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    ADORNO: A DIALTICA DA EXPRESSO NA MSICA TONAL

    Philippe Curimbaba Freitas

    [email protected] em msica pelo IA - UNESP

    Professor de filosofia no ICT UNIFESP

    Resumo: O conceito de expresso delineia-se na esttica musical a partir da ideia de quea msica uma exteriorizao e de um eu interior. Embora a Esttica do Sentimentotenha, a partir do sculo XVIII, desenvolvido um dos conceitos fundamentais para umaesttica da expresso o conceito de sujeito ela se torna cada vez mais insuficientepara a compreenso da msica pura, que ganhou destaque ao longo dos sculos XVIII eXIX. Tal insuficincia foi sentida por alguns autores do sculo XIX, como Eduard

    Hanslick, que empreendeu uma reviso dos princpios da esttica musical. Ao pensar amsica como uma arte autnoma e aconceitual, a esttica de Hanslick desvincula aexpresso dos contedos externos msica e no atribui a ela se no a capacidade deexpressar ideias musicais. O conceito de autonomia da forma fundamental para opensamento de Adorno, que toma a forma, no obstante, como um dos momentos daexpresso musical o momento negativo , inseparvel do outro momento, qual seja, odo contedo expressivo. Porm, este contedo no pode mais ser pensado como umconceito: Adorno o pensa como o gesto, o qual, ao contrario do conceito, no intencional.

    Palavras chave: Adorno, expresso. Hanslick, autonomia da forma.

    Grande parte da musicologia que se deparou com o expressionismo musicalabordou-o de um ponto de vista estritamente tcnico-musical, secundarizando aquesto da expresso ou apresentando-a de maneira genrica, ou a ttulo decontextualizao histrica, quando no omitindo. Ao contrrio destes autores, emsua Filosofia da Nova MsicaAdorno identificou no prprio conceito de expressoo ncleo da transformao introduzida pelo expressionismo, e tomou asmudanas tcnico-musicais como desdobramentos exigidos por uma ideia deexpressoe de expressivo. O expressivoexpressionistacuja referncia central

    a produo de Arnold Schoenberg entre os anos 1908 e 1913 qualitativamentediferente do expressivo da msica anterior ao expressionismo. Assim oexpressionismo uma crtica expresso tal como era concebida at ento: emprimeiro lugar, expresso romntica, e tambm dramtica, que se refere aosculo XVII e a Monteverdi e se estende at o romantismo do fim do sculo XIX.Adorno qualifica esta expresso como uma simulao de paixes: a expresso sedefine aqui pelas relaes da msica com os sentimentos, e se baseia nacapacidade que ela tem de represent-los. Em segundo lugar, o expressionismo tambm uma crtica de um outro expressivo cuja formulao terica que

    encontramos na esttica romntica, ou, mais precisamente, em Do Belo Musicalde Eduard Hanslick (Hanslick, 2011) estabelece relaes estreitas com oconceito de autonomia da forma. Seu campo objetivo, entretanto, no se limita ao

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    romantismo musical, mas se estende ao classicismo. Trata-se da expressocompreendida como um comando da organizao racional dos diferentescaracteres musicais em funo de uma unidade formal, isto , de uma totalidade

    articulada.O objetivo deste trabalho estabelecer os principais referenciais histricose estticos que esto na base destes dois tipos de expresso que Adorno contrape expresso expressionista. No caso do primeiro tipo de expresso mencionado, areferncia central a msica de Richard Wagner; no do segundo tipo, a estticamusical de Eduard Hanslick. Pretende-se mostrar tambm como, a partir dascrticas tanto msica de Wagner como esttica de Hanslick, delineia-se naobra de Adorno, um modo original de compreenso do expressivo da msica tonal,em que a expresso emerge atravs de uma dialtica com seu oposto, qual seja, a

    construo formal. O presente texto parte de uma pesquisa de mestrado sobre oexpressionismo musical de Schoenberg1. Durante a realizao desta pesquisa, oautor sentiu a necessidade intransponvel de determinar algumas baseshistricas e estticas sobre as quais o pensamento de Adorno se desenvolvia, edisto resultaram as principais ideias deste texto.

    PAIXES SIMULADAS

    O sentimento como contedo ou finalidade da msica possui uma histria.

    Dahlhaus apresenta, em um de seus ensaios intitulado Transformaes daEsttica do Sentimento , um desenvolvimento histrico da Esttica doSentimento que perpassa cinco sculos, desde o sculo XV at o XIX (Dahlhaus,2003).

    O musiclogo baseia-se em uma distino da teoria lingustica de KarlBhler entre trs diferentes funes que as frases podem desempenhar:desencadeamento [Auslsung], representao [Darstellung] e notificao, oumanifestao [Kundgabe]. As aes so desencadeadas [ausgelst], os estados decoisas representados [dargestellt], os estados anmicos manifestados

    [kundgegeben] (Dahlhaus, 2003, p. 31). Cada uma destas funes corresponde auma poca diferente na histria da Esttica do Sentimento. Para autores dossculos XV e XVI como Johannes Tinctoris, Nicola Vicentino e Gioseffo Zarlino, afuno da msica era desencadear efeitos no ouvinte. Os estmulos sonorosincitavam sentimentos, os quais no eram objetivados por eles, massimplesmente percebidos e sentidos como seus. Aqui no se pode falar emexpresso dos sentimentos. A funo da msica baseando-se no modelolingustico apresentado desencadear sentimentos ou afetos, em um sentido

    1FREITAS, P. C. Antinomia da expresso: Adorno ante o sismgrafo de Erwartung, Op. 17 deArnold Schoenberg. Dissertao de Mestrado em Msica. IAUNESP, 2012.

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    prximo ao de causalidade mecnica que permite afirmar que o atrito entre doiscorpos causa elevao da temperatura.

    Contrariamente a isso, autores do sculo XVIII, tais como Charles Batteux,

    Friedrich Wilhelm Marpurg e Jean-Jacqcues Rousseau, esperavam que a msicarepresentasse ou imitasse as paixes, porm no as do compositor nem as doouvinte. As paixes eram tomadas como coisas que existem objetivamente,independentemente de serem ou no experimentadas por este ou aquelecompositor ou ouvinte, e que a msica deveria representar, isto , re-apresentar,assim como uma pintura representa ou re-apresenta uma catedral, umapessoa etc.

    apenas na segunda metade do sculo XVIII que aparecem autoresdaquilo que pode ser mais propriamente chamado de uma esttica da expresso,

    entre os quais Dahlhaus destaca Daniel Schubart e Carl Philipp EmmanuelBach. Aparece ento a figura do compositor como sujeito que se encontra por trsda msica e se expressa por meio dela. A expresso no se define mais pelarepresentao objetiva de afetos nem tampouco pela capacidade que a msicadeve ter de incitar os sentimentos, mas pela exigncia de que o ntimo docompositor torne-se apto para a msica, o que implica a exigncia deoriginalidade, pois s quem retorna a si mesmo e cria a partir do prprio ntimo original. O princpio da originalidade no exige a simples novidade, mastambm e, sobretudo, que uma obra de arte seja uma verdadeira emanao do

    corao (Dahlhaus, 2003, p. 35).Essa distino que Dahlhaus apresenta entre a expresso at meados dosculo XVIII representao dos afetos e a expresso baseada na idia de umcompositor que expressa o seu ntimo manifestao dos afetosno parece seraceita por Adorno, que rene toda a msica desde o sculo XVII at o final do XIXsob o mesmo nome de msica expressiva ocidental. A ideia esttica queDahlhaus designa como expresso subjetiva, ou manifestao do ntimo noaparece no texto de Adorno, embora a msica que lhe corresponde isto , aromntica esteja includa por Adorno no conjunto da musica expressiva

    ocidental. Este conjunto compreende trs tipos de expresso musical: aexpresso dramtica de um Monteverdi, cuja formulao esttica identificadapor Dahlhaus em autores do sculo XVIII, e para a qual o musiclogo julga maisadequado o termo representao; a expresso no dramtica, cuja refernciacentral parece ser a msica romntica, baseada nos preceitos estticos daexpresso subjetiva do compositor encontrados nos textos estticos a partir dasegunda metade do sculo XVIII, conforme mostra Dahlhaus; e a expressowagneriana, cujo gnero dramtico remonta a Monteverdi, mas que apresenta,aos olhos de Adorno, elementos claramente romnticos.

    Antes de mais nada, importante ter em conta uma diferenametodolgica entre Adorno e Dahlhaus que em parte explica essas tenses:enquanto a anlise dos escritos estticos constituem a fora centrpeta do ensaio

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    de Dahlhaus, no ensaio de Adorno so as obras musicais propriamente ditas queaparecem no centro. Dahlhaus formula suas questes com base no contedoapresentado pelos escritos que analisa, enquanto Adorno se baseia na prpria

    msica e nas questes que ela mesma coloca. Isto no significa que Adornonegligencia as questes estticas, nem que Dahlhaus negligencia o fenmenomusical propriamente dito. De qualquer modo, essa diferena de metodologiaentre duas obras que versam sobre um mesmo objetoa esttica musicaltalvezpossa revelar bastante sobre a diferena entre os dois autores, cuja afinidade ,em todo caso, muito significativa.

    Para alm das diferenas de metodologia, o que une a partir do conceito deexpresso msicas to diferentes entre si e as separa do expressionismo ocarter de paixes simuladas, isto , a ideia, latente a todas elas, de que os

    caracteres musicais so significantes, dos quais os afetos aparecem comosignificados. Assim, os caracteres musicais so um meiode acesso aos contedosafetivos, os quais pr-existem em relao aos primeiros, ou seja, a expresso comosimulao de paixes uma expresso mediata.

    Neste conceito de expresso mediata, ou de simulao de paixes, difcilnegar a referncia ao lied romntico, no entanto Wagner quem aparece comouma das referncias mais importantes para Adorno, que dedica sua obraoperstica uma grande monografia intitulada Ensaio sobre Wagner (Adorno,2008). O livro atravessado do comeo ao fim pela questo da expresso, a qual

    se apresenta intrincada com outras questes, mas no segundo e terceirocaptulos que ela posta no centro da discusso. Adorno inicia a abordagem doexpressivo wagneriano a partir daquilo que considera um impulso social presentena obra do compositor, qual seja, o de uma conciliao com o pblico da audincia,por meio da adequao da composio s condies de compreensibilidade dessepblico. Tal impulso se insere em um contexto musical em que as composiesmais avanadas e inovadoras vo progressivamente se separando do pblico dosconcertos e se fechando a estreitos grupos de espectadores e inclusive tornando-seeconomicamente insustentveis. Entre o compositor e a audincia cava-se um

    fosso cada vez maior. No obstante, Adorno no apresenta esse impulso social naforma de um comentrio geral sobre a obra de Wagner, mas a partir de elementostcnico-musicais nos quais se manifesta: Sua msica est (...) concebida para ogesto de marcar o compasso e dominada pela imagem do marcar o compasso.(Adorno, 2008, p. 31).

    O gesto , para Adorno, o motor da expresso. Toda a expresso da msicamoderna ocidental deriva de seu contedo gestual. No fosse essa capacidade demimetizar o gesto, a msica no seria mais do que um movimento agradvel deformas, porm sonoras e no visuais (Adorno, 2002, p. 139). Se ela mimetiza os

    gestos, isto s possvel na medida em que o contedo gestual se apresenta nelacomouma estrutura musical objetiva e tecnicamente descritvel, isto , como ummotivo. Na medida em que se apresenta como um motivo, o gesto torna-se uma

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    identidade musical determinada, possvel de ser apreendida, memorizada econsequentemente identificada a cada vez que repetida, ainda que essasrepeties no sejam exatas.

    A identidade musical baseia-se na unidade mtrica do compasso, umaunidade que se estabelece a despeito do contedo que o gesto convertido emmotivo apresenta, e se fixa como um denominador comum. A articulao nodepende de um desenvolvimento dos caracteres internos do motivo. Em um ato deconivncia ao ouvinte, o que h uma repetio do padro mtrico, indiferente aomaterial com o qual os compassos so preenchidos: toda a msica pareceprimeiro estruturada em compassos e depois recheada (Adorno, 2008, p. 33).

    Se o gesto torna-se apto para a msica ao apresentar-se como um motivo, arepetio motvica torna-se fundamental. A expresso no pode se limitar a uma

    mera enunciao de um motivo que mimetiza um gesto, at mesmo porque ummotivo no se constitui enquanto tal em uma nica enunciao, isto , como algoisolado: s se converte em motivo na medida em que repetido. Por outro lado, aexpresso como efuso do corao, como manifestao do ntimo (Dahlhaus, 2003,p. 37) e da singularidade do gesto orgnico, exige a originalidade e airrepetibilidade contra a rigidez mecnica da repetio literal. nessa tensoentre a necessidade de repetio pressuposta pelo motivo e pelo trabalho motvicoe o impulso expressivo pela originalidade e irrepetibilidade que surge anecessidade de uma intensa articulao formal. Por meio de procedimentos

    compositivos como o desenvolvimento, a variao e a mediao de contrastes possvel desdobrar um determinado motivo em novas configuraes queconservam certos elementos do primeiro motivo e transformam outros, demaneira que torna-se possvel estabelecer musicalmente uma relao dialticaentre identidade e no identidade, repetio e originalidade. Essa relaoconstitui para Adorno o cerne da expressividade de toda msica modernaocidental2. exatamente neste ponto que Adorno identifica uma fraqueza tcnicana msica de Wagner, fraqueza esta que no decorre de uma insuficincia tcnicaou incapacidade do compositor, mas precisamente do gesto de marcar compasso,

    isto , da abstrao do padro mtrico em relao aos elementos internos dosmotivos que preenchem os compassos:

    Em Wagner as insuficincias da organizao tcnica da composioderivam sem exceo do fato de que a lgica musical pressuposta em todaparte pelo material de sua poca amolecida e substituda por umaespcie de gesticulao (...). Certamente, toda msica remonta a esteelemento gestual e o conserva em si. No Ocidente, entretanto, ele foi

    2O termo msica moderna ocidental no de Adorno, mas de Max Weber, socilogo do incio dosculo XX que escreveu uma obra de sociologia da msica, intitulada Fundamentos Racionais e

    Sociolgicos da Msica (Weber, 1995) e que Adorno tinha em conta em suas reflexes sobre amsica. Este termo no designa a msica de vanguarda do modernismo artstico, mas aquela cujoincio remonta ao barroco at a msica tonal de fins do sculo XIX e incio do XX.

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    espiritualizado e interiorizado como expresso, enquantosimultaneamente todo discurso musical se submete sntese lgica pelaconstruo; a grande msica se esforou pela nivelao de amboselementos. Wagner se ope; sua msica (...) no consuma em si nenhumahistria. O momento expressivo potenciado ao mximo dificilmente se

    contm no espao interior, na conscincia do tempo, e se lana para foracomo gesto. (...) A fora do elemento construtivo consumida pelaintensidade exteriorizada, por assim dizer fsica (Adorno, 2008, p. 35).

    Em Wagner o desdobramento e a renovao dos caracteres internos dogesto por meio da lgica musical e em nome da expresso substitudo pelagesticulao, isto , no pelo gesto refletido musicalmente em caracteresmotvicos, mas pelo gesto que se constitui pela mera obedincia unidademtrica abstrata, a despeito do contedo motvico que preenche os compassos.Essa expresso calcada nas potencialidades internas do gesto, e que ganha

    significncia graas articulao formal, est, para Adorno, bloqueada emWagner. Nele, o contedo da expresso exterior forma musical: se lana parafora como uma gesticulao abstrada do material, de suas qualidades internas edas possibilidades de articulao formal que ele apresenta:

    Para exteriorizar-se como gesto to sensivelmente como exige oprocedimento wagneriano, a expresso no pode nunca contentar-seconsigo mesma, mas deve acentuar-se e em seguida inclusive exagerar-sepor sua crescente repetio. (...) a emoo expressiva, ao aparecer porsegunda vez, torna-se comentrio enftico de si mesma (Adorno, 2008, p.38).

    A expresso fica, por assim dizer, congelada no gesto e ganha sua fora noda diferenciao, mas fundamentalmente das repeties exatas ou quase exatasdo motivo expressivo inicial e da intensificao, por exemplo por meio docrescimento do volume sonoro pelo acrscimo de instrumentos na orquestrao. Aemoo expressiva torna-se, assim, comentrio enftico de simesma: uma auto-referncia que no sofre nenhum tipo de resistncia dos materiais musicais, isto, dos significantes que a portam. Deste modo, aquilo que aparece comosignificado, isto , os contedos expressados, no se encontra entre os caracteres

    musicais que imitam gestos anmicos, entre as emoes musicais individuais quedeveriam refletir as da alma (Adorno, 2009c, p. 42), mas fora da msica, comocontedos que pr-existem em relao a ela, e que so por ela evocados. Assim, ocontedo da expresso um conceito extra-musical e no uma potnciamobilizada pela msica:

    Se a unidade de gesto e expresso no se alcana no Leitmotiv [pois ogesto meramente repetido e no se diferencia por meio da construotemtica], se o motivo, enquanto portador da expresso, se aferra sempreao mesmo tempo ao carter drasticamente gestual, isto no indica menos

    que o fato de que sem mediao o gesto nunca pode dotar-se de alma.Diferentemente, representa algo dotado de alma. O momento intencional especfico da expresso wagneriana: o motivo media enquanto signo umsignificado coagulado. A pesar de toda a nfase e a intensidade, a msica

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    de Wagner se comporta como a escritura com palavra. (...) Sua expressono se representa, mas representada. A apreenso de um elementofragmentado da totalidade espiritualizada, meramente exterior, porsignificados que este deve representar e que podem permutar-se to bemcomo seus representantes, faz dos Leitmotive wagnerianos alegorias

    (Adorno, 2008, p. 44).

    a essa representao de contedos anmicos exteriores msica e pr-existentes em relao a ela que Adorno se refere como simulao de paixes, comoexpresso mediata, que toma os caracteres musicais como meios de acesso acontedos extra-musicais, representados por esses caracteres. O gesto musicalpropriamente dito s se torna expressivo, s pode dotar-se de alma, a partir domomento em que entra para a forma, isto , em que ganha uma articulaotcnica em virtude da qual ele se desdobra motivicamente em caracteres que

    apresentem uma formulao original da ideia gestual, e torna-se, assim,expressivo. A expresso musical s possvel, portanto, pela mediao da forma.Quando o procedimento tcnico da expresso se limita repetio do motivogestual, o motivo no se apresenta como algo dotado de alma, que em siexpressivo, mas apenas representa algo dotado de alma. Os contedosexpressados so indiferentes msica, a qual se limita a evoc-los.

    Adorno identifica no procedimento compositivo de Wagner uma tentativade contornar essa limitao tcnica, decorrente da abstrao da unidade decompasso em relao ao material musical, por meio da fluidez harmnica, que se

    contrape rigidez motvica e temtica. Na anlise que apresenta dos primeiroscompassos do preldio de Tristo e Isolda, ele mostra que as repeties motvicasapresentam-se variadas, mas apenas com o intuito de se acomodar ao esquemaharmnico, que nestes compassos est claramente desenvolvido em torno datnica de l menor, sempre pressuposta ainda que o acorde de tnica no estejapresente. O desenvolvimento harmnico molda, portanto, as repeties motvicas,e estas adquirem, portanto, uma plasticidade decorrente das alteraes de notasexigidas pela sucesso harmnica que o motivo deve parafrasear. Essaplasticidade das repeties motvicas o que aos olhos de Adorno confere a

    Wagner o carter misterioso, de algo claramente apreensvel, mas ao mesmotempo paradoxalmente obscuro, expresso na fala de Sachs: no o posso reter mastampouco esquec-lo (Sachs apud Adorno, 2008, p. 43). neste aspectoparadoxal e ambguo da obra de Wagner que Adorno identifica um dos elementosfundamentais das configuraes formais de Wagner: por um lado, a fixao naspartes isoladas do todo e, por outro, uma concepo da grandiosa obra de artetotal como um todo contnuo, sem fissuras. Wagner conservou ao longo de todasua vida tanto o formato colossal de tais produtos como o vesturio com o quesonham os teatros de aficionados (Adorno, 2008, p. 30). A compreenso mais

    sistmica da recepo adorniana de Wagner passaria necessariamente por umdesenvolvimento mais aprofundado dessa tenso. Como, porm, isto extravasariaos propsitos deste texto, apenas a mencionamos no intuito de evidenciar que a

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    posio de Adorno em relao a Wagner no unvoca, j que se trata, paraAdorno, de uma obra que articula muitas contradies estticas e sociais quemeio sculo depois o filsofo ainda no via superadas. Em Wagner, progresso e

    reao no se deixam separar como as ovelhas e os carneiros, mas se imbricamquase indissoluvelmente (Adorno, 2008, p. 47).

    AUTONOMIA DA FORMA E EXPRESSO

    O segundo conceito de expresso musical abordado por Adorno acompreende como um comando da organizao racional dos diferentes caracteresmusicais em funo de uma unidade formal. Pelo princpio da forma autnoma,como expresso de uma subjetividade autnoma, o compositor comanda os

    momentos parciais, que se apresentam inicialmente isolados e carentes derelao entre si, estabelecendo entre eles relaes e, por meio disso, articulandouma totalidade. A expresso musical aparece aqui intrincada com o princpio deautonomia da forma, isto , com a idia de que a msica possui umaracionalidade e unidade interna que a torna capaz de fundar a partir de si mesmaos critrios valorativos pelos quais seu julgamento deve se pautar. A idia deautonomia musical foi formulada teoricamente pelo musiclogo e esteta EduardHanslick em um livro de 1854, intitulado Do belo musical (Hanslick, 2011). Oautor se prope, nesse trabalho, a empreender uma reviso da Esttica do

    Sentimento, que abordava a msica exclusivamente a partir da sua relao comos sentimentos, quer seja pelos efeitos anmicos desencadeados por ela, quer sejapela sua suposta capacidade de representar afetos. A crtica da Esttica doSentimento e o desenvolvimento de uma esttica que fundamentasse o belomusical no na relao com contedos extra-musicais mas na configurao doselementos musicais e na sua articulao interna, sem referncia a algo exterior,no so gratuitos: Hanslick formula conceitualmente uma tendncia na histriada msica no sentido do desenvolvimento das formas musicais autnomas isto, no associadas a ocasies sociais, tal como missas, danas etc., e nem

    subordinada a textos ou programas e da consequente valorizao da msicainstrumental pura. Diante desse progressivo florescimento da msica absoluta eda extenso de seus critrios tambm para as msicas com texto ou programa, aEsttica do Sentimento mostrava-se para Hanslick insuficiente para acompreenso do artstico na msica, o qual em sua poca j havia adquiridosuficiente autonomia frente s determinaes extra-musicais a ponto de tornarnecessria uma nova esttica musical.

    Do belo musical do comeo ao fim uma crtica da Esttica do Sentimento.Seus dois primeiros captulos apresentam a tese negativa de Hanslick, isto ,

    mostram aquilo em que a esttica musical no deve se fundamentar. A estticamusical no deve se fundamentar nos sentimentos, quer sejam eles consideradoscomo a finalidade da msica captulo 1 quer sejam como o seu contedo

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    captulo 2. interessante observar que Hanslick aborda aqui duas das estticasdistinguidas por Dahlhaus a partir da teoria lingustica: uma delas que via namsica a funo de desencadear efeitos, ou de incitar as paixes, e outra segundo

    a qual a msica deveria representar paixes como estados de coisas.Nesses dois captulos iniciais, as linhas gerais do desenvolvimento do textomostram os problemas de se fundamentar a esttica na relao da msica com ossentimentos, j que

    O efeito da msica sobre o sentimento no tem (...) nem a necessidadenem a constncianem, por fim, a exclusividade que um fenmeno deveriaapresentar para conseguir fundamentar um princpio esttico (Hanslick,2011, p. 15).

    Vrios so os exemplos que evidenciam essa falta de necessidade, essa

    contingncia que o autor identifica na relao da msica com os sentimentos porela suscitados ou representados. A mesma msica, afirma Hanslick, suscitapaixes diferentes em diferentes nacionalidades, temperamentos, idades ecircunstancias, mas ainda, na igualdade de todas estas condies em diferentesindivduos (Hanslick, 2011, p. 14). Uma msica com texto, que adquire, portanto,uma funo de representar conceitos, se presta to bem para representar umdeterminado contedo conceitual como outro totalmente diferente, com mudanaintegral do texto. Isto ocorre, por exemplo quando se representa a pera OsHuguenotes de Meyerbeer, com mudana de cenrio, de poca, das personagens,

    da ao e das palavras, como os Gibelinos em Pisa (Hanslick, 2011, p. 30), ondetodo o contedo religioso e o sentimento piedoso desaparece. No obstante, essatransposio no lesa no mnimo a expresso puramente musical (Hanslick,2011, p. 30). Alm disso, um mesmo trecho musical pode representar umsentimento determinado to bem como o seu oposto (Hanslick, 2011, p. 29). Soinumerveis os trechos do livro em que o autor mostra esse carter problemticoda relao entre a msica e os contedos que ela se pe a representar. Elesatravessam todo o livro, desdobrando-se a partir das questes desenvolvidas emcada captulo e seria exaustivo e desnecessrio enumer-los aqui. Mais proveitoso

    identificar a origem dessa incompatibilidade que o autor atribui relao entreas estruturas musicais e os contedos representados por elas. Sua origem derivado paradoxo de uma arte no conceitual como a msica se propor a representarcontedos conceituais. O carter no conceitual da musica , para Hanslick,consequncia de sua no referncia a contedos extra-musicais, isto , do fato deque ela s pode ser compreendida esteticamente a partir de seus elementosinternos. Os sentimentos, por sua parte, dependem essencialmente de definiesconceituais e s assim podem ser compreendidos e distinguidos entre si.

    Adorno compartilha com Hanslick a ideia de que a msica no pensa por

    conceitos, e muito da sua crtica a Wagner se baseia nisso. Muito da tensointerna que Adorno v na obra dramtica de Wagner deriva tambm do conflito

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    desse carter conceitual presente em uma msica que, ao mesmo tempo,reivindica o ideal de autonomia da msica, a despeito das afirmaes de Wagnerde que a msica essencialmente uma arte no autnoma, subordinada ao

    drama (Wagner, 1893, p. 26-7). O ideal de autonomia se manifesta na aspirao forma musical contnua e unitria, em virtude da continuidade harmnica,conforme vimos, mas tambm da melodia infinita, da orquestrao e de outrosparmetros abordados por Adorno no Ensaio sobre Wagner. A continuidade semfissuras buscada por uma articulao intra-musical desmentida, afirmaAdorno, pela falta de desenvolvimento motvico, a qual substituda pelagesticulao. Assim, o expressivo se estabelece de fora para dentro, a partir deuma expresso que no se representa, mas representada (Adorno, 2008, p.44), que no se desdobra a partir da elaborao formal dos prprios materiais

    musicais isto , como aconceitual mas se apresenta como um significadoconceitual pr-existente em relao msica.A partir do terceiro captulo de Do belo musical, o texto caminha no sentido

    de expor a posio que a arte musical autnoma toma em relao aos materiaismusicais e que, consequentemente, a esttica musical tambm deve tomar.Hanslick no nega o carter simblico de determinados sons, em virtude do qualeles so associados a determinados contedos. No entanto, afirma que a artemusical comea onde termina a simbologia dos sons, isto , a partir do momentoem que os sons passam a ser considerados no isoladamente, mas atravs de suas

    articulaes formais. Aqui Hanslick j anuncia o giro da esttica do sentimentoem direo a uma esttica da totalidade da forma. A crtica adorniana daexpresso como simulao de paixes j delineada, portanto, em Hanslick, quevarre todos os contedos afetivos, todas as paixes simuladas para fora doterreno da msica, traa uma linha que os separa inequivocamente da artemusical, na qual os sons seguem leis inteiramente diversas (Hanslick, 2011, p.24). Conforme veremos mais adiante, a posio de Adorno no que toca relaoda msica com os elementos extra-musicais diferente da de Hanslick, noentanto possvel afirmar que Adorno v em Hanslick um dos momentos da

    dialtica da expresso, qual seja, o negativo, o da construo e da forma, em que aexpresso imediata, pura e simples, negada pela objetividade da forma.Hanslick traa um limite que separa nitidamente os sons musicais e os no

    musicais. Isto porque os sons seguem, na msica, leis diferentes daquelas queseguem em sua manifestao isolada. Na arte musical, os sons no estoisolados, mas combinados entre si, e nisto consiste o salto do som simblico quej algo em si mesmo, isoladamentepara o som musicalque s se torna algoatravs da relao com outros sons. Os contedos particulares tornam-se, assim,artsticos ao serem reconfigurados, relativizados, transformados, combinados, etc.

    no interior na forma artstica espiritualizada e, portanto, intelectual. No setrata de afirmar que certos sons so exclusivamente artsticos e os demais,exclusivamente naturais, simblicos. Muitos dos sons so ao mesmo tempo

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    naturais e musicais, mas sua considerao enquanto som espiritual, ou artstico,exclui as referncias s suas caractersticas naturais isoladas e sua simbologia.

    Ao contrrio do som natural, que se relaciona com os sentimentos, os sons

    musicais se movem no terreno da autonomia da forma. Seu carter artstico e,portanto, sua beleza no deriva de sua relao com os sentimentos, mas dasrelaes que estabelecem entre si. A ideia da totalidade da forma que, conformevimos, articula-se, em Hanslick de uma determinada concepo de expressomusical levada pelo autor s ltimas conseqncias. Em contrapartida, se possvel a ideia de um artstico musical para Adorno, ela se baseia em umarelao orgnica que a parte (os detalhes e os momentos isolados) e o todo nelaestabelecem entre si. Se verdade que os momentos individuais estosubsumidos pela unidade e totalidade da forma, tambm verdade que essa

    totalidade s se legitima atravs do seu confronto com tais momentos, e no comoum princpio hipostasiado de todo particular e que os deduz a partir de si. O valoresttico da msica depende dessa dinmica entre a parte e o todo. Em Hanslick, aforma artstica se separa da natureza e de todas as representaes isoladas poruma linha bem traada. O espiritual da msica se move em uma esfera aparte dosom natural. A nfase incide, pois, sobre a unidade do todo formal:

    O mestre revela estilo quando, ao realizar a idia claramente concebida,suprime tudo o que mesquinho, inconveniente, trivial, conservandoassim uniformemente em cada pormenor tcnico a atitude artstica dotodo (...).

    O aspecto arquitetnico do belo musical vem claramente para primeiroplano na questo do estilo. Uma legalidade superior (...) ser danificadapelo estilo de uma pea musical por meio de um nico compasso que,embora em si irrepreensvel, se no harmoniza com a expresso do todo(Hanslick, 2011, p. 65).

    Esse processo unilateral que Hanslick encontra na msica, por meio doqual o princpio geral da forma desdobra as partes a partir de si mesmo, e estas,por seu turno, so dceis soberania da forma, ganha uma determinao tcnicaa partir do conceito de tema. O tema a unidade autnoma, esteticamenteindivisvel, musical de pensamento (Hanslick, 2011, p. 110), a partir da qualtodo o mais se desenvolve. Ele a origem qual todas as configuraes formaisremetem, e quase poderamos dizer: a rigor no h nada alm do prprio tema, jque todos os desenvolvimentos posteriores no so mais do que a suaconfirmao, a evidncia de seu carter total e implacvel, e de suaimpermeabilidade a tudo aquilo que no proceda dele. Se verdade que ocompositor coloca o tema em diferentes situaes, o ambienta de diferentesmaneiras, tambm verdade que tudona criao musical consequncia dele,

    que tudo o que no tema s pensado e configurado em relao a ele (Hanslick,2011, p. 111).

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    difcil negar a importncia do pensamento de Hanslick para Adorno.Embora as citaes e as referncias indiretas no sejam frequentes, a mobilizaodo conceito de autonomia para pensar a forma musical e tudo aquilo que se

    relaciona a esse conceito a concepo da totalidade da forma e inclusive oconceito de expressomostra o tributo de Adorno a Hanslick, mais presente nasentrelinhas do que nas referncias expressas. Assim como Hanslick, Adorno estatento para o carter instvel da relao da msica com os significados que selhes possa atribuir, e no nega que o artstico de uma arte autnoma como amsica no pode ser buscado imediatamente nos contedos particulares que elarepresenta. No entanto, para ele a relao entre o musical e o extra-musical bastante complexa e s pode ser encaminhada de maneira dialtica.

    Adorno aborda a relao entre os caracteres musicais e os contedos

    afetivos que eles expressam em um texto sobre o carter lingustico da msica,intitulado Sobre a Relao Contempornea entre Filosofia e Msica (Adorno,2002). Todo o texto gira em torno da questo sobre o significado na msica, sobrea possibilidade ou impossibilidade de determinao de sua essncia em termosconceituais, extra-musicais. Adorno compara a msica com as artes queempregam signos verbais tanto em poesia como em prosa e com as artesvisuais. A participao no medium que simultaneamente o medium dacognio [Erkenntnis] (Adorno, 2002, p. 139) no primeiro caso, e as configuraesformais a partir de objetos do mundo exteriorque inclusive na pintura abstrata

    se mesclam com o contedono segundo; em ambos casos tem-se a impresso deque a arte estabelece uma referncia inequvoca entre significante e significado,embora Adorno reconhea que aquilo que emerge como o significado de umaobra diferente do seu contedo. A referncia inequvoca a contedos extra-artsticos encobre um carter enigmtico que a arte apresenta diante da perguntapelo seu significado, carter este que a msica, ao contrrio, expe a nu:

    (...) impossvel determinar de alguma maneira compreensvel osignificado da msica, isto , aquilo por meio do qual ela adquire seudireito de existir. (...) algo enigmtico que aparece em toda a msica.(...) Trata-se (...) do fato de que no h absolutamente nenhum momentogeral que pode ser encontrado, e que seja capaz de ir para alm dadescrio da msica, que indique seu significado e justificao. Se entoaproxima-se da msica o suficiente para que ela seja vista comestranhamento; se, em outras palavras, no se associa sua existnciaenquanto fenmeno com sua justificao, ento torna-se impossvelentender de onde deriva a dignidade que foi atribuda a ela na nossacultura (Adorno, 2002, p. 158).

    No possvel encontrar para a msica nenhum tipo de significado queemirja categoricamente, tal como ocorre nas artes visuais, e na literatura. Adornose refere a uma crise da msica, que no precisa ser introduzida (Adorno, 2002,

    p. 135), pois trata-se de um diagnstico geral da primeira metade do sculoXX, delineado a partir das ltimas experincias musicais mais avanadas que

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    datam desde os primeiros anos do sculo. Alguns sintomas mais evidentes dessacrise so as dificuldades de criao formal consistente e substancial, oendurecimento e nivelamento comerciais da vida musical e a ruptura entre a

    produo autnoma e o pblico (Adorno, 2002, p. 135). As formulaes maiscomuns desta crise a atribuem a um perigo radical (Adorno, 2002, p. 137) queameaa a msica. No entanto, argumenta Adorno, se a msica est exposta a umperigo radical, necessrio que se interrogue o que ela , qual sua essncia,pois, para que algo esteja posto em perigo, necessrio que exista, e queapresente uma essncia definvel conceitualmente. Para que o seu final sejatemido, necessrio que isso que existe e apresenta uma essncia tenha umadignidade em virtude da qual ganhe sua legitimidade, seu propsito ou sentido deexistir [raison dtre]. No entanto, vimos que essa questo pelo sentido da msica

    no pode ser solucionada, j que no possvel atribuir msica algumsignificado intrinsecamente musical, do qual derivaria sua essncia e seu sentidode existir. Desta forma, at mesmo essa presumida crise que ameaa a msicatorna-se enigmtica, pois no possvel identificar a que ela se refere. Essaaporia constitui a fibra do texto de Adorno, para quem a soluo s pode serdialtica. Adorno sensvel s reflexes de Hanslick na medida em que reconhecea msica como uma arte autnoma e recusa, portanto, a possibilidade de umasimples subsuno dela a uma essncia universal e extra-musical, subsuno estapressuposta na pergunta pelo seu significado. Mesmo assim, a posio de

    Hanslick no acatada por Adorno:(...) a suposta felicidade que provocada por formas sonoras emmovimento um princpio muito estreito e abstrato para servir defundamento a uma forma arte altamente organizada. Caso se tratasseapenas disso, ento no haveria diferena entre um caleidoscpio e umquarteto de Beethoven exceto a diferena no material (Adorno, 2002, p.139).

    O exemplo do caleidoscpio uma metfora usada pelo prprio Hanslickpara ilustrar o belo musical como um auto-referido movimento de formas, umas

    em relao s outras. No entanto, o nvel de articulao formal da msica imensamente superior ao de um caleidoscpio e um princpio to vago no suficiente para caracterizar a singularidade artstica de uma msicadeterminada, ou a especificidade de um estilo, j que apenas descreve algo queacontece a todas as msica e, no melhor dos casos, afirma a prpriasingularidade do artstico de cada msica, sendo que esta mesma singularidade,na medida em que atribuda a todas elas, torna-se uma caracterstica geral.Todas as msicas artsticas so singulares: nisto todas elas se assemelham.

    Adorno no v com bons olhos qualquer tentativa de definir a msica de

    uma maneira universal, j que isso necessariamente leva concepes demasiadoabstratas incapazes de realizar aquilo que julgam realizar. o que ocorre se adefinimos como uma linguagem sui generis ou como um algo marcado por um

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    tempo e um espao diferentes do tempo e do espao empricos, pois no podemossepar-la, enquanto linguagem sui generis, das outras linguagens e, enquantoalgo temporal e espacialmente distinto do mundo emprico, do tempo e do espao

    empricos, a no ser por meio de um enunciado abstrato que no afirma mais quea prpria diferena, dispensando-se de determinar em que ela consiste (Adorno,2002, p. 142). Para ser categoricamente separada do no musical, a msica devetomar determinaes to abstratas que a acabam paradoxalmente fundindo aono musical. A diferena caracterstica da msica frente ao mundo emprico, soutras formas de linguagem e a tudo aquilo que no msica no se baseia emuma formulao categrica, abstrata ou atemporal: concerne s particularidades,isto , as diferenas concretas: os estilos particulares, as obras particulares decada estilo e, alm disso, os momentos particulares de cada obra musical, os quais

    Adorno, ao contrrio de Hanslick, no v como mera deduo lgica do todo. Oelemento responsvel por essas diferenas singulares a expresso. Entretanto,

    (...) o momento de expresso, no qual percebeu-se o corretivo do princpiode Hanslick citado acima, muito ambguo, em qualquer instnciaisolada, e muito vago para representar o contedo da msica por simesmo (Adorno, 2002, p. 139).

    A singularizao expressiva o elemento no qual a reflexo conceitualsobre a msica deve se basear para superar a contradio das definies que, pordemasiado abstratas, nada definem. No entanto, o momento expressivo nada

    soluciona por si mesmo, isto , se considerado de maneira isolada, como umprincpio independente do momento objetivo da obra unitria e organizada, pois

    assim permanece ambguo. E aqui produz-se o curto-circuito do texto: todamsica caracterizada de uma maneira primria por aquilo que, na linguagem,com as palavras, apenas ocorre como resultado de uma concentrao alienante(Adorno, 2002, p. 139). O que ocorre na msica de uma maneira primria, isto ,sem a mediao dos conceitos, das palavras e, em suma, dos universais, s podeocorrer na linguagem verbal por meio de um agrupamento de diversos singularessob um conceito universal que abstrai as diferenas entre eles: por meio da perdada singularidade enquanto tal, enquanto no subsumida universalidade doconceito, isto , de uma alienao. A espinhosa tarefa de uma reflexo conceitualsobre a msica torna-se um enigma insolvel na medida em que a msica,conforme j afirmava Hanslick, uma arte no conceitual e, portanto, resistenteao esquema de subsuno do singular ao universal, que est na base de todalinguagem verbal.

    A msica olha seu ouvinte com olhos vazios, e quanto maisprofundamente se imerge nela, mais incompreensvel torna-se sua

    proposta ltima, at que aprende-se que a resposta, se tal possvel, noest na contemplao, mas na interpretao. Em outras palavras, a nicapessoa que pode solucionar o mistrio da msica aquele que a tocacorretamente, como algo total. Seu enigma se burla do ouvinte ao seduzi-

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    lo a hipostasiar, como ser, o que em si um ato, um devir e, como devirhumano, um comportamento (Adorno, 2002, p. 139).

    A vacuidade conceitual da msica, que olha seu ouvinte com olhos vazios,

    obriga a reflexo sobre ela a abandonar a pergunta pelo seu sentido extra-musicalem prol de uma compreenso orgnica, da msica como comportamento ou gesto.

    Em msica, estamos diante de gestos e no de significados. Na medidaem que msica linguagem, , como a notao na histria da msica,uma linguagem sedimentada de gestos. No possvel perguntar msica o que ela traz como seu significado; na realidade a msica temcomo seu tema a questo: como podem os gestos tornarem-se eternos? (...)Como linguagem, a msica tende ao puro nomear, unidade absolutaentre objeto e signo, que em sua imediaticidade est perdido para todoconhecimento humano (Adorno, 2002, p. 139).

    Ao evidenciar o paradoxo de uma arte no conceitual que representacontedos conceituais, Hanslick j apresenta, no obstante, o corretivo do carterabstrato de sua esttica musical: a msica no representa os sentimentos, masapenas mimetiza os movimentos anmicos que podem acompanh-los, isto , osgestos. Adorno provavelmente diria que Hanslick tem razo contra si mesmo: separa ele esses movimentos esto subsumidos ao conceito, como adjetivos, eportanto varridos para fora do terreno da arte musical, para Adorno apossibilidade da expresso na msica se baseia justamente na autonomia dosgestos frente s representaes s quais se subsumem enquanto conceitos. Assim

    tambm, a autonomia musical reflete essa autonomia do movimento anmico e dogesto frente ao conceitual e abre espao para a singularidade de uma expressoque no est subsumida universalidade do conceito.

    Contudo, aps serem negados em prol da gestualidade e do orgnico, oconceito e a razo reaparecem, ainda que transformados. Gesto e linguagemconjugam-se na msica, segundo Adorno. As implicaes de sentido extra-musicais, desde o eco de marchas e msica blica na grande sinfonia (...) at osreais e extra-estticos shocks e emoes da alma, desde cujos documentoscristalizou-se a nova linguagem formal da msica (Adorno, 2002, p. 142), por umlado; e a articulao dos sons no interior de um processo, por meio de umaconstruo racional da forma, por outro: estes elementos opostos apresentam-sena msica intrincados, e torna-se, portanto, impossvel separ-los um do outro. Ocarter lingustico da msica no deve ser entendido como sua participao nomundo dos significados, pois no possvel separar, no gesto, significante esignificado: no ato do puro nomear diferente do de significar o nomeaparece na msica como puro som, separado de seu portador, e portanto como ooposto de todo ato de significao, de toda inteno de sentido (Adorno, 2002, p.140). Assim, o que a constitui como linguagem sua participao no mundo daracionalidade, j que

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    A msica no conhece o nome o absoluto como som imediatamente,mas, se possvel expressar-se assim, se esfora por uma construo queo conjure por meio de um todo, de um processo. Portanto ela est aomesmo tempo entrelaada no interior desse processo, no qual categoriascomo racionalidade, sentido, significado, linguagem ganham sua validez

    (Adorno, 2002, p. 140).

    nessa tenso entre o anseio pela nomeao de algo imediato e carente desentido e a articulao racional em virtude da qual ela se torna possvel queAdorno identifica a contradio essencial no interior da qual se move a criaomusical:

    O paradoxo de toda msica que, como um esforo em direo quilo nointencional para o qual foi escolhida a inadequada palavra nome, ela sedesdobra precisamente apenas por causa de sua participao na

    racionalidade no mais amplo sentido (Adorno, 2002, p. 140).

    A especificidade da linguagem musical no pode ser compreendida,segundo Adorno, a no ser a partir dessa essncia contraditria.

    Por uma parte, [a racionalidade musical] implica que a msica, atravsda disposio sobre o material da natureza, se transforma em um sistemamais ou menos rgido, cujos momentos singulares tm um significadoindependente do sujeito e ao mesmo tempo aberto a ele. Toda msica,desde o princpio da poca do baixo contnuo at hoje, est unida comoum idioma, que em boa medida est dado pela tonalidade, e cujo podercontinua ainda na negao atual da tonalidade. O que designa o termo

    musical no uso mais simples dalinguagem, se refere justamente a essecarter idiomtico, a uma relao para com a msica na qual seumaterial, em virtude de sua objetivizao, se converte em segundanatureza do sujeito musical. Mas, por outra parte, tambm sobrevive, nomomento da msica semelhante linguagem, a herana do pr-racional,mgico, mimtico: graas sua linguistizao, a msica se afirmou comorgo da imitao (Adorno, 2002, p. 145).

    A msica determinada, por um lado, pelos seus elementos abstratos euniversais, que esto para alm da singularidade de cada msica determinada. Oque se obtm por meio desta abstrao aquilo que comum entre elas: os

    elementos musicais sedimentados que se abstraram desta ou daquela msica emparticular para constiturem um referencial abstrato compartilhado daquilo que musical, que estabeleceria os padres de reconhecimento e legitimidade ante osquais os momentos expressivos e particulares de cada msica deveriam se curvarpara no se tornarem incompreensveis. Dito de outro modo, um sistema, umidioma.

    Por outro lado, a msica no pode ser compreendida sem uma consideraode seus momentos expressivos, nos quais vai alm dos elementos convencionais,em direo a algo que tende ao informe e ao pr -racional: nesses momentos, ela

    se particulariza, se lana para alm dos elementos universais criando, por meiode um processo, novas configuraes que so irrepetveis.

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    Isto pode explicar porque Adorno no menciona a expresso como efusodo corao no trecho que caracteriza a expressividade da msica expressivaocidental. A esttica de Adorno, no s na Filosofia da Nova Msica mas nos

    escritos sobre msica e sobre artes em geral, se desenvolve a partir das questestcnicas e formais apresentadas por cada uma das obras. Adorno no prope umareflexo sobre as doutrinas estticas enquanto tais, mas sim uma reflexo sobreas questes estticas emanadas pelas prprias obras. Sua esttica algo quepodemos chamar de uma esttica materialista: no se trata de uma discusso dasidias enquanto tais, mas sim na medida em que elas estabelecem relaesconcretas com a criao artstica e sua histria.

    Essa exigncia de uma expresso subjetiva e original deixa de ser apenasum preceito esttico e passa a enredar-se em uma dinmica histrica concreta na

    medida em que mobiliza os elementos construtivos intra-musicais da formaautnoma. A concepo da forma como um todo coeso e racional abriu umcaminho para que a expresso subjetiva pudesse aparecer como uma foraconcreta no interior da msica e ganhar o sentido de uma singularizaoirrepetvel, que paradoxalmente s se torna possvel em virtude dos elementosobjetivos da forma. Ao tomar a expresso por princpio, a msica se enreda,portanto, em uma contradio. Dahlhaus tambm tem isto em mente, conforme possvel observar em um trecho do mesmo ensaio Transformaes da esttica dosentimento(Dahlhaus, 2003), com o qual encerro este texto:

    Enquanto composio, enquanto letra escrita, a arte da expressomusical enreda-se num paradoxo que, no entanto, no se pode abolircomo contradio morta, mas se deve conceber antes como contradioviva, que impele a evoluo histrica. Se a msica visa tornar-se (...)persuasiva e expressiva e o princpio da expresso , desde o final dosc. XVIII, o agente da sua histria deve ento, por um lado, para sercompreensvel, cunhar frmulas: na pera, constituiu-se um vocabulrioque tambm se estendeu msica instrumental. Por outro lado, aexpressividade, enquanto efuso do corao e expresso do prpriontimo, optou pelo desvio do habitual e do batido. (...)A expresso encontra-se, pois, contraditoriamente cruzada com aconveno, e o particular com o geral. Se, enquanto subjetiva,

    irrepetvel, incorre ao mesmo tempo, para ser clara, na coao consolidao. No instante em que se realiza numa existncia apreensvel,abandona a sua essncia (Dahlhaus, 2003, p. 37).

    BIBLIOGRAFIA:

    ADORNO, Theodor. Essays on Music. Trad. Susan H. Gillespie. University ofCalifornia Press, 2002.__________. Obra Completa. v. 13: Monografias musicales. Madrid: Akal, 2008.

    __________. Obra Completa. v. 12: Filosofia de na nueva msica. Madrid: Akal,2009b.

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    DAHLHAUS, Carl. Esttica musical. Trad. Artur Moro. Lisboa: Edies 70,2003.HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Um contributo para a reviso da Esttica

    da Arte dos Sons. Covilh: Lusofonia, 2011.WAGNER, Richard. Opera and Drama. Trad. William Ashton Ellis. The WagnerLibrary, 1893.WEBER, Max. Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica. Trad.Leopoldo Waizbort. So Paulo: Edusp, 1995.