4
rascunho O ‘Nullstellensatz’ de Hilbert Fernando Ferreira Neste cap´ ıtulo, vamos demonstrar um c´ elebre resultado de David Hilbert, muito importante em ´ algebra comutativa e, em especial, em geometria alg´ ebrica. A palavra alem˜ a ‘Nullstellensatz’ pode traduzir-se por ‘teorema do lugar dos zeros’ e ´ e, efectivamente, um teorema sobre a localiza¸ ao dos zeros de polin´ omios, a v´ arias vari´ aveis, sobre corpos. O que se segue pressup˜ oe alguns conhe- cimentos b´ asicos de ´ algebra sobre extens˜ oes de corpos, incluindo a existˆ encia e unicidade do fecho alg´ ebrico dum corpo. Tamb´ em pressupomos familiaridade com a no¸ ao de ordinal e enumera¸c˜ ao transfinita. Come¸camos por um lema: Proposi¸c˜ ao 1. Seja K um corpo e K 1 e K 2 extens˜oes algebricamente fechadas de K. Suponhamos que card(K 1 )= card(K 2 ) > max (0 , card(K)).Ent˜ao K 1 e K 2 s˜ao isomorfos sobre K. Demonstra¸c˜ ao. Seja κ a cardinalidade comum de K 1 e K 2 . Vamos usar o m´ etodo de “vai e vem”. Considerem-se enumera¸c˜ oes transfinitas (a α ) α<κ e(b α ) α<κ de K 1 e K 2 , respectivamente. Vamos definir, por recurs˜ ao transfinita em α<κ, corpos K α 1 e K α 2 e isomorfismos (de corpos) i α : K α 1 7K α 2 , que s˜ ao a identidade em K, tais que i. para todo α<κ, K K α 1 K 1 e K K α 2 K 2 ; ii. a α dom(i 2α+1 )e b α im(i 2α+2 ); iii. se α<β ent˜ ao K α 1 K β 1 , K α 2 K β 2 e i β ´ e extens˜ ao de i α ; iv. para todo α, card(K α 1 )= card(K α 2 ) . Definimos K 0 1 = K 0 2 := K e i 0 a identidade. Para um ordinal da forma 2α + 1, h´ a dois casos a considerar. No primeiro caso, a α ´ e alg´ ebrico sobre K 2α 1 . Neste caso, considere-se p(X) K 2α 1 [X] um polin´ omio irredut´ ıvel tal que p(a α ) = 0. Seja p(X) K 2α 2 [X] o polin´ omio obtido a partir de p(X) substituindo os seus coeficientes pelas correspondentes imagens atrav´ es do isormorfismo i 2α . ´ E claro que p(Xe um polin´ omio irredut´ ıvel sobre K 2α 2 . Visto que K 2 ´ e algebricamente fechado, tome-se b K 2 tal que p(b) = 0. Como sabemos de ´ algebra, os corpos K 2α+1 1 := K 2α 1 (a α ) e K 2α+1 2 := K 2α 2 (b) s˜ ao isomorfos (j´ a que s˜ ao isomorfos aos corpos de ruptura K 2α 1 [X]/hp(X)i e K 2α 2 [X]/h p(X)i, respectivamente, e estes dois corpos de ruptura s˜ ao obviamente isomorfos) atrav´ es dum isomorfismo i 2α+1 que ´ e extens˜ ao de i 2α . No segundo caso, a α ´ e transcendente sobre K 2α 1 . Ora, a cardinalidade do fecho alg´ ebrico de K 2α 2 ´ e max(0 , card(K 2α 2 )) e, portanto, ´ e estritamente menor do que κ. Logo, podemos tomar b em K 2 que n˜ ao esteja no fecho alg´ ebrico de K 2α 2 . Em suma, podemos tomar um elemento b K 2 transcendente sobre K 2α 2 . Novamente, por resultados de ´ algebra, sabemos que K 2α+1 1 := K 2α 1 (a α )e K 2α+1 2 := K 2α 2 (b) s˜ ao isomorfos (j´ a que s˜ ao iso- morfos aos corpos de frac¸ oes de K 2α 1 [X]e K 2α 2 [X], respectivamente, e estes corpos de frac¸ oes ao obviamente isomorfos) atrav´ es dum isomorfismo i 2α+1 que ´ e extens˜ ao de i 2α . Para um ordinal da forma 2α + 2 procedemos de modo an´ alogo mas, desta vez, trocando os pap´ eis de K 1 e K 2 . No caso em que temos um ordinal limite λ<κ, definimos K λ 1 := S α<λ K α 1 , K λ 2 := S α<λ K α 2 e i λ := S α<λ i α . Porconstru¸c˜ ao, i κ := S α<κ i α ´ e um isomorfismo de K 1 para K 2 que ´ e a identidade em K. 1

12_Nullstellensatz

Embed Size (px)

DESCRIPTION

12_Nullstellensatz

Citation preview

Page 1: 12_Nullstellensatz

rascunho

O ‘Nullstellensatz’ de Hilbert

Fernando Ferreira

Neste capıtulo, vamos demonstrar um celebre resultado de David Hilbert, muito importante emalgebra comutativa e, em especial, em geometria algebrica. A palavra alema ‘Nullstellensatz’ podetraduzir-se por ‘teorema do lugar dos zeros’ e e, efectivamente, um teorema sobre a localizacaodos zeros de polinomios, a varias variaveis, sobre corpos. O que se segue pressupoe alguns conhe-cimentos basicos de algebra sobre extensoes de corpos, incluindo a existencia e unicidade do fechoalgebrico dum corpo. Tambem pressupomos familiaridade com a nocao de ordinal e enumeracaotransfinita. Comecamos por um lema:

Proposicao 1. Seja K um corpo e K1 e K2 extensoes algebricamente fechadas de K. Suponhamosque card(K1) = card(K2) > max (ℵ0, card(K)). Entao K1 e K2 sao isomorfos sobre K.

Demonstracao. Seja κ a cardinalidade comum de K1 e K2. Vamos usar o metodo de “vai evem”. Considerem-se enumeracoes transfinitas (aα)α<κ e (bα)α<κ de K1 e K2, respectivamente.Vamos definir, por recursao transfinita em α < κ, corpos Kα

1 e Kα2 e isomorfismos (de corpos)

iα : Kα1 7→ Kα

2 , que sao a identidade em K, tais que

i. para todo α < κ, K ⊆ Kα1 ⊆ K1 e K ⊆ Kα

2 ⊆ K2;

ii. aα ∈ dom(i2α+1) e bα ∈ im(i2α+2);

iii. se α < β entao Kα1 ⊆ K

β1 , Kα

2 ⊆ Kβ2 e iβ e extensao de iα;

iv. para todo α, card(Kα1 ) = card(Kα

2 ) < κ.

Definimos K01 = K0

2 := K e i0 a identidade. Para um ordinal da forma 2α+ 1, ha dois casos aconsiderar. No primeiro caso, aα e algebrico sobre K2α

1 . Neste caso, considere-se p(X) ∈ K2α1 [X]

um polinomio irredutıvel tal que p(aα) = 0. Seja p(X) ∈ K2α2 [X] o polinomio obtido a partir

de p(X) substituindo os seus coeficientes pelas correspondentes imagens atraves do isormorfismoi2α. E claro que p(X) e um polinomio irredutıvel sobre K2α

2 . Visto que K2 e algebricamentefechado, tome-se b ∈ K2 tal que p(b) = 0. Como sabemos de algebra, os corpos K2α+1

1 := K2α1 (aα)

e K2α+12 := K2α

2 (b) sao isomorfos (ja que sao isomorfos aos corpos de ruptura K2α1 [X]/〈p(X)〉 e

K2α2 [X]/〈p(X)〉, respectivamente, e estes dois corpos de ruptura sao obviamente isomorfos) atraves

dum isomorfismo i2α+1 que e extensao de i2α. No segundo caso, aα e transcendente sobre K2α1 .

Ora, a cardinalidade do fecho algebrico de K2α2 e max(ℵ0, card(K2α

2 )) e, portanto, e estritamentemenor do que κ. Logo, podemos tomar b em K2 que nao esteja no fecho algebrico de K2α

2 . Emsuma, podemos tomar um elemento b ∈ K2 transcendente sobre K2α

2 . Novamente, por resultadosde algebra, sabemos que K2α+1

1 := K2α1 (aα) e K2α+1

2 := K2α2 (b) sao isomorfos (ja que sao iso-

morfos aos corpos de fraccoes de K2α1 [X] e K2α

2 [X], respectivamente, e estes corpos de fraccoessao obviamente isomorfos) atraves dum isomorfismo i2α+1 que e extensao de i2α. Para um ordinalda forma 2α + 2 procedemos de modo analogo mas, desta vez, trocando os papeis de K1 e K2.No caso em que temos um ordinal limite λ < κ, definimos Kλ

1 :=⋃α<λK

α1 , Kλ

2 :=⋃α<λK

α2 e

iλ :=⋃α<λ iα.

Por construcao, iκ :=⋃α<κ iα e um isomorfismo de K1 para K2 que e a identidade em K.

1

Page 2: 12_Nullstellensatz

rascunho

A linguagem da teoria dos corpos e a linguagem do calculo de predicados com igualdade con-stituıda por duas constante 0 e 1 e dois sımbolos funcionais binarios + e ·. A teoria dos corpos edada pelos seguintes axiomas:

∀x∀y∀z ((x+ y) + z = x+ (y + z));

∀x (x+ 0 = x);

∀x∃y (x+ y = 0);

∀x∀y (x+ y = y + x);

∀x∀y∀z ((x · y) · z = x · (y · z));

∀x (x · 1 = x);

∀x (x 6= 0→ ∃y (x · y = 1));

∀x∀y (x · y = y · x);

∀x∀y∀z (x · (y + z) = x · y + x · z);

0 6= 1.

A teoria dos corpos algebricamente fechados CAF obtem-se da teoria dos corpos adicionando oseguinte conjunto infinito de axiomas:

∀z0∀z1 · · · ∀zn−1∃x (xn + zn−1xn−1 + · · ·+ z1x+ z0 = 0),

um para cada natural positivo n.

Definicao 1. Uma teoria T diz-se modelo-completa se, sempre que M e N sao modelos de T comM ⊆ N, entao M 4 N.

Teorema 1 (Abraham Robinson). A teoria dos corpos algebricamente fechados e modelo-completa.

Demonstracao. Sejam K1 e K2 corpos algebricamente fechados (e, portanto, infinitos) comK1 ⊆ K2. Tome-se κ um cardinal (necessariamente infinito) maior do que card(K2). Pelo teoremade Lowenheim-Skolem ascendente, existem extensoes elementares K ′1 e K ′2 de K1 e K2 (respecti-vamente) de cardinalidade κ. Pela Proposicao anterior, K ′1 e K ′2 sao corpos isomorfos sobre K1.Podemos agora verificar que K1 4 K2. Com efeito, seja φ uma formula da linguagem da teoriados corpos e s uma atribuicao de valores das variaveis em K1. Suponhamos que K1 |= φ[s]. Vistoque K1 4 K ′1, tem-se K ′1 |= φ[s]. Dado que K ′1 e K ′2 sao corpos isomorfos sobre sobre K1 (onde stoma valores) conclui-se que K ′2 |= φ[s]. Ora, visto que K2 4 K ′2, vem finalmente K2 |= φ[s].

Note-se que a teoria dos corpos algebricamente fechados nao e completa, pois ha corpos algebri-camente fechados de diferentes caracterısticas. Dado p um numero primo, considere-se o seguinteaxioma carp:

1 + 1 + . . .+ 1 = 0 onde estamos a somar p unidades.

A teoria CAFp dos corpos algebricamente fechados de caracterıstica p e a teoria axiomatizadapor CAF e pelo axioma carp. A teoria CAF0 dos corpos algebricamente fechados de caracterısticazero e a teoria axiomatizada por CAF e pelos axiomas ¬carp, um para cada numero primo p.

Corolario 1. Dado p um numero primo ou o numero 0, a teoria CAFp e completa.

2

Page 3: 12_Nullstellensatz

rascunho

Demonstracao. Suponhamos que p e um numero primo. Sejam M e N modelos de CAFp.

Queremos ver que estes modelos sao elementarmente equivalentes. E claro que Zp ⊆M e Zp ⊆ N,onde Zp e o fecho algebrico do corpo Zp. Dado que a teoria CAFp e modelo-completa, Zp 4M eZp 4 N. Logo, M ≡ N.

O caso de caracterıstica e 0 e semelhante, trabalhando-se com Q, o fecho algebrico de Q.

Antes de prosseguirmos com a discussao do Nullstellensatz, fazemos notar que o caso de carac-terıstica zero da origem ao denominado princıpio de transferencia de Lefschetz.

Corolario 2. Os corpos Q e C sao elementarmente equivalentes.

Corolario 3 (Hilbert). Seja K um corpo e K o seu fecho algebrico. Considere-se um sistemafinito de equacoes e inequacoes{

g1(x1, . . . , xk) = g2(x1, . . . , xk) = · · · = gn(x1, . . . , xk) = 0f(x1, . . . , xk) 6= 0

onde g1, g2, . . . , gn, f ∈ K[X1, . . . , Xk]. Se este sistema tem solucao numa extensao de K, entaoja tem solucao em K.

Demonstracao. Considere-se a seguinte sentenca σ com parametros em K:

σ := ∃x1∃x1 · · · ∃xk

(n∧i=1

gi(x1, . . . , xk) = 0 ∧ f(x1, . . . , xk) 6= 0

)Suponhamos que K ′ e uma extensao de K onde o sistema de equacoes e inequacoes tem solucao,i.e., K ′ |= σ. Dado que σ e existencial, tambem se tem K ′ |= σ, onde K ′ e o fecho algebrico deK ′. Como K ⊆ K ⊆ K ′ vem, pelo teorema anterior, K 4 K ′. Em particular, K |= σ. Como sequeria demonstrar.

Teorema 2 (Nullstellensatz de Hilbert). Seja K um corpo algebricamente fechado e f, g1, . . . , gn ∈K[X1, . . . , Xk] de tal sorte que todo o zero comum a g1, . . . , gn em Kk e necessariamente zero def . Entao existe um numero natural r tal que

fr =

n∑i=1

pigi

onde p1, . . . , pn ∈ K[X1, . . . , Xk].

Notacao. O recıproco deste resultado e obviamente verdadeiro.

Demonstracao. Sejam f e g1, . . . , gn como na hipotese do enunciado. Seja

I :=

{h ∈ K[X1, . . . , Xk] : existem um numero natural r e

p1, . . . , pn ∈ K[X1, . . . , Xk] tais que hr =

n∑i=1

pigi

}e admitamos, com vista a um absurdo, que f /∈ I. Nao e difıcil de ver que I e um ideal (proprio)de K[X1, . . . , Xk]. A unica clausula nao trivial a verificar e a de que I e fechado para a soma.Suponhamos que hr1 =

∑ni=1 pigi e hl2 =

∑ni=1 qigi. Ora,

(h1 + h2)r+l =∑

i+j=r+l

(k + l

i

)hi1h

j2

3

Page 4: 12_Nullstellensatz

rascunho

Sempre que i+ j = r + l, vem i ≥ r ou j ≥ l. Logo, cada parcela da soma acima tem como factorhr1 ou hl2. Daqui conclui-se facilmente que h1 + h2 ∈ I.

Tem-se, pois, que I e um ideal proprio de K[X1, . . . , Xk] que nao contem nenhuma potencia def (e que contem g1, . . . , gn). Pelo lema de Zorn, tome-se J ⊇ I um ideal que nao contem nenhumapotencia de f e que seja maximal a respeito desta propriedade. Vamos argumentar que J e umideal primo, i.e., que se h1 /∈ J e h2 /∈ J entao h1h2 /∈ J . Dado que h1 /∈ J , por maximalidadede J , existem um numero natural r, um polinomio q1 de K[X1, . . . , Xk] e um polinomio p1 emJ tais que fr = q1h1 + p1. Semelhantemente, existem um numero natural l, um polinomio q2 deK[X1, . . . , Xk] e um polinomio p2 em J tais que f l = q2h1 + p2. Logo,

fr+l = (q1h1 + p1)(q2h2 + p2) = q1q2h1h2 + q1h1p2 + q2h2p1 + p1p2.

Ora, as tres ultimas parcelas acima estao em J . Daqui conclui-se que h1h2 /∈ J pois, caso contrario,existiria uma potencia de f em J .

Mostramos que J e um ideal primo proprio. Logo, K[X1, . . . , Xk]/J e um domınio de inte-gridade. Seja K ′ o seu corpo de fraccoes. Como sabemos, podemos considerar K ′ uma extensaode K (atraves da imersao a (a + J)/(1 + J)). Sejam b1, . . . , bk os seguintes elementos de K ′:(X1 + J)/(1 + J), . . . , (Xk + J)/(1 + J), respectivamente. Por construcao,

g1(b1, . . . , bk) = · · · = gn(b1, . . . , bk) = 0 e f(b1, . . . , bk) 6= 0

e, portanto, o sistema de equacoes e inequacoes{g1(x1, . . . , xk) = g2(x1, . . . , xk) = · · · = gn(x1, . . . , xk) = 0f(x1, . . . , xk) 6= 0

tem solucao emK ′. Pelo corolario anterior, este sistema tambem tem solucao emK, o que contradiza hipotese do enunciado.

Corolario 4. Seja K um corpo algebricamente fechado e g1, . . . , gn ∈ K[X1, . . . , Xk] polinomiossem nenhum zero comum em Kk. Entao existem polinomios p1, . . . , pn ∈ K[X1, . . . , Xk] tais que

1 =

n∑i=1

pigi

4