nos moveu a desenvolver esseprojeto com esse objetivo de ter a possibilidade de, dentro da Universidade, nosdedicarmos a estudos da Amazônia enfocando esses grandes autores, essas grandesinterpretações e reflexões sobre a Amazônia. Por isso, sinceramente, seria mais umenfoque na própria concepção do curso e certamente na orientação de vários traba-lhos de pesquisas que temos desenvolvido.

Eu acho que na verdade os livros do Leandro já estavam bastante presentesna perspectiva e no horizonte desse curso, ao ter concebido exatamente pegar rela-ções entre sociedade e natureza, o homem e a cultura nos trópicos, o homem e acultura na Amazônia. Somos herdeiros, sem dúvida, do pensamento de LeandroTocantins e também nesse sentido da concepção e da realização desses projetos depesquisa na Universidade. Essa é uma lembrança que talvez não pudesse deixar deser feita.Odenei: Essa relação homem, sociedade e natureza para mim parece clara na obrade Gilberto Freyre. Inclusive eu estava procurando aqui, na introdução do LeandroTocantins, uma passagem em que ele cita uma dimensão da obra de Gilberto Freyre,que é importante. Ele fala o seguinte: não há fato sociológico mais importante que aecologia, porque na ecologia você vê a relação do homem, da sociedade e da natu-

Page 232: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

reza, e, nesse processo, é que se dá justamente a apropriação do homem sobre essanatureza, esse homem deformador e transplantador de cultura. Essa questão dasociedade, natureza e cultura depende, também, de uma dimensão que eu creio queo Kant já até expôs, quanto ele diz o seguinte; “o que que é a natureza? É o modopelo qual organizo, interpreto e classifico as minhas impressões de sentido”. Então anatureza, na verdade, vai ter um significado de acordo com a estrutura cultural, comos valores morais, éticos e o conhecimento estabelecido pela sociedade. No caso,por exemplo, do grego: o que era a physis para o grego? É muito difícil, para nós,identificarmos a physis para o grego. Mesmo porque os gregos não conheciam ozero. E muitas vezes eu fico imaginando, o que é physis para o grego? O que será anatureza? Eu não consigo compreender a natureza sem o zero. Mas os gregos ti-nham toda uma concepção de natureza, e essa concepção de natureza é interessante,mediada também pelas relações de produção. Não podemos esquecer o Marx.

O que que é a natureza hoje? Aí, entra a dimensão de Marx e de MarxWeber de que a natureza foi desencantada. Como é que olhamos a natureza? Comouma mercadoria. Um geólogo olha uma montanha, ouve espíritos nela? Não. Elecalcula quantos metros cúbicos tem de minerais. Um engenheiro florestal ouve e vêpoesia na copa das árvores? Não. Ele vê metros cúbicos de madeira. Um engenhei-ro olha para um rio, ele ouve poesia nas águas? Não. Ele vê apenas um potencialhídrico que ele pode represar. E tudo isso se transforma em quê? Em capital etransformação disso em recurso. A natureza é vista como uma mercadoria. Esse é ogrande impacto da sociedade capitalista. Como mudar a nossa dimensão, e o nossopadrão de produção e de consumo? Do ponto de vista das tendências, aautodestruição é inevitável. Basta você verificar os dados da própria ONU, porexemplo; são assustadores: nos próximos 25 anos sumirão 30% das espécies depássaros do mundo; no litoral nordestino, segundo o Ibama, das 18 espécies maisconsumidas, 8 estão em via de desaparecer. O que que é a natureza? A natureza, paranós, e no caso da sociedade e homens que vivem na sociedade ocidentalizada, me-diada pelo capital, vai e se transforma em uma mercadoria. Eu creio que GilbertoFreyre, no Nordeste, já está denunciando isso. O padrão de produção da lavouraaçucareira degradou os rios e ele vai falar do beribéri, ele vai falar da infância, e oLuiz falou apropriadamente do livro Santa Maria de Belém do Grão Pará, que foi ondeo Leandro nasceu realmente. E ele faz um roteiro também mostrando, semelhante

Page 233: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

ao Gilberto Freyre, como a modernização destruiu vários locais importantes. Entra,aí, a dimensão da professora, que chamou a atenção para essa questão da memóriada poesia: a obra eclética de Leandro é, toda ela, uma escrita sem peso, é leve, apesarde sua densidade. Porque muitas vezes as pessoas confundem simplicidade comsimploriedade. Ele tinha essa densidade e simplicidade que tem a obra de GilbertoFreyre. Embora tenha dimensões que nós ainda precisamos avançar.Nelson Noronha (Coordenador do PPGSCA): Essa reunião se revelou bemmais que uma homenagem, mas ela nos proporcionou, também, um ambiente detrabalho, por assim dizer. A gente acaba assumindo o compromisso de reunir emtorno da obra do Leandro Tocantins não só uma série de pesquisas, mas esse esfor-ço de trazer os seus arquivos, a sua biblioteca, até nós. Muito obrigado.

Page 234: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

DissertaçõesDissertaçõesDissertaçõesDissertaçõesDissertaçõesDefendidasDefendidasDefendidasDefendidasDefendidas

Page 235: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 236: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Ano de 2005/1.º semestre

Soraia Pereira Magalhães: O transporte coletivo urbano de Manaus: bondes, ônibus de madeirae metálicos .(Orientador: Dr. José Aldemir de Oliveira)

Maria das Graças Medeiros: Um estranho no espelho. (Orientador: Dr. Marcos FredericoKrüger Aleixo).

Maximiliano Loiola P. de Souza: Violência e alcoolização no Alto Rio Negro. (Orientadora:Dra. Maria Luiza Garnelo)

Ano de 2004

Raimundo Emerson Dourado Pereira: Cidadania: retórica e realidade nas políticassociais de Manaus. (Orientadora: Dra. Elenise Faria Scherer)

Ivanhoé Amazonas Mendes Filho: (In)Justiça ambiental: análise da problemática noBairro de Novo Israel/Manaus-AM (Orientador: Dr. João Bosco Ladislau deAndrade)

Noélio Martins Costa: Essa música foi feita pra mim! Relações amorosas, paixões e cotidianopresentes na música brega em Manaus. (Orientador: Dr. Sérgio Ivan Gil Braga).

Nicia Petreceli Zucolo: Contos de sagração. (Orientador: Dr. Marcos Frederico KrügerAleixo)

Celso Augusto Torres do Nascimento: Experiência de cooperativismo em Manaus. Umainiciativa inovadora no âmbito da geração de renda. (Orientadora: Dra. Maria Izabelde Medeiros Valle).

Dorli João Carlos Marques: A pedagogia subjacente ao Programa Criança Urgente: umestudo de caso. (Orientadora: Dra. Márcia Perales Mendes Silva)

Elizabeth Duarte Cavalcante: Indústria fonográfica no Amazonas. Subjugação aos padrõesglobalizados e realização da liberdade possível. (Orientador: Dr. Narciso Júlio FreireLobo)

Telemon Barbosa Firmino Neto: A segregação residencial e a gestão estatal na regulação doespaço urbano: um estudo descritivo do Conjunto Habitacional Nova Cidade e o CondomínioPonta Negra Village. (Orientadora: Dra. Elenise Faria Scherer)

Page 237: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Disser tações defendidas

Fabiane Vinente dos Santos: Mulher que se admira, mulher que se deseja e mulher que se ama:secualidade e gênero nos jornais de Manaus (1890-1915). (Orientadora: Dra. HeloisaLara Campos da Costa).

Page 238: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 3 9Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

EvEvEvEvEventosentosentosentosentos

Page 239: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 0 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 240: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 1Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Eventos

Eventos do PPGSCA em 2005

Cursos

Professor Doutor Peter Schröder – UFPE ministrou o curso intitulado “Stop MakingSense! A crise dos paradigmas nas Ciências Sociais”, de 9 a 22 de abril de 2005.

Professor Doutor Russell Parry Scott – UFPE ministrou o curso intitulado “A Pes-quisa em Ciências Humanas: regiões ou campos de pesquisa”, de 8 a 15 de junho de2005.

Palestras

Professora Doutora Maria Lúcia Aparecida Montes – USP proferiu a Palestraintitulada “Arte e Cultura Popular: Artesanato, Folclore ou Patrimônio Intangível deCulturas Dominadas?”, no dia 14 de junho de 2005, no Auditório Rio Alalaú –FACED.

Professora Doutora Josebel Akel Fares – UEPA proferiu a palestra intitulada “Po-éticas Orais Amazônicas: algumas questões fundamentais”, no dia 22 de junho de2005, no Auditório Rio Negro – ICHL.

Professor Doutor Auxiliomar Silva Ugarte proferiu a palestra “Os vocábulos daocidentalização da Amazônia”, ICHL/UFAM, no dia 28 de março de 2005, noAuditório Rio Solimões.

Page 241: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 2 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 242: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 3Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

PublicaçõesPublicaçõesPublicaçõesPublicaçõesPublicaçõesRecebidasRecebidasRecebidasRecebidasRecebidas

Page 243: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 4 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 244: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 5Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

1) Revista Crítica de Ciências Sociais – Universidade de Coimbra, n. 69, out. 2004;n. 71 , jun. 2005.

2) Revista Antropológicas, Universidade Federal de Pernambuco, v. 14 (1 e 2), 2003;v. 15 (1), 2004.

3) Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Universidade de Brasília, n. 25,jan./jul. 2005.

4) Revista Brasileira de Inovação. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, jul/dez. 2004; v. 4, n. 1,jan./jun 2005.

5) Estudos Feministas, Universidade Federal de Santa Catarina, v. 12, número espe-cial, 2004.

6) Kalagatos, Universidade Estadual do Ceará, v. 1, n. 1, 2004; v. 1, n. 2, 2004.

7) Idéias e Debates, Museu Paraense Emilio Goeldi, n. 1, 2002; n. 3, 2002; n. 4, 2003;n. 7, 2004; n. 8, 2004.

8) Asas da Palavra, Universidade da Amazônia, v. 7, n. 16, out/2003.

9) Revista Saúde e Ambiente, Universidade de Joinville, v. 6, n. 1, jun./2005.

10) Revista Ciência Hoje, SPBC, v. 36, n. 212, 214 e 215, 2005; v. 37, n. 218 e 219,2005.

11) Cahiers du Brésil contemporain. Paris, n. 49/50, 2002; n. 51/52, 2003; n. 53/54, 2003; 55/56, 2004.

Page 245: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 6 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Page 246: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 7Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Roteiro para elaboração de artigos

1. Os trabalhos deverão ser enviados em disquete com etiqueta identificando o(s)autor(es) e em três vias impressas, em corpo 12, na fonte Times New Roman.

2. O artigo deverá conter, no máximo, 30 mil caracteres, sem espaços; título, o nomee a identificação do autor (titulação, área de estudo da titulação, vinculação profissional.Ex.: Doutor em Sociologia, professor do Departamento de Ciências Sociais/UFAM);resumo em português e em inglês; palavras-chave e referências bibliográficas. Obs:só devem ser usadas notas explicativas – nunca nota para indicar a obra citada –sempre no final do texto, antes das referências bibliográficas; os resumos devem ter,no máximo, 350 caracteres, sem espaços.

3. As referências a obras vêm sempre no corpo do trabalho, entre parênteses, como noexemplo: (SOUZA, 1998, p. 157) ou (SOUZA, 1998, p. 155-157).

4. As citações até três linhas são identificadas por aspas no texto. A partir de quatrolinhas, devem ser destacadas do texto, em corpo 11, sem aspas.

5. As referências devem obedecer aos seguintes modelos: [MARCUSE, Hebert. Idéiassobre uma teoria crítica da sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972], [GALVÃO,Eduardo. Boi-bumbá; versão do baixo Amazonas. Anhembi. São Paulo, v. 3, n. 8,julho, p. 276-291, 1951], [SACHS, Ignacy. Estratégia de tradição para o século XXI.In: BURSZTYN, Marcel. (Org.). Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo:Brasiliense, 1993, p. 29-56.].

6. Anexos: caso existam, devem vir depois das referências bibliográficas.

7. Os textos serão submetidos à análise de consultores de acordo com o tema abordado.

8. Os autores que tiverem artigos publicados receberão um exemplar da Revista.

Obs.: O disquete e as cópias impressas devem ser entregues ou enviadas paraa Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia.O texto deve estar revisado pelo(s) autor(es). Os trabalhos que não obedecerem àsregras serão devolvidos pela Comissão Editorial.

Page 247: 013_Somanlu Ano 5_ n. 1_jan.jun. 2005

2 4 8 Somanlu, ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

Normas editoriais

Serão aceitos artigos considerados inéditos para a publicação os apresen-tados em congressos, seminários etc., destacando o evento em nota de rodapé.

Os artigos serão encaminhados ao Conselho Editorial de cada revista queenviará a Editora da Universidade Federal do Amazonas.

Caberá ao Conselho Editorial de cada revista enviar para aprovação deespecialistas nos temas tratados. Conforme a avaliação dos pareceristas, o artigoserá programado para publicação ou devolvido ao autor, para ser reformulado enovamente enviado para nova avaliação. A data de aceite pelo avaliador estaráindicada em cada trabalho.

• Os trabalhos serão enviados aos pareceristas sem a identificação de au-toria.

• Aprovado o artigo, o(s) autor(res) deverá(ão) encaminhar à EDUA umadeclaração, autorizando a publicação e cessão dos direitos autorais.

• Os originais serão publicados em português.

• A EDUA se reserva o direito de efetuar, nos originais, alterações deforma normativa, ortográfica e gramatical, com vista a manter o padrão e quali-dade da revista, respeitando, porém, o estilo e opiniões dos autores.

• Cada autor receberá 03 exemplares da revista.

• Ao final da 1.ª página do texto, o autor deve fornecer dados relativos asua maior titulação e à área em que atua, endereço eletrônica e telefone.