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2008 - A Caminho da Educação Popular

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Estudo, Trabalho e Luta: A Caminho da Educação Popular, 2008

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Expediente Realização: Federação dos estudantes de agronomia do Brasil – FEAB Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal – ABEEF Descrição: Cartilha de textos de subsídio aos debates sobre Educação Popular Edição: Núcleo de trabalho permanente em Educação – Universidade de São Paulo, Campus “Luiz de Queiroz” em Piracicaba Diagramação: Felipe Teixeira Chinen Revisão: Camila Dinat, Carla Bueno Chahin, Felipe Teixeira Chinen, Lineu Vianna, Marcela Cravo Rios e Paola C. C. Estrada Camargo

Piracicaba-SP Maio – 2008

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Sumário Apresentação da cartilha......................................................................3 Nossa História FEAB – Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil.............................5 ABEEF – Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal.................................................................................................8 Atualidades em torno da educação Sobre a educação..................................................................................11 Observações da crise da educação pública.................................................14 Universidade(s) ....................................................................................22 Conceitos e perspectivas da educação popular Educação popular..................................................................................36 Aplicando a metodologia popular..............................................................38 Mística do educador...............................................................................40 Experiências de educação popular rumo a uma nova sociedade Introdução............................................................................................44 Educação de Jovens e Adultos e Ensino Médio: A experiência da Turma Olga Benário.........................................................................................45 Inserção da educação na prática social: A experiência de Cuba....................................................................................................51 O lugar da educação na resistência.....................................................61

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Apresentação Olá companheiras e companheiros,

Nós, FEAB (Federação dos Estudantes de Agronomia) e a ABEEF (Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal) com apoio do ANDES (Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior) construímos esse material com o objetivo de esclarecer como enxergamos o processo histórico da Educação no Brasil e a luta popular pela Educação, trazendo uma base mais sólida para o Movimento Estudantil nesta temática.

Nossa idéia foi reunir alguns materiais de diversos autores, com estudos de caso, metodologias e textos em geral, sobre a educação de um povo que a enxerga como uma ferramenta importante na luta por sua soberania.

A educação sempre desenvolveu papel de destaque em qualquer época de qualquer sociedade e por aqui não é diferente. Da maneira em que se desenvolveram as relações sociais como reflexos da histórica dominação exterior, “educação” virou sinônimo de “opressão”. Atualmente este valor está de tal modo arraigado na sociedade que se tornou natural uma educação baseada em relações de poder.

Hoje, a Educação Popular é uma ferramenta inseparável àquelas pessoas que lutam por uma transformação social, política e econômica, essencial para a organização do povo e para o “despertar” das consciências.

Escolhemos educação popular como temática porque entendemos que devemos criticar a educação que temos e a sociedade na qual esta se insere, mas sem perder a perspectiva de propor a verdadeira Educação que queremos para o nosso Povo, e que, apesar de milhares de limitações, existem propostas e realizações concretas de Educação Popular, com o Povo e não para o Povo. Este debate coloca nossa opção pelos oprimidos, explorados e excluídos, e nossa luta conjunta e solidária com qualquer forma de resistência verdadeiramente popular.

Escolhemos o CEPIS (Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae) como a nossa principal referência nos conceitos e metodologias de Educação Popular pela longa trajetória (de mais 30 anos) deste grupo, com companheiros e companheiras que contribuíram e contribuem nos debates e ações concretas, assessorando diversas organizações populares e produzindo materiais de apoio acessíveis e com linguagem popular.

Juntos nesta luta encontramos diversos espaços e entidades que fazem esta reflexão, debates, produzem materiais de apoio, e, o essencial, organizam o povo.

Podemos dar destaque aos Movimentos Sociais da Via Campesina (MST, MAB, MPA, MMC, CPT, PJR, FEAB), principalmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Escola Nacional Florestan Fernandes e a Escola Latino Americana de Agroecologia, onde diversas organizações populares de toda a América Latina realizam espaços educativos do nosso

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Povo, como Cursos Superiores, Cursos de Formação Política, Encontros, entre outros.

O ANDES se destaca pelos ótimos materiais produzidos, com conteúdo e forma acessíveis ao Povo. Além de formar assessores que contribuem em diversos espaços do Movimento Estudantil e Social, ajudando-nos a clarear diversas questões e apoiando iniciativas, como esta cartilha.

As Assembléias populares também se colocam como importantes espaços democráticos e participativos, onde se discutem diversos temas e a Educação é um deles.

Enfim, para compreender um pouco mais a luta do povo pela educação, convidamos você para iniciar essa leitura e juntar-se a nós na luta por igualdade, justiça, pelo fim da exploração do homem pelo homem e pela soberania dos povos.

Sejam bem vindas e bem vindos e boa leitura!

Núcleo de Trabalho Permanente Educação – FEAB Coordenação Nacional da FEAB Coordenação Nacional da ABEEF

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FEAB A FEAB: Nossa História

A organização dos estudantes de Agronomia teve inicio há mais de 50 anos. A primeira organização estudantil ocorreu juntamente com os estudantes de Medicina Veterinária, onde foi criada em 1951 a União dos Estudantes de Agronomia e Veterinária do Brasil (UEVAB) durante o II Congresso dos estudantes de Agronomia e Veterinária.

Essa organização durou somente até 1955, onde os estudantes de Agronomia criaram sua própria organização. Em 1954 os estudantes de Agronomia realizaram seu primeiro congresso, na época o CBEA – Congresso Brasileiro de Estudantes de Agronomia. Durante o II CBEA foi criado o Diretório Central dos Estudantes de Agronomia do Brasil (DCEAB).

O DCEAB sofreu duros golpes durante o regime militar, onde a exemplo da União Nacional dos Estudantes (UNE), movimentos sociais populares e partidos políticos, em 1968 caíram na clandestinidade, através do Ato Institucional número 5 (AI-5). Este decreto proibiu a reunião de pessoas para fins políticos. Ocorreu ainda, prisão de lideres estudantis e o roubo dos materiais dos arquivos. As atividades dos estudantes de agronomia foram quase totalmente interrompidas entre os anos de 1968 e 1971.

Em 1972 realizou-se o 15° Congresso Nacional dos Estudantes de Agronomia – CONEA, em Santa Maria/rs. Neste evento retorna-se o movimento a nível nacional, com a fundação da Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil – FEAB.

Desde sua fundação a entidade é protagonista de inúmeras conquistas que asseguram mudanças no curso de agronomia, tais como: o fim da Lei do Boi (cota de 50 por cento de vagas para filhos de fazendeiros), o Currículo Mínimo da Agronomia, a Lei dos Agrotóxicos (receituário agronômico); a discussão diferenciada de Ciência e Tecnologia, frente à necessidade de modelos agrícolas alternativos ao da “revolução verde”; a participação na construção da Agroecologia, entre outras.

Durante seu processo histórico travou varias lutas junto aos movimentos sociais populares do campo, a exemplo da campanha nacional de reflexão sobre o gênero; campanha nacional pelo limite da propriedade

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privada; campanha nacional “Sementes Patrimônio da Humanidade”. Além de contribuir com a organização dos estudantes na América Latina com a criação de uma entidade que abrange as federações de estudantes de agronomia dos paises latinos e Caribe, a CONCLAEA – Confederação Caribenha e Latino América de Entidades Estudantis de Agronomia, com isso sua atuação é um marco na luta em defesa da Educação e nas ações do movimento estudantil brasileiro e internacional. Objetivo

A FEAB tem como objetivo a construção do socialismo, entendendo-o como uma sociedade onde não haja a exploração do ser humano pelo ser humano e não exista a propriedade privada dos meios de produção. Para chegar no nosso objetivo temos como foco a transformação da universidade, com vistas a atender as demandas da classe trabalhadora oprimida. Para isso é necessária a realização de lutas em conjunto com as demais organizações de estudantes, movimentos sociais populares, e demais organizações que possuam afinidades políticas com a FEAB. Atuando dessa forma, para fortalecer o ME através da realização de lutas sociais que concretizem uma coesão organizativa e reivindicatória e que construa uma política constante de formação em defesa da universidade publica financiada pelo Estado, de qualidade, socialmente referenciada, democratizada em seu acesso e popular. Estrutura organizacional A FEAB está estruturada através de uma coordenação Nacional CN, 8 superintendências Regionais, 8 Núcleos de Trabalho Permanente(NTP’s) e os Centros e Diretórios Acadêmicos – CA’s e DA’s, entidades de representação dos estudantes nas escolas de Agronomia. Coordenação Nacional: Responsável por operacionalizar as políticas deliberadas no Congresso, possui sede em uma única escola, hoje sediada na Universidade Estadual de Montes Claros. Superintendência Regional: Cada superintendência tem uma Coordenação Regional que representa as escolas de Agronomia de determinada região geográfica. Todos os membros da coordenação devem ser da mesma escola. Segue abaixo, a relação das superintendências regionais, com a sua respectiva área de abrangência e escola sede atual. - Regional I: RS – CR: Santa Maria - RS - Regional II: PR SC – CR: Florianópolis - SC - Regional III: MG, RJ e ES – CR: Diamantina - ES - Regional IV: MT, MS, GO e DF – CR: Tangara da Serra - MT - Regional V: PE, RN, PB, PI e CE – CR: Mossoró - RN - Regional VI: MA, PA, AM, AC e RO – CR: Belém - PA - Regional VII: SP – CR: Botucatu - SP - Regional VIII: BA, SE e AL – CR: Aracajú - SE

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Núcleos de Trabalho Permanente: Constituem-se em órgãos consultivos e de elaboração teórica sobre as bandeiras de luta da federação. Os membros dos NTP’s devem ser da mesma escola. Segue abaixo os NTP’s e suas respectivas sedes atuais. - Arquivo e Histórico: Areia - Educação: Piracicaba - Estudos Amazônicos: Cuiabá - Ciência e Tecnologia: Está atualmente sem representante - Relações Internacionais: Lavras - Juventude e Cultura: Recife - Movimentos Sociais Populares: Lages - Agroecologia: Curitiba Os Eventos

A instância máxima de deliberação da FEAB é o CONEA – Congresso Nacional dos Estudantes de Agronomia. É o encontro anual de todos os estudantes de agronomia do Brasil de cunho integrativo onde se discute questões inerentes ao curso, a conjuntura nacional, a situação agrária e agrícola regional e nacional, a educação, avaliando e apontando perspectivas, com o intuito de apresentar propostas e formas de encaminhamentos que visem solucionar os problemas levantados no evento. O ultimo CONEA ocorreu em 2007 em Aracajú - SE. Dentre as principais atividades promovidas atualmente pela FEAB, estão os ERA’s (Encontros Regionais de Agroecologia), os EREA’s (Encontros Regionais dos Estudantes de Agronomia), os Seminários de Questão Agrária, os CEPA’s (Curso de Economia Política e Agricultura) e os EIV’s (Estágios interdisciplinares de vivência) em comunidades de pequenos agricultore(a)s e assentamentos de reforma agrária. Os EIV’s foram premiados pela UNESCO em 1992, como iniciativa de destaque da juventude latino-americana. AS Bandeiras de luta

São as linhas norteadoras das discussões realizadas pela FEAB, deliberadas no CONEA, e que devem ser colocadas em pratica por todas as entidades que compões a FEAB. Devendo assim, priorizadas pela coordenação nacional e pelas coordenações regionais.Algumas de suas principais bandeiras são: - formação profissional - ciência e tecnologia - universidade - juventude, cultura e valores - agroecologia - movimentos sociais - relações internacionais - gênero e sexualidade

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ABEEF – Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal A Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal - ABEEF, fundada em 03 de abril de 1971, entidade sem fins lucrativos, surgiu da necessidade de representar e articular nacionalmente os estudantes de Engenharia Florestal. Ao longo de sua história ergueu diversas bandeiras em defesa de uma sociedade justa, igualitária e que utilize os recursos naturais de forma equilibrada. Tem a universidade como principal área de atuação, entendendo que todos devem ter direito a uma educação pública, gratuita, autônoma e de qualidade. Através de diversas atividades e eventos, a ABEEF vem trabalhando para que os estudantes de Engenharia Florestal se sensibilizem socialmente e tenha uma formação ética, política e critica, para compreender e atuar sobre a realidade social de nosso país. Atualmente a Associação tem se aproximado dos Movimentos Sociais Populares ligados ao campo e a floresta. Esta parceria está proporcionando uma compreensão do papel da universidade na transformação social, principalmente na área de atuação da Engenharia Florestal. ESTRUTURA ORGANIZATIVA DA ABEEF: Coordenação Nacional (CN): Tem como função representar a Associação nacionalmente, planejar e executar atividades e projetos definidos no Seminário de Planejamento, efetivando as decisões do CBEEF. A CN também deve auxiliar as Coordenações Regionais, fazendo articulação nas escolas transmitindo um sentimento mais concreto de ABEEF, bem como convocar e coordenar as instâncias em espaços nacionais da Associação encaminhando as deliberações. Além da articulação e integração interna, a CN e responsável por iniciar e/ou manter relações com outros movimentos e entidades que lutem por uma sociedade melhor. Coordenação Regional (CR): Tem como função representar a Associação regionalmente, fazendo a articulação nas e entre as escolas da região. As CR’s devem realizar passadas freqüentes para transmitir o “sentimento de ABEEF” e

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acompanhar os trabalhos que são feitos pelos estudantes dos CA’s e DA’s) – Entidades de base, sem as quais não existiria Associação. Além de levar ao conhecimento das novas escolas as políticas da ABEEF, bem como transmitir a importância da organização estudantil. Atualmente a ABEEF esta estruturada em cinco regionais: - Regional Amazônia (PA, AM, AC, RO, AP, RR); - Regional Caatinga (BA, SE, AL, PE, PA, RN, CE, PI, MA); - Regional Cerrado (DF, GO, MT, TO, MS); - Regional Mata Atlântica (SP, RJ, MG, ES); - Regional Araucária (PR, SC, RS); Núcleo de Conjuntura Política (NCP): Tem como função coletar, sistematizar, produzir e divulgar materiais que sirvam de subsídio para as atividades da Associação, servir de órgão consultivo para as ações das instâncias, bem como pensar eventos que permitam a formação política dos estudantes. Núcleo de Trabalho em Agroecologia (NTA): Tem como função coletar, sistematizar, produzir e divulgar materiais que sirvam de subsidio para as atividades da Associação, bem como pensar e participar de eventos que permitam a discussão sobre a matriz tecnológica e produtiva em que nossa sociedade está atualmente inserida, sendo propositivo para inversão da mesma, assim cuidando da formação agroecológica e política dos estudantes. Núcleo Arquivo Histórico (NAH): Localizado permanentemente na UFMT -Cuiabá, este núcleo reúne o acervo histórico da Associação. Tem como função guardar e organizar o acervo da Associação de modo a facilitar o acesso e pesquisa de seus documentos, além de sempre realizar nos eventos da ABEEF apresentações que permitam aos estudantes conhecer a história de luta da Associação. CBEEF: O Congresso Brasileiro dos Estudantes de Engenharia Florestal é a instância máxima de deliberação da Associação, por reunir o maior número de estudantes. Acontece anualmente numa das escolas de Engenharia Florestal e permite aos estudantes um aprofundamento a respeito das linhas defendidas pela ABEEF, definindo as políticas sobre as mesmas que serão encaminhadas no período até o próximo CBEEF. A sua realização é feita pela comissão organizadora formada por estudantes da escola sede e representantes das Coordenações Nacional e Regional. Seu eixo temático é definido nos conselhos da Associação. A sucessão das instâncias da ABEEF ocorre no CBEEF.

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Atualidades em torno da

Educação

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Sobre a educação Adaptado do caderno “Concepção de Educação Popular do CEPIS” CEPIS – Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae

São Paulo, Março de 2007

A educação sozinha não transforma a sociedade. Mas, sem ela, tampouco a sociedade muda ou se mantém. A educação tem um papel fundamental na organização da sociedade, podendo tanto ordená-la, quanto reformá-la ou, até, revolucioná-la. Então, não há só uma forma, tampouco um único modelo de educação.

A escola é um dos lugares onde ela acontece e, talvez, não seja o melhor deles. O ensino escolar não é sua única prática nem o professor profissional seu único praticante. Em mundos diversos a educação existe de diferentes formas: existe em cada povo e em povos que se encontram; entre os povos que submetem outros povos e usam a educação como um recurso a mais de sua dominação; em um povo que busca sua libertação, tendo a educação como instrumento para livrar-se de qualquer tipo de dominação. A educação é uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum o saber, a idéia, a crença e aquilo que é comum como bem, como trabalho ou como vida. Pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber, como armas que reforçam a desigualdade entre as pessoas, na divisão dos bens, trabalho, dos direitos e dos símbolos. Mas pode igualmente ser uma construção coletiva, com o envolvimento co-responsável de quem entra no processo.

Pode-se dizer, então, que educação é uma fração do modo de vida dos grupos sociais, que criam ou recriam uma cultura, que dá sentido às relações humanas. Eles produzem e praticam formas de educação, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam e aprendem, o saber das palavras, os códigos sociais, as regras de trabalho, os segredos da arte, a religião e a tecnologia, que qualquer povo precisa, para re-inventar a vida do grupo e dos sujeitos.

Através de trocas sem fim, a educação ajuda a explicar a necessidade da existência de uma ordem. Às vezes, a ocultá-la, ou até mesmo, a inculcá-la. Pensando que age por si próprio, livre e em nome de um coletivo, um educador imagina que serve ao Saber e ao educando. Mas pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo para usos escusos, ocultos também, na educação. Quem domina, por exemplo, divulga que o melhor é quem copia, e a cultura oficial exalta as virtudes do papagaio e a fidelidade do cachorro, embora o papagaio não pense e o cachorro seja amigo apenas do seu dono. Toda educação tem uma intencionalidade explícita ou implícita, mas sempre presente pois todo o conhecimento tem um objetivo, uma direção e uma finalidade. O conhecimento tem sempre um objeto, uma direção e uma finalidade. O conhecimento é sempre conhecimento de alguma coisa ou de alguém, a partir de uma perspectiva. Pode-se ter uma ou várias intenções diante de um conhecimento, comportamento ou ação. Podem ser intenções

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claras ou intenções ocultas, ou até “segundas intenções”. A intencionalidade política da educação popular significa que as pessoas que a fazem direcionam sua educação a partir de uma analogia ou de valores, a partir da finalidade que pretende dar ás forças sociais políticas presentes no meio dos pobres.

A educação é sempre uma ferramenta de uma estratégia determinada de onde não se forma uma pessoa e depois se vê o que ele vai fazer, ao contrário, primeiro se tem a militância, até porque o conteúdo do processo de formação, seu método e ritmo dependem de uma concepção de mundo, de uma visão de sociedade, de uma opção por certos princípios e valores, de um programa. A educação está sempre a serviço de uma ideologia, de uma proposta, como instrumento para realizar sua estratégia. Certamente o próprio processo educativo contribui para a explicitação, formulação e aperfeiçoamento de uma estratégia.

Todo tipo de educação está a serviço de uma organização, o que une as pessoas e os grupos, para além das explicações românticas é a busca da realização de um anseio comum, a defesa de um interesse ameaçado ou a consciência da militância. Na luta popular as pessoas não formam grupo de amigos, embora possam tornar-se amigas, elas se juntam por uma Causa. Para dar coesão a sua proposta, um grupo ou uma classe constrói processos de convencimento para fortalecer esse grupo que, por sua vez, vai lutar para tornar possível uma conquista até a implantação de um sistema que garanta seus interesses de forma permanente.

Adotar e discutir princípios e posturas pedagógicas é fazer política. A educação é um ato político, assim como um ato político é educativo. Não existe educação politicamente neutra. Numa sociedade de classes, não pode haver educação que seja a favor de todos – será sempre a favor de alguém e contra outrem. A educação serve para que uma pessoa se acomode ao mundo ou se envolva em sua transformação. A politicidade da educação questiona a quem educa sobre a educação que se pratica na sociedade. Ao ser transformadora,só ode ficar contra quem se beneficia com a atual situação e se coloca a favor de quem é prejudicado por ela; ao ser conservadora, estará a favor dos grupos beneficiados com sua manutenção.

Nascendo de visões antagônicas, a educação libertadora e a conservadora têm cada qual a sua metodologia. Na educação conservadora domesticadora, “tornar comum” pode significar a naturalização da prática metodológica de enfiar, gela abaixo, diferentes pacotes para perpetuar a ordem dominante. E as pessoas oprimidas aprendem a assimilar conteúdos modelos, reduzindo-os e fortalecendo e a estrutura social desumanizante, favorável à minoria.

Já na educação libertadora, “tornar comum” significa uma construção coletiva, que envolve as pessoas no processo de resolver as perguntas do cotidiano, bem como na luta por sua emancipação. Essa metodologia, onde as pessoas entram como parte, estimula a classe oprimida a romper com as estruturas injustas e a construir uma ordem onde haja lugar para elas, como sujeitos e protagonistas. A educação libertadora, ao estimular a libertação de

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forças “naturalmente” adormecidas e socialmente reprimidas, inclui, ao mesmo tempo, a consciência e o mundo, a palavra e o poder, o conhecimento e a política, a teoria e a prática. O capitalismo tenta convencer-nos que não há alternativa de vida fora desse sistema. Com a ajuda de processos educativos, hoje, sobretudo através da mídia e da escola, mantém-se ideologicamente hegemônico.

Educação é uma disputa de hegemonia, uma classe ou setor busca ter hegemonia sobre outras classes ou setores, no sentido de exercer sobre elas um processo de direção política, seja no plano político, cultural ou ideológico. Essa hegemonia da classe no poder se constrói e se recria na vida cotidiana, e através dela que se interioriza valores e se constrói sujeitos domesticados ou críticos. O capitalismo, por exemplo, mesmo sem resolver os problemas da maioria da população, convence essa gente de que não há alternativa de vida fora desse sistema. Com a ajuda de processos educativos, hoje, sobretudo através da mídia e da escola, mantém-se ideologicamente hegemônico. Hegemonia, então, é também relação política e pedagógica. Uma alternativa de hegemonia com valores humanistas que não pode seguir uma pedagogia verticalista, nela educador e educando devem sempre manter uma relação dinâmica, onde ambos são ativos e precisam, permanente, ser educados.

Para superar o endoutrinamento ou o dogmatismo, qualquer processo de educação/formação deve contribuir para que as pessoas tenham capacidade crítica, porque, ao evitar toda a forma de basismo (elogio oportunista de um falso saber), não se pode cair nas várias formas de dirigismo, manipulação ou imposição, que treina obedientes seguidores. Sem visão crítica não pode existir conhecimento verdadeiro e permanente da realidade. Soldadinhos de chumbo não são protagonistas, nem a repetição de fórmulas acabadas e receitas transplantadas servem para a transformação da realidade. Criticar é um dever – m educando não seria digno de um educador se não se atrevesse a combater m ponto de vista que percebe equivocado. Uma organização da sociedade não se constrói com robôs.

“Desconfiai do mais trivial, na aparência singela. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceites o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente de humanidade desumanizada, nada deve parece natural nada deve parece impossível de mudar” Bertold Brech

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Observações da crise da Educação Pública Adaptado do texto “Cinco observações sobre a crise da educação pública para

uma estratégia revolucionária” Valério Arcary1

Este texto resultou de uma comunicação apresentada no seminário do ILAESE (Instituto Latino-americano de estudos sócio-econômicos) em novembro de 2005. Comentaremos cinco temas que foram, na ocasião, objeto de uma discussão coletiva. A primeira idéia é o reconhecimento do fracasso da educação pública como instrumento da mobilidade social. Uma das premissas do capitalismo era a igualdade jurídica dos cidadãos. A promessa dos reformistas brasileiros foi, contudo, ao mesmo tempo, mais audaciosa e confusa: afirmaram durante os últimos vinte anos de regime democrático liberal, antes de chegar ao poder, que a educação seria mesmo preservado o capitalismo, uma via de maior justiça social. A escola poderia mudar o Brasil, diminuindo as desigualdades sociais através da meritocracia, da igualdade de oportunidades, a chamada equidade, a justiça diante de obstáculos ou de barreiras que são ou deveriam ser universais, existiria a possibilidade de melhorar de vida. Toda promessa reformista esteve construída em cima desta tese. “Estudem e trabalhem duro” e terão um futuro superior ao dos vossos pais.

Educação e trabalho para todos garantiriam, presumia-se, uma maior coesão social à democracia burguesa na periferia do capitalismo, e serviam de álibi para a confiança dos reformistas nas possibilidades de “controle social” do mercado. Abraçados a esse programa, o desenvolvimento econômico substituía, alegremente, o socialismo como horizonte estratégico da esquerda eleitoral. A democracia liberal afiançaria, gradualmente, prosperidade para todos. Seria uma questão de paciência. Mas, quando chegaram ao poder, fizeram um “desconto” na promessa, e o direito à educação universal foi subtraído: no lugar de mais verbas para educação pública, mais isenção fiscal para a educação privada. Sobraram as políticas compensatórias como o “Bolsa Família”: uma amarga contrapartida.

Todos os levantamentos estatísticos disponíveis a partir do censo do IBGE de 2000 e dos PNAD’s dos anos seguintes informam que, apesar de melhoras quantitativas modestas dos índices educacionais, o projeto reformista tem sido um fiasco. O Brasil está mais injusto que há vinte anos atrás, o desemprego mais alto, os salários médios congelados, enfim, a vida ficou mais difícil. A expansão da rede pública foi significativa nos anos sessenta, setenta e oitenta, mas não diminuiu a desigualdade social. Depois, a partir dos anos noventa, vieram as políticas sociais focadas que o governo Lula está preservando, e fracassaram, ainda mais estrepitosamente. A mobilidade social,

1 Valério Arcary é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutor em História Social pela USP. Atualmente leciona História no Ensino Médio(3º ano) e no Curso de Turismo, ambos no CEFET-SP (Centro Federal de educação Tecnológica de São Paulo).

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ou seja, a esperança de ascensão social de uma geração para outra permanece muito pequena. A desigualdade social brasileira continua entre as ais elevadas o mundo. Vinte anos de democracia burguesa e de alternância no poder municipal, estadual e nacional entre a centro direita e a esquerda reformista, que tiveram oportunidade de aplicar os mais variados projetos educacionais, não trouxeram maior mobilidade social. Segundo os dados do IBGE, os 10% mais ricos da população ainda são donos de 46% do total da renda nacional. Já os 50% mais pobres ficam com apenas 13,3%. Há décadas o Brasil anda de lado, ou seja, fica para trás.

A educação não garante mobilidade social ascendente

Eis a primeira questão: a mobilidade social e o lugar da educação como instrumento de ascensão. A primeira constatação da realidade social no capitalismo periférico é que as possibilidades de ascensão social agora estão congeladas.

A sociedade brasileira teve, durante algumas décadas, comparativamente à situação atual, uma mobilidade social significativa. Se analisarmos a origem social da maioria da população urbana adulta e, também, o que podíamos chamar o “repertório cultural” das gerações anteriores nas nossas próprias famílias, veremos que com raras exceções, uma grande parcela foi, individualmente, favorecida pelo aumento da escolaridade de um período histórico anterior. Esse fenômeno é chave para compreendermos a crise atual, porque foi excepcional. O padrão histórico dominante na história do Brasil foi outro. Durante gerações nossos antepassados foram vítimas da imobilidade social e da divisão hereditária do trabalho. Os que nasciam filhos de escravos, não tinham muitas esperanças sobre qual seria o seu destino. Os filhos dos sapateiros já sabiam que seriam sapateiros.

No entanto, a sociedade brasileira entre 1930 e 1980, mesmo considerando-se os limites impostos pelo seu estatuto subordinado na periferia capitalista, foi uma das economias com mais dinâmica no mercado mundial. Perpetuaram-se as desigualdades, por suposto. Mas, existiu durante décadas um capitalismo com urbanização e industrialização. Os dois processos não tiveram a mesma proporção dos anos 30 aos 70. O certo, todavia, é que existiu mobilidade social. Logo, a promessa reformista de que seria possível mudar o capitalismo e viver melhor, através de uma educação pública universal – a percepção popular do nacional-desenvolvimentismo - era uma promessa que alimentava esperanças. Garantia alguma coesão social para a dominação burguesa. A força de inércia das ilusões reformistas – a ideologia de colaboração entre capital e trabalho que resiste à necessidade do confronto e da ruptura - repousava nessa história. A sua superação exigirá uma experiência prática compartilhada por milhões.

Nós que defendemos o projeto revolucionário, não ignoramos que as massas viveram a etapa histórico-política dos últimos vinte anos depositando expectativa em Lula e no PT, porque permaneciam prisioneiras das ilusões

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reformistas. Não defendemos a revolução socialista porque temos um temperamento exaltado. Não apostamos que a revolução brasileira possa vencer sem a mobilização e organização das grandes massas populares. Os mais apressados e nervosos não resistem, geralmente, aos longos anos de uma militância contra a corrente. Os mais exasperados, depois das primeiras decepções, ficam pelo caminho. A luta revolucionária é um assunto para gente muito equilibrada. A revolução exige dedicação, perseverança, exige espírito de sacrifício, reflexão, muita crítica, muita autocrítica, muita disposição de mudar. Gente muito perturbada não tem disposição de mudar, já acha que é perfeita; os revolucionários, não. Acham que são gente incompleta, gente imperfeita, gente em construção. Acham que têm que se corrigir uns aos outros. A adesão ao projeto revolucionário se fundamenta na História: o projeto reformista não tem viabilidade no tempo que nos tocou viver.

Quando raciocinamos neste horizonte de perspectiva, verificamos que a economia brasileira perdeu o impulso que teve até os anos oitenta. Concretizemos: mobilidade social, neste contexto, significava quais eram as possibilidades que cada um tinha de melhorar de vida, preservadas as relações sociais dominantes. Essas taxas são mais acentuadas em uns períodos e menos acentuadas em outros; há sociedades mais congeladas, numa etapa histórica, e há sociedades mais dinâmicas. A questão decisiva é que o Brasil é hoje uma sociedade muito congelada, comparativamente àquilo que ela foi. O capitalismo brasileiro do século XXI é um capitalismo com taxa de mobilidade social muito baixa e a educação deixou de ser um trampolim social.

As possibilidades de se ter recompensas econômicas e sociais, ou uma vida mais segura e mais confortável, através do ensino, está seriamente em crise, além disso a crise já foi percebida pelas massas trabalhadoras e mesmo pelas camadas médias, ainda que façam o possível e até o impossível para garantir uma escolaridade elevada para os seus filhos. Na verdade, não nos enganemos, a função social da educação na sociedade contemporânea é estabelecer a divisão do trabalho que vai permitir a perpetuação das relações sociais existentes. Ou seja, a educação não questiona as relações sociais. Uma outra forma de ilusão reformista é acreditar na quimera de que uma população ais educada mudaria, gradualmente, a realidade política do país. Se fosse assim, a Argentina ou a Coréia do Sul, entre inúmeros exemplos de sociedades que tiveram índices elevados de escolaridade, não seriam infernos para os trabalhadores. Não há maneira de diminuir a desigualdade material e cultural, sem ruptura com o imperialismo. O que mudará o Brasil será a luta popular anticapitalista. Todas as promessas reformistas de que a educação seria o instrumento meritocrático que permitiria que cada um tivesse a sua justa função na sociedade, isto tudo está numa crise completa. Mas, ainda em crise, esta ideologia mantém influência entre as massas – porque as ilusões não morrem sozinhas - em especial entre os professores que são, paradoxalmente, um dos instrumentos sociais de convencimento de que a escola poderia mudar a sociedade.

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A ordem capitalista não seria, todavia, possível, se a maioria das pessoas não acreditasse que esta divisão do trabalho não é algo razoável. É uma ideologia reacionária porque naturaliza aquilo que não é natural. Legitima o que é anti-humano. A ideologia de que o capitalista cumpre uma função necessária, a herança é justa, a desigualdade é inevitável, e a escola é o instrumento que permite a seleção que justifica a divisão do trabalho e a divisão em classes é uma fraude. Primeira falsidade: os patrões não são necessários. Os patrões são inúteis, os proprietários do capital são uma excrescência parasitária que vive da extração de trabalho que não é remunerado. Segunda falsidade: a desigualdade não é natural. Não é razoável vivermos numa sociedade em que a diferença entre o piso e o teto das remunerações varia de um para quinhentos. Como é possível aceitar que o trabalho de uma hora de alguém seja centenas de vezes mais valioso que o trabalho de outro? No Brasil, a desigualdade é tão gigantesca que a classe capitalista é invisível. (...) A burguesia brasileira só é identificada quando usamos o microscópio da estatística e as lentes de aumento da sociologia. É preciso uma análise liliputiana da sociedade brasileira para encontrarmos os proprietários do capital. A educação perdeu para as famílias populares, portanto, o significado de promoção social meritocrática.

O atraso cultural da sociedade brasileira é responsabilidade do Estado

O segundo tema é a idéia de que nós vivemos numa sociedade que não superou significativo atraso cultural. Uma aferição de qual é o nível de escolaridade e o repertório médio da sociedade de hoje, em relação ao que ela foi no passado, mas, também, uma comparação da sociedade brasileira com outras sociedades da periferia, como os países do Cone sul, não é nada animadora. O Brasil é uma sociedade que tem uma forte defasagem cultural. O balanço é devastador: o número de estudantes matriculados aumentou, mas, para desespero nosso, tão lentamente que a melhora é quase imperceptível. O número de certificados emitidos cresceu, mas a qualidade do ensino caiu. Mesmo com uma presença maior das crianças nas escolas, temos ainda pelo menos 14,6 milhões de analfabetos. Os iletrados são, contudo, inquantificáveis.

O analfabetismo funcional – incapacidade de atribuir sentido ao texto escrito em norma culta - está na escala das dezenas de milhões, talvez mais da metade dos brasileiros com mais de quinze anos. Da população de 7 a 14 anos que freqüenta a escola, pelo menos um em cada três não concluem o ensino fundamental. Na faixa de 18 a 25 anos, apenas 22% terminam o ensino médio e, mesmo em São Paulo, menos de 20% estão matriculados em cursos superiores. Segundo Marcio Pochmann, do Instituto de Economia da Unicamp: “no Chile, 80% dos estudantes de 15 a 17 anos estão no ensino médio. Se quisermos chegar lá, temos que incluir 5 milhões de jovens, formar 510 mil professores e construir 47 mil salas”.[2]

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Resumo da ópera: o Estado brasileiro, mesmo na forma do regime democrático - não importando quais os partidos na sua gestão, se o PMDB, PSDB, PFL ou PT - continuou drenando recursos dos serviços públicos para o Capital. Políticas sociais focadas e compensatórias, como o Bolsa Família de Lula, e outros que o antecederam, não obtiveram resultados significativos. O Estado a serviço do Capital se demonstrou historicamente incapaz de garantir uma educação pública e universal. Muitas décadas nos separam do início do processo de urbanização e industrialização, e a desigualdade material e cultural não diminuiu.

O atraso cultural da sociedade brasileira tem, entre outras manifestações, uma expressão dramática, o Brasil é um país de iletrados e semi-analfabetos. É cruel constatar isto assim, todavia a realidade é incontornável. Não é fácil abordar este tema porque a maioria dos trabalhadores nutre um sentimento de inferioridade cultural que é indivisível do sentimento de inferioridade social, todos os que nasceram nas classes trabalhadoras têm, em maior ou menor medida, a percepção de que sabem muito menos do que gostariam de saber e, portanto, sentem inseguranças culturais. Mas, essa dor é muito mais intensa nas amplas massas do nosso país. Não é só uma percepção subjetiva, há um abismo educacional, é um assunto meio tabu, porque é desconfortável. Em geral o brasileiro médio se relaciona com sua pobreza material com dificuldades, mas se relaciona com muito mais constrangimento com sua ignorância. É um tema um pouco intimidador, porém, inescapável para quem trabalha com educação.

A sociedade brasileira do início do século XXI continua uma sociedade Iletrada; a burguesia fracassou em trazer o nosso povo para o que podemos chamar de um acervo cultural mínimo do século XX, que é dominar a matemática e a língua; os “gênios” que nos governam descobriram nestes últimos vinte anos que educação é caro. O Estado não poderia remunerar o Capital e garantir, ao mesmo tempo, a educação pública, inventaram, em conseqüência, um sistema brutal: cada classe tem a sua escola. O ensino passou a ser uma obrigação de responsabilidade, estritamente, familiar e a grande maioria do nosso povo não tem outro instrumento de comunicação senão a linguagem coloquial. A televisão não é somente o grande canal de comunicação, para a maioria é o único, tendo em vista que estão prisioneiros da oralidade. A norma culta do texto continua um repertório desconhecido para a esmagadora maioria do nosso povo. Os números oficiais que consideram o analfabetismo no Brasil como um fenômeno histórico residual, reconhecem algo abaixo de 15%. O ultimo número de 2003, registrava 12,8% de analfabetos na população com mais de quinze anos. Aqueles que trabalham em educação sabem qual é, na verdade, a dificuldade que nós temos. Pelo menos metade do povo brasileiro reconhece as letras, reconhece que as letras são símbolos gráficos que reproduzem sons, mas o domínio da escrita não é isso.

A dinâmica histórica deste atraso cultural não é animadora, se compararmos o Brasil de hoje com o de nossos pais. O que aconteceu neste 18 intervalo de meio século em que o Brasil deixou de ser uma sociedade agrária,

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basicamente, é que o acesso à escola pública realmente se massificou, mas a qualidade do ensino público é atroz. Hoje, a grande maioria das crianças brasileiras com até quatorze anos de idade, em números que superam os 90%, está matriculada na escola pública. Mas, esta escola não corresponde às suas necessidades, o fracasso escolar pode se manifestar de diferentes formas: repetição em alguns Estados, ou evasão em outros, ou ainda péssimos resultados nas avaliações por provas. Pode ser um fracasso oculto pela promoção automática, como em São Paulo.

Temos uma situação na qual a divisão social se manifesta através do abismo que separa a escola pública da escola privada. Mercantilizaram a educação. O capitalismo criou um monstro: o apartheid educacional; a escola privada hoje no Brasil não é somente um fenômeno educacional, é um fenômeno econômico; o faturamento do ensino privado já tem peso significativo no PIB; foi estimado pelo IBGE, para o ano de 2004, acima de R$ 50 bilhões. Talvez nos surpreenda, mas uma das atividades menos regulamentadas pela Receita ou, se quiserem, uma das atividades em que há mais lavagem de dinheiro, é a educação. De tal maneira é a sonegação, que o principal projeto educacional do governo Lula foi a isenção fiscal do ensino superior em troca de bolsas: o Prouni, que renegociou dívidas em troca de matrículas.

Este desastre político-educacional, um apartheid social na educação, tem uma história. A burguesia promoveu, conscientemente, através de seus variados partidos, o desmantelamento da escola pública, cortando as verbas, restringindo a expansão do sistema público. No Brasil, se constituiu uma camada média urbana mais ampla a partir dos anos cinqüenta que, com a crise de estagnação aberta nos anos oitenta e a decadência do ensino público, se viu obrigada a retirar seus filhos das escolas públicas e os colocou na escola privada, esse processo foi potencializado por que toda a estrutura educacional foi organizada em função de um elemento exógeno, exterior ao aprendizado, o vestibular. O Brasil tem um sistema de acesso à universidade que é peculiar, é uma instituição brasileira, o exame vestibular, ele ordena todo o edifício, e explica a privatização.

Aqueles que já passaram pela experiência do vestibular não valorizam, freqüentemente, o lugar que ele tem na estrutura educacional, mas, a morfologia da estrutura educacional no Brasil tem na sua raiz nesse tipo de exame pré-curso superior e a diferença entre ensino privado e ensino público fundamental e médio é que o aluno que está no ensino público, tem muito menos possibilidades de ser bem sucedido numa experiência incontornável que se chama vestibular. E o vestibular separa os jovens entre aqueles que vão estudar na universidade pública, que são as melhores do Brasil e são gratuitas, e aqueles que vão estudar no ensino privado.

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A mercantilização do ensino destruiu a carreira docente

O terceiro tema é uma avaliação da situação do ensino público. A educação brasileira contemporânea agoniza, porque foi completamente mercantilizada. O capitalismo destruiu a escola pública. Não é somente uma situação conjuntural. A escola primária está em crise, as escolas secundárias são impossíveis de administrar, o ensino médio e superior foi privatizado em larga escala. A educação pública é um cadáver insepulto. A promessa liberal do ensino meritocrático – “estudarás, serás recompensado” - não tem correspondência com a realidade. Este discurso encontra uma contra-evidência brutal, esmagadora, e muito simples. Os filhos de diferentes classes estudam em escolas separadas: segregação educacional. Isto não é secundário. Estamos tão habituados - até resignados - com o avanço da educação privada que já não ficamos chocados. A privatização da educação é, por suposto, um processo mundial,mas em vários países europeus, os filhos das diferentes classes estudam na mesma escola, do primário até à universidade. (...) No Brasil, qual é a possibilidade de encontrarmos na escola pública um filho de um burguês? Ao vivo e a cores, a maioria do povo brasileiro nunca viu e nunca verá um burguês, muito menos na sala de aula, ao lado dos seus filhos.

A promessa meritocrática faliu e com ela a escola pública. Todos os jovens das classes populares sabem que a escola em que eles estão, é uma escola na qual o seu destino social já está traçado. Aqueles que estão na escola pública sabem que, por maior que seja o seu talento, a chance de mobilidade social é reduzida, e os filhos da classe média, que estão na escola privada, sabem que vão ter que batalhar, desesperadamente, para conseguir uma vaga na universidade pública. Mesmo para um jovem de classe média argentino, a comemoração de quem é aprovado na USP – a família toda de lágrimas nos olhos, como se tivessem ganhado a loteria federal – é incompreensível, já os poucos que receberão herança e vão viver da renda do capital, estão em absoluta tranqüilidade, fazendo faculdades privadas no Brasil ou no exterior. A escola pública afundou em decadência. Ela foi destruída por vários processos. Além da privatização, o principal foi a desvalorização da carreira docente, a degradação profissional dos professores.

O que é a degradação social de uma categoria? Na história do capitalismo, varias categorias passaram em diferentes momentos por promoção profissional ou por deterioração profissional. Houve uma época no Brasil em que os “reis” da classe operária eram os ferramenteiros: nada tinha maior dignidade, porque eram aqueles que dominavam plenamente o trabalho no metal, conseguiam manipular as ferramentas mais complexas. Séculos antes, na Europa, foram os marceneiros, os tapeceiros, e em muitas sociedades os mineiros foram bem pagos, relativamente, por muito tempo. Houve períodos históricos na Inglaterra – porque a aristocracia era pomposa - em que os alfaiates foram excepcionalmente bem remunerados. Na França, segundo alguns historiadores, os cozinheiros. Houve fases do capitalismo em que o estatuto do trabalho manual, associada a certas profissões, foi maior ou

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menor. A carreira docente mergulhou nos últimos vinte e cinco anos numa profunda ruína. Há, com razão, um ressentimento social mais do que justo entre os professores. A escola pública entrou em decadência e a profissão foi, economicamente, desmoralizada.

Os professores foram ideologicamente desqualificados diante da sociedade. O sindicalismo dos professores, uma das categorias mais organizadas e combativas, foi construído como resistência a essa destruição das condições materiais de vida. Reduzidos às condições de penúria, os professores se sentem humilhados. Este processo foi uma das expressões da crise crônica do capitalismo. Depois do esgotamento da ditadura, simultaneamente à construção desse regime democrático liberal, o capitalismo brasileiro parou de crescer, mergulhou numa longa estagnação. O Estado passou a ser, em primeiríssimo lugar, um instrumento para a acumulação de capital rentista. O Estado retira da sociedade através de todos os mecanismos -o fisco e todos os mecanismos arrecadatórios - uma parte da mais-valia que é produzida e a redistribui para o Capital, isso significa que os serviços públicos foram completamente desqualificados.

Dentro dos serviços públicos, contudo, há diferenças de grau, as proporções têm importância: a segurança pública está ameaçada e a justiça continua muito lenta e inacessível, mas o Estado não deixou de construir mais e mais presídios, nem os salários do judiciário se desvalorizaram como os da educação; a saúde pública está em crise, mas isso não impediu que programas importantes, e relativamente caros, como variadas campanhas de vacinação, ou até a distribuição do coquetel para os soropositivos, fossem preservados. Entre todos os serviços, o mais vulnerável foi a educação, porque a sua privatização foi devastadora. Isso levou os professores a procurarem mecanismos de luta individual e coletiva para sobreviverem.

Há formas mais organizadas de resistência, como as greves, e formas mais atomizadas, como a abstenção ao trabalho. Não é um exagero dizer que o movimento sindical dos professores, em todos os níveis, ensaiou quase todos os tipos de greves possíveis; greves com e sem reposição de aulas, greves de duas, dez, quatorze, até vinte semanas, greves com ocupação de prédios públicos, greves com marchas e muitas e variadas formas de resistência individual: cursos para administração escolar, transferências para outras funções, cargos em delegacias de ensino e bibliotecas e, também, a ausência. Tivemos taxas de falta ao trabalho, em alguns anos, elevadíssimas. Além disso, temos uma parcela dos professores, inquantificável - é um tabu dentro das instituições e nos sindicatos - que são aqueles colegas que freqüentam a escola, mas não dão aulas. Entram na sala de aula, passam uma atividade na lousa e dispensam os alunos – faz quem quer, quem não quer sai –, já desistiram de dar aulas, é o último degrau. Cria-se uma situação de conflito latente entre os professores que dão aula e os professores que não dão aula. Por último, uma parcela dos professores desabou. “Surtaram”: as doenças profissionais são elevadíssimas, entre elas, a depressão é epidêmica. (...)

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Universidade(s) Oberdan Rafael P. L. Santiago2

Breve resgate da educação

Para compreendermos como se desenvolveu a educação no Brasil precisamos entender como se deu a sua colonização. No século XVI a Igreja passava por um período de crise do catolicismo, o recém-surgido“protestantismo” pregava a realização do homem na Terra enquanto a Igreja Católica pregava uma vida de privações para que a redenção humana ocorresse após a morte. O protestantismo começou a converter, então, vários católicos na Europa devido a esta diferença, principalmente. Com a descoberta do Novo Mundo, a Igreja percebe uma forma de ganhar fôlego caso expandisse o cristianismo para o restante do mundo, ou seja, para as Américas. No entanto, o seu papel principal na colonização seria outro.

“… reluzia, clara como o sol, para a cúpula real e para a Igreja, a

missão salvacionista que cumpria à cristandade exercer, a ferro e fogo, se preciso, para incorporar as novas gentes ao rebanho do rei e da igreja. Esse era um mandato imperativo no plano espiritual. Uma destinação expressa, uma missão a cargo da Coroa, cujo direito de avassalar os índios, colonizar e fluir as riquezas da terra nova decorria do sagrado deve de salvá-los pela evangelização”.3

Ou seja, no processo da colonização, podemos dizer que a presença da Igreja serviu somente para referendar as cruéis práticas desenvolvidas pelos colonos.

No Brasil os Jesuítas foram os precursores da educação, porém sua intencionalidade pedagógica era voltada para a “domesticação” dos índios. Enxergavam a colonização como um mal necessário para o caminho da fé, e assim foram responsáveis direta e indiretamente pela morte e pela escravização de milhares de índios.

No entanto, com a expulsão dos jesuítas do Brasil, não restou praticamente nenhuma outra forma de ensino4, o sistema vigente era escravocrata, logo, não despertava nenhum interesse na Coroa Portuguesa em se estabelecer um sistema de ensino. A elite que vivia no Brasil mandava seus filhos estudarem na Europa, ou, de forma mais rara, trazia professores do Velho Mundo para ensinarem os mesmos.

2 Estudante de engenharia florestal e militante da ABEEF 3RBEIRO, Darcy. O povo brasileiro, A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia de Bolso. p. 54. 4Vale lembrar que as várias tribos indígenas não são consideradas aqui, mas isso não significa que podemos desprezar sua cultural.

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Um importante marco histórico para a educação brasileira, é a vinda de D. João VI para o Brasil, no séc. XVIII. Com a elevação do Brasil a Reino Unido e a Corte aqui instalada, a Coroa submete o país a uma política que força a “metropolização”. Fez parte disso, o transplante das funções das instituições escolares de Portugal. Porém, naquela época “a estrutura da sociedade brasileira revelava ao máximo as limitações do regime colonial português. Mesmo os testamentos senhoriais não possuíam condições e motivações, especificamente intelectuais e educacionais, para imprimir densidade e intensidade à experiência”.5Essa condição da sociedade brasileira comprometeu o modelo institucional transplantado, pois o ensino superior se distanciava muito da realidade. Além disso, “motivos políticos, relacionados com a defesa das prerrogativas da Coroa e do fortalecimento da dominação portuguesa, e razões práticas, ligadas à dispersão demográfica, às imposições de uma sociedade de organização estamental e de castas ou ao atraso cultural imperante, inspiraram uma política educacional estreita e imediatista. Em conseqüência, o que se implantou no Brasil não foi a universidade portuguesa da época, mas as unidades intermediárias, as ‘faculdades’ e ‘escolas superiores’”6, ou seja, o que interessava formar, eram pessoas com um mínimo de formação técnico-profissional aptas a exercerem papéis específicos na burocracia e na estrutura política, além daqueles no plano das profissões liberais. Logo, o ensino superior brasileiro já nasce distante da sociedade. Ao contrário de Portugal, que, apesar da crise, a universidade também cumpria a função de “investigação” da sociedade na qual estava inclusa e a de produzir conhecimentos. Podemos concluir, também, que instalação da Coroa no Brasil é marco importantíssimo, ainda que negativamente, para o desenvolvimento cultural brasileiro, pois tornou o Brasil extremamente dependente da cultura do exterior.

Ainda no séc. XVIII, devido a crescente necessidade de se ter mão-de-obra qualificada, surgem as “Escolas de Ofício” para jovens ao redor da faixa etária de 13 e 14 anos, é importante deixar claro que essas escolas não eram freqüentadas pela classe alta, de forma alguma, ou seja, surge o ensino profissionalizante, não muito diferente do que há hoje. Na mesma época havia,também, uma crescente demanda por pessoas na máquina administrativa. Nascem, então, as Faculdades de Direito. Esse ensino, ao contrário do profissionalizante, foi criado para atender os filhos da classe dominante.

Com a industrialização do país, especialmente a partir da década de 1950, a sociedade fica mais complexa e aumenta-se a necessidade de mão-de-obra qualificada. Assim, ocorre a intensificação da dualidade do ensino público a partir do estado social do indivíduo: ensino profissionalizante para os desfavorecidos economicamente e ensino superior para a classe média. A alta

5 IANNI, Octavio. Florestan Fernandes: sociologia crítica e militante. São Paulo: Expressão Popular, 2004. p. 276. 6 Idem.

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classe mandava, e ainda manda, seus filhos para serem educados no exterior. Podemos ver que isso é uma herança do pensamento escravocrata, que tem uma concepção nefasta de trabalho.

Essa dualidade é agravada ainda mais com o Golpe de 1964. Há uma verdadeira explosão do ensino profissionalizante por toda parte do país. Porém esse crescimento não ocorre com o devido investimento do Estado e o ensino profissionalizante se torna precário. Ainda na ditadura, especialmente a partir da década de 1970, as Instituições de Ensino Superior Privado começam a ter um crescimento mais significativo. Isso se dá principalmente devido à intensificação da industrialização do Brasil, promovida às custas de incentivos fiscais e mão-de-obra barata. Com isso, o país passou a necessitar de um maior número de trabalhadores qualificados tecnicamente a nível superior.

Mesmo com a redemocratização, na década de 1980, os governos continuaram a não investir de forma massiva na educação, porém, ocorreram reformas curriculares importantes para o ensino superior e Unicamp e PUC – SP viram referências no movimento da educação.

A Constituição de 1988 estabeleceu que o Brasil tivesse que desenvolver um Plano Nacional de Educação (PNE) até 1998. Diante disso, a sociedade acaba se movendo, os educadores se mobilizam para a realização dos Fóruns em Defesa da Educação, que são organizados para discutir uma proposta de ensino para o país. O PNE montado pelos movimentos da educação foi feito a tempo, mas quando o governo FHC soube que o projeto poderia ser aprovado, Paulo Renato, então Ministro da Educação, elaborou um outro PNE que foi aprovado em janeiro de 2001. O PNE é válido por 10 anos, ou seja, em 2010 haverá um novo programa.

Hoje a situação da educação pública é muito delicada, os ensinos fundamental e médio públicos estão precários (alternativa que o governo encontrou para “democratizar” o acesso a estes tipos de ensino foi de expandi-los). No entanto essa expansão se deu sem o devido investimento tanto na infra-estrutura quanto em contratação e qualificação de professores e técnico- administrativos, ou seja, procurou-se apenas em atenuar as estatísticas que incomodavam. Agora chegou a vez do ensino superior público.

A Universidade hoje

O modelo universitário da América Latina passou a se desenvolver de uma forma característica, a partir da Reforma de Córdoba de 1918, baseado em certa autonomia das instituições públicas, em um grande domínio da educação pública e gratuita. No entanto, não se desenvolveu uma forma de acesso democrático. É um modelo de universidade criado para responder as necessidades do mercado de trabalho, bem parecido com o Modelo Universitário Napoleônico7.

7 SEMBINELLI, Maria F. A. Configuraciones y características actuales de la universidad em relación a los modelos tradicionales.

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Ao verificar o desenvolvimento da universidade brasileira, constatamos que nunca logrou cumprir a função de analisar a sociedade e propor formas de mudanças que contribuísse para o desenvolvimento autônomo do país. Claro, esse tipo de universidade não interessa às forças internacionais, que tem os seus meios para intervir, através dos seus órgãos (ONU, Unesco, Banco Mundial, BID etc.) pelos quais farão descer suas políticas educacionais através do MEC. Hoje a universidade, como todo o restante do sistema educacional, está adaptada aos requisitos de uma sociedade competitiva e de massas (capitalista). Por outro lado, a América Latina encontra-se um uma situação débil, no entanto seus governantes possuem uma ânsia em participar dos avanços logrados pelos países “desenvolvidos”, sendo que, para isso, necessitem de amplo suporte externo para o fazê-lo. No entanto, esse suporte externo nunca ocorre sem as agressões que o desenvolvimento dependente causa. Essas “assistências”, “colaborações técnico-financeiras” acabam por expor os seus sistemas de ensino ao controle de forças imperialistas.

Diante desse plano de fundo, vemos que a universidade brasileira apresenta algumas estruturas fundamentais que garante essa condição de dependência: a metodologia do ensino, o Projeto Político Pedagógico (PPP), a “autonomia”, o acesso e o financiamento insuficiente do Estado.

A metodologia aplicada no ensino superior, como no restante do sistema educacional, é baseada no sistema bancário de educação. Ou seja, a relação educador-educando se dá a apenas “relações fundamentalmente narradoras, dissertadoras”8 em que o educador – o professor – é o dono da verdade e o educando – o estudante – é o ser sem luz aluno) que recebe o depósito do conhecimento do professor. Essa metodologia em o seu lado perverso, pois mostra a relação opressor-oprimido como se fosse algo natural do ser humano, desde os 6 anos de idade do indivíduo. Segundo Paulo Freire,esse tipo de metodologia trata a realidade como algo estático, compartimentado e bem-comportado. Ora, se tratamos a realidade como algo parado, não temos base de análise para propor mudanças. Ou seja, desenvolvem-se teorias distanciadas da realidade, na maioria das vezes calcadas em pensamentos mecanicistas e/ou idealistas. Logo, negam a dialética.

Por outro lado, o acesso ao ensino superior também é um fator limitante da universidade brasileira. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2004, realizada pelo IBGE, apenas 17,3% dos jovens freqüentam o ensino superior, sendo que destes, apenas 23,3% (ou 4,9 % do total) estão nas universidades públicas, que são, geralmente, as melhores. O meio de acesso a esse tipo de ensino público é o vestibular que não é nada democrático e as provas que dão acesso à universidade pública são as mais “difíceis” do país e que geram uma gigantesca indústria de cursos pré-vestibulares. Assim, são poucas pessoas menos favorecidas economicamente

8 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. 57.

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que conseguem entrar na universidade. Quando conseguem entrar, enfrentam outra dificuldade muito maior que é a permanência, dependem de políticas de assistência estudantil da universidade, que muitas vezes são insuficientes.

Se antigamente a universidade era composta apenas pela burguesia, hoje está em curso certa mudança. Atualmente ainda há a predominação da classe média alta nas universidades públicas, 74,3% dos estudantes tem renda familiar média entre 927 a 2804 reais, onde estão, as classes C, B2 e B19. O que vimos foi que o Estado se viu forçado em aumentar o acesso à universidade nessa nova fase do neoliberalismo como forma de fortalecer o próprio sistema. Mas primeiramente o acesso da classe média baixa e dos pobres ao ensino superior se deu por meio das Instituições de Ensino Superior Privado (IESP), através do financiamento estudantil, o FIES, e mais recentemente através do Pró-Uni, que gera imensos lucros para as IESP. Essa política do governo realmente fez com muitos trabalhadores tivessem condições de conseguir um diploma de ensino superior, no entanto, as vagas que a maioria deles ocupa são de instituições de péssima qualidade, sendo que muitas delas reprovadas pelo próprio sistema de avaliação do MEC.

O setor privado apresenta hoje um crescimento fenomenal. Como o governo não consegue, ou não quer, democratizar o ensino superior, o setor privado o tomou como a grande galinha dos ovos de ouro, pois nunca houve uma população jovem propensa a freqüentar o ensino superior tão grande.

Quadro 01: Evolução da matrícula do ensino superior público e privado no período de 1990 até 2000 10

9 Fonte: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Perfil socioeconômico dos estudantes de graduação das Instituições de Ensino Superior 2003/2004. 10

Retirado de “O ensino superior privado como setor econômico” de Jacques Schwartzman e Simon Schwartzman

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Outra característica do setor privado é o fato de a evasão estudantil ser consideravelmente maior que no setor público, muitas vezes, além de estudar à noite, trabalha durante o dia para pagar os custos do estudo e isso pode ser insuficiente, o que causa uma grande inadimplência nas IESP. Ou mesmo quando o estudante não trabalha, os gastos acabam sendo muito onerosos para a família.11

Tabela 01: Porcentagem de estudantes formados por entrantes, por área de conhecimento e tipo de instituição.

Por outro lado, o setor público está passando por um momento muito delicado. A nova ordem agora é o desmantelamento do ensino superior público e gratuito. Desde o governo FHC, através da Desvinculação das Receitas da União, o setor universitário vem recebendo cada vez menos verba do Estado (ver quadro 02). Isso acontece justo em um período de intenso crescimento da população jovem, não só no Brasil, mas em toda a América Latina, onde o ideal seria o contrário, aumentar a verba para uma expansão com qualidade desse setor para atender a demanda. Diante dessa situação, as universidades se vêm obrigadas a constituir parcerias com as empresas, que normalmente se estabelecem no âmbito das pesquisas. E sua qualidade é medida pela sua produtividade: quanto produz, em quanto tempo produz e qual o custo que produz. Podemos verificar que não se questiona o que se produz, como se produz, para que ou para quem se produz. Essa questão é muito séria, pois aquelas universidades que conseguem estabelecer relações mais fortes com o privado (que costumam ser as empresas transnacionais) conseguem mais dinheiro, o que acaba direcionando o ensino. Estas são os chamados centros de excelência. A partir dessa prática a Universidade perde a sua autonomia. A sua pesquisa passa a ser feita através dos editais abertos que aparecem. Ou

11

É importante lembrar que não podemos analisar a inadimplência separada as demais particularidades das IESP, mas que este acaba sendo o fator principal para o abandono do curso superior.

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seja, a universidade que precisa de dinheiro se vê obrigada a utilizar esses editais de pesquisas em detrimento a um outro viés de pesquisa que poderia fazer. Esta prática se torna cada vez mais comum. No final dos anos 1990, ocorre uma mudança significativa na estrutura universitária, o seu eixo passa a ser ciência, tecnologia e inovação. É importante observar que “inovação tecnológica” está ligada a “feitichização” de uma mercadoria (como um celular que não tinha câmera, mas agora tem; ambos, celular e câmera, não são tecnologias novas). A universidade passa, então, a ter um novo papel: prestar serviços para empresas, principalmente as transnacionais. Outro detalhe, é que o dinheiro advindo dessa prestação de serviços não é gerenciado pelos espaços públicos da universidade, mas sim pelas fundações privadas. “As tensões e os conflitos sociais desempenham a função de oferecer campo para a inovação, não interferindo ou interferindo muito pouco na calibração e na amplitude das soluções em processo. Tudo se passa como se existisse a consciência de que os problemas não são resolvidos socialmente, no nível técnico, por causa de obstruções de natureza social, cultural ou política – e não por falta de técnicas sociais apropriadas”12. Diante desse plano, há um horizonte cruel para a universidade: o da privatização.

3,68 4,03 3,99 3,823,44 3,5

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1,00

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4,00

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8,00

9,00

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2000 2001 2002 2003 2004 2005

Investimento naeducação emrelação ao PIBdo respectivoano (em %).

Quadro 02: Investimento do Estado na educação em relação ao PIB do respectivo ano, valor em porcentagem.13

Podemos afirmar, então, que a pesquisa passa a ser uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para alcançar um objetivo. Ou seja, “não é o conhecimento de algo, mas a posse de instrumentos para

12 IANNI, Octavio. Florestan Fernandes: sociologia crítica e militante. São Paulo: Expressão Popular, 2004. p. 311. 13 Fonte: IBGE e STN (retirado do jornal Brasil de Fato, número 233, ano 5. Edição Especial: Educação, agosto de 2007)

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intervir alguma coisa. Por isso mesmo, numa organização [a nova configuração da universidade] não há tempo para a reflexão, a crítica, o exame de conhecimentos instituídos, sua mudança ou sua superação. Numa organização, a atividade cognitiva não tem como nem por que se realizar. Em contrapartida, no jogo estratégico da competição no mercado, a organização se mantém e se firma se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades, obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos micro-problemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. A fragmentação, condição de sobrevivência da organização, torna-se real e propõe a especialização como estratégia fundamental.”.14

No entanto, aquelas que não conseguem estabelecer essa relação com as grandes empresas, acabam por entrar em um processo de precarização. Isso pode ser verificado dentro dos próprios “centros de excelência”, a sua grande contradição. Nestes, os cursos ligados ao agronegócio ou ao setor tecnológico são os mais bem estruturados enquanto que aqueles da área de humanas são precários, sofrem pela falta de uma boa estrutura e de professores. Isso é reflexo do preconceito que as ciências humanas sofrem na sociedade. Normalmente esses cursos são tidos como “aqueles em que não é preciso pensar”. Mas sabemos que este preconceito não é gratuito.

Contudo, é bom salientar que essa ocasião por que passamos já era anunciada há tempo. A falta de uma política para longo prazo que culminasse realmente na democratização do ensino superior, agora não pode ser sanada no imediatismo. Hoje, o governo adota uma série de políticas para que o ensino superior seja “democratizado”. Essas medidas consistem na ampliação de vagas nas IFES de diversas maneiras. Mas o problema é que essa ampliação não é acompanhada com o devido investimento, o que causará uma grande perca na qualidade do ensino. Outra frente em que o governo está agindo para “democratizar” o acesso à educação superior, é o incentivo ao ensino à distância. Essas medidas vão satisfazer apenas às estatísticas, pois o problema estrutural do acesso ao ensino superior gratuito e de qualidade não será sanado. Outra ilusão que é passada ao povo brasileiro é que essas medidas vão sanar os problemas de desemprego no Brasil por uma questão muito simples: o que faltava era a qualificação profissional. Logo, quando todos tiverem acesso à universidade isso estará solucionado. O problema não é tão simples assim. Nega todo o passado do país e de seu papel no capitalismo mundial.

Quando analisamos nessa perspectiva vimos que o amplo acesso da população ao ensino superior só será permitido, só será proporcionado, quando não comprometer o funcionamento do sistema. Diante disso perguntamos: qual é o papel da universidade? Bom, o seu papel é analisar criticamente a sociedade na qual está inserida e propor soluções para as suas mazelas ou mudanças que a façam progredir, o que significa desenvolver tecnologias sociais. Isso se dá de diversos maneiras, desde a elaboração curricular até a pesquisa, a investigação científica. Ora, um sistema universitário que

14

CHAUÍ, Marilena. A Universidade hoje.

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funcionasse assim, com certeza colocaria em cheque o atual sistema, que extorque drasticamente todos os países “subdesenvolvidos”. Logo, para que a população tenha acesso ao ensino superior, este tem funcionar de forma que não questione a ordem. Portanto, o processo de desmantelamento da universidade não é “a toa”. Estão sendo criadas diversas maneiras para garantir que as IES’s tenham o seu ensino direcionado. Uma delas é o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior, que pune as instituições reprovadas e gratifica as mais bem conceituadas e impõe um padrão de ensino a ser seguido pelas instituições, que é moldado inteiramente pelo interesse das empresas transnacionais. Isto deveria ser ao contrário, dever-se-ia investir nas reprovadas para garantir que lograsse melhoras e o resultado da avaliação deveria ser sigilosa. Esse sistema proporciona um ranqueamento das IES de modo que sejam afirmados os centros de excelência. Resumindo, podemos dizer que a Universidade Pública passa por um momento decisivo na sua história e cabe a nós, sociedade brasileira impedirmos esse triste fim do ensino superior gratuito e de verdadeira qualidade. Movimentos de Resistência: a trincheira universitária

Dizemos que a universidade é o reflexo da sociedade. Isto é, está inserida em um contexto muito maior, em um sistema que a utiliza para se reproduzir através da ideologia (aparelho ideológico). Assim como há os movimentos de resistência na sociedade, há também na academia. Esses cumprem uma função importantíssima e que não podemos deixar de lado na luta pela transformação da sociedade, embora não estejam no centro. Estão localizados no seio de um dos principais aparelhos ideológicos e que em seu conteúdo possui “por base considerações valorativas, posição de classe visão de mundo e a subjetividade de quem seleciona”15. Desse modo, possuem limites e potencialidades peculiares que devem ser bem debatidos e compreendidos para poderem atuar da melhor maneira.

Hoje, essas forças contestatórias são marginalizadas, principalmente pela mídia. Há uma enorme massa de estudantes e professores apáticos. São poucos os que “tomam posição” e atuam realmente com responsabilidade política, tanto dentro quanto fora da instituição. Entre os docentes, prevalecem fortemente os valores e interesses das profissões liberais (tais outras como médico, advogado etc.), fato que os afastam do povo e fazem com que refiram “soluções técnicas” para as mazelas da sociedade. Mas não podemos negar a luta pela educação que o movimento docente vem travando em toda a América Latina.

No entanto, a única forma dos movimentos universitários contribuírem para todo o povo, é que eles atuem como movimento social associado, logicamente, à perspectiva do povo. Para atuarem dessa forma, devem ter um

15IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo:

Expressão Popular, 2007. p 160

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horizonte político, uma estratégia. Para alcançá-la, podem desenvolver diversas táticas (ações), mas que sejam balizadas pela conjuntura e que sejam traçadas e executadas em conjunto com os Movimentos Sociais populares, pois a universidade não será transformada de dentro para fora. Pelo contrário. Seus muros irão cair de fora para dentro, como conseqüência da transformação do sistema.

A exemplo disso, podemos citar A Reforma Universitária de Córdoba de 1918, a maior conquista universitárias da América Latina, que teve reflexo em todo o continente. Mas não perdurou porque na sociedade não havia suporte para uma universidade popular que não fosse totalmente autônoma do Estado: “Pero si la reforma como movimiento social ha sido superado, susreivindicaciones que le dieron vida mantienen hoy toda su vigencia. La lucha por la autonomía, el cogobierno, la docencia libre, la cátedra paralela, debe ser integrada a un planteamiento de conjunto de la cuestión educativa. Esta lucha debe partir de la conclusión a la que arribaron los sectores más avanzados del movimiento reformista: la transformación educativa es inseparable de la transformación social dirigida por la clase obrera contra la opresión y la miséria capitalista. La Revolución educativa solo puede realizarse como revolución social”. 16

Esse episódio histórico deixou grandes lições para o Movimento Estudantil da América Latina:

- Sempre que defender estritamente os interesses dos estudantes (específicos), cairá no corporativismo. Irá se desviar do caminho do povo e, conseqüentemente, navegará sem rumo no mar da história;

- Se somente se ater às lutas fora da universidade, tenderá ao propagandismo e perderá as suas raízes, deixando de cumprir seu papel ali. Universidade Popular

“Nenhum país pode aspirar a ser desenvolvido e independente sem um forte sistema de ensino superior”. Estas são as primeiras palavras das Diretrizes da Educação Superior do Plano Nacional de Educação. À primeira vista, parece ser muito belas. Mas somente à primeira vista. Para eles, um ensino superior forte na América Latina é aquele que consegue atender as demandas das transnacionais presentes no país e reproduzir a ideologia capitalista. E é isso que a educação superior brasileira faz. Ou seja, na atual conjuntura é impossível que tenhamos uma universidade realmente democrática e que seja fator ativo na mudança social (Universidade Popular)

16SOLANO, Gabriel. La Reforma Universitária de Córdoba: Fundación Del movimiento estudiantil latino-americano.

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através da via institucional. Do contrário, não será verdadeiramente popular, apenas fará maquiagens no modo de funcionamento.

Uma universidade que não tem o propósito de funcionar como aparelho ideológico do Estado (aqueles que reproduzem o conjunto de idéias que o sustentam), hoje só pode ser criada antida por movimentos sociais. Ou seja, somente os movimentos sociais autônomos têm a capacidade de construir uma ferramenta de tal magnitude para combater o sistema. A Universidade Popular é o local em que os movimentos sociais vão qualificar os militantes, formar seus quadros técnicos e políticos. De lá, sairão compromissados com o povo, com o compromisso de atuarem nos diversos flancos que compões a luta de classes. Para isso, não serão necessários vestibulares ou qualquer outro tipo de exame de seleção. O que determinará, será a convicção ideológica e a disposição para a luta de classes.

A história é a alma do povo. É através do resgate profundo de toda a dimensão histórica, de todos(as) aqueles(as) que defenderam e lutaram pelo povo, de toda a trajetória do povo é que se criam condições para a apreensão da totalidade da realidade. Mas para isso, é necessário ter uma maior compreensão do funcionamento do sistema vigente: o capitalismo, ou seja, é preciso que haja o estudo aprofundado da economia política para deslegitimarmos o modelo capitalista do ponto de vista ético, primeiro temos de fazê-lo do ponto de vista econômico. Para tanto, uma sólida formação sobre economia política é indispensável. Como plano de fundo, a universidade Popular deve ter uma filosofia que não trate os acontecimentos de uma forma espontaneísta e isolados do todo, e muito menos coloque o indivíduo no centro da questão, como se não estivesse inserido em um coletivo: o pós- modernismo, que fragmenta a realidade e, assim, ignora a existência de estruturas ou sistemas. Deve usar a filosofia marxista, pois somente ela é capaz de interpretar realidade como um todo em movimento e possibilitar avanços para a verdadeira emancipação humana. Portanto, esses são os três pilares básicos sobre os quais deve-se erguer uma Universidade Popular: historicidade do povo, totalidade da realidade e o materialismo histórico dialético.

Porém, como dizia Paulo Freire, “ficar longe do Povo é uma forma de ficar contra ele”. Isto é, em uma Universidade Popular deve desenvolver métodos de trabalho com o povo, mas que estejam muito longe de ser uma invasão cultural. Deve ser um trabalho construído junto com o povo e de nenhuma forma tratado como uma coisa isolada. Há que ser parte do processo educativo, enfim, ter uma intencionalidade pedagógica referenciada na ação- reflexão- ação, na práxis libertadora, no processo de formação da consciência, ou seja, deve trabalhar sob um método que possibilite a formação do novo homem e da nova mulher e gerar ferramentas para disputar a hegemonia intelectual.

Diante disso, podemos dizer que o papel que Universidade Popular tem é o de ajudar a organizar o povo. Esse deve ser o propósito da formação ali praticada, já que esta só tem sentido se estiver inserida em um horizonte

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transformador, das pessoas e da realidade e isso só pode ser feito através de ações concretas de um povo muito bem organizado, logo, com alto nível de consciência. “A tarefa principal da formação é motivar para que os silenciados saiam de se silêncio, que os dominados aceitem sair da dominação através da luta”.

Quando falamos de Universidade Popular, não podemos deixar de citar a Universidade Popular Mães da Praça de Maio da Argentina. Inaugurada em 2000, que proporciona o desenvolvimento de um pensamento crítico e batalha para recuperar as tradições de lutas populares. Também abre espaço para que setores populares e os diversos movimentos sociais possam participar e criar formas de construção política. A Universidade tem 10 carreiras (cursos), sendo que a base para todas elas é a formação política, o resgate da história das lutas populares e dos legados que deixaram os lutadores e as lutadoras do povo.

No Brasil, há a Escola Nacional Florestan Fernandes, inaugurada em 2005 e construída através do trabalho voluntário de vários companheiros e árias companheiras do MST, que adota uma prática que nos permite chamá-la de Universidade Popular. Lá, não são ministrados cursos profissionais, mas é um lugar de importância histórica para os movimentos sociais da América Latina, pois antes de ser um centro de formação de quadros, é um local que representa o povo em busca de toda a formação que lhe foi negada (assim como a UPMPM) historicamente para usá-la na transformação social.

Considerações Finais

Dependência, é esta a palavra que traduz o processo de“desenvolvimento” desde invasão dos Europeus na América Latina. Hoje, no âmbito da educação, verificamos que as medidas adotadas pelo Estado só acarretam no aprofundamento da dependência externa cultural, econômica e política. Isso vem como premissa básica a todo o continente latino-americano, para que “atraísse investimentos externos” que proporcionassem condições de se desenvolver, espelhados nos países do G7. O fato de a Educação deixar de ser um serviço exclusivo do Estado, faz com este apenas dite as diretrizes e se desobriga de uma atividade verdadeiramente política. Além disso, pode ser privatizada.

O Plano de Reforma do Estado, desenvolvido nos anos 1990, caracteriza as universidades, as escolas técnicas, os museus e os centros de pesquisas como “organizações sociais”, assim, podemos dizer que a universidade é que presta serviço ao Estado e celebra contratos de gestão que estabelece metas e indicadores de desempenho. Ou seja, a autonomia universitária se reduz ao gerenciamento empresarial da instituição.

Outra palavra que passamos a ouvir muito, é a “flexibilização” da universidade. Essa flexibilização está substituindo os professores de dedicação exclusiva por outros com contratos flexíveis, que são temporários e oferecem

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condições de trabalho praticamente precárias. Outra conseqüência dessa flexibilização ocorre na adaptação de currículos às necessidades profissionais de cada região, isto é, às demandas das empresas localizadas em seu entorno. Além disso, separa docência – que fica na universidade – e pesquisa – que vai para os centros autônomos de pesquisa, já que os recursos que a universidade recebia para a pesquisa, é destinado à ampliação de vagas da graduação.

“Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Este ditado popular é um grosso resumo da história de dominação da América Latina, no entanto, esconde, nas entrelinhas, a resistência. Quem resiste ou contesta, não tem juízo. Mas, ao contrário, Cuba tem a história para nos mostrar a verdade. Por aqui, o setor educacional é o que mais reforça essa lógica opressor-oprimido, dia após dia. Mas os centros de educação popular desenvolvem importantes políticas e metodologias alternativas que são usadas pelos movimentos sociais.

A Universidade Popular aparece, hoje, como um instrumento magnífico na busca pela emancipação do homem e da mulher. Para cumprir seu papel, não é necessário conferir-lhe uma forma específica, análoga à universidade institucional. Assim, tanto a Universidade Popular Mães da Praça de Maio, quanto a Escola Nacional Florestan Fernandes, são belíssimos instrumentos do povo, que desafiam a burguesia já que mostra todo o potencial do povo organizado. Por outro lado, desde quando se criou a universidade, na Europa, sempre foi caracterizada como uma “instituição social”, com reconhecimento público de suas atribuições e legitimidade. Através das lutas socias e políticas advindas da conquista da educação e da cultura como direitos, a universidade se tornou indissociável do ideal da democracia e democratização do conhecimento. Logo, enquanto instituição social, a universidade não pode se furtar das questões ideológicas, que são sua questão própria, já que lhe cabe a questão sobre qual o lugar das idéias no processo de produção material da sociedade.

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Conceitos e Perspectivas

da Educação Popular

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Educação Popular Adaptado do caderno “Concepção de Educação Popular do CEPIS” CEPIS – Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae

São Paulo, Março de 2007

Educação popular não é um discurso acadêmico sobre um método, oque muitas vezes tem-se entendido, nem um produto acabado ou uma receita simples ou mágica. Não se confunde com dinâmica de grupo, usada como instrumento tático ou atrativo, para animar pessoas e grupos. As dinâmicas são recursos necessários para estimular a participação e cooperação das pessoas envolvidas. Da mesma forma não é um método fácil que populariza a complexidade, embora faça o esforço criativo de traduzir conceitos abstratos numa linguagem cotidiana, em metáforas e símbolos acessíveis.

Duas pessoas podem fazer o mesmo procedimento, com resultados e significados completamente opostos. Uma técnica pode significar uma prática onde a ação, o produto da ação e a finalidade da ação sejam termos exteriores uns aos outros. Beijar uma criança, abraçar um velho, carregar um andor em procissão, pode não expressar a convicção de quem fez isso e, ao chegar em casa, banhar-se de álcool para livrar-se desse contato, que era apenas para angariar votos, simpatia... Na Educação Popular, o agir do educador mantém íntima ligação de sua crença com o ato, o produto e a finalidade de sua ação.

Seria um equívoco reduzir a Educação Popular ao uso de procedimentos – dinâmicas, recursos audiovisuais e pedagógicos... – que facilitam a integração e o entusiasmo das pessoas. Essa visão é enganosa, pois a “euforia do participativo”, por si só, não prepara as pessoas para serem protagonistas, entender a realidade social e comprometer-se com sua transformação. Muitas vezes, procedimentos participativos contribuem para que as pessoas sejam manipuladas e tenham a impressão de que são “parte”. Existem ONG’s (Organizações Não Governamentais), por exemplo, que praticam o“socionegócio”. Ganham dinheiro, por ideologia ou por oportunismo, promovendo oficinas, laboratórios, talleres, workshops, motivações e outros eventos, que “domesticam” e capacitam cidadãos e cidadãs como novos escravos, vão alimentar a continuidade do mercado capitalista.

A Educação Popular insiste no uso de recursos pedagógicos como instrumentos, que ajudam na incorporação dos conteúdos e do próprio método. Assim, por exemplo, o uso de imagens são caminhos importantes para alcançar um objetivo. São instrumentos que ajudam no processo de tradução, reconstrução e criação coletiva do conhecimento sobre a realidade, mas não podem ser vistos como receitas mágicas que, por si só, vão alcançar esse objetivo.

A Educação Popular é, então, um caminho político-pedagógico. Portanto, é um processo que exige envolvimento co-responsável de cada participante na construção, apropriação, e multiplicação do conhecimento. Essa experiência de aprender a ensinar só pode interessar aos oprimidos, pois, no capitalismo, não há lugar para ela. Se “só o oprimido pode libertar-se e, ao

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libertar-se, liberta também o opressor”, a educação serve para despertar e qualificar o potencial popular em sua luta, para construir uma alternativa solidária. Seu ponto de partida é a convicção de que o povo já tem um saber, parcial e fragmentado, e que “carrega em si o dom de ser capaz e ser feliz”. Porém, precisa refletir sobre o que já sabe (às vezes, não sabe que sabe) e incorporar o acúmulo teórico-histórico da prática social.

“Imagina-te como uma parteira. Acompanhas o nascimento de alguém, em exibição ou espalhafato. Tua tarefa é facilitar o que está acontecendo. Se deves assumir o comando, faz isso de tal modo que auxilies a mãe e deixes que ela continue livre e responsável. Quando nascer a criança, a mão dirá com razão: nós duas realizamos esse trabalho.”.

Adaptação de Lao tse, séc. V a.C.

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Aplicando a metodologia popular Adaptado do caderno “Concepção de Educação Popular do CEPIS” CEPIS – Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae

São Paulo, Março de 2007

A metodologia autoritária na educação reafirma que educar é despejar conteúdos sobre outra pessoa totalmente ignorante. É uma postura de alguém que vem de cima e de fora, e, com ar professoral, derrama informações para “fazer a cabeça” do aluno. O aluno, de forma passiva, assimila os ensinamentos e reproduz essa prática sobre outras pessoas, da mesma forma. Essa metodologia, de fato, “anula o aluno” por adotar a postura arrogante e realizar um processo de manipulação para “domesticar” as pessoas. Os alunos se tornam repetidores de certas verdades, sem qualquer consciência crítica. Quando os “chefes”, numa empresa, usam recursos pedagógicos, estão apenas “modernizando” a forma de continuar impondo suas idéias e seus interesses.

A mera transmissão de informações, transferência de conhecimentos ou treinamento de técnicas para competir não leva à emancipação, mas à (re) integração, onde as pessoas e movimentos entram, de forma vigiada e tutelada, num modelo discutível de progresso. A crítica ao sistema da educação tradicional abriu caminho para uma concepção educativa crítica e libertadora, como arma nas mãos das classes populares, orientada para transformação da realidade. Significa a criação de um senso crítico, que leve as pessoas a entender o mundo em que vivem e comprometer-se com propostas de mudanças.

Por isso, a metodologia na Educação Popular não se confunde com dicas de “como fazer”, nem com procedimentos e dinâmicas de grupo; menos, ainda, com a seqüência que deve ter essa ou aquela atividade. É preciso que se veja o processo educativo não como momentos cooperativos, mas como uma dimensão necessária da atividade organizada da classe oprimida, que lhe permite a participação consciente na construção da história. A metodologia torna-se uma estratégia global, que orienta e permeia o trabalho popular, dando-lhe sentido, perspectiva e coerência interna. Tem um caminho a percorrer, um ponto de onde partir e um ponto de chegada, ainda que sejam espaços diferentes, um carece do outro, numa relação de interdependência. O ponto de chegada é, em si, também um ponto de partida.

O ponto de partida são convicções alicerçadas em princípios e valores. Um dos princípios é a afirmação de que toda pessoa é capaz. Por isso, as pessoas são aprendizes e mestras, são partes e não platéia, cliente, assistente ou ouvinte. Nesse modo de olhar, a realidade de cada participante, sua experiência, sua cultura, seu momento individual e sua visão de mundo,são componentes indispensáveis no processo de aprender e ensinar. Eu corpo, sua razão, e seu sentimento precisam estar presentes – sem abrir o coração, a razão não entende e o corpo não se dispõe a participar.

Outro princípio é a certeza de que “só a classe oprimida pode libertar-se, ao fazer isto, liberta também o seu opressor”. Mas não basta ser oprimida,

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a pessoa precisa se dispor a entrar num processo de luta pela transformação, individual e coletiva.

E um terceiro princípio é que cada pessoa já tem um saber, ainda que ingênuo e fragmentado, e, por isso, precisa refletir sobre o que sabe e conhecer o acúmulo da prática social, para fazer melhor – quem faz já sabe, quem pensa sobre o que faze, faz melhor.

O caminho revela-se nas posturas humildes, respeitosas e críticas de educadores e educandos, contrária a toda forma de arrogância ou submissão, e que não age como se fosse superior ou inferior. Concretiza-se através de procedimentos pedagógicos usados para facilitar a participação, a colaboração e o envolvimento integral das pessoas, permitindo-lhes a apropriação dos conteúdos e da metodologia.

O ponto de chegada constata-se pelo grau de eficiência e eficácia que o processo alcança. Eficácia é realizar a tarefa adequada ao objetivo e ao momento. Alguns sinais podem indicar a eficiência e a eficácia da metodologia da Educação Popular:

- Quando anima e apaixona o oprimido, ao resgatar o elemento de sua identidade e dignidade – a auto-estima.

- Quando mobiliza, rompendo a situação de dormência e a sensação de impotência gerada pela dominação – individualismo, consumismo e fatalismo.

- Quando capacita e qualifica política, técnica e culturalmente a militância para atuar na realidade social, com a apropriação do conteúdo e do método.

- Quando incentiva e contribui na canalização de processos legítimos pela emancipação e pela vida.

- Quando facilita a articulação de práticas populares no rumo de um Projeto de transformação social.

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Mística do educador Adaptado do caderno “Concepção de Educação Popular do CEPIS” CEPIS – Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae

São Paulo, Março de 2007

A Educação Popular é um ato de amor. É um gesto humano e político de entrega a fim de que as pessoas se realizem como gente, como classe e como povo. A missão educativa junto a sujeitos populares ajuda a despertar sua consciência crítica, com o desafio de assumirem-se como protagonistas de seu destino individual e coletivo. Os educadores fazem da classe oprimida, o sentido e a razão de sua existência, colocando aí sua alma, e sabem que, nesse esforço de transformação, também de transformam, permanentemente.

A firmeza ideológica da entrega, gratuita e solidária, nasce de uma “certeza” que não se vê: a construção de uma sociedade, livre de toda e qualquer forma de opressão. Esta convicção torna-se ousadia e paixão que não pede licença para lutar pela justiça, nem tem medo de ser minoria. Muitas pessoas acreditam nessa esperança e uma legião de militantes tombou por essa causa.

Esse sonho, juntado à ciência, vira utopia e torna-se a causa, o alimento e o segredo que invade a ação, a mente e o coração da militância – na dor, na dúvida, nas derrotas, no amor, na alegria de viver, na disposição de luta, na festa… e no companheirismo. “A esperança é uma espécie de ímpeto natural possível e necessário; é um condimento indispensável à experiência histórica”. O que move o educador distingue-se, portanto, de qualquer atitude de piedade, martírio ou técnica utilitarista.

Ser educador significa correr riscos nessa briga pela vida. Vida que o imperialismo visível mutila, sem disfarce, - proíbe de dizer, proíbe de fazer, proíbe de ser. Vida que o imperialismo invisível tenta convencer que a servidão é um destino e a impotência é natureza do ser humano – não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser.

Na sua missão de contribuir para elevar o ânimo e a consciência das amplas massas populares, os educadores cultivam valores que se manifestam no seu jeito de pensar, de agir, de sentir, como parte de seu comportamento, individual e coletivo. Entre eles destacam-se:

· O amor pelo povo O amor pelo povo é pré-condição para ser educador popular, mesmo sabendo que ele carrega muitas contradições e reproduz boa parte da mentalidade dominante. Porém, essa maioria explorada, é riqueza de experiências, potencial de rebeldia e sementeira inesgotável de novos militantes. O educador tem que estar lá onde o povo vive, luta, sofre e celebra suas crenças. O povo é o sentido e a razão de sua existência e, estar fora do povo, é uma forma de ficar contra esse povo.

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· O companheirismo O companheirismo é uma forma superior de relacionamento entre as pessoas, maior que os laços de sangue. Companheirismo é compartilhar o pão e o poder com quem se dispõe a mesma caminhada, na mesma causa. É a certeza que tem uma pessoa de ser acolhida, escutada, entendida, mesmo quando erra ou quando cobra. O companheirismo se revela, especialmente, na atenção a quem trabalha e não entendeu a razão de lutar, no tempo dedicado à juventude e às crianças, no carinho às pessoas mais excluídas, no ombro solidário a quem está desanimada, no respeito à parceria se vida e de caminhada. · Espírito de superação O espírito de superação, dentro das orientações coletivas, toma a iniciativa, cria caminhos, mantém-se em busca constante de soluções e não segue receitas, na espera ordens – é um ato da vontade que, ao entender o que deve fazer, se dispõe a fazer o que entendeu, no cumprimento da missão. Esse espírito gera ousadia e vence o medo do novo porque brota de profundas convicções. · Espírito de humildade O espírito de humildade é o contrário a toda arrogância, auto-suficiência, submissão ou ingenuidade. Humildade é a simplicidade de alguém que reconhece seus valores e tem clareza sobre os seus limites. Por isso, trata as pessoas com respeito, sem discriminação ou preconceito. Não se acha inferior, nem tampouco “pisa” nas pessoas, está sempre aberta para acolher o novo, a verdade, o conhecimento. · Espírito de sacrifício Quem diz luta, diz sacrifício, embora seja necessário evitar sacrifícios inúteis. Não é o martírio onde as pessoas estão mais preparadas para sofrer e morrer. O sacrifício nasce do enfrentamento da opressão. Ninguém luta porque gosta; luta porque qualquer conquista envolve risco; não impõe precondições de conforto e facilidade; não exige tratamento e mordomias individuais. · Pedagogia do exemplo “Não basta que seja pura e justa a nossa causa, é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós”. É o exemplo que arrasta; é a coerência entre o que se diz e o que se faz que convence. A prática cotidiana revela as convicções da pessoa e nela o discurso se torna força material que alimenta a vida, o trabalho produtivo, o estudo as atitudes (dedicação, entusiasmo, uso

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correto dos recursos coletivos), a participação em um posto concreto de luta, a simplicidade de vida. É a mística que faz o educador caminhar como se visse o invisível. Na dialética da vida, entre a luta e a festa, o suor e a brisa, a dor e a alegria os educadores ajudam a construir a sociedade socialista. Ela não virá de “presente” nem será implantada senão à custa de muito esforço e de muitas vidas. Será um processo longo, difícil e dinâmico, com momentos de alegria, ternura, de poesia e de prazer. “Se sentires a dor dos outros como a tua dor, se a injustiça no corpo do oprimido for a injustiça que fere a tua própria pele, se a lágrima que cair do rosto desesperado for a lágrima que você também derrama, se o sonho dos deserdados desta sociedade cruel e sem piedade, for o teu sonho de uma terra prometida, então, serás um revolucionário, terás vivido a solidariedade essencial”.

Leonardo Boff

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Experiências de

educação popular rumo

a uma nova sociedade

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Introdução Os textos a seguir abordarão relatos de experiências de grupos

pertencentes a movimentos sociais no que diz respeito à educação popular e suas formas de realização; mostrando inquietações, discussões e propostas desses grupos para uma maior efetividade de sua realização.Esses textos pretendem abrir a discussão da cartilha acerca da formação de grupos de educadores nos movimentos sociais do campo, visando também elucidar alguns métodos usados para a construção do debate acerca da educação popular.

A formação de educadores nos movimentos sociais do campo traz consigo uma inquietação: a necessidade ou não da instrução em uma escola de formação pedagógica nos moldes do capitalismo. Neste tópico entra o ponto de que nos movimentos sociais já existe um certo acúmulo teórico sobre uma visão mais alargada da educação, produzido pela força das experiências formadoras vivenciadas por eles na dinâmica da sua organização.Por isso para eles é mais difícil conceber a escola como lugar único e supremo de educação, no qual seria justo formar profissionais.Daí surge o primeiro paradoxo, pois o movimento tem a escola como objeto central de sua luta por políticas públicas, mesmo que ela seja um objeto capitalista de formação.

Existe também o problema da visão unilateral que visa apenas o ensino em si, que pelo movimento é considerado empobrecedor, tendo em vista que esse tipo de ensino não tem uma visão perspectiva em relação à educação escolar e nos outros processos formadores do ser humano. Para que a escola não seja um "centro de formação unilateral" seria exigida uma relação estreita entre a escola e as questões da "vida real", que exige um diálogo permanente entre a teoria e a prática, tão profundo quanto se consiga fazer.

Este tipo de pesquisa e prática potencializa outro aprendizado importante que é o exercício de se escrever efetivamente o que se quer dizer, construindo uma forma de exposição que consiga socializar o objetivo que foi buscado e como foi buscado, sem trair o processo de pesquisa nem de seus resultados.

Em suma, para conseguir-se a formação de educadores do campo é necessária a formação que vise o aprendizado teórico-prático voltado para o dia-a-dia dos movimentos sociais e só assim alcançar a plenitude da educação popular.

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Educação de Jovens e Adultos e Ensino Médio; A experiência da Turma Olga Benário

Adaptado do caderno “Educação de Joven a Adultos e Ensino Médio” ITERRA – Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária

São Paulo, Junho de 2007

1. Contextualização “O movimento inicial da Educação do Campo foi o de uma articulação política de organizações e entidades para denúncia e luta por políticas públicas de educação no e do campo, e para mobilização popular em torno de um outro projeto de desenvolvimento. Ao mesmo tempo tem sido um movimento de reflexão pedagógica das experiências de resistência camponesa, constituindo a expressão, e aos poucos o conceito de Educação do Campo”. 17

Desde as primeiras ocupações de terra (1979-1984), já havia a pergunta: como garantir que as crianças estudem? Depois, com o tempo, através de discussões e reflexões sobre o processo educativo houve a compreensão de que todos tinham o direito à educação. O Movimento sabe da importância da educação nesse processo de luta. Dessa forma, a procura pela terra está vinculada à busca por educação em todos os níveis, para esses trabalhadores do campo.

No ano de 1994 é publicado o primeiro caderno sobre as experiências de Educação de Jovens e Adultos do MST18. Aos poucos vão nascendo experiências concretas que se forjam no cotidiano desse Movimento. As turmas vão se constituindo, educadores se envolvendo, práticas acontecendo e vão servindo de acúmulo teórico para ressignificar o processo pedagógico. Dessa caminhada participa o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária - ITERRA que é mantenedor do Instituto de Educação Josué de Castro - IEJC, escola onde acontece esta experiência de educação de jovens e adultos.

Já no início da escola a comunidade de Veranópolis, município onde se localiza o IEJC, reivindicou “cursos supletivos” para seus jovens e adultos trabalhadores, dada a demanda que havia. Dessa forma no final de 199819 a escola abriu suas portas para um curso supletivo. Com um novo processo construiu uma proposta inovadora para esses jovens e adultos.

Ao ser pensado o processo de educação de jovens e adultos para os próprios sujeitos do Movimento havia a clareza de que a proposta pedagógica metodológica estaria “bebendo” na fonte dos princípios filosóficos do próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que têm algumas dimensões que

17

CALDART (2004 , p.19-20). 18

Cadernos de Educação nº. 3 , MST, 1994. 19Entre os anos de 1998 e 2002 a escola formou duas turmas em supletivo

ensino Fundamental e quatro turmas de Ensino Médio. Fonte: secretaria da escola.

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são: a formação política, a formação organizativa, a formação do caráter, a formação estética e cultural, a formação afetiva e a formação religiosa. Foi respeitando esses princípios que se construiu o Projeto Pedagógico do Curso de Educação de Jovens e Adultos em Ensino Médio. Junto com esses princípios segue uma concepção de educação que busca formar homens e mulheres que estudam, trabalham e se organizam o Coletivo Político-Pedagógico do Instituto de Educação Josué de Castro, ao pensar o curso de Jovens e Adultos, trouxe para o debate a necessidade do mesmo oportunizar aos companheiros e companheiras, militantes do Movimento, a oportunidade de continuar os estudos. Refletiam que esse curso propiciaria a retomada da escolarização aos sujeitos que tinham uma trajetória longa no Movimento, e que há tempos contribuíam com a organização. Este foi o perfil predominante na primeira turma de EJA, mas a segunda turma já foi bem mais heterogênea, com pessoas recentemente inseridas nos acampamentos, ocasionando algumas tensões já na etapa preparatória do curso.

Após a decisão de abrir o curso iniciam-se os trabalhos para escrever o projeto do curso e fazer os trâmites de sua legalização. Em 22 de janeiro de 2003 o Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul (CEED/RS) autoriza o funcionamento do curso com o Parecer de n° 90/2003.

Com essa aprovação inicia a primeira turma do curso que ficou conhecido na escola como "EJA Médio". Foi em fevereiro de 2004 com setenta e três educandos/as vindos dos estados do RS, SC, MG, SP, GO, MS e Distrito Federal. Esta turma, que desencadeou um bonito processo de construção de aprendizagens, concluiu seu curso em novembro de 2005.

Esses movimentos feitos em busca de educação eram movidos pela necessidade. Sabemos que a necessidade é que impulsiona o ser humano, e em educação não é diferente. Lemos isso no Caderno de Educação do MST nº 11:

"O processo educativo só é possível quando se parte das necessidades reais. Não de qualquer necessidade, mas das necessidades que batem mais forte, que tocam na sobrevivência das pessoas, ou que já tem a ver com sua identidade de Movimento e de classe."(p. 41).

No IEJC, no seu Projeto Pedagógico, é enfatizado um processo organizativo, coletivo e solidário de educação, comprometido com a transformação do sujeito e conseqüentemente com a transformação social.

"A finalidade principal do Instituto é participar de um projeto de humanização das pessoas que ajude também a formar sujeitos sociais da construção de um projeto de desenvolvimento do campo e de país comprometido com a soberania nacional, com a Reforma Agrária e outras formas de desconcentração da renda e da propriedade, com a solidariedade, com a democracia popular e com o respeito ao meio ambiente." (p.12)

A intencionalidade político-pedagógica, dessa escola, não é só escolarização, mas sim construir um espaço onde as pessoas estudem e tenham o trabalho como um princípio educativo sabendo organizar-se na

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escola e na vida. A intencionalidade está colocada, mas é preciso implementa-la cotidianamente. 2. Turma Olga Benário

“(...) o quanto significa a força de vontade, especialmente se emana de fontes como as nossas. Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo.” Olga Benário20

"Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons. Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons. Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda. Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis." Bertold Brecht21

Os estudantes da segunda turma de EJA Médio do IEJC vieram de São Paulo, do Paraná, Mato Grosso, de Goiás, do Distrito Federal, do Espírito Santo, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Todos com diferentes histórias de vida, mas com semelhanças por serem filhos e filhas de camponeses que, de uma forma ou de outra, foram expulsos do campo; foram para a cidade e fizeram um retorno às suas raízes, e hoje lutam pela Reforma Agrária.

No início do curso depois de alguns dias de viagem ou de muitos dias os estudantes foram chegando de cada estado de origem. Alguns cansados pela longa viagem, outros curiosos para saber como era a escola, outros ainda, receosos por saberem que aqui há um novo jeito de educar. O novo sempre traz consigo certo medo. Alguns ficavam pelos cantos observando tudo, outros procuravam se aproximar e puxar conversa. Foram chegando e sendo encaminhados para seus quartos. Para alguns era mais uma novidade: quartos coletivos, com pessoas que não se conheciam. Apresentações, conhecimentos, arrumação das roupas e materiais.

Uns grupos chegavam alegres fazendo barulho; outros mais quietos, olhar curioso, andar devagar. Alguns jovens, outros já mais adultos. Todos carregando seus sonhos, esperanças e vontade de recomeçar.

Muitos estudantes com longo percurso de lutas no Movimento. Pessoas com clareza política e ideológica. Outros tantos, novatos no Movimento. Muitos com vontade de conhecer o Movimento e nele se inserirem mais. Um grupo desafiador, pelas suas características e diferenças. Por suas histórias e inserção no Movimento, em diferentes tempos e lugares.

20Trecho final da carta em que Olga escreve para seu marido e companheiro Luís Carlos Prestes e sua filha Leocádia. 21Brech, Bertold. (1898 - 1956). Escritor, dramaturgo e poeta alemão. Poemas - 1913 1956

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3. Projeto Pedagógico do Curso

"O diálogo começa na busca do conteúdo programático. (...) não quando o educador -educando se encontra com os educandos - educadores em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno o que vai dialogar com estes. Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação."

Paulo Freire 22 O projeto pedagógico e metodológico do curso coloca uma

intencionalidade na formação organizativa e de valores éticos, sem esquecer de trabalhar os conhecimentos necessários da formação básica. A escola trabalha com tempos educativos e esses tempos foram articulados com o Projeto Político Pedagógico do Curso (PPP), direcionando o trabalho pedagógico a ser construído a partir de áreas de conhecimento. Essas áreas foram pensadas e alicerçadas em categorias que deveriam balizar a construção do conhecimento, e que assim estavam organizadas: trabalho; organicidade e cidadania; cultura e movimento.

Ao se pensar esse curso refletiu-se que seus objetivos gerais deveriam dar conta da intencionalidade que estava colocada. Portanto, esses objetivos propostos no Projeto Político-Pedagógico do Curso traziam como pressuposto básico consolidar um projeto político-pedagógico de EJA buscando construir novas metodologias e contribuir com a reflexão sobre o campo.

Os objetivos apontavam à preocupação maior que era a formação integral desses sujeitos e não só a escolarização dos mesmos. Com essa intencionalidade colocada era necessário pensar em uma nova organização curricular que permitisse um diálogo mais direto entre as disciplinas e não só isso, era preciso alguma coisa que articulasse os conhecimentos entre si. Assim foram construídas Áreas de Conhecimento e as respectivas disciplinas trabalhadas em cada área.

Áreas do conhecimento são instrumentos que lançamos mão para

conhecermos melhor a realidade prática e buscarmos ajuda na teoria. As áreas não têm um fim em si mesmo, mas são "jeitos" que se utiliza para

22Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra. RJ. 1987. P. 83.

Áreas de Conhecimento Disciplinas trabalhadas Sócio-Histórica Geografia, História, Sociologia,

Psicologia, Filosofia, Cultura Brasileira. Teoria da organização, Metodologia da pesquisa, Economia Política.

Sócio-Biológica Biologia, Química Lógico-Matemática Matemática, Física

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compreender e tentar intervir na realidade. Para isso, é preciso concebê-las como parte de um processo dinâmico que é o ato de construir conhecimento. Para que isso aconteça se faz necessário processo dialógico e coletivo a partir de reflexões sobre as práticas da escola, da leitura da realidade e do estudo.

Em cada etapa, após avaliações era pensado o projeto metodológico da etapa (PROMET), cuja construção se dava pela organização dos conhecimentos. Ao pensar as áreas, os temas/conteúdos a serem trabalhados eram revistos, de modo a inseri-los nas aulas, nos seminários, nas oficinas, nas leituras, entre outras atividades e tempos educativos.

Na organização curricular por áreas de conhecimento, a priori abre-se mão de trabalhar disciplinarmente, mas aqui não foi possível pela forma como a escola funciona, onde a maioria dos educadores é itinerante e, por isso, fica difícil de fazer um trabalho de formação pedagógica interdisciplinar. Para trabalhar a proposta pedagógica foram construídos eixos para articular os objetivos gerais e específicos, as temáticas propostas pelas áreas do conhecimento, os focos para dialogarem com os eixos de cada etapa, respeitando a realidade trazida pelos sujeitos. Dentro dessa construção metodológica, em cada etapa se construíam metas para serem atingidas, tanto no aspecto do conhecimento pedagógico, como de gestão de trabalho e da própria organicidade dentro da escola.

Para organizar cada etapa e garantir uma interdisciplinaridade entre as áreas de conhecimento, foram pensados focos, para possibilitar a articulação entre as temáticas abordadas nas diferentes disciplinas, e para dar conta de trabalhar todos os conhecimentos instituídos em cada área. Após algumas reflexões e levando em conta os sujeitos que estavam no curso (todos ligados ao campo), ficou estabelecido que os focos deveriam estar relacionados com o campo e com os assentamentos (local de moradia da maioria dos estudantes do curso e de interesse de estudo do Movimento).

Os focos previstos para as cinco etapas do curso foram os seguintes: " a) Partindo das histórias de vida inserir os sujeitos na organicidade do IEJC, para que compreendam a presença e participação no MST, entendendo o Movimento o processo histórico; b) Compreender, a partir do processo histórico, a trajetória feita pelo camponês, no espaço econômico, político, cultural e social brasileiro, observando o modo de ser e viver do campesinato e sua situação hoje, em vista de um projeto político, popular e alternativo de país e de campo; c) Perceber e compreender as relações econômicas e ambientais inseridas na agricultura camponesa, em um ambiente de capitalismo monopolista e, as possibilidades de resistência articuladas com as reflexões de mudança de modelo econômico; d) Compreender o funcionamento do Estado e particularmente do Estado Brasileiro, a conformação das classes sociais, hoje, levando em conta a discussão ideológica, a hegemonia e a correlação de forças e, neste contexto, as políticas públicas; e) Conceber o assentamento como base de organização social e a construção de uma metodologia de intervenção nesta realidade".

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Os focos ajudaram os educadores e educadoras a olhar os conteúdos para além da sala de aula, o que possibilitou para muitos deles, o desafio de construir suas aulas para não só trazer o conhecimento teórico, mas também ligá-lo com as práticas concretas dos sujeitos. Alguns buscaram responder a pergunta: como esse conhecimento aprendido contribuirá para além de um saber individual de cada um/uma e ser transformador lá na base, na realidade? Algumas disciplinas conseguiram avançar na reflexão, construção, questionamentos e aprendizados.

Para garantir a construção do conhecimento e verificar se os objetivos, as metas e os focos, construídos para a etapa, tinham sido vencidos durante a mesma, o processo era avaliado de diferentes formas (nos Núcleos de Base, por estado de origem dos estudantes, auto-avaliação, trabalhos de grupo, individuais, entre outros).

Os focos ajudaram na hora de construir o projeto metodológico de cada etapa, na organização curricular (das aulas, oficinas, seminários). Eles asseguraram de alguma forma, a unicidade entre as disciplinas, coisa que a divisão por área não permitiu. Isso porque os educadores vão e vêm no IEJC, na grande maioria não se encontram e, assim, não têm como fazer formação conjunta para assegurar um trabalho por área, o que seria o ideal. Os focos cumpriram um papel fundamental nessa articulação entre os objetivos e a maioria dos conteúdos trabalhados, pois eram enviados para cada educador, em conjunto com os objetivos e as metas da etapa, para que ao preparar sua aula soubesse o que se queria alcançar.

Apesar do cuidado ao elaborar o projeto metodológico da etapa a materialidade se apresentava diferente, como no caso das disciplinas, por mais que acordasse com todos os educadores e educadoras que viriam trabalhar na etapa, algumas vezes, faltando dois dias para acontecer a aula o educador ligava dizendo que não poderia vir e, assim, lá corria a escola para conseguir outro educador, em cima da hora.

O que se percebeu durante o caminho das etapas foi da importância de ter intencionalidade e estratégias claras e da necessidade de conseguir implementá-las com qualidade. Tínhamos uma intencionalidade em trabalhar por áreas do conhecimento, mas na realidade isso não aconteceu plenamente, permanecendo a lógica do trabalho por disciplina. O que conseguimos foi uma articulação mais unificada a partir dos focos. Para dar conta dessa organização curricular, por áreas, precisaríamos ter um quadro fixo de educadores com formação permanente.

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A inserção da educação na prática social: A experiência de Cuba Adaptado de Lucília Machado 23do caderno “Ensino Médio nas Áreas de Reforma

Agrária” ITERRA – Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária

Introdução

Esta pesquisa foi iniciada com a sistematização dos conceitos pedagógicos fundamentais referenciados na experiência revolucionária e histórica do país, no papel destinado à educação e no fato de que a revolução e educação constituem processos mutuamente inclusivos. Foram analisados, ainda, informações de pesquisa documental, dados secundários, entrevistas e registros de observação direta para discutir questões relativas ao processo pedagógico e suas relações com o dilema desenvolvimento de novas relações sociais no socialismo, da construção de uma nova consciência social, da educação superior da base técnico-material, da elevação da capacitação científica, técnica e cultural do povo e do seu poder político. 1. A inserção da educação na prática social em Cuba: a dimensão conceitual

Dois pressupostos foram identificados como centrais: o de que a função educativa pressupunha a contribuição de toda a sociedade e da ciência e a necessidade de estreita relação do estudo com a vida, com o trabalho a produção. No centro das proposições político-pedagógicas estavam, portanto, a categoria trabalho e a idéia e a necessidade da mobilização e da integração de todos os esforços educativos de uma ampla rede de organizações, além das próprias escolas: Partido Comunista de Cuba, Central dos Trabalhadores de Cuba, Comitês de Defesa da Revolução, Federação das Mulheres Cubanas, Conselhos Populares de Educação, Associação Nacional dos Pequenos Agricultores, União de Jovens Comunistas, Organização dos Companheiros José Martí, Sindicato Nacional dos trabalhadores da Educação, Ciência e Desporto, Casas de Cultura.

O entrelaçamento dos sistemas escolar, sindical, político, cultural, econômico e familiar, cada qual com objetivos educacionais específicos, fazia com que a definição da política educacional fosse de ordem global, e calçada na estreita união do processo educativo com a vida e as práticas sociais.

Esta mobilização impunha a necessidade de a escola de operar mudanças e desenvolver inovações para atender demandas e solicitações de diferentes origens. As escolas estavam sob a administração dos Poderes

23

Lucília Machado é doutora em Educação e Docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (www.ufmg.br).

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Populares de cada localidade e cumpriam normas gerais, validas para todo o território, sob a acessória direta dos organismos centrais. Em cada município havia uma Direção da Educação, subordinada tanto ao Ministério da Educação, quanto aos órgãos locais do Poder Popular. Essa dupla subordinação visava atender às necessidades de garantir o caráter unitário do sistema de ensino, por um lado e por outro, absorver as particularidades locais, aproveitando-se melhor de seus recursos materiais e culturais. As direções municipais relacionavam-se, também, com os conselhos das escolas compostos por representantes das organizações sociais e de massa e com os dirigentes das mesmas, que eram responsáveis pelo seu adequado funcionamento e pela administração dos recursos. Numa posição intermediária, existiam também as Direções Provinciais da Educação, com funções de coordenação e articulação.

A necessidade de fazer corresponder planificação do sistema nacional de ensino de ensino e desenvolvimento econômico-social do país conferia à escola funções educativas amplas. Pressupunha um círculo virtuoso: o conhecimento teria por base a atividade prática voltada para o entendimento de necessidades sociais; estas necessidades seriam responsáveis pela formação dos interesses; esses interesses estimulariam o processo de conhecimento; conhecimento que fundamentaria as ações. Pensamento e ação em unidade para promover intencionalidades e a posição ativa perante a vida, formar personalidade de novo tipo. Educação para o trabalho: o trabalho como base material sobre a qual tem sido formada e desenvolvida a consciência humana; o trabalho mediante a qual o homem manifesta de forma mais transparente e objetiva o seu papel criador e a sua posição ativa perante o mundo.

A vinculação entre trabalho e educação era, portanto, vista como de fundamental importância para inserção da escola na prática social e o princípio da politecnia, complementar, orientava a orientação das transformações científicas e tecnológicas a uma qualificação laboral, de perfil amplo.

Os conceitos pedagógicos se sintetizavam na expressão educação integral: unidade entre conhecimentos técnicos, aplicabilidade útil dos mesmos, desenvolvimento do pensamento e responsabilidade na transformação do mundo. Urgiam ser separados: o intelectualismo, o practicismo e a concepção elitista e deformadora de educação. O estabelecimento da combinação sistemática entre o estudo e o trabalho era colocado para todo o sistema educacional. Ambas as atividades – de estudo e de trabalho – tinham que se redefinir, deixar de ser aquilo que haviam sido no passado, atividades alienadoras.

Para tanto, requeria-se superar a escassez e a penúria do atraso legado pela sociedade passada mediante a integração funcional das atividades de produção, docência e investigação e agir para modificar uma estrutura social que produzia e reproduzia uma consciência alienada e paralisada.

Tomou-se a resolução de problemas como a base do processo de ensino aprendizagem para que o estudante, desde cedo, visse as condições em que deveria atuar na vida, tomasse consciência das contradições existentes no

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seio da sociedade e da necessidade de sua superação. Entendia-se que o processo de conhecimento do aluno deveria partir da contemplação viva e sensorial da realidade objetiva, passar pelo pensamento abstrato da atividade analítico-sintética indutiva e desaguar, novamente, no campo da aplicação e dos trabalhos práticos.

A atividade laboral dos estudantes era vista, assim, como uma importante mediação para sua formação teórica e prática. Mais que isto, era considerada também como um recurso fundamental para o desenvolvimento dos sentimentos, dos traços de caráter e dos hábitos de conduta necessários à integração do indivíduo à sociedade.

O ensino abstrato e formalista, a desvinculação entre as representações dos objetos, fenômenos e processos) e os acontecimentos (da natureza e da vida social) urgia ser superado. Era preciso promover a verdadeira aprendizagem com o concurso das ações e atividades. Como o processo da produção social era considerado a prática social mais importante, foram necessárias regulamentações especiais para a inserção dos alunos. A participação das crianças e jovens menores de trinta anos nos processos de produção como parte de um processo educacional se regulava pelo Código da Infância e da Juventude, uma lei de Julho de 1978.

Este princípio de participação atendia a propósitos econômicos e administrativos claramente explicitados: de integração de um grande contingente de força de trabalho em processo de formação à produção e ao trabalho social e de adequação da formação destas pessoas às necessidades da produção social com respeito, especialmente, a capacidade de trabalhar individual e coletivamente, de resolve problemas concretos diante de situações adversas, de aprender a se relacionar em ambientes diferentes (para além da escola), de formar o autocontrole e desenvolver motivações profissionais. Em termos econômicos e administrativos atendia também ao propósito de compensar os investimentos que possibilitavam que todos estudassem já que os estudantes também davam, com seu trabalho, sua cota de contribuição material à produção; de melhor e mais racional utilização de recursos materiais e humanos das empresas mediante estratégia de mútua colaboração, com operários e técnicos também envolvidos na atividade de ensino, o que também era visto como uma forma de estimulá-los a buscar elevar técnica e cientificamente suas capacidades pessoais. Entendia-se que este era, igualmente um meio de melhorar a gestão de escola e empresas mediante o intercâmbio de experiências entre os sujeitos do processo pedagógico e das organizações de produção e de serviços.

Este princípio da participação dos estudantes em atividades da produção material e de serviços era compreendido, do ponto de vista pedagógico, como um poderoso instrumento do seu desenvolvimento multilateral, de formação de uma consciência de produtor; de combate a preconceitos e ao intelectualismo; de despertar a iniciativa e a compreensão das necessidades do país; de fomentar o espírito criador e investigativo pelo contato com a realidade prática; de melhorar a compreensão das teorias e sua

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utilização. Era visto também como um mecanismo para elevar o nível geral da cultura da população pela trocas entre estudantes e trabalhadores; para favorecer a adoção de uma posição ativa perante a vida e estimular o aprendizado dos deveres sociais, da disciplina e da responsabilidade. Era, igualmente, entendido como um recurso que favorecia a harmonização das vontades individuais e coletivas; o fortalecimento da confiança, de cada um em si próprio, como resultado da necessidade de responder a desafios concretos; de construção, por todos, da percepção sobre a importância da própria vida para a sociedade em que se vivia. Era, enfim, visto como um meio de cultivar o valor e o respeito pelo trabalho humano; de fomentar a admiração recíproca entre estudantes e trabalhadores.

Para os professores, esta participação tinha o propósito educativo de estimulá-los a elevar a sua qualificação didática, científica e técnica e a adquirir, também, uma mentalidade de produtor mediante a reflexão sobre a sua atividade docente e a sua função social.

Entretanto, somente a participação estudantil no trabalho produtivo não explicava a politecnização da educação. Considerava-se preciso fazer a vinculação efetiva entre diferentes tipos de produção: da ciência, material, de novas relações sociais e de personalidades integrais. Nesse sentido, eram vistas como absolutamente necessárias: a formação tecnológica, como expressão da interpenetração dos diversos campos do conhecimento, e de pessoas com perfil amplo, dotadas de conhecimentos teóricos básicos e práticos, aptidões de tipo universal e condições subjetivas de rápida adaptação às contínuas mudanças no mundo do trabalho.

Propunha-se que as escolas trabalhassem assuntos e temas comuns a várias disciplinas por meio da rede lógica das matérias de ensino, detecção dos pontos de intersecção, ou relação intermatéria, o ensino das bases das ciências contemporâneas, a aplicação direta e prática das leis e princípios fundamentais das ciências aos processos tecnológicos dos principais ramos da produção e a aquisição de hábitos e habilidades, manuais e mentais, comuns a qualquer um dos ramos produtivos.

Mas para tanto, havia o reconhecimento da necessidade de atender condições objetivas fundamentais para que o processo educacional realizasse suas finalidades. Condições, de cuja criação também participava a educação: a construção de relações sociais de produção de novo tipo, a superação do caráter coercitivo e alienante do trabalho próprio das sociedades de classes, o desenvolvimento econômico, o esforço educativo e criador visando à formação de uma nova cultura pela transformação do caráter da propriedade e do trabalho, tornando-os sociais, e dos métodos de organização e gestão da cooperação na produção, da produtividade, da disciplina e das condições de trabalho, da participação na distribuição, e, com isso, da vida social e dos interesses coletivos.

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2. A inserção da educação na prática social em Cuba: a dimensão aplicada

De forma sintética, expõem-se, aqui, tratamentos dados ao trabalho como princípio educativo nos oito subsistemas educacionais. Cada qual devia seguir normas de proteção e higiene e fazer corresponder tipos de atividades, idades e características dos alunos.

Na educação pré-escolar, desenvolvia-se a inserção social das crianças de até 4 anos de idade dos Círculos Infantis e de 5 a 6 anos dos Jardins de Infância, para que desde pequenas aprendessem a desenvolver tarefas simples, mediante recursos como: atividades de jogo, ações imitativas dos adultos em situações de trabalho, hábitos de ordem, de auto-serviço, de cuidados pessoais e de auto-manutenção, que favorecem o desenvolvimento da independência e da iniciativa. Para os maiores, acrescentavam-se tarefas de preservação da limpeza das instalações e áreas verdes, cuidados de hortas, jardins e pequenos animais, conservação de brinquedos e confecção de trabalhos manuais simples.

Na educação geral politécnica e laboral (primária e média, em 12 anos de estudos): formação ética e de atitudes para o coletivismo, a responsabilidade de a disciplina; fornecimento dos fundamentos básicos das ciências e conhecimentos na vida social, uso de instrumentos e mecanismos; trabalho em equipe, atividades socialmente úteis nas escolas e fora delas, conservação de jardins e campos esportivos, reparação de meios escolares, limpeza de refeitórios, participação de círculos de interesse científico e técnico, visitas, excursões, encontros com trabalhadores, assistência a palestras. No secundário, duas modalidades de participação: a) de alunos de escolas urbanas na colheita de produtos agrícolas, segundo o regime de imersão no campo por 30 a 45 dias e, b) de alunos de escolas rurais – internatos – integradas a complexos produtivos, segundo o regime de combinação diária de estudo e trabalho, com revezamento de turnos de estudo, trabalho e lazer, incluindo-se programas culturais, esportivos, sociais, de interesse cientifico e técnico e de orientação profissional. Uma linha especial destas escolas se distinguia, as chamadas Escolas Vocacionais, centros considerados de vanguarda, especializados em determinados campos do conhecimento, que recebiam somente alunos destacados nestas áreas. Havia, completamente, um ouro segmento, o dos Institutos Pré-Universitários Vocacionais, especializados em áreas estratégicas para o país, que oferecia um ciclo de especialização com uma carga adicional de 1500 horas anuais ao ensino médio, com predominância dos componentes investigativos, mas combinados, com atividades socialmente úteis de interesse coletivo. Do primário ao secundário básico, fornecia-se, ainda, a disciplina “Educação Laboral” com fundamentação detalhada para desenvolver conteúdos, habilidades e hábitos considerados fundamentais para inserção social dos alunos.

Nos dois níveis da Educação Técnica e Profissional, de formação de Técnicos (3 a 4 anos de curso) e de Operários Qualificados (2 anos),

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desenvolvidos após a conclusão do secundário-básico e com perspectiva de continuidade de estudos, a combinação trabalho-educação contava com a inserção direta dos alunos no processo produtivo (fábricas-docentes, práticas tecnológicas de produção, laboratoriais, e oficina e em áreas de campo) e com a inclusão do componente investigação (defesa de um projeto elaborado e executado pelo aluno) para o acompanhamento de avanços científicos.

Nos níveis superior e médio da Formação e Aperfeiçoamento do Pessoal Pedagógico, a combinação trabalho-educação previa articulação vertical e horizontal de todas as disciplinas, constante relação teoria e prática em três níveis (familiarização, observação e treinamento), o componente investigativo, o estudo do trabalho do professor, do processo de trabalho escolar e das demandas de renovação pedagógica.

Nos três tipos de Educação Superior (cursos regulares diurnos, cursos noturnos para trabalhadores e cursos dirigidos não-regulares), combinavam-se estudo e trabalho considerando-se as especificidades. Sucessivas fórmulas foram testadas, avaliadas e modificadas. À época da pesquisa, aplicava-se o Plano de Estudos B, que determinava maior estreitamento das relações entre docência, produção e investigação cientifica. A implantação de estruturas de conexão entre esses elementos (Entidades Laborales Bases e Unidades Docentes); práticas de familiarização (dois primeiros anos) e práticas de produção (três últimos anos); realização de monografia de conclusão de curso relacionada à programação da prática e defendida em banca formada por dois professores; apresentação anual das melhores monografias em Jornada Cientifica Estudantil e a cada dois anos ao Concurso do Fórum Nacional Estudantil. Previa-se à época da pesquisa a implantação de um novo Plano de Estudos, o C, para 1990, para dar mais atenção aos avanços da revolução cientifica e tecnológica, à formação de perfis profissionais amplos e ao incremento da atividade investigativa em conexão com processos reais de trabalho.

Na Educação de Adultos – Educação Operário-Camponesa(ensino primário), Secundário Operário-Camponês (ensino médio) e Faculdade Operário-Camponesa (ensino superior) – previa-se a íntima relação teoria e prática, a necessidade de considerar a experiência profissional do aluno trabalhador e de fazer as adequações de calendários e horários.

Na Educação Especial, recomendava-se – com o concurso de equipes multidisciplinares, o desenvolvimento, dentro das possibilidades individuais, de cada aluno, de atividades de Educação Laboral, prevendo-se três etapas: a propedêutica (hortas escolares, manipulação de ferramentas simples, círculos de interesse) e a de preparação profissional (práticas de produção combinando estudo e trabalho).

Na Educação Extra-Escolar, eram desenvolvidas atividades políticas e sociais, fora da escola visando reforçar seu trabalho e estimular interesses e motivações dos estudantes do ensino médio e superior. Sob a direção técnica e metodológica do Ministério da Educação e com a colaboração e patrocínio de diversas entidades e empresas, desenvolviam-se visitas, excursões a centros

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de trabalho, encontro com trabalhadores destacados, conferências, círculos de interesse científico-técnico, Brigadas Técnicas Juvenis, Exposições Forjadoras do Futuro e atuações do Exército Juvenil do Trabalho. 3. A inserção da educação na prática social em Cuba: a dialética das contradições

Foram analisadas duas ordens de contradições: as que emanavam do próprio desenvolvimento educacional e as que provinham de limitações da base técnica e material da sociedade. De forma resumida, tais tensões e as propostas pautadas na relação trabalho-educação para a sua superação são apresentadas a seguir:

A) Contradições do desenvolvimento educacional: - Dilemas da expansão do sistema de ensino: promoção do acesso

igualitário e gratuito à educação de qualidade versus poupança forçada e subtração de investimentos diretos na produção material, equacionamento os rendimentos desiguais versus escassez de recursos de toda ordem; democratização educacional versus necessidade estratégica de formação de elites intelectuais em escolas secundárias propedêuticas especiais.

- Dificuldades de superar resquícios da pedagogia tradicional: “mentes alérgicas ao trabalho dos estudantes”, divórcio entre o pensar e o fazer, relações pedagógicas autoritárias, disciplinas compartimentadas, incorporação emergencial de professores com níveis culturais insuficientes, resistência das famílias dos alunos.

- Insuficiências da formação docente: distância entre discurso e práticas, dificuldade para responder às exigências de uma sociedade e rápida transformação social, pouca experiência do professorado do desenvolvimento de atividades práticas e investigativas, guias de campo com muitas experiências de trabalho, mas sem formação pedagógica.

- Inadequações do processo pedagógico: práticas justapostas e não integradas, inadequação dos recursos (livros-texto, laboratórios, etc), avaliações discentes facilitadas, insuficiência das orientações aos alunos e de soluções criativas, excesso de aulas expositivas, pouca interdisciplinaridade, prevalência da dimensão comportamental sobre a intelectual, desajustes entre o que se estuda e o trabalho, etc.

- Deficiências na organização do trabalho dos estudantes: insatisfações, indisciplinas, faltas de responsabilidade, perdas de tempo, etc. por incompreensão da finalidade do trabalho e da importância do coletivo escolar-laboral, dificuldades de alguns setores para traduzir as normas gerais em específicas, falta de infra-estrutura e de controle dos processos docente e educativo, planificação e programação deficientes.

- Não-correspondência entre interesses da produção/ serviços e os da docência: dilema entre ter que produzir e ter que ensinar, necessidade de ajustar dinâmicas diferentes (de empresas e de escolas), profissionais-

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trabalhadores sem preparo para a docência, receios mútuos de avaliações de uns sobre os outros, resistências, dificuldades de convivência e de encontrar formas de satisfazer a expectativa de cada lado.

- Insuficiente intercâmbio entre centros de investigação e escolas: pouca integração da investigação à produção e aos processos de combinação do estudo com o trabalho, necessidade de aumentar o nível de cultura tecnológica dos trabalhadores.

B) Contradições provenientes da base técnica e material: - Dificuldades para consultar novas relações de produção:

desenvolvimento das forças produtivas e das novas relações de produção ainda incipiente, sobrevivência de classes sociais e de desigualdades, divórcio entre trabalho manual e intelectual, contradições entre campo e cidade e entre homem e mulher, o trabalho como apenas meio de vida, relações monetário-mercantis.

- Necessidade de elevar e satisfazer as necessidades básicas de todos: padrão modesto de vida com condições básicas de vida humana asseguradas a todos, país pobre em recursos naturais, fragilidade de sua base de acumulação, equacionamento de acesso coletivo ao consumo e da regulação da variação salarial.

- Necessidade de investir no desenvolvimento das forças produtivas e definir o fator dinâmico da acumulação: dificuldades da sustentação do crescimento continuado e independente, para elevar a produtividade social, superar a falta de disponibilidade de recursos naturais, contornar a suscetibilidade da agricultura às variações climáticas, diversificar a economia, impulsionar a industrialização, reduzir vulnerabilidade, produzir meios de produção, equilibrar a balança de pagamentos.

- Necessidade de aperfeiçoar o sistema de direção e planificação da economia: como resolver indisciplina laboral, ineficiências, crises, instabilidades, desequilíbrios e desorganizações econômicas, burocratismo e formalismo; centralizar sem cair na tecnocracia e inibir iniciativas e participação; equilibrar custo benefício e possibilitar o controle social; dosar incentivos materiais e incentivos morais; aplicar a lei do valor nas relações econômicas da sociedade e, ao mesmo tempo, integralizar a planificação, formar uma nova consciência socialista e um novo homem.

C) Propostas pautadas na relação trabalho-educação para a sua superação destas contradições:

- Utilização racional do potencial humano compatível com seu perfil e interesses: melhoria da política de pleno emprego com retribuição correspondente com critérios econômicos e sociais; do trabalho como fonte de riqueza social e cultural de todos e da infra-estrutura familiar e coletiva de reprodução da vida social.

- Aplicação do progresso técnico e qualificação com perfil amplo: para a melhoria da produtividade, modificação do caráter do trabalho, elevação do nível de vida. Humanização das condições de trabalho e completar o

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investimento no aspecto quantitativo da democratização da educação com a melhoria da sua qualidade.

- Superação dos fatores da flutuação laboral e da indisciplina no trabalho: organização do deslocamento dos trabalhadores de uma empresa para outra, aperfeiçoamento da política de estímulos, melhoria das condições de trabalho, oportunidades de melhoria profissional, aperfeiçoamento dos processos e conteúdos de trabalho.

- Envolvimento educativo com transformação qualitativa da política de estímulos: incentivo da atividade criadora dos trabalhadores, sua incorporação à direção da produção, fortalecimento do coletivismo, controle e avaliação social dos resultados.

- Reprodução diferenciada da força de trabalho sem conteúdo classista: melhor definição das normas de trabalho e dos processos de avaliação para aperfeiçoar a organização do trabalho, corrigir distorções na política de retribuição e melhorar a produtividade.

- Transformação do caráter do trabalho e formação da consciência socialista: criação das condições objetivas e subjetivas para que o trabalho seja efetivamente mediação para novas relações sociais, de liberação da força criadora do povo e do seu poder.

- Superação dos fatores de alienação do trabalho no socialismo: superar resquícios do sistema capitalista, empreender a luta ideológica, melhorar a eficiência do sistema educativo composto pelas famílias, escolas e coletivos laborais.

- Construção do valor fundamental do trabalho e um novo homem: transformar o conhecimento sobre a edificação do socialismo em convicção, em prática concreta.

Conclusões

A pesquisa concluiu que havia resultados positivos na experiência educacional cubana de inserção social da educação pela aplicação do trabalho como princípio educativo: avanço conceitual, experiências e metodologias testadas e aperfeiçoadas, busca de mecanismos de resolução de conflitos, ampliação da escola para além dos seus muros, formação docente em permanente questionamento, luta pela desagregação das concepções pedagógicas anteriores, reajustes constantes na organização do processo de trabalho escolar, fluência no intercâmbio entre o mundo cultural da escola e o mundo cultural do trabalho, consciência das limitações e das contradições e medidas visando a sua superação.

Concluiu, igualmente, que havia, contudo, muitas carências, expectativas ainda não atendidas, resultados diferenciados e desafios, sobretudo práticos, alguns escolares, mas muitos que transcendiam esta esfera, mas de cuja resolução dependia a concretização dos princípios pedagógicos socialistas da relação entre estudo-trabalho-investigação.

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Concluiu, finalmente, que a experiência educacional cubana representa um grande e estimulante laboratório social para investigações pedagógicas comprometidas com a construção de alternativas societárias que visem a emancipação humana. Esta pesquisa registra um momento específico da história da educação cubana e seu resgate é útil para o estudo dos processos sociais, políticos e educacionais - que vieram a seguir.

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O lugar da educação na resistência Oberdan Rafael P. L. Santiago

Resistir. Esse é o sentimento e a prática que temos que ter frente ao

ataque impiedoso que sofremos, especialmente a educação pública. Não podemos nos deixar vencer pela ilusão da ascensão social que a universidade promove, da falsa democratização do ensino, do “futuro promissor” e sem desemprego que os nossos governantes vendem ao entregar o país de bandeja às forças do imperialismo. Não, não podemos deixar que dilacerem toda a capacidade do povo de sonhar. Sabemos que são tempos difíceis e que a luta, para muitos, se dá pela sobrevivência. Entregam-se aos cruéis exploradores porque precisam ter um alimento para sobreviver, precisam criar seus filhos e dar à eles uma perspectiva de vida. Porém essa perspectiva deve ter um sentido emancipador, que dê ao individuo a capacidade de se enxergar num todo e o todo em que vivemos e que o faça capaz de agir rumo ao fim dos exploradores e dos explorados. Essa capacidade de análise e de ação, o atual sistema de ensino não proporciona. O único modelo de educação que permite formarmos o senso emancipador, é a Educação Popular, que é a teoria aliada à prática-reflexiva. Olhemos para o nosso próprio passado, para a experiência de Canudos. Que histórico de resistência! Somente no quarto ataque, grandiosamente covarde, foi que tombou. Mas todos, até a última pessoa, resistiram ao confronto. Olhemos para trás e para frente, para não repetirmos os mesmos erros.

Para fortalecer essa resistência precisamos nos organizar. Mas temos que ir além do nosso território, casar a luta imediata com a geral. É preciso que o povo crie espaços onde possam discutir os problemas locais, a realidade da sua cidade e de seu país. Nesse sentido, existem as “Assembléias Populares” no Brasil. São espaços organizados a nível regional onde o povo discute a sua realidade e como solucionar os problemas. É uma forma de democracia popular, onde o povo realmente tem participação na tomada de decisão do poder. A educação é uma questão crucial a ser debatida nesse espaço. Hoje se faz ainda mais importante, pois o atual Plano de Nacional da Educação (PNE) está expirando a sua vigência, que terminará em janeiro de 2010. Porém, ao término deste, será implantado um novo PNE. A sociedade deve estar na confecção desse novo plano, não podemos nos furtar dessa discussão, pois estaríamos perdendo mais uma batalha por uma educação verdadeiramente pública, democrática, e de qualidade.

Se antigamente os Fóruns em Defesa da Educação cumpriam um papel um pouco parecido na elaboração de um PNE, hoje só conseguiremos elaborá-lo com base na Educação Popular, nos espaços com ampla participação da sociedade, incluindo o Movimento Estudantil e o Docente, onde a pauta da educação se casasse com as mais diversas questões intrínsecas à realidade, como a saúde e o emprego.

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Fica, então, o chamado para essa tarefa. Vamos nos articular, nós, povo, em torno de um projeto verdadeiramente popular para a educação brasileira! BALADA DA GOTA D'ÁGUA NO OCEANO

de Bertold Brecht (1898-1956) 1 O verão chega, e o céu do verão Ilumina também vocês. Morna é a água, e na água morna Também vocês se banham. Nos prados verdes vocês Armaram suas barracas. As ruas Ouvem os seus cantos. A floresta Acolhe vocês. Logo É o fim da miséria? Há alguma melhora? Tudo dá certo? Chegou então sua hora? O mundo segue seu plano? Não: É só uma gota no oceano. 2 A floresta acolheu os rejeitados. O céu bonito Brilha sobre desesperançados. As barracas de verão Abrigam gente sem teto. A gente que se banha na água morna Não comeu. A gente Que andava na estrada apenas continuou Sua incessante busca de trabalho. Não é o fim da miséria. Não há melhora. Nada vai certo. Não chegou sua hora. O mundo não segue seu plano: É só uma gota no oceano. 3 Vocês se contentarão com o céu luminoso? Não mais sairão da água morna? Ficarão retidos na floresta? Estarão sendo iludidos? Sendo consolados? O mundo espera por suas exigências. Precisa de seu descontentamento, suas sugestões. O mundo olha para vocês com um resto de esperança. É tempo de não mais se contentarem Com essas gotas no oceano.

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