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  • Um Sculo de Clera: Itinerrio do Medo LUIZ ANTONIO DE CASTRO SANTOS *

    I

    A clera no teve incio na Europa, mas sim na sia, da ser chamada de "clera asitica" pelos epidemilogos. Surpreendentemente, a historiografia sobre esta doena temvel, causada pelo bacilo Vibrio comma, d maior destaque a seus efeitos sobre as populaes europias do que sobre as asiticas.

    A nfase no itinerrio europeu da doena deve-se em grande parte a seu carter epidmico. Acrescente-se a isto o ingrediente poltico e social a que esteve freqentemente associada a chegada da clera nos pases europeuscrises polticas e agitaes populares contra os governos em razo das medidas de controle sanitrio e sua ineficcia - e se compreender o destaque concedido pelos historiadores ao itinerrio . europeu do bacilo. Na sia teramos a configurao de uma endemia, no de uma epidemia, termo que sugere maior gravidade do que o primeiro. Por que ento "endemia" na sia, se o flagelo naquela regio foi sempre gravssimo? H uma ironia perversa na resposta: os especialistas consideram o termo endemia apropriado para doenas que provocam, em mdia, um nmero estvel de vtimas em certa regio ou pas durante muitos anos (por exemplo, dez anos ou mais). Assim, o contato de alguns sculos entre o microorganismo e as populaes asiticas, ainda que responsvel por altssimos ndices de mortalidade - que perduram at os nossos dias, sobretudo na ndia -, configura uma situao endmica, pois esses ndices tm sido estveis durante um longo perodo. O carter endmico da doena expli-

    Professor adjunto do Departamento de Cincias Humanas e Sade do IMS/UERJ e pesquisador licenciado do Cebrap.

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    caria, por sua vez, a tolerncia dos governos daqueles pases em relao clera e a ausncia de revoltas populares contra o descaso governamental.

    Tem-se notcia da primeira apario epidmica na Europa em fins do sculo XII ou incio do XIII. Nessa poca, entretanto, outras doenas castigavam mais duramente o continente, como a lepra e a varola. A Peste Negra seria o grande mal do sculo seguinte. O perodo de cerca de 300 anos, a partir de 1200 at os Descobrimentos, caracterizou-se pela primeira grande penetrao de doenas da sia na Europa, atribuda por historiadores como William McNeill ao impacto dos movimentos populacionais e comerciais provocado pelo Imprio Mongol. Os governos imperiais monglicos, implantados por Genghis Khan, chegaram a controlar todo o territrio chins e quase toda a Rssia, bem como a sia Central, o Ir e o Iraque. A peregrinao do bacilo da peste bubnica (Pasteurella pestis), a partir dos focos primitivos no sudoeste da China e na Birmnia, fez-se atravs das rotas de caravanas pela sia at a Crimia e dali espalhou-se por toda a Europa a partir dos portos do Mediterrneo. l

    Ainda que a clera tenha feito suas primeiras vtimas nessa poca de ampliao dos contatos entre Europa e Oriente, foi no sculo XIX que ela marcou profundamente a histria da humanidade, originando-se dos seus nichos ecolgicos na ndia - um permanente foco de reproduo do bacilo ainda em nossos dias - e propagando-se da regio de Bengala e do Delta do Ganges por toda a Europa e Amricas.

    A historiografia sobre as grandes epidemias - William McNeill quem defende este argumento - raramente as examina como instncias de rupturas epidemiolgicas, que so rompimentos violentos no equilbrio biolgico entre microorganismos ou "microparasitas" e hospedeiros humanos.2 Tais rupturas provocam sempre choques violentos nas estruturas sociais, econmicas, culturais, polticas e demogrficas. Por vezes, decorrem da prpria ausncia de mudanas sociais e, neste caso, poderiam ser consideradas um efeito indireto da rigidez das sociedades humanas. A Peste Negra, que se abateu sobre as populaes juntamente com a Grande Fome do sculo XIV, um exemplo de ruptura epidemiolgica, na conceituao de McNeill. A

    1. Veja-se o clssico de W. H. McNeill, Plagues and Peoples, Garden City, Nova Iorque, Anchor Books, 1976, cap. IV.

    2. Idem, "Introduction". Quando um organismo infeccioso, como o Vibrio comma, mata seu hospedeiro, cria de certo modo uma crise para si prprio, pois um novo hospedeiro ter de ser encontrado para que a cadeia geracional do microorganismo prossiga. Em termos bem simples, esse desajuste um exemplo de ruptura ecolgica, que, quando atinge e elimina grande nmero de hospedeiros, passa a configurar uma ruptura epidemiolgica. Este foi o fenmeno que se verificou com a clera no sculo XIX.

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    clera representa ta~bm um exemplo histrico clssico: esse "flagelo brutal e espetacular" do sculo XIX obedeceu ao padro de difuso e circulao de doenas transmissveis atravs do mundo, tendo se expandido ainda mais pelo..globo do que a Peste Negra na Idade Mdia.3

    A clera e a Europa no sculo XIX

    A Europa do sculo XIX passou por uma enorme onda de crescimento populacional, fruto da reduo dos nveis de mortalidade. Em grande parte, isto se deveu ao controle da varola, que j se iniciara desde o sculo XVIII pela prtica mais primitiva da inoculao, mas se difundira efetivamente apenas no sculo seguinte, com a imunizao pela vacina jenneriana. Desde as Guerras Napolenicas, os exrcitos - grandes propagadores das cadeias infecciosas sempre que invadiam populaes at ento no expostas a determinadas doenas - passaram a ser imunizados para impedir perdas nas prprias fileiras, que congregavam soldados de diferentes regies de um mesmo pas.

    A clera, apesar de provocar alguns surtos de mortalidade, no chegou a interromper o ritmo de crescimento populacional europeu. O sculo da clera foi tambm o sculo da intensificao dos conta tos entre o Velho Mundo e o Novo, em funo do desenvolvimento dos transportes terrestres e martimos. Foi, ainda, um tempo de avanos do microparasitismo e dos esforos administrativos para cont-lo, tanto no campo sanitrio como no da chamada polcia mdica - esta, uma espcie de instrumento da incipiente organizao dos servios sanitrios para atuar junto populao no combate clera e outras "pestilncias". Alm disso, foi esse o sculo das primeiras medidas sanitrias internacionais contra a expanso de doenas como a clera e a varola.

    Todos esses esforos esbarravam em um grande obstculo produo de efeitos duradouros: as limitaes do saber mdico. Sabe-se que at por volta de 1880 - dcada que marca o incio da era bacteriolgica -, o progresso mdico apoiava-se em doutrinas errneas sobre a propagao das infeces. Desde os ctempos de Hipcrates (sc. V a.C), uma corrente da medicina acreditava que as doenas eram causadas por miasmas, emanaes exaladas por guas estagnadas, cadveres ou qualquer outra matria em decomposio. Em conta to com miasmas, pessoas suscetveis ou enfraquecidas acabavam por cair doentes. Houve mais tarde uma teoria alternativa: era a chamada teoria do

    3. Ibidem. Ver, tambm, P. Bordelais, "Le Cholra: Prsentation", in J.P. Bardet et alli, Peurs et Terreurs face la Contagion, Paris, Fayard., 1988.

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    germe, uma doutrina "contagionista" por excelncia. Defendida desde o sculo dos Descobrimentos pelo italiano Girolamo Fracastoro, a doutrina tornou-se mais aceita do que a teoria miasmtica at fins do sculo XVIII e deu ensejo s medidas sanitrias do isolamento de indivduos e animais doentes, bem como da quarentena de pessoas a bordo de navios ou em lazaretos.

    Porm, essas medidas foram duramente combatidas e chegaram a cair em desuso nos primeiros tempos da clera. Em 1822, mdicos franceses que pesquisavam as causas de um surto de febre amarela em Barcelona concluram pela impossibilidade de contgio direto entre as pessoas infectadas. O xeque-mate aos contagionistas veio ao encontro do pensamento liberal, que via nas medidas de quarentena um embarao ao livre comrcio e no isolamento das pessoas uma transgresso aos direitos civis. Como no havia ainda bases cientficas para que se aventasse a ao de insetos e da gua como possveis transmissores de germes - nos exemplos clssicos da febre amarela e da clera - as medidas de quarentena e isolamento foram duramente combatidas e os miasmas ganharam novamente um lugar cativo no pensamento mdico da poca. 4

    Mas a partir de 1850 a clera comeou a reverter a balana do saber mdico em direo s teorias do contgio por germes. O primeiro sinal da mudana surgiu de um verdadeiro trabalho de "mdico-detetive" feito pelo ingls John Snow.5 Trabalhando como se estivesse conduzindo um experimento, por tentativa e erro, o mdico ingls conseguiu descobrir que um surto violento no centro da cidade de Londres, que chegou a vitimar 500 pessoas entre 31 de agosto e 10 de setembro de 1854, provinha de uma bomba d'gua contaminada usada pela populao local. Snow propunha-se, ainda, a demonstrar que as evacuaes de um doente, ao atingirem as guas da cidade, podiam disseminar o "veneno mrbido" para a populao que fizesse uso dessas guas. No eram eflvios e exalaes ptridas os causadores da doena, dizia ele, mas sim os germes contidos na gua usada para beber. Snow no identificara o bacilo causador - que o mdico e pesquisador alemo Robert Koch descobriria dcadas mais tarde -, mas suas concluses sobre a forma indireta de contgio punham em dvida a validade da teoria miasmtica.6 A cincia mdica de toda

    4. A discusso sobre as doutrinas epidemiolgicas est em W. H. McNeill, P/agues and .. , op. eit., cap. VI.

    S. Confrontar a tima matria de C. Csillag, "Mdico-Detetive Desvendou Transmisso do c()lera", FoUaa de S.Pau/o, Caderno 7,15/3/1991, p. 2.

    6. Veja-se a descrio pioneira de suas teorias - divulgadas em 1849, antes portanto de suas descobertas em Londres - no livro clssico de Snow, traduzido recentemente para o portugus: J. Snow, Sobre a Maneira de Transmisso do Clera (Traduo realizada pela USAID, revisada), So Paulo, Hucitec, 1991.

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    a Europa ainda tardaria algumas dcadas para aceitar definitivamente a explicao do contgio pelos germes. Foram as pesquisas de Pasteur e Koch que inauguraram a era bacteriol6gica, no fim do sculo XIX.

    o itinerrio da pandemia

    '. A historiografia refere-se peregrinao global para descrever o vasto movimento do flagelo durante o sculo XIX, infestando e infectando populaes em vrios continentes. Um novo padro de circulao de doenas se inaugurava por fora dos deslocamentos dos povos no Velho Mundo e entre o Velho e o Novo Mundos, tudo isso, por sua vez, provocado pelo crescimento industrial e pelos processos de colonizao e imperialismo.

    De incio, a clera extravasou os limites do subcontinente indiano - a partir de 1817 - em razo das manobras militares e das novas rotas de comrcio dos ingleses. Naquele ano se iniciava a primeira pandemia (rigorosamente, uma epidemia generalizada) do mundo moderno.

    Acompanhar o trajeto formidvel do bacilo lanando mo de um mapamndi, lembra de certo modo uma aula de geopoltica: o poder britnico espalhando pelos mares interiores e ocenicos ovibrio colrico. As tripulaes dos navios conduziram o bacilo, inicialmente, do fundo do Golfo de Bengala para sudoeste, em direo Indonsia e Indochina, e da para o norte, alcanando a China e o Japo em 1822. Outro percurso tomou a doena atravs do Mar da Arbia at a localidade de Mascate, na entrada do Golfo Prsico. Urna fora expedicionria inglesa chegou quela cidade em 1821, com o objetivo de estancar o trfico de escravos. Logrou infectar a regio com a clera, de onde se propagou, ao sul, para o continente africano, pelas vias do trfico, e a noroeste, at atingir o Iraque, o Ir, a Sria, a Turquia e a Rssia, atravs do Mar Cspio.?

    Uma segunda pandemia grassou a partir de 1830. Originando-se novamente do Delta do Ganges, a doena refez seu trajeto em direo ao sul deste pas. As campanhas militares deste pas projetaram o vibrio para o interior da Polnia. O transporte martimo pelo Bltico e pelo Mar do Norte foi responsvel pela invaso da Inglaterra pelo bacilo. Em 1832, a epidemia alastrou-se para a Irlanda, de onde as correntes migratrias da populao rumo Amrica do Norte lograram realizar tambm a emigrao do bacilo. Assim se efetivava, pela primeira vez na histria, a transmigrao do

    7. Esta discusso se baseia em W. H. McNell,Plaguesand ... , op. cit., pp.231-3.

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    clera-morho para o continente americano. Ainda em 1832 a epidemia estendeu-se do Canad para os Estados Unidos, e dali prosseguiu sua rota do sul em direo ao Mxico (1833). A epidemia generalizara-se para todo o globo: a dcada de 1830 marcou a definitiva globalizao da pandemia.

    A estabilizao ou equilbrio da doena - que passava a ser endmica entre as populaes atingidas - devia-se ineficcia de medidas sanitrias, que, como se saberia mais tarde (a partir da revoluo bacteriana do fim do sculo), s se tornariam eficazes pela descontaminao da gua e pela canalizao dos esgotos. Passado algum tempo da acomodao biolgica entre o microorganismo e seu hospedeiro, que ocorria depois de grandes mortandades, novas pandemias recrudesceram na sia e refizeram-se as antigas rotas e o itinerrio do pnico entre as populaes. A partir de 1850, a navegao a vapor e o transporte ferrovirio intensificaram os deslocamentos populacionais e as trocas comerciais. Das antigas rotas hrotavam outros cursos da doena. O Brasil no tardaria a incluir-se nos novos itinerrios.

    Mdicos de nomeada no Brasil, como Jos Pereira Rego, acreditavam que o calor - a proximidade do Equador - defenderia as cidades da infestao pela clera. Ironicamente, a argumentao lembrava a crena corrente poca dos Descobrimentos, segundo a qual os bons ares, o "saudvel temperamento da terra", seriam a garantia de imunidade contra as pestilncias que grassavam ao norte do Equador.8 As esperanas de imunidade se desfizeram em poucos anos. Em 1855, os portos brasileiros j acusavam os primeiros casos de infeco colrica.9 (Ver discusso adiante sobre o Brasil.)

    o combate: organizao sanitria e mtodos

    Fosse pela doutrina dos miasmas -que requeria a drenagem dos pntanos e a remoo das matrias apodrecidas para o combate s enfermidades -, fosse pela teoria do contgio -que exigia o isolamento dos enfermos e a quarentena,

    8. Para uma anlise das crenas sobre a ausncia de padecimentos fsioos e a longevidade dos habitantes do Novo Mundo, ver S. B. de Holanda, Viso doParaso(4a ed.), So Paulo, Ed. Nacional, 1985. "A certeza, alcanada j quase. ao incio dos grandes desoobrimentos martimos, se no antes, de que as pestilncias de bordo prontamente desapareciam ao contato de certas terras privilegiadas" (p. 269).

    9. Os primeiros casos foram diagnosticados em Belm do Par, em maio de 1855. No h dados definitivos sobre a fonte transmissora, mas a chegada de um navio de Portugal comprovveis vtimas de clera, em maio, teria causado a primeira irrupo do flagelo asitico em territrio brasileiro. Ver D. B. Cooper, "The New 'B1ack Dealh': Cholera in Brazil, 1855-1856", Social Science History, vol. lO, nO 4, 1986, p. 239.

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    alm das medidas de saneamento e cuidados com a gua potvel preconizados por John Snow -, o certo que a luta contra a clera veio a gerar uma preocupao, da parte dos governos locais, com a sade e o saneamento.

    Uma questo bsica com que se defrontaram tais governos foi a falta de instrumentos de ao, no apenas de mtodos de ao. Ou seja, no bastava que se preconizasse a remoo do lixo ou o isolamento dos enfermos. Persistia uma questo at ento no resolvida: como colocar em prtica tais medidas? Como estabelecer as normas e como fiscalizar sua execuo? A clera foi, em boa parte, responsvel pelas primeiras iniciativas da organizao sanitria, em resposta a tais problemas. As Juntas de Higiene nacionais, como no Brasil, eram pouco eficazes e deram lugar a aparatos administrativos de sade - ainda que toscos - de mbito local ou regional. J onde havia conselhos locais de sade, no raro se tornaram mais ativos e, ao se multiplicarem, acabaram por exigir a criao de organismos de alcance nacional (quase sempre ete curta durao, como na Inglaterra).

    Na Inglaterra. A ecloso da primeira epidemia de clera, em 1832, foi decisiva para a instalao de Juntas locais de higien~ na Inglaterra. O pavor que afligiu a populao, diante do mal asitico, pressionou o Parlamento a agir, at que a violncia do flagelo se reduzisse a propores endmicas.l0 Quando uma nova pandemia mundial atingiu o territrio ingls, dessa feita os reformadores sociais britnicos foram alm de solues locais, e criaram a Junta Central de Higiene, em 1848. Dirigida por reformadores como Sir Edwin Chadwick, autor, em 1842, de um monumental estudo sobre as condies sanitrias da populao operria da Gr-Bretanha, a Junta procurou limpar as cidades inglesas e instalar novos sistemas de distribuio de guas e esgotos em todo o pas. Chadwick havia desenvolvido um novo sistema de esgotos, de canos de cermica, que desaguariam em depsitos distantes dos aglomerados urbanos. O Plano Chadwick exigia sistemas novos de gua e esgotos e a eliminao compulsria dos antigos. As resistncias da populao no foram poucas, pois o Plano feria os direitos dos particulares, na medida em que, por exemplo, os canos em linha reta atravessassem propriedades privadas. Ajunta Central teve curta durao (1848/1854), mas antecipou o cenrio das novas cidades saneadas da era industrial.

    ,

    No Brasil. A primeira cidade atingida pelo clera-morbo foi Belm, em 26 de maio de 1855, quando os primeiros dois casos foram diagnosticados por um

    10. W. H. McNeill, Plag,ues and... , op. cit., pp. 240 e ss.

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    jovem mdico formado pela Faculdade da Babia. Na Junta Central de Higiene Pblica (criada em 1850 em reao entrada da febre amarela no Pas em 1849), tanto quanto nas poucas Juntas existentes nas Provncias, predominavam os anticontagionistas.

    Nesse contexto, no seria difcil prever que, entre as aes de controle sanitrio propostas por uma comisso mdica especialmente criada pelo governo do Par, no constava a quarentena da tripulao de um navio portugus apartado em Belm, da qual se sabia ter sofrido um surto mortal de clera durante a viagem. To grave quanto o descaso em relao a esse foco de importao da doena foi a permisso das autoridades para que o navio prosseguisse viagem para o sul do Pas. No tardou para que outras cidades costeiras fossem atingidas: em julho, Salvador, Babia, foi acometida. Em poucos meses a doena comeou a gravitar entre os portos de Salvador e o norte do Pas: em 1856 a epidemia j alcanara as Provncias de Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraba e Pernambuco.

    O Rio de Janeiro foi, depois de Belm e Salvador, o foco mais importante de importao do clera-morbo. Os primeiros casos foram registrados ao mesmo tempo em que as primeiras vtimas apareciam em Salvador: julbo de 1855. No Rio, o presidente da Junta Central de Higiene Pblica, professor Francisco de Paula Cn:lido, viu-se forado a preconizar medidas de quarentena - ainda que duvidasse da ao do contgio -, mas o grande movimento de navios no porto acabou por comprometer o cordo sanitrio precariamente implantado em volta da cidade. As provncias mineira e paulista foram poupadas do flagelo, que parecia esmaecer longe das 'reas litorneas. O porto paulista de Santos, entretanto, estava fadado invaso da molstia, ainda que ali ela nlo tenha se abatido com gravidade.

    A clera elegeu Porto Alegre como o ponto extremo de devastao ao sul, em novembro de 1855.11 Atribuiu-se a origem do foco entrada no porto de um navio que j disseminara a doena em Santa Catarina. Uma quarentena foi imposta ao navio, mas alguns passageiros se evadiram, burlando o controle sanitrio.12

    11. Ao norte, a Provncia do Amazonas chegou a contar alguns casos da doena, com baixa letalidade, no ano de 1856. O pequeno foco foi causado, em Manaus e em algumas localidades beira do Amazonas, por tripulantes doentes trazidos por vapores de Belm. Ver R. Braga, "Clera no Amazonas", LeiturG, vol. 10, nO 119, So Paulo, Imprensa Oficial do Arquivo do Estado, abril de 1992, p. 10.

    12. Esses dados sobre a clera no Brasil constam do importante artigo de D. B. Cooper, "The New 'Black ...", op. cito

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    A devastao e o terror causados pela clera junto populao brasileira - mais precisamente, nas cidades litorneas onde o mal se abateu - foram responsveis pela atuao mais destacada, mas nem sempre atravs de mtodos adequados, das Juntas central e provinciais de higiel'le, bem como das autoridades sanitrias locais, em Conselhos de salubridade pblica como o da cidade de Salvador.

    semelhana da reao inglesa ao flagelo, as autoridades brasileiras no ficaram adstritas a iniciativas de polcia mdica -proibio de sepultamento nas igrejas, instrues aos mdicos sobre sintomas e tratamento do mal, estabelecimento de enfermarias de emergncia e, mais raramente, adoo de quarentenas13 -, mas deram ateno ao que hoje chamaramos de saneamento bsico das cidades litorneas. No tocante ao tratamento da doena que residiam os maiores problemas, pois, em sintonia com o saber mdico da poca, preconizavam-se teraputicas ineficazes, como frices de lcool canforado, suadouros e gotas de ludano. No tocante s obras de saneamento, medidas efetivas, como a instalao de redes de esgoto e sistemas de encanamento d'gua, a partir de 1862, em algumas cidades litorneas como o Rio de Janeiro, Recife e Santos, foram a resposta, com algum atraso, invaso da clera (bem como da febre amarela). A companhia City Improvements, formada em 1862, em Londres, mediante contrato para a execuo no Rio de Janeiro de um sistema de esgotos, baseou-se na experincia recente de saneamento de cidades inglesas. Esta experincia foi seguida em outros centros atingidos pela clera, como Santos e Recife, j na dcada de 1870.14 Um novo 'sistema de abastecimento domiciliar de gua foi inaugurado no Rio de Janeiro mais tarde, em 1880, pela administrao pblica.!'

    13. Veja-se L. Santos Filho, Histria Geral da Medicina Brasileira, vol. 2, So Paulo, Hucitec/Edusp, 1991, pp. 208-14.

    14. Note-se que na capital paulista a Companhia Cantareira de Aguas e Esgotos (tamb6m inglesa) s6 completou um sistema modesto, que atendia a uma pequena .-rte da populaAo, em 1885. difci I associar a i mpl a ntao tardia do saneamento em Sio Paulo - em relaio s cidades porturias - apenas ausncia de epidemias do clera-morbo naquela cidade. Entretanto, um sinal importante do impacto sempre considervel causado pelo O.gelo asitico que, finalmente atingida pela clera na dcada de 1890, seguiu-se a eXpilnalo da rede de esgotos e de abastecimento d'gua em So Paulo durante a curta administra60 de Rodrigues Alves frente do governo paulista (1900/1902). Ver J. L. Love,So Paulo iii lhe Brazilian Federatio1l, 1889-1937, Stanford, Stanford University Press, 1980, p. 22; G. M. Greenfield, The Challenge of Growth: The Growth or Urban Public Services in Sio Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de Indiana, 1975, p. 248; R. Graham,Britaill & l#te {},uet ofModernization in Brazil, Londres, Cambridge University Press, 1972, pp. 116-8.

    15. Note-se que a partir de 1850 j se instalava no Rio de Janeiro uma pequena rede domiciliar "com tubos de ferro e aparelhos hidrulicos importados da Inglaterra". Jaime L. 8enchimol

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    Segundo a literatura, quase 200 mil pessoas pereceram, acometidas pela epidemia, durante 1855-1856. Esta cifra se elevaria consideravelmente se fossem includas as mortes ocasionadas por surtos de clerano Cear, Rio Grande do Norte, Paraba, Alagoas e Pernambuco, em 1862, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro em 1867, as vtimas da Guerra do Paraguai abatidas pelo mal, os casos fatais do aparecimento da doena em Mato Grosso em 1887, na capital paulista e nas localidades do Vale do Rio Paraba em 1894. Gradativamente, por fora das novas teorias sobre contaminao e contgio e da aplicao subseqente de medidas enrgicas de quarentena e isolamento e do saneamento das cidades porturias, a letalidade se reduziu e a clera desapareceu das estatsticas nacionais no incio deste sculo (para retornar ao Pas quase no incio de um novo sculo ).16

    Como em nossos dias, tambm no sculo XIX o flagelo abateu-se com violncia sobre as populaes mais pobres e mal-alimentadas, mais propensas utilizao de guas contaminadas, excludas das mnimas condies de higiene que o progresso urbano no Brasil j assegurava s camadas sociais mais altas. A historiografia nota a perda de milhares de negros escravos nas cidades e, particularmente no Vale do Paraba, a perda de grande nmero de escravos pelos fazendeiros. A populao livre, de cor, sofreu igualmente o . impacto letal da molstia. Estima-se que, de modo geral, os negros no Brasil chegaram a dois teros do total de mortos pela clera,I1

    Os casos da Inglaterra e do Brasil foram aqui apresentados como exemplos das relaes entre clera e organizao sanitria. As vastas epidemias de clera no sculo XIX tiveram impacto semelhante sobre todos os demais pases atingidos, quanto organizao sanitria e aos meios de combate das sociedades humanas contra o microparasitismo do Vibrio comma.

    Nos Estados Unidos o flagelo foi considervel em pelo menos trs perodos: entre 1832 e 1834, entre 1849 e 1854 e em 1866. Atingiu todo o pas - dado o grande intercmbio entre as vrias regies, generalizou-se de modo mais intenso do que, por exemplo, no Brasil. Concentrou-se nas maiores cidades porturias como Nova Iorque e Chicago, mas no poupou

    demonstra, no entanto, que a inovao se deveu antes reduo crescente da mo-de-obra escrava que fazia a distribuio da gua das antigas bicas, poos pblicos e chafarizes, do que ooorrncia de epidemias. Ver J. L. Benchimol, Pereira Passos: Um Haussmann Tropica4 Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1990, esp. pp. 65-72.

    16. L. Santos Filho, Histria Geral da..., op. cit., pp. 208-11. 17. Cf. D. B. Cooper, "The New 'Black ...", op. cit., pp. 253-4.

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    o interior; ceifou a vida de pequenos fazendeiros e estivadores, de trabalhadores nas minas de carvo e escravos do eito, mas atingiu tambm as camadas sociais abastadas. De modo similar ao Brasil, os governos criaram rgos sanitrios para o combate epidemia. Ali onde j havia juntas de higiene (como o Board 01 Health de Nova Iorque), suas funes de polcia sanitria foram aperfeioadas e consolidadas. Diferentemente do caso brasileiro, e semelhana dos ingleses, a organizao sanitria teve preponderantemente um carter local. Organizaes de mbito nacional, como a Junta Central de Higiene criada no Brasil pela Coroa, nunca existiram nos Estados Unidos. IS

    A cooperao mdica internacional. Os "medos e terrores" causados pela clera junto s populaes europias, e particularmente a ameaa crescente ao comrcio controlado pelas potncias imperialistas, acabaram por aproximar as autoridades sanitrias de vrios pases em torno de um frum comum de preocupaes.

    A primeira etapa de cooperao internacional teve incio no Egito, em 1831. Os cnsules europeus em Alexandria formaram uma Junta de Sade para operar um posto avanado, na sia, para o rastreamento da "clera maligna" e difuso das informaes epidemiolgicas para toda a Europa.

    Em Paris, em 1851, deu-se o segundo grande encontro mdico internacional para discutir as pandemias de clera. Nessa reunio, as diversas correntes profissionais, sob presso cerrada dos interesses das naes europias, envolveram-se em um duro debate acerca dos mtodos de quarentena e sua eficcia. Os mdicos dos pases mediterrneos, contagionistas, baseavam-se em sua longa experincia de lutas contra a peste bubnica para preconizar a adoo de quarentenas e o isolamento dos doentes para combater o clera-morbo. De outro lado, uma corrente liderada por mdicos e reformadores ingleses insistia nas causas atmosfricas da doena, no papel das emanaes pestilenciais provindas dos pntanos, detritos e esgotos, e manifestavam descrena em relao ao emprego de quarentenas.

    J se viu como o saber mdico pendeu progressivamente para o lado dos contagionistas, na medida em que, desde os estudos de John Snow, o papel da gua contaminada por excrementos e vmitos de doentes se mostrou relevante para a compreenso da etiologia da clera. Quando, em 1883, um

    18. Uma discusso excelente dos anos da clera nos Estados Unidos encontra-se em C. E. Rosenberg, The COOlera Years: The United States in 1832, 1849 and 1866, Chicago, The University or Chicago Press, 1962.

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    grupo de mdicos europeus voltou a reunir-se no Egito, as medidas sanitrias ditadas pelos contagionistas j prevaleciam. Como chefe da comisso alem enviada ao Egito, Koch encerrou de vez o debate entre estudiosos, ao isolar o vibrio causador e determinar seus meios de propagao. 19

    A aplicao de princpios cientficos navegao, intensificando os transportes ocenicos, havia tornado possvel a internacionalizao da clera. Outros avanos cientficos, aplicados pesquisa mdica, permitiam agora o combate sua propagao. Outros campos da cincia - no tocante racionalidade administrativa - viabilizaram o surgimento de organizaes sanitrias nacionais e internacionais, que, desde ento, se integraram definitivamente histria dos povos. Em 1909 despontava o embrio de uma organizao mundial de sade: o Escritrio Internacional de Higiene Pblica, sediado em Paris, com o objetivo de rastrear e estudar possveis surtos de clera e outras doenas infecciosas como a peste e a febre amarela.

    Ao findar sculo XIX, todos os pases europeus e americanos por onde passara o flagelo haviam desenvolvido diferentes estratgias de preveno c combate. A organizao administrativa no campo da sade avanou, com maior ou menor sucesso, em todos os pases. Os melhoramentos das condies de saneamento e abastecimento d'gua foram expressivos, ainda que s raramente beneficiassem as camadas mais pobres da populao. No incio do sculo XX a clera desapareceu pouco a pouco das estatsticas de morbidade e mortalidade do mundo ocidental, em decorrncia do emprego df? mtodos eficazes de quarentena, do progresso nas condies de saneamento das cidades, do tratamento dos mananciais e utilizao do cloro (a partir de 1908)20 e da difuso de padres de asseio pessoal a todas as classes sociais.

    Entretanto, essas conquistas no se consolidaram nos territrios situados no interior do Golfo de Bengala, nos focos asiticos seculares do cleramorbo. Esses verdadeiros nichos ecolgicos da doena persistiram ao longo do tempo como uma ameaa permanente de restabelecimento da cadeia infecciosa mundial que perdurou, por cerca de cem anos, a partir de 1817. Hoje, decorrido quase um sculo depois de eliminada a ltima pandemia mundial, de 1896, um conjunto de fatores faz reproduzir as cadeias de propagao da doena. Desde 1970 a clera tornou-se endmica nas regies

    19. W. H. McNeill, P/agues and ... , op. dt., pp. 245 e ss. 20. Veja-se H. F. Dowling, Fighting lnfection: ronquests ofthe Twentieth renlury, Camhridge,

    Mass., Harvard University Prcss, 1977, p. 15.

  • Um Sculo de Clera: Itinerrio do Medo 91

    do oeste da frica e espalhou-se por outras partes do continente.2i Novos focos de irradiao surgem por todas as regies mais pobres do planeta.

    Um novo captulo ser escrito pela historiografia do sculo XXI, que dever mostrar s futuras geraes o modo pelo qual os enormes bolses de misria em todo o Terceiro Mundo e o crescimento desordenado de cidades com vastas periferias sem gua tratada e rede de esgotos acabaram por fazer recrudescer o temvel mal durante a presente dcada. O conhecimento mdico atual acerca das causas, sintomas e tratamento da doena contrasta com o rastro de dvidas que no passado assediavam a profisso mdica (e, em decorrncia, as autoridades governamentais) em todo o mundo. A clera existe, hoje, como uma doena social e como tal ter de ser combatida pelos governos e pela comunidade. A existncia de antibiticos e de tecnologias mais baratas e eficientes de saneamento bsico, a prpria acomodao entre o microorganismo e os hospedeiros humanos ao longo do sculo - trazendo, talvez, certa reduo na fora letal do vibrio -, indicam que a propagao da doena em nossos dias muito menos um problema mdico do que uma questo urgentssima de reforma sanitria e de redistribuio social da riqueza.

    No tocante histria das epidemias, o historiador William McNeill, escrevendo em 1976 - cerca de dez anos antes do surgimento de uma pandemia inteiramente nova na histria humana, causada pela Aids -, tecia, ento, algumas consideraes tristemente premonitrias. Segundo McNeill, o controle progressivo das relaes ecolgicas entre parasita e hospedeiro, desde 1880, poderia criar certos resultados no antecipados na histria das doenas da humanidade. Por outro lado, as mudanas do vrus da influenza e as mutaes de outros organismos infecciosos permanecem, escrevia ele, uma ameaa para as sociedades humanas. Alm disso, mesmo sem sofrer mutaes, ponderava que parasitas at ento obscuros poderiam escapar de seu nicho ecolgico e expor populaes - cada vez mais adensadas pelo crescimento em escala mundial - a novas experincias de mortalidade.

    Como exemplo da instabilidade e imprevisibilidade dos caminhos futuros do microparasitismo na histria da humanidade, o historiador norte-americano lembra que o prprio bacilo da clera - um tipo novo? -, restrito at ento s Ilhas Clebes (Indonsia), chegou a deslocar o microorganismo "clssico" da regio de Bengala e provocar surtos violentos sem precedentes

    21. Cf. L. Doyal e I. Pennel!, The Politicai Economy ofHealth, Boston, South End Press, 1979, p.132.

  • Vol. 4, Nmero 1, 1994 92 PHYSIS - Revista de Sade Coletiva

    no subcontinente indiano. McNeill mostra-se pessimista sobre as possibilidades de eliminao de todas as formas de microparasitismo: "As doenas infecciosas", diz ele, "certamente permanecero um dos parmetros fundamentais e determinantes da histria humana".22

    II

    Nova Iorque e a clera DO scalo XIX: crnica de uma cidade ameaada

    A seguir traarei brevemente um quadro mais detalhado das. relaes entre a clera e uma comunidade atingida, que traz para o primeiro plano todo um conjunto de valores ticos, atitudes e crenas envolvendo as classes sociais e a profisso mdica, as instituies religiosas e o governo.

    Nossa escolha da cidade de Nova Iorque, devastada inmeras vezes pelo clera-morbo durante o sculo XIX, deve-se riqueza do material histrico publicado at hoje sobre aquela cidade23 e convico de que, em que pesem os diferentes contextos socioculturais de Nova Iorque e, por exemplo, Rio de Janeiro ou Recife, o contato entre sociedades humanas e microorganismos parasitas est associado a certos padres simblicos (doena como castigo divino, maior suscetibilidade ao contgio por parte de pessoas de comportamento social "reprovvel" etc.) que mantm alguma regularidade em diferentes sociedades histricas.

    Charles E. Rosenberg chama a ateno para uma interessante caracterstica da relao entre a clera e as mudanas sociais na sociedade norte-americana. Segundo o historiador, a clera era vista por muitos corno o flagelo dos pecadores em 1832 (data da primeira grande invaso da doena), mas em 1866, por ocasio da terceira grande epidemia, j se generalizara a crena da populao de que a culpa recaa no no pecado, mas na falta de saneamento.24

    Um clima "positivista", "um temperamento mais crtico e emprico" havia substitudo a devoo piedosa nos lares americanos, to caracterstica da mentalidade dos primeiros colonos da Nova Inglaterra. Antes de 1850, prevalecia uma interpretao moral das causas e da incidncia das doenas.

    22. W. H. McNeill, Plagues and ... , op. cit., p. 257. 23. A obra clssica sobre o tema de autoria de C. E. Rosenberg, The Cholera Years ... , op. cito 24. Idem, p. 5.

  • Um Sculo de Clera: Itinerrio do Medo 93

    A imoralidade e o pecado predispunham o indivduo a contrair as "pestilncias" da poca. E as oraes, ainda que insuficientes para a cura, eram consideradas um meio apropriado para obt-la. A medicina domstica, mais do que a profissional, faria o resto. Essas prticas caseiras de cura, com base em manuais de medicina extremamente populares em todo o pas, tornaramse, por vias tortas, um dos meios da secularizao das crenas sobre a origem das enfermidades. A partir de 1850, medida que uma viso mais natural sobre as doenas se difundia, a medicina domstica cedia terreno e abria-se caminho para a consolidao da profisso mdica e da explicao cientfica das febres e pestilncias.

    Em linhas gerais, esse o pano de fundo da relao entre doena, cultura e . sociedade durante o sculo XIX, nos Estados Unidos, que afetar o modo pelo qual a populao nova-iorquina reagir devastao de seus lares pela clera.25

    Nova Iorque, 1832. Os primeiros sinais da penetrao da doena no colheram os habitantes de surpresa. Sabia-se que a ira de Deus s se abateria sobre pagos, maometanos e "papistas" da sia e Europa, ou sobre os miserveis e mal-alimentados de outras terras. Dificilmente, pensavam os nova-iorquinos, a nova peste asitica poderia atingir uma nao que vivia em liberdade, era educada e muito piedosa.

    Entretanto, sabiam, igualmente, que sua cidade era vulnervel, pois possua antros de pecado e vcio, reas apinhadas de gente, sujas e pobres. Mais do que as imundcies, era o pecado que iria atrair a pestilncia. Dizia um jornal local: "A clera no causada pela intemperana e pela sujeira, em si mesmas, mas um flagelo [ ... ] nas mos de Deus".

    s primeiras notcias de que a epidemia havia cruzado o Atlntico e j atingira as populaes de Quebec e Montreal, no Canad, muitos nova-iorquinas abastados comearam a abandonar sua cidade. Os imigrantes irlandeses eram olhados com desconfiana. Eram catlicos, eram pobres, eram diferentes. As suspeitas pareceram se confirmar nos ltimos dias de junho, quando foram diagnosticados os primeiros casos da doena justamente em uma famlia irlandesa.

    A populao mais pobre reagiu energicamente s tentativas da Comisso de Salubridade de hospitalizar os doentes. Os hospitais improvisados na cidade (um, por exemplo, foi montado em uma escola, outro em uma antiga

    25. Consulte-se o livro magistral de Paul Starr sobre as transformaes da medicina na sociedade norte-americana do sculo XVIII aos nossos dias. P. Starr, The Social Transformation of AmericanMedicine, Nova Iorque, Basic Books, 1982.

  • 94 PHYSIS - Revista de Sade Coletiva Vol. 4, Nmero 1, 1994

    agncia bancria) eram considerados, com razo, simples "ossrios" ou casas da morte. Mdicos e funcionrios municipais que tentavam internar os doentes eram espancados e expulsos.

    Por outro lado, a prpria populao discriminava brutalmente os doentes. Ainda que o argumento contagionista tivesse pouco ou nenhum prestgio entre os mdicos, o vulgo temia o contgio pelo contato direto com infectados. Habitantes de outras cidades, por esse motivo, mostravam-se hostis para com os nova-iorquinos que, em fuga, procuravam abrigo em lugares at ento indenes.

    Aqueles que viam na clera uma manifestao da ira divina acabavam por aceitar a profilaxia de sangrias e purgativos, como o calomelano, receitado pelos mdicos e pela Comisso de Salubridade. Os clrigos de todas as denominaes pregavam a necessidade de os fiis seguirem os preceitos da cincia contra as enfermidades, pois aqueles eram tambm os desgnios de Deus. Mas, acima de tudo, a obedincia aos preceitos da vida religiosa protegeria seu rebanho das devastaes mortferas.

    As explicaes cientficas que chegavam aos habitantes eram variadas e ambguas, enfatizando esse ou aquele elemento em um vasto conjunto de fatores morais, mentais, cli,mticos e higinicos. A teoria atmosfrica preponderava e ligava-se convenientemente teoria das predisposies: como a teoria dos miasmas no podia dar conta do fato de que alguns contraam a doena e outros no, em uma mesma rua ou at em uma mesma casa, as predisposies proviam o elo explicativo que faltava quela teoria. Quem vivesse em reas de "emanaes pestilenciais" poderia ser menos predisposto a contrair a clera se vivesse uma vida sem pecado, se trabalhasse dignamente, se se abstivesse de bebidas alcolicas. O povo, entretanto, secretamente, era contagianista: Rosenberg lembra que as autoridades sanitrias tinham sempre uma grande dificuldade de alugar prdios residenciais que pudessem ser transformados em enfermarias. Mais ainda, era extremamente difcil encontrar enfermeiras que aceitassem trabalhar nessas casas de contgio e morte.

    No fim do ano de 1832, a epidemia havia cessado. A alta mortalidade, a fuga dos moradores, a chegada das baixas temperaturas do inverno contriburam para a reduo e eliminao dos focos da enfermidade.26

    Nova Iorque, 1849. Nova Iorque havia crescido muito desde a primeira pandemia, mas de modo algum se tornara mais limpa. Certas reas eram

    26, C. E. Rosenberg, The Cholera Years ... , op. cit., parte 1.

  • Um Sculo de Clera: Itinerrio do Medo 9S

    imundas, miserveis, seus moradores disputando os espaos na rua com os porcos.

    Em 1848, a doena j atravessara o Atlntico e atingira, pelo Golfo do Mxico, o sul dos Estados Unidos. Pelo porto de Nova Orleans e atravs do Mississipi, o mal penetrara no interior do pas. As temperaturas baixas do inverno mantiveram o surto circunscrito regio sul, mas as autoridades j prenunciavam que alcanaria as cidades mais ao norte no incio da primavera. Assim se deu, e em Nova Iorque a Orange Street apresentou o primeiro foco da clera, em um cortio em que viviam dezenas de pessoas. Isto ocorreu em maio, e ainda nesse ms o Board ofHealth municipal montou o primeiro hospital para pacientes (especialmente moribundos) de clera.

    As teorias contagionistas j recebiam maior crdito nessa poca. A populao, que jamais deixara de recear a transmisso pelo contgio fosse ou no pela ira de Deus, fosse ou no por condies atmosfricas adversas e predisposies pessoais "mrbidas" -, sentia-se agora fortalecida em seus temores. Por isso, insurgiu-se contra a Comisso Municipal quanto esta tomou de aluguel o segundo andar de uma taberna para instalao de uma enfermaria para pacientes de clera. A localizao em rea urbana atemorizou os habitantes, que procuraram atear fogo ao edifcio e tiveram de ser contidos por fora policial. Esses hospitais de isolamento representavam, na imaginao popular, lugares onde os poucos mdicos disponveis realizavam experincias com os moribundos. Apenas os abandonados por suas prprias famlias acabavam seus dias nessas pesthouses; famlias respeitveis, dizia-se, no deveriam consentir nem mesmo que seus empregados dessem entrada em tais hospitais, mas que fossem deixados morrer - isolados do contgio - nas residncias.

    Para os moradores aterrorizados de 1849 e 1832, a religiosidade ainda os predispunha fortemente a ver na epidemia o merecido castigo divino para o materialismo e o pecado. Tendo se espalhado por todo o pas, o presidente Taylor chegou a estabelecer um dia nacional de oraes e jejum contra a clera. Como os habitantes de outras regies varridas pela terrvel pestilncia, os nova-iorquinos tambm esperavam que a graa divina iluminasse as autoridades sanitrias. Antes que tal sucedesse, mais de 5 mil pessoas pereceram entre maio e agosto de 1849, ltimo ms da segunda epidemia. (Nova Iorque, na verdade, sofreu menos que outras cidades norte-americanas, onde a clera permaneceu por muito mais tempo.)

    Mas havia alguns sinais de mudana na atitude geral da populao diante da epidemia. Ainda se recriminavam os "excessos sexuais", a intemperana, a existncia de bbados e prostitutas, ainda se via a ira divina no recrudes

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    cimento da clera. Mas, na tenso entre a moral, a religio e a cincia, esta comeava a ganhar mais espao nas mentes dos indivduos. Havia at mesmo lderes da pequena comunidade mdica - cuja autoridade se consolidaria depois de meados do sculo - que partilhavam uma viso talvez piedosa sobre as enfermidades. Por exemplo, um professor de medicina da Filadlfia chegou a afirmar a seus estudantes que apenas a vontade de Deus poderia explicar a volta da epidemia tantos anos depois. Entretanto, esta era, j, uma voz isolada. A autoridade profissional procurava alicerar-se sobre explicaes de natureza cientfica, que enchiam as pginas das revistas mdicas. "Deus parecia fora de lugar em uma revista mdica", esclarece Charles Rosenberg.27

    O progresso das cincias naturais parecia colocar ao alcance das autoridades sanitrias certas leis sobre a incidncia das doenas e suas causas. Mas a tenso persistia na metade do sculo: uma curiosa mistura de cincia e religiosidade seria, talvez, a caracterstica predominante. Um interessante exemplo do clima predominante pode ser visto na explicao sobre clera e conduta moral, que fazia uso de uma argumentao "cientfica": um clrigo do Estado de Indiana afirmava ter concludo, depois de somar as mortes por clera em sua comunidade, que havia "uma diferena de 55 para 17 em favor dos hbitos de uma vida religiosa". A tenso entre cincia mdica, religio e moralidade perduraria, ainda, no decurso das ltimas dcadas do sculo XIX.

    Nova Iorque, 1866. Os Estados Unidos acabavam de enfrentar uma Guerra de Secesso, e a clera retornou s grandes cidades que atacara j por duas vezes, em 1832 e 1849. A epidemia difundiu-se indiscriminadamente entre unionistas do Norte e confederados do Sul. Entretanto, Nova Iorque foi poupada dos rigores do flagelo. A epidemia, que refizera o itinerrio siaEuropa-Amricas, reduziu-se a um breve surto na cidade de Nova Iorque, durante o vero de 1866, provocando apenas uma frao das mortes ocasionadas em 1849. O que mudara, desde ento?

    A grande mudana se deu no mbito da organizao sanitria da cidade, fruto de nova legislao estadual. A antiga Junta de Higiene de Nova Iorque era alvo de crticas constantes e cinco propostas de mudanas na legislao existente j haviam sido apresentadas s duas Cmaras Estaduais, sem sucesso. Um grupo de cidados reformistas formou uma Citizen's Association e esta associao civil, por sua vez, inspirou vrios mdicos a conduzirem um levantamento das condies sanitrias da cidade. As concluses do relatrio, publi

    27. Idem, p. 127.

  • .

    1 l

    Um Sculo de Clera: kinerrio do Medo 97

    cado em 1865, foram alarmantes. Uma nova proposta de reforma da organizao da sade foi redigida por um conselho da Associao.

    No incio de 1865, ante a ameaa de chegada da epidemia, os grupos reformistas acreditaram que, afinal, existia clima favorvel para uma nova legislao. As reformas realizadas em Londres e Paris e em algumas cidades nos Estados' Unidos, como Providence e Filadlfia, eram citadas como exemplos a serem seguidos. Argumentava-se que uma nova Junta de Higiene, mais atuante, com funes e poderes ampliados, no apenas protegeria a cidade de Nova Iorque contra epidemia, mas ainda melhoraria em definitivo as prprias condies sanitrias das habitaes e vias urbanas.

    Em fevereiro de 1866, sob a presso dos grupos profissionais e demais setores das classes mdias, a Assemblia Legislativa aprovou uma lei que criava um Distrito Sanitrio Metropolitano, compreendendo os municpios de Nova Iorque, Queens e vizinhanas. Estabelecia-se tambm a Junta de Higiene Metropolitana, cujo mbito de atuao se estendia a toda a rea do Distrito. Os membros da Junta deveriam ser higienistas e esperava-se que as nomeaes no tivessem carter poltico. Ela seria formada por um presidente, quatro comissrios de polcia (sic), um inspetor de sade dos portos e quatro mdicos . . A organizao administrativa, porm, seria insuficiente (apesar do poder

    de pnlcia assegurado Junta recm-criada) para prevenir o avano da epidemia. Era preciso que a Junta se apoiasse em preceitos corretos de sade. Ora, a dcda de 1860 ainda estava longe das descobertas bacteriolgicas que dariam novo embasamento cientfico s polticas sanitrias da poca. Rosenberg alerta para o perigo de criarmos um cenrio inexistente: a Junta de Higiene Metropolitana no estava adiante de seu tempo. A antiga tenso entre cincia e religiosidade persistia. Os miasmas ainda proviam as explicaes mais correntes sobre a origem da doena.

    Entretanto, os resultados positivos das quarentenas nas poucas oportunidades ein que eram adotadas cori. rigor, a experincia de John Snow na Inglaterra e o impacto crescente de suas idias, a ineficcia de medidas sanitrias que se restringiam drenagem de pntanos e limpeza das cidades para eliminar os temidos miasmas, este conjunto de fatores acabou por criar um terreno favorvel aos contagionistas. Mais que isso, medida que as teorias sobre as causas atmosfricas cediam terreno, a clera passava a ser considerada uma molstia "especfica", com caractersticas prprias. J perdiam crdito, entre os ,facultativos, as teorias nebulosas sobre as diarrias poderem transformar-seem clera, sobre esta se converter em tifo etc. "Mdicos que acreditassem em algum tipo de 'teoria dos germes' eram

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    ainda uma minoria insignificante", afirma Rosenberg, "mas j eram ouvidos; no eram desprezados com palavras casuais de zombaria".28

    Muitas outras cidades norte-americanas, como Chicago, passaram a adotar esquemas de organizao sanitria pautados no exemplo de sucesso que se atribua Junta de Higiene Metropolitana de Nova Iorque. O evangelho da sade pblica competia agora com o da moral e da religio. Ainda que as "predisposies mrbidas" fossem sempre de natureza moral ou religiosa vida desregrada, "lascvia" etc. -, estas causas imediatas se harmonizavam perfeitamente com as teorias contagionistas, do mesmo modo cOmO se harmonizaram em 1832 e 1849 com as no-contagionistas, que tratavam das causas ltimas da doena. Ou seja, no interior de uma comunidade exposta ao contgio sempre haveria algumas boas almas poupadas pela clera. Inversamente, os mais predispostos seriam os pecadores, os homens e mulheres de m conduta. Mas a partir de meados da dcada de 1860, esse conjunto de crenas coexistia com um credo social reformista, com uma moral higienista. A populao, atenta at ento somente prdica dos plpitos, voltava-se tambm para o credo dos mdicos, advogados e polticos ligados reforma sanitria.

    Depois das mudanas na legislao e nas aes conduzidas pela Junta de Higiene Metropolitana de Nova Iorque, "nenhuma cidade poderia chamar-se civilizada se negligenciasse temas to mundanos como esgotos, escoadouros e pOOS".29 Quanto higiene pessoal, prescreviam-se cuidados dirios com a limpeza corporal, a ateno aos banhos e ao asseio dos lares - nada disso se chocava com os valores puritanos dos protestantes. A preocupao com a sade espiritual deveria somar-se ao zelo com a higiene do corpo. A epidemia de clera, pregava o reverendo George Templeton Strong, " o julgamento de Deus sobre os pobres por descuidarem de Suas leis sanitrias".30 Curiosa combinao das leis de Deus com os preceitos do novssimo evangelho da higiene pblica.

    Se se compararem os trs perodos de invaso da nova peste, a fora das explicaes religiosas era ainda expressiva, mas se reduzira consideravelmente poca da terceira epidemia nos Estados Unidos. Por exemplo, o jejum, como atitude piedosa e pedido de clemncia ira de Deus, s raramente foi prescrito pela Igreja durante a terceira epidemia.31 Quanto ao poder temporal, o incremento do poder dos sanitaristas (tanto mdicos como

    28. Idem, p. 199. A discusso mais ampla sobre este ponto est em todo o captulo XI. 29. Idem, p. 215. 30. Apud idem, p. 217. 31. Idem, p. 220.

  • Um Sculo de Clera: Itinerrio do Medo 99

    engenheiros, advogados e outros profissionais militantes da nova causa) no se fizera acompanhar do acrscimo de prestgio entre os mdicos clnicos. O poder de cura era reduzido, e talvez se possa dizer que a prescrio de remdios menos violentos, por ocasio dos ltimos surtos, pudesse ser mesmo responsvel pelo menor nmero de bitos . Mas o argumento qa.e prevalecia era, sem dvida, o preventivo, no o curativo.

    Se, para os norte-americanos, a pandemia que colheu o pas em 1832 parecia ser, preponderantemente, um reflexo de problemas de ordem moral, em 1866 transformara-se - semelhana de cento e tantos anos depoisem questo social. Os valores cientficos, em sentido amplo, haviam abandonado a velha roupagem "racionalista" e vestido a do "empirismo". Esta nova mentalidade afetava os escritos mdicos, a imprensa e, como vimos, at mesmo o plpito.32 A clera atuara como uma fora catalisadora de mudanas no clima intelectual de toda a Amrica do Norte, projetando a sade pblica para o centro dos valores e preocupaes dos indivduos.

    At que ponto os preceitos da Junt~ de Higiene Metropolitana de Nova Iorque foram seguidos? At que ponto as desinfeces, o isolamento e a quarentena foram empregados com rigor? Os bolses de pobreza da cidade foram servidos por sistemas de esgotos e ganharam acesso a poos de gua no-contaminada? A literatura no proporciona respostas seguras a estas questes. Mas no resta dvida que Nova Iorque foi poupada dos rigores da pandemia de 1866 e a clera jamais volt~u a assumir propores graves como no passado. O certo que, sob o ngulo da mentalidade cientfica e das polticas governamentais, os crditos atribu dos ao desempenho da Junta de Higiene Metropolitana de Nova Iorque pela opinio pblica fossem ou no totalmente merecidos - produziram um efeito multiplicador em toda a sociedade american~ e contriburam para a consolidao da reforma sanitria, particularmente nas regies mais ricas do pas.

    m

    A histria comparativa traz sempre possibilidades inesgotveis para que um mesmo fenmeno social seja reavaliado sob mltiplos ngulos. Assim com a histria da clera. Um observador norte-americano, por exemplo, partindo da experincia isolada de seu pa s, concluiria que rgos locais de

    32. Idem, pp. 214,228 e 232.

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    sade pblica (a exemplo dos existentes cm grandes cidades como Nova Iorque, Chicago e Boston) teriam sido suficientes para desencadear a reforma sanitria e a renovao urbana em todo o mundo. No entanto, se ele se debruasse sobre experincia brasileira com a clera" vcrificaril que rgos centrais - nossa Junta Central de Higiene Pblica - tiveram papel destacado na criao de normas e na agitao do tema das epidemias em todo Brasil. A distinta formao do Estado nacional cm cada um desses pases e seu relacionamento diferenciado com a sociedade marcaram profundamente o carler e a funo dos aparelhos administrativos no campo da sade pblica nos dois pases,33

    Outras singularidades merecem destaque. Nas naes anglo-saxs, a estreita vinculao das "doenas pestilenciais" religio e moral - como um castigo divino aos pecadores - marcou fortemente as crenas das elites e da populao em geral. Alguns lderes do movimento sanitrio nos Estados Unidos e na Inglaterra foram at mesmo homens de "profundo senti~ menta religioso".34 Os estudos histricos sobre o Brasil, apesar de indicarem a grande participao das irmandades e outras associaes religiosas no tratamento dos doentes e no estabeledmento enfermarias de emergncia,35 no esclarecem as diferenas entre as concepes protestantes e catlicas sobre a origem das enfermidades. Aparentemente, as crenas existentes no seio da populao brasileira no estabeleciam, de modo to patente como nos pases protestantes, os elos entre condutas ditas pecaminosas e a irrupo das epidtmias. Mas havia, sem dvida, julgamentos dt natureza moral sobre a maior suscefibilidade pessoas de vida irregular, como prostitutas, contrarem doenas malignas como a clera.

    Uni aspecto bastante peculiar aos norte~americanos era a atribuio aos imigrantes da responsabilidade pela difuso das doenas. As crenas sohre o contgio facilitavam tais suposies. Como vimos, mesmo em pleno apogeu da explicao masmtica populao norte-americana permanecia das noes contagionistas. Os pohres em geral - por levarem vida "irregular" e por st:r a prpria pobreza uma afronta a Deus - eram considerados uma fonte certa de contgio. Os negros nesse "grupo de risco" Mas para toda a populao, e mesmo para os pobres, eram os imigrantes o objeto especial de

    Uma anlise evoluo sade pblica Brilsil, no quadro mais amplo da formao do Estado nacional, encontra-se em L. A de Castro Santos, Power, Ideology and Public Health in Hrazil, 1889-1930, Tese de Doutomdo em Sociologia, Universidade de Harvard, 1987.

    34. Idem, pp. 228-9. . L. Santos Filho, Hislria Geral da..., op. p. 10.

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    discriminao. Os irlandeses, na m?";'lria muito pobres e moradores em reas miserveis das cidades, e alm disso catlicos, recebiam em cheio a carga da culpa pelo alastramento das epidemias. Se a histria mostra, hoje, que as correntes imigratrias - na falta de medidas rigorosas de quarentena e isolamento - estabeleceram de fato um elo de propagao das epidemias entre pases e continentes, tambm fato que a atribuio indiscriminada de culpa ao estrangeiro foi, e ainda pemlanece em nossos dias, um mecanismo perverso de transferncia de responsabilidades s minorias. Em suma, as vtimas transformam-se em culpados. No caso norte-americano, a discriminao cedo cristalizou-se em estigma brutal contra os irlandeses.

    No Brasil a situao foi outra. Por ocasio das investidas mais graves da doena os movimentos migratrios internacionais ainda no buscavam o Brasil. S mais tarde, durante os anos de 1880, teve incio o movimento de entrada de grandes contingentes de europeus nos portos brasileiros, que se estenderia durante vrias dcadas. Esse perodo, todavia, foi posterior s epidemias do clera-morbo no Pas. Esclarea-se, no entanto, que nem sempre as minorias foram poupadas. falta de um grande nmero de imigrantes durante as epidemias, a atribuio de responsabilidade pela disseminao da molstia atingiu, por exemplo, um pequeno grupo de ferrovirios irlandeses, empregados na construo do trecho inicial da Estrada de Ferro D.Pedro II (hoje Central do Brasil), prximo Capital.36 Dizia-se que esses estrangeiros viviam na "intemperana" e no desregramento sexual, tornando-se por isso vtimas fceis da clera, disseminando-a pela populao brasileira. De modo geral, o estigma do risco de contgio recaa igualmente sdbre brasileiros que se julgava terem conduta moral duvidosa: nesse caso, os negros - livres ou escravos - no escapavam discriminao.

    A profisso mdica gozava de menor prestgio nos Estados Unidos do que no Brasil: aqui o tradicionalismo e o conservantismo das elites abriam menor espao s seitas mdicas do que nos Estados Unidos, a tradio centralizada da Monarquia permitia algum controle do exerccio profissional nas cidades e nossas tradies ibricas de ensino mdico eram responsveis por normas mais rgidas de formao dos facultativos brasileiros. (Charles Rosenberg revela o d~scrdito de que padeciam os mdicos nos Estados Unidos at pelo menos 1850, ao notar que os Estados da Carolina do Sul, Maryland e Nova Iorque chegaram a remover, entre 1838 e 1844, todas as restries legais ao exerccio da profisso mdica.37)

    36. a. D. B. Cooper, "The New 'Black' ... ", op. cit., p. 248. 37. C. E. Rosenberg, The Cholera Years ... , op. cit., p. 155. Veja-se, tambm, sobre o "antipro

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    Mas no apenas nos Estados Unidos havia o que hoje denominamos medicina alternativa. Mdicos homeopatas - seguidores da lei dos similares, defendida pelo mdico alemo Samuel Hahnemann - tinham boa clientela no Brasil, particularmente nas camadas sociais abastadas. Sua penetrao junto s elites ainda na primeira metade do sculo XIX quando mal se consolidara o ensino mdico nas Escolas do Rio de Janeiro e da Sah ia - fez com que ganhasse considervel legitimidade, apesar das resistncias dos profissionais "alopatas". At o fim do sculo XIX, escreve Lycurgo Santos Filho, a homeopatia teve "notvel impulso" no S rasil.38

    Nesse sentido, em que pesem as distines j assinaladas, o cenrio profissional guardava algumas semelhanas entre os dois pases. Durante as epidemias de clera nos Estados Unidos e no Brasil, os homeopatas tiveram papel destacado, juntamente com mdicos "botnicos" e adeptos da hidroterapia (que praticavam a cura pelas guas) . As epidemias abriam espao para tratamentos alternativos. Quando a populao se desesperava diante do fracasso do emprego de mtodos tradicionais para o combate aos surtos devastadores, no havia meios de cercear o exerccio profissional s mais variadas denominaes mdicas.

    Nas cidades norte-americanas, segundo Rosenberg, ainda que a maioria dos mdicos continuasse a seguir a teraputica tradicionalmente violenta (sangrias, suadouros, vomitrios), os mdicos das escolas de elite como Harvard e Pensilvnia, ou formados em clnicas de Paris, Londres ou Dublin, reagiram ao avano das teraputicas rivais adotando tratamentos menos traumticos e uma viso mais crtica sobre os ensinamentos tradicionais. No espao criado pela fragilidade do saber mdico tradicional e por seu insucesso diante da clera avanaram ainda mais as doutrinas e prticas concorrentes. Sociedades mdicas homeopticas, como as de Nova Iorque e Pensilvnia, ganharam voz no interior das Juntas de Higiene e em cidades como Nova Iorque homeopatas conquistaram o direito de dirigir algumas enfermarias para pacientes de clera.39

    No Brasil, os mtodos menos violentos preconizados pela homeopatia no tratamento da clera tambm granjearam popularidade. Aos medicamentos

    fissionalismo" que vigorou durante o perodo jacksoniano, P. Starr, The Social Transformatima..., op. cit., cap. 1.

    38. Os homeopatas baseiam-se na lei dos efeitos similare$, segundo a qual o medicamento correto, se aplicado a pessoas ss, produziria nestas os sintomas do doente. Consultar L. Santos Filho, Histria Geral da..., op. cit., pp. 388-402; e A. Porto, A Participao dos Homeopatas na Epidemia de Cholera-Morbus de 1855, Casa de Rui Barbosa, 1991, mimeo.

    39. C. E. Rosenberg, The Cholera Years .. . , op. cit., pp. 223-4.

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    prescritos para o tratamento - Veratrum album, Cuprum metalicum e Arsenicum album - atribua-se a vantagem adicional serem tambm indicados para a preveno do mal. 40 Alm disso, durante a epidemia de clera os homeopatas no descuravam de a populao a cuidar da higiene pessoal e dos hbitos alimentares. A simpatia que conquistaram junto populao se traduziu, por exemplo, no sucesso promoo de subscries entre negociantes cariocas para custear uma enfermaria homeopata na Santa Casa. Segundo dados colhidos pela historiadora Angela Porto, a mortalidade entre pacientes com clera nas enfermarias homeopatas da Santa Casa de Misericrdia do Rio de Janeiro teria sido pelo menos a metade da mortalidade verificada nas outras enfermarias.41

    Houve importantes no modo qual as naes e as Amricas sofreram os efeitos do flagelo. Fundamentalmente, a epidemia teve um carter "poltico" na Europa do que no continente

    Como salienta Richard Evans, "a progresso do flagelo atravs da Europa na dcada 1830 foi marcada por uma de motins e agitaes em quase todos os pases".42 A populao julgava-se vtima de um compl dos governantes ou das elites para reduzir o nmero de pobres, envenenando-os. Poucos acreditavam, ento, que se tratava de uma nova doena. Na Hungria, em 1R31, depois de um violento surto de clera, uma multido saqueou castelos e assassinou nobres, responsabilizando-os pelo "envenenamento" de poos e reservatrioS utilizados pela populao.43 Por outro lado, adotados pelos os cordes sanitrios produziam dificuldades a livre circulao de bens e vveres, reduzindo sua disponibilidade e elevando os preos. Nesses casos, a populao revoltava-se contra essas medidas consideradas draconianas, e envolvia-se em distrbios e lutas contra as autoridades.44

    As conseqncias da agitao popular cedo se fizeram sentir. Na Inglaterra, em seguida onda de protestos em outras regies da Europa, as

    40. Consulte-se o cuidadoso trabalho Porlo, A Participao dos ..., cit., 4. 41. Idem, pp. 5-6. 42. R.J. Evans, "pidemies et Rvolutions: LeOlOlradans l'EuropeduXIXe. Siecle",inJ. P.

    Bllrdet el Peurs et Terreurs ... , cil., 117. (Traduo de "Epidemies and Rcvolutions: Cholera in Nneteenth-Century Europe",Past and Present, vol. 120, agosto de j Q88, pp. 123-46.)

    43. p. 44. A exemplo do que ocorreu em Konigsberg, na Prssia Oriental, em 1831. Idem, pp. 125 e

    127.

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    medidas oficiais de quarentena e de hospitalizao em massa foram suspensas. Em 1832, no s a Inglaterra, mas a ustria e a Rssia j haviam abandonado aes rigorosas de combate disseminao da doena. Como se v, as agitaes sociais contra a polcia sanitria acabaram somando-se fora das doutrinas liberais para reduzir e mesmo eliminar, durantes dcadas, as prticas de quarentena e de isolamento de doentes na Europa.

    No se afirma aqui que a clera fosse a "causa" de levantes revolucionrios,45 ainda que fosse considerada por muitos, poca, "uma infeco revolucionria". Na verdade, ela se fez presente durante perodos conturbados da histria poltica europia do sculo passado, mas no chegou a constituir um fator determinante das agitaes populares. Por vezes, foi claramente uma conseqncia das crises sociais e de perodos crticos de pobreza e escassez de alimentos.

    No continente americano, nada houve que se assemelhasse aos temores da populao europia de que fosse vtima de planos de extermnio por parte dos governos, por meio do envenenamento das guas dos poos. Quando a clera atravessou o Atlntico, as populaes amerieanas j acreditavam na existncia de uma nova doena, de uma nova Peste, cuja devastao nada tinha a ver com supostos planos de envenenamento dos pobres.

    Na Amrica do Norte, onde o industrialismo e a circulao comercial foram intensos durante o Sculo da Clera, as presses contra as aes impopulares de polcia sanitria tambm se teriam feito sentir se - enfatize-se a condicional - tais medidas tivessem se pautado pelo mesmo rigor com que foram implementadas pelas autoridades europias. Entretanto, na ausncia de medidas rigorosas na Amrica do Norte ---=- em parte pela prpria notcia das revoltas populares europias, em parte pela fragilidade e inoperncia dos rgos sanitrios locais, em parte pelo descrdito das teorias contagionistas - atenuou-se a dimenso poltica da epidemia. Os distrbios resumiram-se aos protestos em cidades como Nova Iorque U referidos em seo anterior) contra a instalao de enfermarias para colricos em zonas residenciais.

    A incurso da clera no Brasil revelou-se tambm diferente da experincia europia. A Casa de Bragana brasileira no foi incomodada por motins ou revoltas relacionados com a entrada do flagelo, como se dera por exem

    45. Do mesmo modo, a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em 1904, no foi causada pela polcia sanitria de Oswaldo Cruz, mas decorreu de um conjunto de fatores de ordem social e poltica, aos quais se sornou a questo da vacina corno um elemento detonador da Revolta. Veja-se L. A. de Castro Santos, Power, Ideology ... , op. cit., pp. 108-18, esp. p. 111.

  • Um Sculo de Clera: Itinerrio do Medo 105

    pIo com os Habsburgo. A grande popularidade das doutrinas sobre os miasmas, em relao ao contagionismo, desestimulou a adoo daquelas prticas de controle sanitrio responsveis pela resistncia popular na Europa. Por outro lado, mesmo quando providncias mais severas de controle passaram a ser adotadas, os interesses comerciais, de pequena expresso, pouco tiveram a perder com as polticas de quarentena e outras limitaes livre circulao de bens e pessoas. Assim, tudo indica que, proporo que a clera seguia seu curso da Europa para as Amricas, perdia gradativamente o impacto poltico. Despolitizava-se, por assim dizer.

    Retomando, por fim, o curso global da doena, durante todo o sculo XIX a epidemia nutriu-se de condies propcias para o alastramento do vibrio: significativos movimentos populacionais entre pases e continentes, urbanizao rpida e proliferao de habitaes coletivas nas cidades, baixos padres de higiene, redes de esgotos e de suprimento d'gua precrias ou inexistentes.

    Como sugerimos no incio deste artigo, visto de modo global o flagelo da clera trouxe uma verdadeira ruptura epidemiolgica na histria das sociedades do sculo XIX. Por caracterizar-se como um forte rompimento na "convivncia" entre microparasitas e hospedeiros humanos, atingiu todas as faixas etrias da populao; desencadeou pnico e dor no seio das famlias atingidas pela epidemia, particularmente entre os pobres e desnutridos; mobilizou as populaes contra minorias, estigmatizadas por razes morais ou religiosas; fortaleceu o papel de lderes religiosos, abalou o prestgio de antigas doutrinas mdicas e abriu espao para a concorrncia de doutrinas

    . rivais; estimulou governos e aparelhos administrativos no combate doena e a criao de uma "polcia mdica" em diversos pases.

    Essa ruptura, de carter universal, assinalou as condies de surgimento e o impacto epidemiolgico da clera. No se conclua, entretanto, que as marcas profundas deixadas pelo flagelo na histria do sculo XIX se traduzam apenas pelo nmero de mortos que provocou. A importncia do fenmeno durante todo o sculo XIX deveu-se antes a seu impacto psicolgico, social e epidemiolgico, destacado no presente estudo, do que a razes estritamente demogrficas. A clera no esteve entre as primeiras causas gerais de mortalidade durante aquele sculo, a no ser em perodos curtos, de epidemias ou de surtos localizados, como em 1831-32, 1854 etc. 46 Se

    46. No Brasil, como j nos referimos, estima-se em mais de 200 mil o nmero de mortes causadas pelo cholera-morbusem todas as provncias entre 1855 e 1894. Cf. L. Santos Filho,

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    excetuarmos as molsticas causadoras de mortalidade infantil, como a escarlatina, a difteria e o sarampo, as doenas que mais ceifaram vidas naquele sculo foram a tuberculose e o tifo. 47 Precisamente por terem se firmado na memria coletiva como um evento cotidiano, como uma visita "esperada", essas doenas no tiveram o efeito psicolgico devastador que a clera trazia sobre as populaes ameaadas.

    O mpeto com que assolava as populaes durante perodos curtos, tomando-as, literalmente, de assalto; a violncia com que derrubava suas vtimas, tais eram as caractersticas terrveis da penetrao da clera - no era raro que pessoas que estivessem aparentemente ss pela manh, revelassem sintomas gastrointestinais muito fortes pela tarde e falecessem ao anoitecer.48 Em que pese o efeito demograUico reduzido, a "clera asitica" teve conseqncias dramticas em todo o mundo, que procurei assinalar no presente texto. No rastro das conseqncias que trouxe para a histria epidemiolgica da humanidade, o itinerrio de dor e medo foi seu mais triste legado.

    Apesar de revelar em J1ossos dias reflexos demogrficos ainda mais reduzidos, seu itinerrio cruel se refaz entre as populaes mais pobres do Terceiro Mundo. Tampouco se configura boje uma nova "ruptura epidemiolgica", no sentido rigoroso do termo. Mas de que servem estas consideraes para uma famlia de peruanos, brasileiros ou indianos, quase sempre os mais miserveis e famintos, ao serem atingidos brutalmente pela doena?

    Histria Geral da... , op. cit., pp. 208-11; e D. B. Cooper, "The New 'Black... ", op. cit., p. 251. Na Inglaterra, a maior devastao se deu por ocasio da segunda e terceira epidemias, entre 1848 e 1854- cerca de 250 mil mortes devidas clera . Consulte-se R. Hodgkinson, ed., Public Health in the Victorian Age, vol. 1, Londres, Gregg Intemational Publishers, 1973, esp. "Introduction", p. 3.

    47. Consulte-se L. Doyal e I. Penne", The Politicai Economy ..., op. cit., p. 54. 48. Esta ao violenta e rapidssima da clera sobre a populao....., particularmente sobre a

    populao mais pobre e subnutrida -, assinalada por Donald B. Cooper, ainda se observa em nossos dias em pases do Terceiro Mundo. (O Brasil, entretanto, tem revelado poucos casos de morte, devido rpida hospitalizao das vtimas. A fndia apresenta a situao mais trgica deste ponto de vista.)

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    RESUMO

    Um Sculo de Clera: Itinerrio do Medo

    A sociologia histrica tem no mtodo comparativo uma de suas ferramentas de trabalho imprescindveis. Ao focalizar um sculo de epidemias de clera em alguns pases, o autor procurou demonstrar como um mesmo fenmeno histrico-social, estudado comparativamente, revela contrastes marcantes em seu impacto sobre a cultura, a sociedade e a poltica, em distintos lugares e atravs do tempo. Por exemplo, os diferentes processos de formao do Estado nacional marcaram profundamente a natureza dos aparelhos administrativos em pases diversos, levando cada nao a desenvolver organizaes sanitrias diferenciadas e modos diferenciados de combate s epidemias de clera. Por outro lado, a anlise histrico-comparativa permite entrever, no interior de cenrios dissimilares, alguns padres regulares de relacionamento entre doena e sociedade. Assim que, apesar das diferenas que afetaram, em diversas comunidades nacionais, os valores ticos, as crenas e os comportamentos das classes sociais, da profisso mdica, dos grupos religiosos e dos governos diante da clera, houve alguns padres simblicos praticamente invariveis: a anlise comparativa permitiu detectar, por exemplo, que, fosse no Rio de Janeiro ou em Nova Iorque de meados do sculo passado, a clera era considerada por todos um castigo divino, que atingia primeiramente as pessoas de comportamento social "reprovvel". Neste artigo, o relato da tragdia humana vivida por Nova Iorque diante da clera atende a um duplo objetivo: revelar como uma sociologia do cotidiano pode demonstrar a complexa interao doena, indivduo e sociedade em uma metrpole do sculo XIX; e como, na anlise de outra experincia histrica - a norte-americana -, pode-se descobrir fortes contrastes e semelhanas com o Brasil, fazendo do estudo de outra realidade um desafio para o conhecimento dos modos de enfrentamento da doena epidmica pela populao brasileira. Considerando-se seus efeitos macro-histricos, o aumento dos nveis de mortalidade foi bem menos brutal que seu impacto social e psicolgico - o terror gerado pela clera no cotidiano das famlias. Do ponto de vista epidemiolgico, viu-se neste artigo que as epidemias foram geradas na sia por uma grande ruptura no equilbrio entre microparasita e hospedeiro humano - ruptura resultante, por sua vez, dos movimentos populacionais intensificados pelo imperialismo europeu. Partindo da ndia,. as ondas epidmicas propagaram-se velozmente pela Europa e Amricas, afetando sobretudo as populaes mais pobres e residentes em

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    reas insalubres. Este o quadro geral discutido no presente artigo, em que a sociologia histrica toma de emprstimo epidemiologia histrica de William McNeill algumas de suas anlises mais esclarecedoras.

    ABSTRACT

    A Century ofCholera: An Itinerary ofFear

    The comparative method is one of historical sociology's indispensable tools. Focusing on a century of cholera epidemics in a number of countries, the present comparative study endeavors to show how one sarne historicalsocial phenomenon displays sharp contrasts across time and space in the impacts it has on culture, society, and politics. For example, dissimilar state-building processes have left deep marks on the nature of administrative apparatuses in different countries, leading each nation to develop its own distinct forms of sanitary organizations and its own ways of combating cholera epidemies. At the sarne time, historical comparative analysis makes it possible to pick out patterns of relationship between illness and society within these differentiated contexts. Despite their differences, in various national communities the ethical values, beliefs, and behavior patterns that social classes, the medical profession, religious groups, and government administrations have displayed towards cholera reveal certain practically invariable symbolic patterns. Comparative analysis' made it possible, for example, to detect that in the mid-nineteenth century everyone in Rio de Janeiro as well as in New York saw cholera as a punishment from God, a disease which struck first at those whose social behavior was "censurable". There is a twofold purpose in this article's narration of the human tragedy of the New York experience with cholera: (1) to show how a sociology of evereyday life can reveal complex interactions between iIlness, individual, and society in a nineteenth-century metropolis and (2) to show how the analysis of a different historieal experience - in this case, the United States - can uncover strong contrasts and similarities with Brazil. Such knowledge of another reality is a challenge in learning how the Brazilian population has faced this epidemie disease. ln terms of the disease's macrohistorical effects, rising death rates had a less brutal impact than social and psychological factors, that is, the terror sparked by cholera within the day-to-day lives of families. From an epidemiologieal viewpoint, the article tells how these epidemies were products of a major breakdown in the

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    balance between microparasite and human host in Asia, a breakdow that can be traced to intensified population migration prompted by European imperialism. Starting out from India, these epidemi waves swept swiftly across Europe and the Americas, affecting above alI poor populations and those residing in unhealthy areas. This is the general piGture discussed in the present article, in which historical sociology borrows some of William McNeill's more enlightening analyses in historical epidemiology.

    RSUM

    Uo Siecle de Cholra: Itioraire de la Peur

    La mthode comparative est l'un des outils de travai I essentiels de la sociologie historique. En concentrant l'attention sur un siecle d'pidmies de cholra dans quelques pays, on s'est attach ici dmontrer comment l'tude compare d'un mme phnomene historique-social rvele des constrastes marqus selon les endroits et les poques, en matiere d'impact sur la culture, la socit et la politique. Par exemple, les divers processus de formation de I'tat National ont marqu profondment la nature des appareils administratifs dans divers pays, entrainant chaque nation organiser des services sanitaires diffrencis et des modes diffrents de combar contre les pidmies de cholra. D'un autre cte, l'analyse historique compare permet d'entrevoir l'intrieur de scnarios diffrencis, quelques modeles constants dans la relation entre maladie et socit. Malgr les diffrences qui ont affect dans diverses communauts nationales, les valeurs thiques, les croyances et les comportements des classes sociales, des professionnels de la mdecine, des groupes religieux et des gouvernements face au cholra, ii y a eu I'analyse comparative a permis de dtecter par exemple qu'aussi bien Rio de Janeiro qu'a New York au milieu du siecle pass, le cholra tait considr par tout le monde comme une punition divine, qui frappait en premier lieu les personnes dont le comportement social n' tait pas "irrprochable". Dans cet article, le rcit de la tragdie humaine provoque par le cholra New York a deux buts: celui de rvler comment une sociologie du quotidien peutmontrer la relation complexe entre maladie, individu et socit dans une mtropole du 1ge siecle; et comment l'analyse d'une autre exprience historique - nord amricaine -, permet de dcouvrir de grandes diffrences et similitudes ave c le Brsil, la connaissance d'une autre ralit devenant ainsi un dfi

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    pour dcouvrir comment les populations brsiliennes ont affront la maladie pidmique. Sur le plan des effets macro-historiques du cholra, I'augmentation des niveaux de mortalit a t bien moins brutale que son impact so.cial et psychologique - la terreur provoque par le cholra dans la vie quotidienne des familles. Du point de vue pidmiologique, cet article montre que les pidmies ont t engendres eD Asie par une grande rupture de I 'quilibre entre microparasite et hte humain - rupture elle-mme due aux mouvements de populations intensifis par I'imprialisme europen. Partant de l'Inde, les vagues pidmique se sont propages rapidement en Europe et aux Amriques ou elles oot atteint surtout les populations appauvries et habitant des znes insalubres. Tel est le cadre gnral de discussion de cet article, ou la sociologie historique emprunte l'pidmiologie historique de William Me Neill quelques unes de ses analyses \es plus clairantes.